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FORA DO MUNDO

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Fora do Mundo - Textos da Blogosfera de Pedro Mexia

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Page 1: Fora do Mundo

FORA DO MUNDO

Page 2: Fora do Mundo

Título: Fora do Mundo

© Pedro Mexia eEdições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004

Capa: Silva! designers

ISBN 972-795-096-5

Page 3: Fora do Mundo

Pedro Mexia

Fora do Mundotextos da blogosfera

Cotovia

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1. Fora do Mundo reúne textos publicados on-lineem dois blogues.

O primeiro blogue, A Coluna Infame, durou entreSetembro de 2002 e Junho de 2003, e foi escrito em par-ceria com João Pereira Coutinho e Pedro Lomba. Essen-cialmente dedicado a temas políticos, esteve no centro daexplosão da blogosfera, sobretudo entendida como espa-ço público de debate. O título foi aproveitado de umanarrativa de Alessandro Manzoni.

O segundo blogue, Dicionário do Diabo, era indivi-dual, e existiu entre Junho de 2003 e Abril de 2004. Po-litizado no início, foi assumindo progressivamente umregisto mais pessoal e diarístico. A inspiração para onome veio, naturalmente, do sardónico The Devil’s Dic-tionary, de Ambrose Bierce.

Escrevo agora num novo blogue colectivo, Fora doMundo, lado a lado com Francisco José Viegas e PedroLomba. Para esta antologia de textos os meus dois com-panheiros cederam-me o adequadíssimo nome da pági-na. Porque os blogues estão, de certo modo, “fora domundo”, ou abrem um mundo novo. Admirável ou não.

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2. A selecção destes textos nem sempre se mostrousimples, porque os chamados “posts” não foram pensadospara publicação “tradicional”, aparecendo ao sabor deeventos e humores, numa escrita rápida e geralmente re-ferencial que nem sempre passa bem para o papel. Emtodo o caso, para que o conjunto funcionasse, segui ten-dencialmente cinco critérios.

O primeiro critério assentou na quase exclusão detextos políticos. Ausência notória na medida em que osdois blogues nos quais escrevi dedicaram à política gran-de atenção. Entendo porém que os textos políticos emsentido estrito têm menos interesse e são mais datados.Poucos me parecem dignos de republicação. Que nestaexclusão não vai nenhum embaraço face às ideias defen-didas pode ver-se nos textos que, a propósito doutrostemas, incluem considerações políticas.

O segundo critério consistiu em deixar de fora quasetodos os textos de “metabloguismo”, isto é, os que discu-tiam a técnica e a ética dos blogues. Foi curioso escrevernum suporte ainda pouco consolidado, no qual se esta-beleciam “regras” e “consensos” à medida das dúvidas decada momento. Mas, com duas ou três excepções, essestextos parecem-me redundantes e aborrecidos.

O terceiro critério tem a ver com o facto de um livronão possuir a interactividade permitida pelos links;assim, suprimi quase todas as referências a outros blo-gues, e nos casos em que um texto implica a leitura deoutros textos fiz pequenas alterações de modo a que otema em discussão fosse perceptível.

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O quarto critério segue as mesmas razões: elimineios mails que foram publicados e as respectivas respostas,salvo nos casos em que a resposta mais claramente se au-tonomizava dessas cartas de leitores.

O quinto critério foi o de deixar cair várias polémi-cas (soft ou hard), que me surgem agora como o menosinteressante que a blogosfera produziu, pelo menos noque diz respeito à sua releitura meses ou anos mais tarde.

Além das modificações que decorrem destes critéri-os, houve outras tantas, mais esparsas. Alterei algunsplurais, usados com frequência no blogue colectivo masque aqui não fariam sentido. Reescrevi certos posts, es-pecialmente por razões de clareza ou actualidade. E nãorecupero a data de cada post, porque não é essencial, em-bora tenha mantido a ordenação dos textos, na falta deoutra mais apropriada. As referências mais quotidianas(“ontem”, “esta tarde”) não foram rasuradas, para nãodesvirtuar a faceta imediatista da escrita bloguística. Porsugestão editorial, os abundantíssimos estrangeirismosaparecem grafados em redondo, para que o texto não fi-casse sobrecarregado. Assim, o itálico é apenas usadopara títulos e ênfases.

O produto final corresponde a aproximadamenteum terço do volume de texto produzido entre Setembrode 2002 e Abril de 2004.

3. Os blogues, como a net, são uma rede. Muitosdestes textos têm origem nessa rede: numa pergunta,num envio, numa picardia, numa homenagem. Este ano

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e meio foi sendo alimentado do diálogo público ou pri-vado com conhecidos e desconhecidos. Na blogosfera,gostava de agradecer, entre outros, a Alberto Gonçalves,Bruno Sena Martins, Carla Hilário Quevedo, DanielOliveira, Francisco José Viegas, Francisco Mendes daSilva, Helena Ayala Botto, Ivan Nunes, João PereiraCoutinho, Joel Neto, José Diogo Quintela, José MárioSilva, José Pacheco Pereira, Manuel Jorge Marmelo,Maria José Oliveira, Miguel Esteves Cardoso, NunoCosta Santos, Nuno Amaral Jerónimo, Paulo Querido,Pedro Adão e Silva, Ricardo de Araújo Pereira, RicardoGross, Tiago Cavaco. E, sobretudo, a Pedro Lomba.Agradeço também a todos os que visitaram um dos blo-gues ou ambos e escreveram centenas e centenas demails.

Fora da blogosfera, agradeço a atenção de AlexandraLucas Coelho, Eduardo Cintra Torres, Eurico de Barros,Isabel Coutinho, José Manuel Fernandes, Luís MiguelOliveira. E, pelo incentivo, a Abel Barros Baptista eLuísa Costa Gomes. Agradeço também a João MiguelTavares, Maria de Lurdes Vale e Nuno Artur Silva.

Finalmente, um agradecimento especial ao editorAndré Jorge que me propôs a edição destes textos emlivro, tornando inesperadamente um pouco menos inú-teis os meses que passei agarrado a um computador,noite dentro.

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WHITMORE: The doctor seems reluc-tant to discuss his medical experiences.

GROUCHO: Well, medically, my expe-riences have been most unexciting,except during the flu epidemic.

WHITMORE: Ah, and what happened?

GROUCHO: I got the flu.

A Day at the Races, 1937

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A COLUNA INFAMESetembro 2002-Junho 2003

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A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR: Aconteceu: sexta-feira, aRTP exibiu o filme Branca de Neve, de João César Mon-teiro. Foi um acto corajoso, não só porque desafiou umadas regras da televisão e do cinema — a constância deimagens — como porque deu a ver (e não uso a palavraironicamente) um dos filmes mais vilipendiados portodos os filisteus que nos rodeiam. Trata-se, assumida-mente, de uma experiência radical, aliás não inédita(pense-se em Derek Jarman, com o seu Blue); mas umaexperiência que não é de modo nenhum gratuita ouofensiva, como julgam os que vêem o cinema ao nível dapipoca. O texto, do malogrado Robert Walser, é belíssi-mo, uma espécie de conto cínico sobre um mito funda-dor, e em última análise sobre a trajectória dos afectos ea sua negociação e perversão. E as imagens são as ne-cessárias, suficientemente fortes para assombrar todo ofilme (as nuvens, o corpo morto de Walser caído naneve). Quem acompanhou o ciclo que a RTP 2 passou,pôde comprovar como JCM tem filmes bem menos in-teressantes (O Último Mergulho, Le Bassin de J.W.),mas que, claro, têm imagem, e por isso não geraram amesma histeria de imbecis. Hoje sabemos, de fonte

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oficial, como o dinheiro excessivo atribuído ao projectoinicial de Branca de Neve (com imagem) face ao produtofinal tem sido reembolsado, de modo que o alarme detodos os que vêem sempre na cultura dinheiro mal gastopode cessar de uma vez por todas. JCM é o mais bri-lhante dos nossos cineastas, mesmo nesse filme, austeroe rigoroso, que sendo um caso limite, não é de todo umproduto inane. Vejam-no com olhos de ver, e se obser-varem apenas um ecrã negro (cinzento), façam como oscegos: usem os sentidos todos. Porque o cinema é umaarte total.

IMRE KERTÈSZ: Dois prémios Nobel com critérios lite-rários em dois anos seguidos: será que ainda há espe-rança para a Academia Sueca?

TUDO ISTO É TRISTE, TUDO ISTO É FADO: Não deixa deser curioso esse diagnóstico que corre de boca em boca,segundo o qual estamos “tristes”. Claro que a “tristeza”é para uns o Governo, para outros a “pesada herança”,e para outros ainda a famigerada “crise”. Mas a verdadeé que a “tristeza” não vem de agora. Salvo momentosprecipitados, inconscientes, exagerados e pacóvios deeuforia, há muito que somos um povo triste. Portugalé uma nação (por enquanto) sem um desígnio, um pro-pósito, uma ideia, uma vontade de excelência, ou deum vivre sa vie que fosse. “Vamos indo”, na magníficaexpressão comum, às vezes “bons alunos”, outras ve-zes “na cauda”, mas numa gestão corriqueira e sem

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significado enquanto destino colectivo. Na época deEça já era assim, e conhecemos os literários queixumesdessa geração, mas em Camões já essa tristeza é “apa-gada e vil”. A verdade é que “o esplendor de Portugal”durou um século, nem isso, e depois temos sempresido um cinema de reprise, a fazer, em ordinário, o queo “lá fora” já experimentou. Claro que não devemosesperar um D. Sebastião — conhecemos bem a fatalgenealogia — mas vale a pena pensar se a nossa triste-za não se compra a troco de centros comerciais e fériasnos trópicos, de tv por cabo e futebol. Se, no fundo,não acabámos como país, e qualquer “absorção” numprojecto europeu (que será sempre, a longo prazo, umlogro) não constitui um destino inevitável e que acei-taremos de bom grado. Porque quem está entretidonão está triste. Embora talvez esteja alienado, comodizia um autor alemão cujo nome não me acode.

FREE WINONA: É evidente que todo o processo WinonaRyder foi um truque da loja e da acusação. E mesmo quea moça tenha realmente surripiado umas roupitas, nãopoderá pagar o que deve e ser deixada em paz? Bem bas-tam as escolhas infelizes de filmes, ou os insucessos amo-rosos. Concentrem-se nos criminosos e deixem a Wino-na. Combinado? E já agora: viram o guarda-roupaescuro ao longo das sessões, o cabelo apanhado, os olhostristes mas vivos? A lei é importante, mas não mais doque a beleza.

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POUPEM NAS ESTRELAS: Porque será que filmes media-nos (como Blood Work, do meu aliás muito estimadoClint) ou com evidentes debilidades (como Signs, jácomparado a Hitchcock) recebem cinco estrelas doscríticos? Então quantas estrelas teríamos de dar a RioBravo ou Sétimo Selo? Um pouco de avareza astral, p.f.

OK, OK: Sou um irrecuperável anglófilo e americanófi-lo, mas o que dizer de vinte por cento dos americanosque não acreditam que chegámos à Lua ou de umamaioria de ingleses que elegeram Diana uma das mai-ores figuras da História pátria? Bem, ser pela demo-cracia não equivale a achar que o povo tem semprerazão. A soberania popular não implica a sensatez po-pular. E as massas, mesmo nos países de que gosto, sãoas massas.

MISÉRIA POP: Os vencedores dos prémios MTV Euro-pe de ontem mostram bem o estado miserável da mú-sica pop “mainstream” nos dias que correm: Eminem,Jennifer Lopez, Linkin Park. Ou mesmo — por maisque tenha as nossas simpatias estéticas — Kylie Mino-gue. Bandas decentes, apenas os Red Hot Chili Pep-pers (para quem gosta do género) e os cada vez maispobrezinhos Coldplay, esses Radiohead-para-gente--saudável-e-imatura. E assim se perpetua alegremente oestereótipo da música popular como pastilha elástica,uma das mais vis injustiças culturais. O triunfo da me-diocridade dá razão aos sectores mais reaccionários —

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representados, por exemplo, pela excelente New Cri-terion — que declaram a total inanidade da culturapop. E é pena que seja a cultura pop que lhes dê razão.

THE HORROR: Morreu Myra Hindley. Talvez o nomenão diga muito a quem não vive em Inglaterra, masHindley foi uma das personagens mais tristemente cé-lebres (e odiadas) da segunda metade do século passa-do. Acusada, com o seu companheiro e mentor IanBrady, do rapto, abuso sexual, tortura e homicídio decinco crianças e adolescentes, foi com ele condenada àmorte em 1966, tendo ambos acabado por beneficiarda extinção da pena de morte, que entrou em vigornesse ano. Brady está ainda preso, Hindley viu o fimdos seus dias na cadeia, aos 60 anos, e depois de pas-sar trinta e seis encarcerada. Em Inglaterra, ninguémse esqueceu. E não apenas dos crimes: também da fa-mosa fotografia de Myra com um perturbador olhar deMedusa, da frieza na expressão quando soube a sen-tença e, sobretudo, da terrível e sádica gravação da tor-tura de uma das crianças. Nessa época, este tipo de cri-mes ainda não estava diariamente nas páginas dosjornais, como hoje. Hindley e Brady representaram, na“sonhadora” década de 60, uma violenta irrupção doMal, na sua faceta mais tenebrosa. Ao que parece,Myra ter-se-á arrependido, e há alguns anos que se dis-cutia a sua libertação. Não nos cabe avaliar. Parecetambém que se reconverteu ao catolicismo da sua in-fância e se tornou uma pessoa diferente. Também não

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é a nós que compete esse juízo. Mas esta morte, vinda namesma altura em que se sabe que o cérebro de UlrikeMeinhof, a terrorista alemã, foi secretamente extraídopara que se estudasse a origem do Mal, pode servirpara nos recordar de que o Mal não será encontradona ponta do bisturi, nem se reduzirá nunca a “causassociais” marxistas, “patologias” positivistas, ou qual-quer dessas pseudo-ciências; o Mal é parte integranteda natureza humana, e felizmente que a maioria de nósconsegue viver uma existência inteira sem ultrapassar a gravidade de pequenas transgressões, delitos meno-res, males reparáveis. Ao lado disso há, sempre houve,aquilo a que Conrad, em Heart of Darkness, chama “thehorror”. O horror é o lado obscuro da alma humana, ir-redutível a qualquer análise sociológica. Moralmente,somos imperfeitos, e por vezes mesmo abomináveis,como os eventos do século passado amplamente docu-mentam. Podemos discutir o que fazer, do ponto devista jurídico, médico, educativo. Mas conviveremossempre com o Mal. Uma temerária viagem pela inter-net confirma os piores diagnósticos. O que temos é deprocurar outras forças que equilibrem a existênciapara o seu lado luminoso, ou ao menos inofensivo,sejam essas forças racionais ou irracionais. Paz à almade Myra (e de Ulrike), como é óbvio. Mas não nos es-queçamos delas. Muitas outras criaturas assim existem,mesmo que guardem para si as suas negras fantasias.Cruzamo-nos, certamente, nas ruas.

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