cultura, identidade e sociedade brasileira em foco colonização, construção
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Cultura, identidade e sociedade brasileira em foco: colonizao, construo,modernismos e ideias em Srgio Buarque de Holanda, Richard Morse e Oswald de
Andrade1
Diego Schaeffer e Rassa Varandas Galvo2
Como voc avalia, no conjunto da historiografia americana, o trabalho dos
brasilianistas? E por que voc reage to incisivamente a ser considerado como um deles?
- Uma pessoa muito mais importante do que eu, Octavio Paz, ao ser convidado a
colaborar em uma revista que preparava um nmero especial sobre o Mxico, disse o
seguinte: No vou colaborar porque no sou um escritor mexicano. Sou um escritor. Em
escala muito modesta, essa um pouco a minha posio. 3
Introduo: Richard, Srgio e Oswald, pensadores brasileiros
Apesar de no se considerar um brasilianista, interessante considerar Richard M.
Morse (1922-2001) com esta alcunha. Pois curioso estudarmos um historiador norte-
americano to erudito que se interessou pela cultura brasileira e da Amrica Latina como
um todo. Mas talvez no seja assim to estranho, sendo o prprio Morse um espelho
daquilo que era uma ideia primordial em sua obra: a cultura perifrica latinoamericana
tinha e tem muito a ensinar a cultura de centro norte-americana e europeia.
Muito antes dos especialistas, como acontece hoje em dia, considerarem o Brasil e o
restante da Amrica Latina com o potencial de se tornarem grandes potncias, ou seja, na
poca que esta era vista apenas como uma terra extica e subdesenvolvida, Morse, na
1O presente trabalho fruto de duas linhas de pesquisa: Richard Morse e os modernismos ibero-americanos:Um estudo sobre a obra do brazilianista Richard M. Morse e Histria e Literatura na abordagem daAmrica Latina no sculo XX por Richard Morse (submetido para Chamada CNPq /CAPES N 07/2011),ambos coordenados pela Prof. Dr. Beatriz Helena Domingues, do Departamento de Histria da UniversidadeFederal de Juiz de Fora.2Graduandos do curso de Histria pela Universidade Federal de Juiz de Fora.3Contido em Uma Entrevista com Richard Morse. Realizada por Helena Maria Bousquet Bomeny e editadapor Dora Rocha Flaksman. Publicada na revistaEstudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 77-93.
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metade do sculo XX em diante, j acreditava que havia um continente sul-americano que,sem deixar de se desenvolver, optou por se civilizar de um jeito diferente. Morse jamais
deixou de perceber algumas das deformidades no desenvolvimento de seu pas e de admitir
que a Amrica Latina no era to selvagem e grotesca. Essa abordagem faz parte do seu
livro mais conhecido, O espelho de Prspero, que foi considerado indecoroso pelos
conterrneos do autor4. Ainda, havia grande parte da literatura brasileira e hispano-
americana sobre a formao do povo latino que defendia pontos de vista coincidentes,
como o de que o subdesenvolvimento dos sul-americanos se devia colonizao feita pelos
pases ibricos. Dessa forma, foi espantoso ver um norte-americano como Morse criticando
profundamente o American way of life e mostrando que as sociedades ibricas eram
civilizaes sofisticadas e muito mais abertas e preparadas para encontros entre culturas do
que a inglesa.
Morse, a partir de 1940, comeou a estabelecer uma relao mais afetuosa com o
Brasil e com o resto da Amrica Latina, quando passou a visit-lo com mais frequncia ao
longo desta dcada. Se estabelecendo em So Paulo, a vida na capital paulista lhe forneceu
a base necessria para que escrevesse seu primeiro livro sobre o Brasil, Histria daformao de So Paulo, publicado em ingls em 1958 e em portugus em 1970. Morse no
sentia apenas a necessidade de conhecer sua histria e sua configurao urbana, precisava
sentir a cidade, conhec-la com a razo e o corao. Com isso, as amizades que fez na
Universidade de So Paulo (USP) foram fundamentais nesse processo, embora elas no se
restringissem ao meio acadmico. Foi fundamental o convvio que ele teve com intelectuais
como Antonio Candido, Srgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Florestan Fernandes
(1920-1995), considerados pelo prprio Morse como seus mentores.
Richard Morse era um intelectual que trabalhava com a tenacidade tpica dos norte-
americanos, e estava profundamente empenhado em compreender, e no apenas em
conhecer, a histria, a cultura, as linguagens, os valores e as ideias da Amrica Latina.
Portanto, parte do mrito do trabalho de Morse sobre os brasileiros e os hispano-americanos
se deve ao fato de ele ter mergulhado na cultura latina sem perder o olhar estrangeiro, to
4Tanto que o estudo nunca foi lanado em ingls, contudo tivesse sido publicado em espanhol, em 1982, e emportugus, no ano de 1988.
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enriquecedor nesse tipo de anlise. O historiador se olhou no espelho da Amrica Ibrica,digeriu essa cultura, se abrindo para as mais diversas influncias e fazendo sua prpria
leitura delas. Dessa forma, como sugeria a antropofagia modernista, como um canibal,
Morse se alimentou dessa experincia. E j que citamos a antropofagia modernista, logo
chegamos a Oswald de Andrade, talvez a mais notvel influncia brasileira de Richard
Morse. Uma comparao entre ambos no nova, visto que a confluncia de ideias entre
Morse e Oswald torna a tentativa de compreender o Brasil instigante e mltipla, mesmo
que por muitas vezes Morse nem o tenha citado, como nos mostra Beatriz Helena
Domingues, no artigo Prspero devorando Caliban: Richard Morse e o Modernismo
brasileiro5.
Dessa forma, o objetivo do trabalho aqui apresentado a tentiva de compreender e
debater em conjunto as interpretaes do brasilianista Richard Morse, do modernista
Oswald de Andrade e do historiador Srgio Buarque de Holanda sobre aspectos da cultura
brasileira e latino-americana, tomando como ponto de partida os seguintes aspectos:
colonizao, identidades, construo da sociedade brasileira e modernismo (s). Partindo das
ideias e de algumas obras especficas dos trs autores estudados (alm de artigos e livrossobre eles), abordamos a problemtica da colonizao portuguesa, passando pela
construo da sociedade e identidade no Brasil, e culminando no movimento modernista.
O espelho antropofgico da colonizao
Consideramos importante comear essa comparao discutindo as caractersticas
primordiais da nossa colonizao, passando pelas suas diferenas em relao aos outros
modelos colonizadores, e sobretudo, pelos seus reflexos na construo da sociedade
brasileira. H muitas semelhanas e algumas diferenas no modo como nossos trs autores
analisam a colonizao portuguesa realizada no Brasil.
5 Publicado in: BLASENHEIM, Peter e DOMINGUES, Beatriz H. Org. O Cdigo Morse: Ensaios sobreRichard Morse. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010.
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Comecemos por Morse e Oswald, no modo como encaram a colonizao brasileira eseus antecedentes europeus. Morse, diferente de grande parte dos estudiosos ao tratarem da
colonizao da Amrica, procura entender a pr-histria europeia que antecede esse
processo. Para ele, quando referem-se s origens da Ibero e Anglo-amrica, esses
estudiosos levam em conta apenas a situao das civilizaes paternas na vspera da
colonizao, o que faz dessas anlises uma prospectiva e no retrospectiva. Morse defende
que para entendermos as diferenas entre Amrica ibrica e anglo-amrica, devemos recuar
mais no tempo at uma pr-histria europeia das Amricas, que em seus estudos inicia-se
muitos anos antes, ainda em finais da Idade Mdia. Ao realizar esse estudo, Morse conclui
que as diferenas existentes entre a Anglo-amrica e a Ibero-amrica no significam uma
superioridade de uma em relao outra, mas sim que elas so resultados de diferentes
opes culturais e polticas feitas por parte de suas civilizaes paternas em determinado
momento. Ressalta ainda que essas opes distintas feitas pela Inglaterra e pela pennsula
Ibrica resultam de uma matriz comum:
(...) compreender que as respectivas tradies surgem de uma matriz moral,intelectual e espiritual comum. Dentro dessa matriz, entre os sculos XII e XVII, foram
feitas opes e construdos modelos conceituais que viriam a produzir os diferentes padres
do que chamamos civilizao ocidental. (MORSE, 1988: 22).
Ao defender a ideia de opes diferentes, Morse abre caminho no s para
entendermos melhor nossa prpria histria, como possibilita que enxerguemos a Amrica
Latina no como inferior, mas apenas como diferente da Amrica do Norte, que por tanto
tempo nos foi imposta como modelo. E esse modelo que Morse quer questionar.
No decorrer do Espelho, Morse deixa claro sua preferncia cultural pela Ibero-
amrica e tece duras crticas aos Estados Unidos, apontando para a trajetria pesada do
liberalismo no pas, condenando a sua cultura de massas que, segundo o autor, produziu
com xito a individualizao, mas fracassou em produzir a individualidade, o que seria
apenas mais um resultado da trajetria do liberalismo, resultando naquilo que ele denomina
como sadismo anglo-americano:
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O sadismo, em outras palavras, no mera crueldade, mas o prazer intelectual de
atacar a civilizao com suas prprias armas, amor intellectualis diaboli. A piedade e a
compaixo se tornam desonrosas. Da a descoberta que os mendigos so respeitados no
Mxico e no nos Estados Unidos, onde o respeito social est vinculado com a
demonstrao de capacidade e eficincia sdicas. (MORSE, 1988: 121).
J ao falar da Ibero-amrica, o autor frisa a necessidade de uma viso positiva da
regio que, segundo ele, pode dar muitos exemplos para o mundo e no apenas segui-los.Para o historiador, a Amrica Ibrica deve ser encarada no como uma regio atrasada, mas
sim como dona de uma identidade histrica e cultural nica e fascinante e, assim sendo,
como um exemplo de opo cultural enriquecedor para a Anglo-Amrica.
Oswald tambm trata da questo da colonizao em seus textos. E se inicialmente,
em seus tempos doManifesto Antropofgico6, o escritor enxerga a colonizao portuguesa
no Brasil como repressora e causadora de todos os traumas de nossa sociedade, anos
depois, mais amadurecido em seus textos dos anos de 1950, Oswald passa a ver na
colonizao portuguesa aspectos positivos que, ainda que repressora, ao menos no
partilhava da mesma concepo calvinista dura e fria que havia colonizado a Amrica do
Norte. Essa mudana de posicionamento pode ser vista em seu livro A Utopia
Antropofgica, onde o autor de certa forma reabilita a cultura da Contra-Reforma e a
Companhia de Jesus. A partir desse livro, podemos perceber que para Oswald de Andrade o
fato de termos sido colonizados pela cultura da Contra-Reforma e no pela cultura da
Reforma deve ser comemorado e no lamentado, uma vez que ao invs de nos
transformarmos em expresso da fria e mecnica concepo calvinista, alm de sua
apologia ao trabalho e ao negcio, nos tornamos fruto de uma concepo mais humana e
igualitria da vida, de uma cultura de predominncia do cio sobre o negcio, trazida pela
Contra-Reforma atravs dos jesutas. Assim, para ele, apesar do calvinismo ser
6Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928. O Manifesto Antropofgico foi um ManifestoLiterrio escrito pelo ento principal agitador cultural do incio do Modernismo no Brasil. Foi lido em 1928para seus amigos na casa de Mrio de Andrade e publicado na Revista de Antropofagia, que ajudou a fundarcom os amigos Raul Bopp e Antnio de Alcntara Machado.
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incontestavelmente superior no que se refere ao incentivo para o progresso tcnico, atingidoo clmax da tcnica, este deveria ceder espao concepo mais humana da Contra-
Reforma.
Ainda creio que nossa cultura religiosa venha a vencer no mundo moderno a
glida concepo calvinista, que faz da Amrica do Norte uma terra inumana, que expulsa
Carlitos e cultiva McCarthy. (ANDRADE, 1995: 163)
Assim, sendo inevitvel a colonizao do Brasil, o que Oswald parece dizer que prefervel termos sido colonizados pela Contra-Reforma, que por sua maior plasticidade se
apresentava como mais tolerante s comunidades indgenas matriarcais, do que pela
Reforma, que embora talvez nos possibilitasse maior progresso tcnico, por sua
intolerncia, seria ainda mais devastadora para a sociedade matriarcal de Pindorama. De
certo modo, a Contra-Reforma, ainda que patriarcal, seria um empecilho menor para a
concretizao do novo Matriarcado anunciado por Oswald em seu livro, sobretudo no
artigo para a cadeira de filosofia da USP, A crise da filosofia Messinica,onde o homemcivilizado seria substitudo pelo terceiro termo de sua equao, o homem natural civilizado.
Ao tratar da oposio entre Reforma e Contra-Reforma, Oswald recorre de maneira
brilhante a uma oposio ainda mais antiga, a existente entre judeus e rabes, ambos povos
semitas, que acabaram por dividir o monotesmo em dois grandes ramos. Enquanto os
judeus sustentariam a ideia da eleio, julgando-se o povo escolhido por Deus, criando
assim um racismo esterilizador e uma cultura fechada e endgena, os rabes, um povo
exogmico e aberto para contatos com o exterior, criaram a miscigenao e uma cultura
baseada na flexibilidade, na absoro e na rica mistura. De acordo com Oswald, essas duas
culturas teriam produzido as duas concepes de vida opostas to conhecidas nossas, a
Reforma e a Contra-Reforma. Do sistema exclusivista e fechado dos judeus, da noo de
povo eleito que estes carregavam, surge o Protestantismo com a sua crena na eleio,
dessa vez no de um povo, mas do indivduo. Da plasticidade poltica, da flexibilidade, da
cultura exgena aberta miscigenao, que caracterizavam os rabes, abriu-se caminho
para a Contra-Reforma e para os seus maiores representantes aqui no Brasil, os jesutas.
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A essas ideias at aqui apresentadas podemos ligar as de Srgio Buarque deHolanda, em seu famoso ensaio Razes do Brasil. De acordo com ele, o domnio europeu
entre ns foi mais brando, menos obediente, a vida parece ter sido aqui
incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonncias sociais, raciais, e
morais (HOLANDA, 1994: 22). Para Srgio Buarque, essa plasticidade social associava-
se diretamente a inexistncia de orgulho racial entre os portugueses, o que os diferenciava
do povo do Norte:
Essa modalidade de seu carter, que os aproxima das outras naes de estirpe
latina e, mais do que delas, dos muulmanos da frica, explica-se muito pelo fato de serem
os portugueses, em parte, e j ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestios.
(IDEM, 1994: 22).
Desse modo, percebemos que nossos trs pensadores analisados enxergam nas
razes rabes boa parte dos aspectos que caracterizariam a concepo mais flexvel e
exgena que seria trazida para a colnia brasileira. Contudo, fundamental esclarecermos
que, apesar de reabilitar os jesutas e demonstrar uma postura mais favorvel cultura da
Contra-Reforma, Oswald no procura assumir um compromisso religioso ou ideolgico:
Quando exalto os jesutas, de modo algum assumo para com eles um compromisso
religioso ou ideolgico. Entendendo como entendo o sentimento religioso universal, a que
chamo sentimento rfico, o qual atinge e marca todos os povos civilizados como todos os
agrupamentos primitivos, isso de nenhuma forma toca minha equidistncia. (ANDRADE,
1995: 166).
Seu elogio Contra-Reforma est ligado a essa ser oposta viso de mundo rida e
mecnica que caracteriza a Reforma, por no ter rompido a cultura do cio de forma to
ferrenha quanto a religio de Calvino, e ter possibilitado que o Brasil se tornasse a utopia
realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenrio e marcante do Norte. E como
maior expresso dessa concepo de mundo contra-reformista, Oswald enxerga a cultura
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jesutica, que passa a ser exaltada por esse no em termos de uma devoo religiosa, massim por ser ela responsvel por trazer at ns a larga viso de mundo e a plasticidade que
tm como origem razes sarracenas.
Dessa forma, percebemos aspectos comuns nas ideias de Morse e Oswald, pois
ambos admitem a existncia de um maior desenvolvimento econmico e tecnolgico por
parte do modelo anglo-saxo, mas demonstram clara preferncia pela cultura ibrica da
Contra-Reforma, enxergando na cultura que se instalou nos EUA os defeitos da frieza,
mecanicismo e recalques frutos de uma cultura repressora dos instintos primitivos,
enquanto a cultura Ibrica da Contra-Reforma se apresenta mais flexvel e mais humana. Os
dois autores defendem uma postura diferente perante a Amrica Ibrica, uma viso positiva
no lugar do olhar crtico e pessimista. Ambos acreditam ainda que a Ibero-Amrica e, no
caso de Oswald, o Brasil mais especificamente, devem servir de modelos ao restante do
mundo ocidental apresentando novas respostas e opes. Podemos sintetizar a opinio dos
dois autores a respeito do assunto citando a seguinte frase de Beatriz Domingues:
Ainda bem que o Brasil e a Ibero-amrica foram colonizados pela Contra-Reforma!(DOMINGUES, 2010: 15).
Razes e o Manifesto: colonizao e construo da sociedade
Se nos anos 1950 Oswald altera seu foco de viso da colonizao, em contrapartida
noManifesto Antropofgico sua crtica aos portugueses dura, assim como emRazes do
Brasil, onde Srgio destaca qualidades, mas tambm aponta inmeros defeitos.
Destarte, destacamos o primeiro pargrafo do consagrado Razes, publicado pela primeira
vez em 1936:
A tentativa de implantao da cultura europeia em extenso territrio, dotado de
condies naturais, se no adversas, largamente estranhas sua tradio milenar, , nas
origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequncias. Trazendo
de pases distantes nossas formas de convvio, nossas instituies, nossas ideias, e
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timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorvel e hostil, somosainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer
nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar perfeio o tipo decivilizao
que representamos: o certo que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguia parece
participar de um sistema de evoluo prprio de outro clima e de outra paisagem.
(HOLANDA, 1995: 31).
Neste trecho, o autor j mostra logo no incio sua tentativa marcante de tentar
entender o Brasil contemporneo atravs do seu passado colonial, buscando a essncia donosso pas, e esta essncia para ele estava em suas origens, em sua raiz, como percebemos
pelo ttulo da obra. Razes do Brasil construdo sobre uma admirvel metodologia dos
contrrios, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexo latino-americana. Assim
afirma Antonio Candido no prefcio do livro, sem dvida guiado pelas articulaes de
Srgio Buarque de opostos, como ladrilhador-semeador, pblico-privado, etc. Dessa forma,
o esclarecimento no decorre da opo prtica ou terica por um deles, como em
Sarmiento ou Euclides da Cunha; mas pelo jogo dialtico entre ambos. E por
consequncia, a viso de um determinado aspecto histrico obtida, no sentido forte do
termo, pelo enfoque simultneo dos dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o
resultado possui uma grande fora de esclarecimento (CANDIDO, in HOLANDA, 1995:
12-13).
E quando Oswald de Andrade vem pregar a cultura antropofgica, por obsquio,
no nosso passado de colonizado que ele investiga as razes que nos levam pergunta: o
que o Brasil e afinal, quem so os brasileiros?, ou melhor, quem somos?. No
Manifesto Antropofgico, Oswald afirma: S a Antropofagia nos une. Socialmente.Economicamente. Filosoficamente. Evoca ento o passado canibal de muitos dos nossos
nativos, proclamando um canibalismo cultural, j que no tnhamos a resposta para o que
ramos, a sada era experimentar de tudo, devorar e deglutir, jogar fora o que no prestava e
absorver o que era essencial. A dialtica de Oswald desfaz as oposies dicotmicas entre
colonizador/colonizado; civilizado/brbaro e natureza/tecnologia. Ao considerar o canibal
como um sujeito transformador, social e coletivo faz a reviso da tradio ocidental,
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mudando a direo da seta no sentido evolutivo primitivo. No lugar do hibridismo, sempretivemos em todos os processos tnicos e culturais, a mestiagem, genuna criao brasileira.
O manifesto anuncia aquilo que iria ocorrer posteriormente na linguagem: um modelo de
pensamento cultural e de uma lngua brasileira calcada na sntese das expresses regionais
da prtica oral de todo o Brasil. E a multiplicidade de interpretaes proporcionada pela
justaposio de imagens e conceitos noManifesto coerente com a averso de Oswald de
Andrade ao discurso lgico-linear herdado da colonizao europeia.
Assim, a sociedade brasileira surge atravs das oposies que a dividiram,
polarizando a sua religio, sua moral e o seu direito a partir de uma primeira censura: a da
catequese, que trouxe o cristianismo e a do Governo Geral, que trouxe as ordenaes.
Resulta no cdigo de tica do senhor do Engenho, patriarca dono de escravos, reinando
sobre a senzala e a Casa Grande. Segundo Oswald, nunca fomos catequizados e o
paganismo tupi e africano subsiste como religio natural na alma dos convertidos, de cujo
substrato inconsciente faz parte o antigo direito de vingana na sociedade tribal tupi. As
oposies podem ser resumidas a uma nica entre o antropfago nu e o ndio de roupa
inteira, ndio vestido de senador do imprio, figurando nas peras de Alencar cheio de bonssentimentos portugueses. Dessa maneira, o primitivismo aparece como signo de deglutio
crtica do outro, o moderno e civilizado: "Tupy, or not tupy that is the question. (...) S me
interessa o que no meu. Lei do homem. Lei do antropfago". Nesse sentido, o mito, que
irracional, serve tanto para criticar a histria do Brasil e as conseqncias de seu passado
colonial, quanto para estabelecer um horizonte utpico, em que o matriarcado da
comunidade primitiva substitui o sistema burgus patriarcal: "Contra a realidade social,
vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem
prostituies e sem penitencirias do matriarcado de Pindorama. Ou como afirma Regina
Mota no seu artigoManifesto Antropofgico 80 anos indo ao infinito:
[...] preciso entender o manifesto como um ato antropofgico complexo porque o
texto no pretende resolver as questes, mas coloc-las a nu sob uma nova perspectiva, ou
chave interpretativa. Podemos afirmar sem temor que a antropofagia uma teoria do
conflito, composta como um ideograma no qual possvel identificar de um lado a
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conforme Nietzsche: pilhagem terica a prpria atitude antropofgica, justificada peladigamos, traio da memria, ratificando uma metafsica brbara que assume o terror
primitivo. Dessa forma, o que o autor prope a totemizao do Tabu, ou seja, tornar
sagrado aquilo que intocvel ao homem, contrapondo Matriarcado e Patriarcado, onde
nossos nativos viveriam na primeira, e depois o homem civilizado viveriam na segunda,
opondo assim uma cultura antropofgica dos nativos e uma cultura messinica dos
civilizados. Com isso, o alcance religioso da antropofagia, graas ao ritual canibalstico,
incorporava, num ato de extrema vingana, a alteridade inacessvel dos seus deuses,
fincando-os na terra, e com eles estabelecendo a convivncia familiar, ou na frase do
Manifesto Antropofgico: preciso partir de um profundo atesmo para se chegar ideia
de Deus.
Pensando na colonizao como conflito indelvel, podemos citar Benedito Nunes no
A antropofagia ao alcance de todos, onde observamos:
A concepo messinica une duas instncias de dominao o estado e a
espiritual do sacerdcio, ligando a autoridade do pai a de Deus, reproduz o modelo colonialde governo. a conquista espiritual dos jesutas que se transfere ao do pensamento
messinico, suporte ideolgico e expresso filosfica de uma superestrutura de que so
aspectos integrantes o regime da propriedade privada no direito, da famlia monogmica
quanto aos mores e do monotesmo quanto religio. So messinicas as religies de
salvao e as filosofias da transcendncia, que traduzem as doutrinas paternalistas do
Estado Forte, inclusive a ditadura do proletariado os derivativos soteriolgico (a figura do
mediador, sobrenatural ou carismtico) e escatolgico. (NUNES, 1995: 32).
Dessa maneira, assim como Srgio Buarque, Oswald percebe a sociedade colonial
brasileira organizada de dois modos: dominao do Estado e da religio, onde o Srgio
denomina o Patrimonialismo e os mitos e Oswald aponta os smbolos e a revoluo
caraba, que seria o retorno sociedade Matriarcal, por conta desta crise messinica do
Patriarcalismo. E em meio essa sociedade, nasce o que ambos vo denominar O homem
cordial.
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Para definir o impacto da cultura resultante da colonizao portuguesa (culturaibrica), Srgio Buarque parte de um trao para ele fundamental, que define como cultura
de personalidade, que seria a valorizao da autonomia, bem como a averso ao
convencionalismo do brasileiro, que busca sempre em suas relaes sociais a
particularizao, a criao de regras prprias. E so esses os valores que orientaram a
organizao da sociedade em relao ao Estado desde a colonizao do pas, e chegando
contemporaneidade, este era o maior obstculo para a Repblica.8 Alm disso, para
apreender melhor as caractersticas fundamentais da sociedade brasileira, Srgio retira de
Ribeiro Couto, segundo Antonio Candido no prefcio do Razes, a expresso homem
cordial, sobre a qual o mesmo Antonio Candido salienta:
O homem cordial no pressupe bondade, mas somente o predomnio dos
comportamentos de aparncia afetiva, inclusive suas manifestaes externas, no
necessariamente sinceras nem profundas, que se opem aos ritualismos da polidez. O
homem cordial visceralmente inadequado s relaes impessoais que decorrem da
posio e da funo do indivduo, e no da sua marca pessoal e familiar, das afinidades
nascidas na intimidade dos grupos primrios. (CANDIDO, 1995: 17).
Ou seja, o homem cordial quer dizer exatamente o contrrio, pois essa
cordialidade epidrmica, no essencial. O que vem a ser essencial aquilo que
autoritrio, entretanto, h uma ausncia das hierarquias internas , no sentido da sociedade
no respeitar as instituies e as diferenas, odiando as palavras associao,
igualdade, liberdade, entre outras. Dessa forma, o que Srgio Buarque argumenta que
o que nos essencializa a cordialidade, como se o autor quisesse dizer: Somos cordiaisporque somos resistentes vida em sociedade, usando essa cordialidade como uma
defesa, uma proteo contra conflitos pessoais: no que civilidade no exista no Brasil,
mas Srgio a v afastada em relao cordialidade, de forma que o brasileiro prefira
tirar a hierarquizao, dando um toque pessoal, de proximidade. Pessoalidade essa que
8Quando Srgio destaca essa cultura, ele fortemente influenciado por Max Weber, partindo da ideia de umacultura ideal (tipos ideais). Dessa questo, resulta uma sociedade politicamente pouco participante, que eleatribui tambm colonizao portuguesa.
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prpria do catolicismo, como por exemplo, a atitude de tratar muitas vezes o santo catlicocomo um amigo, algum prximo. Srgio destaca fatores positivos desse aspecto cultural,
porm alega que possui igualmente um lado muito ruim, pois a principal razo do no
funcionamento da democracia residia nessa desarticulao das hierarquias e essa
pessoalizao das relaes sociais.
Em 1950, Oswald de Andrade profere uma palestra intitulada "Um aspecto
antropofgico da cultura brasileira: o Homem cordial, contido noA Utopia Antropofgica.
Ao analisar o captulo V deRazes do Brasil, dedicado cordialidade, o escritor modernista
enuncia uma interpretao heterodoxa sobre o texto de Srgio Buarque. Tratava-se, para
Oswald de Andrade, de repensar a cordialidade, herana de um mundo ibrico e rural, signo
de uma vida privada cujos valores invadiriam todos os espaos da vida pblica, como um
aspecto da cultura brasileira compatvel com formas de vida mais justas e solidrias. Em
outros termos, o ensaio oswaldiano indica uma releitura da histria do Brasil em outra
chave que a do ressentimento perante as origens ibricas e coloniais do pas. Para Oswald,
essa alteridade do povo brasileiro um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal,
porm esse Homem cordial tem uma dicotomia interna, pois o Homem cordial tem noentanto dentro de si a sua prpria oposio. Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz, pois
para ele essa identidade cordial produto da cultura primitiva caraba, que prega o amor
e ajuda ao prximo, mas a averso e assassnio ao resto do mundo. Ainda, conclui o autor,
retornando com sua tese do retorno ao matriarcalismo:
Hoje, pela ondulao geral do pensamento humano, assiste-se a uma volta s
concepes do matriarcado. (ANDRADE, 1995: 159).
As cidades e as relaes sociais: o semeador, o ladrilhador e o puritano
Comparando sistematicamente a colonizao espanhola e portuguesa no captulo O
Semeador e o Ladrilhador, deRazes do Brasil, Srgio define Portugal como semeador,
pois na sua viso, tinham um modelo de colonizao que ele define como desleixado:
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deixavam as feitorias ao deus-dar, se preocupando muito com a explorao das riquezasdo territrio e pouco com a organizao das cidades, como visto na afirmao:
[...] A cidade que os portugueses construram na Amrica no produto mental,
no chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaa na linha da paisagem.
Nenhum rigor, nenhum mtodo, nenhuma previdncia, sempre esse significativo abandono
que exprime a palavra desleixo [...] (HOLANDA, 1995: 110).
Alm desse desleixo, Srgio observa uma certa liberdade (precocidade doEstado Nacional portugus e uniformidade tnica), alm de um sentimento de segurana.
Ocupando sobretudo o litoral, as cidades mediterrneas s foram erguidas no sculo XVIII,
e mesmo assim com forte legislao repressiva na explorao (como por exemplo, a cidade
de Diamantina). A organizao das cidades coloniais portuguesas, de acordo com Srgio, se
enlaam com as linhas da paisagem, so rebeldes s formas abstratas, inspiradas na
colonizao de fencios e gregos da Antiguidade (a exceo a esses modelos eram os
Jesutas e Bandeirantes). A crtica de Srgio sobre o Brasil no entrar na modernidade se
justificava entre muitos motivos, na ausncia de universidades (s no sculo XX), pois
nesse perodo a elite colonial era enviada para Portugal afim de estudar (sobretudo a cidade
de Coimbra). Ainda, para o autor, em relao aos mitos (assunto aprofundado em Viso do
Paraso), os portugueses eram mais realistas e naturalistas do que os espanhis:
renunciavam a transfigurar a realidade por meio de imaginaes delirantes ou regras
formais. Eram donos de uma coragem obstinada, mas no descomedida. Por fim, o que
Srgio explica que havia certa homogeneidade dos indgenas do litoral, tornando-se
tambm agentes da colonizao (questo das trocas culturais), tambm devido ao
relaxamento do catolicismo portugus nos trpicos.
J do lado espanhol, denominado como Ladrilhador, Srgio percebe um processo
colonizador mais preocupado, ativo. Na formao de suas cidades, os espanhis
atuaram como uma empresa da razo alterando a natureza, tendo uma ideia desde o
comeo de povoar e levar suas instituies, como a Igreja e o Estado (at mesmo por isso o
prprio nome dado primeira colnia: Nova Espanha). Sua ordem de colonizao
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partia de uma enorme fora centralizadora, uniformizadora e formalizadora (desuniointerna e multiplicidade racial) e, ao contrrio dos portugueses, detinham um sentimento de
insegurana. E se os portugueses s desbravaram o interior do Brasil no sculo XVIII em
diante, os espanhis desde o incio de sua colonizao se preocupavam em desbravar o
interior do territrio conquistado, fundando cidades mediterrneas, inclusive no territrio
que muitos anos depois seria reconquistado pelos Estados Unidos.
Nessa mesma questo, de maneira geral, concebo que Morse no Espelho de
Prspero quer mostrar que a Amrica do Sul no uma vtima ou problema, mas sim
onde a anglo-amrica pode reconhecer suas enfermidades, por isso, inclusive, o autor usa
para definir anglo-amrica no lugar de Estados Unidos, e ibero-amrica no lugar de
Amrica Latina, pois receberam esses nomes das naes que lhe deram origem, e no de si
mesmas. Por conseguinte, Richard Morse ento vira o espelho: para ele a ibero-amrica no
deve ser estudada como um caso de desenvolvimento frustrado, mas sim como vivncia
de uma opo cultural, o que muito inovador, complexo e instigante. Para Morse e
concordando com ele, as claras diferenas entre a Amrica colonizada por espanhis e a
colonizada por ingleses so frutos de escolhas polticas. Para explicar esse processohistrico, Morse nos remete desde ao projeto colonial nas reas portuguesa e espanhola,
seguindo a linha do ladrilhador e semeador, de Srgio Buarque, e definindo a
colonizao da Amrica do Norte pela Inglaterra como assistemtica.
Continuando, Morse chega ao sculo XVII, onde ressalta a peculiaridade da
Amrica espanhola, que nesse perodo j possua universidades, bispados, produes
artsticas, etc; enquanto a Amrica inglesa era um amontoado de pequenas aldeias.
Assim, afirma que a falta de um projeto colonial aproximou os EUA de sua independncia.
Alm disso, Morse nos mostra que a solidez das cidades coloniais espanholas no
harmonizam com um projeto de explorao imediata de quem quer enriquecer e voltar pra
Europa, pois algumas posturas so independentes da religio ou raa, como por exemplo,
a perseguio constante do ouro. Concluindo esse primeiro ponto, necessrio ter a
concepo de Morse de que para compreender as diferenas entre ambas as colonizaes
necessrio compreender as caractersticas da Inglaterra Moderna, pois essa saiu para a
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colonizao praticamente 100 anos depois da Espanha, e dessa forma, comprou o pacotemoderno.
No mbito poltico, Morse afirma algo que interessantemente j havia pensado,
onde a ibero-amrica apropria-se de uma viso anglo-saxnica que se enxerga como
superior. Assim, temos uma Amrica Ibrica desfocada porque ela se contempla no
espelho da prspera Amrica inglesa e, na busca da imitao do outro, perde sua prpria
essncia. Em outras palavras, a ibero-amrica no percebeu ou no percebe que o
liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo cientfico, o
pragmatismo, todos estes ideais enaltecidos pela anglo-amrica no s so incompatveis
com a realidade da Amrica Ibrica, como tambm marcam a decadncia e a falta de
sentido da prpria sociedade capitalista que os criou (claro que esta uma viso
generalizante que coloca todos os pases da Amrica do Sul no mesmo balaio, mas os
estudos das especificidades que posteriormente esses pases iriam adquirir no o objetivo
de Morse nesse momento, mas sim o de contrapor um bloco a outro).
No primeiro tpico do Espelho, Novo Mundo: Dois Mundos, Morse narra como a
Pr-histria europeia se tornou pano de fundo para o importante sculo de colonizao doNovo Mundo: Espanha e Portugal estando no outono e a Inglaterra na primavera.
Interessante aqui a negativa de Morse para entender a histria num sentido
evolucionista, mas sim no sentido de Huizinga. a nosso ver exatamente isso que o
autor quer mostrar: no h uma anglo-amrica superior e uma ibero-amrica inferior, e
ressaltando as novas possibilidades que essas novas sociedades permitiam, enquanto as
bases slidas e antigas europeias impediam.
Na segunda parte do Espelho, intitulada Histria, temos como tpico inicial O
mundo ibrico como contexto da ilustrao, onde Morse trabalha trs ideias importantes
para reconstituir a mentalidade da sociedade norte-americana a partir de suas razes, j que
segundo ele as colnias puritanas no tiveram uma misso civilizadora ou incorporadora
(o conhecido mecanismo do ndio bom ndio morto): a ideia de vocao, a ideia de
pacto e a ideia da Igreja e do Estado como esferas separadas. Dizendo ento que as colnias
logicamente compartilharam as culturas de suas respectivas ptrias de origem, e com isso,
os reinos ibero-americanos, a medida que avanavam no sculo XVIII para a independncia
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poltica mesmo sem saber, enfrentavam dois desafios: o carter aparentemente inadequadoe a natureza incoerente de sua organizao social.
Dessa forma, por sequncia, Morse trabalha exatamente essas diferentes culturas
polticas ibero e anglo americanas, j mencionadas anteriormente, no tpico Culturas
polticas do Norte e do Sul. Aqui, o autor cita Leopoldo Zea, lembrando que este
sustentava que a emancipao poltica ocasionou uma emancipao mental, que levou os
ibero-americanos a renunciar a dialtica em curso com o passado, o que impediu, pelo
menos durante o sculo XIX, afirma Morse, a superao desse passado e a converso do
futuro em presente, ou seja, acredito que o que diferenciou culturalmente o Norte e o Sul,
alm do que cita Morse, esse aprisionamento colonial, essas razes e esses fantasmas do
passado ibero-americano que perseguiu os pases da Amrica do Sul. Como exemplo,
Octavio Paz, em seu O Reino da Nova Espanha, acredita que esses fantasmas ainda hoje
resistem, e para o Mxico superar seus problemas, preciso enfrent-los, encarar esse
passado, sem tentar esquec-lo na Histria.
Concluindo este debate, introduzimos uma citao de Paz em El ogro filantrpico,
que considero se encaixar muito bem aoEspelhode Morse, resumindo talvez o sentimentodo autor e o nosso, ao perpassar a obra:
As sociedades latino-americanas so a prpria imagem da estranheza: nelas se
justapem a contra-reforma e o liberalismo, a fazenda e a indstria, o analfabeto e o literato
cosmopolita, o cacique e o banqueiro. Porm a estranheza das nossas sociedades no deve
ser um obstculo para estudar o Estado Latino-Americano que uma das nossas maiores
peculiaridades. Por um lado o herdeiro do regime patrimonial espanhol; por outro, a
alavanca da modernizao. A sua realidade ambgua, contraditria e de certa forma,fascinante. (PAZ, 1983: 64).
Voltando a Srgio e Oswald, quando o primeiro explora em Viso do Paraso9 as
relaes entre os colonizadores e os colonizados (portugueses versus ndios), Srgio tenta
9Sua obra mais acadmica, escrita como tese para ingressar como professor da USP: Viso do Paraso, cujaprimeira edio data de 1959, ou seja, mais de vinte anos depois doRazes. Partindo de um mito antiqussimo,o da viso europeia, sobretudo dos navegadores ibricos, da Amrica do Sul como Paraso Terrestre, Srgioexamina os mitos ednicos que acompanharam as narrativas dos descobrimentos e colonizao da Amrica,explorando o imaginrio do colonizador e comparando os modelos de colonizao espanhola e portuguesa.
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compreender a mentalidade portuguesa
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, definindo o portugus como algum com umaviso de mundo muito marcada pelo pensamento tradicional, rstico, catolicismo
tradicionalista e muito pouco institucionalizado, com crenas em coisas mgicas e se
esforando em pensar a cultura material, os valores que esses portugueses trazem e como
eles se relacionam com os ndios, seus prprios valores e a natureza. Nessa relao, o autor
utiliza a expresso interao assdua entre ndios e portugueses, espcie de trocas
culturais. Expresso pioneira essa, que pode ser comparada com a famosa circularidade
cultural de Mikhail Bakhtin, e posteriormente utilizada pelo historiador italiano Carlo
Ginzburg.
Oswald tambm interpela esse relacionamento colonizador-colonizado, como o
seguinte poema:
Quando o portugus chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o ndio
Que pena!Fosse uma manh de sol
O ndio tinha despido
O portugus11
Percebemos nele novamente a tese de Oswald que Para ela, a tese de Oswald que a
instituio do Patriarcado na sociedade brasileira, que comeou com a chegada dos
primeiros evangelizadores e Governadores europeus, foi devastadora para as comunidades
indgenas, j que para ele estas eram de cultura predominantemente Matriarcal. Um
10Srgio, com Viso do Paraso foi muitas vezes considerado como um percursor da posterior histria dasmentalidades praticada pela Terceira Gerao dos Annales francesa. Porm sobre esse assunto, em outroposfcio do livro, Ronaldo Vainfas define: Viso do Paraso, por mais vanguardista que tenha sido e foi -,nada tem haver com a histria francesa das mentalidades. Nem com a praticada pelos fundadores dos Annales[...] nem, muito menos, como a da terceira gerao, como Laura de Mello e Souza apontou no posfcio dapresente edio [...] (VAINFAS, in HOLANDA, 2010, p. 555). Consequentemente, Vainfas considera Visodo Parasoum livro de histria das ideias, ou segundo Vainfas como afirmou o prprio Srgio, trata-se deuma biografia de uma ideia. (idem, 2010, p. 554).11 ANDRADE, Oswald de. O achado de Vespcio, p.224. adendo de A marcha das Utopias, inANDRADE, Oswald de.A Utopia antropofgica. So Paulo: Editora Globo, 1995.
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exemplo histrico explorado por Oswald refere-se Guerra para a expulso dos holandesesem Pernambuco. Ele festeja a derrota holandesa no com o esprito nacionalista (ou
mesmo regionalista que veio assumir em nossa historiografia), mas como uma vitria do
cio sobre o negcio. Nos anos 1930, um questionamento nesta direo apareceu em Razes
do Brasil de Srgio Buarque de Holanda, e no pleiteando seu pioneirismo neste tipo de
abordagem, Oswald reconhece sua dvida para com Srgio Buarque, que em Razes do
Brasil havia associado o cio com o mundo catlico e o negcio com o protestante. E o cita
literalmente:
[...] Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e at mais nobilitante, a
um bom portugus, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo po de cada dia. O que
ambos admiram como ideal uma vida de grande senhor. E assim, enquanto povos
protestantes preconizam e exaltam o esforo manual, as naes ibricas colocam-se ainda
mais largamente no ponto de vista da antiguidade clssica. O que entre elas mais predomina
a concepo antiga de que o cio importa mais que o negcio e de que a atividade
produtora , em si, menos valiosa do que a contemplao e o amor [...] ( ANDRADE,
1995: 190).12
Temos a alm da comparao do colonizador espanhol com o portugus, a do
colonizador ingls que prevaleceu na Amrica do Norte, ou melhor, uma comparao de
modelos colonizadores: catlico versus protestante, mostrando assim como Morse iria
inserir, sua preferncia pela colonizao ibrica em relao a anglo-sax.
A busca das razes e das identidades
E na busca das razes brasileiras e norte-americanas que talvez esteja a grande
coincidncia entre os dois estudiosos e amigos: Srgio e Morse. E isso que o artigo Razes
do Brasil em o Espelho de Prspero, de Pedro Meira Monteiro ilustra13. O autor inicia sua
comparao, definindo o que para ele o aspecto principal de Razes do Brasil:
12HOLANDA, Srgio Buarque.Razes do Brasil. APUD ANDRADE, Oswald de.A Marcha das Utopias.13Contido no Cdigo Morse.
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Sabemos que a cultura da personalidade o trao fundamental com que Srgio
Buarque de Holanda desenha um de seus personagens centrais: o homem ibrico.
Poderamos dizer que a atrofia da esfera pblica o resultado lgico de uma personalidade
inflada: em terra de infindveis bares, o pacto poltico se consome em relaes de lealdade
ou dio. (MONTEIRO, 2010: 180).
Destarte, Pedro Meira retoma a questo das relaes sociais marcadas pela
pessoalidade, j discutidas neste artigo. Porm a partir de sua viso dos Estados Unidos,que segundo ele seguem a fornecer o espelho incmodo de uma experincia supostamente
bem-sucedida, relegando os brasileiros (aqui prximos aos hispano-americanos) a um plano
em que se descobrem o reflexo ou o desdobramento de outra realidade e de outra Europa:
Outra Europa, outra Amrica. E aqui ento que o autor faz a ligao de Srgio com
Morse:
[...] Richard Morse, que, poderamos j imaginar, ter sido quem mais longe levou
a reescrita de Razes do Brasil, ainda que em O Espelho de Prspero no se encontre uma
nica aluso a Srgio Buarque de Holanda. (idem, 2010: 189).
Logo, o que o autor vem elucidar que a principal zona de coincidncia entre as
duas obras e os dois autores reside no reconhecimento de uma histria das Amricas deve
necessariamente dialogar com a histria europeia mais remota, claro que evidentemente, a
f depositada nos ibricos e em seu universalismo supostamente mais poroso, aberto
diversidade e variedade do gnero humano, algo que encontra os seus extremos emRichard Morse, enquanto Srgio Buarque de Holanda parece mais reservado; mas em
contrapartida, para Pedro Meira, o que gera os estudos de ambos os autores a
desconfiana em relao matriz liberal, ou em outras palavras, a desconfiana em face
daquele apagamento do indivduo, da abstrao de sua singularidade.
E como derradeiro problema em comum nessa relao entre Srgio e Morse,
segundo Pedro Meira, est na relao entre o indivduo e o Estado. Ambos os autores esto
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Na opinio de Schwartz, possvel estabelecer pontos comuns entre os movimentosde vanguarda, que se sucederam nesse perodo nos dois pases citados, no que se refere
tentativa de instaurao de uma retrica antipassadista, que busca demolir as convenes
em voga. A seu ver, produz-se na linguagem dessas novas poticas um verdadeiro processo
de carnavalizao, com a subverso dos gneros, com formas coloquiais da linguagem em
convivncia com o potico-tradicional, ao mesmo tempo em que se introduz a manifestao
do cotidiano na arte. Todavia, ressalta o historiador, o caso brasileiro particular, pois
houve, aqui, uma marcada preocupao em "alcanar uma expresso nacional".
Nesse contexto preciso, a figura de Oswald de Andrade merece ser realada, pois
desde muito cedo ele soube fazer "de seu conceito de antropofagia uma reflexo sobre o
carter original da cultura brasileira. Jorge Schwartz enftico ao afirmar:
"A frmula oswaldiana da antropofagia, que visa assimilao do estrangeiro para
a exportao do nacional, se configura como a ideia mais original da dcada nas vanguardas
da Amrica Latina. (SCHWARTZ, 1983: 45).
Em sua opinio, ao valorizar a dimenso primitiva de nossa cultura, Oswald soube,
como ningum, faz-la "coincidir com a entonao moderna e contempornea
dos ismos europeus". Porm, ao cunhar o conceito de antropofagia, o escritor tencionava
posicionar-se de outra maneira em relao herana cultural europeia, no mais servindo-
se dela como modelo, rejeitando frmulas preestabelecidas de composio potica e
proclamando a abolio de todo eruditismo. Para Oswald e o nosso movimento
modernista, o Brasil poderia oferecer algo de valor civilizao ocidental desde que seus
artistas comeassem "a ver com olhos de renovado interesse um passado at ento
esquecido. E com o Manifesto Antropofgico, o poeta e filsofo reafirma o desejo de
ultrapassar a especulao esttica e lanar-se, ainda que de forma idealizada, em um projeto
mais amplo, o qual visaria, em ltima instncia, a transformao social.
Nessa tica, o homem brasileiro tornar-se-ia o portador de uma nova concepo de
mundo, era necessrio revalorizar os elementos nacionais, como nas afirmaes do
Manifesto: Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
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felicidade. [...] A nossa independncia ainda no foi proclamada. [...] Queremos arevoluo Caraba. Maior do que a Revoluo Francesa. Oswald rompe, assim, com a
viso romntica e idealizada do bom selvagem, celebrando o canibal tupi por seu poder
transformador, por sua capacidade de criar a instabilidade, o conflito, em vez de um
resultado, uma concluso ou sntese.
Benedito Nunes, em seu clebre ensaio Oswald Canibal, assinala que, para o
escritor modernista:
Era o primitivismo que nos capacitaria a encontrar nas descobertas e formulaesartsticas do estrangeiro aquele misto de ingenuidade e pureza, de rebeldia instintiva e de
elaborao mtica que formavam o depsito psicolgico e tico da cultura brasileira.
(NUNES, 1979: 25-26).
Se a antropofagia de Oswald no se tornou vitoriosa sobre as outras propostas
modernistas de interpretao da especificidade cultural brasileira no momento de sua
elaborao ou nos anos imediatamente seguintes, marcados por intenso engajamento
poltico, religioso e social no campo das artes, inclusive da parte de seu autor, ela foi talveza que mais impactou afirmativamente as geraes futuras e o debate artstico nacional, em
especial a partir dos anos 1960. Nesta dcada, perodo de forte recuperao das ideias do
escritor paulista, ela serviu de base para que os tropicalistas questionassem o paradigma
nacionalista, ento em voga, e demonstrassem que a noo de uma produo
"genuinamente nacional" era desprovida de sentido.
J Srgio Buarque de Holanda, antes de sua consagrao com Razes do Brasil,
participou nos anos 1920 no interior do movimento modernista, sendo um dos participantes
e editores do principal veculo do movimento: a revista Klaxon15.
Em meio a nomes afamados como de Mrio de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do
Amaral, encontramos Srgio Buarque de Holanda, s posteriormente consagrado como
15Klaxon foi uma revista mensal de arte moderna que circulou em So Paulo de 15 de maio de 1922 a janeirode 1923. Seu nome derivado do termo usado para designar a buzina externa dos automveis.O principalpropsito da revista foi servir de divulgao para o movimento modernista, e nela colaboraram nomescomo Mrio de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, AnitaMalfatti, Srgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral e Graa Aranha, entre outros artistas e escritores.
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historiador, em seus primeiros passos no processo de contestao das realidades nacionais.Seu envolvimento com o movimento modernista se deu em primeiro momento motivado,
no apenas por sua amizade com Mrio de Andrade e sua primria admirao por Graa
Aranha, mas tambm por suas leituras. Nos primeiros anos do movimento compartilhou as
idias de busca por uma identidade nacional original para o Brasil. Apesar de sua posterior
decepo com os rumos do modernismo brasileiro, esse ideal o acompanhou, tanto que ele
aparece intrnseco noRazes16.
Com o intuito de responder esses questionamentos, no artigo de Jlia Silveira
Matos, Cartas Trocadas: Srgio Buarque de Holanda e os bastidores da revista Klaxon ,
temos a anlise da correspondncia de Srgio Buarque nos anos de 1920, como articulador
da revista. A autora seleciona sete cartas, sendo duas enviadas a ele por Mrio de Andrade,
uma por Tcito de Almeida, uma por Ribeiro Couto, uma por Couto de Barros, duas
respostas a Mrio, uma no mesmo ano de 1922 e outra do ano de 1925, qu no seria desta
poca, mas conserva a temtica que a validao e crtica do discurso moderno de Srgio
Buarque de Holanda. Segundo Jlia Matos, ao ler as cartas o que percebemos que todas
possuam como elo o mesmo assunto: a publicao e organizao da revista Klaxon, assimcomo a avaliao do conto Antinous de Srgio Buarque. Sendo assim, o objetivo do
trabalho da autora analisar como os princpios ideolgicos do movimento modernista
impressos em Klaxon aparecem nessa correspondncia, e da mesma forma, como as
relaes entre os sujeitos componentes desse movimento, suas avaliaes e administrao
da revista, pois:
Essas cartas, entendidas aqui, como parte da obra de Srgio Buarque, nos
permitem compreender o funcionamento de seu pequeno microcosmos intelectual entre os
anos de 1920, assim como, sua prpria constituio enquanto estudioso do Brasil.
(MATOS, 2010: 3-4).
16 Segundo reza a lenda, por conta de uma prova no curso de Direito, Srgio no teve a oportunidade departicipar do marco da Semana de 22.
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Destarte, o que queremos aqui no fazer o mesmo que Jlia Matos, debatendoessas cartas, mas sim ilustrar como apesar de poucos comentarem, o intelecto de Srgio
fomentou esse movimento junto com o de Oswald, por exemplo, apesar que o primeiro
desacreditaria dos ideias do movimento e no participaria, aps a dcada de 20, ativamente.
Enquanto o segundo estaria sempre ligado a este vis modernista, antropofgico. E a est
uma essencial diferena entre eles, diferena que culminaria em carreiras e ideias
diferentes, apesar de algumas semelhanas e confluncias, como j vimos neste presente
artigo.
Por ltimo, chegamos a Richard Morse. Este admitia com entusiasmo sua admirao
pelos escritores modernistas brasileiros, confessando-se fascinado principalmente por
Oswald e Mrio de Andrade. Ao escrever o texto Brazilian Modernism, Morse deixava
clara a sua preferncia por Mrio de Andrade, a quem considerava a prpria encarnao e
sintetizao do modernismo. No entanto, mais tarde, Morse mudaria o seu julgamento em
relao a Oswald de Andrade, passando a admirar e a admitir a contribuio artstica e
intelectual desse para o pas, interessando-se igualmente por ambos.
Em sua obra, mais do que estudar a Amrica Latina, Morse buscava lanar um novoolhar para a cultura ibrica, um olhar positivo no lugar do olhar recriminatrio que at
ento era lanado ibero-amrica. Morse defende a Ibero-amrica como resultado de uma
opo cultural que tambm possui exemplos a dar, propondo inverter o espelho que at
ento os EUA agressivamente mostram para a Amrica do Sul.
Talvez seja hora de virar esse espelho. Num momento em que a Anglo-Amrica
experimenta uma crise de autoconfiana, parece oportuno confrontar-lhe a experincia
histrica da Ibero-Amrica, no mais como estudo de um caso de desenvolvimento
frustrado, mas como a vivncia de uma opo cultural. (MORSE, 1988: 14).
Assim, como afirma Beatriz Domingues, embora no faa referncia direta a isso
em seu livro, Morse compartilhava da perspectiva antropofgica , uma vez que, a partir de
seu olhar estrangeiro, o historiador devorou nossa cultura ibero-americana, saindo dessa
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experincia transformado e enriquecendo-nos com a deglutio de suas interpretaes denossa prpria histria e cultura.
De acordo com Beatriz Domingues, Morse orgulhava-se do fato de ter nascido em
1922, mesmo ano da famosa Semana de Arte Moderna ocorrida em So Paulo, cujos
participantes tanto o fascinavam. Seu interesse pelos modernismos latino-americanos
claramente expresso em suas obras, sendo assunto em textos como Brazilian Modernism,A
Volta de McLuhanama e The Multiverse of Latin American Identity17. importante
mencionar tambm, que alm da forte presena do Modernismo, as obras de Morse se
caracterizam por um grande dilogo entre a histria e a literatura, de forma que o autor
relaciona suas anlises histricas com obras de grandes nomes da literatura como T.S.
Elliot, Mrio de Andrade e, como comparado neste artigo, Oswald de Andrade.
A busca da identidade e o Modernismo por Richard Morse: o que humano e
transcende o curto prazo
The Multiverse, obra esta pouco conhecida no Brasil, enfoca a problemtica da
identidade brasileira e latino-americana de forma panormica e comparativa, detendo-se
nas formulaes de pensadores brasileiros e latino-americanos considerados como os mais
expressivos, desde o Modernismo dos anos 1920 at a dcada de 1970. Algumas
interpretaes so desdobramentos de teses formuladas pelo autor em estudos anteriores,
desde os anos 1940 at os 1990. Embora Morse tenha percorrido meio sculo de produo
literria e histrica sobre o tema da identidade, importante nos centrar na contribuio que
este estudo pode oferecer historiografia sobre a problemtica da identidade nacional na
Amrica Latina na dcada de 1920, com destaque para o perodo modernista. Alm de
ocupar um papel privilegiado na anlise de Morse, o Modernismo abre grandes
possibilidades de dilogo entre os estudos histricos e os literrios. O Modernismo
importante porque, no entender de Morse, com ele que comea a se gestar a busca da
identidade brasileira e latino-americana, que continua at os dias atuais. Segundo ele, a
eleio do Modernismo enquanto marco de um tipo de busca por nossa identidade reala a
17A partir daqui, chamaremos somente de The Multiverse.
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singular e original interao que ento foi estabelecida entre a literatura, a cultura e ahistria da regio, distinta da que ocorria na Europa e nos Estados Unidos.
A questo da identidade tratada por Morse como uma construo humana e
universal, ao mesmo tempo emocional e racional, que assumiu caractersticas especiais com
a constituio dos Estados modernos. Na Europa, a busca por identidade comeou no
sculo XVI, mas, at o fim do XIX, pases como a Alemanha, Rssia e Itlia ainda estavam
se debatendo para construir as suas prprias. Fora da Europa, um caso interessante naquele
momento foi o Japo. Levando-se em conta que o principal significado de identidade
relaciona-se com sociedades nacionais, na Amrica Latina possvel encontrar referncias
tambm a agregados de sociedades nacionais (Amrica Latina), bem como a sociedades ou
grupos subnacionais. importante tambm distinguir identidade de carter nacional:
(...) identidade muito mais uma conscincia coletiva de vocao histrica.
Realidade relaciona-se com o ambiente ao redor, identidade com reconhecimento tcito.
(MORSE 1995: 3).
Em outras palavras, identidade diz respeito a um tipo de conhecimento que
necessariamente envolve emoes e conscincia. Por isso, em outra obra que trata da
questo da identidade e dos modernismos, a irreverncia de Morse transparece no prprio
ttulo da obra: A volta de McLuhanama: cinco estudos solenes e uma brincadeira sria.
Trata-se de uma coletnea de artigos do prprio autor sobre assuntos diversos: uma
comparao entre modernistas brasileiros e norte-americanos, um estudo sobre as
linguagens do Novo Mundo, consideraes sobre a delicada profisso dos brasilianistas
(como ele mesmo) e, como captulo final, uma verso brasilianista de Macunama,
McLuhanama: Macunama na era da comunicao global! Apesar de o ttulo remeter ao
conhecidssimo Macunama e de Morse aprofundar alguns temas polmicos j contidos em
O espelho, a obra no desencadeou maiores reaes. Como afirma Beatriz Domingues no
seu artigoHistria e Literatura na busca pela identidade na Amrica Latina no sculo XX:
a viso de Richard Morse:
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Talvez o impacto da obra antecessora tenha sido grande o suficiente para queaqueles que se identificaram ou acharam interessantes suas teses continuassem a l-lo e para
que seus oponentes no lessem ou simplesmente no se manifestassem a respeito.
(DOMINGUES, 2011: 50).
Por conseguinte, vejamos os dois captulos do livro que tratam diretamente do
Modernismo brasileiro: Quatro poetas americanos: uma cama-de-gato e Apontamentos
para uma ideologia. No primeiro, Morse apresenta o Modernismo, incompreendido e at
mesmo chocante em sua prpria poca, como referncia bsica para a tomada deconscincia latino-americana em nosso sculo e, talvez de modo menos decisivo, tambm
para uma tomada de conscincia norte-americana. O Modernismo, segundo o brazilianista,
suspende as tendncias e vises comuns, privilegiando o olhar individual. No referido
artigo, Morse contrasta quatro escritores do perodo modernista: dois sulamericanos
(Oswald e Mrio de Andrade) com dois norteamericanos (respectivamente William Carlos
Williams e T. S. Eliott). No texto de 1950 ele havia comentado, de passagem, que somente
nos anos 1940 os brasileiros haviam tomado conscincia do trabalho de T. S. Elliot, e o
fizeram de uma forma completamente diferente dos norte-americanos. E, ento, tiveram sua
prpria deglutio do poeta, como na Antropofagia de Oswald. Neste artigo, Morse inverte
o espelho para analisar a assimilao da cultura da periferia pelo centro, no que se
refere especificamente contribuio do Modernismo brasileiro para a problemtica da
redescoberta do povo, e com ele de uma nova forma de abordar a realidade latino-
americana. Destarte, Morse admirava nos modernistas brasileiros e ibero-americanos o fato
de partirem da realidade de seus pases, ao invs de tentarem chegar at ela: da localizar
nos anos 20, nos anos do Modernismo, um momento de maior xito, se comparado ao
sculo XIX, no que diz respeito busca pelas chamadas realidade nacional e identidade
cultural.
Este papel privilegiado que o Modernismo latino-americano e brasileiro ocupam na
anlise de Morse deve-se ao fato dele acreditar que com os Modernismos que se inicia a
busca pela identidade latino-americana e, mais especificamente, pela identidade brasileira,
procura esta que persiste at os dias atuais. Alm disso, Morse acredita que o fato de o
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Modernismo ser eleito como marco para a busca de nossa identidade, reala tambm ainterao singular e original entre literatura, cultura e histria que se deu na latino-amrica,
distinguindo da interao que ocorria na Europa e nos Estados Unidos e demonstrando
assim, a riqueza cultural ibero-americana. O Modernismo , portanto, compreendido pelo
historiador como uma referncia para a tomada de conscincia latino-americana no sculo
XX.
Voltando ao ensaio The Multiverse, Morse faz uso das ideias defendidas pelo
pedagogo Alfred Whitehead para entender a questo da identidade atravs da produo
intelectual latino-americana dos anos de 1920 a 1970. Whitehead elaborou uma genealogia
do conhecimento humano que, segundo ele, gradual, de modo que seus estgios no esto
restritos e nem confinados a idades especificas e Morse far uso dos trs diferentes estgios
do crescimento mental definidos por Whitehead relacionando-os respectivamente com o
Modernismo, as novelas e a filosofia. Dentre os estgios elaborados pelo pedagogo, o
primeiro estgio caracterizado como o do romance, onde se tem uma primeira apreenso
do tema ainda com o vio da novidade, onde as possibilidades ainda esto apenas
parcialmente reveladas, as ideias ainda vagas e a assimilao de fatos opera-se por meio dasemoes. Esse estgio inicial, para Morse, associa-se ao Modernismo. J o segundo estgio
seria o da preciso, onde o pensamento substitui a multido de ideias desconexas por
formulaes caracterizadas pela exatido. Esse estgio, para Morse, equipara-se as novelas
e ensaios latino-americanos. O terceiro estgio definido pela generalizao e
identificado, por Morse, como os trabalhos filosficos latino-americanos dos anos de 1940
e 1950. A tese defendida pelo historiador a de que os modernistas modelaram a
sensibilidade dos anos 20, que viria depois a tomar contornos mais definidos com os
ensastas e novelistas em 1930. Assim, para ele, as ideias sobre as identidades brasileira e
latino-americana foram gestadas durante o modernismo em 1920, adquiriram uma maior
preciso com os ensastas e novelistas em 1930 e uma maior generalizao com os filsofos
dos anos de 1940 e 1950.
O historiador, em seus textos, afirma a importncia da Semana de Arte Modernade
So Paulo de 1922, defendendo, assim como os prprios modernistas diziam, que o
objetivo da Semana no era mistificar a burguesia com as ltimas novidades europeias, e
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sim utiliz-las como explosivos para desmistificar os pilares de um sistema de classes.Alm disso, defende que o Modernismo brasileiro teria sido ao mesmo tempo um projeto
esttico e ideolgico, com a predominncia do primeiro nos anos iniciais e do segundo nos
anos de 1930 e 1940. Assim, o Modernismo seria um projeto esttico porque buscava
romper com a linguagem tradicional e ideolgica na medida em que procurava uma forma
de expresso autenticamente brasileira. Ainda, Morse acreditava que a esttica modernista
era capaz de reconhecer aquilo que havia de nutritivo tanto na cultura europeia quanto nas
sociedades perifricas. Consequentemente, os modernistas brasileiros absorviam e
conciliavam de modo complexo os elementos europeus com aqueles prprios da tradio do
pas, de forma que promoviam uma fuso entre o primitivo e o moderno. E era essa mistura
de elementos, segundo o autor, que fez das solues brasileiras nicas e singulares.
Por ltimo, podemos ainda ressaltar que para Morse, o fato de a Anglo-Amrica
estar experimentando um perodo de desmoronamento e crise, poderia ser uma situao
propcia para um projeto ideolgico ambicioso para o mundo Ibero-americano (alm da
tentativa de uma outra forma de abordagem para a regio). Segundo ele, as teorias de
Locke, adotadas na anglo-amrica no se encaixavam nossa realidade latino-americana,uma vez que essa no sintonizava-se com as teorias polticas do individualismo e do
contratualismo. Assim, enquanto o modelo de Locke e demais tericos do liberalismo
encaixaram-se na Amrica do Norte, na Ibero-amrica tais modelos no encontraram real
compatibilidade por no condizerem com nossa cultura sul-americana caracterizada pela
diversidade e pela heterogeneidade. Dessa forma, a antropofagia parecia-lhe uma resposta
mais apropriada uma vez que mais flexvel e ecltica, sendo assim mais preparada para
lidar com a realidade latino-americana e, claro, brasileira.
Concluindo, uma ltima comparao: Morse se aproxima a Oswald tambm em
relao forma como enxergavam o tempo histrico. A antropofagia defendida por Oswald
opunha-se a uma noo de progresso e evoluo a favor da intensidade do devir, opunha-se
tambm a ideia hegeliana de que tudo que racional real e promessa de um mundo
hierarquizado e autoritrio. No lugar disso, o escritor propunha uma revalorizao do
homem natural contra o homem histrico, civilizado e cartesiano. A antropofagia propunha
uma nova forma de interpretar o movimento da Histria, no como algo progressivo, mas
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como algo que atravessa o fluxo evolutivo e retorna ao princpio (matriarcado dePindorama, na tese do autor), o que possibilitaria a tomada de inmeras direes e no
apenas um caminho nico rumo ao objetivo da evoluo. Morse tambm era um crtico
ferrenho das noes de progresso e evoluo na histria e procurava interpretar o passado
enxergando aquilo que havia de afirmativo e no o que lhe falta para evoluir. O historiador
defendia uma viso da histria como fora proposta por Huizinga, sugerindo entender os
momentos histricos como possudores de inmeros desdobramentos. Com isso, Morse
defendia a viso da histria no como evoluo e sim como aventura, na qual se supe
inmeras opes.
Parece-me que um aspecto que atrai Morse em todos os modernistas (...) foi o
interesse, em algum momento de suas vidas, seno durante todas elas, pelo que humano e
transcende o curto prazo. (DOMINGUES, 2011: 67).
Concluso: Compreender para aprimorar
No presente artigo, defendemos que, mais do que apenas admirao por Oswald e
Srgio, Morse apresentava ideias e perspectivas muito semelhantes quelas defendidas
pelos brasileiros, de modo que possvel traarmos uma comparao entre esses trs
importantes intelectuais e suas obras. Assim como defende Beatriz Domingues em seu j
citado artigo Prspero devorando Caliban: Richard Morse e o Modernismo brasileiro,
acreditamos que mesmo sem ter citado Oswald e Srgio em seu livro O Espelho de
Prspero, assim como em outras obras, Morse compartilha de muitas ideais e teses
defendidas por estes pensadores da cultura brasileira.
Desse modo, podemos terminar este artigo com a certeza da existncia de muitas
afinidades na forma como os trs encaravam seus objetos de estudo, em especial a Ibero-
amrica e a sociedade brasileira. Morse identificava-se com a ironia, os trocadilhos e o
jeito brincalho do escritor modernista, alm de frequentar a casa e ser amigo de Srgio,
mas os pontos em comum deles no concentram-se apenas nisso, os trs partilhavam de
uma viso, apesar dos pesares, positiva a respeito de nossa cultura ibero-americana, e por
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meio de seus legados nos levam a compartilhar uma mesma perspectiva otimista,mostrando-nos os pontos fortes e nicos de nossa cultura da qual tanto devemos nos
orgulhar. E no se limitando a isso, visto que tentar compreender nosso pas o primeiro e
mais importante passo para aprimor-lo.
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