folheto caminhos cruzados unicamp yonne 2016 - objetivo · e geraldo del rey. noite (brasil, 1985)....

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    1. BIOGRAFIA

    1905 – Érico Lopes Veríssimo nasceu em Cruz Alta, noRio Grande do Sul, em 17 de dezembro.

    1912 – Iniciou seus estudos, estudando ao mes mo tempono Colégio Elementar Venâncio Aires e na AulaMista Particular.

    – Frequenta o cinema Biógrafo Ideal.

    1918 – Já havia lido autores como Aluísio Azevedo eJoaquim Manuel de Macedo. Com o surto de gripeespanhola que assolava então o mundo, entra emrecesso escolar, o que lhe permite dedi car-se àleitura de estrangeiros como Walter Scott, Tolstoi,Dostoiévski, Émile Zola e Eça de Queirós.

    1920 – Muda-se para Porto Alegre com o objetivo deestu dar no internato Colégio Cruzeiro do Sul.Des ta ca-se em literatura, inglês, francês eestudos bíblicos.

    1922 – Com a separação de seus pais, sua carreira esco laré interrompida, pois ele, mãe e ir mãos pas sam amorar na casa da avó mater na, em Cruz Alta. Paraajudar nas despesas, trabalha como balco nista nafarmácia de um tio. Pouco depois, torna-sefuncionário do Ban co Nacional do Comércio.Ainda assim, mesmo mergulhado em um uni versoprag mático, não abandona a literatura: lê Euclidesda Cunha, traduz autores franceses e in gleses ecomeça às ocultas seus primeiros escri tos.

    1923 – Já lera Monteiro Lobato, Mário de Andrade eOswald de Andrade. Entrega-se também a estran -geiros como Nietzsche e Ibsen.

    1924 – Volta a Porto Alegre para que consiga trabalhar naMatriz do Banco Nacional do Comércio e para queseu irmão faça o ginásio (atual fundamental II) noColégio Cruzeiro do Sul. No entanto, os planos demelho ra de vida não deram certo. Érico Veríssimoficou seria mente doente, o que o fez perder oempre go. Mesmo conseguindo outra colo ca ção emuma segu ra dora, sofre incompatibi lidade com seus

    superiores. Além disso, não suporta viver com a fa -mília em um pequeno quarto de uma casa de cô -modos. Tantos insuces sos o fazem voltar para CruzAlta.

    1925 – Retorna ao quadro de funcionários do BancoNacional do Comércio, dessa vez como chefe daCarteira de Descontos.

    – Passa a apreciar música erudita, graças à convi -vência com seus tios Catarino e Maria Augusta.Nesse seio familiar, aproxima-se dos primosAdriana e Rafael, que serão os primeiros leitoresde seus textos.

    1926 – Insatisfeito com a rotina bancária, assume socie -dade na Pharmacia Central, em sua cidade natal.

    1927 – Arranja tempo para dar aulas particulares de lite -ratura e inglês, além de ler Oscar Wilde, BernardShaw, Anatole France, Katherine Mansfield.Inicia namoro com Mafalda Halfen Volpe, àépoca com 15 anos.

    1929 – Seus primeiros escritos, os contos “Chico, umconto de Natal”, “Ladrão de gado”, “A tragédiadum homem gordo”, “A lâmpada mágica”, sãopublicados.

    1930 – A falência de sua farmácia e o sucesso de seusprimeiros contos inspiram-no a voltar para PortoAlegre e buscar sustento na lite ratura.

    – Passa a conviver com gigantes da área, comoMário Quintana e Augusto Meyer.

    – No final desse ano, é contratado para a redaçãoda Revista do Globo.

    1931 – Casa-se em Cruz Alta com Mafalda Halfen Volpe.

    – Publica sua primeira tradução, de “O sineiro”, deEdgar Wallace.

    – Inicia colaboração dominical nos jornais Diáriode Notícias e Correio do Povo.

    1932 – Promovido a diretor da Revista do Globo, passan doa atuar no departamento editorial da Livraria doGlo bo, indicando livros para tradução e publica ção.

    CAMINHOS CRUZADOS

    AULAS ESPECIAISOBRAS DA UNICAMP

    PORTUGUÊS

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    É por essa casa que sai sua primeira obra,Fantoches, coletânea de contos.

    1933 – Publica seu primeiro romance, Clarissa.

    – Traduz Contraponto, de Aldous Huxley, que serápublicado somente em 1935.

    1934 – Recebe o Prêmio Machado de Assis por Músicaao longe.

    1935 – Sua filha Clarissa nasce.

    – Publica Caminhos cruzados. Com essa obra éagraciado com o Prêmio Fundação Graça Ara nha.É também por causa desse livro que foi chamadoa depor pelo Departa mento de Ordem Política eSocial (DOPS) do Rio Grande do Sul. Acusação:comunismo. De pu nha contra ele o fato de oromance ter desa gradado setores de direita. Outroponto agra vante era o autor haver confes sado queseu livro tinha relações com Contraponto, obra deum autor de índole comunista e anarquista.

    – Viaja para o Rio de Janeiro, onde fez contato comJorge Amado, José Lins do Rego, Murilo Mendes,Afonso Frederico Schmidt, Carlos Drummond deAndrade.

    1936 – Publica As aventuras do avião vermelho, seuprimeiro livro infantil.

    – Estreia Clube dos três porquinhos, programainfantil na Rádio Farroupilha.

    – Lança a revista A novela, que mistura textoscanônicos com textos de mero entretenimento.

    – Nasce seu filho, Luis Fernando Veríssimo.

    1938 – Publica um de seus maiores sucessos, Olhai oslírios do campo.

    1940 – Pronuncia uma série de conferências em SãoPaulo. Participa de sua pri meira noite deautógrafos, na Livraria Saraiva.

    1941 – Realiza conferências nos Estados Unidos, a con -vite do Departamento de Estado norte-ame ricano.

    1943 – Publica O resto é silêncio, que sofre críticasferozes do clero gaúcho.

    – Temendo ser vítima da ditadura Vargas, aceitaoutro convite do Departamento de Estado norte-ame ricano e vai lecionar Literatura Brasileira naUniversidade da Califórnia. Por causa disso,muda-se com a família para Berkley.

    1944 – O Mills College, de Oakland, Califórnia, em quelecionava Literatura e História do Brasil, concede-lhe o título de doutor honoris causa.

    1945 – Realiza mais conferências em diversos estadosnorte-americanos.

    1947 – De volta ao Brasil, inicia sua grande obra, Otempo e o vento, que tinha a previsão de ocupar800 páginas a serem escritas em dois anos, masque na verdade ocupou 2200 páginas produzidasem 15 anos.

    1949 – O primeiro volume da trilogia O tempo e o vento,“O continente”, vem a público.

    – Recebe no Rio Grande do Sul o franco-arge linoAlbert Camus, autor do célebre A peste.

    1953 – Assume, a convite do governo brasileiro, o co man -do do Departamento de Assuntos Culturais daUnião Pan-Americana, na Secretaria da Orga ni za -ção dos Estados Americanos, em Washing ton.

    1954 – Recebe o prêmio Machado de Assis, da Acade miaBrasileira de Letras, pelo conjun to de sua obra.

    – Visita, em razão de seu cargo na OEA, váriospaíses da América Latina, nos quais profereinúmeras conferências.

    1959 – Defende em palestras em solo português o regi -me democrático, o que o faz entrar em cho quecom a ditadura de Salazar, então em vigor.

    1964 – No Brasil, escreve um manifesto em defesa dasinstituições democráticas.

    – Ganha o título de Cidadão de Porto Alegre, dadopela Câmara de Vereadores da capital gaúcha.

    1965 – Ganha o Prêmio Jabuti, categoria romance, comO senhor embaixador.

    1966 – Aceita o convite de Israel para lá dar confe -rências.

    1968 – Recebe o prêmio Intelectual do Ano, promovidopela Folha de S.Paulo e União Brasileira deEscritores.

    1975 – Falece em 28 de novembro.

    1986 – O Museu de Cruz Alta torna-se Fundação ÉricoVeríssimo.

    1987 – A casa onde o autor nasceu é transformada emMuseu Casa de Érico Veríssimo.

    1994 – Luis Fernando Veríssimo assume a presi dênciada Associação Cultural Acervo Literário de ÉricoVeríssimo, instituição responsável por toda adocumentação literária do escritor.

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  • 2. OBRAS

    ContosFantoche (1932)As mãos de meu filho (1942)O ataque (1958)

    RomancesClarissa (1933)Caminhos cruzados (1935)Música ao longe (1936)Um lugar ao sol (1936)Olhai os lírios do campo (1938)Saga (1940)O resto é silêncio (1943)O tempo e o vento (1ª parte) — O continente (1949)

    (2ª parte) — O retrato (1951)(3ª parte) — O arquipélago (1961)

    O senhor embaixador (1965)O prisioneiro (1967)Incidente em Antares (1971)

    NovelaNoite (1954)

    Literatura Infanto-JuvenilA vida de Joana d’Arc (1935)As aventuras do avião vermelho (1936)Os três porquinhos pobres (1936)Rosa Maria no castelo encantado (1936)Meu ABC (1936)As aventuras de Tibicuera (1937)O urso com música na barriga (1938)A vida do elefante Basílio (1939)Outra vez os três porquinhos (1939)Viagem à aurora do mundo (1939)Aventuras no mundo da higiene (1939)Gente e bichos (1956)

    Narrativas de viagensGato preto em campo de neve (1941)A volta do gato preto (1946)México (1957)Israel em abril (1969)

    AutobiografiasO escritor diante do espelho em Ficção Completa (1966)Solo de clarineta – Memórias – 1º volume (1973) Solo de clarineta – Memórias – 2º volume (1976)

    EnsaiosBrazilian Literature – an Outline (1945)Rio Grande do Sul (1973)Breve história da literatura brasileira – Tradução deMaria da Glória Bordini (1995)

    BiografiasUm certo Henrique Bertaso (1972)

    CompilaçõesObras de Érico Veríssimo (1956)Obras completas (1961)Ficção completa (1966)

    Adaptações

    Para o cinema

    Mirad los lirios del campo (Argentina, 1947). Baseadoem Olhai os lírios do campo. Direção: ErnestoArancibia. Roteiro: Túlio Demicheli. Atores: Jose Olarae Mauricio Jouvert

    O sobrado (Brasil, 1956). Baseado em O tempo e o vento.Direção: Cassiano Gabus Mendes e Walter George Durst.Atores: Rosalina Granja Lima e Lima Duarte

    Um certo capitão Rodrigo (Brasil, 1970). Baseado em Otempo e o vento. Direção: Anselmo Duarte. Atores:Francisco di Franco e Newton Prado

    Ana Terra (Brasil, 1971). Baseado em O tempo e o vento.Direção: Durval Gomes Garcia. Atores: Rossana Ghessae Geraldo Del Rey.

    Noite (Brasil, 1985). Baseado em Noite. Direção: GilbertoLoureiro. Atores: Marco Nanini, Cristina Aché e EduardoTornaghi.

    O tempo e o vento (Brasil, 2013). Baseado em O tempo eo vento. Direção: Jayme Monjardim. Atores: FernandaMontenegro, Thiago Lacerda, Marjorie Estiano.

    Para a televisão

    O tempo e o vento (Brasil, 1967). Baseada em O tempo eo vento. Novela de Teixeira Filho. Direção: DionísioAzevedo. Atores: Carlos Zara, Geórgia Gomide. TVExcelsior.

    Olhai os lírios do campo (Brasil, 1980). Baseada emOlhai os lírios do campo. Novela de Geraldo Vietri eWilson Aguiar Filho. Direção: Herval Rossano. Atores:Cláudio Marzo, Nívea Maria. TV Globo.

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    O resto é silêncio (Brasil, 1981). Baseado em O resto ésilêncio. Telerromance de Mario Prata. Direção: ArlindoPereira. Atores: Carmem Monegal, Fernando Peixoto.TV Cultura.

    Música ao longe (Brasil, 1982). Baseado em Música aolonge. Telerromance de Mario Prata. Direção: EdsonBraga. Atores: Djenane Machado, Fausto Rocha. TVCultura.

    O tempo e o vento (Brasil, 1985). Baseada em O tempo eo vento. Minissérie de Doc Comparato. Direção: PauloJosé. Atores: Tarcísio Meira, Glória Pires. TV Globo.

    Incidente em Antares (Brasil, 1994). Baseada emIncidente em Antares. Minissérie de Charles Peixoto eNelson Nadotti. Direção: Paulo José. Atores: FernandaMontenegro, Paulo Betti. TV Globo.

    3. CARACTERÍSTICAS DO AUTOR

    Dois são os autores brasileiros que no século XXganharam a estima de nosso povo: Jorge Amado e ÉricoVeríssimo. E ambos receberam da crítica especializadauma consideração inversamente proporcional à famaobtida. No caso do gaúcho, essa depreciação se deve aofato de ele escrever de maneira direta e clara, sem ascomplicações formais e temáticas que muitos estudiososteimam em exigir do texto literário. Além disso,Veríssimo afastou-se do padrão consagrado à prosa doSegundo Tempo Modernista (1930-1945), pois evitou opitoresco esperado das histórias que não pertencem aoeixo Rio-São Paulo. Seguiu, no entanto, a essência dessafase, que se destacou pela produção de narrativa preocu -pada com abordagem crítica de problemas sociais.

    De maneira geral, a literatura de Érico Veríssimopode ser dividida grosso modo em dois grandes blocos.O primeiro concentrou-se na produção de flagrantes docotidiano em que o narrador vaza sua emotividade, seja ade um poeta, como em Clarissa, seja a de um satírico,como em Caminhos cruzados. O segundo momento édedicado à construção da saga que tematiza a formaçãodo Rio Grande do Sul, cobrindo um período que vai de1745 a 1945. É o momento do monumental O tempo e ovento. Por fim, como em uma espécie de apêndiceevolutivo, seus dois últimos romances, O senhor embai -xador e O prisioneiro, deixam de lado a realidade gaúchae dedicam-se a uma crítica política de caráter universal.

    4. CAMINHOS CRUZADOS

    O romance Caminhos cruzados capta o cotidianode várias personagens de diferentes níveis sociais. Operíodo abordado é o de cinco dias, de um sábado até aquarta-feira seguinte de maio de 1934, havendo oportu -nidade para momentos em que o narrador mer gulha namente das personagens para fazer flashbacks expli cativos.

    O primeiro dia, sábado, serve para apresentaçãodos integrantes da trama. Já no amanhecer tomamosconhe cimento de Clarimundo, morador da suburbanaTravessa das Acácias. Trata-se de um professor de Mate -mática, Física, Inglês, Latim, Português. É um homemdotado de extenso conhecimento teórico, mas comple -tamente desconectado da realidade prática, o que o tornaum avoado. Seu grande sonho é escrever um livro dedivulgação científica em linguagem literária, O homemde Sírio. Nele, imagina um ser desse sistema estelarcontando aos habitantes aqui da Terra os segredos quecontrolam o universo e a vida dos homens.

    Avançada a manhã, a narrativa desloca-se para oacordar da casa da abastada família Madeira. Lá seencontra Virgínia, quarentona ressentida com seu casa -mento com o bovino e rotineiro Honorato, comerciantebem estabelecido. Os dois têm um filho, Noel. Foraeducado pela superprotetora Angélica, agora já falecida,que o entupira de contos de fadas, o que o faz achar quea vida ideal seria a das fantasias infantis. Por causa disso,torna-se um inadaptado ao mundo dos homens, prefe -rindo a realidade dos elfos e fadas.

    Chega-se ao meio da manhã no apartamento deSalu, um hedonista sensual. Passara a noite com umamulher que encontrara na rua, Cacilda, e que mais tardese saberá que se trata de uma gentil prostituta. A preocu -pação dele agora é tomar um banho, dispensar a moça,em nome do decoro do edifício em que mora, e iniciarmais um dia dedicado à fruição das benesses que a suacondição social folgada proporcionava.

    O dia vai avançando e outras personagens e seusdramas vão sendo apresentados. Toma-se conhe cimentoda família Pedrosa, composta pela lamurienta DonaMaria Luísa, pelo Coronel José Maria Pedro sa, homemcheio da energia primitiva de vida, por Manuel, que sópensa em farras homéricas, e por Chinita, moça tolaobcecada pelo universo hollywoo diano. Tinham emJacarecanga uma existência humilde, acos sa dos porcontas e promissórias vencidas. No entanto, CoronelPedrosa resol ve arriscar suas poucas economias em um

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  • bilhete da lote ria, que é sorteado, alçando-o para a altaroda. Ado tam o comportamento pródigo de novos-ricos.Exceção deve ser dada à Dona Maria Luísa, que nãoparticipa daquela extravagância financeira, achando arique za um ímã de desgraça. Fica na expectativa de quea ruína econômica volte.

    A narrativa vai-se desenvolvendo e mais perso -na gens vão entrando em cena. Volta-se para a Travessadas Acácias. Aparece João Benévolo, moço tão viciadoem romances de aventura que acaba tornando-se maisoutra personagem inábil para a vida. Perdera o empregopara dar lugar a um protegido das relações sociais queseu patrão mantinha. Falido economicamente, não temcomo sustentar sua esposa, a chorona Laurentina, e o seufilho, o doente Napoleão. Além da humilhação pelascobranças diárias dos três meses de aluguel atrasado, temde aguentar a degradação moral de ver o ex-namorado desua esposa, Ponciano, visitá-los toda noite e portar-secomo cobra pronta a dar o bote. Pior: no auge da criseeco nô mica, o sedutor deixa vinte mil réis, que Benévoloacaba sendo obrigado a usar.

    Outro falido economicamente é Maximiliano.Também morador da Travessa das Acácias, casado, paide dois filhos, foi à ruína por ter contraído tuberculose.Per de ra o emprego e agora o que lhe resta é esperar amorte chegar. Enquanto isso, sua esposa vai definhandofísica e moralmente (não é capaz de esboçar mais nenhu -ma emoção) e seus filhos vão-se criando soltos comodois animaizinhos.

    Dona Dodó Leitão Leiria aparece nesse sábadopara uma visita de caridade ao doente. Deixa-lhe vintemil réis, que servirão apenas de atenuante. Aliás, sua idaàquela moradia decrépita fora movida não exatamentepor preocupação com ideais cristãos. Essa dama da altasociedade alimentava-se da vaidade de ver seu nomesempre citado em razão de suas obras de caridade.

    Poucas horas depois quem aparece na Travessadas Acácias é Teotônio Leitão Leiria, marido de DonaDodó. Vai para o mesmo prédio em que moram JoãoBenévolo e Clarimundo para ter um encontro sexual comCacilda, o que o deixa em crise de consciência, pois,além de pertencer à alta roda, era casado com uma mu -lher digna e dedicada a ele. Nesse ponto fica bem clarauma característica do romance que justifica o seu título:o cruzamento de histórias. Benévolo fora empre gado deLeitão. Sem saber, esse ricaço agora está no mesmoedifício em que mora o homem que ele havia demi tido.E agora vai encontrar-se com a prostituta que horas antesestivera com Salu. Por sua vez, Salu é namorado de

    Chinita, que, além de ser aluna particular de Clarimundo,é filha de Coronel Pedrosa, de quem Teotônio tem ódioalimentado pela inveja da condição financeira maisfolgada do interiorano. E mais conexões a narrativa vaidespejando no decorrer do livro.

    Há espaço ainda para a apresentação da perso -nagem mais íntegra da obra: Fernanda. Também mora -dora da Travessa das Acácias, moça inteligente, formara-se em magistério, mas não conseguia emprego na área.Vê-se obrigada a entregar-se ao enfadonho trabalhoburo crático no escritório de Leitão Leiria. Assim, conse -gue garantir o sustento de sua mãe, Dona Eudóxia, outramu lher viciada em desgraça, a lembrar a esposa deCoronel Pedrosa. Tem também que cuidar do irmão maisnovo, Pedrinho, traba lhador em uma loja de ferragens,aluno do professor Clari mundo e apaixonado justamentepela prostituta Cacil da, que o iniciara sexualmente deforma delicada e respeitosa.

    O sábado termina com o baile beneficente noMetrópole, organizado por Dodó Leiria. Nele focalizam-se questões bastante interessantes. A começar, as músicasque animam a elite são o blues e o samba, tocados poruma banda de jazz cujo vocalista é um negro com cabeloalisado e cara embranquecida por maquiagem. Há umatensão social nas entrelinhas: além da utilização dacultura do negro para entretenimento dos abastados, há aocultação de marcas de africanidade. Ademais, é nessafesta que o leitor toma conhecimento do relacionamentotórrido entre Salu e Chinita, os dois dançando como sefossem um só e sempre na expectativa de que a uniãocarnal finalmente ocorra.

    O dia seguinte funciona como intervalo. Entra -mos em contato com mais amostras do compa nhei rismodo casal Leiria. Todo domingo eles fazem questão de,primeiro, fazerem a higiene matinal e volta rem para acama, para, assim, dignos um para o outro, tomarem ocafé no quarto. Nesse dia em específico a tranquilidade érompida primeiro pela notícia elogiosa do baile noMetrópole, o que alimenta o gosto de Dodó pela fama. Aoutra alteração na rotina é a preocupação de Teotônio: elenão admite que o Coronel Pedrosa estabeleça relaçõescom Monsenhor Gross, amigo da família Leiria. O que omove é a inveja: ficou sabendo que o interiorano, quandocompletar bodas de prata, doará vinte e cinco contos deréis de uma só vez para as obras da catedral. Tudo o queLeiria conseguira doar fora dez contos de réis e emprestações semestrais. Seu temor é que assim o oponenteconsiga abrir caminho na alta sociedade e consequen te -mente lhe passe à frente no embarque na carreira política.

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  • Obviamente, não confessa isso à esposa. Usa comoargumento para tê-la ao seu lado o fato de ter des co bertoque o seu opositor sustenta uma amante, Nanette.

    Na casa de Benévolo, providencialmente seacordara tarde – seria uma maneira de pular o café damanhã e evitar mais despesa. A crise naquela residênciasó se agrava: a saúde de Napoleão piora, o que obriga opai a tomar posse do dinheiro que jurara, em nome dadignidade, devolver.

    Chinita passa boa parte do domingo em um clubecom Vera, filha do casal Leiria. Seria um momento a sósque esta tanto sonhara, já que nutre uma paixão pelainteriorana. O problema é que o pegajoso Armênio,pedante advogado, também aparece por lá e não desgru -da de Vera, já que é apaixonado por ela. Não consegueperceber que sua musa não tem inclinação alguma paraele. Os planos da coitada são mais prejudicados aindacom o surgimento de Salu, que novamente se grudalascivamente à provinciana, dessa vez dentro da piscina.

    Enquanto isso, Noel e Fernanda, velhos amigosdesde a infância, passam a tarde em Ipanema, à beira doGuaíba. Ficam conversando principalmente sobre arelação entre vida e literatura. Fernanda, como sempre edesde longa data, funciona como guia do rapaz. Tomacomo missão doutriná-lo e trazê-lo para o mundo doshomens. Tenta convencê-lo que há beleza no cotidiano.O jovem mostra-se inclinado a essa nova disposição.Mas outra mudança também se vai processando nele:começa a achar possível amar Fernanda.

    No edifício Colombo, o mesmo em que moraSalu, coronel Pedrosa entrega-se à sua amante francesa,Nanette Thibault. Fica-se sabendo que é um relaciona -mento baseado em interesse econômico. Graças a essesencontros, o senhor arranjou-lhe um lugar decente paramorar, uma boa condição de vida e está para lhe dar umautomóvel. É por isso que ela aceita o jeito chucro dele eseus cigarros fedorentos.

    A segunda-feira encontra João Benévolo comdisposição. Crê que o início de uma nova semana é sinalde uma nova vida que está por vir. No entanto, tudo nãopassa de fantasia, como tantas outras que ele vive. Pior:em plena crise financeira, gasta parte do dinheiro dePonciano para comprar um romance de aventuras.

    Mas a grande preocupação desse dia é a festa quehaverá à noite para a inauguração do suntuoso palaceteda família Pedrosa. Por causa disso é que Chinita convi -da Vera para ajudar na preparação do evento. Quando afilha dos Leiria se encontra a sós no quarto da sua amada,

    ataca-a de beijos, mas são interrompidas pela voz daempregada, anunciando o chá.

    A festa, enfim, é um sucesso. Integrantes da eliteporto-alegrense servem-se da comida e da bebida farta,mostrando que o dinheiro é capaz de fazer com quemuitos esqueçam a origem humilde, a falta de nome e ojeito grosseiro do anfitrião. É também durante esseevento que Salu concretiza violenta e apaixonadamenteseu plano, tirando a virgindade de Chinita na escuridão,no chão do jardim do fundo do palacete.

    A terça-feira surge em meio a um aguaceiro,como contraste ao calor atípico dos dias anteriores. Fla -gra mos Clarimundo indo trabalhar de forma atabalhoada,não sabendo como utilizar um guarda-chuva, não saben -do como entrar em um bonde e não sabendo onde estavao dinheiro para pagar seu transporte. Enfim, apesar degrande conhecedor da ciência e dos segredos que movemo mundo e os homens, é um desajeitado para as questõespráticas da vida.

    Outro que aparece em situação desfavorável éJoão Benévolo. Sua casa está tomada de goteiras, o frioestá por toda parte. No entanto, ele, como sempre, fecha-se para essa condição ruim e submerge em suas fantasias.Isolado em sua cama, imagina-se navegando pelos maresda China em meio a inúmeras aventuras. Fica-se sabendotambém de um fato curioso: Napoleão puxara ao pai,pois também está mergulhado em sonhos, dedicando-se adesenhos e histórias de Tom Mix, herói cinema to gráfico.

    Pedrinho continua apaixonado por Cacilda, masrecebe dela apenas tolerância. Ela se sente incomodadacom o menino, pois a presença dele a atrapalha narecepção de clientes. Mas o coração bom da meretriz aimpede de tratar mal o rapaz. Esse jeito especial é queinspira o menino a ajuntar dinheiro para comprar-lhe umcolar que vira em uma loja de departamentos.

    Dodó Leiria passa uma tarefa espinhosa para omarido. Monsenhor Gross pedira um emprego para umaprotegida. Em meio à crise sempre mencionada dadécada de 1930, Teotônio não sabe onde colocar a moça,mas se sente na obrigação de atender o religioso – po -deria garantir bons dividendos políticos. Como a apadri -nhada sabe datilografia, o lugar que imagina para ela é ode Fernanda. No entanto, não vê motivos para demitiruma boa funcionária. Mas é-lhe necessário. Por isso,procura um pretexto. Ao conversar com a funcionária,diz que ficou sabendo que ela teria ligações com comu -nistas, o que ela nega. Leitão avisa que as infor maçõesdele vêm de fonte fidedigna, o que ela contesta, dizendo

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    que é mentira. Era a deixa que ele esperava, autorizando-o a considerar a declaração da empregada um desacato.Ainda assim, magnanimamente (na visão dele), dá-lhe oprazo de um mês para ir embora.

    Leitão ainda vai praticar outro malefício. Quervingar-se de Coronel Pedrosa, pois não admite a bem-aven turança dele. Não acha digno denunciá-lo pu -blicamente. Planeja então enviar uma carta anônima paraDona Maria Luísa, delatando o relacionamento adul te -rino do novo-rico.

    Alterações ocorrem em Noel, pois ele já se vêinclinado a concordar com Fernanda. Imagina-se en tran -do para o mundo dos homens. Tenta escrever algo queaborde o cotidiano. Além disso, já começa a se ima ginartendo uma vida a dois com sua amiga de infância. E é porisso que aceita ir trabalhar no escritório do pai, Honorato.Está-se libertando dos muros construídos pela falecidaAngélica.

    Salu está apaixonado por Chinita, por isso marcaum encontro com ela em uma casa de chá. Convence-a aesquecer as convenções sociais e entregar-se aos prazeresda vida. Leva-a ao seu apartamento, em que finalmentetem uma união carnal digna. É quando descobre na moçaprazeres que não imaginava que ela fosse capaz de dar ealcançar. Encontram a felicidade.

    Na quarta-feira, mais algumas alterações ocor -rem naquele mar de rotina que Caminhos cruzados apre -senta. A começar, Clarimundo comprara uma cafe teira eirá estreá-la na companhia do vizinho, o sapa teiroFiorello. Estava vindo para o mundo dos homens –apesar de o encontro ter sido marcado pontualmente paraas 6h10 e de ele ter aprendido em um livro a fazer café.

    Outra mudança: com o fim do dinheiro, a famíliaBenévolo chegara à bancarrota. João sai de casa com apromessa de que só voltaria com um emprego ar ran jado ea derrocada eliminada. Mas tudo o que faz é de va nearpelas ruas até desmaiar – não comia desde o dia anterior.É retirado de cena por um carro da assistência pública.

    Maximiliano finalmente falece, trazendo alíviopara sua esposa. Seu velório é acompanhado com deleitepor Dona Eudóxia, fã desse tipo de evento. Fica, noentanto, chateada, pois não fora chamada no momentoem que o moribundo estava dando o seu último suspiro.

    Virgínia sofre uma crise terrível. Entediada como casamento, sonha com aventuras adulterinas. É por issoque se sente agraciada com os olhares sedutores queconstantemente recebe de Alcides. Aparecera no baile do

    Metrópole, em que a ficara fitando insistentemente. Etodos os dias, às 17h, ficava em frente à sua janela, dooutro lado da rua. No entanto, não aparecera na terça-feira, o que a deixou um pouco apreensiva. Mas o pior foiver nos jornais a foto de seu galanteador. Tinha sidoassassinado em um flagrante de adultério. Uma misturade sentimentos terríveis toma-a: dor de perda do objetode afeição, percepção de que não era a única a ser corte -jada, conscientização de que estaria presa para sempre àsamarras do papel social de esposa e mãe. No entanto,isolada em seu quarto, no final da tarde desabrocha suapaixão pela vida e expulsa de seu espírito toda negati -vidade, entregando-se à alegria de estar viva.

    A noite chega e mais uma vez Salu e Chinitadeliciam-se com os prazeres do sexo e, por extensão, davida. No mesmo prédio, sete andares abaixo, seu pai,Coro nel Pedrosa, também tem momentos de luxúria comNanette. E Dona Maria Luísa, no palacete, remói adenúncia de uma carta anônima. Mas também sente umaponta de deleite ao finalmente ter uma desgraça só suapara fruir.

    Fernanda sente que Noel está fragilmente saindode sua casca. Percebe também que um amor está bro -tando e que o rapaz tem vontade de declarar isso, masnão consegue naquele momento concretizar sua vontade.E talvez não a realizará nunca. Pela primeira vez ela nãoexterna os pensa mentos do rapaz (na infância, porexemplo, ela chegava ao cúmulo de avisar à professoraque o amigo estava com vontade de ir ao banheiro, coisaque ele não tinha coragem de falar). Enfim, ela confirmaser a personagem mais determi nada do romance: tem decuidar do irmão, da mãe, de Noel, preocupar-se emarranjar um novo emprego e não transparecer nenhumadessas preocu pações para não atrapalhar a vida alheia.

    Por fim, o grande evento da quarta-feira mate -rializara-se. Era o aniversário de Dodó. Já de manhã elaganhara do marido uma cruz cravejada de brilhantes.Vira uma reportagem especial no jornal Gazeta sobre asua pessoa, acrescida de um questionário que ela haviapreviamente respondido. E à noite um jantar fora dadoem sua homenagem.

    O romance termina com Clarimundo pondo emprática o seu projeto, a confecção de O homem de Sírio.Começa a redigir o seu prefácio.

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  • 5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ANALÍTICAS

    O primeiro elemento que chama a atenção naconfecção de Caminhos cruzados é anunciado no seutítulo: o entrelaçamento de narrativas. Tal fenômeno se dáde duas maneiras: pela simultaneidade e pela asso ciação.

    A primeira forma ocorre quando dois eventos sãoapresentados em pontos diferentes da trama, mas crono lo -gicamente eles se realizam ao mesmo tempo. É o que sepode ver, por exemplo, quando Salu e Chinita se entre gamàs delícias do sexo na mesma hora e no mesmo prédio emque Coronel Pedrosa e Nanette praticam seme lhante ato.Ao mesmo tempo, Dona Maria Luísa remói a dor dadenúncia de adultério que havia lido em uma cartaanônima e Vera sofre a frustração de não ter a companhiade Chinita no insosso jantar de aniversário de Dona Dodó.

    A segunda forma de cruzamento, a associação, émais sofisticada. Ela ocorre, por exemplo, na passagem docapítulo 50 para o 51. O primeiro termina com CoronelPedrosa estendendo a mão para pegar uma taça de bebida,e o outro começa com Maximiliano recolhen do a mão parapegar um copo de leite que sua esposa fornecera.

    Outro ponto relevante na confecção de Cami -nhos cruzados é o constante uso da intertex tua li dade, queacrescenta informações úteis para a com posi ção docaráter das personagens. Quando acom pa nhamos asleituras de João Benévolo ou de Noel, enten demos umpouco mais o caráter desses dois inadap tados à realidade.Da mesma forma, as leituras de Dodó, Teotônio e Verarevelam a maneira como se comportam na sociedade, dopio ou convencional ao revolucionário.

    Dentro desse campo, ganha relevo a metalin gua -gem. Há vários momentos em que se relata a construçãode um texto, seja ele um telegrama ou mesmo um artigoopinativo que se transforma em discurso. Mas ametalinguagem também se manifesta nas referências àliteratura, como se Caminhos cruzados falasse de simesmo. Vemos esse fenô meno nas extensas discussõesentre Noel e Fernanda a respeito do papel da litera tura,ele a princípio abominando a aproxi mação com acotidiana vida real, ela vendo bele za nesse avizi nha -mento. Clarimundo também permite que enxer gue mosessas reflexões, pois o objetivo de O homem de Sírio nãodeixa de ter alguma semelhança com o de Caminhoscruzados. O homem do distante sistema este lar capaz deobservar de cima a vida humana iguala-se ao narrador doromance de Érico Veríssimo, que abor da as diferentesexistências de vários habitantes de Porto Alegre. Alémdisso, o desprezo nutrido pelo professor em relação ao

    mundo dos homens assemelha-se ao praticado por Noele Benévolo.

    Nesse ponto, vem à tona uma crítica queVeríssimo nos deixa em relação ao papel da literatura. Oautor permite perceber que a arte que domina pode terum papel nocivo, na medida em que se afasta da vidareal. Esse é o motivo de sofrimento de Benévolo e Noel.Quando essa estética perde seu caráter feérico, ela faz apersonagem encaminhar-se para a realização pessoal.Essa fora a receita dada por Fernanda ao seu amigo de in -fân cia, o que o fez achar o caminho para a felicidade. Decerta forma é o que Clarimundo encontra como reali -zação, ao planejar traduzir grandes conceitos da Ciênciapara os homens comuns.

    Esse caráter reflexivo, que faz com que a obra sevolte sobre si mesma, leva a perceber que muitas daspersonagens de Caminhos cruzados funcionam comalter-egos de Érico Veríssimo. Há um pouco do autor emFernanda, que acredita que a literatura é um instrumentode transformação social. Além disso, autor e personagemse viram por boa parte da vida sufocados por um trabalhoburocrático em nome da própria sobrevivência. Hátambém um pouco de Veríssimo em João Benévolo, jáque ambos passa ram por extremas dificuldades finan -ceiras. A paixão do literato pelo universo do cinema en -con tra reflexo nas fantasias hollywoodianas de Chinita.

    Quanto à construção das personagens, outroaspecto é digno de nota, o que foi assumido pelo próprioautor. Em seu prefácio, ele havia reconhecido que elasassumiram um feitio caricaturesco, afastando-se depessoas autênticas. De fato, o comportamento de JoãoBenévolo, Chinita, Pedrosa, Dona Maria Luísa e DonaEudóxia, entre tantos outros, é bastante previsível eexagerado, o que as torna psicologicamente superficiais.No entanto, o próprio autor adverte que essa espécie depersonagem é bastante útil para uma arte que se propõe afazer crítica social, encontrando paralelo na pintura dePortinari, Segall, Di Cavalcanti.

    Por fim, há que se lembrar do viés social deCaminhos cruzados. Érico Veríssimo confessadamentecompôs uma obra preocupada em denunciar a desi -gualdade econômica, e o faz sem ser panfletário. Não foinecessário a ele montar um discurso político para atacara injustiça tão comum no nosso meio, com a péssima edistorcida distribuição de renda. Bastou-lhe apenasretratar os privilegiados de forma ridicularizadora e osdesprestigiados de forma condescendente para que sepercebesse a posição a que o autor se havia filiado – ados pobres, desprotegidos e marginalizados.

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  • Texto para as questões de 1 a 3.

    Pensando em Santa Maria Egipcíaca, Teotôniomira-se no espelho do porta-chapéus, conserta oplastron* e sai.

    As máquinas ainda metralham. Leitão Leiriaolha de viés para as pernas de Fernanda e umpensamen to mau (quem é que pode governar ospensamentos?) lhe cruza a mente. Se essa menina quises -se, eu arranjava um apartamento discreto, uma barati -nha Chevrolet... Mas o Anjo da Guarda particular deTeotônio comparece com a esponja da purificação eapaga-lhe da mente a ideia suja.

    * - Plastron: o mesmo que plastrão, um tipo de gravata.

    (Érico Veríssimo, Caminhos cruzados. 30. ed. São Paulo: Editora Globo, 1995, pp. 64-65.)

    1. O que o trecho acima revela sobre a personalidade deTeotônio Leitão Leiria?

    2. Qual a semelhança e a diferença que o excerto esta -belece entre a vida de Teotônio Leiria e a de CoronelPedrosa?

    3. Tendo em vista o contexto do romance, como oexcerto em análise revela a hipocrisia de TeotônioLeiria?

    Texto para as questões de 4 a 8.

    Encolhido e apreensivo, Teotônio Leitão Leiriaentra na Travessa das Acácias. Sua mente é uma tela decinema em que três imagens – a de Dodó, a deMonsenhor Gross e a da menina de olhos verdes – se su -ce dem em close-ups assustadores. Tumulto de senti men -tos. Impressão de culpa e pecado, perspectiva de gozo,alvoroço, temor, remorso antecipado... Teotônio cami -nha, rente à parede. Felizmente os combustores aindanão se acenderam. Dentro do crepúsculo cinzento quecaiu sobre a rua suburbana, as árvores oferecem aindauma sombra mais funda e protetora. Teotônio olha osnúmeros das casas, sem parar. As faces lhe ardem. Temvontade de levantar a gola do casaco, como um crimi -noso que não quer ser reconhecido. Mas não: isso seriachamar mais a menção das pessoas... Há gente às jane -las. Teotônio prossegue teso, sem olhar para os lados.

    (Érico Veríssimo, Caminhos cruzados. 30. ed. São Paulo: Editora Globo, 1995, pp. 64-67.)

    4. O texto acima relata um conflito pelo qual passa apersonagem. Identifique-o.

    5. A narração da cena acima faz referência a uma arteque em muito influenciou a literatura de ÉricoVeríssimo. De qual se trata? Destaque um trecho quecomprove sua resposta.

    6. Explique como a arte identificada na questãoanterior se manifesta na cena em análise.

    7. Qual semelhança a estética apontada nas questõesacima apresenta com a técnica utilizada na constru -ção de Caminhos cruzados?

    8. Leitão Leiria faz referência a três personagens.Quem são e o que cada uma delas representa?

    Texto para a questão 9.

    – Estas visitas que ele te faz... Não sei, não achodireito... Conversas na escada, ao corredor escuro...– Ele não vai me comer...

    E Fernanda tem a certeza inabalável de queNoel não é capaz de comer ninguém.

    – Ele está aproveitando, está te desfrutando...

    Fernanda sorri.

    – Moça rica, quando cai na boca do povo nãoperde nada. Continua indo a baile e no fim achacasamento. – Suspira, toma uma colherada de canja. –Mas moça pobre (sua voz aqui ganha a consistênciapastosa da canja) quando é falada, fica o mesmo quemulher à toa...

    Fernanda adota outra tática. Descobre que amelhor arma para se defender da mãe é o silêncio.

    “Mulher à-toa”. Pedrinho ouviu isto e agoranão pode mais governar os pensamentos. Baixa a cabeçapara o prato.

    (Érico Veríssimo, Caminhos cruzados. 30. ed. São Paulo: Editora Globo, 1995, p. 128.)

    9. O texto acima permite perceber a referência a trêsmulheres. Identifique-as, apontando o papel socialque elas acabam desempenhando na narrativa.

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    Exercícios

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    1. O excerto permite perceber que Leitão Leiria éalguém da classe alta, o que é indicado pelo uso doplastrão. A referência a Santa Maria Egipcíaca ea Anjo da Guarda mostra que essa personagemestá ligada a ideais católicos. No entanto, o desejosexual que sente ao olhar para as pernas deFernanda, sua empregada, é prova de que suarelação com o catolicismo não é integral,mostrando-se confli tante ou mal resolvido.

    2. Teotônio Leiria, um senhor, fantasia arranjar umaparta mento discreto para Fernanda, para reali -zar seus desejos carnais com a jovem. CoronelPedrosa também tem desejo sexual por umajovem, Nanette Thibault, mas não se prende aoplano da fantasia: aluga um apartamento noEdifício Colombo para ela, concretizando, assim,suas pulsões eróticas.

    3. Leitão Leiria critica Coronel Pedrosa, conside -rando-o indigno de frequentar a alta sociedade.Um dos argumentos que utiliza é o de que ointeriorano tem uma amante, o que atenta contrao cristianismo. No entanto, o crítico deseja fazer omesmo com Fernanda. Essa contradição revela ahipocrisia em sua postura de censor moral.

    4. A cena focalizada mostra o conflito psicológico pe -lo qual Teotônio Leiria passa: quer satisfazer-sesexualmente com uma prostituta, mas senteremorso antecipado, pois vai trair sua esposa e osideais do cristianismo.

    5. A arte a que a narração faz referência é o cinema,co mo se comprova no trecho “Sua mente é umatela de cinema em que três imagens – a de Dodó,a de Monsenhor Gross e a da menina de olhosverdes – se sucedem em close-ups assustadores.”.

    6. O texto em análise faz menção a três imagens emclo se-up que se passam na mente de Leitão Leiriacomo se fossem projetadas em uma tela decinema. Cada uma delas representa um pensa -mento que vem à tona, dominando o conflitopsicológico da personagem.

    7. A cena destacada mostra uma técnica mui to co -mum na arte cinematográfica: o cruzamento declose-ups. Essa técnica assemelha-se à formacomo Caminhos cruzados foi composto, cominstan tâneos que também se cruzam na tramamontada pelo narrador.

    8. As três imagens que passam pela mente deTeotônio são a de Dodó, a de Monsenhor Gross ea da menina de olhos verdes. Teotônio pensa em Dodó, sua esposa. Representao relacionamento conjugal que exige, dentro dosditames do cristianismo, fidelidade afetiva esexual. A outra personagem que vem à sua menteé Monsenhor Gross, que representa a moral cristãa que Teotônio se filia. A terceira personagem é aprosti tuta Cacilda, “a menina de olhos verdes”,que representa os ideais sexuais que o senhorLeiria renega, mas a que, no momento, querentre gar-se.

    9. O excerto permite entender a referência a trêsmulheres. A primeira é Fernanda, mulher pobreque está sob a pressão social (que ela despreza)para a preservação de sua integridade moral. Asegunda é Chinita, que, por causa da posiçãoeconômica privilegiada, pode entregar-se aprazeres sexuais que subvertem a moralestabelecida. A terceira é Cacilda, que, despro -tegida, entregou-se à prostituição, chaga social.

    CAMINHOS CRUZADOS

    GABARITOOBRAS DA UNICAMP

    PORTUGUÊS

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