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FORMAÇÃO DE PROFESSORES E DESMEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: EM FOCO APRODUÇÃO TEXTUAL DE CRIANÇAS ROTULADAS COM DIFICULDADES DE
APRENDIZAGEM POR PROFESSORES ALFABETIZADORES
Claudia Regina Mosca GIROTO; Lara Tainah Santos FELISBERTOUNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC)/Campus de Marília/SP e Faculdade de
Ciências e Letras (FCLAr)/Campus de Araraquara/SP.
EIXO 3 - Formação do professor [email protected]
Introdução
Com base nos resultados decorrentes de pesquisas anteriormente realizadas
acerca da despatologização da aprendizagem da escrita no contexto educacional inclusivo;
do fato de que o professor habitualmente apresenta expectativas de que as dificuldades de
aprendizagem deverão ser solucionadas por profissionais da saúde (MOYSÉS, 2001;
BERBERIAN, 2003); dos pressupostos de que o professor se encontra submetido à ideia de
que tem dificuldade para lidar com as dificuldades de aprendizagem de seus alunos
(GIROTO, 2006; GIROTO; CASTRO, 2011); a discussão acerca das dificuldades de
aprendizagem, no que tange à compreensão de professores alfabetizadores sobre essa
temática e as implicações de tal compreensão para sua prática pedagógica assume
relevância. Entretanto, é fato que, independentemente da presença de comprometimentos
orgânicos, qualquer aluno pode manifestar dificuldades com um ou mais conteúdos ao longo
de seu processo de escolarização que, necessariamente, não caracterizam sintomas de
patologias. Frente a essa situação, todo aluno precisa ter suas demandas educacionais
consideradas, sendo que o erro faz parte do processo de apropriação da escrita (ABAURRE,
2001; ABAURRE; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 2001; RUBINO, 2010).
O professor deve compreender a sua atuação com a escrita de modo mais
cuidadoso, sem estigmatizar seu aluno em processo de apropriação da escrita com a
atribuição de rótulos negativos ou mesmo ressaltando apenas causas individuais e
orgânicas, em detrimento da multiplicidade de fatores envolvidos na apropriação dessa
modalidade de linguagem. Pois corre o risco de corroborar para a transformação de
questões sociais em questões individuais e biológicas, o que resulta na biologização da
educação e no fracasso escolar, caracterizando a medicalização da educação (MOYSÉS,
2001) e, com isso, submeter o aluno a um processo de institucionalização invisível,
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caracterizado por Moysés (2001) como um processo em que a criança, embora presente na
sala de aula, não participa do processo de aprendizagem.
Sob a perspectiva da medicalização da educação "[...] ocorre o deslocamento,
na escola, da atenção coletiva direcionada ao processo da apropriação da linguagem escrita,
para o foco nos aspectos individuais e, consequentemente, no aluno, que passa a ser
considerado como principal responsável pelo não aprender (GIROTO; CASTRO, 2011, p.
443)
Sob a lógica dessa estigmatização decorre a idéia de que o sistema educacional
não se encontra preparado para solucionar as dificuldades de aprendizagem que passam,
então, a constituir a demanda clínica encaminhada para profissionais da saúde, reduzindo as
causas de tais dificuldades a aspectos individuais e orgânicos e desconsiderando a
multiplicidade de fatores que as ocasionam, conforme mencionado (GIROTO; BERBERIAN;
SANTANA, 2014). Entretanto, mesmo que a formação do professor, de forma geral,
necessite de maiores investimentos, não pode ser utilizada como única justificativa para o
deslocamento de questões educacionais para o contexto clínico.
A escola oculta sua função e seu papel de transformadora e humanizadora.
Dessa maneira, acaba “[...] falhando na sua tarefa pedagógica, a escola passa a apontar
cada vez mais uma série de “patologias” nas crianças” (SMOLKA, 2001, p.17), transferindo
assim, a sua responsabilidade pelo fracasso escolar, procurando diagnósticos e patologias e
como solução, medicalizando as questões pedagógicas e sociais. A alfabetização tem
implicações sociais, políticas e econômicas. É um “[...] instrumento e veículo de uma política
educacional que ultrapassa amplamente o âmbito meramente escolar e acadêmico”
(SMOLKA, 2001 p.16).
Durante a alfabetização, nota-se uma preocupação da criança com seu
desempenho escolar e vícios de escrita caracterizados pelos métodos a que foram
submetidas, que refletem, claramente, nas informações e modos de escrita que as crianças
revelam como inadequados e/ou ambíguos. Entretanto, é preciso promover e permitir à
criança sua interpretação, reveladora das relações com seu contexto social e sua maneira de
se apropriar da escrita (GIROTO; BERBERIAN; SANTANA, 2014).
O professor assume um papel de colaborador na aprendizagem do aluno,
auxiliando quando for preciso em suas tentativas individuais, mostrando-lhe o sentido e
ordem das letras e a convencionalidade que é preciso para escrever.
Na interlocução, em momentos de diversas situações que contenham o diálogo e
que apresentam à criança momentos significativos e providos de sentido, o professor
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interpreta e reconhece as hipóteses infantis, trabalhando, concomitantemente, os modos de
escrita convencionais. “[...] Nessa relação, o conhecimento se constrói” (SMOLKA, 2001,
p.43). Neste sentido, o papel central do professor é planejar sua atuação com base numa
avaliação consistente das condições em que o aluno se encontra, no que se refere à
apropriação da escrita, e não somente se ater aos resultados.
Com base nessas ideias, a presente pesquisa objetivou investigar práticas
patologizadoras adotadas por professores de segundos e terceiros anos do Ciclo I, de uma
escola pública do ensino fundamental, a partir da análise de produções escritas de alunos
que frequentam essas classes e são considerados por seus respectivos professores como
alunos com dificuldades de aprendizagem
Percurso Metodológico
Após ter sido realizado contato com a Secretaria Municipal de Educação (SME), para
obtenção de autorização para a realização da pesquisa, foi possível o acesso a uma lista
com os nomes das escolas municipais de educação, com vistas à seleção de uma escola e
respectivos professores para a realização de tal pesquisa. Para tal, foi considerado como
critério a indicação, por parte da SME, da escola que continha em seu quadro de matrículas,
o maior número de crianças consideradas, por seus professores, como sendo aquelas que
apresentavam dificuldades de aprendizagem nas séries iniciais do Ciclo I do Ensino
Fundamental, conforme apontamentos obtidos por tal secretaria.
Uma vez realizada a seleção da escola em questão, foi efetuado o contato com a
direção, para apresentação do objetivo da pesquisa, e com os professores das classes de 2º
anos, que concordaram com a participação voluntária na pesquisa, por meio de assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após a obtenção do aceite voluntário, a
pesquisa tramitou no Comitê de Ética da Faculdade de Filosofia e Ciências/UNESP/Campus
de Marília, tendo sido autorizada sob o Processo nº 0371/2011.
Para a coleta de dados foram considerados os textos produzidos pelos alunos
matriculados nas classes de 2º ano identificados, por seus professores, como sendo
aqueles que apresentavam dificuldades de aprendizagem. Dessa forma, de um total de 02
classes de 2º ano, os dois professores responsáveis por essas salas selecionaram 30 textos,
sendo 20 textos produzidos por alunos de uma das salas e 10 elaborados pelos alunos da
outra sala. Cabe ressaltar que foram considerados para a coleta e análise dos dados um
texto por aluno.
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Com vistas à exemplificação da análise descritiva realizada foram aqui considerados
dois textos (Textos 1 e 2), selecionados como os materiais que mais apresentaram
ocorrências consideradas por esses dois professores como sintomas de dificuldades de
aprendizagem com conotação patológica. A análise proposta, subsidiada pela abordagem
qualitativa, priorizou critérios linguísticos e a natureza descritiva dos dados observados, a
partir da apresentação dos textos obtidos e uma breve análise dos mesmos.
Resultados e discussão
A seguir são apresentados os textos considerados na análise, com vistas a explicitar
a natureza linguística das ocorrências presentes nesses textos e compreendidas pelos
professores que os selecionaram como sintomas patológicos de quadros de dificuldades de
aprendizagem.
Texto 1
Esta produção textual foi realizada em uma sala de 2º ano, em que o enunciado
solicitava para que o autor continuasse a narrativa em que a “cigarra” deve apresentar uma
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solução para não morrer de fome. Cabe ressaltar que as expressões destacadas na análise
descritiva referem-se às que os professores consideraram erros com conotação patológica.
No decorrer do texto o autor posiciona-se fortemente como escritor, todavia a
intensidade diminui quanto à posição de leitor. Apoia-se bastante na linguagem oral inibindo
a clareza e a característica da linguagem escrita. Porém, é notório que algumas vezes o
autor volta ao texto preocupando-se com a grafia e revisando o que escreveu, ao inserir
aspectos coesivos. É possível observar as letras apertadas entre as outras na composição
dos vocábulos; assim como as marcas de apagamento na escrita e refacção e o uso de
elementos coesivos como “depois” e “e”.
São inúmeros os exemplos de hipossegmentação, possivelmente por se apoiar
excessivamente na oralidade. Logo no título, as expressões “arapoza” (a raposa) e “asigara”
(a cigarra) são escritas com hipossegmentação, tais como: “arapozafau” (a raposa falou) e
“vivianasuatoca” (vivia na sua toca). Há situações nas quais se observa tambem a
hipersegmentação, que pode ter ocorrido em razão de reconhecimento de expressões que já
observou grafadas separadamente como “na” e “ de”. Assim como há a possibilidade de ter
se apoiado em situações de fala segmentada do professor (silabada), a exemplo de: “pe dir
quo mi da” (pedir comida). Tambem foram observadas ocorrências comumente interpretadas
como erros ortográficos, os quais incluem a grafia de “s”, porém com finalidades diferentes.
No caso da expressão “arapoza” o “s” é substituído pelo “z”; já em “asigara” o “s” substituiu
o “c”. Nessa expressão o autor omite a letra “r”, como se um só fosse o suficiente em
transmitir o som de “rr” no meio da palavra. Essas ocorrências que divergem da norma culta,
interpretadas pelos professores com conotação patológica, tambem podem ser justificadas
possivelmente por ainda não ter apreendido os contextos de uso nas situações em que
diferentes letras representam um mesmo som.
O autor tem familiaridade com o traço de nasalidade, mas ainda oscila na seleção dos
grafemas que a representa, nos diferentes contextos de uso, a exemplo do uso do "m" antes
de “p” e “b” e a utilização de "n" antes das demais consoantes. Exemplo dessa oscilação
pode ser verificado na grafia da expressão “çan cem do” (dançando), bem como na
supressão do traço de nasalidade, no vocábulo “tabalado” (trabalhando). Há também a
ausência de sílaba complexa, pois quando escreve “trabalhando” escreve sem o “tr” e “lh”, o
que pode indicar a instabilidade na apropriação dos conceitos de posição e quantidade de
elementos na sílaba.
Talvez na tentativa de representar o som da palavra que ouviu, durante a leitura em
conjunto realizada pela professora, mas ainda demonstrando a instabilidade quanto à
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compreensão acerca dos diferentes contextos de uso, a expressão “cigarra” encontra-se
grafada corretamente na primeira parte do enunciado do texto e de outras maneiras no
decorrer do material. Cabe ressaltar que não significa que esta criança não se preocupa em
escrever bem, ou que apresente algum problema de natureza biológica. Massi (2007, p.145)
pontua que
A avaliação da escrita, pautada em modelos preestabelecidos, nãonos leva a compreender os fatores que determinam os “erros” comohipóteses, muitas vezes episódicas e indiossincráticas, as quaisconduzem o aprendiz a uma opção de escrita e não outra. Ignorandoas relações particulares e únicas que cada sujeito estabelece com aescrita, em seus aspectos gráficos e textuais, procedimentosavaliativos acabam por apontar inadvertidamente para falsos rótulos.
Seria precipitado, neste momento da apropriação dessa modalidade de linguagem,
encarregar outros profissionais que não seja o próprio professor para resolver as
peculiaridades processuais da escrita. São erros próprios, previstos, inerentes ao processo
de apropriação da escrita, os quais precisam ser compreendidos e esclarecidos aos alunos,
num processo de mediação e colaboração, pelos seus respectivos professores
Texto 2
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O T2 segue a mesma proposta do primeiro. É possível identificar que o autor ainda
apresenta instabilidades no que se refere à representação gráfica de situações de ocorrência
das denominadas sílabas complexas, ou seja, que não se restringem ao modelo canônico de
sílaba: consoante e vogal, mas que exigem a compreensão de noções, por exemplo, acerca
de quantidade e de posição de elementos na sílaba, conforme pode ser observado na grafia
da expressão “tigele” (tigre). Possivelmente, nessa situação específica, reconheça a
presença de um elemento estranho ao modelo canônico de sílaba, revelando a noção de
quantidade de elementos nesse contexto, mas demonstra estranhamento acerca do
posicionamento desses elementos, bem como faz opção por representar o "r" pelo "l", que,
de certa forma, pode ser compreendida como uma substituição previsível, considerando a
frequência de ocorrência na língua de vocábulos compostos por sílabas complexas que
empregam esses dois grafemas. Semelhantemente, essa instabilidade tambem é observada
no que se refere à compreensão acerca da representação das pausas na escrita. Esses
"espaços em branco", não preenchidos por letras, ainda parecem provocar dúvidas para
esse autor, a exemplo da representação das expressões “apqonapsoa” (vá procurar outra
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pessoa), assim como “agninhacomidabvorduovnão” (a joaninha não deu comida e disse vá
procurar outra pessoa). Esse tipo de escrita é forte característica do apoio na oralidade que o
autor ainda utiliza em seu texto.
É possível identificar que o autor baseia-se na letra que para ele recebe maior
destaque dentro de uma sílaba, seja ela vogal ou consoante, como quando escreve
“flomidumpoqumida” (falou me dá um pouco de comida). Percebe-se que em “flo” (falou) a
letra “f” basta para representar a sílaba “fa”, assim como o “d” para a palavra “dá”. Há uma
troca do “c” pelo “q” em várias palavras “maqmo” (macaco) e em “qumida” (comida), simples
confusão do som que ambas apresentam. Os traços de nasalidade são reconhecidos e
registrados muito bem como o “nh” e a escrita da palavra “Não”, presentes na
hipossegmentação “agninhacomidabvorduovnão”. Há falta de coesão na continuação, o
autor não se preocupa com o leitor; escreve de maneira objetiva. Os erros comentados
acima corroboram, mais uma vez, as características de que o autor ainda se apoia
fortemente na oralidade.
Portanto, não é de natureza lógica, subsidiada pelas ideias apresentadas, classificar a
dificuldade de aprendizagem como falta de comprometimento do próprio aluno durante tal
processo.
[...] uma análise equivocada do processo de apropriação do objeto
escrito [...] acabam por autorizar que a noção do “erro”, tomado
equivocadamente como manifestação patológica, continue circulando
nos espaços escolares na medida em que a homogenização e a
normalização desse processo permanecem intocáveis. (MASSI, 2007,
p. 146).
Tais práticas denunciam a falta de instrumentalização para lidar com as dificuldades
referentes ao processo de apropriação da escrita e a precarização na formação docente de
professores que se ocupam da alfabetização nas séries iniciais, que demonstram não
conhecer adequadamente a língua materna. Em geral, tal desconhecimento e formação
precarizada tende a ser minimizada, na medida em que ocorre a culpabilização das
características individuais de cada aluno, ao se ignorar a multiplicidade de fatores implicados
na constituição do sujeito/autor em práticas sociais mediadas pela linguagem escrita.
Considerações finais
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Em sua função social, a escrita cria possibilidades de interação e ampliação de
conhecimento. Através das relações instauradas em ala de aula, o conhecimento é
construído e vivenciado por todos, sendo construído de maneira idiossincrática, ainda que as
situações dialógicas se deem coletivamente. Infelizmente, em muitas situações, os
professores têm compreendido a escrita como representação da oralidade, sendo a função
e uso social dessa modalidade de linguagem reduzidos a instrumento e ao código,
propriamente dito. Assim como as posições evidenciadas pelos professores, implícitas nos
textos selecionados e produzidos por alunos por elas identificados como sendo aqueles que
têm dificuldades de aprendizagem, com conotação patológica, corroboram para a
continuidade de um processo de medicalização da educação, na medida que se busca
recorrer a profissionais da saúde para a solução de aspectos educacionais, da competência
da escola e do professor. Aspectos com os quais os profissionais da saúde, em geral, não
têm formação para lidar apropriadamente, perpetuando o deslocamento de questões
educacionais para o âmbito clínico.
Frente aos aspectos destacados e, embora a formação precarizada não justifique,
por si só, tais aspectos, são necessários investimentos na formação inicial e continuada de
professores, tanto no que se refere à instrumentalização para o processo de alfabetização,
quanto no que diz respeito à compreensão da multiplicidade de fatores envolvidos na
apropriação da escrita.
Conclui-se, portanto, que se faz necessário maior investimento na formação inicial e
continuada de professores, a respeito da linguagem escrita e da necessidade de
instrumentalização de natureza linguística apropriada para lidar com dificuldades
características do processo de apropriação da escrita, com vistas a evitar a medicalização de
aspectos desse processo que representam idiossincrasias da relação que os alunos
estabelecem com essa modalidade de linguagem.
Referências
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