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FLOR DE ENGENHO

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FLOR DE ENGENHO

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© Copyright 2014 Taquinho de Minas1ª Edição – Ano da Edição: 2014 – Belo Horizonte

PPPPPrrrrroooooddddduçuçuçuçução Exão Exão Exão Exão Exeeeeecucucucucutttttivivivivivaaaaa::::: Selma FerreiraRRRRReeeeevvvvvisãoisãoisãoisãoisão::::: Heloísa Rocha de Alkimim

IIIIIllllluuuuussssstttttrrrrraçaçaçaçaçõõõõões ies ies ies ies innnnnttttteeeeerrrrrnnnnnaaaaasssss::::: Beto LinoFFFFFotototototooooo::::: Rafael Motta

CCCCCaaaaapppppaaaaa::::: Vinícius TestaDiaDiaDiaDiaDiagggggrrrrraaaaammmmmaçaçaçaçação e aão e aão e aão e aão e arrrrrttttte fie fie fie fie finnnnnaaaaalllll : : : : : Rodrigo Ladeira

IIIIImmmmmppppprrrrresesesesessão e acsão e acsão e acsão e acsão e acabababababaaaaamememememennnnntttttooooo::::: Gráfica e EditoraO Lutador - BH/MG

M663fMinas, Taquinho de

Flor de Engenho / Taquinho de Minas. — Belo Horizonte: Oautor, 2014.

224p. il.

ISBN: 978-85-915284-1-7978-85-915284-1-7978-85-915284-1-7978-85-915284-1-7978-85-915284-1-7

1.Literatura Brasileira. 2. Romance. I.Título.

CDU: 82-31(81)

CDD: B869.3

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FFFFFLLLLLOOOOORRRRR DDDDDEEEEE E E E E ENNNNNGGGGGEEEEENNNNNHHHHHOOOOO

Taquinho de Minas

BELO HORIZONTE-MG / 2014

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Prefácio . 71 . Manhã . 92 . Flor . 193 . Noite . 354 . Recital . 495 . Partida . 676 . Tempestade . 797 . Gravidez . 898 . Regresso . 1039 . Vitória . 11710 . Desacertos . 12911 . Encontros e Desencontros . 13912 . Destino . 15313 . Engenho . 17314 . Vingança . 18315 . Incêndio . 19116 . Enfermidade . 19917 . Liberdade . 20918 . Suicídio . 217

- ÍNDICE -

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- PREFÁCIO -

Quando Florinda brotou de mim, senti-me fértil comoa terra que absorve o calor do sol e a água da chuva. Sua histó-ria, cujo aroma o vento leva, arrebatou-me pensamentos e sen-timentos que, irmanados, traduziram-me fielmente a essên-cia do seu ser. Então, pude conhecer-lhe os encantos, inebriar-me com a luz que dela irradia!

Para mim, portanto, Florinda não é apenas a persona-gem fictícia de um romance épico, que tem os olhos da cor danatureza, para a qual brilham a lua e as estrelas. Ela é a reali-dade desnuda de um passado que não passa, de um presenteque não chega, de um futuro que não vem!...

O AUTOR

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MAMAMAMAMANNNNNHHHHHÃÃÃÃÃ

O sol despontou por detrás da serra ao nascer de uma belamanhã de abril! Pela estrada, ainda muito longe, trafegava lenta-mente uma carruagem levantando uma poeira amarelada.

Patos e marrecos nadavam distraídos no rio ao fundoda fazenda perto da senzala, lugar imundo e fétido.

Em contraste, o jardim era de uma beleza fascinante,alindado por rosas vermelhas, lírios brancos, borboletas azuise uma infinidade de flores e aves! A casa-grande, de três pavi-mentos, apresentava-se sólida e majestosa.

Sob as árvores frondosas e carregadas de frutos, folhassecas atapetavam o chão do pomar. E, mais adiante, uma es-plêndida horta, regada diariamente por uma escrava. Acimadas verdejantes colinas estendia-se deslumbrante plantaçãode cana, onde negros de torso nu labutavam ao sol sob o co-mando do capataz: homem inclemente, perverso, cruel e que,além de tratá-los como bichos, deixava-lhes marcas indelé-veis pelo corpo! De chicote em punho, o tirano percorria ocanavial por entre os escravos que, à menor demonstração decansaço, eram açoitados com brutalidade.

- CAPÍTULO 1 -

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Na cozinha da casa-grande a azáfama era intensa. Aspretas trabalhavam freneticamente coordenadas por Juraci:Mãe-preta, como a chamavam, servia a família Vilaça desdemenina; presenciara o nascimento e crescimento dos três fi-lhos do barão. Mas foi com o coração em frangalhos que elaassistira há três meses ao funeral da sua querida Baronesa, donaEsmeralda: mulher íntegra e de alma generosa!

Juraci permanecera à cabeceira da enferma dias e noitesa fio, com amor e dedicação extremos. A negra velha cuidavacom desvelo de dona Esmeralda, cuja doença agravava-se passoa passo. As conversas sussurradas entre Juraci e a doente eramdeverasmente sigilosas, devido à absoluta confiança que abaronesa devotava à sua fiel escrava.

Raul Vilaça era de poucas palavras, porém de muito tra-balho. Entretanto, o barão vivia aborrecido com a saúde de-bilitada da mulher, e, mormente, com a vida vadia que levavaseu único filho homem, Tarcísio. Acima deste havia Mariadas Graças, que deixara aos cuidados da mãe a filha Stefany,quando fora morar no exterior. E, por fim, a caçula Isabela:moça ajuizada, meiga, tinha esta vinte anos, estava na maistenra idade, no verdor da juventude, quando a baronesa fale-ceu.

Fora numa madrugada fria de sábado que a boa senhoraexpirara. A negra Juraci cerrou-lhe os olhos, pondo-lhe nasmãos lívidas e gélidas o terço de contas de marfim.

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O enterro acontecera à tarde daquele mesmo dia. Rea-lizou-se uma cerimônia simples e rápida no cemitério da fa-zenda, à qual compareceram todos os escravos, que tinhampela baronesa profunda admiração e respeito inabalável!

O viúvo, amparado pela filha mais nova, regressara àcasa-grande e, lamentavelmente, passou a viver numa inérciacompleta. Trajando luto, vagando à noite pelos cômodos, obarão assustava as negras com seu aspecto fantasmagórico.Juraci acompanhava-o penalizada até que, fatigado deperambular a esmo, o patrão recolhia-se ao quarto trancandoa porta por dentro.

Diante da situação inalterada do pai, Tarcísio vinha admi-nistrando os negócios da fazenda sem nenhuma competência.

A família Vilaça aguardava nessa manhã ensolarada achegada do coronel Raimundo Lopes. Este, a pedido de suaesposa Geralda, trazia uma escrava de presente para a afilha-da Isabela.

— Já acabou o serviço na horta, Silvana? InterrogouJuraci, sem interromper o que fazia.

— Sim, Mãe-preta. Respondeu a escrava esticando o bei-ço, mal-humorada.

— E você esqueceu-se de que quando escravo terminaum serviço, logo tem outro? Interveio Zulmira, sempre decara amarrada.

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Silvana permaneceu imóvel. Estava emburrada porquenão havia mais a possibilidade de ela ser a mucama de Isabela.

— Ande, Silvana, vá ajudar Zulmira a picar aqueles legu-mes. Ordenou Juraci, mexendo com a colher de pau no tacho.

— Eu prefiro fazer isto sozinha, Mãe-preta, essa meni-na vai me atrapalhar. Rejeitou Zulmira o auxílio da compa-nheira.

Juraci largou a colher no fundo do tacho, cruzou os bra-ços e disse:

— Aqui nesta cozinha quem dá as ordens sou eu; por-tanto, ela irá ajudá-la para não atrasar o almoço, já que hojeteremos visita.

Zulmira baixou a cabeça, resmungando.

— Não sei até quando terei de aturar desaforos! Recla-mou Silvana, pegando a bacia de batatas.

— Eu a aconselhei para não se iludir, menina, pois aescrava que Iaiá ganhou de presente da madrinha é uma pren-da. Lembrou-a Juraci, tornando às tarefas.

— Mãe-preta contou que ela sabe até tocar piano! Co-mentou Augusta, filha de Zulmira.

Silvana olhou-a de soslaio.

— Menina besta; tocar piano para que, se escravo nemé gente! Revidou-lhe a mãe, rabugenta.

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— Eu quero que essa escrava seja bem-vinda por todosnós. Iaiá perdeu a mãe recentemente e, por isso, carece de al-guém a seu lado.

— E é preciso vir uma escrava de fora, Mãe-preta? In-quiriu Silvana, inconformada.

— É preciso conformarmo-nos com a vida que temos,como Mãe-preta já nos ensinou tantas vezes! Intrometeu-seAugusta novamente.

Silvana fitou-a desafiadoramente.

— É verdade, Deus nos dá aquilo que é do nosso mere-cimento! Rematou a negra Juraci.

O engenho, assim como o alambique, instalados na par-te norte da fazenda, funcionavam quase que simultaneamente.No primeiro, dezenas de negros robustos moíam toneladas decana; no segundo, outros escravos cuidavam do fabrico da ca-chaça e da rapadura, produtos que eram comercializados portodo o território nacional. Homens e mulheres misturavam-senuma faina ininterrupta: cortar e moer a cana, engarrafar aaguardente e encaixotar a rapadura. E, a supervisioná-los decima do seu cavalo baio, Tarcísio Vilaça, o filho do barão. Omancebo mantinha o corpo ereto e o chapéu puxado por sobreos olhos, ensombreando-lhe o rosto jovem e moreno.

Ele acenou para uma escrava de aproximadamentedezessete anos. Esta, faceira como ela só, aproximou-se do

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patrão gingando o corpo e escutou-o com um sorriso insinu-ante nos lábios carnudos.

— Lá pelas cinco e meia da tarde eu passo pela cabanavelha; estou com saudades!

Dizendo isto, o mancebo esporeou o animal que o le-vou, a galope, à fazenda vizinha, propriedade da famíliaMadureira, onde residia a sua noiva Alice.

A escrava mencionada tratava-se de Rosinha, neta deJuraci. Sua mãe, Leonor, sofrera barbaridades ao ser perse-guida por Atanásio, o capataz.

Tarcísio resolvera divertir-se com a negrinha apenas porcapricho. Rosinha tinha envolvimento com Vítor, um escra-vo instruído que servia exclusivamente ao barão.

Na sala de visitas da casa-grande encontrava-se o barão,afundado numa poltrona de couro grená. À sua frente, re-costada num almofadão de estampa xadrez, a filha Isabelamirava-o com olhos ternos! E, entre eles, sentada no chão,mais próxima do velho, sua neta Stefany: criança de irrefutávelinteligência, perspicaz, mas de um temperamento bastantedifícil. Mais afastado da família, porém, achava-se Vítor: umescravo de vinte e dois anos, traços finos e porte elegante. Vítortinha acesso irrestrito à biblioteca do barão, da qual era leitorvoraz, tendo predileção pela literatura francesa. Ademais,possuía um gosto musical apurado; apreciador da música clás-

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sica, ele já assistira a vários concertos a convite do barão e dafinada baronesa, dona Esmeralda. Raul Vilaça comprara-o emuma de suas viagens à Corte, quando este contava apenas trêsanos e onze meses de idade.

A baronesa encantara-se com o pequeno a ponto deadotá-lo como filho do coração! A todo lugar que ia levava-oconsigo; adorava beliscar-lhe carinhosamente as bochechasrosadas e, principalmente, perguntar-lhe de quem são as duasjabuticabas dentro dos seus olhinhos. Aí, o petiz respondiasem hesitar, cheio de candura e graça, que são da Mãe-bran-ca! Dona Esmeralda criara-o e educara-o com o mesmo zeloque dispensara à filha caçula.

Juraci entrou na sala e dirigiu-se à Isabela:

— Iaiá deseja comer alguma coisinha antes do almoço?

— Obrigada, acabei de dividir uma maçã com papai.Respondeu a donzela.

— Eu aceito um copo de suco, please. Pediu Stefany àvelha, com a sua mania de usar palavras em inglês.

A negra deixou caírem os grossos braços ao longo docorpo, encarou a menina, sorriu e foi fazer-lhe a vontade.

— Stefany, você ainda não nos contou da carta de suamãe. Cobrou Isabela.

— Ah! Dindinha, é verdade. Sorry!

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O barão não gostava que a menina usasse termos emoutro idioma, receava que ela ficasse enjoada igual à mãe. Per-cebendo o aborrecimento do velho, a garota apressou-se:

— Desculpe-me, vovô, procurarei falar somente em por-tuguês.

— Aqui está o suco, princesinha da Inglaterra! Inter-rompeu-a Juraci, brincalhona.

– Mamãe escreveu-me uma carta maravilhosa! Contou-me várias coisas: que foi a Paris, conheceu o Museu do Louvree o rio Sena, falou dos lindos vestidos que comprou, das es-plêndidas joias que ganhou, enfim, fazendo-me sonhar coma Cidade-Luz!

— E de Londres, a Graça não contou nada? Quis sabera velha.

Stefany suspirou esboçando cansaço, depois explicoucom paciência:

— Juraci, essa carta é recente; nas outras, ela falou dosbelos e arborizados parques pelos quais passeia em dias de sol!

O barão pigarreou. A neta olhou-o desconfiada.

— Eu viajei pelo mundo inteiro; confesso que não hápaís mais bonito do que o Brasil! Garantiu o velho.

A menina fitou-o incrédula.

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— O que mais a sua mãe disse, Stefany? Quando a Gra-ça vem nos visitar? Perguntou Isabela.

Stefany pôs-se de pé num salto.

— Mamãe falou que vem no vapor para o Natal, masque não sente falta desta terra de índios.

— Chi! Murmurou Juraci.

O barão fechou a cara, irritado. A neta viu a carranca dovelho, recuou mais dois passos e pediu com voz clara:

— Excuse-me, vovô!

Mas antes que Raul pudesse ralhar com ela, esta refu-giou-se no alpendre.

Naquele exato momento, estacionava no pátio princi-pal da fazenda a carruagem que trazia a escrava Florinda, opresente de Isabela.

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FLFLFLFLFLOOOOORRRRR

Florinda é filha de escrava com um holandês. Sabe-seque este chegara ao Brasil com o intento de se enriquecer nocultivo de café; porém, tudo não passara de sonho! No iní-cio, ele demonstrou ser homem pacato, sensato e generoso.Começara lavrando a terra e, num prazo de dois anos, torna-ra-se capataz da fazenda. Até que um dia, o fazendeiro desco-brira suas trapaças: o gringo havia construído um armazémcom o dinheiro que lhe roubava. Levado aos tribunais, o ho-landês fora desonrado e irremediavelmente arruinado. Con-tudo, o larápio, não se dando por vencido, arquitetou um pla-no para vingar-se do patrão. Permanecera pela redondeza porum bom tempo, tocaiando, e, numa noite escura, estuprou amucama da mulher do fazendeiro.

A mãe de Florinda chamava-se Maria do Céu. Corroí-da pela vergonha, ela escondeu a gravidez enquanto pode. Aonascimento da filha, desesperou-se: amaldiçoava a vida, xin-gava as pessoas quando se acercavam, chorava copiosamentesobre o tosco berço da criança...

Não suportando mais tanto sofrimento, Maria do Céufugiu da fazenda numa madrugada chuvosa. Percorreu léguas

- CAPÍTULO 2 -

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a pé, carregando nos braços a menina recém-nascida. Duran-te o dia, temerosa de ser descoberta, refugiava-se no mato.Até que, já sendo noite escura outra vez, a escrava adentrounuma cidadezinha. Fatigada e esfomeada, sentou-se para des-cansar na soleira da porta de uma casa bonita, onde depuserao cesto de palha no qual o bebê dormia serenamente, enrola-do numa manta azul bordada de flores.

Receando ser surpreendida por alguém da residência,Maria do Céu preparou-se para uma nova caminhada. E, numsupremo ato de amor, de mãe que anseia por um futuro me-lhor para o filho, decidiu abandonar a criança à própria sor-te! Nesse momento, sentia o coração dentro do peito baterdescompassado, as lágrimas inundarem-lhe o rosto angustia-do, a tristeza invadir-lhe a alma amargurada!

Consciente do crime que cometera, a escrava empreen-deu desabalada carreira com medo de alguém surpreendê-laem flagrante delito e capturá-la.

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— Deus Nosso Senhor toma conta de você, filhinhaquerida! Balbuciara a pobre mãe.

Ofegante pela corrida, ela debruçara-se na amurada deuma ponte; e, no ápice do desvario, jogou-se no rio cujas águascaudalosas e bravias levaram-lhe o corpo jovem!

Na manhã seguinte, a professora Geralda Lopes deparou-se com o cesto na porta de sua casa. Ergueu-o com cautela e, aoouvir o vagido da criança, seus olhos arregalaram-se de susto.

— Minha Nossa Senhora, um neném aqui dentro! Ex-clamou ela, estupefata.

Casados há mais de vinte anos, o coronel RaimundoLopes e a mulher nunca tiveram filhos. Portanto, decidiramcriar e educar a menina, dando-lhe o nome de Florinda. Geraldaensinara-lhe a ler e escrever, e, mais tarde, colocaram-na na aulade piano. Desde pequena ela era bajulada pelos seus senhores,sem, contudo, ignorar a sua condição de escrava.

Nas terras do coronel Lopes, Florinda crescera com dig-nidade; fez-se moça prendada e, com sublimidade, semeouno coração de sua raça a semente do verdadeiro e puro amorao próximo!

Todos viram pela janela a carruagem estacionar no pá-tio principal da fazenda. Isabela desceu rapidamente as esca-das e, ao aproximar-se dos recém-chegados, foi abraçada pelocoronel Lopes, seu padrinho.

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— Como vai a minha afilhada, Deus do céu?!

— Sua bênção, padrinho? Gemeu ela entre os braçosgordos e suados do coronel.

Por fim, ele soltou-a e arrebatou-lhe as mãozinhas mimosas.

— Deus a abençoe, filha!

— Estávamos todos nós ansiosos pela chegada do pa-drinho! Exclamou Isabela, sorrindo.

O corpulento coronel pôs uma manopla sobre a cabeçada donzela, dizendo:

— Diga-me, filha, como está o compadre?

— Desde a morte de mamãe que papai afastou-se dosnegócios da fazenda; Tarcísio é quem administra, mas conti-nua o mesmo irresponsável.

O coronel olhou com ternura para a afilhada, depois apuxou brandamente.

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— Venha conhecer a sua nova mucama, é uma santa me-nina!

Estacada rente à carruagem, Florinda aguardava paci-entemente. Seus cabelos negros divididos em duas tranças to-cavam-lhe graciosamente a cintura bem-feita; a blusa cor degoiaba realçava-lhe a tez morena. Seu rosto iluminou-se quan-do Isabela falou-lhe com meiguice:

— Você é ainda mais linda do que madrinha Geraldadescrevera na carta!

— Flor, esta é Isabela. Explicou o coronel.

— Iaiá é que tem bom coração! Ciciou a escrava, humilde.

Isabela sorriu e convidou-os para entrar.

— Sigam-me, por favor, papai já está ansioso pararecebê-los.

O coronel Raimundo Lopes precipitou-se escada aci-ma e, ao cruzar com Vítor pelo caminho, cumprimentou-o:

— Bom dia, Don Juan!

O escravo curvou-se numa reverência.

— Vítor, por favor, leve a bagagem de Flor para o quar-to; depois, peça à Juraci para alimentar o cocheiro e o ajudan-te. Ordenou Isabela.

Os dois escravos cumprimentaram-se tacitamente. Dosverdes olhos de Florinda nasceu o amor no coração de Vítor!

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— Bom dia, Juraci, padroeira do meu coração brasilei-ro! Bradou o espalhafatoso coronel Lopes, beijando com es-talo a testa da negra.

Juraci pôs os dentes à mostra, depois correu para a cozi-nha a ver como andavam os preparativos do almoço.

— O senhor nem me deu tempo de perguntar por ma-drinha Geralda. Reclamou Isabela, chegando à sala acompa-nhada por Florinda.

O coronel balançou o corpanzil antes de responder:

— Infelizmente, a coitada escorregou e quebrou a per-na, justo na semana da viagem.

— Oh! Meu Deus, como sucedeu isso?! Indagou acompungida donzela.

— Coisas de velha desmiolada. Fazendo estripulias demenina!

— Seu Raimundo, não seja injusto com dona Geralda!Exclamou Florinda.

O Coronel adorava fazer suspense. Isabela aguardava im-paciente.

— Geralda não tem mais idade para ficar trepando emcadeira, quando quer pegar algo em cima do guarda-roupa;mas aquela mulher não gosta de recorrer nem aos criados.Explicou ele, encaminhando-se ao barão.

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Os dois homens apertaram-se as mãos.

— Seja bem-vindo a esta casa que agora é só tristeza!Disse o barão.

— Então a cadeira caiu com a madrinha? Insistiu Isabela.

— Nada disso; ela sentiu uma vertigem e esborrachouno chão feito manga podre. Respondeu o coronel, soltando asua estrepitosa gargalhada.

— Seu Raimundo, não se refira assim àquela divina mu-lher! Censurou-o a escrava Florinda.

— Flor há de ensinar-lhe a tocar piano! Disse o coronelLopes aterrissando a manzorra na cabeça de Stefany.

Esta ignorou as palavras do coronel, apontou para a es-crava e comentou com um ar de troça:

— She has green eyes!

O barão fez um gesto de enfado.

— Flor, esta é minha sobrinha e afilhada Stefany, filhada minha irmã Graça, que mora em Londres. Informou adonzela.

Florinda sorriu para a menina, que lhe virou o rosto,desdenhosa.

— Iaiá ganhou uma mucama tão formosa, até parecemirmãs! Exclamou Juraci regressando à sala, enxugando as mãosnuma toalha alva.

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— Nós somos irmãs em Cristo, boa senhora! RedarguiuFlorinda com voz suave.

— Por falar em Cristo, onde está Judas? Perguntou ocoronel referindo-se a Atanásio, o capataz.

— Credo, coronel; logo de quem o senhor tem de selembrar. Disse Juraci, persignando-se.

Outra gargalhada estrondosa de Raimundo Lopes fez-se ouvir.

Juraci levou Florinda para o interior da casa-grande.

— Eu nunca vi uma escrava tocar piano! ComentouStefany, incrédula.

— Quem sabe Flor dará um recital para nós numa noi-te dessas! Sugeriu Isabela, consultando o pai.

O velho assentiu com a cabeça.

— Que ideia louvável! Verão que talento tem essa moça,que sensibilidade musical!

Raimundo Lopes falava agitando os braços como umpolítico num discurso.

— A black star! Escarneceu Stefany torcendo o nariz.

— Flor é muito mais do que uma estrela, menina, elatem as mãos de uma fada! Exaltou o coronel de olhos fecha-dos.

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Stefany aproveitou o ensejo para retirar-se do recinto.

A chegada de Florinda à cozinha fez suscitar sentimen-tos diversos: Zulmira olhou-a com indiferença; Silvana fitou-a com indisfarçável inveja; já, Augusta, contemplou-lhe a for-mosura!

— Aqui está a sua refeição, minha filha, você certamen-te tem fome. Falou Juraci à Florinda, em tom maternal.

— Quem traz a alma em paz há de estar sempre bemalimentado, senhora. Replicou a escrava novata.

Augusta pôs-se a repetir as palavras em pensamento.Após um breve silêncio, Vítor dirigiu-se ao cocheiro do co-ronel Lopes:

— Os senhores pretendem retornar ainda hoje?

Florinda ergueu os olhos da cuia, procurando pela vozde barítono que tanto a agradara! A um canto, lá estava o donoda voz, o escravo que a cumprimentara na chegada. Seus olhoscruzaram-se pela segunda vez. Então, ela desejou ardentemen-te ouvi-lo para sempre!

— O coronel não dorme fora de casa, ele diz que o ma-cho precisa ficar perto da fêmea. Respondeu Tião, o braçodireito de Raimundo Lopes.

— Além do que, a esposa do coronel encontra-seacamada. Completou Florinda.

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— Ah! Dona Geralda. Que Deus dê a ela a melhora!Murmurou Augusta.

— Não se aflija, mocinha, logo a patroa estará de pé.Falou Pedro, ajudante de Tião, que ficara o tempo todo fi-tando Augusta com o rabo do olho.

— Por um acaso você é médico, negrinho?

— Não, seu Tião, é só para deixar o coração da moci-nha aliviado.

Augusta sorriu para Pedro e colocou a mão sobre o peito.

— Aqui nesta cozinha negro come calado; lugar de con-versa fiada é na senzala. Rosnou o capataz, entrando inespe-radamente no recinto.

De chicote em punho, exalando um cheiro forte de ta-baco, Atanásio percorreu a cozinha e, estacando diante deFlorinda, examinou-a dos pés à cabeça sem nenhum pudor,com olhos cheios de luxúria! Silvana sorria pelo canto da boca;Augusta tossiu seco; impassível, a velha Zulmira fumava umcharuto sentada no pilão. O capataz pigarreou outra vez, cus-piu no chão e, ao virar-se, deparou-se com Tião; reconhecen-do-o, acenou-lhe com o cabo do chicote e saiu arrastando asbotas de borracha.

— Quando esse homem estiver por perto, minha filha,evite conversar; ele é pior do que Satanás! Alertou Juraci,mirando Florinda com um olhar benevolente.

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Na sala de jantar o clima era festivo. O barão Raul Vilaçatinha à mesa farta comida, vinho do bom e a alegria de rece-ber para o almoço o compadre coronel Raimundo Lopes!

— Com licença, senhor barão. Pediu o capataz.

Raul permitiu-o aproximar-se com um gesto de mão.

— Ai, que susto, monster! Gemeu Stefany, encolhen-do-se na cadeira.

— A carga de rapadura e cachaça do coronel Lopes já estáembalada e arrumada na carruagem. Comunicou Atanásio.

O barão limitou-se a assentir com um aceno de cabeça.O capataz fitou Raimundo Lopes com satisfação. O déspotasentia-se bem na presença do coronel, pois este massageava-lhe o ego com suas piadas, fazendo-o escancarar a boca numriso de dentes estragados.

— Geralda fala que a melhor rapadura da região é a docompadre Raul!

— A negrada é preguiçosa, coronel, mas debaixo do meuchicote a rapadura fica mais doce do que mel! Garantiu Atanásio.

Juraci colocou sobre a mesa travessas fumegantes, dasquais exalava um cheiro que inebriou a todos! Depois, dei-xou a sala de jantar como se tivesse visto o diabo pela frente.

— Barrabás, qual é a nova prisioneira? Inquiriu o coro-nel Lopes, servindo-se de feijoada, seu prato predileto.

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Atanásio raspou a garganta antes de falar:

— Por enquanto a bichinha não está no laço, a negrinhaé arisca como capivara. Respondeu ele, pensando em Silvana.

Raul Vilaça fechou a cara. Ele desaprovava o comporta-mento do seu capataz, do qual os negros sempre se queixavamde maus tratos. E, com um olhar de censura, dispensou-o.

Assim que Tarcísio assomou à porta, o coronel fitou-ocom olhos bovinos; e, enquanto mastigava ruidosamente fei-to um leão enorme pedaço de carne, convidou-o:

— Venha participar conosco da Santa Ceia, moço, estáabençoada!

O mancebo sentou-se ao lado do pai, que não gostavados seus atrasos às refeições.

— Estive conferindo a produção deste mês; acredito quevamos precisar de umas dez carretas para transportá-la. In-formou Tarcísio, procurando atrair a atenção do velho.

Este, no entanto, rebateu seco:

— Veja se você consegue uma venda melhor do que aanterior.

O jovem sorveu um gole de vinho antes de responder:

— Desta vez será diferente, meu pai, eu irei pessoalmen-te cuidar dos negócios.

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— Jesus, antes que você realize o milagre das vendas,passe-me essa garrafa de vinho tão divino!

Ao receber a garrafa das mãos de Tarcísio, o coronelencheu a taça novamente; depois, desabotoou o colarinho dacamisa, deixando à vista o pescoço roliço e avermelhado, doqual escorria um suor que lhe encharcava o peito.

— Padrinho, lembre-se de que o senhor regressará ain-da hoje. Alertou-o Isabela, preocupada.

— Deixe o compadre beber em paz, filha. Interveio obarão.

— Não é todo dia que a gente tem a oportunidade deestar diante do bem e do mal, menina, por isto quero meesbaldar! Redarguiu o coronel Lopes relanceando os olhos: danegra Juraci que acabava de entrar com outra travessa de arrozao capataz parado na porta da sala feito um cão de guarda.

Dito isto, a gargalhada de Raimundo Lopes ecoou comouma trovoada pela casa-grande.

— Coronel, que surpresa agradável o senhor aqui hoje!Comentou o mancebo.

— Não se espante, padrinho, meu irmão vive no mun-do da lua! Adiantou-se Isabela.

Tarcísio mirou a irmã com olhos interrogativos.

— Surprise, padrinho! Falou Stefany.

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Mas ele ignorou a menina, mantendo os olhos fixos emIsabela, que lhe esclareceu:

— Eu contei a você que madrinha Geralda presenteou-me com uma escrava.

Demonstrando total indiferença à novidade, o rapaz re-plicou:

— E você acha que quem tem uma fazenda para admi-nistrar, dezenas de escravos para governar, vai lembrar-se decoisinhas insignificantes?!

A pequena Stefany olhava encantada para Tarcísio; tinha-lhe fascínio! Ela acompanhava-lhe os gestos, decorava-lhe aspalavras, enfim, defendia-o e bajulava-o a todo momento!

— You have many problems, padrinho!Disse a garotacom voz clara.

Todavia, ele não a escutava, tampouco notava-lhe a pre-sença.

Tarcísio e Maria da Graça, mãe de Stefany, eram dois ir-mãos completamente diferentes: ele fora uma criança retraída,ausente na escola; enquanto que ela era expansiva e estudiosa.Mas ambos tinham em comum a soberba. Dona Esmeralda ti-vera Isabela quando os dois estavam grandes. Esperançosa devê-los mais unidos e companheiros, a baronesa vira no nasci-mento da filha caçula a solução para tanta desavença. Porém,tornaram-se ainda mais distantes ao disputar a atenção da irmã,

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sem, contudo, alcançarem o objetivo. Isabela, à medida que foracrescendo, compreendendo a discórdia entre eles, afastara-se.Por conseguinte, toda ternura do seu coração viera desaguarem Vítor, para decepção total de Tarcísio e Graça que, por iro-nia do destino, vieram a ser compadres.

— Bem, pessoal, já que estou de pança cheia, vou andan-do para fazer a digestão. Anunciou o coronel, erguendo-se.

— O compadre não quer esperar o café da tarde? Per-guntou o barão, levantando-se também.

— Compadre Raul sabe que eu não durmo fora da toca.Respondeu-lhe Raimundo Lopes, apertando-lhe a mão comvigor.

— Juraci, vá buscar Flor para se despedir de padrinho.Pediu a donzela com olhos molhados.

Ao vê-la adentrar a sala, o coronel avançou em sua dire-ção, arrebatou-lhe as mãos e falou com ênfase:

— Flor, escreva-nos nem que sejam algumas linhas, se-não morreremos de solidão!

— Jamais me esquecerei do que o senhor e dona Geraldafizeram por mim; nas minhas orações rogarei a Deus que lhesdê saúde e paz!

Todos a escutaram embevecidos! Tarcísio Vilaça fitoua escrava com olhos brilhando de volúpia! O coronel aproxi-mou-se do mancebo, dizendo-lhe:

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— Eu prometo voltar para o seu casório com Alice; mastome tenência, moço, Maria Madalena pode arrepender-se edesistir por causa da demora.

Raul Vilaça fez uma careta de insatisfação; o velho te-mia pelo futuro de Alice, pois não via conveniência nesse en-lace. Quanto à moça, achava-a pacata e submissa; já o filho,considerava-o devasso e insensato.

— Tarcísio há de ter juízo, padrinho, e tomará uma de-cisão o mais rápido possível.

O rapaz ignorou as palavras da irmã, retrucando:

— Não pretendo desperdiçar minha mocidade amar-rando-me a alguém.

Enquanto falava, procurou nos olhos de Florinda a cum-plicidade que nunca haveria de encontrar. A escrava, que seachava ao lado de Juraci e à pequena distância de Vítor, bai-xou os olhos em sinal de repúdio. E, como ave pressentindo obote da cascavel, Florinda refugiou-se na cozinha. Tarcísioacompanhou-lhe os passos de garça faceira. E, antes de se en-caminhar para a biblioteca, sentenciou:

— Alice não tem iniciativa nem para se arrepender, coronel.

O barão conduziu Raimundo Lopes até à carruagem.Isabela e Vítor olhavam da janela o veículo cruzar a porteirae, em pouco tempo, perder-se de vista na primeira curva daestrada.

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NNNNNOOOOOIIIIITTTTTEEEEE

A fogueira estava acesa perto da senzala. Estrelas cintila-vam no céu onde a lua majestosa clareava a noite! Em volta dafogueira os escravos bebiam cachaça, tocavam tambor, canta-vam e dançavam alegremente! Comemorava-se afinal, os oi-tenta anos do negro Salvador: homem valente, íntegro, amadoe respeitado por todos! Mutilado de uma perna, ele era consi-derado imprestável para a plantação e/ou qualquer outro ser-viço, devido, também, ao avançado da idade. Não obstante àsua deplorável situação de invalidez, todos da sua raça conside-ravam-no um oráculo. Fazia exatamente quinze anos que onegro Salvador e o capataz desentenderam-se. Tal sucedido cau-sara revolta nos escravos, tamanha fora a covardia de Atanásio.

A filha única de Salvador e Juraci, Leonora, fora perse-guida incessantemente pelo capataz. Este só lhe dera sossegoquando, apavorada, rendera-se às suas ameaças. Leonora te-mia que o seu algoz a delatasse a seus pais, revelando-lhes osencontros furtivos que mantinha com Valentino. E, para sever livre desse escravo, o desalmado Atanásio vendeu-o logoque soubera da gravidez de Leonora. Esta muito padeceranuma gestação complicada e falecera no parto de Rosinha.

- CAPÍTULO 3 -

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Percorrendo o canavial numa tarde ensolarada, Ataná-sio flagrara Salvador narrando a outro escravo a história desua filha morta.

— Leonora e Valentino pensavam em se unir com asbênçãos de Deus! Falava o pai, enquanto grossas lágrimas mis-turavam-se ao suor do rosto.

— Vida difícil, seu Salvador! Lamentou o interlocutor.

— A coitada nem chegou a ver a menina nascer, porcausa daquele safado! Acusava Salvador, batendo com a foicenum tronco de árvore.

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— Vida difícil, seu Salvador! Repetia o outro escravo.

— Desde que esse capataz veio para cá, só tem aconteci-do desgraças! Afirmava Salvador, pesaroso.

De repente, Atanásio surgiu ante os dois homens.

— Que conversa é essa, negro? Interrogou o capataz comarrogância.

— Seu Salvador está apenas abrindo o coração a um ami-go!

Atanásio soltara uma gargalhada zombeteira.

— Negro não tem alma nem coração, é cria do diabo!Dissera ele com insolência.

Trêmulo de raiva, Salvador revidou:

— Então vosmecê é o próprio diabo!

— Calma, seu Salvador, não vale a pena discutir; o ho-mem branco é quem sempre tem razão. Aconselhara o escra-vo, temendo pela vida do companheiro.

— Não quero saber de negro preguiçoso aqui na fazen-da; portanto, voltem para a lida antes que o chicote cante nolombo. Ameaçara o capataz, virando as costas.

Obedientemente, Salvador pegara a ferramenta e, numgesto de desabafo, brandia-a no ar e resmungava. Atanásioescutara os grunhidos. Ao verificar do que se tratavam, assus-tara-se com o escravo caminhando às tontas de foice erguida;

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e, sem hesitar, o facínora sacara do revólver e atirara no infe-liz! A bala acertara Salvador na coxa, fazendo-o vergar-se dedor!

— Ai! Gemera o pobre homem.

— Negro traiçoeiro! Rosnara Atanásio, afastando-se.

O escravo carregou Salvador nos ombros até à senzala,onde deitara o ferido sobre um catre velho.

— Chame Juraci, Chico, depressa! Implorava o baleado.

Salvador perdera completamente uma perna, tornando-se inválido para o serviço na lavoura. Não obstante a suainvalidez, o escravo prestou serviços mais adequados à sua con-dição física até que, com o avançado da idade, além de umbraço imobilizado, ele achava-se recolhido à senzala.

Era o aniversário de oitenta anos do negro Salvador.Isabela passou às mãos de Florinda um embrulho em papelprateado. A escrava recebeu-o, sorriu e disse:

— Iaiá tem um coração de ouro! Juraci contou-me docarinho que vosmecê demonstra por seu Salvador.

A donzela retribuiu-lhe o sorriso, confessando com mei-guice:

— É verdade, Flor; quando eu era menina, sentava-menos seus joelhos e adorava puxar-lhe as barbas grisalhas.

A cantoria dos negros ecoava por toda a fazenda, numa

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homenagem efusiva a Salvador, o escravo mais amado e res-peitado pelo povo da sua raça!

— Não seria melhor eu ficar? Iaiá pode precisar de mim.

— Vá, Flor; leve esse presentinho para ele e aproveite aoportunidade para conhecer um grande homem!

A escrava fitou indecisa a filha do barão.

— Mas...

Isabela interrompeu-a com brandura, dizendo-lhe:

— Divirta-se, Flor, Vítor vai acompanhá-la.

Os dois escravos desciam o morro em direção à senzala,onde o som da batucada enchia a noite de uma alegriacontagiante!

— Que linda noite! Murmurou Florinda.

— O céu nunca esteve tão repleto de estrelas! Comple-tou Vítor.

— Fale-me de Salvador. Pediu ela num sussurro.

— Ele é uma pessoa iluminada, que consegue amar ohomem branco mesmo na sua imperfeição.

— Eu comungo dessa opinião. Concordou Florinda.

— Salvador também nos ensinou que, se o homem bran-co fosse menos imperfeito, não nos escravizaria.

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Nas proximidades da senzala, Florinda assustou-se como capataz que, encostado a uma árvore, acompanhava tudode longe.

— Já passou da hora desse velho virar defunto. Rosnouo capataz.

— Esse é Atanásio, o capataz da fazenda. Explicou Vítor.

Assim que Augusta viu Florinda chegar, correu para amãe que sempre se escondia num canto mais afastado.

— Mãe, Flor veio, mãe! Contou ela, com o coração pal-pitante!

— Quando a morte chegar também, mande entrar! Re-trucou a velha Zulmira.

Augusta afastou-se, deixando a mãe resmungando sozi-nha.

Os escravos aglomeraram-se em torno de Salvador. Vi-eram pedir-lhe a bênção, desejar-lhe saúde! Todos queriamparticipar da festa, tomar da cachaça e dançar ao ritmo dabatucada.

— Ô, velho Salvador, vosmecê com essa idade nacacunda está mais forte do que uma rocha! Abraçou-o Chico,amigo de longa data.

— Que nada, Chico, a qualquer hora a morte vem eengole o que já é dela.

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— Vosmecê há de enterrar muitos de nós, Salvador!Garantiu Juvenal, apertando a mão do velho.

Do seu ponto de observação, o capataz continuava imó-vel, vigiando a euforia dos negros. Ele esfregou as mãos aoavistar Silvana chegar carregando um tabuleiro com gulosei-mas, precedida por Juraci.

— Eu preciso laçar essa potranca! Grunhiu Atanásio,devorando a escrava com os olhos.

A cantoria dos negros, levada pelo vento da noite, che-gava suave às fazendas da vizinhança! Debruçada no beiralda varanda de sua casa, Alice Madureira contemplava as es-trelas, esperando pelo noivo Tarcísio Vilaça. Este, solitáriona biblioteca, fumava um cigarro após o outro. Desde queconhecera Florinda, o mancebo vinha desejando a escravacomo nunca desejara uma mulher em toda a sua vida!

O velho Salvador recebeu a escrava recém-chegada comsolenidade. Segurou-lhe as mãos, fitou-lhe os olhos verdes,murmurando:

— Eu já vi muitas coisas belas nesta vida, mas nada com-parado à sua formosura!

— Obrigada, senhor! Agradeceu Florinda, cuja simpli-cidade sempre sobrepujou a vaidade.

Mas o que mais impressionou Florinda não foram as pa-lavras generosas do velho, e sim, a luz que irradia da sua alma!

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— Onde está minha neta Rosinha que não vejo? Per-guntou Salvador à mulher.

De pé a seu lado, Juraci respondeu prontamente:

— Tão logo eu a encontre, trago-a para pedir-lhe a bên-ção.

Sentado no seu banco de madeira rústica, Salvador con-templou Florinda mais uma vez; tomou um trago de cachaçae falou-lhe com voz firme:

— Quando o coronel Raimundo Lopes e eu nos conhe-cemos, ainda éramos muito jovens. Ele sempre foi uma boapessoa!

— Para quem seu Raimundo vendeu as terras antes dese mudar daqui? Quis saber Florinda sentando-se perto dovelho.

— Para Tonico Madureira, sogro do filho do barão.

— Dona Geralda até hoje lamenta que seu Raimundotenha praticamente perdido as terras. Revelou Florinda, bai-xando os olhos.

O velho cofiou a barba branca, tomou mais um gole decachaça, depois disse com pesar na voz:

— O coronel é um homem bom, generoso, mas não en-tende de terras; e, por causa de más companhias, de promes-sas falsas...

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— Segundo dona Geralda, a política endividou-o irre-mediavelmente. Atalhou ela.

— O coronel sentiu-se obrigado a abandonar as terrasantes mesmo de vendê-las, ou perdê-las, tamanha fora a der-rota. Confirmou Salvador.

— Que pena! Lastimou Florinda.

— Aí, apareceu Tonico Madureira: latifundiário, ganan-cioso, e engoliu a onça peada como leão faminto! Concluiu ovelho com uma nota de tristeza na voz!

Rosinha abraçou Salvador, beijando-o na testa.

— Parabéns, vô! Disse ela sorrindo.

— Conte a novidade a seu avô. Instigou-a Juraci.

— É que iaiá autorizou Flor a me ensinar a ler e escrever.

O velho sorriu com os olhos, enquanto segurava as mãosda neta.

— Começaremos amanhã, Rosinha. Prometeu a pro-fessora.

— Meu sonho é um dia ler um livro inteiro! Confessoua negrinha, cheia de planos.

Juraci escutava com lágrimas nos olhos.

Mais adiante, um grupo de escravos conversava alegre-mente, enquanto um garrafão de aguardente passava de mão

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em mão. Silvana, porém, afastara-se por despeito. Ela não seconformava com o fato de Florinda atrair a atenção de todos,tampouco lhe agradavam as tarefas de lidar na horta, tratardas galinhas e lavar as privadas. Por isto, invejava a sorte deFlorinda que executava serviços caseiros: arrumar os quartos,espanar os móveis e engomar as camisas dos patrões. Enquan-to caminhava a esmo, distraída, nem percebeu que se distan-ciara da senzala. De repente, alguém agarrou-a por trás.Silvana conseguiu dar um grito. A pessoa tapou-lhe a boca,ao mesmo tempo em que tentava imobilizá-la.

— Cale a boca, negrinha. Ordenou o capataz.

— Largue-me, cão. Rugiu a escrava, tentando morder amão do seu algoz.

Atanásio forçou-a ao chão, lambendo-lhe o pescoço.

— Vosmecê me deixa maluco, Silvana!

— Solte-me, desgraçado, nojento!

Suas palavras eram abafadas pela boca do capataz, babentae rescendendo a ovo choco. E, num esforço extremo, ela arra-nhava-lhe a cara, provocando-lhe uma dor insuportável.

— Ai, cadela, miserável! Berrou ele, jogando-a no chãocom brutalidade.

De baixo, Silvana ameaçou-o, ofegante:

— Amanhã, todo mundo saberá o que vosmecê fez coma pobre da Divina, demônio!

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Pisando-lhe o ventre com a bota suja de terra, Atanásiodesabotoava tranquilamente a calça antes de revidar:

— Vou mostrar-lhe como sucedeu com a sua amiga Di-vina, que é para vosmecê contar melhor.

Atanásio suava de excitação ao ver o terror estampar-seno rosto da escrava. Esta emudeceu completamente quando ofacínora sacou de uma faca, cuja lâmina reluziu na noite. Mas,nesse exato momento, soou uma voz quebrando o silêncio:

— Seu Atanásio, pare de malvadeza.

O capataz assustou-se com a aparição repentina de umescravo.

— Suma daqui, Mané-Bento. Esbravejou o agressor.

Manoel era um negro alto, magricela, que vivia peloscantos folheando uma Bíblia, mesmo sem saber ler. Daí a ori-gem de sua alcunha. A escrava aproveitou o instante de dis-tração do capataz e empurrou-o, enérgica. O seu malfeitorvacilou, quase perdendo o equilíbrio.

— Vosmecê me paga, Mané-Bento! Jurou Atanásio en-quanto se retirava, arrastando as botas de cano longo.

Os dois escravos acompanharam o capataz afastar-secom passadas largas, até que se perdesse por sob as árvoresfrondosas.

— Esse bandido está atrás de mim há tempo! RevelouSilvana ao tio.

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Instintivamente, Mané-Bento abriu a Bíblia e fixou nela osolhos miúdos; depois olhou a sobrinha e profetizou pesaroso:

— Esse covarde não há de lhe dar sossego, proteja-sedesse homem.

— Eu temo agora mais pelo senhor, tio! Falou Silvana,tirando a poeira da roupa.

Ele fechou a Bíblia, encostou-a ao peito, numa expres-siva demonstração de respeito e certeza de proteção! E os doisvoltaram à senzala, onde a batucada continuava ininterruptae contagiante.

Finalmente, Alice desistiu de aguardar o noivo na va-randa de sua casa. Recolhida a seus aposentos, revirava-se noleito, tentando conciliar o sono. Com muito custo, adorme-ceu. Sonhou que estava num bosque. Sentada num banco depedra, esperava pelo noivo Tarcísio que prometera buscá-lapara uma viagem. Atrás de si, a fonte murmurejava docemen-te! O vento agitava as folhagens, roçando-lhe o rosto comleveza!... De repente, ela avistou Tarcísio montado no seucavalo baio, galopando em sua direção. A cinco metros deAlice, uma cascavel chocalhou ruidosamente. Magnetizadapela víbora, ela se manteve estática. Ele apeou-se do animal e,indiferente à cena, postou-se junto a uma roseira. Aflita, elaapontou o réptil, agora a três metros de distância. O noivo,entretanto, limitou-se a sorrir. Em vão, Alice tentou gritar;mas Tarcísio permaneceu imóvel, assistindo a tudo com um

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misto de prazer e sedução! Rastejando, a cobra aproximava-se da sua vítima indefesa, preparando-se para o bote assassi-no. As mãos da desprotegida moça suavam, o pavor domi-nou-a sobremaneira. Quando algo apertou-lhe o pescoço,sufocando-a, Alice despertou tremendo, ao mesmo tempoencharcada de suor e gelada. E, em soluços, sentou-se na camasentindo-se desamparada.

Com o cigarro apagado entre os lábios, o filho do barãopasseava irrequieto de um lado para outro na biblioteca dacasa-grande. Completamente embriagado, Tarcísio uivava onome da escrava Florinda, maculando-lhe a alma, com inten-ções libertinas!

No silêncio da madrugada, Florinda recostou a cabeçano peito de Vítor, que lhe afagou com ternura os cabeloscacheados!

— Nunca antes havia me sentido tão feliz! Murmurouela, aconchegando-se mais a ele.

— O amor desabrochou em meu coração quando a vipela primeira vez! Confessou ele, fitando-lhe os olhos.

— Mesmo assim, tenho medo, Vítor... Não sei por quê!

— Confie em mim, Flor! Encorajou-a, estreitando-a nosbraços.

E o primeiro beijo aconteceu, cabendo tão somente àlua o privilégio de testemunhar o segredo de dois coraçõesque se amam!

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RRRRRECECECECECIIIIITTTTTAAAAALLLLL

Mais um dia nasceu. Os negros espalharam-se pelo ca-navial na azáfama cotidiana. A escrava Zulmira passou a noi-te em claro, queixando-se de dores no peito, além de sentirenjoos e falta de ar. Sem a mínima condição para o serviço nacozinha da casa-grande, a infeliz permaneceu na senzala aoscuidados da filha Augusta. Esta levava-lhe os caldos prepara-dos por Juraci, os quais eram rejeitados pela doente que pre-feria mascar o fumo e dirigir impropérios a Deus e ao diabo.

— Aquele que estiver mais desocupado que me leve.Dissera ela inúmeras vezes em meio aos acessos de tosse.

Uma bela manhã! O vento arrastava as folhas pelo chãodo jardim onde Florinda regava a roseira. No verde dos seusolhos via-se o brilho da felicidade! Atenta às suas funções, aescrava não se deu conta da presença de Tarcísio Vilaça. Para-do a certa distância, o mancebo devorava-a com os olhos.

— Isabela informou-me que você nos presenteará comum recital hoje à noite.

Ela se sobressaltou ao escutar a voz atrás de si; erguendoo corpo, virou-se para fitá-lo de frente.

- CAPÍTULO 4 -

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— O sinhozinho queira perdoar-me, eu não o tinha vis-to chegar. Desculpou-se Florinda.

E, para sua surpresa, o filho do barão aproximou-se epegou-lhe as mãos. Tarcísio quis ver de perto aquela moçaque, por ironia do destino, nascera escrava.

— Minha irmã está ansiosa por esse recital, que fará mui-to bem ao papai! Disse ele, referindo-se ao evento pela se-gunda vez.

— Eu sei que o barão ainda está de luto, por isso receiodesapontá-la.

— Flor, você pode ser a alegria que falta nesta casa!

— Sinhozinho, eu sou apenas uma escrava cumpridorados meus deveres.

O diálogo veio a ser interrompido por um escravo que,a pedido do barão, foi chamar o filho. Este fez uma reverên-cia à Florinda e desapareceu do jardim.

Os convidados para o recital chegaram pontualmenteàs dezenove horas e, espalhados pela ampla sala de visitas dacasa-grande, aguardavam com expectativa o início da apre-sentação. Isabela os recebera com simpatia e graça, dignas deuma legítima anfitriã.

A um canto da sala encontrava-se dona Marília Trinda-de: fiel amiga da falecida baronesa dona Esmeralda, além de

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apreciadora emérita de música clássica e dos apetitosos boli-nhos de milho da negra Juraci. À sua esquerda, portadora dosmesmos requintes, achava-se Iolanda. As duas irmãs lamen-taram profundamente a morte da companheira de longa data,a ponto de não suportarem acompanhar-lhe o enterro. IrmãsTrindade, as duas solteironas da Corte, também conhecidassegundo as más línguas como as viúvas de Matusalém, erampessoas gradas da sociedade e que, com suas presenças,enalteciam qualquer evento.

— Este licor é maravilhoso! Exclamou Iolanda Trinda-de, a modista mais requisitada da Corte.

Marília, por sua vez, gozava da aposentadoria de profes-sora, tendo lecionado num colégio para moças de famíliasnobres.

Logo adiante das distintas senhoras achava-se AnteroBarbosa, o alfaiate do vilarejo. Ao pé deste, a esposa e a boni-ta filha por nome Sabrina.

— Aceita um licorzinho, seu Antero? Ofereceu Juraci.

— Um cálice me fará bem! Respondeu ele.

A negra serviu-o sorridente. Sabrina e a mãe, no entan-to, preferiram limonada.

— Isabela, você está deslumbrante!

— Obrigada, conselheiro, quanta gentileza de sua parte!

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Trajando um magnífico vestido longo, de fato a filha dobarão estava esplendorosa!

— Concordo com o meu marido; e, quando nosso fi-lho Felipe conhecê-la, ficará encantado!

Esta que acabara de falar é dona Bilu: temida pela vizi-nhança por ter a língua solta, ela passa o tempo na janela dosobrado onde mora, de olho na vida alheia. Ademais, torna-ra-se uma pessoa enfadonha por exaltar exageradamente o fi-lho que, atualmente, reside na França.

Isabela limitou-se a sorrir, depois se dirigiu educadamen-te ao conselheiro:

— O senhor deseja outro licor?

— Sim, por favor. Aceitou o velho.

Dona Bilu esperou uma negra terminar de servir o ma-rido, para alertá-lo:

— Cuidado, Mendonça, lembre-se de que você precisame ajudar a escrever uma carta para Felipe ainda hoje; não váembebedar-se, hein!

O barão Raul Vilaça observou a filha encaminhar-separa receber mais convidados, convencido de que a sua meni-na transformara-se numa linda moça, vaidosa e prendada! Ovelho pôs-se a se lembrar daquela garota de tranças, agarradaà saia da mãe e a esconder no armário os doces que ele lhe

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trazia até que as formigas os descobrissem. Sabê-la órfã tãoprecocemente doía-lhe o coração! Portanto, como privá-lada alegria de realizar esse recital?! Refletia o pai de Isabela.

— O doutor Santiago virá, barão? Perguntou-lhe o con-selheiro, arrancando-o dos seus devaneios.

— Talvez apareça, caso consiga voltar de viagem em tem-po. Respondeu Raul, para depois focar a atenção no filho queconversava animadamente com o coronel Pimenta, seu vizi-nho confinante.

Os dois homens discutiam sobre o plantio da cana, aprodução da cachaça e da rapadura, entre outros assuntos.

— Coronel, se a gente não valorizar os nossos produ-tos, quem há de valorizá-los? Disse Tarcísio.

— É o que eu tenho dito por aí, rapaz. Aquiesceu o fa-zendeiro, passando a mão pela careca.

— Eu sou testemunha de que o senhor tem levantado avoz em prol...

— Veja bem, moço, tudo que eu tenho na vida conse-gui com muito esforço, suando a camisa. Atalhou Pimenta,esvaziando o cálice de um só gole.

O mancebo ouviu-o compenetrado.

— Acredito piamente no senhor.

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— Por isso, não admito que esses pelintras da Corte ve-nham botar preço na minha mercadoria! Completou o coro-nel, vermelho de raiva.

— Coma um docinho, João, é bom para aplacar os ner-vos. Interrompeu-o a mulher.

— Não, de jeito nenhum, Olívia; não se esqueça de quepimenta e doce são inimigos aqui dentro. Explicou o fazen-deiro espalmando a mão sobre a enorme barriga, enquantotirava bolinhos de milho de uma bandeja.

O filho do barão começou a enfastiar-se com todo aque-le falatório do coronel João Pimenta. Por isso, pediu licençaalegando não ter ainda cumprimentado o conselheiro. Na ver-dade, é que Tarcísio se irritara com a demora do início do reci-tal, por não caber em si de vontade de ver a escrava Florinda.

— Boa noite, conselheiro, como tem passado?

— Muito bem, obrigado! Respondeu Mendonça.

Dona Bilu fitou Tarcísio, depois disparou à queima-roupa:

— É verdade que você é o sucessor do barão na admi-nistração da fazenda?

— Confesso que a minha aptidão é outra, dona Bilu;todavia, farei o que for possível para agradar papai!

— Eu sei que a sua formação é advocacia; sendo assim,compreendo perfeitamente a dificuldade que você tem em

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lidar com os negócios da fazenda. Disse a mulher do conse-lheiro.

— Tarcísio é jovem, Bilu, aprende as coisas com extre-ma facilidade.

Ela fez ouvidos moucos às palavras do marido, rebatendo:

— Felipe também é advogado, mas não se submeteria aexercer nenhuma outra função.

Aborrecido com a ladainha tantas vezes repetida pordona Bilu, Tarcísio procurava a todo custo uma maneira dese esquivar. Relanceando os olhos pelo salão, assim que divi-sou a irmã por entre os convidados, foi-lhe ao encontro parasaber o porquê do atraso da apresentação.

— Não precisaria falar desse jeito, Bilu. Ele pode ter seofendido. Admoestou-a Mendonça.

— Moço mal educado, não tem qualidades para ser umadvogado. Redarguiu ela sem fitar o marido.

— Hello, Bilu. How are you?

A pequena Stefany emergiu no recinto exibindo um belovestido cor-de-rosa!

— Olá, querida Stefany, cadê os beijinhos da vovó?!

A garota enlaçou-a pelo pescoço, depois se sentou a seulado. Imediatamente, uma escrava trouxe-lhe limonada e umprato com bolinhos.

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— Thank you. Agradeceu Stefany.

— Eu não sabia que você gosta de música clássica, bo-nequinha! Admirou-se dona Bilu, passando a mão pelos ca-belos cacheados da menina.

— Eu prefiro jazz, but all right.

Assim como dona Bilu, as pessoas em volta riram da res-posta sincera e espontânea de Stefany.

Para grande surpresa da família Vilaça, acabava de pene-trar no salão de festas Tonico Madureira: trajando um eleganteterno cinza; entrara em cena o ator mais indesejável da peça. Haviamais de dez anos que o maior fazendeiro da região não punha ospés na casa-grande dos Vilaça; daí, a perplexidade causada pelasua aparição inesperada. De braço dado com a esposa Márcia,precedido pela filha Alice, ele avançou salão adentro.

Tarcísio recebeu-os sem entusiasmo, beijando a noivacerimoniosamente na mão.

— Você não tem aparecido lá em casa por esses dias.Repreendeu dona Márcia, fitando o genro.

Este baixou os olhos, depois respondeu evasivo:

— Não tenho tido tempo.

— Mamãe, a senhora se esqueceu de que Tarcísio é quemestá administrando a fazenda? Indagou Alice, aconchegan-do-se ao noivo.

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Mas dona Márcia não aceitou a justificativa da filha; e,ainda com os olhos postos nele, censurou-o:

— Você precisa ser mais atencioso com a sua noiva, jáque pretendem casar-se em breve.

Tarcísio retribuiu-lhe o olhar duro, rebatendo:

— Deixe que a gente cuide da nossa própria vida, donaMárcia.

Alice baixou a cabeça, envergonhada.

— Márcia, a rotina não traz nenhum benefício a umrelacionamento. Interveio Tonico, sentindo-se incomodadocom aquela situação.

Márcia Cristina Madureira, porém, encarou o maridodesaprovadoramente. De família nobre, ela herdara dos paismuitas terras e vários imóveis na Corte. Casara-se velha paraa época e, mais tardiamente ainda, engravidara-se de Alice.Fora uma gestação de grande risco devido, também, à sua saú-de debilitada. Quinze anos mais velha do que Tonico, tal di-ferença de idade sempre lhe trouxera sérios constrangimen-tos: de início, julgavam-na tia do seu namorado; e, com o pas-sar do tempo, tendo como agravantes a sua falta de vaidade edesleixo no vestir, havia quem a confundisse com a mãe doseu próprio esposo, homem garboso e de charme irresistível!Mas, desse enlace cheio de controvérsias nascera Alice, suacompanheira durante as intermináveis viagens de Tonico.

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Márcia dera à filha o nome da avó, com a qual a pequena separecia física e interiormente.

À chegada da família Madureira, tanto as irmãs Trindadequanto o conselheiro Mendonça, desviaram o olhar, por con-siderarem inaceitável a presença de Tonico Madureira nas ter-ras de Raul Vilaça. Apenas dona Bilu murmurara, suspirante:

— Eta homem bonito!

Depois de levar a menina Stefany para dormir, Isabelaconduziu a escrava Florinda até o piano; e, virando-se para aplateia que se acomodara num silêncio respeitoso, apresen-tou-a com voz firme e enfática:

— É com indizível prazer que premio tão seleto públi-co, nesta noite, com a musicalidade de Florinda!

Aplausos soaram por todo o ambiente.

— Meu cordial boa noite! Saudou a escrava à beira dotablado.

— Linda moça! Balbuciou o conselheiro ao ouvido damulher.

— O programa deste recital foi por mim preparado comabsoluto desvelo; portanto, espero que os senhores apreciem!

— Que olhos verdes lindos! Exclamou um dos amigosarruaceiros de Tarcísio. Este, enciumado, beliscou-lhe o braço.

Já sentada ao piano, ela anunciou:

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— Como primeiro número, Adeus ao piano, de Beethoven.

Florinda pousou as mãos delicadas sobre o teclado, doqual extraiu as notas que encheram a sala de uma melodiasuave!

— É difícil acreditar que essa moça seja escrava! Mur-murou Alice ao ouvido de Tarcísio, que sequer a escutara.

Pelo semblante dos espectadores, notava-se claramenteque estavam maravilhados. Os aplausos romperam-se febris.Fez-se novo silêncio, para que a pianista anunciasse o segun-do número, causando suspiros na plateia.

— Adoro Chopin! Exclamou Iolanda Trindade.

— Como é lindo esse Noturno! Completou sua irmã.

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Extasiado, Tarcísio Vilaça acompanhava-lhe o movi-mento das mãos e o balançar gracioso do corpo.

— Como executa eximiamente bem! Soou a voz gravedo conselheiro Mendonça.

— Bravo! Bravo! Várias pessoas bradaram ao términoda peça.

Na introdução do terceiro número, Tonico Madureirajá havia se desinteressado totalmente do recital. Ele desviouos olhos da musicista, relanceando-os pelo salão à procura dealguém.

— Onde ela está? Perguntava-se intrigado, agitando-sena cadeira.

— Fique quieto, homem. Advertiu-o a mulher.

Tudo transcorria em absoluta tranquilidade: uma tosseaqui, um murmúrio acolá; além de alguns irreprimíveis boce-jos, felizmente abafados pelos acordes vibrantes da música. Osescravos, ágeis e solícitos, circulavam servindo aos convivas.

Mal terminara o recital, Tonico ergueu-se bruscamenteda cadeira. Deu a volta por trás dos acentos, encaminhando-separa fora do salão. Márcia seguiu-o incontinente. Ao verem-no abandonar o recinto, as irmãs Trindade cochicharam-se:

— Que homem insuportável!

— Tem dinheiro, mas falta-lhe educação!

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Já dona Bilu, puxando o marido pela manga do paletó,confidenciou:

— Eu sabia que ele viria, Mendonça, por isso não cha-mei Carolina, pois chega de confusões!

— Depois você me empresta a sua bola de cristal, paraque eu dê melhores conselhos. Pilheriou Mendonça.

Dona Bilu quis revidar, mas calou-se ante a aproxima-ção de Raul Vilaça.

Tonico Madureira falava alto, enquanto gesticulava fre-neticamente.

— Fale baixo, homem, alguém pode ouvi-lo. Alertava-o a mulher.

— Que ouça, que ouça; esse velho que nem se dignou ame cumprimentar! Disse ele, alteando mais a voz.

— Vamos embora, Tonico. Pediu Márcia.

— Ir embora, mas eu nem a vi.

— Qual delas? Perguntou Márcia, fitando-o de frente.

Ele, porém, virou-lhe o rosto, desconversando:

— Quem esse velho pensa que é? Para nem se dignar ame cumprimentar! Repetiu Tonico, esbravejando.

— O barão não o perdoou, Tonico. Você veio porquequis. Falou Márcia, mantendo a voz calma.

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No ímpeto, ele chutou a cancela e desceu as escadasrumo à carruagem na qual seu capataz o aguardava.

O recital foi encantador! Proporcionou à Florinda a fe-licidade de ver Isabela numa alegria incontida. A filha do ba-rão fez questão de apresentar a escrava a todos os convidados,percorrendo com ela o salão inteiro.

— Parabéns, moça, você é a melhor pianista da Corte!Cumprimentou-a um rapaz embriagado, amigo de Tarcísio.

— Com licença, Ricardo. Interveio Isabela, livrando aartista de tal embaraço.

— Que bela apresentação, querida, estou deslumbrada!Exclamou Marília Trindade.

— Que maravilha de espetáculo, fascinante! ElogiouIolanda.

Florinda abraçou-as com ternura, sinceramente agrade-cida.

Isabela conduziu a escrava ao pai que a saudou com re-verência, seguido pelo coronel Pimenta e a esposa. Ao passa-rem pela mesa de Tarcísio, Florinda sentiu-se envolvida pordois braços que a apertaram.

— Parabéns, Flor! Você é mesmo extraordinária, um ta-lento nato, o mundo precisa conhecê-la! Exaltou-a o mance-bo, beijando-lhe ambas as faces.

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— Obrigada, sinhozinho; espero ter agradado a vossa noivatambém. Falou a escrava, constrangendo-se na presença de Alice.

Esta levantou-se, sorridente.

— Meu noivo tem razão. Flor, você é admirável!

— É bom saber que temos uma pianista na fazenda, eque pode nos tornar as noites mais românticas! Falou Tarcísio,insinuante.

— O sinhozinho há de encontrar pianistas de verdadena Corte; eu sou apenas uma apreciadora do instrumento!Rebateu Florinda esquivando-se dos galanteios do mancebo.

— Venha, Flor, quero apresentá-la a mais pessoas. Cha-mou-a Isabela, puxando-a delicadamente pela mão.

Dona Bilu foi um dos últimos convidados a conhecer aescrava Florinda. Parabenizou-a efusivamente, fê-la sentar-seentre ela e o conselheiro, e, num fôlego só, falou-lhe de si, domarido e do filho:

— Quando eu era pequena, minha mãe colocou-me naaula de piano; mas não deu certo, porque eu não conseguiaficar parada. Mendonça, meu marido, além de não ter ritmo,é desafinado como sapo no brejo. Ah, menina, mas Felipe,nosso filho, tem vocação musical, é exímio violinista!

Dona Bilu relanceou os olhos pelo salão, para descobrirse mais alguém a escutava; decepcionou-se ao constatar queo marido cochilava a seu lado.

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Florinda aproveitou o intervalo para indagar:

— Por que Felipe não veio com os senhores?

— Ele mora na França, meu bem. Informou a mãe, dan-do uma cotovelada no marido, que acordou assustado.

— Conselheiro, quando Felipe vem ao Brasil? Pergun-tou Isabela.

— Recebemos uma carta dele ontem, mas Mendonçaainda nem leu; ele disse que vem nos visitar em breve! Res-pondeu dona Bilu, radiante.

— Quero trazê-lo aqui para tocar com você, hão de for-mar um duo de piano e violino. Prometeu o conselheiro.

— Ótima ideia! Concordou a filha do barão, entusias-mada.

— A ideia é minha; eu pedi a Mendonça que lhes apre-sentasse essa sugestão ao final do espetáculo.

— Será um prazer para mim, senhores, mesmo não es-tando à altura de um músico radicado na Europa; por isso,estudarei com afinco as peças a serem executadas!

Ditas estas palavras, a escrava despediu-se do casal e, coma permissão de Isabela, retirou-se do recinto.

Sob o luar de uma noite memorável, Vítor e Florindabeijavam-se com sofreguidão!

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— Flor, você é a estrela do meu céu! Declarou ele numsussurro.

— Vitor, você é a minha vida!

Nem mesmo a presença nefasta do capataz que os espi-onava a distância, tirou o brilho daquele momento idílico!

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PPPPPAAAAARRRRRTTTTTIIIIIDDDDDAAAAA

A repercussão do recital foi fabulosa, um sucesso estron-doso! Passou pela senzala, atravessou as fazendas da vizinhan-ça e chegou até à Corte. Nos cafés comentou-se que uma escra-va do barão Raul Vilaça é exímia pianista; um jornal local pu-blicou uma nota sucinta, mas enfática: “Na fazenda da famíliaVilaça, uma escrava apresentou-se ao piano com tal esplendor,que a lua e as estrelas sentiram-se enciumadas... Salve, Florinda!”

Debruçada na janela do velho sobrado onde mora, donaBilu contou em minúcias os acontecimentos da noite:

— Ah! Que espetáculo inesquecível, que músicas profun-das, que licor magnífico, que bolinhos de milho apetitosos...

— Havia muita gente, dona Bilu? Interrompeu-a umamulher de meia-idade.

— E os convidados, os trajes, os assuntos... Prosseguia ela.

As pessoas escutavam-na atentas.

— Quisera eu estar lá! Disse uma velhota.

— Aí, a filha do barão conduziu-a até o palco: esbelta,digna, majestosa!

- CAPÍTULO 5 -

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— De quem a senhora fala, dona Bilu? Quis saber umcavalheiro recém-chegado.

Ela se manteve indiferente às interrupções.

— A pianista executou as peças magistralmente, comprofunda emoção!

— Garanto que Chopin fez parte do repertório. Arris-cou o farmacêutico, amicíssimo do conselheiro.

Dona Bilu limitou-se a sacudir a cabeça positivamente,depois continuou:

— Mendonça reencontrou um conhecido que é comen-dador; conheci um rapaz jornalista, colega de Isabela; puxa,há anos que Mendonça e eu não víamos Dr. Olavo, o médicoque fez o parto de Felipe.

— Lembro-me dele, perfeitamente. Manifestou-se o far-macêutico outra vez.

A narradora passeou os olhos pela assistência compactasobre a calçada, depois pousou-os numa bonita mulher, cujofilho pequenino agarrava-se-lhe ao pescoço e disse-lhe:

— Ele também estava lá, Carolina. Lindo como umdeus, feiticeiro com um diabo!

A mulher compreendeu a alusão velada a TonicoMadureira; ruborizada, baixou a cabeça e saiu disfarça-damente.

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— Conte mais, dona Bilu. Pediu um moleque atrás davelhota.

— Quando Felipe vier ao Brasil, Florinda e ele hão deformar um duo de piano e violino.

Os espectadores começaram a se desinteressar. Pouco apouco, o grupo foi se dispersando, restando somente o far-macêutico para ouvir as histórias do filho de ouro!

— Bando de invejosos! Eu tenho culpa, Dirceu, se osfilhos deles não conhecem Paris, nem pela revista? RematouDona Bilu, despeitada.

Na biblioteca da casa-grande, o capataz informou aTarcísio Vilaça:

— Esse negro metido a besta está de caso com a escravanovata.

O mancebo empalideceu.

— Que provas você tem do envolvimento de Vítor comFlorinda? Inquiriu Tarcísio, cujas palavras saíram a custo.

— Por duas vezes eu os vi agarrados que nem carrapichoem crina de égua.

Tarcísio sabia que Atanásio detestava Vítor, por este sero escravo protegido pelo barão.

— Acredito que isso seja algo passageiro, sem impor-tância. Disfarçou o mancebo, roído por dentro.

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— Do jeito que ela se entrega, feito cachorra no cio?

— Que direito você tem de se referir dessa maneira àFlorinda? Bradou Tarcísio, sentindo-se ofendido.

— Desculpe-me, sinhozinho, é que...

— Por favor, Atanásio, vá chamar o Vítor para mim.Cortou o mancebo, abrandando a voz.

Minutos depois, Vítor entrou na biblioteca ondeTarcísio fumava tranquilamente.

— Estou às suas ordens, sinhozinho. Prontificou-se oescravo.

O filho do barão examinou-o de cima a baixo: admi-rou-lhe o porte físico, contemplou-lhe as feições serenas, e,numa admissão muda, concluiu que aquele pirralho que vi-via sujo de terra por causa dos caprichos de sua irmã Isabela,tornara-se um belo rapaz.

— Como você sabe, Vítor, papai não anda muito bemde saúde; e, estando eu à frente dos negócios, não posso au-sentar-me um instante daqui.

— O sinhozinho pode contar comigo. Reafirmou o ne-gro.

— Atanásio, por sua vez, tem as obrigações que lhe sãoatribuídas: fiscalizar o canavial, o engenho e o alambique.

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— Acaso o capataz fez alguma queixa do meu serviço?Perguntou Vítor, humildemente.

Tarcísio sacudiu negativamente a cabeça, depois levan-tou-se e caminhou rumo à janela; e, de costas para o seuinterlocutor, disse-lhe:

— Só tenho boas informações a seu respeito, Vítor; porisso, preciso que você me faça um trabalho.

— Estou aqui para servi-lo, sinhozinho!

O mancebo virou-se abruptamente, com o intuito deconstatar o efeito das suas palavras. Fitando o escravo nosolhos, comunicou-lhe:

— Trata-se de uma viagem, Vítor; estou incumbindo-ode levar um carregamento de cachaça e rapadura ao Sul do país.

O escravo recebeu a notícia com impassibilidade.

— Quando devo partir, sinhozinho? Perguntou ele,inalterado.

— Amanhã cedo; o capataz lhe passará todas as instru-ções.

Vítor escutou-o em silêncio. O coração batia-lhe des-compassado dentro do peito; a certeza do período de, nomínimo, quatro meses que o separaria de Florinda, esmaga-va-o impiedosamente. Após uma reverência ao filho do ba-rão, o escravo retirou-se desalentado.

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Fim de tarde. O sol escondia-se no horizonte. O ventosoprava frio, vergando os galhos das árvores com furor, anun-ciando chuva. Um trovão fez-se ouvir, enquanto relâmpagosrasgavam os céus!

A repentina viagem de Vítor entristeceu o coração deFlorinda.

— Iaiá mandou chamar-me? Perguntou a escrava,irrompendo no quarto de Isabela.

Esta foi ao seu encontro e entregou-lhe uma folha dejornal.

— Leia, Flor! Pediu ela com delicadeza.

A escrava passou rapidamente os olhos pelas poucas li-nhas da matéria, erguendo a cabeça em seguida.

— Não mereço tanto, Iaiá! Ciciou ela.

Isabela viu lágrimas rolarem-lhe pelas faces.

— Você não ficou feliz com a nota que o meu amigoescreveu sobre o seu recital! Lamentou a donzela.

— Felicidade de escravo é fugaz! Desabafou Florinda.

Conhecendo-lhe o caráter altivo, Isabela estranhou-lhe ocomportamento. Pegando-lhe as mãos, falou carinhosamente:

— Por que você está chorando, Flor?

— Vítor foi designado para fazer uma viagem.

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— Viagem? Mas por que ele? Surpreendeu-se Isabela,sabendo que o escravo jamais se ausentava senão para acom-panhar o barão.

Florinda emudeceu diante das interrogações de Isabela.Ademais, como ela poderia imaginar as artimanhas de TarcísioVilaça?

— Felicidade de escravo é fugaz! Balbuciou Florindanovamente.

A filha do barão refletiu por um momento e, por fim,disse com olhos brilhantes:

— Ontem você falou-me do amor: que é puro ao nas-cer, belo ao florescer e eterno ao amadurecer!

A escrava limitou-se a dizer:

— Eu sei que não devo esquecer-me da minha sina, nemposso importuná-la com minhas fraquezas!

Isabela procurou confortá-la:

— Coragem, Flor.

A escrava enxugou as lágrimas e, refazendo-se da dor daseparação iminente, disse com a força da alma:

— Para um grande amor não existe tempo, por maiorque seja, que consiga apagá-lo no coração!

A negra Juraci sentiu-se incomodada com o capataz ron-dando a cozinha. Atanásio procurava um jeito de abordar

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Silvana, assim como o cão a vigiar o osso que lhe é atirado aochão.

— Eu vou lá dentro perguntar ao barão se é para serviro jantar. Falou Juraci, retirando-se.

O capataz aproveitou a saída da velha para se acercar deSilvana.

— O seu tio Mané-Bento viaja amanhã; agora, querover quem há de salvá-la, atrevida.

Ao assustar-se com a presença de Atanásio, Silvana cor-tou-se com a faca que utilizava no preparo da salada de legu-mes. Augusta tremia de medo, enquanto murmurava uma reza.

— Eu tenho a proteção de Deus! Desafiou a escrava,lavando a mão suja de sangue.

Atanásio olhava-a com volúpia.

— Quem há de protegê-la sou eu, Silvana, do jagunçode uma fazenda vizinha que está atrás de vosmecê. Mentiu opatife.

— Nunca vosmecê porá as mãos sujas em mim, ordinário!

O capataz escutou passos em direção à cozinha; antesde se retirar, encostou o cabo do chicote na nuca de Augusta,insultando-a:

— Magricela, aquela velha Zulmira, sua mãe, não de-mora a morrer.

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— Vá para o inferno! Disse a escrava entre dentes.

Na fazenda de Tonico Madureira, o jantar foi servidopontualmente às oito horas. Sentado à cabeceira da mesa,Tonico comportou-se diferentemente do costume: habitual-mente loquaz e festivo, nessa noite, porém, permaneceumudo, além de se recusar a tomar uma taça de vinho com ogenro Tarcísio Vilaça.

— Praticamente, você nem tocou na comida. Comen-tou a mulher, a seu lado.

— De fato, estou sem apetite; acho que me resfriei nes-sa tarde de ventanias. Respondeu Tonico sem fitá-la.

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Mas Márcia conhecia-o suficientemente bem para sa-ber-lhe o motivo de tão drástica mudança. Desde a noite dorecital que o marido tem, invariavelmente, pedido ao seu ca-pataz Damião para sondar se Graça, a filha do barão, chegarade viagem.

Em compensação, do outro lado da mesa, Tarcísio co-mia e bebia com abundância.

— Que bom você não viajar desta vez, querido, isso medeixa tão contente! Falou Alice, sorrindo.

O mancebo escutava-a em silêncio, enquanto a cabeçaarquitetava um plano para aproximá-lo de Florinda.

— Tenho muitas coisas para resolver. ResmungouTarcísio.

— A gente pode ir à Corte, meu bem, haverá concertode orquestra no sábado. Propôs Alice, pousando de leve a mãono braço do noivo.

— Tenho muitas coisas para resolver. Repetiu ele, alheioà tagarelice da noiva.

— Assim você acaba embriagando-se, Tarcísio. Admo-estou-o dona Márcia.

Tonico levantou-se subitamente, alegando mal estar.Dona Márcia pediu a uma escrava para trazer a sobremesa,um delicioso doce de abóbora!

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Vitor e Florinda passaram em claro a noite de ventosuivantes.

— Parto daqui a pouco, Flor, mas volto ainda mais se-dento de amor! Disse ele, beijando-a com avidez.

— Eu esperarei por você, Vítor, tal qual a lua peloseresteiro que a tem como inspiração!

Florinda despertou nos braços do seu amado para, en-fim, desabrochar mulher com a nova manhã que descortinavano horizonte!

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TTTTTEEEEEMMMMMPPPPPEEEEESSSSSTTTTTAAAAADDDDDEEEEE

A tempestade caiu violentamente ao anoitecer, trans-bordando o rio que banhava a fazenda e inundando a senza-la. E, para piorar a situação, os escravos amontoaram-se apre-ensivos a um canto, pois o estado de saúde de Zulmira agra-vava-se a cada minuto.

Debruçado na janela da casa-grande, o barão Raul Vilaçaacompanhava os estragos causados pela chuva nas suas plan-tações. Indiferente à tempestade que desabava há quase vinteminutos, Tarcísio vagava pela biblioteca com o cigarro acesoentre os lábios. De repente, a porta abriu-se e por ela entrouRosinha, trazendo um bule de café; a escrava colocou-o so-bre a mesa e, como de costume, fez um gracejo ao patrão. Estea ignorou completamente, soltou algumas baforadas do ci-garro e ordenou-lhe:

— Chame-me a Florinda.

Rosinha deixou o recinto sentindo-se, enfim, liberta dasgarras do mancebo que, por um bom tempo, aliás, serviu-sedela para extravasar seus arroubos de mocidade. Entretanto,ela foi cumprir a ordem do patrão com o coração angustiado,

- CAPÍTULO 6 -

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ao imaginar Florinda passando pelos mesmos desaforos ehumilhações.

— O sinhozinho precisa falar com vosmecê. Informouela à meia-voz.

Florinda encontrava-se sentada num tamborete pertodo fogão a lenha, no qual Juraci fervia água no tacho para darbanho em Zulmira; a enferma tivera de ser transportada dasenzala a um alojamento próximo à casa-grande por dois ne-gros que, heroica e corajosamente, carregaram-na num balaiodesafiando a chuva torrencial.

À saída de Florinda, Silvana piscou maliciosamente oolho para Augusta, que argumentou com total convicção:

— Nessa moça ninguém encosta um dedo, porque ela édiferente de nós.

Silvana fez-lhe uma careta antes de rebater:

— Diferentes, por que, se somos todas escravas, farinhado mesmo saco?

Augusta explicou com as mãos na cintura:

— Flor sabe assinar o nome, além de ler livros impor-tantes!

Rosinha sacudiu a cabeça positivamente, apoiando acompanheira.

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— Também posso aprender um dia. Disse Silvana, des-peitada.

E, num golpe final, Augusta sentenciou:

— Se Flor fosse igual a nós, não conquistaria o coraçãode Vítor!

Sentindo-se atingida no seu amor próprio, Silvana bai-xou os olhos e pôs-se a remoer as amarguras da vida!

Ainda chovia quando Juraci chamou as meninas paraajudarem-na a cuidar da doente.

Tarcísio Vilaça caminhava agitado pela biblioteca quan-do Florinda entrou, fechando a porta atrás de si. O ambienteestava embaçado pela fumaça de cigarros, além de um fortecheiro de bebida pairando no ar. Antes mesmo de dirigir-se àescrava, o rapaz serviu-se de mais uma dose de uísque.

— Flor, deseja tomar alguma coisa? Perguntou ele, em-baraçado.

— Obrigada, sinhozinho.

Tarcísio sentou-se numa cadeira de espaldar reto, cru-zando as pernas para disfarçar a falta de assunto; e, em pou-cos segundos, levantando-se de supetão, pôs-se a falar desen-freadamente:

— Isabela recebeu da vida todos os privilégios: bajuladapelos membros e amigos da família por ser a filha caçula, sem-

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pre foi a predileta dos meus pais; enfim, tudo que é maravi-lhoso concentrou-se nela, o anjo!

Ele encerrou, esboçando certo cinismo. Ela o ouviu comdeferência.

— Iaiá é um ser humano dotado de qualidades! Elo-giou a escrava, quebrando o silêncio.

O filho do barão aproximou-se tanto dela, que foi pos-sível Florinda sentir-lhe o hálito etílico.

— Se eu tivesse ao meu lado uma pessoa como você,seria o mais feliz dos homens!

— Sinhozinho! Assustou-se ela, recuando um passo.

Tarcísio segurou-a pelos ombros.

— Eu sou um desgraçado, admito; Flor, acredite emmim, só você pode me dar a felicidade!

Por um momento, Florinda teve compaixão do homemcambaleante à sua frente. Por outro lado, não poderia render-se aos caprichos de um rapaz tresloucado, afeito a abusardespudoradamente das escravas da fazenda.

— Sinhozinho, a sua noiva chama-se Alice, é moça pren-dada, de boa índole, de excelente caráter!

O mancebo fitou-a embasbacado, enquanto buscava pa-lavras mais convincentes.

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— Alice não é a mulher dos meus sonhos; não lhe su-porto a falta de personalidade, tampouco me apraz o seu ex-cesso de submissão.

Sem deixar transparecer, ela agora escutava-o com ta-manha indignação. Como aceitar que um rapaz tão volúvelpudesse cometer tantos disparates, depreciando uma moçade natureza pacífica feito Alice?!

— Tenha paciência com ela, sinhozinho; Alice...

– Eu posso tirá-la dessa condição de escrava, oferecen-do-lhe uma vida digna! Cortou ele, com um sorriso parvo.

Florinda contemplou-o por um instante antes de replicar:

— É verdade que nasci escrava, é provável que eu morraescrava. Mesmo assim, conheci o amor; e, sem ele, a liberda-de não teria valor!

Tarcísio encontrava enorme dificuldade em atingir seusobjetivos; por isso, decidiu enveredar-se por outro caminho.

— Qual o conselho você daria a um homem que desejauma moça, não sendo esta a sua noiva?

Florinda respondeu-lhe sem hesitar:

— Eu aconselho esse homem a ter vergonha de ludibri-ar alguém, desrespeitando-lhe os sentimentos.

Lívido de raiva, completamente fora de si, ele arremes-sou o copo vazio contra a parede, esbravejando:

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— Quem você pensa que é, para me dar lição de moral?

— Desculpe-me, sinhozinho, quis apenas ser justa. Res-pondeu ela, impassível.

Ele aproveitou a deixa como última chance de salvação.

— Então, por que você não é justa comigo também?Por que não compreende o meu sofrimento, esta paixão queme corrói por dentro?

De repente, a porta abriu-se e Isabela flagrou o irmãonuma posição ridícula: ajoelhado aos pés da escrava, ele bei-java-lhe ardentemente as mãos!

— Tarcísio, o que está acontecendo aqui? Você ficoumaluco? Indagava a donzela, envergonhada.

Num ato de extremo desespero, o mancebo jogou o cor-po no chão e colocou a cabeça por entre os braços esticadospara cima. Isabela olhava para aquela cena lamentável em queTarcísio, estirado no chão, parecia um débil mental. Condo-ída com a situação vexatória pela qual passava a escrava, a fi-lha do barão aproximou-se dela e pediu-lhe com suavidade:

— Perdoe-nos, Flor. Isso não se repetirá.

— Não se preocupe, Iaiá. Acalmou-a Florinda, enquan-to saíam do recinto.

Fora, Isabela acrescentou:

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— Tenho um pedido a fazer-lhe, Flor. Suba ao quartode Stefany e ajude-a a dormir, pois a menina diz ter pavor detrovões e, portanto, não consegue conciliar o sono.

Deitada sob um grosso cobertor, a pequena mantinhaos olhos arregalados.

— Hi, Flower. Saudou a menina, quando a escrava pe-netrou no seu amplo quarto decorado com quadros de paisa-gens inglesas.

— Você precisa dormir, mocinha, já é tarde. DisseFlorinda, sentando-se na borda de sua cama.

Sentindo-se protegida com a presença da escrava,Stefany esboçou um sorriso! De repente, um trovou retum-bou com violência.

— Help! Help! Gemeu a menina cobrindo o rosto.

— É apenas um trovão, Stefany. Tranquilizou-aFlorinda.

Outro estrondo bem maior do que o primeiro.

— Que medo, my God! Choramingou a menina comvoz trêmula.

A escrava acudiu-a, carinhosa:

— Estou aqui para lhe fazer companhia; você quer queeu conte uma história, Stefany?

— A beautiful story! Respondeu a garota.

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— Sim, uma linda história que eu ouvi quando era cri-ança. Confirmou Florinda.

— What’s the name of the story? Interessou-se Stefany,com um brilho no olhar!

— A história se chama “O homem que se dizia ser filhodo sol”. Informou a escrava.

— Você vai contá-la em English?

Florinda fez um gesto de enfado antes de responder:

— Não, em português mesmo.

Chovia torrencialmente quando Juraci, com lágrimasnos olhos, pediu à neta Rosinha:

— Vá chamar a Flor para nos ajudar.

Depois de proferir as mais pavorosas imprecações, a es-crava Zulmira morrera naquela noite. Ao lado do cadáver damãe, Augusta chorava baixinho.

— Silvana, busque uma vela para iluminar as trevas des-sa infeliz! Pediu Chico, parado na porta do quarto.

Silvana olhou a defunta, depois perguntou com voz ir-ritada:

— Onde hei de encontrar uma vela com este temporal?

— Seja mais humana, Silvana, solidariedade é uma gran-de virtude! Ralhou Juraci.

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— É que eu estou nervosa, mãe-preta. Esclareceu ela.

Juraci informou-a com paciência:

— Dentro de uma caixa de papelão, debaixo da minhacama, você encontrará velas.

Silvana caminhava por um enorme galpão transforma-do parcialmente em quartos, que abrigavam a escravaria dacasa-grande.

— Ei, Silvana. Chamou-a uma voz áspera à sua passagem.

Ela se assustou ao reconhecer o capataz inclinado sobreuns caixotes. Atanásio saiu-lhe no encalço. Ela acelerou o pas-so, sentindo as pernas pesarem e, por um instante, pensouque fosse cair.

— Ajude-me, meu Deus! Rezou a escrava.

— Psiu, Silvana, espere-me. Rugiu outra vez o feitor.

Antes que a escrava começasse a correr, Atanásio conse-guiu arrancar-lhe o lenço da cabeça, e, por um triz, quase aagarrou pelo pescoço.

— Saia, diabo! Enxotou-o ela, em desabalada carreira.

O malvado capataz continuou a persegui-la, socando ochão com as botas enlameadas. Mas, num esforço supremo,ela se refugiou no primeiro quarto que viu pela frente, fechan-do a porta com estrondo. Chocando-se contra a porta, o fei-tor pôs-se a esmurrá-la, enquanto berrava ofegante:

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— Abra esta merda, cadela, senão eu arrombo.

— Não abro, capeta. Revidou a escrava.

Bufando de ódio, o homem começou a chutar a porta.Silvana aterrorizou-se, temendo que a tranca cedesse a qual-quer momento; então, precipitou-se para a janela, abrindo-acom um safanão. Enfim, o endemoninhado invadiu o quar-to. Ele avançou para a vítima que, ágil como um bicho domato, saltou pela janela e mergulhou-se nas águas barrentasda enxurrada.

Silvana escondeu-se debaixo do telhado de um galinhei-ro, de onde avistava o capataz, tão impotente quanto fera en-jaulada. E, ao relento, ela passou o resto dessa noite de tem-pestade.

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GGGGGRRRRRAAAAAVVVVVIIIIIDDDDDEEEEEZZZZZ

Há tempo que o sol voltou a iluminar os campos da fa-zenda! O canavial apresentava-se viçoso outra vez; as aves so-brevoavam o pomar numa algazarra festiva; as flores perfu-mavam e coloriam o belo jardim!...

— Eu compreendo a sua aflição, Flor; afinal, já se vãomais de três meses que Vítor e a comitiva estão em viagem.Disse Isabela à escrava.

Florinda e a negra Juraci trocaram um olhar.

— Lembro-me de quando Salvador fazia parte dessascomitivas, viajando por terras longínquas com o coronelPedro Vilaça, pai do barão, e o quanto eu padecia de sauda-de! Recordou Juraci.

— Pelas previsões de papai, eles chegarão no prazo deuma ou duas semanas. Comentou a donzela dirigindo-se àescrava, procurando animá-la.

Após um longo suspiro de Florinda, Juraci interveio:

— Flor está com receio de lhe contar o verdadeiro mo-tivo da sua aflição.

- CAPÍTULO 7 -

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A filha do barão olhou com doçura para a escrava; e,simulando estar séria, interrogou-a:

— O que você está escondendo de mim?

— Não é receio, Iaiá, é vergonha. Balbuciou Florindade cabeça baixa.

— Ela pensa que traiu a sua confiança. Interferiu Juracinovamente.

Isabela caminhou até à escrava e ergueu-lhe a cabeça.

— Conte tudo, Flor, e prove que me tem como amiga!Encorajou-a a donzela, fitando-a com olhos cheios de bon-dade!

— Iaiá, perdoe-me, é que eu estou grávida. ConfessouFlorinda, cobrindo o rosto com as mãos.

O semblante de Isabela iluminou-se num sorriso! Juracitambém sorria para Florinda que, debulhada em lágrimas,mantinha o rosto oculto.

— Flor, por um acaso isso é razão para chorar? Repre-endeu-a brandamente a donzela.

— Vamos, levante a cabeça, enxugue as lágrimas, essacriança precisará da sua felicidade! Apoiou-a Juraci.

— Flor, eu quero vê-la contente, pois você não imaginaa alegria que me dá com essa notícia! Declarou Isabela, abra-çando-a fraternalmente.

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— Iaiá sabe que nunca me enganei quanto ao sexo dobebê; portanto, já estou aguardando minha netinha! PreviuJuraci, confiante.

— É verdade, quantos a senhora já viu nascer aqui nafazenda! Exclamou a donzela, enlaçando o pescoço da negra.

— Recordo-me de que quando a baronesa estava espe-rando o terceiro filho quis saber qual era a minha opinião;respondi que seria uma menina. Ela ficou com os olhos rasosd’água, pois era tudo que desejava! E, no dia em que você nas-ceu, o coração de dona Esmeralda inundou-se de felicidade!

As duas jovens escutaram-na com atenção e enlevo.

— Então, vamos todos comemorar a vinda de mais umacriança ao mundo, pois esta casa precisa sempre de muita ale-gria! Determinou Isabela com entusiasmo, batendo palmas.

O barão Raul Vilaça não se opôs a que a filha proporcio-nasse àquela gente sofrida um momento de lazer! Juraci prepa-rou jarras de suco das frutas colhidas no pomar da fazenda,além dos deliciosos bolinhos de milho. Até mesmo Augusta,que ainda vivia pelos cantos chorando a morte da mãe, alegrou-se um pouco com a notícia da gravidez de Florinda. Rosinhacirculava por entre os negros, equilibrando magistralmente abandeja de guloseimas feitas por Juraci; ela vinha e voltava paraa cozinha, desfilando por uma passarela imaginária.

Debaixo de um enorme banco de madeira rústica que

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circunda o pátio principal da fazenda, Chico apanhou umagarrafa de cachaça; depois de beber no gargalo, o negro pas-sou-a ao escravo do lado, dizendo-lhe:

— Suco de fruta de mãe-preta me dá azia.

Sorridente, o outro negro recebeu a garrafa, imitando-lhe o gesto.

Da janela do segundo andar da casa-grande Stefany ob-servava encabulada o pátio apinhado de escravos. A meninafez uma careta e, ao encontrar o olhar do barão que acompa-nhava toda a movimentação, indagou:

— Vovô, they have no work today?

O velho repreendeu-a com um gesto enérgico, fazen-do-a cerrar as cortinas e correr para o quarto.

— Ô, Serafim, toque a zabumba para eu cantar. PediuChico, depois de tomar mais uns tragos de cachaça.

Incontinente, o negro Serafim puxou um ritmo empol-gante. Logo os escravos formaram uma roda, em cujo centroChico, com sua voz maviosa, entoou um canto melodioso queera respondido pelas mulheres, enquanto os homens dança-vam e faziam a coreografia de um magnífico espetáculo!

A distância o feitor acompanhava a festa, com olhos decaçador frustrado, recostado num barranco à beira do rio.

— Negrada à toa, seu batuque é no cabo da foice, cor-

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tando cana! Rosnou Atanásio, alisando a faca que trazia nacinta.

— Eta Chico, que canta bonito! Murmurou Juraci comos olhos marejados de lágrimas.

O capataz sacou da bainha a faca e se pôs a contemplá-la tal qual a um objeto sagrado. A cantoria que lhe chegavaaos ouvidos, enervava-o. Ele repôs a faca na cinta, lançou umolhar de nojo à escravaria, escarrou nas próprias botas e enca-minhou-se para a cozinha da casa-grande, resmungando:

— Esse velho barão está caduco mesmo, permitir umaarruaça só porque uma escrava ficou prenha.

Assim que Salvador chegou ao pátio trazido por doisescravos, Raul Vilaça dirigiu-se ao negro. Este, raramentedeixava a senzala, senão em ocasiões especiais como, por exem-plo, no funeral da baronesa, dona Esmeralda, por quem ti-nha grande estima! Sentado num tronco de árvore, pitandoum cigarro de palha, Salvador aguardava o barão, que cami-nhava em sua direção.

— Boa tarde, Salvador! Cumprimentou-o Raul, tocan-do-lhe de leve o ombro.

— Boa tarde, barão; como vosmecê tem passado?

— Um pouco resfriado, além de uma tosse que não ces-sa. Respondeu ele, sentando-se ao lado do escravo.

— Desde quando vosmecê tem se sentido incomodado

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por essa tosse? Interrogou o negro.

— Aquelas últimas chuvas não apenas fizeram mal àsplantações, como a mim também. Confidenciou o fazendeiro.

— É como dizia o vosso pai, coronel Pedro: Deus dá osol, mas também manda a chuva. Recordou o escravo.

Raul Vilaça coçou a cabeça, depois fitou com reverên-cia o homem à sua esquerda; ele que pertencera a seu pai, ser-vindo-o com total fidelidade. Salvador tornara-se uma relí-quia da fazenda, pessoa de alma nobre e sapiência incomum.O barão lamentou deverasmente não ter podido evitar o atri-to envolvendo o escravo e Atanásio, quando este, com extre-ma atrocidade, baleara o negro. É que, na ocasião, Raul en-contrava-se na Corte, em companhia da baronesa. Nãoobstante a sua ausência, o barão punira severamente o capa-taz, ficando este terminantemente proibido de entrar na sen-zala, além de ter o salário reduzido durante cinco anos para,assim, ressarcir a fazenda pela perda do seu melhor escravo.

— Meu filho Tarcísio não serve para lidar com fazenda,eu estou velho e cansado!

O escravo pigarreou e disse, meio acanhado:

— Barão, se vosmecê me permite comentar, é de se es-tranhar a demora no regresso da comitiva; no meu tempo, aviagem era mais curta e os produtos tinham os compradoresdefinidos.

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Raul considerou o negro por um instante, rebatendoem seguida:

— No seu tempo papai era vivo, Salvador, e eu o auxili-ava com vontade de aprender; hoje, porém, os moços não que-rem saber de plantar a cana, mas de tomar a cachaça e tirar ogosto com rapadura!

A tarde caía lenta, principiando a soprar um vento frio.O barão despediu-se do velho amigo e, ao passar por Juraci,autorizou-a a abrir mais três garrafas de aguardente. Chico,que estava por perto, ouviu e correu para anunciar aos ami-gos, festejando:

— Pessoal, o barão mandou mãe-preta abrir o barril decachaça para nós!

— Que venha, pois já estou de bico seco. Manifestou-se Juvenal.

Os escravos riram, batendo palmas entusiasticamente.

— Viva Florinda! Bradou Serafim.

— Viva! Viva! Viva! Responderam todos.

A batucada e a cantoria recomeçaram como num passede mágica, enchendo de alegria os corações daquela gente tãosofrida!

Sob o céu azul, a lua despontou maravilhosa para ilumi-nar a noite que, em pouco tempo, se fez presente!

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Aproveitando-se da oportunidade em que as pessoasachavam-se entretidas no pátio central da fazenda, o feitorentrou sorrateiramente na cozinha. Silvana, para se defender,armou-se com uma pesada colher de ferro. Os olhos de Ata-násio transmitiam, inequivocamente, insanidade ao fitar aescrava. Esta, consciente da perversidade desse homem, nãohesitaria em agredi-lo. Os dois miraram-se como caça e caça-dor!

— Eu sei que vosmecê sempre quis o Vítor, mas ele nun-ca será seu. Disse Atanásio, provocante.

— Que pena, pois eu seria dele de corpo e alma! Reba-teu Silvana.

— A novata mal chegou e já tem um filho dele no bu-cho; ela é mais esperta do que vosmecê, Silvana.

A escrava passou a ponta da língua pelos lábios, antesde responder:

— Já que Flor não quis sinhozinho, quem sabe ele quei-ra conhecer o meu cheiro!

A obsessão de Tarcísio Vilaça por Florinda era comentárioentre os escravos, do qual o feitor tinha pleno conhecimento.

— Com sinhozinho vosmecê se deita por bem; comi-go, vosmecê há de se deitar por mal, cadela.

— Jamais me deitarei com um porco! Desafiou ela, im-pávida.

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Atanásio sacou da faca e apontou-a para Silvana.

— Eu hei de furá-la um dia, puta! Ameaçou ele.

Ela brandiu no ar a colher de ferro e revidou:

— Venha, que eu hei de estourar seus miolos, patife!

O capataz lançou-lhe uma cusparada no peito; Silvana,por sua vez, jogou-lhe na cara uma colherada de água ferven-te. O tirano recuou um passo, gemendo de dor.

— Vosmecê quer me cegar, vagabunda? Grunhiu ele.

— Quero matá-lo, demônio.

Juraci entrou cantarolando na cozinha. O capataz eva-diu-se, tal qual cachorro escorraçado a pontapés.

— Não acredito que vosmecê esteja dando trela a essemonstro. Insinuou a negra, parando abruptamente.

— Esse calhorda vem infernizando a minha vida, mãe-preta! Queixou-se Silvana, com olhos lacrimejantes.

— Cuide-se, menina. Passe longe desse pilantra. Acon-selhou ela.

Enfim, a noite desceu estrelada! Na sala de visitas, Isabelarecebeu Márcia Madureira e a filha Alice, que acabavam dechegar.

— Como tem passado o barão? Perguntou dona Már-cia, sentando-se.

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— Papai pegou um resfriado, está no quarto descansan-do. Respondeu Isabela.

— Eu estava ouvindo lá de casa uma cantoria bonita, osnegros numa alegria contagiante! Comentou Alice, sorrin-do.

— É que hoje a felicidade bateu à nossa porta! Expli-cou a filha do barão.

— Então, conte-nos a novidade. Pediu a noiva deTarcísio Vilaça.

— Flor terá um bebê! Revelou Isabela, indicando a es-crava recostada à janela da sala.

— A nossa pianista?! Que surpresa agradável. Parabéns!Falou dona Márcia, levantando-se para cumprimentarFlorinda.

Esta limitou-se a sorrir, timidamente.

— Ah! Que maravilha! Mamãe há de tecer uma lindaroupinha, e eu a presentearei com o berço do neném, prome-teu Alice, exultante.

Florinda não cabia em si de contentamento. E foi como rosto radiante de alegria que proferiu estas palavras:

— E para fazer o meu coração ainda mais feliz, Iaiá querser a madrinha! Confidenciou ela, emocionada.

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Stefany, que até esse momento mantivera-se calada, ar-regalou os olhos para Isabela; por fim, mirou a escrava e in-quiriu:

— Who is the father?

Sem dar a mínima importância à pergunta da menina,Isabela deu um novo rumo à conversa:

— Vocês duas jantam conosco, papai ficará satisfeito.

— Não se preocupe com a gente. Disse dona Márcia.

Alice tirou algo da bolsa e entregou à pequena Stefany.

— É um presentinho para você, querida! Falou ela comamabilidade.

— Vá avisar a Tarcísio que Alice e dona Márcia estãoaqui. Pediu Isabela.

Stefany saiu correndo para cumprir a missão; era-lhe raraa oportunidade de falar com o padrinho. Portanto, não po-deria se furtar a esse prazer.

— Padrinho Tarcísio, a sua noiva Alice está aqui. Infor-mou a menina, irrompendo na biblioteca.

O mancebo assustou-se com a entrada inesperada dagarota. Absorto em seus pensamentos, ele se achava mergu-lhado numa poltrona, digerindo com dificuldade a notíciada gravidez de Florinda que tanto o abalara.

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— O que você tem nas mãos? Interrogou Tarcísio, apon-tando a caixinha com um laço de fita vermelha.

— A gift from Alice. She’s very good to me! Respondeu amenina, aproximando-se dele.

Tarcísio desviou os olhos do objeto, depois vestiu rapi-damente o paletó.

— Você gosta dela?

— Yes! Respondeu Stefany.

Tarcísio encaminhou-se até à afilhada; afagou-lhe oscabelos, beijou-lhe o rosto angelical, depois perguntou-lhenuma voz macia:

— E do padrinho, você gosta também, Stefany?

Os olhos da menina brilharam com tanta intensidade,que seriam dispensáveis quaisquer palavras! No entanto, eladisse com voz trêmula:

— Adoro!

— Então, posso pedir-lhe um favor?

— Pode. Falou ela.

O mancebo inclinou o corpo para a frente e disse numsussurro:

— Se alguém perguntar por mim, diga que não me en-controu na biblioteca.

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Stefany assentiu com um leve sorriso de cumplicidade.Ele abraçou a sobrinha e, em seguida, saltou pela janela.

De volta à sala de visitas, a menina cruzou com Isabelapelo corredor, que a interrogou:

— Cadê o Tarcísio que não aparece?

— Não o encontrei em lugar nenhum, e uma negra medisse que ele saiu há meia hora. Mentiu Stefany.

Decepcionada, a filha do barão se desculpou com Alicee a mãe, mandando servir o jantar.

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RRRRREGEGEGEGEGRRRRREEEEESSSSSSSSSSOOOOO

De fato, como previra o barão Raul Vilaça na última con-versa que tivera com a filha, a comitiva chegou em quinze dias,pela manhã. Fora uma viagem bastante cansativa, da qual o gru-po chefiado por Vítor não trouxera bons resultados. Raul rece-beu o escravo na biblioteca, desobedecendo às ordens médi-cas. À medida que o velho examinava os papéis, Vítor percebiaa irritação estampar-se no rosto do patrão. Por fim, este falou:

— Nunca a mercadoria esteve tão desvalorizada!

— Perdão, senhor, mas a questão é outra. Interveio oescravo.

— Como assim, não consigo entender. Disse o barão,erguendo os olhos dos papéis.

— Segundo os revendedores, a mercadoria apresenta-va-se velha e em pequena quantidade.

— Revendedores? Mercadoria velha? Em pequenaquantidade?! Repetia Raul, automaticamente.

— Lamento, senhor! Murmurou o escravo, baixando avoz.

- CAPÍTULO 8 -

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O barão fitou o negro nos olhos e inquiriu:

— Miranda sempre foi o nosso intermediador nos ne-gócios da fazenda, por que você não o procurou?

— Não recebi essa orientação, senhor. Respondeu Vítor,firme.

Raul notou sinceridade na afirmação do escravo; depois,pediu-lhe com cansaço na voz:

— Conte-me como tudo aconteceu, por favor.

— A fila do descarregamento de cargas era imensa. Porisso, tivemos que esperar por quase dois meses debaixo de umsol escaldante; daí, quando chegou a nossa vez vimos que arapadura não resistira, vindo a mofar a maior parte.

O barão escutou-o de cenho fechado, incrédulo. Levan-tou apoiando-se à mesa, gesticulando para que o escravo dei-xasse o recinto. Acompanhou-o até à porta e, abrindo-a brus-camente, chamou pelo filho aos brados.

Isabela, sobressaltada com a alteração do velho, veiodepressa em seu socorro.

— Papai, o que houve? O senhor não pode enervar-seassim!

— Filha, tivemos um prejuízo incalculável; eu hei depunir o irresponsável, incompetente! Vociferava o barão, co-lérico.

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— Acalme-se, papai, cuidado com o coração! Afligia-sea filha, segurando-lhe as mãos frias.

Tarcísio Vilaça entrou precipitadamente pela casa-gran-de, atraído pelos berros do pai. Ao passar pela sala, o mance-bo sentiu-se ainda mais envergonhado ao se deparar comFlorinda a um canto, folheando um livro. O barão trancou-se com o filho na biblioteca. Isabela arrastou-se até à escravaque, solícita, ajudou-a a sentar-se.

— Papai não pode ficar alterado dessa maneira; na últi-ma consulta que teve, o médico chamou-me à parte e pediuque não permitíssemos que nada o aborrecesse.

— Iaiá, vamos torcer para que a conversa entre os doisseja tranquila. Disse Florinda, fechando o volume.

— Há muito tempo que eu não o via como hoje; indubi-tavelmente, algo de muito grave ocorreu.

— Que Deus ilumine os homens! Balbuciou a escrava.

— Dindinha, dindinha, encontrei, look here! GritavaStefany correndo pela casa, exibindo uma revista inglesa.

— Que algazarra é essa, menina? Quis saber Isabela.

— Este é o vestido que a mamãe vai me dar de presente deNatal! Explicou a garota, mostrando a figura de um vestido lilás.

Isabela permaneceu imóvel na poltrona, totalmentealheia à euforia da afilhada.

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— Que lindo, Stefany, há de combinar muito bem coma cor clara da sua pele! Elogiou a escrava, achegando-se a ela.

Mas a pequena não dera importância ao que disseraFlorinda; abraçada à revista de modas, pôs-se a saltitar pelasala exclamando em voz alta:

— Mother, mother, I love you!

Assim que o barão colocou o filho a par dos fatos, estereplicou:

— Papai, eu garanto que recomendei ao capataz que ori-entasse Vítor a procurar pelo senhor Miranda.

Raul Vilaça encarou-o desconfiado, pois sabia-o des-compromissado com tudo que dizia respeito à fazenda, já que,por inúmeras vezes, flagrara-o chegando bêbado da orgia.

— Nós precisaremos de, no mínimo, três safras de canapara nos ressarcirmos desse prejuízo! Lamentou o barão.

— Somente Atanásio para nos esclarecer esse contra-tempo.

Dizendo isto, o mancebo partiu em busca do feitor, como qual retornou cinco minutos depois.

— Com licença, barão. Pediu o capataz.

— Atanásio, você se esqueceu das minhas recomenda-ções. Principiou Tarcísio, sentando-se novamente ao lado dopai.

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O feitor, que se mantivera de pé, limitou-se a sacudir acabeça negativamente.

— Vá com calma, Tarcísio. Ponderou o velho.

O mancebo mirou o empregado nos olhos e, finalmen-te, falou-lhe com voz clara:

— Eu tenho certeza de que entreguei a você um papelcom as seguintes anotações: quantidade da mercadoria, peso,valor, além do endereço do senhor Osvaldo de Miranda.

Atanásio coçou a cabeça por debaixo do chapéu de pa-lha; do rosto tostado pelo sol, pingava um suor que lhe enchar-cou a camisa de gola puída.

— Papel, sinhozinho, que diabo de papel é esse? Rugiuo feitor.

— O papel com a relação dos produtos, seus respecti-vos pesos e valores, além do endereço completo do nossorevendedor Miranda. Repetiu Tarcísio, alteando a voz.

Nervoso, o capataz estalava os dedos de unhas sujas; e,num ato de covardia, resolveu pôr a culpa em alguém paralivrar-se da enrascada.

— Ah, agora eu me lembro, passei o papel ao Mané Bento.

O barão e o filho entreolharam-se. Atanásio enxugava osuor da testa com o dorso da mão esquerda, sentindo-se alivi-ado ao transferir a culpa para um escravo.

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— Puna-o exemplarmente, feitor, esse negro não calcu-la o tamanho do prejuízo que nos deu por ter sido tão relapso.Exigiu Tarcísio, esmurrando a mesa.

— Pode deixar comigo, sinhozinho.

— Ponha-o no tronco por dois dias e duas noites a pãoe água; e, a cada amanhecer, aplique-lhe cinquenta chibatadasno lombo. Ordenou o filho do barão, de pé.

Atanásio bebia-lhe as palavras, antegozando o prazer decastigar o escravo Mané Bento, por este tê-lo impedido de vio-lentar a sobrinha Silvana na noite do aniversário de Salvador.

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— Eu me entendo com aquele negro safado, sinhozinho.Assegurou o capataz, retirando-se.

Mal o feitor saíra, o barão fez um gesto de enfado. Elenão era adepto desses castigos brutais que, ao invés de corri-gir os escravos, tornava-os revoltosos e insurgentes.

Há de se explicar que o referido tronco fora construídono tempo do coronel Pedro, pai do barão Raul Vilaça. Situa-do no centro do pátio principal da fazenda, ele tivera utilida-de numa única vez até então: Raul possuía um escravo pornome Cristóvão, que tinha o estranho hábito de perambularà noite pelo canavial. Apenas com o intuito de corrigi-lo, obarão mandou colocar o negro no tronco por três noites con-secutivas, libertando-o sempre pela manhã. Na quarta noite,porém, Cristóvão retornou ao canavial e desapareceu.

Isabela e Florinda entraram na biblioteca, onde encon-traram o barão numa profunda reflexão. A filha tocou-lhe deleve a mão, trazendo-o à realidade.

— Papai está pensando em quê?

— No tempo em que eu tinha saúde boa as coisas nãoeram tão atrapalhadas; se eu estivesse na administração da fa-zenda, à frente dos negócios, jamais ocorreria essa catástrofe!Lastimou o velho.

Isabela deixou-o falar sem interrupção, pois lhe faziabem aquele desabafo. Aconchegou-se ao pai, dizendo-lhe commeiguice:

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— Sei que sou muito jovem e inexperiente, mas quero queo senhor saiba que estou disposta a ajudá-lo no que for preciso.

Erguendo-se, Raul beijou-lhe afetuosamente a testa.

— O senhor é forte, há de vencer as dificuldades! Inter-veio Florinda.

Ele fitou a escrava, agradecido.

— Sei que não é o momento ideal para pedir-lhe umfavor.

O barão mirou a filha nos olhos, apertando-a contra opeito.

— Peça. Disse ele, tentando reanimar-se.

— É que Flor e eu vamos à Corte para providenciar oenxoval do bebê e...

— Você quer que eu autorize Vítor a acompanhá-las.Atalhou ele, adivinhando a solicitação da donzela.

Esta abraçou-o sorrindo, com os olhos úmidos de lágri-mas.

Enquanto o feitor acorrentava Mané Bento ao tronco,dizia-lhe à meia-voz:

— Vosmecê tem uma dívida comigo, negro.

— Deus há de puni-lo por todos os males praticados.Replicou o escravo.

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— Se acorrentar e chicotear um negro é pecado, então paraque Deus criou o escravo? Blasfemou o capataz, escarnecedor.

— Vosmecê não me deu papel nenhum, isso é calúnia!Clamou o infeliz.

— Cale a boca, negro sujo! Ordenou Atanásio, bran-dindo o chicote no ar.

— Afrouxe um pouco a corrente, tenha dó deste pobrenegro! Suplicou Mané Bento.

O déspota riu-lhe na cara; e, antes de se afastar, disse-lhe:

— Prepare o lombo para amanhã cedo, são cinquentaaçoites; e, até lá, que a assombração de Cristóvão lhe faça com-panhia!

Florinda percebeu que Vítor rolava na cama sem conse-guir conciliar o sono.

— O que há com você? Indagou ela num cicio.

— Não consigo dormir. Admitiu ele.

— Vítor...

— O Mané está pagando por um erro que não come-teu. Cortou Vítor, sentando-se.

— São ordens do sinhozinho. Murmurou ela, deitadade costas.

— Ordens de um moço caprichoso, que acreditou nas

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mentiras de um cafajeste como o feitor. Rebateu Vítor, in-dignado.

— Dói-me o coração saber que um irmão nosso seráaçoitado! Compadeceu-se Florinda.

— Sinhozinho nem deu ao coitado a chance de se de-fender; tudo isto, porque o barão já não é mais o mesmo!Lamuriou Vítor, deslizando o corpo até à beira da cama.

Florinda acariciou-lhe a mão, num gesto mudo de aqui-escência; entretanto, nem por um segundo passou-lhe pelacabeça contar-lhe o episódio da biblioteca, no qual Tarcísiofora ridículo protagonista.

— Deus há de dar ao nosso filho um destino melhor!Balbuciou a escrava, esperançosa.

Vítor comoveu-se com as palavras de Florinda, sentindoo coração um pouco aliviado. O vento uivava lá fora. A noitearrastava-se vagarosamente. Enfim, nasceu outro dia sem sol.

Dona Juraci, condoída com a situação de Mané Bento,levou-lhe um prato de mingau às escondidas do capataz quenão demoraria a castigar o negro.

Com uma ruga na testa, o barão lia a carta da filha maisvelha, que lhe chegara àquela manhã. A missiva comunicavaa vinda de Graça ao Brasil. Finda a leitura, ele passou a cor-respondência para Tarcísio, de pé a seu lado, resmungando:

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— Espero que ela tenha tomado juízo de uma vez portodas.

O mancebo leu a carta com certa displicência, comen-tando ao devolvê-la:

— Minha irmã não perde as manias de grã-fina.

O filho do barão montou no seu cavalo preto e galopoupara as bandas do engenho. Enquanto regava a horta, Silvanamatutava numa maneira de livrar o tio Mané Bento do suplí-cio em que se achava. A sanha do capataz fora terrível, dei-xando o escravo em carne viva. E, para maior tormento dasobrinha, os gritos dilacerantes do tio infeliz não lhe saíamdos ouvidos.

Anoiteceu. A lua surgiu timidamente num céu sem es-trelas! Atanásio, esse homem desalmado, encontrava-se soli-tário na cabana onde vivia. De repente, ele ouviu ruídos defolhas secas; e, sem qualquer dúvida, distinguiu serem passosde gente.

— Seu Atanásio. Chamou-o alguém de fora.

Instintivamente, ele pegou o revólver e saiu para a escu-ridão da noite.

— Seu Atanásio. Repetiu a voz.

— Silvana! Respondeu ele, reconhecendo a escrava.

Esta saiu de trás da moita, mostrando os dentes claros.

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— Eu tenho uma proposta para fazer a vosmecê. Falouela, a pequena distância.

Num gesto automático, Atanásio retirou o revólver dacintura.

— Proposta a me fazer?! Espantou-se ele, sentindo osangue ferver.

— Eu deito com vosmecê, se o meu tio for solto.

O capataz ficou em silêncio, um pouco desconfiado.

— Ah! Silvana...

— Guarde essa arma, homem, e venha deitar comigo!Convidou ela, requebrando os quadris.

O feitor escutou-a atentamente, depois argumentou:

— Eu não saio sem o meu revólver.

— Se vosmecê prefere o revólver a mim, então deixe paralá. Disse ela com voz dengosa.

Atanásio viu-se obrigado a ceder; guardou a arma numacaixa de madeira, da qual tirou um molho de chaves. Silvanaacompanhou-lhe os movimentos, certificando-se de que ofeitor a seguiria desarmado.

Durante o percurso até uma velha cabana abandonada, aescrava receou não conseguir executar o que havia planejado.Porém, lembrando-se do padecimento do tio, das feridas pelo

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corpo causadas pelas chibatadas, tomou fôlego e acelerou opasso. Mesmo a certa distância, Atanásio divisava-lhe o corpobem-feito que tanto desejava, pelo qual faria qualquer coisa.

Quando o capataz chegou à cabana, Silvana já se encon-trava deitada num catre, nua, e tendo ao lado do corpo umabarra de ferro. Ele devorou-a com os olhos cheios de luxúria,e da sua boca escorria uma baba viscosa.

— Para que esse troço? Perguntou ele, apontando a barra.

— Venha, homem, aproveite que a noite está fria! Cha-mou ela insinuantemente, desconversando.

Ainda de pé à soleira da porta, Atanásio corria o olharda barra de ferro ao corpo nu da escrava.

— Mas, Silvana...

— É desse jeito que vosmecê há de se deitar comigo, debotas e paletó?

Finalmente, o feitor não resistiu; caminhou resoluto atéà escrava e sentou-se na beira do catre. Enquanto descalçavauma bota, virou-se para olhar de novo o corpo de Silvana,agora a poucos centímetros de distância. E, no momento emque ele descalçava o outro pé, recebeu da escrava um golpeviolento na cabeça. O homem emitiu um grunhido de dor!Sem perda de tempo, a escrava golpeou-o pela segunda vez,deixando-o inconsciente. O sangue jorrava abundante da nucado feitor, encharcando-lhe o corpo arqueado sobre os joelhos.

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Silvana colocou a barra de ferro debaixo do colchão depalha. Vestiu-se às pressas e, apoderando-se das chaves escon-didas no bolso do paletó de Atanásio, trancou a porta da ca-bana por fora e foi libertar Mané Bento. Ofegante, ela abriaos cadeados dizendo:

— Fuja, tio, senão amanhã o capataz o mata de tantobater.

— Não posso abandoná-la, Silvana, quem há dedefendê-la? Retrucou o negro.

— Não se preocupe comigo, tio; Deus toma conta de mim!

Mané Bento hesitou por um instante, mirando a sobrinhacom ternura. Silvana sorriu-lhe para lhe transmitir coragem; en-tão, o escravo voou pela noite escura, feito ave noturna. Silvanacorreu até o rio, onde arremessou as chaves e os cadeados.

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VVVVVIIIIITTTTTÓÓÓÓÓRRRRRIIIIIAAAAA

A filha de Florinda nasceu em uma manhã em que o solbrilhava com todo esplendor! A natureza vestida de verde sau-dou a criança com perfume de rosas!

— Não disse que seria uma menina?! Falou Juraci comum sorriso contagiante.

— Vejam os olhinhos dela, parecem duas esmeraldas!Comentou Augusta, debruçada sobre o neném.

— E por um acaso vosmecê conhece esmeralda? Per-guntou Silvana da porta do quarto, zombeteiramente.

— Olhos iguais aos da mãe, lindos! Elogiou Juraci.

Vítor e Florinda têm no semblante uma felicidade queinebria. Ele se ajoelhou outra vez ao lado da cama para con-templar a filha. Embevecido, seus olhos marejados de lágri-mas vão da criança à mãe!

— Anjo do céu! Murmurou o pai.

E, em pouco tempo, o pequeno quarto ficou abarrota-do de escravos que vieram conhecer a filha de Florinda, estacompanheira a quem passaram a admirar! Todos os negros

- CAPÍTULO 9 -

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cumprimentaram Vítor, abraçando-o com euforia.

— Parabéns, meu sogro! Gracejou Chico.

— É uma bênção de Deus! Falou Serafim, roçando osdedos na cabecinha da menina.

— Qual o nome vosmecês darão a essa lindeza? Quissaber Juraci, provocando um silêncio entre os presentes.

— Nossa filha chama-se Vitória. Respondeu Florindacom os olhos brilhantes postos em Vítor.

Este pegou a mão da mãe de sua filha e beijou-a comreverência. Os negros aplaudiram tal gesto com total entusi-asmo! Dona Juraci olhou com ternura para a criança, Rosinhalhe afagou a cabecinha cabeluda! Emocionada, Augusta sor-ria e chorava ao mesmo tempo, a um canto do quarto. E, numaesfuziante alegria, os escravos decidiram fazer uma grandebatucada para comemorar o nascimento de Vitória, naquelamanhã de domingo!

Na biblioteca da casa-grande, o barão Raul Vilaça ou-via estupefato o que o conselheiro Mendonça viera relatar-lhe:

— Barão, as finanças da fazenda estão péssimas; lamen-to ter de alertá-lo para uma iminente falência, caso não sejamtomadas as devidas precauções com extrema urgência.

— Diga-me se há algo que eu possa fazer para tentar rever-ter essa situação. Pediu Raul, com o semblante transtornado.

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O conselheiro pigarreou, ajeitou-se na cadeira e respon-deu-lhe com absoluta lealdade:

— É indispensável que se desfaça de bens valiosíssimos,pois o deficit é bastante alto.

O barão apoiou os cotovelos sobre a mesa, cobriu o ros-to enrugado com as mãos, desalentado. Permaneceu assim poralguns instantes de olhos cerrados, depois se levantou sentin-do-se mais velho e cansado.

— Eu sei que tenho estado ausente durante todo essetempo, desde o falecimento da baronesa; sou consciente, tam-bém, de que meu filho Tarcísio nunca se interessou em apren-der nada com relação à fazenda. Portanto, assumo este fra-casso, dou o meu pescoço à forca. Sentenciou o velho, como-vedoramente.

O conselheiro sensibilizou-se com o drama do amigo; epondo-se de pé, opinou:

— A verdade é que os jovens de hoje não querem saberde compromissos.

— Mas a culpa é somente minha; fui eu quem deu omilho ao bode, entregando a esse fedelho as rédeas da mon-taria. Penitenciou-se o barão, batendo no peito.

— Não se puna desse jeito, Raul; para tudo na vida en-contra-se uma saída, menos para a morte! ContemporizouMendonça, sincero.

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Raul Vilaça foi até à estante recolocar três livros quehavia terminado de ler. Ao arredar uma garrafa de uísque va-zia, uma folha de papel dobrada e amarrotada surgiu-lhe di-ante dos olhos. Com dedos trêmulos, desdobrou-a para co-nhecer-lhe o conteúdo. Encerrada a leitura, sua expressãodenotava espanto e decepção.

Sem atinar com o que se passava no espírito do amigo, oconselheiro seguia-lhe os movimentos, apreensivo.

— Barão, você não imagina o quanto me sinto contrari-ado em lhe trazer este assunto justamente numa manhã dedomingo! Disse Mendonça, quebrando o silêncio.

— É a sua função, conselheiro; outrossim, não adiantaa gente querer fugir dos problemas. Ponderou Raul, reapro-ximando-se.

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— O que há nesse papel que o deixou tão perturbado?Inquiriu Mendonça, preocupado.

O barão sentou-se novamente à mesa; e, reunindo for-ças, pôs-se a explicar:

— Aqui estão as anotações referentes à malfadada ven-da que nos trouxe os mais recentes e devastadores prejuízos.Por conseguinte ao desaparecimento deste maldito papel, umnegro foi injustamente posto no tronco e açoitado severamen-te. E, com o auxílio de algum escravo, ele fugiu antes de levara segunda surra.

— É inacreditável tudo o que tem ocorrido por aqui!Exclamou o conselheiro Mendonça.

— Agora você compreende porque eu estou afundadoem dívidas; e, o que é pior, velho e cansado para nadar contraa maré. Acrescentou o barão, tamborilando com os dedos naborda da mesa.

O conselheiro Mendonça sentia-se profundamente pe-nalizado com a causa do amigo. Todavia, falou a ele num tomfirme, convincente:

— Eu reconheço que a dívida com o banco é vultosa;entretanto, não há crise financeira irreversível quando se tem,por exemplo, uma dúzia de bons escravos para vender.

Tarcísio Vilaça, pressentindo a razão pela qual o conse-lheiro Mendonça viera falar com seu pai, escapuliu no seu

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cavalo preto. O mancebo galopava sem rumo certo pelas co-linas verdejantes! Após uma hora de cavalgada, apeou-se eamarrou o animal a um tronco de árvore. Enquanto cami-nhava às margens do rio, o vento fustigava-lhe o rosto suado.Fatigado, sentou-se numa pedra e se pôs a pensar em Florinda:lembrou-se de quando ela chegara à fazenda, despertando neleum desejo incontido; recordou-se da noite em que se atiraraaos seus pés, implorando pelo seu amor! E, por esse senti-mento que o deixava transtornado, provocou a separação deVítor e sua amada com o intento de se favorecer, mas foratudo em vão. Doeu-lhe ver o ventre de Florinda crescer e, maispungentemente ainda, saber que a escrava dera à luz uma fi-lha do seu rival.

— Sinhozinho! Chamou-o uma voz que lhe pareceu virdas águas cristalinas do rio à sua frente.

— Será que alguém me chamou?! Murmurou Tarcísioolhando em derredor, nada avistando.

— Sinhozinho! Persistiu a voz.

Num impulso, ele ficou de pé. Relanceando os olhosem torno, o mancebo divisou um vulto atrás de um arbusto.

— Quem está aí? Perguntou ele, levando a mão ao re-vólver.

— Sou eu, sinhozinho, Silvana. Identificou-se a escra-va, de cócoras.

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Ao se erguer, Tarcísio reparou que ela estava nua. Ad-mirou-lhe as curvas do corpo, os seios túmidos, e, num dese-jo voraz, lançou-se para ela. Apertou-a nos braços, sentindo-lhe a tez morna, enquanto beijava-a sofregamente. E, ali mes-mo, no chão coberto de folhas, feito dois animais no cio, de-voraram-se sem qualquer pudor!

A distância, alguém os observava, fumando tranquila-mente um charuto. Saciado, o mancebo montou no seu cavaloe partiu em disparada para a fazenda dos Madureira. Silvanaretirou cautelosamente as roupas dependuradas no galho deum limoeiro; vestiu-se e, no seu gingado peculiar, saiu canta-rolando. De repente, um arrepio percorreu-lhe o corpo intei-ro. Estarrecida, a escrava enxergou o feitor na outra margemdo rio. Atanásio sorriu-lhe descaradamente; ela mostrou-lhe alíngua e acelerou o passo, embrenhando-se pelo mato adentro.

Alice recebeu o noivo Tarcísio radiante de alegria!

— Que bom você ter vindo almoçar conosco, meuamor! Exclamou ela, acarinhando-lhe o rosto sujo de terra.

— Desculpe-me, acabei sujando-me no engenho antesde vir para cá. Disfarçou ele, limpando com as mãos a roupaamarfanhada.

— Mas hoje é domingo, meu bem, você tem de descansar!

Dona Márcia foi ao encontro dos jovens, salvando omancebo de um inevitável embaraço.

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— Pelo menos uma visita nesta casa num dia de domin-go, já que Tonico não mais arreda o pé da Corte. Disse ela,saudando o genro.

— Mamãe, Tarcísio é meu noivo, não é visita; e, se pa-pai...

— Seu pai eu já conheço como a palma da mão; por-tanto, não precisa me repetir a velha história: negócios im-portantes, compromissos inadiáveis... Cortou-a dona Már-cia, enfastiada.

— Vamos entrar, querido; e, por favor, não leve a mal, éque mamãe fica nervosa na ausência do papai.

Alice puxou carinhosamente o noivo pela mão. Tarcísiosentou-se confortavelmente numa poltrona defronte à sogra.Esta, após o desabafo, falou com satisfação:

— Toda a região comenta que a família Vilaça está emfesta! Quando fui à vila mais cedo, não se falava de outro as-sunto.

— Festa?! Espantou-se o filho do barão, simulando des-conhecer o fato.

— Sim, uma festa de comemoração ao nascimento dafilha da escrava Florinda. Tornou dona Márcia, explícita.

— Perdoe-me, senhora, é que eu nem me lembrava maisdisso. Desdenhou Tarcísio.

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— Deve ser a criança mais linda do mundo! ImaginouAlice, sorrindo.

— Vítor e Florinda são dois escravos instruídos; por isto,essa criança nas mãos de um bom administrador, poderá ren-der uma fortuna! Declarou dona Márcia.

Tarcísio Vilaça não ocultava o desgosto que lhe traziatal assunto, fechando a cara aborrecido.

Mal o barão e o conselheiro saíram da biblioteca, donaBilu veio ao encontro do marido comendo uma fatia de rosca.

— Que beleza é a filha da pianista, Mendonça; osolhinhos dela são verdes iguais aos da mãe!

— E você comendo quitanda na hora do almoço, Bilu.Censurou o marido.

— A menina é cabeludinha, assim como Felipe quandonasceu. Relatava dona Bilu, ignorando o comentário do ma-rido, conduzindo-o à sala de jantar.

— Bilu, does Felipe speak English? Indagou Stefany, jásentada à mesa e de talher em punho.

— Lógico, menina; saiba você que Felipe é poliglota: elefala francês, inglês, espanhol e alemão, além do português. Res-pondeu ela, orgulhosa.

A garota ficou de boca aberta. O conselheiro franziulevemente a testa.

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— O rapaz vem passar o Natal no Brasil, Mendonça?Perguntou o barão.

— Felipe virá para o Réveillon. Informou dona Bilu, de-pois de engolir a comida sem mastigar.

— Até que eu gostaria de dizer “Wellcome, Felipe!” Mas,já não estarei por aqui; é que, após o Natal, mamãe me levarápara passar as férias em Londres.

— Stefany, coma mais um pouco de salada. SugeriuIsabela.

— Para quê? Quis saber a menina, torcendo o nariz.

— Para a saúde, e porque você está muito branca. Res-pondeu a donzela.

— Posso até comer mais uma folha de alface, dindinha;mas, você tem de aceitar a minha cor, por causa da minhaascendência inglesa. Replicou Stefany piscando um olho paradona Bilu.

Esta deu uma gargalhada, serviu-se de mais feijoada edisse:

— Fiquei sabendo que você vai ganhar um vestido lin-do, Stefany!

— Custou one thousand dollars! Informou ela, emper-tigando-se na cadeira.

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Bilu soltou outra gargalhada. A mulher do conselheiroadorava conversar com a pequena Stefany, tão parecida coma mãe, que sempre tivera ares de grandeza.

No fim da tarde daquele domingo, o barão convocou ofilho à biblioteca. Tarcísio entrou ressabiado, sentando-se àmesa sem fitar o pai.

— Você reconhece isto? Interrogou o velho, estenden-do-lhe uma folha de papel.

O mancebo pegou-a com lentidão, mirando-a displi-centemente.

— São as tais anotações que sumiram. Gaguejou ele, lar-gando o papel sobre a mesa.

— E, por conseguinte ao sumiço dessas malditas anota-ções, nós tivemos um prejuízo desastroso, além da perda deum escravo.

Tarcísio escutou cabisbaixo as palavras do pai.

— Eu entreguei esta folha ao capataz. Disse ele, passan-do de leve o dedo indicador na borda inferior do papel.

Mas seus olhos não transmitiam convicção.

— Então, por que esse papel não foi repassado ao Vítor?Inquiriu Raul, lançando um olhar à folha aberta em cima damesa.

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— O capataz agiu com total irresponsabilidade. Acu-sou Tarcísio.

Raul Vilaça mirou o filho, visivelmente estafado.

— Sendo assim, moço, trate de resolver esse problema.Disse o barão, num fio de voz.

Tarcísio acompanhou o pai arrastar-se até à porta e seretirar do recinto.

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DDDDDEEEEESSSSSAAAAACCCCCEEEEERRRRRTTTTTOOOOOSSSSS

O barão Raul Vilaça e o filho Tarcísio vêm, desespera-damente, procurando uma solução para os problemas que as-solam a fazenda. Com o canavial bastante ressecado, a rapa-dura e a cachaça têm sido de péssima qualidade. E, para agra-var ainda mais a situação, a escravaria vem se reduzindo numavelocidade desenfreada: tudo começara com a invalidez deSalvador, depois o desaparecimento de Cristóvão, as mortesde Leonor e Zulmira, mesmo que em situação e época distin-tas, a venda desautorizada de Valentino por parte do capataze, mais recentemente, a fuga de Mané Bento. Devido a essas eoutras intempéries da vida, o barão tem trazido os olhos fun-dos e o semblante cansado. Isabela andava preocupada com opai, sobressaltando-se a cada vez que ele e Tarcísio tranca-vam-se na biblioteca para conversar.

— Desde a vinda desse feitor para cá, que nos tem acon-tecido só desgraças! Analisou Tarcísio, eximindo-se dos seuspróprios erros.

O velho escutou-o em silêncio. Quando ele falou, a vozsoou fraca, mas audível:

- CAPÍTULO 10 -

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— Mendonça aconselhou-me a vender que seja uma dú-zia dos melhores escravos, para liquidarmos pelo menos par-te das dívidas; e, se as coisas não se ajustarem, será imprescin-dível vender terras.

Pela primeira vez, o mancebo tivera noção do caos emque se encontravam as finanças da fazenda.

— Acho que, de novo, é necessário descontar do saláriodo capataz...

Raul interrompeu-o com um gesto autoritário.

— Faça a lista dos escravos e mande Atanásio vendê-losna Corte; mas lembre-se: negros velhos como Juraci, Chico,Serafim, Juvenal, não têm grande valor. Ordenou o barão, ig-norando a sugestão do filho.

Tarcísio acatou a ordem do pai com um aceno de cabe-ça. E, ao se retirar, saiu à cata do feitor. Encontrou-o sentadono banco de madeira que contorna todo o pátio principal dafazenda. Ao perceber o patrão aproximar-se, Atanásio apa-gou o charuto e cumprimentou-o:

— Boa tarde, sinhozinho!

— Em conversa com o meu pai, ficou estabelecido queteremos de, infelizmente, descontar dez por cento do seu sa-lário para amenizar os prejuízos causados pela sua negligên-cia. Informou o mancebo, sem fazer rodeios.

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Atanásio franziu a testa, perceptivelmente contrariado.

— Se é assim que vosmecês querem, quem sou eu paraimpedir. Condescendeu o feitor.

Tarcísio estranhou-lhe a atitude pacífica, pois sabia-o in-sensato, inflexível e explosivo. No entanto, continuou a falar:

— Amanhã bem cedo, atrele esses escravos e leve-os àCorte para serem vendidos pelo senhor Miranda, o qual seráavisado por mim, hoje à noite. Encerrou o filho do barão,olhando a lista com os nomes, antes de entregá-la ao feitor.

Mal o rapaz afastara-se, Atanásio resmungou entre dentes.

— Se esse fedelho e o barão caduco pensam que hei detrabalhar de graça para eles, estão muito enganados.

A noite chegou quente, sem ventos. Mas o coração deJuraci permanecia gelado! Enquanto apanhava umas folhasde hortelã para fazer um chá, perto da cerca, a negra escutaratoda a conversa entre o filho do barão e o feitor. Sem ser vista,ela deixara o local, pressentindo um terrível acontecimento.Minutos antes de partir para a Corte, Tarcísio ficou zanzandoem torno da casa-grande, dando a impressão de que refletiasobre um assunto de extrema relevância. Por fim, resolveuentrar pela sala. Aproximou-se de Florinda e, agachando-se,pôs-se a acariciar a cabecinha da menina que a escrava tinhaao regaço. Vitória sorriu-lhe candidamente!

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— Ei, bonequinha linda! Falou o mancebo à criança.

Isabela e Stefany, que também estavam presentes, ob-servavam-no.

— É sinhozinho, filha! Murmurou a mãe.

— Quando você crescer, hei de levá-la para cavalgar co-migo. Acrescentou ele, agora afagando as bochechas rosadasda pequena.

— Padrinho não discrimina as pessoas, he’s a great man!Falou Stefany não contendo o despeito.

— Stefany, fale baixo porque Vitória não consegue dor-mir com este calor, além de estar gripada. Exigiu a donzelacom ar de censura.

Porém, a reprimenda de Isabela não atingiu a menina;mas, sim, o que lhe doeu realmente foi Tarcísio ter beijado asduas mãozinhas delicadas da filha de Florinda, antes de sair.

Consciente da ausência de Tarcísio e da indisposição deRaul Vilaça devido ao intenso calor, Atanásio sentiu-se total-mente livre para agir como lhe aprouvesse. O capataz pene-trou na biblioteca e começou a vasculhar as gavetas da mesaaté achar a cópia da chave da cabana velha onde, quase todasas noites, o mancebo e a escrava Silvana vinham encontran-do-se. De posse do objeto, o feitor encaminhou-se para o re-ferido esconderijo. Um cão perdigueiro da fazenda fizeramenção de acompanhá-lo. Entretanto, Atanásio detivera-o

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com um pontapé. O animal ganiu de dor, retornando com orabo entre as pernas. Mais à frente, um bicho do mato assus-tou-se com o feitor, refugiando-se debaixo de uma pedra.

Ao escutar os passos, Silvana preparou-se para recebero filho do barão. Tendo-os tocaiado um certo tempo, Ataná-sio assobiou duas vezes imitando o mancebo, tão logo inseri-ra a chave na fechadura.

— Sinhozinho? Chamou a escrava, de dentro.

A porta se abriu com um rangido fúnebre. Silvana que,descontraidamente, estava deitada de bruços, ao girar a cabeçapara a direita, avistou o capataz avançar em sua direção; seusolhos esbugalharam-se de terror! Ele soltou uma gargalhadadiabólica. Quando a escrava virou-se de costas numa vã tenta-tiva de se defender, foi atingida pelo crápula que, num golpemortal, cravou-lhe o punhal no peito. E, com a ponta da arma,Atanásio ainda riscou-lhe o corpo de cima a baixo. Depois, cau-telosamente, enrolou o cadáver de Silvana no mesmo lençolborrifado de sangue, arremessando-o pela janela.

A lua brilhava no céu nessa noite de calor sufocante!Florinda contemplava Vítor brincando com a filha no chãodo quarto. Vitória dava gritinhos de alegria, enquanto espi-chava os bracinhos para puxar os cabelos do pai. Mas,inexplicavelmente, a escrava sentia um aperto no coração, algoque ela não saberia decifrar.

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— Cadê o sorriso do papai?!

A menina sorria-lhe com candura!

— Pá-pá-pá! Tentava falar Vitória, batendo as mãozi-nhas uma na outra.

— Agora, cadê o sorriso da mamãe?!

A pequena relanceou os olhos pelo quarto e, ao desco-brir Florinda a um canto, sorriu-lhe também.

Vítor ergueu-se para ir abraçar a mulher, beijando-a ar-dentemente! Os dois fitaram-se em silêncio, numa confissãode amor eterno! Vitória bateu palmas, como se compreen-desse o significado daquele enlace, mirando os pais com olhoscheios de pureza!

Manhã. O capataz apresentou-se logo cedo ao patrão.

— Licença, barão, é só para avisar ao senhor que eu jáestou de partida com os negros.

Raul Vilaça assentiu com a cabeça, depois acrescentou:

— O Miranda há de cuidar da negociação dos escravos;portanto, cabe-lhe apenas vigiá-los para que nenhum fuja.

Atanásio olhou para o velho com indiferença, sentindoum prazer sórdido por saber que jamais o veria novamente.Na estrada, o feitor conferiu os doze escravos atrelados aofundo da charrete, entre os quais Vítor.

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A notícia da venda de Vítor abalara Florinda profunda-mente! Juraci, a seu lado, tinha nas mãos um copo de águacom açúcar.

— Beba um gole, minha filha. É bom para acalmar osnervos. Aconselhava a negra.

Mas a escrava recusava obstinadamente.

— Por que sinhozinho vendeu Vítor, Juraci, se ele per-tence ao senhor barão? Soluçava Florinda aconchegando afilha ao peito.

— Vida infeliz! Murmurava Augusta com o rosto ba-nhado em lágrimas.

— Isso é maldade do sinhozinho Tarcísio, moço vinga-tivo! Desabafava Florinda, revoltada.

— Graças a Deus que vosmecê ainda tem Vitória, Flor!Disse Rosinha, querendo confortá-la.

— Console-se, minha filha, sofrer faz mal ao coração!

Rosinha abraçou a avó, enternecida com as palavras davelha.

— Eu é que não tenho ninguém neste mundo, vivo poraí vagando feito alma penada! Clamou Augusta, angustiada.

— Do jeito que Vítor é inteligente, um dia ele volta parabuscar vosmecê, Flor! Encorajou-a Rosinha.

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A pequena Vitória mamava serenamente no peito damãe, cujas lágrimas não cessavam de rolar.

A venda dos escravos deixara a todos desnorteados, tantoque nem se deram conta do sumiço de Silvana, ou talvez aimaginassem entre os companheiros levados àquela manhã.

A tarde caía, trazendo consigo um frescor, prenuncian-do uma noite de clima mais ameno! Dois escravos, de enxadaao ombro, regressavam da labuta. Depois de observarem ovoo rasante de alguns urubus em direção à cabana velha, umdeles interrogou assustado:

— O que está sucedendo acolá, Chico?

— Deve ser bicho morto, Juvenal.

Então, os negros aceleraram o passo até à senzala, ondeencontraram outros companheiros já em descanso.

— Pessoal, há um bando de urubus sobrevoando a ca-bana velha. Alardeou Juvenal.

Os demais escravos aproximaram-se dos recém-chega-dos com certa apreensão.

— Vamos lá dar uma olhada. Sugeriu Serafim.

A cena chocou-os sobremaneira. Cerca de oito negrosavistaram, estarrecidos, os abutres devorando o corpo deSilvana. Súbito, eles investiram enraivecidos contra as aves,afugentando-as a pauladas e pedradas.

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— Juvenal, Serafim, Vicente, levem a má notícia ao ba-rão, que nós ficaremos aqui protegendo o corpo da infeliz!Coordenou Chico, com a voz embargada.

Juraci fora a primeira a receber a notícia na casa-grande.

— Mais uma atrocidade daquele demônio! Garantiu anegra, cobrindo o rosto com as mãos.

— Ele jurou que iria matá-la e cumpriu a promessa, aquelemalvado! Falou Vicente, um negro de estatura mediana.

A notícia da morte da escrava Silvana espalhou-se pelafazenda como praga na lavoura. Augusta tremia incontrola-velmente; Rosinha agarrou-se à avó num choro incessante!Os escravos que ainda restavam amontoaram-se no pátio prin-cipal da fazenda, em solidariedade ao barão Raul Vilaça.

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— Vó, o barão está no quarto. Informou Rosinha.

Portanto, coube à negra Juraci comunicar ao patrão abarbárie cometida pelo capataz, já que Tarcísio e Isabela en-contravam-se na Corte.

Acompanhado por alguns escravos, Raul fora pessoal-mente conferir a tragédia.

— Oh, meu Deus, que crueldade! Exclamou Juraci, ajo-elhando-se ao lado do cadáver de Silvana.

Sob as ordens do barão, Chico e mais dois negros im-provisaram uma padiola, na qual transportaram o corpo daescrava assassinada ao cemitério local, no alto de uma colina,onde o enterraram num silêncio profundo.

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EEEEENNNNNCCCCCOOOOONNNNNTTTTTRRRRROOOOOS ES ES ES ES EDDDDDEEEEESSSSSEEEEENNNNNCCCCCOOOOONNNNNTTTTTRRRRROOOOOSSSSS

Era uma manhã cinzenta de dezembro quando a barãoRaul Vilaça e a neta Stefany receberam Graça no cais do por-to. Ela saltou do navio e avançou por entre a compacta multi-dão de pessoas à sua frente.

— Excuse-me, my boy! Pedia Graça a um negrinho car-regador de malas que lhe obstruía a passagem.

— Olhe, essa moça é estrangeira! Afirmou uma mulherao marido, observando-a furar a massa humana.

— Sorry, my darling! Pediu Graça, por ter pisado o péde uma gorda, que se abanava freneticamente com um leque.

— Com esse nariz empinado, nem pode mesmo olharpara baixo. Reclamou a senhora, depois de um muxoxo.

Prevenida em carta por Isabela da saúde debilitada do pai,Graça antecipou a sua chegada ao Brasil. Ao avistar o barão de-baixo de uma marquise, ela constatou-lhe a inegável decadência.

— Sua bênção, pai. Disse ela antes de abraçá-lo e beijá-lo na testa.

- CAPÍTULO 11 -

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Raul mirou a filha de frente: achou-a corada, mais forte,apesar de estranhar-lhe os cabelos curtos e tingidos de louro.

— Deus a abençoe! Respondeu o velho numa voz su-mida.

— Stefany, my daughter. How are you?!

Graça abraçou emocionada a menina, correndo a mãoesquerda pelos seus cabelos longos e cacheados.

— I’m fine, thanks, and you? Respondeu a garota, sorri-dente.

Graça espantou-se com o tamanho da filha, tão alta paraa sua idade. O barão as contemplava em silêncio.

— Vamos embora, Graça; as irmãs Trindade nos espe-ram para o almoço. Chamou-a o pai, acenando para o novofeitor, já que Atanásio fugira depois da venda dos escravos,denunciando-se, portanto, como o assassino de Silvana.

De mãos dadas, mãe e filha caminhavam pela areia emdireção à carruagem. Vez ou outra, Graça olhava de soslaiopara Stefany, cuja semelhança com o pai era incontestável: osmesmos olhos claros, a boca pequena e sensual... Esse homemque fora o grande e único amor de sua vida, e que, numa ati-tude abominável, sugerira-lhe abortar a criança.

Na biblioteca da casa-grande, Tarcísio Vilaça receberanovamente a escrava Florinda. Esta, porém, recusou-se edu-cadamente a sentar-se na cadeira que lhe fora oferecida, pre-

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ferindo permanecer de pé diante da mesa de madeira escura,por trás da qual o mancebo examinava-a meticulosamente.Ela tinha os olhos sombrios, mas ainda belos; a expressão dorosto cansada, porém altiva! Enfim, conservava-se exuberan-te, mesmo padecendo com a falta de Vítor.

— O sinhozinho deseja falar comigo? PerguntouFlorinda, sentindo-se incomodada com o silêncio.

— Quero ter notícias da sua filha; afinal de contas ela éum bem da fazenda, um patrimônio da família Vilaça. Prin-cipiou o filho do barão, com um cigarro entre os lábios.

— Vitória está com boa saúde, graças a Deus! Respon-deu ela, serenamente.

— Fale-me mais da menina, Flor. Insistiu ele, simulan-do interesse pela criança.

— Como toda criança pequena, ela é muito travessa; mas,minha função de mãe é educá-la para servir aos seus senhores.

— Minha irmã mais velha chegou hoje da Europa; ama-nhã, papai há de oferecer-lhe um almoço especial! Você quersentar-se à mesa conosco, Flor? Convidou o rapaz, cheio deexpectativa.

— Sinhozinho, eu reconheço o meu lugar.

— Então, toque piano para nós; garanto que Graça nun-ca ouviu musicista igual a você, Flor! Sugeriu Tarcísio, comum brilho de esperança nos olhos.

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— Não tenho mais vontade de tocar nada, perdi com-pletamente a inspiração! Disse a escrava, melancólica.

Tarcísio jogou a guimba do cigarro no cinzeiro; emper-tigando-se na cadeira de espaldar reto, esfregava as mãos an-siosamente. Indiferente, Florinda seguia-lhe os movimentosnervosos. Após breve reflexão, o mancebo decidiu enveredar-se por outro caminho, julgando-o mais apropriado.

— Flor, sei que me comportei mal da última vez em queconversamos; fiz papel de idiota e é por isso que eu gostariade me redimir.

— Eu tive pena do sinhozinho. Murmurou a escrava.

Os olhos do mancebo arregalaram-se de perplexidade.E, com voz alterada, interrogou-a:

— Pena, por quê?

— O sinhozinho deu-me a impressão de estar infeliz!

Tarcísio escutou-a com a respiração suspensa. Depoisde soltar lentamente o ar dos pulmões, perguntou-lhe comuma ponta de ironia:

— O que é ser feliz para você, moça?

Florinda percebeu claramente a ironia contida na per-gunta do mancebo; no entanto, respondeu-lhe com brio:

— Ser feliz é viver em paz consigo mesmo, ter amor ver-dadeiro no coração!

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O filho do barão engoliu em seco; levantou-se para olhá-la de cima e, aproveitando a deixa, atacou com outra pergunta:

— E o que é o amor para você, Flor?

— O amor é o sentimento mais puro que possa brotarda alma humana! Respondeu ela com suavidade, tendo osolhos semicerrados como se tal sentimento fosse exposto aalguém que lhe maculasse a perfeição.

Descruzando os braços, ele ainda quis saber da escrava:

— O que você entende por amar, Flor?

— Eu amo a minha filha e amo, também, o pai da mi-nha filha! São amores com a mesma essência e intensidade,mas distintos.

Meio desapontado, o mancebo tossiu antes de argumen-tar:

— O pai da sua filha já não vive mais ao seu lado; por-tanto, isso que você sente por ele é amor platônico.

— É verdade que ele não vive fisicamente ao meu lado,mas está tão presente em mim como o ar que eu respiro! Re-plicou ela, suspirando de saudade.

Impaciente, Tarcísio Vilaça deu alguns passos a esmopela biblioteca. Após uma longa pausa, o filho do barão retor-nou à mesa e falou:

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— Flor, pensando no futuro de Vitória e que você pre-cisa de alguém para ajudá-la a criar sua filha, proponho-lhecasamento! Estou disposto a passar por cima de tudo e detodos, assim como a relevar quaisquer comentários ignomi-niosos dessa sociedade burguesa, sórdida e preconceituosa!

Em princípio, Florinda esboçou um gesto de enfado;no entanto, quando falou, sua voz soou com admiráveltranquilidade:

— Sinhozinho é noivo da menina Alice; destarte, quemnão sabe valorizar uma pérola feito ela, que dirá uma pedrabruta como eu!

Sentindo-se derrotado mais uma vez, Tarcísio admitiaque a força daquela mulher o perturbava e o encantava ao mes-mo tempo! Passados alguns instantes, Florinda se retirou dolocal sem que o patrão a notasse, tamanho fora o estado deapatia em que este se encontrava.

Por fim, o mancebo debruçou-se na janela e começou aplanejar uma forma de romper, definitivamente, o elo entreVítor e Florinda.

Noite. Na casa das irmãs Trindade, Graça preparava-separa sair. Trajava esta um belíssimo vestido decotado, alémde ostentar um colar de pedrinhas rutilantes!

— Good night to you, children! Despedia-se ela, atraves-sando a sala de visitas.

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— Graça, não demore, pois amanhã bem cedo estare-mos de partida para a fazenda. Alertou-a o pai.

— Você vai sair a esta hora?! Espantou-se a irmã.

Estacando abruptamente, Graça fitou Isabela nos olhose respondeu-lhe:

— Eu nunca durmo antes da meia-noite, my sister; por-tanto, não sei o que será de mim no meio do mato!

Marília e Iolanda entreolharam-se ante tal absurdo, pois,como pode uma pessoa desdenhar desse jeito do lugar ondenascera! O barão, numa demonstração enfática de desapro-vação, franziu o cenho.

Iolanda interveio, afinal:

— A noite na fazenda é maravilhosa, Graça; o luar ébem mais claro, as estrelas mais luzentes!

— O silêncio é mais profundo, os desejos mais arden-tes! Completou Marília.

— Ah! As senhoras continuam românticas como nostempos de outrora! Falou Isabela, olhando de viés para a irmãimóvel no centro da sala.

Esta acariciou displicentemente o colar que lhe adorna-va o pescoço, inclinou-se para Isabela e disse-lhe com um sor-riso de mofa:

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— Quer vir comigo, mademoiselle, para conhecer a di-ferença do luar e das estrelas no céu da Corte?!

— Obrigada, Graça; confesso que não me encanta essemundo de pessoas cheias de vaidade, mas vazias de ideais!

Graça consultou o relógio de parede à sua frente, jogouum beijo para a filha e saiu gritando:

— My world is the night! Bye, bye!

O restaurante para onde Graça se dirigira estava apinha-do de fregueses. Ela era aguardada por sua grande amiga Susane um conhecido desta, de nome Leonardo. Este era comerci-ante, de família nobre, além de bem-apessoado.

— Ela é a sua amiga que vive na Europa? Perguntou Leo-nardo a Susan, assim que Graça sentou-se à mesa.

— Yes. Respondeu a filha do barão estendendo a mãoao rapaz, que a apertou demoradamente.

— Que interessante, vocês duas trocaram de pátria! Dis-se ele, brincalhão.

As moças riram da observação, depois os três brinda-ram com as taças de vinho.

— É verdade, Léo; desde que papai mudou-se para oBrasil que eu nunca mais quis morar na Inglaterra. Confes-sou Susan, cujo pai era empresário, proprietário de uma frotade navios.

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Leonardo olhou interrogativamente para Graça. Estasorveu um gole do vinho e explicou com espontaneidade:

— Minha história não é tão atrativa como a de Susan;mas, o importante é que eu adoro Londres! Lá, descobri afelicidade, realizei sonhos adormecidos em mim por causade um passado nebuloso!

— Não consigo ver esse passado nebuloso, Graça. Fa-lou Leonardo, fitando-a no fundo dos olhos.

— É uma longa história, Léo, dá até para escrever umromance. Interferiu Susan.

— Eu serei o primeiro a comprar seu livro, Graça.Garantiu o comerciante.

— Eu preferiria escrever sobre a minha vida atual, háfatos mais excitantes!

— Concordo plenamente, my friend! Apoiou Susan.

— Então, agora é que eu esperarei pelo livro com maisansiedade. Disse Leonardo, abrindo outra garrafa de vinho.

— Mas como não sou escritora, dou-me o direito deguardar os meus segredos. Acrescentou a filha do barão, tro-cando um olhar cúmplice com a amiga.

Com cara de leitor frustrado, Leonardo pilheriou:

— Puxa, você está perdendo a chance de se tornar umabestseller!

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Graça sorriu-lhe pela primeira vez. Susan emendou,prontamente:

— Léo é comerciante, Graça, mas nas horas vagas fazpalhaçadas!

Dessa vez os três riram alto, descontraídos.

— Susan contou-me que você veio buscar a sua filha paramorar em Londres. Disse ele, mudando de assunto.

Graça afirmou com a cabeça.

— Mas, antes, ela passa as festas de fim de ano com agente, Léo. Adiantou-se Susan.

— Eu torço para que a sua filha se adapte em outro país,pois...

— Apesar de Stefany ser ainda uma criança, Léo, ela tempersonalidade; sabe que viver numa fazenda não é nadaauspicioso. Atalhou a filha do barão, explícita.

— E adaptação, sem querer ser redundante, só acontececom o tempo. Completou Susan.

— Então, um brinde a Stefany! Propôs Leonardo.

— Para a minha filha! Repetiu Graça, exultante.

Já meio embriagado, Leonardo disse galanteador:

— Quero dar uma festa em minha casa, Graça, e você éconvidada especial!

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— Huuummm! Murmurou Susan, apertando o braçoda amiga.

— Não precisa ficar enciumada, Miss Susan; afinal decontas ela é uma visitante digna da atenção de um cavalheiro!

— Okay, Léo. Aquiesceu Susan, sorrindo maliciosamente.

— É muita gentileza de sua parte, não mereço tanto.Disse Graça educadamente.

— A casa dele tem um terraço magnífico, ótimo para es-sas ocasiões! Relatou Susan, empolgada com a ideia da festa.

— Que nada, Susan, minha casa não vale um cômododo palacete onde você vive! Retrucou Leonardo, servindomais vinho a todos.

— Quando você conhecer a mansão que o pai dela temem Londres, verá que essa daqui é uma choupana.

O comerciante arregalou os olhos para Graça, tamanhofora o espanto pela sua revelação.

— Pronto, Léo, você arranjou uma aliada. Falou Susan,rubra de vergonha.

Leonardo acenou para um garçom. Quando este se apro-ximou, pediu-lhe:

— Aquele cavalheiro é meu amigo; diga-lhe que estou cha-mando-o, por favor. O comerciante apontou um homem de ca-misa listrada sentado ao fundo do salão, bebendo solitariamente.

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— Que prazer, Léo, há quanto tempo!

Leonardo levantou-se para abraçar o amigo.

— Eu soube que você chegou ontem da fazenda, masnem imaginava encontrá-lo por aqui! Exclamou Leonardo.

Para surpresa de Susan e Graça, o recém-chegado trata-va-se nada mais, nada menos, de Tonico Madureira.

— Sente-se, Léo, fique à vontade.

— Quero apresentar-lhe minhas amigas:

— Essa é Susan e aquela é Graça que, atualmente, morana Europa.

Nesse momento, fez-se um silêncio pesado; ninguémousou pronunciar uma palavra sequer. Apenas o olhar deGraça para Tonico fora eloquente, desvendando mágoa e des-prezo. Seus lábios tremeram, enquanto suas mãos suaram soba mesa.

— Olá, Graça! Cumprimentou-a Tonico, consciente dochoque que lhe causara com a sua presença.

Graça, porém, levantou-se de supetão e saiu do estabe-lecimento. Instintivamente, Susan ergueu-se da cadeira e cor-reu atrás dela.

— O que houve, Tonico? Indagou Leonardo, boquiaberto.

— Graça ainda tem rancor de mim, Léo.

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— Não compreendo. Disse o comerciante.

— Há quase dez anos que Graça e eu não nos víamos,mas o tempo e a distância não foram suficientes para curar-lhe as feridas!

Leonardo tentou, em vão, desviar a conversa para outrorumo. Todavia, Tonico Madureira mostrou-se inflexível. Fa-lou do romance que tivera com a filha do barão Raul Vilaça,sem ocultar os sabores e dissabores. E, no auge da embria-guez, jurou reconquistar Graça ou destruí-la para sempre.

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DDDDDEEEEESSSSSTTTTTIIIIINNNNNOOOOO

Tonico Madureira mudara-se com a família para a Cor-te, tão logo Márcia perdera a mãe, já que o pai havia falecidohá bastante tempo. Desde a morte do coronel HorácioMadureira que Tonico vinha administrando a herança da es-posa, comprando terras, até se tornar latifundiário, alcançan-do, assim, os píncaros da glória!

Márcia, no entanto, era uma mulher arredia, infeliz nocasamento, mas que, com o nascimento da pequena Alice,encontrara nela o tesouro que jamais sonhara existir! Fizerada filha a sua razão de viver, além da companheira inseparáveldurante as viagens ininterruptas do marido.

Tonico almoçava com a filha num restaurante luxuoso,quando alguém tocou-lhe no ombro. Ao se virar, deparou-secom um homem de pé à sua esquerda.

— Meu nome é Raul Vilaça. Apresentou-se o recém-chegado.

— Sim, o barão; já ouvi falar muito do senhor. DisseTonico, levantando-se.

- CAPÍTULO 12 -

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— Sente-se, por favor, continue a comer. Pediu Raul,cortês.

— Estou às suas ordens, barão.

— Não quero incomodá-lo, Tonico; mas é que eu sou-be que você tem interesse em comprar umas terras...

— É verdade, o senhor conhece alguém que esteja ven-dendo? Atalhou o latifundiário.

— Meu compadre está vendendo uma fazenda perto daminha. Informou Raul.

— Posso dar uma olhada hoje mesmo. Prontificou-seTonico, auxiliando a filha servir-se de mais salada.

— Infelizmente, hoje não é possível, pois eu trouxe afamília para assistirmos a um concerto de orquestra à noite.Desculpou-se Raul, indicando a esposa e os filhos numa mesaao lado.

Tonico Madureira relanceou o olhar na direção aponta-da pelo barão. Com um aceno de cabeça ele cumprimentou abaronesa, sorriu para uma criança e um adolescente, e avistou,na cabeceira da mesa, uma jovem entretida na leitura de umarevista. Esta trajava um vestido bege; seus cabelos castanhos ecompridos emolduravam-lhe o rosto redondo e delicado!

— Então, amanhã eu passo pela sua casa, barão. FalouTonico, desviando os olhos da moça.

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— É com satisfação que o receberei em minha casa.

Depois de tudo acertado, Raul se retirou com a família.Mas Tonico não conseguiu tirar Graça do pensamento; a fi-lha do barão fascinou-o com a sua beleza rara!

— Papai, quero tomar um refresco.

Ele atendeu ao pedido de Alice pagando a conta em se-guida.

Percorridas e avaliadas as terras do coronel RaimundoLopes, Tonico Madureira retornou à fazenda do barão, que oaguardava na biblioteca da casa-grande.

— É uma terra boa, admito, pena que esteja tão aban-donada! Comentou o latifundiário, experiente.

— Meu compadre ficou desgostoso com a política e, defato, descuidou-se das terras, que outrora foram tão produti-vas. Explicou Raul, pesaroso.

— O preço que o proprietário pede por essas terras édescabido por causa da sua má conservação. Disse Tonico,sem preâmbulos.

— Mas são cem alqueires! Argumentou o barão.

— A minha intenção é comprar essas terras e arrendá-las para um amigo, que pretende plantar café.

Raul Vilaça limitou-se a sacudir a cabeça. Duas batidassoaram de leve na porta.

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— Pode entrar. Autorizou Raul.

Graça, a sua filha mais velha, adentrou o recinto.

— Papai, eu preciso chegar à Corte antes do almoço enão há sequer uma carruagem disponível. Reclamou a moçacom as mãos na cintura.

— Tenha um pouco de paciência, Graça; hoje é dia delevar os produtos à vila, por isso os carros estão todos ocupa-dos. Explicou ele, calmamente.

— Barão, já que estou de partida para a Corte, possolevá-la comigo, se o senhor assim o permitir. Ofereceu-seTonico, solícito.

Então, foi só nesse momento que Graça percebeu a pre-sença de alguém na companhia do pai. Fitou o homem senta-do na poltrona, depois desviou os olhos para o pai como quemespera uma resposta positiva. Ela era uma moça linda, masorgulhosa e fútil. Comprazia-se em escarnecer das pessoas,sentindo-se superior a todo mundo!

— Este é Tonico Madureira, provável comprador dasterras do meu compadre Raimundo.

Eles se cumprimentaram com um aceno de cabeça.

— A senhorita deseja hospedar-se onde? PerguntouTonico, devorando-a com os olhos.

— Na residência das irmãs Trindade. O senhor as conhece?

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— Naturalmente que sim; minha mulher é freguesa doateliê de Iolanda. Respondeu ele, levantando-se.

— Faça-me esse favor; fico lhe devendo. Disse Raul,pondo-se de pé. Tonico estendeu-lhe um cartão, dizendo:

— Havendo um abatimento de quarenta por cento novalor das terras, procure-me nesse endereço.

O barão não se manifestou naquele momento. Por fim,acompanhou-os até à carruagem luxuosa do latifundiário.

Era a festa de aniversário de Susan Steel, à qual compa-recera a mais alta sociedade cortesã. Susan é filha do milioná-rio Mike Steel, dono de uma frota de navios. Os convidadoslotaram o salão nobre da mansão, tornando-o colorido e per-fumado! Sentada à mesa sobre um tablado forrado com tape-te vermelho, a família anfitriã contemplava jubilosa os convi-vas serem servidos por garçons uniformizados. Trajandosmoking o inglês Mike Steel tem à esquerda a esposa Catherinee, à direita, a filha Susan, moça de educação refinada.

Graça, amiga íntima da aniversariante, fora chamadapela família desta para compor a mesa. A honra do convitemassageou-lhe o ego, e, por ser incontestavelmente mais bo-nita do que Susan, tornara-se o centro das atenções masculi-nas.

— Graça, por que seus pais não vieram? Interrogou Mr.Steel, gentilmente.

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— Infelizmente, mamãe não está se sentindo bem, se-nhor; problema de gastrite.

— Oh! Que pena; desejo-lhe melhoras. Manifestou-seMrs. Steel, com forte sotaque.

— Papai, meu sonho é mostrar a Inglaterra a ela.

O magnata sorriu para a filha, pegou-lhe a mão e disse:

— Viaje com Graça pela Europa inteira, menina; apro-veitem o esplendor da juventude!

— Será maravilhoso, inesquecível! Exclamou Susan, fi-tando a amiga.

— Acho que vocês duas são muito novas para esse tipode aventura, não têm malícia nenhuma! Advertiu Catherine,franzindo a testa.

A orquestra rompeu a tocar uma valsa, enchendo o sa-lão com uma melodia suave. Os pares foram se formando pelapista, entre os quais o conselheiro Mendonça e dona Bilu,famosos pés-de-valsa da Corte.

Dois rapazes, ambos loiros e ingleses, vieram exclusiva-mente para a festa de aniversário da prima Susan. TonicoMadureira inquietou-se na cadeira, ao ver que um deles dan-çava com a filha do barão Raul Vilaça. Da sua mesa, a poucosmetros da pista, ele observava o rapaz cochichar no ouvidode Graça.

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— Mamãe, estou com sono, quero dormir! Queixou-sea pequena Alice.

— Nós vamos embora, filha, pois já é tarde. Falou donaMárcia, bocejando também.

— Vou pedir ao cocheiro para levá-las em casa.

E, dizendo isto, Tonico saiu para tomar as devidas pro-vidências. Em seguida, após despachar mulher e filha, ficouperambulando pelo jardim da mansão. O som da orquestrachegava-lhe nitidamente ao ouvido; mas, o que lhe interessa-va mesmo, era encontrar um jeito de falar com a filha do ba-rão — pensava ele enquanto caminhava com as mãos nos bol-sos, chutando uma pedrinha aqui, outra acolá. Súbito, Tonicodeparou-se com a aniversariante que, distraída, quase esbar-rara nele.

— Oi! Disse ela, erguendo a cabeça.

— A sua festa está ótima, Susan! Elogiou Tonico.

Ela sorriu-lhe agradecida.

— Já valsei com vários cavalheiros, agora vim tomar umpouco de ar fresco. Explicou ela, afastando o cabelo do rosto.

— Susan! Susan! Alguém a chamava.

— Escutou? Indagou Tonico.

— Susan! Susan! Cadê você? Insistia a voz.

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A aniversariante virou-se e avistou Graça procurandopor ela do lado oposto do jardim.

— Ei, ei, estou aqui, amiga. Respondeu Susan, levan-tando os braços.

Graça correu ao encontro dela e disse-lhe ofegante:

— Seu pai quer dançar a valsa da meia-noite com você,menina sumida!

— Puxa, eu me esqueci desse compromisso! Exclamouela colocando a mão na testa; depois saiu em desabalada car-reira.

— Menina Susan, menina Susan, Mr. Steel..., esses jo-vens não dão ouvidos aos velhos. Reclamara o mordomo,quando ela passou por ele em disparada.

Tonico e Graça ficaram a sós. Fitavam-se demorada-mente, escutando ao longe o som de violinos...

— Você é a dama mais linda da festa!

— Obrigada. Murmurou Graça, envaidecida.

Era uma noite de luar esplêndido, de céu azul estrela-do!

— Que bom reencontrá-la, Graça!

— Você conhece a família Steel há muito tempo? Per-guntou ela.

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— Mike é meu parceiro na exportação do café. Respon-deu Tonico.

— Susan e eu somos amigas desde o colegial.

— Eu confesso que muito desejei revê-la.

Ela sorriu antes de admitir:

— Eu também quis revê-lo, Tonico.

Então, Tonico puxou-a brandamente, estreitando-a nosbraços e beijou-lhe a boca.

Os convidados começavam a se retirar, quando ele lhepropôs um passeio:

— Eu conheço um lugar maravilhoso, feito para nósdois!

— Mas Susan...

Ele interrompeu-a com outro beijo.

Enquanto caminhavam descalços pela praia deserta, ovento agitava os cabelos compridos de Graça. Tonico passou-lhe o braço pelos ombros, sentindo o aroma inebriante doseu perfume!

— Quero viver aqui com você para sempre! FalouTonico, ajudando-a a subir num monte de areia.

— Engraçado, agora é Susan que deve estar me procu-rando. Imaginou ela, sorrindo.

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— Amanhã, diga a ela que eu a raptei.

Graça encostou a cabeça no seu peito; disse qualquercoisa, mas o barulho das ondas encobriu-lhe as palavras.Tonico sentou-se na areia morna, colocou-a no colo e beijou-a ardentemente!

— Você é tudo que eu sonhei na vida! Murmurou Graça.

Ele deitou-a lentamente, enquanto suas mãos devassa-vam-lhe o corpo virgem, arrancando-lhe gemidos roucos!Então, Tonico a possuiu com voracidade. E ela se entregoude corpo e alma.

Enfim, um novo dia nasceu brindando os amantes comsol a despontar no horizonte!

Numa manhã de domingo Tonico Madureira passeavacom a pequena Alice pelo parque. Sentados à sombra de umaárvore frondosa, ele descascava laranjas para a filha que, distra-ída com as figuras de uma revista, aguardava pacientemente.

— Que bichos são estes? Perguntou o pai, entregando-lhe uma laranja.

— São cisnes nadando num lago. Respondeu a menina,recebendo a fruta.

— E estes aqui, filha? Tornou ele, pondo o dedo indica-dor sobre a gravura.

— Macacos comendo bananas; eles são muito inteligen-tes, parecem gente!

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— Veja, Alice, que bonito leão, o rei da selva!

— Não gosto dos animais ferozes, papai; eles são muitomaus: matam os outros para se alimentarem.

Tonico a contemplou por um instante, depois explicou:

— Mas é a lei da sobrevivência, filhinha; bicho não ra-ciocina como nós.

— Eu queria que sobrevivessem de outra maneira, semprecisar comer os mais fracos. Replicou Alice, irredutível.

Tonico lhe deu outra laranja; a menina chupava-a sofre-gamente, enquanto observava as demais figuras. Ele reparouque a filha olhava com mais atenção para uma determinadagravura. Por fim, Alice fechou a revista e ficou pensativa.

— Você não me contou de qual bicho gostou mais, fi-lha. Perguntou Tonico, quebrando o silêncio.

— Da girafa, papai. Respondeu ela, convicta.

— Por que, Alice?

— Porque a girafa tem um jeito triste e é solitária, igualà mamãe!

Tonico sobressaltou-se com a resposta inesperada da fi-lha. Quis saber o que ela entende por pessoa solitária, masnão houve tempo.

Em passos lentos, Graça aproximou-se hesitante.

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— Ei, Alice. Tudo bem? Cumprimentou a recém-che-gada sentando-se no chão perto deles.

A menina arregalou os olhos e perguntou, encabulada:

— Como sabe o meu nome?

— O seu pai fala muito de você. Respondeu Graça, meioconfusa.

Intrigada, a pequena Alice desviou os olhos da moça,fitou Tonico e pediu-lhe:

— Leve-me embora, papai.

— Nós podemos ser amigas, Alice! Falou a jovem, commeiguice.

— É mesmo, filha. Graça é tão agradável! InterferiuTonico, dando-lhe um cacho de uvas.

— Minhas amigas são Vanessa, Paula e Flávia. Revidouela, mirando Graça de frente.

A filha do barão abaixou a cabeça, envergonhada.Tonico interveio de novo:

— A amiga do papai pode ser sua amiga também, filha.

Com um cacho de uvas na palma da mão esquerda, Ali-ce pôs-se a furá-las com as unhas, numa evidente demonstra-ção de desacordo.

— Vamos embora, papai. Repetiu ela.

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— Cuidado para você não manchar o vestido, Alice.Alertou Tonico.

— Eu tenho outro. Retrucou ela, sem fitá-lo.

Numa última tentativa, Tonico sugeriu à filha:

— Vamos subir por aquela colina verdejante, nós três?

— Eu não vou subir em lugar nenhum, quero ir embo-ra. Recusou-se a menina, taxativa.

Aborrecido, ele se levantou e acenou para que as duas oacompanhassem.

Em casa, Alice fechou-se no quarto. E, assim que o ma-rido saiu, Márcia foi conversar com a filha. Encontrou-a dei-tada na cama, chorando; e, antes que lhe fizesse qualquer per-gunta, a menina contou do passeio e da amiga do pai.

— Tonico é um homem de negócios, filha. É compre-ensível que ele tenha amigas. Ponderou a mãe procurandoacalmá-la, mesmo ciente de que se tratava de mais um casoextraconjugal.

— Uma amiga que nunca veio aqui. Redarguiu Alice,sentando-se.

Sem a menor intenção de admitir para a filha que já sa-bia do envolvimento do seu pai com a filha do barão, Márcialimitara-se a acariciar-lhe os cabelos encaracolados.

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Mais uma discussão se acirrava entre Tonico Madureirae Graça, à tarde daquele dia.

— Por que você não resolve a situação com a sua mu-lher de uma vez por todas? Cobrou ela, mal ele chegara à casaonde mantinham encontros amorosos.

— Qual é a sua insatisfação, Graça, se nós estamos jun-tos há meses, se somos feliz assim? Rebateu ele, sentando-senuma poltrona.

— Sinceramente, Tonico, eu estou cansada desse tipode vida. Na verdade, não quero mais dividi-lo com outra pes-soa; sonho com um lar onde, de fato, possamos viver comoum casal, futuramente criar nosso filho...

Tonico Madureira assustou-se com a resposta da moçaque, de pé à sua frente, tinha os olhos sonhadores! Ele jamaisimaginaria que esse romance pudesse despertar nela taisanseios. Ademais, nunca trocaria sua vida estabilizada por umaaventura! Enquanto refletia, procurava algo convincente paradizer à jovem parada no centro da sala, cuja beleza era fasci-nante!

— O lar é onde a gente se sente feliz!

Mas Graça achou-lhe a resposta evasiva. Então, para quefizera aquele discurso no qual pusera todo sentimento da suaalma?! E, para seu maior desencanto, ele se levantou de cho-fre e deu-lhe as costas.

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— Tonico, volte aqui, precisamos ter uma conversa sé-ria. Gritou ela, em vão.

Márcia Madureira notou o marido revirar-se na cama,insone. De fato, Tonico teve dificuldade para conciliar o sonoàquela noite. Pela primeira vez, admitiu para si mesmo que,por causa do relacionamento com Graça, seu casamento cor-ria grave risco. Um filho bastardo, além de trazer-lhe enor-mes transtornos com a família, manchar-lhe-ia a reputaçãoperante a sociedade.

A gravidez de Graça abalou terrivelmente a famíliaVilaça. A baronesa, inconformada, pediu à negra Juraci quechamasse a filha ao seu quarto.

— Graça, vamos conversar antes que seu pai chegue deviagem; ele ficou furioso com a notícia; na Corte não se falanoutra coisa. Disse dona Esmeralda, fitando-a nos olhos.

— Conversar o que, mamãe? Já aconteceu mesmo; agorasó me resta assumir o meu erro. Replicou ela, impávida.

— Por que você mentiu para nós que se hospedava emcasa de Susan Steel?

— Porque eu me apaixonei...

— Porque você se apaixonou por um homem casado e,por isso, vivia escondida com vergonha da própria família.Atalhou o barão, rompendo de supetão no quarto.

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Sem fitar o pai, ela disse, petulante:

— Agora o que me importa é o futuro, criar meu filho.

— Se lhe falta juízo, por qual futuro você espera? Inter-rogou-a o barão acusadoramente, apontando-lhe a barriga.

— Calma, Raul, assim você traumatiza a nossa filha, emvez de resolver o problema. Interveio a baronesa, maternal-mente.

— Mas eu a avisei, Esmeralda: essa menina é rebelde,leviana... eis a consequência.

— Minhas amigas Iolanda e Marília Trindade tambémme alertaram para o seu mau comportamento, Graça; viram-na algumas vezes jantando com aquele homem em público.Mas eu fiz ouvidos moucos. Confessou dona Esmeralda, ar-riando-se numa cadeira ao lado da cômoda.

— Essas duas não passam de fuxiqueiras e delatoras. Re-bateu Graça com atrevimento.

Raul Vilaça encaminhou-se até à porta do quarto e, vi-rando-se para elas, falou desanimado:

— Vê-se que o derrotado nessa história sou eu: além deter uma mulher que me oculta os fatos, ainda tenho de aturaruma filha malcriada.

Assim que o barão saiu, Graça aproximou-se da baro-nesa.

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— Mãe, Tonico é o homem que eu amo, pai do meufilho, e é com ele que quero viver!

Dona Esmeralda olhou compadecida para a filha que,cheia de esperanças, não percebia o abismo a seus pés.

— Cuidado, Graça; essa aventura pode deixar cicatri-zes, e eu não suportaria vê-la sofrendo!

— Mas eu estou tão feliz, mãe; não consigo entender oseu pessimismo!

Involuntariamente, a baronesa baixara a cabeça. Ao er-guer os olhos novamente, Graça notou-lhe a expressão de in-tenso cansaço.

— A vida é uma escola, filha, e as lições difíceis são asque mais ensinam! Filosofou dona Esmeralda.

Graça fora ao encontro de Tonico que, naquela noite,retornara de uma viagem de negócios. Sentado na poltronacom um copo de uísque na mão, ele a observava caminhar deum lado para o outro da sala, impaciente.

— Há meia hora que você está zanzando sem dar umapalavra; sente-se aqui.

Ela obedeceu, automática.

— Desculpe-me, é que estou nervosa. Justificou-se, cru-zando e descruzando os braços.

— Algum problema, Graça?

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— Não, apenas ansiosa para lhe contar uma novidade!Respondeu a filha do barão, fitando-o nos olhos pela primei-ra vez.

Ele afagou-lhe os cabelos ainda molhados do banho,depois contemplou-lhe o rosto iluminado por um sorriso.

— Novidade?!

— Sim, Tonico, eu estou grávida!

A notícia atingiu-o como uma bomba. Ao vê-lo empa-lidecer, Graça sentiu um frio na espinha.

— Grávida?

— De três meses. Completou ela.

— Isso não poderia ter acontecido, Graça, foi um atode desatino da sua parte.

À medida que ele falava, seus olhos soltavam chispas;os músculos do rosto se contraíam, tamanha era a fúria que seapossara dele. Atônita, Graça mirava-o sem compreender.

— Tonico, por que tanta raiva? Estou falando do nossofilho que eu trago no ventre!

Ainda mais irado, ele esbravejou no meio da sala:

— Mas que diabo!

— Você chama de diabo o fruto de um amor?! Soluçavaela, em desespero.

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— Graça, você destruiu a nossa união agindo de formainconsequente; você é uma pessoa egoísta que só pensa noseu bem-estar, não se importando que tal procedimento pos-sa arruinar a minha vida! Berrava ele, fora de si.

Incrédula, ela escutava-o recostada na poltrona. E, sen-tindo a cabeça latejar horrivelmente, perguntou num fio devoz:

— Então, o que você sugere para nós?

— Tire essa criança, Graça; não posso perder em novemeses, o que me custou uma década para conquistar.

A dureza da resposta de Tonico Madureira dilacerou-lhe o coração. Inacreditavelmente, dos seus olhos não desce-ram mais lágrimas, como se a aspereza daquelas palavras astivesse congelado.

Graça chegou pela madrugada à fazenda dos seus pais,de onde só saiu para o parto da sua filha.

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EEEEENNNNNGGGGGEEEEENNNNNHHHHHOOOOO

Mal o dia raiara, Florinda levantou-se e deixou a senza-la rumo ao engenho, onde agora trabalhava por determina-ção de Tarcísio Vilaça. Resignada, mas não menos corajosa, aescrava caminhava de cabeça erguida para a nova tarefa. Porconseguinte da inevitável redução de escravos, os negros vi-nham se desdobrando para dar conta do serviço.

- CAPÍTULO 13 -

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— Que pecado vosmecê lidar aqui no engenho, Flor;vosmecê que sabe ler, escrever, tocar piano...

— Que nada, seu Chico, antes ter as mãos calejadascomo as suas, mas o espírito são! Replicou ela sorrindo parao negro, enquanto encaixotava rapaduras.

— Mas vosmecê não nasceu para essas tarefas, Flor; seulugar é na casa-grande, servindo aos nobres! ComentouJuvenal, que estava por perto.

Ela fitou o negro e disse-lhe com doçura:

— Juvenal, nós devemos aceitar com dignidade o desti-no que nos foi traçado por Deus.

Eu sou filha de uma escrava, nasci na senzala e vivo como povo da minha raça!

Os negros escutavam-na embevecidos, mesmo que emcada semblante persistisse uma dúvida ou, em cada coração,uma dor!...

— Flor, mas a escravidão não é coisa de Deus, e, sim, dohomem branco. Argumentou Serafim em tom de contestação.

— Se o nosso destino é sofrer, ser humilhado e judiado,então não somos filhos de Deus! Acrescentou Vicente, comuma ponta de revolta.

Florinda fitou a todos com expressão serena ao explicar:

— Mas nosso destino não é sofrer, ser humilhado e

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judiado, e, sim, servir de instrumento para o homem brancocausar a sua própria degeneração!

Augusta suspirou fundo! Uma negra por nome Celesteenxugou o suor da testa e sorriu! Com o ânimo recobradopelas palavras benfazejas de Florinda, os escravos retomaramo trabalho de alma mais leve.

Após mais um dia de trabalho árduo, Florinda regressa-va exausta para a senzala. Maquinalmente, ela passou as mãospelas vestes surradas, ajeitou as tranças do cabelo já cobertode poeira e olhou o sol a se pôr no horizonte.

Inesperadamente, o filho do barão Raul Vilaça parouseu cavalo preto perto da escrava.

— Que lindo pôr do sol! Exclamou Tarcísio, encetan-do um diálogo.

— É verdade, sinhozinho. Concordou ela.

— Isso é prenúncio de uma noite de lua cheia, propíciapara se amar sob as estrelas! Disse o mancebo, apeando-se.

— Não compreendo o que sinhozinho quer dizer.

O filho do barão aproximou-se da escrava e sentiu-lhe ocheiro de suor.

— Flor, se você não fosse uma pessoa tão intransigente,poderia estar numa situação melhor. Disse ele, tocando-lhede leve o ombro.

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— Mas eu tenho muito orgulho da vida que levo, sinho-zinho, servindo a Deus no céu que tanto me alivia dos malesda terra! Rebateu a escrava, mirando-o de frente.

Por um instante, Tarcísio ficou a contemplar o verdedos seus olhos; e, numa atitude impensada e afoita, investiucontra a amada. Tresloucadamente tentava beijá-la à força,fazendo-lhe confissões:

— Eu a amo, Flor, como jamais amei alguém neste mun-do!

— Sinhozinho, comporte-se como um nobre!

— Eu a amo, Flor, mais do que tudo nesta vida! Prosse-guia ele, fazendo menção de jogá-la ao solo.

Numa reação arrojada, a escrava conseguiu se desvenci-lhar de Tarcísio e esbofeteou-o no rosto.

— Sinhozinho Tarcísio, respeite-me. Bradou Florinda.

— Como você se atreve a bater na cara do seu senhor,negra! Rugiu ele, bufando.

— O sinhozinho é meu senhor, mas não sou submissaaos seus instintos animais! Revidou ela.

— Você é uma propriedade da família Vilaça; portan-to, não tem o direito de se recusar a me servir. Arguiu o man-cebo, arrogante.

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— Eu sou uma escrava da fazenda, não uma mulher àdisposição de qualquer homem.

Procurando pacificar as coisas, o filho do barão decla-rou com voz branda:

— Eu não pretendo abusar do meu poder para possuí-la, prefiro que seja com o seu consentimento.

Já era noite quando, com a alma enlevada, Florinda fa-lou:

— A um homem apenas consenti o direito de me tocar!

— Um homem que ninguém sabe por onde anda. De-bochou Tarcísio depois de uma risada.

— Mas que sempre estará presente em meus sonhos!...Confessou ela, fitando a lua que surgira por trás dos montes.

— Flor, aceite-me de boa vontade, não me obrigue ausar a violência outra vez. Ameaçou-a o filho do barão.

Impassível, ela retrucou:

— Sinhozinho, eu não interfiro no seu modo de agir;porém, enquanto as forças me valerem, hei de me protegerdo verme que o infectou.

Desafiado por tão corajosa mulher, Tarcísio Vilaça sen-tiu-se tentado a enfrentá-la. Reaproximou-se da escrava, di-zendo-lhe quase num sussurro:

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— Se você não aparecer na cabana velha mais tarde, eu afarei conhecer os males desse verme!

O mancebo montou no cavalo e chicoteou-o com fú-ria, galopando em disparada rumo à cabana. Florinda, noentanto, permaneceu imóvel no mesmo lugar. Em vão, tenta-va atinar com a maldade que lhe faria o filho do barão, sim-plesmente por ela não ceder aos seus desejos carnais.

O sol de uma nova manhã despertou Tarcísio Vilaça. Acabana deu-lhe a desagradável impressão de estar num forno,tamanho era o calor que fazia lá dentro. Com a roupaencharcada de suor, o corpo dolorido pela noite mal dormi-da, ele se ergueu e olhou o vazio à sua volta. O que fazer paradomar a escrava Florinda!... Era o pensamento do manceboenquanto calçava as botinas.

Caminhando em direção à casa-grande, Tarcísio avis-tou uma carruagem estacionada no pátio principal da fazen-da. De cenho fechado, ele adentrou a cozinha e sentou-sepesadamente num tamborete de madeira para tomar café.

— Esses homens que chegaram são do banco, sinhozi-nho? Interrogou a negra Juraci, enquanto o servia.

— São agiotas, Juraci; decerto vieram buscar o paga-mento que eu não tenho. Respondeu o mancebo, cortandouma fatia do queijo.

— O sinhozinho não deveria ter recorrido a esse tipo

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de gente. Comentou a negra.

— Diante da situação em que se encontra a fazenda, oque me aconselharia a fazer, se o banco não aprova mais em-préstimos?

— Pedir socorro ao vosso sogro, por exemplo. Arriscouela.

Tarcísio Vilaça terminou de engolir o café, pôs-se de pé,encarou a velha e retrucou:

— Saiba a senhora que seu Tonico Madureira me co-braria juros ainda mais altos.

Ao passar pela sala de visitas, o filho do barão acenoupara que o novo feitor conduzisse à biblioteca os homens queo esperavam.

— Infelizmente, não temos como prorrogar a data. Di-zia o mais velho deles.

— Senhor Almeida, eu sei que o prazo está esgotado;entretanto, lamento informar que, no momento, não possuoessa quantia. Confessou Tarcísio.

Os dois visitantes se entreolharam.

— Quem sabe se falássemos com o barão...

O mancebo interrompeu o outro homem, erguendo amão esquerda.

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— Acreditem em mim; em uma semana, impreterivel-mente, esse valor será quitado. Garantiu ele num último sus-piro.

— Nós confiamos em nossos clientes. Aquiesceu Almeida.

Tarcísio Vilaça chamou o feitor e pediu-lhe que acom-panhasse os homens até à carruagem. E, sozinho no recinto,matutava em um plano que pudesse saldar mais esse compro-misso.

Era noite de lua cheia, as estrelas cintilavam no céu deum azul límpido! Florinda brincava com a filha no pátio dafazenda. A criança, dando os primeiros passinhos, vai da mãeaos braços da negra Juraci que, levantando-a no ar, exclamava:

— Anjinho do céu, coraçãozinho da vovó!

Vitória sorria com ternura, depois voltava para os bra-ços da mãe. Esta estreitava a menina contra o peito, beijava-lhe o rostinho angelical, murmurando palavras de afeto!

Madrugada. O luar clareava a estrada por onde o ho-mem de barbas caminhava, carregando uma criança nos bra-ços. Poucos segundos bastaram para que o novo feitor, cum-prindo ordens do filho do barão, arrebatasse sem fazer alar-de, do fundo da senzala, a pequena Vitória.

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VVVVVIIIIINNNNNGGGGGAAAAANNNNNÇÇÇÇÇAAAAA

Por duas vezes o capataz de Tonico Madureira, Damião,estivera na fazenda da família Vilaça para transmitir um re-cado à Graça. Porém, só na terceira tentativa é que a encon-trou acordada.

— Aquela moça parece não ter o que fazer, patrão; jálevantou para o almoço. Reclamou Damião.

— Mas ela disse que vai ao meu encontro? Quis saberTonico, ansioso.

— Ela deu certeza que irá; também, eu falei do jeitoque o patrão mandou. Respondeu o capataz, retirando-se.

No quarto, Graça foi surpreendida pela filha com a per-gunta:

— Mamãe, quem é aquele homem esquisito que estavaconversando com você?

— Stefany, você estava ouvindo conversa de adultos atrásda porta? Tergiversou ela, enquanto se maquiava.

— No, mother; never.

- CAPÍTULO 14 -

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— Aquele homem veio trazer as nossas passagens paraa Inglaterra, filha. Mentiu Graça.

Juraci entrou no quarto. Passado o susto, Graça relan-ceou os olhos pelo aposento e encontrou a filha que, entretidacom as bonecas dispostas sobre a cama, não tocara mais noassunto do homem esquisito.

— Graça, o barão mandou perguntar se você pretendealmoçar na vila.

— Sim, Juraci, na casa de Antero Barbosa; quero entre-gar as lembrancinhas que trouxe para a família. Informou ela,referindo-se ao alfaiate.

— Help! Help! Gritava Stefany, correndo para o lado damãe.

— O que há? Indagou Graça, penteando-se frente aoespelho.

— Um bicho! Gemeu a menina, tapando o rosto comas mãos.

— Que bicho, medrosa, onde? Interveio a escrava, pon-do-se a procurá-lo.

— It’s on the table. Informou a garota, encolhida.

Juraci afastou uns pacotes, sob os quais havia uma bara-tinha. Inofensivo, o inseto tentou escapulir, mas a negra ocapturou e, com a ponta do cabo da vassoura, esmagou-o.

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— Nem que fosse uma cobra, seria necessário tanto al-voroço. Falou a escrava, dirigindo-se à menina.

— Juraci, Stefany é muito sensível! Defendeu Graça,colocando-a no colo.

Na pracinha do vilarejo, defronte à igreja, debaixo deuma árvore, Tonico Madureira aguardava impaciente a che-gada de Graça. De repente, ele a avistou caminhando de ca-beça erguida em sua direção. Os cabelos curtos tornaram-namais madura, pensava ele, apagando o cigarro.

— Você se atrasou demais, Graça. Censurou ele.

— Eu recebi seu recado, Tonico, mas saiba que não te-nho medo das suas ameaças.

— Acalme-se, vamos nos sentar um pouco. Convidouele, apontando um banco de pedra.

— Não é necessário, eu estou bem de pé. Recusou-seela, incisiva.

Tonico Madureira tirou o chapéu e passou a mão peloscabelos lisos. A filha do barão seguiu-lhe os movimentos, in-diferente.

— Não houve ameaça nenhuma, Graça. Apenas a pres-sionei para que não escapasse, pois o seu comportamentoàquela noite no restaurante foi deplorável.

Ela riu-lhe na cara antes de rebater:

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— Quem é você para julgar o comportamento de al-guém?

— Nós precisamos nos entender. Propôs ele, baixandoos olhos.

— Sobre o quê? Perguntou ela, irônica.

— Há dez anos que não nos víamos, Graça; e, duranteesse longo período, pude refletir...

— E a que conclusão você chegou? Cortou ela, com cres-cente irritação.

— Que eu errei.

— A admissão do seu erro não muda nada no presente,Tonico. Declarou Graça, friamente.

Ele deu um passo à frente e disse:

— Então, vamos falar do futuro da nossa filha, por exem-plo.

— A filha que você sugeriu que eu abortasse.

— Eu me arrependo de ter agido daquela maneira. Con-fessou ele.

— Você se arrependeu tarde demais. Falou Graça, seca-mente.

— A nossa filha não pode continuar sendo o seu instru-mento de vingança contra mim.

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— A minha filha não lhe pertence, Tonico. Rebateu ela,categórica.

— Eu posso me apresentar à menina como seu pai. Insi-nuou ele.

— Eu o desmentirei. Garantiu ela, firme.

— Então, você insiste em privar-me dos direitos de pai?

— Você, Tonico, quis privá-la do direito de nascer.

Durante o pesado silêncio que se seguiu, passou pelapraça um cavaleiro a galope.

— Sei que você tem mágoa de mim, Graça; mas isso nãolhe dá o direito de impedir que eu me aproxime da menina.

— Afaste-se dela, Tonico. Exigiu Graça.

— A menina precisa saber da verdade. Insistiu Tonico.

Ao responder, Graça pronunciou as palavras quase numsussurro:

— Da verdade, Tonico, ela saberá por mim no momen-to certo.

Depois de enxugar o suor da testa, ele se aproximou eperguntou-lhe:

— Qual é a verdade, então?

— Que o pai dela está morto!

— Mentirosa! Bradou Tonico, esbofeteando-a no rosto.

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— Covarde, canalha! Disse Graça, recuando.

— Ouça com atenção, moça: eu hei de conversar com amenina, ainda que tenha de enfrentar à bala a família Vilaça.Ameaçou Tonico, colérico.

Com a mais absoluta tranquilidade, ela rebateu enfática:

— Tudo que você lhe disser, eu negarei até à morte.

Dizendo isto, Graça abandonou o local, deixando-o pa-rado no meio da praça, tal qual uma estátua de monumento.

Ao chegar à casa de Antero Barbosa, Graça chamou pelamulher do alfaiate.

— Dona Tereza, eu vim para almoçar, ainda sou dignadessa honra?

A velha, que estava à beira do fogão, interrompeu o ser-viço e veio recebê-la de braços abertos.

— Que saudade, menina; você nos trocou pelos ingleses!

— Seu Antero e Sabrina, onde estão? Quis saber a filhado barão que, mal se sentara numa cadeira, tirou os sapatos.

— Antero continua na alfaiataria; e Sabrina, que já émoça, auxilia-o no ofício. Explicou dona Tereza.

Graça caminhava descalça pela cozinha.

— Eu adorava vir aqui com mamãe trazer os ternos depapai para seu Antero arrumar.

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— Bons tempos aqueles; a baronesa gostava tanto dospães que eu fazia! Recordou a velha, saudosa.

— Mamãe dizia que a senhora tem mãos de fada, poristo faz coisas deliciosas!

— Eu tenho pena de você, Graça: viver no estrangeiro ese alimentar com aquela comida estranha.

— É a vida, dona Tereza, que, às vezes, nos leva por ca-minhos desconhecidos, a lugares tão distantes!... Disse Gra-ça, ajudando-a a pôr a mesa.

A mulher do alfaiate contemplou Graça por um instan-te, depois comentou com orgulho:

— Stefany é a aluna mais inteligente da escola!

— Ela vai embora comigo para a Inglaterra. Contou afilha do barão, com um brilho nos olhos.

— Vá lavar as mãos, Graça. Antero e Sabrina não de-moram. Disse dona Tereza, colocando a última travessa so-bre mesa.

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IIIIINNNNNCCCCCÊÊÊÊÊNNNNNDDDDDIIIIIOOOOO

A escrava Florinda envelhecera perceptivelmente em de-corrência da venda da pequena Vitória. Seus olhos, agora fun-dos, perderam o verdor; seu rosto, outrora bonito, fez-se des-corado; seu corpo sempre esguio tornara-se derreado! Nessamanhã de calor intenso ela segue em direção à plantação decana, levando no coração uma angústia sem fim!

No canavial, os negros trabalhavam sob um sol incle-mente. Florinda tem as roupas encharcadas de suor; as mãoscalosas e firmes, num movimento rápido e brusco, seguram afoice que corta a cana pela raiz.

— Eta, Flor, vosmecê vale por dez de nós! Disse Chicoao seu lado.

— Pelo menos assim a vida passa mais depressa, seuChico; não sobra tempo para as lamentações! Replicou ela,sem interromper a tarefa.

— O que mata o negro é a tristeza, não o trabalho. Co-mentou Serafim.

Florinda escutou calada. Súbito, a filha povoou-lhe o

- CAPÍTULO 15 -

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pensamento, cândida e cheia de ternura!... Dos olhos da es-crava brotaram lágrimas tão quentes como gotas de sol. Apoi-ada ao cabo da foice, ela descansa um pouco para recobrar asforças. Serafim, compreendendo-lhe a dor que é bem maiordo que a fadiga, aproxima-se e entrega-lhe uma garrafa de ca-chaça. Florinda, sedenta por algo que a faça esquecer as má-goas, toma no gargalo um grande gole da aguardente; depoisdevolve o recipiente ao negro.

— Deus lhe pague, irmão. Agradece ela, com olhos chei-os de gratidão.

A ração dos escravos é trazida por Rosinha. Sentadosno chão, à sombra de uma árvore, todos comem em silêncio.

— Flor, vovó falou que é para vosmecê comer tudo. Dis-se a neta de Juraci, entregando-lhe a cuia.

Ela recebe o alimento com displicência. Antes, porém,apodera-se da garrafa de cachaça e sorve mais um gole, sôfre-ga. Por fim, leva à boca algumas colheradas e, sem apetite,coloca a vasilha ao seu lado, indiferente aos insetos que a so-brevoam.

O Natal veio trazendo a mensagem de amor e paz como nascimento de Jesus, para tornar os corações mais puros eelevados! E, com o espírito natalino, a família Vilaça desper-tou numa manhã de ventos brandos.

— Merry Christmas para todos! Desejou Graça, beijan-do a filha.

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— Que bicho mordeu você, Graça, para acordar tãocedo? Insultou-a Tarcísio.

— Hoje é Natal; não quero saber de confusões. Ralhouo barão.

— Papai, eu estou com a alma leve feito uma pluma; e,por isso, nada me exaspera. Disse Graça, sentando-se à mesa.

— Licença, barão; é só para informar ao senhor que oconselheiro e dona Bilu vêm almoçar aqui hoje. Comunicoua negra Juraci, aproveitando para trazer mais quitandas.

— O que você quer tomar, filhinha? Perguntou Graçaà Stefany.

— Coffee. Respondeu a menina.

— Pode colocar leite, querida?

— Yes. Consentiu ela.

Graça continuou:

— Você aceita pão com...

— Two eggs, please. Adiantou-se Stefany.

— Minha filha é como eu; adora um breakfast! Comen-tou Graça, orgulhosa.

De cara fechada, Tarcísio falou:

— Ainda bem que Alice me convidou para o almoço;pois aguentar dona Bilu seria assistir à segunda sessão de cha-tice do dia.

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— O papai já falou que não quer brigas. LembrouIsabela, olhando para os dois irmãos.

— Eu perdi o apetite. Declarou o mancebo, arredandoa cadeira e saindo.

— Depois de comer três fatias de rosca, qualquer umperde o apetite.

— Four, mamãe, eu contei. Informou Stefany, precisa.

Na fazenda de Tonico Madureira, o almoço de Natal éservido com abundância. O chefe da casa convidou dois ami-gos, também fazendeiros, que trouxeram esposas e filhos.

— A minha mulher e eu estamos muito honrados como convite, seu Tonico! Manifestou-se o coronel Azevedo, re-galando-se com a farta comida.

— Coronel, somos vizinhos e ainda não o tinha recebidoem minha casa. Rebateu o anfitrião, servindo-lhe mais vinho.

Nos últimos dias, Márcia vem observando atentamenteo marido: levanta-se várias vezes à noite, com uma sede insa-ciável, severo com os escravos, mas apegado ao capataz. To-davia, o que a torna preocupada realmente, fazendo-a pres-sentir um trágico acontecimento, é o fato de ele receber ocoronel Nicolau Azevedo. Desse homem conta-se que se en-riquecera explorando os agricultores, além de surrupiar ter-ras de pequenos sitiantes, aos quais emprestara dinheiro a ju-ros exorbitantes.

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— A minha família passará o Ano Novo na Corte. Co-mentou Tarcísio a Fábio, um dos três filhos do coronel Aze-vedo.

— Então, o rapaz verá o Ano Novo chegar agarrado àssaias das irmãs Trindade. Pilheriou Fábio, sorrindo paraTarcísio.

Nicolau soltou a sua famigerada gargalhada fanhosa.

— Mais respeito com aquelas distintas senhoras, meufilho. Corrigiu-o a mãe.

Mas o jovem não se emendava, para a satisfação do pai.

— Você vai dormir no canto da cama de Iolanda ou deMarília?

— O vinho subiu à cabeça; também, dão bebida alcoó-lica a criança! Revidou Tarcísio Vilaça, provocando garga-lhada geral.

Apenas Tonico Madureira manteve-se sério, compene-trado. Não obstante a sisudez do dono da casa, o almoço pros-seguiu jubiloso!

Era noite de 31 de dezembro. Tonico Madureira e amulher permaneceram na fazenda, já que a filha Alice foracom o noivo para a Corte.

— Ficou tudo acertado com o homem? Inquiriu Tonicoao capataz.

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— Não se apoquente; patrão, tudo combinado.Garantiu Damião, com um cigarro atrás da orelha.

O vento vergava os galhos das árvores. Escutava-se, aolonge, o pio de aves noturnas. Incomodado com a tranquili-dade do feitor, o fazendeiro o interrogou:

— Como você descobriu o homem?

— Um jagunço do coronel Azevedo me contou que eleapareceu por lá pedindo emprego. Informou Damião, acen-dendo o cigarro de palha.

O vento penetrava pelas frestas da cabana onde os doisaguardavam a chegada de alguém. Impaciente, Tonico recla-ma:

— Que demora.

— Calma, patrão; da fazenda de Nicolau Azevedo atéaqui são três léguas.

De repente, ouviu-se um tiro. O coração de Tonico deuum salto dentro do peito. Ansioso, perguntou ao capataz:

— O que é isso, Damião?

— Combinamos que, assim que ele chegasse, atirariapara o alto.

Dada a explicação, o feitor encaminhou-se para a portada cabana. Mais dois disparos retumbaram na noite. Comoresposta, Damião atirou três vezes, sucessivamente.

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Compreendido o sinal que deu permissão para entrarna fazenda, o homem avançou pelo mato rumo à cabana. E,em poucos minutos, Tonico Madureira tinha diante de si afigura horripilante de Atanásio. Este emagrecera assustado-ramente, além dos cabelos crespos despenteados e das barbasgrandes e sujas. Com a mão direita, o antigo capataz do barãoRaul Vilaça, segurava com firmeza a arma ainda fumegantepelos disparos. À pequena distância de Atanásio, quatro in-divíduos mal encarados esperavam para entrar em ação.

Damião adiantou-se para o lado de Atanásio e, depoisde entregar-lhe um envelope, comunicou-lhe:

— O restante eu passo quando o serviço terminar.

Atanásio anuiu com um aceno de cabeça.

— Se algum negro aparecer, atiro sem dó. Declarou oex-feitor do barão.

Damião percebeu que Tonico olhava desconfiado paraos quatro indivíduos.

— Eles são de inteira confiança, patrão; pode ficar sos-segado.

— É gente da melhor qualidade, seu Tonico; eu garan-to. Acrescentou Atanásio, guardando o revólver na cintura.

O fazendeiro assentiu e deu-lhes as costas. Em seguida,Damião, Atanásio e os jagunços entraram em ação.

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No canavial da família Vilaça, a ventania dificultava-lhesa execução da tarefa. Porém, com perseverança e contumácia,conseguiram os primeiros clarões de fogo. Depois de maisempenho por parte dos bandidos, as labaredas fizeram-se gi-gantescas; e, como braços fantasmagóricos, agitavam-se osci-lantes para o céu estrelado! Até mesmo o vento que antes foracontrário, agora os auxiliava, cúmplice, alastrando o fogo portoda a plantação de cana.

Ao passar pela fazenda do barão Raul Vilaça, em dire-ção à Corte, Tonico Madureira avistou, da estrada, o incên-dio devorar inexoravelmente o canavial.

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EEEEENNNNNFEFEFEFEFERRRRRMMMMMIIIIIDDDDDAAAAADDDDDEEEEE

A catastrófica notícia do incêndio atingiu irreversivel-mente o barão Raul Vilaça. Acometido de um derrame cere-bral, ele se encontra aos cuidados da sua filha caçula, Isabela,em casa do conselheiro Mendonça e dona Bilu.

O médico da família, doutor Santiago Faustino, tiverauma conversa franca com os três filhos do barão. Explicou-lhes que o derrame, pela gravidade, mesmo curado, deixariasequelas; acrescentou também que o velho não poderia ter omenor aborrecimento para evitar, assim, atacar o coração.Tarcísio escutou-o em silêncio; Isabela soluçava baixinho;Graça, no entanto, mantivera-se insondável. Esta última, ten-do sido forçada a adiar a viagem, optou por se hospedar coma filha na residência das irmãs Trindade.

Ao fim de uma manhã nublada, assim que percebeu opai adormecido, Isabela, zelosa, cobriu-o até o queixo, depoisatravessou pé ante pé os aposentos e cerrou a porta sem fazerruído. Imediatamente, dona Bilu veio ao seu encontro.

— Preparei uma merenda para você, querida. Anunciouela, solícita.

- CAPÍTULO 16 -

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— Eu estou sem fome agora, dona Bilu, obrigada. Mur-murou a donzela.

— Você precisa se alimentar, minha filha, senão as for-ças se esvaem. Aconselhou a velha, maternalmente.

Depois de ajudá-la a sentar-se à mesa, dona Bilu colo-cou diante de Isabela um copo de suco de laranja, um pedaçode rosca, dois pães de queijo e três fatias de bolo. Com osolhos arregalados de espanto, a filha do barão pegou o copode suco e sorveu um gole; segurou uma fatia de bolo com osdedos indicador e polegar, e começou a mordiscá-la vagaro-samente.

Ajeitando as banhas numa cadeira do outro lado damesa, dona Bilu devorava refeição igual.

— Papai está bastante sonolento! Lamentou a moça,pondo de lado metade da fatia de bolo.

— Pegue com Deus, minha filha, que o barão há de fi-car bom! Animou-a dona Bilu; depois enfiou um pão de quei-jo inteiro na boca.

Na fazenda dos Madureira, o jantar foi servido às oitohoras em ponto. Márcia observou o marido que, mal conten-do a alegria pelos negócios vantajosos que fizera, dirigiu-se àporta para receber o genro.

— Entre, Tarcísio, a casa é sua.

— Papai, quanta gentileza de sua parte; eu sou até ca-

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paz de adivinhar que o senhor tem feito ótimos negócios ul-timamente.

— As nossas famílias sempre estiveram juntas, Alice, e,não será agora com a enfermidade do barão que havemos denos desunir. Rebateu Tonico, com disfarçado cinismo.

Assim que o mancebo se acomodou à mesa, Márcia ointerrogou:

— Que notícias me dá do barão?

— Na última vez que o vi, achei-o sonolento; espero...

— O barão é forte, em pouco tempo ficará de pé. Ata-lhou Tonico, gesticulando.

— Eu tenho certeza de que o meu sogro está melhor,meu coração não me engana! Assegurou Alice, sorrindo parao noivo.

— É verdade, filha; mesmo porque notícia boa vem acavalo, mas notícia ruim chega com o vento. Completou ofazendeiro, servindo-se de vinho.

Outro dia raiou e com ele veio uma chuva fina e inter-mitente. O médico da família Vilaça fora chamado às pressasao sobrado do conselheiro Mendonça. O doutor chegouacompanhado por duas enfermeiras.

— O senhor já conhece o caminho. Falou dona Bilu,recebendo-o à porta da sala.

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No quarto, à cabeceira do pai, Isabela tem permaneci-do dia e noite, incessantemente. A jovem traz a exaustão es-tampada no rosto. Pálida e com enormes olheiras, ela vem sedesdobrando para atender às necessidades do velho.

— Eu vim o mais depressa que pude, Isabela. Disse omédico ao entrar nos aposentos do barão, seguido pelas en-fermeiras.

— Doutor Santiago... Iniciou ela, com os olhos lacrime-jantes.

— Diga, o que houve? Perguntou ele, depois de colocara maleta sobre a cômoda.

Isabela suspirou fundo antes de continuar:

— Papai acordou desse jeito hoje: não abre os olhos,não me responde, apenas mexe as mãos.

— O barão...

— Ele está sofrendo mais do que eu! Rematou Isabela.

O médico ficou admirado com a energia que apresen-tava a donzela; sozinha como acompanhante do pai, desdeque este tivera o derrame; mas ela continuava firme, apesarda intensa fadiga.

— Eu quero fazer um exame mais demorado no pacien-te; e, caso você não se importe, preferiria que me aguardasselá fora. Disse o médico à Isabela, com brandura.

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Sem fazer qualquer objeção, ela se retirou do quarto efechou a porta atrás de si. Durante todo o diálogo entre dou-tor Santiago e Isabela, as duas enfermeiras aguardavam silen-ciosas a um canto.

Raul Vilaça gemia mais com a alma do que com o físi-co. O médico mediu-lhe a pressão, sentiu-lhe o pulso, auscul-tou-lhe as batidas do coração e, auxiliado pelas enfermeiras,preparou-se para exames mais minuciosos.

— Tenha confiança em Deus, minha filha, só Ele paranos amparar! Dizia dona Bilu, conduzindo Isabela a um lu-gar mais arejado da casa.

— Papai está se acabando pouco a pouco; ele não aguen-tará por muito tempo! Pressentiu a moça, com a voz embargada.

— A fé em Deus deve ser sempre maior do que qual-quer coisa, Isabela.

— Eu sei, dona Bilu, que o sofrimento é menor quandose acredita em Deus!

Elas escutaram passos na escada; e, em instantes, surgiua figura imponente do conselheiro que, ao se deparar com aexpressão de tristeza no rosto da filha do barão, indagou:

— O doutor Santiago esteve por aqui?

— Há algum tempo que ele chegou e está examinandoo barão. Respondeu-lhe a mulher.

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O conselheiro mirou Isabela com ternura. Esta, surpre-endentemente serena, dirigiu-se a ele:

— Quero ter notícias da fazenda.

Mendonça ficou pensativo, procurando as palavras.

— As coisas por lá não andam nada boas; para saldarmais dívidas, por exemplo, Tarcísio se viu obrigado a vendera filha da escrava Florinda.

Derrotada, a filha do barão abaixou a cabeça. E, sentin-do-se impotente para intervir a favor da escrava, exclamoucondoída:

— Perder a filha Vitória deve ter sido o maior espinhona vida de Flor!

— Minha filha, deixe a fazenda por conta do seu irmão;ele saberá o que é melhor para ser feito. Interveio dona Bilu,penalizada.

O conselheiro sentou-se em frente a elas.

— Infelizmente, Tarcísio não tem sido um bom admi-nistrador. Declarou ele, acendendo o charuto.

— Mas por que, Mendonça? Inquiriu a mulher, arrega-lando os olhos.

— Sendo Florinda o escravo mais valioso da fazenda,ele não deveria nunca tê-la submetido a trabalhar no enge-nho nem tampouco na lavoura, pois, com a venda dessa es-

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crava toda a dívida seria quitada. Concluiu o conselheiro, ex-periente.

Dona Bilu escutou-o segurando o queixo.

— Saibam os senhores, que Tarcísio se apaixonou des-vairadamente por Florinda! Eis a origem de tantos erros co-metidos pelo meu irmão; esse é o motivo do calvário daquelapobre infeliz! Revelou Isabela.

O silêncio se fez pesado entre eles. Ao longe, vozes sãoouvidas numa balbúrdia.

— Que ridículo; veja se tem cabimento um homembranco amar uma negra! Felipe não me daria esse desgosto.Falou dona Bilu, torcendo o nariz.

Como em todas as manhãs, acaba de adentrar o sobra-do o visitante que, curvando o corpo, cumprimenta-os sole-nemente.

— Como está o barão? Perguntou Dionísio, o farma-cêutico.

— Hoje, papai não acordou bem. Respondeu a donzela,sem fitá-lo.

— Mas com as bênçãos de Deus, o barão há de melhorar,senhorita! Disse o farmacêutico, procurando confortá-la.

— Amém! Balbuciou Isabela.

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— Dionísio, que celeuma é aquela para os lados da praça daMatriz? Interrogou dona Bilu, impacientando-se com a algazarra.

— São manifestações. Respondeu ele, lacônico, sentan-do-se ao lado do conselheiro.

Este, ciente do que se tratava e conhecendo as opiniõesracistas da mulher, preferiu manter-se calado.

— Manifestações? O que reivindicam? Insistiu dona Bilu.

— A abolição da escravatura. Os negros estão se mobi-lizando, e já existem muitos fazendeiros que, inclusive, aderi-ram ao movimento. Explicou Dionísio.

— Era só o que me faltava: escravo liberto. Desaprovoudona Bilu olhando de cara feia para o marido, abolicionistaassumido.

— É uma causa justa; também sou favorável à abolição.Opinou Isabela.

— Negro nasceu para ser escravo. Contestou a mulherdo conselheiro, levantando-se estabanadamente.

— Engano seu, Bilu. Hoje em dia se fala abertamenteem carta de alforria. Ademais, alguns países já aboliram a es-cravidão. Acrescentou Dionísio.

Uma negra entrou na sala e se encaminhou ao conse-lheiro, dizendo-lhe:

— O doutor está chamando pelo senhor.

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Era uma tarde de céu encoberto quando Tarcísio Vilaçasentou-se à beira do rio, para aguardar a passagem da escravaFlorinda. Esta, extenuada da labuta no canavial, caminhavaalheia a tudo à sua volta: nem a beleza das rosas a encantava,nem o gorjeio dos pássaros a alegrava!...

— Flor! Chamou-a o mancebo, aproximando-se.

— Sinhozinho. Respondeu ela, estacando o passo.

— Você tem ódio de mim, Flor?

— Ódio é sentimento de quem pratica o mal, sinhozinho.

De repente, ouviu-se a voz de um negro gritando pelofilho do barão:

— Sinhozinho, sinhozinho!

Tarcísio virou-se e avistou Serafim correndo em sua di-reção. Este parou esbaforido e disse:

— Mãe-preta está que nem louca atrás do sinhozinho.

— O que essa velha caduca quer comigo, diacho? Ros-nou o mancebo, dirigindo-se à casa-grande.

O corpo do barão Raul Vilaça foi velado durante a noi-te na casa do conselheiro Mendonça. O sobrado, habitual-mente sossegado, achava-se abarrotado de parentes e amigosdo falecido. Em uma das laterais do esquife encontrava-seIsabela, a filha caçula do barão que, pregada ao solo, dava aimpressão de uma roseira desfolhada!

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Aproximou-se do féretro um homem desconhecido como chapéu na mão; fez uma reverência e afastou-se em seguida.

— Queira receber os meus pêsames, Tarcísio! Disse oconselheiro à chegada do mancebo.

A expressão de tristeza no rosto de Isabela fez o irmãoparar abruptamente; porém, Graça puxou-o brandamentepela mão, dizendo-lhe:

— Venha, Tarcísio, agora somos só nós três.

Tarcísio e Graça envolveram Isabela num abraço frater-no. Depois curvaram-se sobre o caixão e, juntos, choraram amorte do pai!

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LLLLLIIIIIBBBBBEEEEERRRRRDDDDDAAAAADDDDDEEEEE

A centenas de quilômetros da Corte, numa madrugadafria, dois escravos conversavam sob o luar.

— Assim que amanhecer eu partirei em busca dos meustesouros! Exclamou Vítor, cuja liberdade comprara com odinheiro que juntara desde pequenino, além das gratificaçõesrecebidas dos seus senhores.

— Já que eu não tive sorte, o jeito é continuar nesta vidade escravo. Clamou o outro.

— Mané, vosmecê não tem do que reclamar; conseguiu fu-gir e chegar até aqui, sem que um capitão do mato o capturasse.

— É a saudade da minha sobrinha Silvana que corrói ocoração deste velho escravo! Lamentou Mané Bento.

— Ouça um conselho, Mané: não fuja novamente, poisé muito arriscado; além do mais, pelos comentários que seouve, a abolição da escravatura não tarda.

— Deus Nosso Senhor que abençoe as suas palavras,mas eu não tenho esperança de que isso aconteça. Resmun-gou Mané Bento, descrente.

- CAPÍTULO 17 -

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Vítor sentou-se ao lado do companheiro e disse-lhe ama-velmente:

— Mané, com o fim da escravidão o mundo será outro:os negros aprenderão a ler e escrever, terão trabalho e casapara morar, uma vida digna!

Mané Bento escutava-o com olhos brilhantes, enquan-to folheava a Bíblia em seu colo.

— É, a coisa mais triste deste mundo é alguém que nãosaiba ler nem escrever; vosmecê que é feliz, por ter instrução!

— Só Deus sabe o quanto tenho padecido, vivendo lon-ge de Flor e Vitória; todas as noites eu sonho com elas...

Vítor ergueu-se. No céu raiava um novo dia.

— Vá em paz, Vítor. E que Deus o acompanhe. Dese-jou Mané Bento, levantando-se também.

Comovidos, os dois escravos se abraçaram.

Tarde de sol a pino. Passageiros, seus familiares e amigosaglomeravam-se no cais do porto, onde vendedores ambulan-tes anunciavam produtos das mais variadas espécies.

— Olhe este santinho, minha gente, que acalma o via-jante quando o mar está revolto! Gritava um negrinho, er-guendo uma pequena imagem à altura do rosto de Graça.

— What time is it, please? Perguntou Stefany.

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Impaciente, Graça lhe respondeu:

— Filha, você já me fez essa pergunta mil vezes.

— Olhe este remedinho, minha gente: contra enjoo nomar, melhor não há. Berrava outro vendedor, manco de umaperna.

Uma mulher grisalha adquiriu uma caixa do remédio;abriu-a e, antes de pagar, engoliu a seco dois comprimidos.

— Que calor infernal, hein, madame! Reclamou um ho-mem, abanando-se com um chapéu.

Graça fingiu que não ouvira o comentário; deu-lhe ascostas e, para sua decepção, avistou Tonico Madureira apro-ximando-se lentamente delas.

— Olhe o refresco, minha gente, é de fruta natural, dofundo do meu quintal. Garantia a vendedora, uma mocinhade rosto sardento.

Tonico comprou dois refrescos e ofereceu a Stefany:

— Aceita um, garotinha?

— Minha filha não recebe coisas de estranhos. Inter-veio Graça, ríspida.

E, pegando-a pela mão, arrastou-a para o navio. Do con-vés, Graça mostrou à Stefany os amigos Susan e Leonardoque, de longe, acenavam com um lenço branco.

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Vítor resolveu fazer uma parada, talvez a última antesde chegar à fazenda dos Vilaça. Foram semanas de viagensexaustivas até que, finalmente, o ex-escravo antegozasse omomento de, em poucos dias, reaver os dois tesouros que lhearrebataram das mãos. O lugar que escolhera para descansa-rem era magnificamente arborizado, propiciando, assim, a sie aos seus ajudantes, muita sombra e vento fresco.

— Quantos dias faltam para o patrão encontrar-se coma mulher e a filha? Perguntou Tião.

— Em quatro dias de viagem chegaremos à fazenda dobarão. Informou Vítor, mirando uma casa no alto da colina.

— Então a gente se acampa por aqui hoje, patrão?

— Sim, Mário; nós partiremos amanhã cedo; e, enquan-to vocês montam as barracas, eu vou àquela casa perguntaronde há uma mercearia.

Vítor subiu por uma estrada de terra margeada por vas-tos e verdejantes campos, nos quais pastava o gado. A casa,que a distância não lhe parecera tão grande, ocupava, porém,toda a parte frontal da chácara, numa sólida construção queesbanjava luxo e bom gosto.

Dando a volta por trás, ele chegou à cozinha, onde umapreta enchia de água uma enorme panela de ferro.

— Bom dia, amiga senhora! Cumprimentou Vítor.

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A mulher fitou-o ressabiada, depois falou:

— Vosmecê quer conversar com a governanta? Espereque ela não demora para atendê-lo.

— Na verdade, boa senhora, eu só preciso saber ondeencontrar uma mercearia para eu comprar alguns alimentos.Explicou o ex-escravo.

Convencida de que o rapaz era mesmo um viajante, con-vidou-o:

— Entre e sente-se; o feitor foi à cidade, mas agovernanta há de recebê-lo.

Ele a obedeceu e, ao penetrar no recinto, seus olhos fi-xaram-se numa criança que, na extremidade oposta, divertia-se inocentemente com espigas de milho. Sentada no chão, amenina jogava as espigas para cima e as apanhava com abso-luta destreza. Vítor admirou-lhe os cabelos encaracoladosabaixo dos ombros, mas foram os olhos que mais lhe chama-ram a atenção: eram vivos e verdes!

Súbito, uma mulher alta e corpulenta irrompeu na co-zinha, puxando pela mão um negrinho asseado e sorridente.

— Vitória, meu bem, venha tomar banho para o almo-ço, veja como Henrique está limpinho! Disse a governanta.

Num salto, a menina ficou de pé e começou a dançar. Ocoração de Vítor disparou dentro do peito, ao escutar tão doce

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nome ser pronunciado! E, sem conter o ímpeto, o ex-escravoacercou-se da mulher e disse-lhe:

— Que linda menina!

A governanta, que até então não reparara na sua presen-ça, sorriu-lhe hospitaleira.

— É um anjo de criança! A baronesa está arrasada porser obrigada a vender essa joia.

Vítor escutou-a, sem tirar os olhos de Vitória.

— O que aconteceu? Indagou ele, ansioso.

— O barão comprou Vitória para presentear a filha;infelizmente, na viagem de lua de mel, ela e o marido morre-ram num naufrágio.

— Meu Deus! Exclamou Vítor.

— Os velhos estão desgostosos com a vida, perderam aúnica filha!

— Que grande desgraça! Compadeceu-se Vítor.

— Já venderam a chácara e quase todos os escravos; en-fim, decidiram voltar para Portugal. Concluiu o relato agovernanta.

— Matilde, após o banho eu posso ir à biblioteca dese-nhar flores? Indagou Vitória com meiguice.

— Ela adora desenhar flores, até parece que foi gerada

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por uma flor! Falou Matilde, sorrindo para a criança, dando-lhe o seu consentimento.

Vítor ficou arrepiado ante a imaginação da governanta.E, absolutamente convencido de que a criança de aproxima-damente quatro anos se tratasse da sua filha Vitória, o ex-es-cravo confidenciou à governanta toda a história de sua vida:contou desde a chegada de Florinda à fazenda, do momentoem que se conheceram, do amor que os uniu, do nascimentoda filha Vitória e, por fim, da separação quando fora vendi-do. E, com o rosto banhado em lágrimas, suplicou à Matilde:

— Posso conversar com o barão e a baronesa? Quemsabe eu tenha condições de pagar o preço que estão pedindopor ela!

Bastante comovida com o relato de Vítor, Matilde nãohesitou em conduzi-lo à presença dos seus patrões. Estes oreceberam de sorriso aberto, ouviram-no com deferência, e,como num gesto de remissão, alforriaram Vitória e a entre-garam ao seu legítimo pai.

Ao raiar de um novo dia, Vítor partiu para a fazenda dafamília Vilaça com Vitória nos braços e a esperança no cora-ção!

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SSSSSUUUUUIIIIICCCCCÍÍÍÍÍDDDDDIIIIIOOOOO

Madruga. O céu apresentava-se cor de chumbo. O ven-to penetrava frio por entre as frestas na parede da senzala.Florinda relanceou o olhar à sua volta, constatando que oscompanheiros de infortúnio ainda se encontravam adorme-cidos. Ela ergueu o corpo esquelético e, esgueirando-se juntoà parede, deixou o local. Seus pés tocaram a terra úmida peloorvalho. Com passos trôpegos, a escrava caminhava penosa-mente como se arrastasse cem anos de sofrimento e solidão!Com muito custo, Florinda vai subindo o morro que leva aoengenho. Mas, a certa altura, um enorme cachorro de peloouriçado e boca preta embarga-lhe a passagem. Ela parou,cruzou os braços à frente do corpo ligeiramente inclinado parabaixo e balbuciou algo ininteligível. Como se lhe compreen-desse as palavras, o animal que até então se achava sentadonas patas traseiras, pôs-se de pé, abanou o rabo várias vezes edesceu vagarosamente o morro.

O sol despontava no horizonte quando Florinda entrouno engenho. Sentia-se só no universo, com a alma e o espíritodespidos de qualquer sentimento ou emoção! Do teto pendiauma grossa corda rajada de amarelo e preto, utilizada para amar-

- CAPÍTULO 18 -

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rar a mercadoria no transporte de cargas, àqual os olhos da escrava prenderam-se comoa um ímã. Ela claudicou em sua direção e,após galgar alguns caixotes apoiada a umapilastra, tomou-a em suas mãos, com ela fezum laço firme, passando-o finalmente pelacabeça. Com o impulso, seu corpo balan-çou para frente e para trás, como a flutuarsobre um abismo! Seus olhos saltaram dasórbitas e da boca escorreu uma babaesverdeada.

Na casa-grande, Juraci servia o caféda manhã à Isabela, murmurando:

— Quase que não consigo dormiressa noite; senti a boca amarga, a gargantaseca, uma falta de ar...

A donzela mastigou devagar a qui-tanda, depois sorveu um gole de café.

— Eu tive um sonho horrível com Tarcísio. A senhoranem queira imaginar!

— Um sonho horrível com sinhozinho! Repetiu a ve-lha, parada à sua frente.

— Eu sonhei que ele e Alice estavam numa viagem delua-de-mel. Aí, o navio afundou no mar; mas não havia água,

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e, sim, espinhos... Contou ela, arrepiando-se.

Juraci recuou um passo, assustada.

— Esqueci-me do leite, iaiá, hoje eu não estou com acabeça boa. Desculpou-se a negra, retirando-se.

A filha do falecido barão permaneceu imóvel na sala dejantar, indiferente ao esquecimento de Juraci.

E, assim que entrou na cozinha, a escrava avistou Chicoe Serafim em disparada rumo à casa-grande. Parando abrup-tamente, ela colocou as mãos na cabeça, exclamando:

— Valei-me, meu bom Deus!

Já pressentindo o mal, a negra aguardou os dois escra-vos se aproximarem. Estes traziam os olhos cheios d’água; e,com a voz embargada, Chico principiou o relato:

— É, mãe-preta, sucedeu a maior desgraça deste mundo!

Sentado num degrau junto à porta, soluçando, Serafimcontinuou:

— É de cortar o coração, mãe-preta!

Tomando fôlego, Chico exclamou:

— A nossa Flor murchou para sempre!

Estranhando a demora de Juraci, Isabela resolveu ir atéà cozinha. Lá, surpreendeu-a com a mão espalmada sobre o

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peito, ouvindo os companheiros que, debulhados em lágri-mas, prosseguiam:

— Ela se enforcou com uma corda no engenho. FalouSerafim, erguendo-se do chão.

Augusta e Rosinha chegaram em silêncio por trás deIsabela que, branca feito cera, mantinha-se hirta como umaestátua.

— Apesar dos olhos esbugalhados, Flor morreu comuma expressão serena; é mesmo um milagre de Deus! Con-cluiu Chico, fitando o céu.

— Quais providências vosmecês tomaram? InterrogouJuraci, confortando a neta que se refugiara nos seus braços.

— Eu cortei a corda, Chico aparou o corpo dela, enquantoVicente foi chamar o feitor. Respondeu Serafim, cabisbaixo.

O suicídio de Florinda chocou profundamente IsabelaVilaça. Esta, depois de ouvir o resto da narrativa sobre a sinis-tra morte da escrava, falou em voz clara e pausada:

— Flor terá um enterro digno!

Era um belo fim de tarde! O sol se escondia atrás dosmontes; o vento arrastava vagarosamente as folhas secas pelopátio principal da fazenda. Isabela, a filha do falecido barãoRaul Vilaça, lia um livro no jardim da casa-grande. Absortana leitura, a donzela mantinha-se alheia a tudo à sua volta; na

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verdade, ela queria apagar da lembrança que, pela manhã da-quele mesmo dia de outono, estiveram com ela, em compa-nhia do conselheiro Mendonça, os futuros proprietários dafazenda. Seus olhos passeavam ágeis pelas páginas do roman-ce aberto sobre o regaço, enquanto a boca, cerrada, vez ououtra se entreabria num sorriso tímido!

Da carruagem estacionada há poucos instantes, Vítorsaltou e, num gesto paternal e cheio de carinho, ajudou a fi-lha a descer. Esta, depois de passar graciosamente as mãozi-nhas pelos cabelos, seguiu os passos do pai.

Como ainda permanecia absolutamente concentrada naleitura, Isabela nem percebeu os recém-chegados se aproxima-rem e se sentarem a seu lado. Em dado momento, a moça suspi-rou e ergueu a cabeça; e, ao se deparar com os dois, estremeceude emoção! Dos olhos brotaram lágrimas que lhe inundaram orosto jovem, mas de evidentes sinais de sofrimento.

— Vítor! Balbuciou ela.

— Iaiá Isabela!

Ela depôs o volume no banco de cimento frio, puxouafetuosamente Vitória pela mão e sentou-a no colo. Aper-tou-a nos braços, beijou-lhe as faces rosadas, depois falou-lhecom brandura:

— Vá brincar, Vitória. Eu preciso conversar com o papai.

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A pequena, porém, desvencilhou-se de Isabela e agar-rou as mãos de Vítor, temerosa.

— Pode ir, filha; eu já expliquei a você que nunca maisvamos nos separar!

Confiante, a menina soltou as mãos do pai e se pôs a cor-rer pelo jardim afora. A lua há muito que surgira no céu, quan-do Isabela terminou de contar o triste fim da vida de Florinda!

— Todos os dias eu rezo pela sua alma; é um grandeconsolo que tenho sabê-la tão venturosa no céu, perto deDeus! Exclamou a donzela com as mãos postas.

Com o coração despedaçado de dor, o ex-escravo mur-murou:

— Flor foi apenas mais uma vítima da perversidade hu-mana!

Cabisbaixos e mudos, os dois jovens se mantiveram as-sim por longo tempo. De repente, ambos escutaram uma vozinfantil gritar, irradiando alegria:

— Papai, papai, veja que lindas!

Era Vitória que, emergindo das folhagens, surgira dian-te deles trazendo os bracinhos carregados de flores!

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