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 1 Sonhos Lúcidos FLORINDA  DONNERGRAU “Para todos aqueles que ensonham sonhos de feiticeiros.  E para aqueles que os ensonharam comigo.” PREFÁCIO Florinda Donner é uma discípula de Don Juan Matus, um mestre bruxo do estado de Sonora,  México e, por mais de vinte anos,  uma companheira minha nesta aprendizagem.  Devido a seus talentos naturais, Don Juan e duas de suas companheiras  feiticeiras,  Florinda Grau e Zuleica Abelar, deram a Florinda Donner uma instrução e cuidados  muito especiais.  Entre os três a treinaram como “ensonhadora”  e a levaram a desenvolver  sua “atenção de ensonho” a um grau de controle extraordinário.  De acordo com os ensinamentos  de Don Juan Matus, os feiticeiros do antigo México praticavam duas artes: a arte de espreitar  e a arte de ensonhar.  Praticar uma ou outra arte estava decretado pela atitude inata de cada praticante da feitiçaria.  Ensonhadores  eram aqueles que possuíam a habilidade de fixar o que os bruxos chamam de “atenção de ensonhos”,  um aspecto especial  da consciência,  nos elementos  dos sonhos normais.  Chamavam espreitadores  a aqueles que possuíam uma aptidão inata conhecida  como a “atenção de espreita”,  outro estado especial  da consciência,  que permite encontrar os elementos  chave de qualquer  situação no mundo cotidiano e fixar essa dita atenção neles, a fim de alterálos ou de ajudálos a permanecer  em seu curso.  Através de seus ensinamentos,  Don Juan Matus sempre deixou muito claro que as idéias dos bruxos da antiguidade ainda permanecem em vigência hoje em dia, e que os bruxos modernos  sempre se reúnem nesses  dois grupos tradicionais.  Para tanto, seu esforço como mestre foi inculcar em seus discípulos  as idéias e práticas dos bruxos da antiguidade  por meio de um rigoroso treinamento e uma disciplina férrea.  A idéia dos bruxos é que, ao fazer com que a atenção de ensonhos  se fixe nos elementos  dos sonhos normais,  estes sonhos se transformam de imediato em ensonhos. Para eles, os ensonhos  são estados  únicos da consciência;  algo como comportas  abertas até outros mundos reais, porém alheios à mente racional  do homem moderno.  Na primeira vez que Don Juan me falou da arte de ensonhar,  eu lhe perguntei:   _Você quer dizer, Don Juan, que um feiticeiro toma a seus sonhos como se fossem uma realidade?  _Um feiticeiro não toma nada como se fosse outra coisa   contestou.   –Os sonhos são sonhos.  Os ensonhos  não são algo que se pode tomar como a realidade:  os ensonhos são uma realidade a parte.  _Como é tudo isso? Me explique.   _Você tem que entender que um bruxo não é um idiota nem um transtornado  mental. Um bruxo não tem nem o tempo nem a disposição para enganar a si mesmo,  

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  1

Sonhos Lúcidos FLORINDA DONNER‐GRAU 

“Para todos aqueles que ensonham sonhos de feiticeiros. E para aqueles que os ensonharam comigo.” 

PREFÁCIO 

Florinda  Donner  é  uma  discípula  de  Don  Juan  Matus,  um  mestre  bruxo  do 

estado de Sonora, México e, por mais de vinte anos, uma companheira minha nesta aprendizagem. Devido a seus talentos naturais, Don Juan e duas de suas companheiras feiticeiras,

 Florinda

 Grau

 e Zuleica

 Abelar,

 deram

 a Florinda

 Donner

 uma

 instrução

 e 

cuidados muito especiais. Entre os três a treinaram como “ensonhadora” e a levaram a 

desenvolver sua “atenção de ensonho” a um grau de controle extraordinário. De acordo com os ensinamentos de Don  Juan Matus, os  feiticeiros do antigo 

México praticavam duas artes: a arte de espreitar e a arte de ensonhar. Praticar uma 

ou  outra  arte  estava  decretado  pela  atitude  inata  de  cada  praticante  da  feitiçaria. Ensonhadores  eram  aqueles  que  possuíam  a  habilidade  de  fixar  o  que  os  bruxos chamam  de  “atenção  de  ensonhos”,  um  aspecto  especial  da  consciência,  nos elementos dos sonhos normais. 

Chamavam espreitadores a aqueles que possuíam uma aptidão inata conhecida 

como a “atenção

 de

 espreita”,

 outro

 estado

 especial

 da

 consciência,

 que

 permite

 

encontrar os elementos chave de qualquer situação no mundo cotidiano e  fixar essa 

dita atenção neles, a fim de alterá‐los ou de ajudá‐los a permanecer em seu curso. Através de seus ensinamentos, Don Juan Matus sempre deixou muito claro que 

as idéias dos bruxos da antiguidade ainda permanecem em vigência hoje em dia, e que 

os bruxos modernos  sempre  se  reúnem nesses dois  grupos  tradicionais. Para  tanto, seu esforço como mestre foi inculcar em seus discípulos as idéias e práticas dos bruxos da antiguidade por meio de um rigoroso treinamento e uma disciplina férrea. 

A idéia dos bruxos é que, ao fazer com que a atenção de ensonhos se fixe nos elementos  dos  sonhos  normais,  estes  sonhos  se  transformam  de  imediato  em 

ensonhos. Para

 eles,

 os

 ensonhos

 são

 estados

 únicos

 da

 consciência;

 algo

 como

 

comportas  abertas  até  outros  mundos  reais,  porém  alheios  à  mente  racional  do 

homem moderno. Na primeira vez que Don Juan me falou da arte de ensonhar, eu lhe 

perguntei:  _Você  quer  dizer, Don  Juan,  que  um  feiticeiro  toma  a  seus  sonhos  como  se 

fossem uma realidade?  _Um  feiticeiro  não  toma  nada  como  se  fosse  outra  coisa  –  contestou.  –Os 

sonhos são sonhos. Os ensonhos não são algo que se pode tomar como a realidade: os ensonhos são uma realidade a parte. 

 _Como é tudo isso? Me explique. 

 _Você tem

 que

 entender

 que

 um

 bruxo

 não

 é um

 idiota

 nem

 um

 transtornado

 

mental. Um bruxo não tem nem o tempo nem a disposição para enganar a si mesmo, 

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ou  para  enganar  a  ninguém,  e  menos  ainda  para  dar  um  passo  em  falso.  O  que 

perderia fazendo  isso é demasiado grande. Perderia sua ordem vital, a qual  leva uma vida  inteira para se aperfeiçoar. Um  feiticeiro não vai desperdiçar algo que vale mais que sua vida tomando uma coisa por outra. Os ensonhos são algo real para um bruxo 

porque neles ele pode atuar deliberadamente; pode escolher dentro de uma variedade 

de possibilidades

 àquelas

 que

 sejam

 as

 mais

 adequadas

 para

 levá

‐lo

 aonde

 ele

 

necessite ir.  _Então  você  quer  dizer  que os  ensonhos  são  tão  reais  como o  que  estamos 

fazendo agora?  _Se prefere comparações, lhe direi que os ensonhos são talvez mais reais. Neles 

a  pessoa  tem  poder para mudar  a  natureza  das  coisas, ou para mudar o  curso  dos eventos. Mas tudo isso não é o importante. 

 _O que é então o importante, Don Juan?  _O  jogo da percepção. Ensonhar ou espreitar significa ampliar o campo do que 

se pode perceber a um ponto inconcebível para a mente. 

Na opinião

 dos

 bruxos,

 todos

 nós

 em

 geral

 possuímos

 dons

 naturais

 de

 

ensonhadores ou espreitadores, e a muitos de nós nos  resulta muito  fácil  ganhar o 

controle da atenção de ensonhos ou o da atenção de espreita, e o  fazemos de uma maneira tão hábil e natural que na maioria das vezes nem nos damos conta de o haver realizado.  Um  exemplo  disto  é  a  história  do  treinamento  de  Florinda  Donner,  que 

precisou de anos  inteiros de agonizante  trabalho, não para ganhar o controle de sua 

atenção de ensonho, e sim para clarear seus ganhos como ensonhadora e  integrá‐los ao pensamento linear de nossa civilização. 

Certa vez foi perguntado a Florinda Donner qual era a razão pela qual escreveu 

este  livro,  e  ela  respondeu  que  lhe  era  indispensável  contar  suas  experiências  no 

processo de

 enfrentar

 e desenvolver

 a atenção

 de

 ensonho

 a fim

 de

 tentar,

 intrigar

 ou

 incitar, pelo menos intelectualmente, a aqueles que se interessem em levar a sério as afirmações de Don Juan Matus acerca das ilimitadas possibilidades da percepção. Don 

Juan acreditava que no mundo  inteiro não existe, nem talvez  já tenha existido, outro 

sistema,  exceto  o  dos  bruxos  do  antigo  México,  que  conceda  à  percepção  seu 

merecido valor pragmático. 

CARLOS CASTANEDA 

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NOTA DA AUTORA 

Meu primeiro contato com o mundo dos  feiticeiros não  foi algo planejado ou 

buscado por mim, ou melhor, foi um evento fortuito. Conheci a um grupo de pessoas no  norte  do  México  em   julho  de  1970,  que  eram  os  fiéis  discípulos  da  tradição 

feiticeira dos

 índios

 do

 México

 pré

‐colombiano.

 

Aquele primeiro encontro teve em mim um poderoso efeito; introduziu‐me em 

outro mundo que coexiste com o nosso. Há vinte anos estou comprometida com esse 

mundo,  e esta  é  a  crônica  de  como  começou meu  compromisso  e de  como  ele  foi estimulado e dirigido pelos feiticeiros responsáveis pelo meu ingresso nele. 

A  pessoa  mais  proeminente  entre  eles  foi  uma  mulher  chamada  Florinda 

Matus.  Foi minha mentora  e minha  guia.  Foi  também  quem me  deu  seu  nome — 

Florinda — como um presente de amor e poder. Chamá‐los feiticeiros não é escolha minha. Bruxos e bruxas, ou seja, feiticeiros 

e  feiticeiras, são os termos que eles mesmos usam para designarem‐se a si mesmos. 

Sempre me

 incomodou

 a conotação

 negativa

 dessas

 palavras,

 mas

 os

 próprios

 

feiticeiros me tranqüilizaram de uma vez por todas, explicando que o que se denomina feitiçaria  é  algo  bastante  abstrato:  a  habilidade  que  algumas  pessoas  desenvolvem 

para expandir os  limites de sua percepção normal. A qualidade abstrata da  feitiçaria, então,  anula  automaticamente qualquer  conotação positiva ou negativa dos  termos usados para descrever àqueles que a praticam. 

Expandir os  limites da percepção normal é um  conceito que  surge da  crença dos feiticeiros de que nossas opções na vida são  limitadas devido ao fato de estarem 

definidas pela ordem social. Os feiticeiros crêem que a ordem social cria nossa lista de 

opções, mas  que  nós  fazemos  o  resto;  ao  aceitar  somente  essas  opções  limitamos 

nossas quase

 ilimitadas

 possibilidades.

 Por sorte estas limitações, de acordo com os feiticeiros, são aplicáveis somente ao nosso  lado social e não ao outro, praticamente  inacessível, que não cai dentro do 

domínio da percepção comum. Para tanto, seu principal esforço tende a revelar esse 

lado.  Eles  conseguem  isso  quebrando  a  débil  e,  contudo,  resistente  carapaça  das suposições humanas com respeito ao que somos e do que somos capazes de ser. 

Os feiticeiros aceitam que em nosso mundo dos afazeres diários há quem prove 

o desconhecido em busca de opções diferentes da  realidade, mas argumentam que, por  desgraça,  tais  buscas  são  essencialmente  de  natureza  mental.  Nunca  nos abastecem da energia necessária para mudar nosso modo de ser. Sem energia, novos 

pensamentos e novas

 idéias

 quase

 nunca

 produzem

 mudanças

 em

 nós.

 Algo que aprendi no mundo dos  feiticeiros é que, sem retirar‐se do mundo e 

sem avariarem‐se no processo, eles conseguem realizar a magnífica tarefa de romper o 

pacto que tem definido a realidade. 

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CAPÍTULO UM 

Respondendo a um impulso, após assistir ao batismo da filha de uma amiga na cidade de Nogales, Arizona, decidi cruzar a  fronteira e entrar no México. Quando  já 

saía  da  casa  de  minha  amiga,  uma  de  suas  hóspedes,  uma  mulher  chamada  Delia 

Flores, me

 pediu

 que

 a levasse

 até

 Hermosillo.

 

Era  uma mulher morena,  talvez  de  uns  quarenta  e  tantos  anos,  de  estatura média  e  físico  corpulento.  Tinha  um  cabelo  negro  e  liso,  recolhido  em  uma  grossa trança, e seus olhos escuros e brilhantes realçavam um rosto redondo, astuto, e sem 

embargo  levemente  juvenil.  Segura de que  se  tratava de uma mexicana nascida  no 

Arizona, lhe perguntei se necessitava um visto de turista para ingressar no México. —Para quê preciso de um visto de turista para entrar em meu próprio país? — 

respondeu, abrindo os olhos num gesto de exagerada surpresa. —Seu modo de  ser e de  falar me  fizeram pensar que você era do Arizona — 

contestei. 

—Meus pais

 eram

 índios

 de

 Oaxaca

 —

 explicou

 —

 mas

 eu

 sou

 uma

 ladina.

 

—O que é uma ladina? —Os  ladinos  são  índios astutos,  criados na  cidade — declarou. Havia em  sua 

voz uma estranha excitação que me foi difícil entender quando acrescentou: —Adotam 

as maneiras do homem branco e o fazem tão bem que podem se fazer passar pelo que 

não são. —Isso  não  é  algo  para  orgulhar‐se  —  julguei  —  e  por  certo  que  em  nada 

favorece a vocês, senhora Flores. A contraída expressão de seu rosto cedeu, dando lugar a um amplo sorriso. —Talvez não a um verdadeiro índio ou a um verdadeiro branco — rebateu com 

descaro —

 mas

 eu

 estou

 perfeitamente

 satisfeita

 comigo

 mesma

 —

 e,

 aproximando

‐se,  acrescentou: —E  não me  chame  por  você.  Por  favor  chame‐me  Delia.  Tenho  a 

impressão de que seremos grandes amigas. Sem  saber o que dizer me concentrei na estrada, e seguimos em silêncio até 

chegar ao posto de controle. O guarda pediu meu visto de turista, mas não o de Delia. Pareceu não reparar nela; não trocaram palavras nem olhares. Quando tentei falar‐lhe, Delia me deteve com um movimento imperioso de sua mão, ante o qual o guarda me 

dirigiu um olhar interrogante. Ao constatar que eu não lhe responderia, se encolheu de 

ombros e com um gesto me ordenou prosseguir em meu caminho. —Como  foi  que  o  guarda  não  solicitou  seus  papéis?  —  perguntei  quando 

tínhamos nos

 afastado

 um

 trecho.

 —Oh,  ele  me  conhece  —  mentiu,  e  sabendo  que  eu  sabia  que  mentia,  riu 

desavergonhadamente. —Acho que eu o assustei e ele não se animou a falar comigo 

— mentiu de novo, e insistiu com sua risada. Decidi mudar  de  assunto,  ainda mais  que  não  fosse  para  conservar‐lhe  uma 

escalada às suas mentiras. Comecei a falar de coisas da atualidade, mas na maior parte 

do  tempo  viajamos em  silêncio. Não  resultou  ser um  silêncio  tenso e  incômodo:  foi como o deserto que nos rodeava, extenso, vazio e estranhamente tranquilizante. 

—Onde eu te deixo? — perguntei, quando entramos em Hermosillo. —No  centro —  respondeu. —Sempre me  hospedo  no mesmo  hotel  quando 

visito 

esta 

cidade. 

Conheço 

bem 

seus 

donos, 

estou 

segura 

de 

poder 

conseguir 

para 

você a mesma tarifa que eu pago. 

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Agradecida, aceitei sua oferta. O hotel era velho e descuidado, o quarto que me deram abria‐se a um pátio 

poeirento. Uma cama dupla de quatro colunas e uma maciça e antiquada cômoda o 

reduziam  a dimensões  claustrofóbicas. Haviam  lhe  agregado  um  pequeno banheiro, mas  sob  a  cama  havia  um  pinico,  que  fazia  jogo  com  a  bacia  de  porcelana  situada 

sobre a cômoda.

 

A primeira noite foi horrível. Dormi mal, e em meus sonhos tive consciência de 

sussurros e de sombras que se projetavam nas paredes. Dos móveis surgiam formas e 

animais monstruosos, e dos cantos se materializavam seres pálidos e espectrais. No dia  seguinte percorri  a  cidade e  seus  arredores, e nessa noite,  apesar de 

encontrar‐me  exausta,  me  mantive  acordada.  Quando  por  fim  dormi  e  cai  num 

horrendo pesadelo, vi uma figura escura em forma de ameba, que me espreitava pelos pés  da  cama.  Tentáculos  iridescentes  pendiam  de  suas  fendas  cavernosas,  e  ao 

inclinar‐se sobre mim respirou, emitindo tons e sons raspantes que  terminaram num 

engasgo. 

Meus gritos

 foram

 afogados

 por

 suas

 cordas

 iridescentes

 que

 se

 ajustaram

 em

 

torno de meu pescoço, e  logo tudo se fez negro quando a criatura — que de alguma maneira eu sabia que era feminina — me esmagou  jogando‐se sobre mim. O momento 

intempestivo entre o dormir e o despertar foi por fim quebrado por insistentes golpes sobre minha porta, e pelas preocupadas vozes dos hóspedes do hotel, que chegavam 

do corredor. Acendi a luz e murmurei desculpas e explicações através da porta. Com o pesadelo ainda grudado em minha pele como se fosse suor, me dirigi ao 

banheiro e sufoquei um grito ao contemplar no espelho as linhas roxas que cruzavam 

minha garganta, e os pontos roxos eqüidistantes que sulcavam meu peito como uma 

tatuagem  inacabada. Frenética, empacotei minhas coisas. Eram  três horas da manhã 

quando pedi

 a conta.

 —Aonde  vai  a  esta  hora?  —  perguntou  Delia  Flores,  surgindo  da  porta localizada atrás do balcão. —Fiquei sabendo do pesadelo. Preocupou a todo o hotel. 

Estava  tão  feliz  de  encontrar‐me  com  ela  que  a  abracei  e  deixei  correr meu 

choro. —Bom,  bom  —  murmurou  em  tom  de  consolo,  enquanto  acariciava  meus 

cabelos. —Se quiser, pode dormir no meu quarto. Eu cuidarei de você. —Nada neste mundo me faria continuar neste hotel — repliquei. —Volto a Los 

Ângeles neste mesmo instante. —Costuma  ter  pesadelos  com  frequência?  —  perguntou  como  ao  acaso, 

enquanto me

 conduzia

 a um

 sofá

 rangente

 localizado

 num

 canto.

 —Tenho sofrido com pesadelos toda minha vida — respondi. —Mais ou menos tenho me acostumado a eles, mas esta noite foi diferente; mais real, o pior que  já tive. 

Dirigiu‐me  um  longo  olhar,  como  se  me  avaliasse.  Logo,  arrastando  suas palavras, disse: —Quer se desfazer de seus pesadelos? — e enquanto falava, deu uma rápida olhada à porta por cima do ombro, como se  temesse que dali nos estivessem 

escutando. —Conheço a alguém que na verdade poderia te ajudar. —Eu gostaria muito disso — murmurei, desatando a echarpe para mostrar‐lhe 

as  linhas  que  cruzavam minha  garganta,  e  lhe  confiei  os  detalhes  precisos  de meu 

pesadelo. —Já viu algo parecido? — perguntei. 

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—Parece bastante sério — disse‐me, examinando com cuidado minhas feridas. —Na verdade você não deveria partir sem antes ver à curandeira que  tenho. Vive a 

umas cem milhas ao sul daqui. Uma viagem de umas duas horas. A possibilidade de ver a uma curandeira me agradou. Havia estado em contato 

com  elas  desde  meu  nascimento  na  Venezuela.  Quando  ficava  doente  meus  pais 

chamavam um

 médico,

 e nem

 bem

 este

 partia,

 nossa

 caseira

 venezuelana

 me

 levava

 a 

uma curandeira. Quando cresci e  já não quis ser tratada dessa maneira — nenhum de 

meus amigos o era — ela me convenceu de que não havia nada de mal nesta dupla proteção. O hábito tomou tal corpo que, ao mudar‐me para Los Ângeles, quando ficava doente, não deixava de ver tanto um médico como a uma curandeira. 

—Acha que me verá hoje? — perguntei, e ao observar a expressão perplexa de 

Delia precisei lembrá‐la que  já era domingo. —Te verá qualquer dia — me assegurou. —Por que não me espera aqui e eu te 

levarei até ela? Juntar minhas coisas não levará mais que uns minutos. —Por  que  você  está  se  esforçando  tanto  em  me  ajudar?  —  perguntei  de 

pronto, desconcertada

 por

 sua

 oferta.

 —Depois

 de

 tudo

 sou

 uma

 perfeita

 estranha

 

para você. —Precisamente!  —  disse,  pondo‐se  de  pé  e  olhando‐me  de  maneira 

indulgente, como se pudesse perceber as incômodas dúvidas que surgiam em mim. —Que  melhor  razão  poderia  haver?  —  inquiriu  de  maneira  retórica.  —Ajudar  a  um 

perfeito estranho é um ato de loucura ou um ato de grande controle. E o meu é um de 

grande controle. Impossibilitada de contestar só pude olhar fixo em seus olhos, esses olhos que 

pareciam vislumbrar o mundo com assombro e curiosidade. De todo seu ser emanava algo  estranhamente  tranquilizador.  Não  era  só  por  confiar  nela;  era  como  se  a 

houvesse conhecido

 por

 toda

 a vida,

 fazendo

‐me

 pressentir

 que

 entre

 nós

 existia

 uma

 união, uma proximidade. E sem embaraço, ao vê‐la desaparecer pela porta em busca de seus pertences, 

brinquei  com  a  idéia  de  pegar  minhas  malas  e  fugir.  Não  desejava  trazer‐me 

dificuldades por  causa de minha ousadia,  como  tantas  vezes aconteceu no passado, mas  uma  inexplicável  curiosidade  me  reteve,  apesar  da  insistente  e  conhecida sensação de perigo que me dominava. 

Passaram‐se  vinte  minutos  de  espera,  quando  surgiu  uma  mulher  da  porta situada  atrás  do  mostrador  da  recepção,  vestindo  um  conjunto  roxo  de  jaqueta  e 

calças,  e  sapatos  de  plataforma.  Parou  embaixo  da  luz,  e  com  um  gesto  estudado 

sacudiu para

 trás

 sua

 cabeça,

 de

 modo

 que

 os

 cachos

 de

 sua

 peruca

 loira

 brilharam

 na

 claridade. —Não me reconhece, não é? — perguntou, rindo. —Não é você, Delia? — respondi, contemplando‐a de boca aberta. —O que você acha? — e sem parar de rir saiu comigo à rua na procura de meu 

carro, estacionado em frente ao hotel. Jogou sua cesta e uma bolsa no banco traseiro 

de meu pequeno conversível, e  logo ocupou o banco  junto a mim. —A curandeira na 

qual vou te  levar disse que apenas os  jovens e os muitos velhos podem permitir‐se o 

luxo de se vestir de maneira excêntrica. Antes que se me apresentasse a oportunidade de lembrar‐lhe que, em matéria 

de 

idade, 

ela 

não 

era 

nem 

um 

nem 

outro, 

confessou 

ser 

muito 

mais 

velha 

do 

que 

aparentava. Seu rosto estava radiante quando me olhou de frente para esclarecer: 

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—Uso este conjunto para deslumbrar a meus amigos. Não especificou  se  isso era aplicável a mim ou à  curandeira. Eu, certamente, 

estava deslumbrada. A diferença não se encontrava apenas nas roupas; todo seu porte 

havia  mudado,  eliminando  qualquer  traço  da  mulher  distante  e  circunspecta  que 

viajou comigo de Nogales a Hermosillo. 

—Esta será

 uma

 viagem

 encantadora

 —

 anunciou

 —,

 especialmente

 se

 

baixarmos a capota. — sua voz soava feliz e sonolenta. —Adoro viajar de noite com a 

capota aberta. Eu a atendi com gosto. Eram quase quatro da manhã quando deixamos para 

trás Hermosillo. O céu,  terno, negro e pontilhado de estrelas, parecia mais alto que 

qualquer céu que tivesse visto antes. Dei velocidade ao veículo, e no entanto era como 

se não nos movêssemos. As silhuetas retorcidas dos cactos e das árvores de mezquite (algarobeira)  apareciam  e  desapareciam  sem  cessar  à  luz  de  meus  faróis.  Todos pareciam do mesmo formato e tamanho. 

—Embrulhei uns pães doces e uma térmica cheia de champurrado — pegando 

a cesta

 que

  jogara

 no

 banco

 traseiro.

 —Chegaremos

 na

 casa

 da

 curandeira

 no

 começo

 

da manhã. —  serviu‐me um meio  copo de delicioso chocolate,  feito  com  farinha de 

milho, fazendo‐me saborear, pedaço a pedaço, um tipo de pão doce dinamarquês. —Estamos atravessando terras mágicas — informou, ao mesmo tempo em que 

saboreava ao delicioso chocolate —, terras mágicas habitadas por guerreiros. —E  quem  são  esses  guerreiros?  —  perguntei,  não  querendo  parecer 

condescendente. —Os Yaquis de Sonora —  respondeu,  ficando  logo depois em  silêncio,  talvez 

medindo minha  reação. —Admiro os  índios  Yaquis, pois  têm  vivido  constantemente em  guerra.  Primeiro  com os  espanhóis  e  logo  depois  com  os mexicanos,  e  isso  até 

épocas tão

 recentes

 como

 1934.

 Ambos

 têm

 experimentado

 a selvageria,

 a astúcia

 e a severidade dos guerreiros Yaquis. 

—Não admiro à gente guerreira — disse. E logo, como para desculpar meu tom 

belicoso,  expliquei  que  eu  era  proveniente  de  uma  família  alemã  destroçada  pela guerra. 

—Seu caso é diferente — sustentou. —Você não possui os ideais da liberdade. —Um momento, —  protestei —  é  precisamente  porque  possuo os  ideais  da 

liberdade que acho a guerra tão abominável. —Estamos falando de dois tipos diferentes de guerra — insistiu. —A guerra é a guerra — insisti. 

—Seu tipo

 de

 guerra

 —

 prosseguiu,

 ignorando

 minha

 interrupção

 —

 é entre

 dois  irmãos,  ambos  chefes,  que  lutam  pela  supremacia.  —  Se  aproximou  e,  num 

sussurro urgente, acrescentou: —O  tipo de guerra ao qual eu me  refiro é entre um 

escravo e um patrão que acredita ser o dono da gente. Entende a diferença? —Não, não  a  compreendo —  respondi,  teimosa, e  repeti que  a  guerra era a 

guerra, independentemente de suas razões. —Não  posso  estar  de  acordo  contigo  —  disse  ela,  suspirando  fundo  e 

reclinando‐se no assento. —Talvez a razão de nosso desacordo  filosófico radique em 

que proviemos de distintas realidades sociais. Assombrada pelas palavras pronunciadas por Delia, automaticamente diminui a 

marcha 

do 

carro. 

Não 

desejava 

ser 

descortês, 

mas 

escutar 

de 

sua 

boca 

essa 

sequência 

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de conceitos acadêmicos era algo tão incongruente e inesperado que não pude evitar rir‐me. Delia não se ofendeu. Me observou sorridente, muito satisfeita de si mesma. 

—Quando  chegar  a  conhecer  meu  ponto  de  vista  pode  ser  que  mude  sua opinião  —  e  disse  isto  com  tal  seriedade,  mas  não  isenta  de  carinho,  que  senti vergonha por ter rido. —Até pode desculpar‐se por rir de mim — acrescentou, como 

se tivesse

 lido

 meus

 pensamentos.

 

—Peço desculpas, Delia — disse com total sinceridade —, sinto muito ter sido 

descortês, mas me surpreenderam tanto suas declarações que não soube o que fazer — olhei‐a de soslaio antes de agregar, compungida: —De modo que ri. 

—Não me referia a desculpas sociais por seu comportamento — respondeu, e 

sacudiu a cabeça para evidenciar sua desilusão —, me refiro a desculpas por não haver compreendido a condição do homem. 

—Não  sei  do  quê  você  está  falando —  respondi  incômoda.  Sentia  que  seus olhos me perfuravam. 

—Como  mulher  deveria  entender  muito  bem  essa  condição.  Tem  sido  uma 

escrava toda

 sua

 vida.

 

—Do que está falando, Delia? — perguntei, irritada por sua impertinência, mas de  imediato me  acalmei, pensando que  sem  dúvida  a  pobre  índia  tinha um marido 

prepotente e insuportável. — Acredite em mim, Delia. Sou inteiramente livre. Faço o que quero. —Talvez você faça o que quer, mas não é  livre —  insistiu. —Você é mulher, e 

isso automaticamente significa que está à mercê dos homens. —Não estou à mercê de ninguém! — gritei. Não sei se  foi minha afirmação ou o  tom de minha voz que  fizeram com que 

Delia se desatasse em gargalhadas, tão fortes como as minhas de momentos antes. 

—Parece estar

 gozando

 de

 sua

 vingança

 —

 observei

 incomodada.

 —Agora

 é a sua vez de rir, não é? 

—Não é o mesmo — replicou, repentinamente séria. —Você riu de mim porque 

se sentia superior. Escutar a uma escrava que  fala como seu amo sempre diverte ao 

amo por um momento. Desejei interrompê‐la, dizer‐lhe que nem me havia passado pela cabeça pensar 

nela  como  uma  escrava,  ou  nem  a  mim  como  a  um  amo,  mas  ela  ignorou  meus esforços, e no mesmo tom solene explicou que o motivo pelo qual havia rido de mim 

era porque eu me achava cega e estúpida ante minha própria feminilidade. —O  que  está  acontecendo,  Delia?  —  perguntei  intrigada.  —Você  está  me 

insultando deliberadamente.

 —Muito  certo  —  respondeu  rindo,  por  completo  indiferente  à  minha  raiva crescente.  Logo  depois,  golpeando‐me  forte  no   joelho,  acrescentou:  —O  que  me 

preocupa é que você não sabe que, pelo simples fato de ser mulher, é escrava. Recorrendo  a  toda  a  paciência  que  pude  reunir  disse‐lhe  que  estava 

equivocada: —Ninguém é escravo hoje em dia. —As mulheres são escravas —  insistiu Delia —, os homens as escravizam. Eles 

aturdem às mulheres, e seu desejo de nos marcar como propriedades suas nos envolve 

em névoa, a névoa resultante se prende a nós como uma bigorna. 

Meu 

olhar 

vazio 

fez 

sorrir. 

Recostou‐

se 

no 

assento, 

abraçando 

peito 

com 

as 

mãos. 

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—O  sexo  desorienta  as  mulheres  —  acrescentou  de  maneira  suave,  mas enfática —, e o faz tão irrefutavelmente que não podem considerar a possibilidade de 

que sua baixa condição seja a consequência direta do que se lhes faz sexualmente. —Essa  é  a  coisa  mais  ridícula  que   jamais  escutei  —  declarei;  logo, 

pesadamente, embarquei numa longa discussão acerca das razões sociais, econômicas 

e políticas

 que

 explicavam

 a baixa

 condição

 da

 mulher.

 

Com  grande detalhe  falei das mudanças ocorridas  nas  últimas décadas, e de 

como  as  mulheres  haviam  tido  bastante  êxito  em  sua  luta  contra  a  supremacia masculina. Incomodada com sua expressão irreverente, não pude conter o comentário 

de  que  ela,  sem  dúvida,  era  vítima  dos  prejuízos  de  sua  própria  experiência  e 

perspectiva do tempo. Todo  o  corpo  de  Delia  começou  a  sacudir‐se  com  o  esforço  que  fazia  para 

controlar seu riso. Conseguiu fazê‐lo e me disse: —Na  realidade  nada  mudou.  As  mulheres  são  escravas.  Temos  sido  criadas 

como escravas. As escravas que foram educadas estão hoje atarefadas denunciando os 

abusos sociais

 e políticos

 cometidos

 contra

 a mulher.

 Não

 obstante,

 nenhuma

 dessas

 

escravas pode enfocar a raiz de sua escravidão — o ato sexual — a não ser que envolva um  estupro,  ou  esteja  relacionado  com  alguma  forma  de  abuso  físico  —  um  leve 

sorriso adornou seus lábios quando disse que os religiosos, os filósofos e os homens da 

ciência  têm mantido durante séculos, e certamente o seguem  fazendo, que  tanto os homens  como  as mulheres  devem  seguir  um  imperativo  biológico  ditado  por Deus, que diz respeito diretamente à sua capacidade sexual reprodutiva. 

—Temos  sido  condicionadas  para  acreditar  que  o  sexo  é  bom  para  nós  — 

ressaltou. —Esta crença e aceitação inata nos têm incapacitado para fazer a pergunta certa. 

—E qual

 é essa

 pergunta?

 —

 inquiri,

 esforçando

‐me

 para

 não

 rir

 de

 suas

 convicções totalmente erradas. Delia  pareceu  não  haver me  escutado;  esteve  tanto  tempo  em  silêncio  que 

pensei se haveria dormido, e por isso me surpreendeu quando disse: —A pergunta que ninguém se atreve a  fazer é: o que é quê o ato de que nos 

montem nos faz a nós, mulheres? —Vamos, Delia… — retruquei  jocosamente. —O aturdimento da mulher é tão total que enfocamos qualquer outro aspecto 

de nossa inferioridade, menos aquele que é a causa de tudo — manteve. —Mas Delia — disse  rindo —, não  podemos  viver  sem  sexo. O que  seria do 

gênero humano

 se…?

 Parou minha pergunta e meu riso com um gesto imperativo de sua mão. —Hoje em dia mulheres como você, em  sua  febre por  se  igualar ao homem, 

imitam‐no, e o  fazem até ao extremo absurdo de que o sexo que  lhes  interessa não 

tem  nada  que  ver  com  a  reprodução.  Equiparam  o  sexo  à  liberdade,  sem  sequer considerar  o  que  o  sexo  faz  a  seu  bem‐estar  físico  e  emocional.  Temos  sido  tão 

cabalmente doutrinadas que acreditamos  firmemente que o sexo é bom para nós — 

me tocou com o cotovelo e, como se estivesse recitando uma ladainha, acrescentou: —O  sexo é bom para nós. É agradável, é necessário. Alivia as depressões, as 

repressões e as frustrações. Cura as dores de cabeça, a hipertensão e a pressão baixa. 

Faz 

desaparecer 

as 

espinhas 

da 

cara. 

Faz 

crescer 

bunda 

os 

seios. 

Regula 

ciclo 

menstrual. Resumindo: é fantástico! É bom para as mulheres. Todos o dizem. Todos o 

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recomendam. —  fez uma pausa para depois declamar  com dramática  finalidade: —Não há mal que uma boa trepada não cure. 

Suas declarações me pareceram muito engraçadas, mas de repente fiquei séria ao recordar como minha família e amigos, inclusive nosso médico particular, o haviam 

sugerido (é claro que não de maneira tão crua) como uma cura para todos os males da 

adolescência que

 me

 angustiavam

 por

 crescer

 em

 um

 meio

 tão

 estritamente

 

repressivo. Havia dito que, ao casar‐me, teria ciclos menstruais regulares, aumentaria de peso e dormiria melhor. Inclusive adquiriria uma disposição de ânimo mais doce. 

—Não  vejo  nada  de mal  em  desejar  sexo  e  amor — me  defendi.  —Minhas experiências  neste  sentido  têm  sido  muito  prazerosas,  e  ninguém  me  domina  ou 

atordoa. Sou livre! Eu faço com quem quero e quando quero. Nos olhos escuros de Delia vi um lampejo de alegria ao dizer: —O fato de escolher seu companheiro não altera o fato de que te montam. —

Em  seguida  sorriu,  como  para  mitigar  a  aspereza  de  seu  tom,  e  acrescentou:  —Equiparar o sexo com a  liberdade é a suprema ironia. A ação de aturdir, por parte do 

homem, é tão

 completa,

 tão

 total,

 que

 nos

 tem

 drenado

 a energia

 e a imaginação

 

necessárias para enfocar a verdadeira causa de nossa escravidão. — Logo enfatizou: —Desejar a um homem sexualmente, ou enamorar‐se romanticamente por um, são as únicas opções dadas às escravas, e  tudo o que nos  tem sido dito acerca dessas duas opções não são outra coisa que desculpas, que nos submergem na cumplicidade e na 

ignorância. Indignei‐me, pois não podia deixar de pensar nela como em uma reprimida que 

odiava aos homens. —Por que odeia tanto aos homens, Delia? — perguntei, apelando ao meu tom 

mais cínico. 

—Não me

 desagradam

 —

 assegurou

 —,

 ao

 que

 me

 oponho

 apaixonadamente

 é à nossa renúncia a examinar quão profundamente doutrinadas estamos. A pressão que 

têm exercido sobre nós é  tão  terrível e  fanática que nos convertemos em cúmplices complacentes. Aquelas que se animam a discordar são rotuladas como monstros que 

detestam aos homens, e sofrem a conseguinte zombaria. Corada,  observei‐a  sub‐repticiamente,  e  decidi  que  ela  podia  falar  de  forma 

depreciativa do amor e de  sexo pois, no  fim das contas, era velha, e por estar mais além de todo desejo. 

Rindo contidamente, Delia colocou as mãos atrás da cabeça. —Meus desejos físicos não caducaram porque seja velha —confessou — e sim porque me  foi dada a 

oportunidade de

 usar

 minha

 energia

 e imaginação

 para

 converter

‐me

 em

 algo

 diferente da escrava para a qual me criaram. Porque  havia  lido  meus  pensamentos  me  senti  mais  insultada  que 

surpreendida. Comecei a defender‐me, mas minhas palavras só provocaram sua risada. Quando parou de rir me encarou; seu rosto mostrava‐se tão sério e severo como o de 

uma professora a ponto de dar uma reprimenda a um aluno. —Se você não é uma escrava, como é que  te criaram para ser uma Hausfrau 

que não pensa em outra coisa que em heiraten e em seu futuro Herr  Gernahl  que dich 

mitnehmen?  Ri tanto ante seu uso do alemão, que precisei parar o carro para não correr o 

risco 

de 

bater, 

meu 

interesse 

por 

averiguar 

de 

onde 

havia 

aprendido 

tão 

bem 

esse 

idioma fez com que esquecesse de defender‐me de sua pouco  lisonjeira acusação, de 

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que  tudo  o  que  eu  ambicionava  na  vida  era  encontrar  um  marido  que  se  unisse 

comigo. Com  respeito a  seu conhecimento de alemão, apesar de minhas  insistentes súplicas, manteve‐se desdenhosamente refratária a fazer revelações. 

—Você  e  eu  teremos  tempo  de  sobra  no  futuro  para  falar  em  alemão  — 

assegurou, e depois de me olhar de forma irreverente, completou — ou do fato de ser 

uma escrava

 —

 e adiantando

‐se

 à minha

 réplica,

 sugeriu

 que

 falássemos

 de

 algo

 

impessoal. —Como o quê, por exemplo? — perguntei, e coloquei o carro em movimento. Colocou seu assento numa posição quase reclinada e fechou os olhos. —Deixe eu te contar algo acerca dos quatro  líderes mais famosos que tiveram 

os  Yaquis  —  murmurou.  —A  mim  me  interessam  os  líderes,  seus  êxitos  e  seus fracassos. 

Antes que eu pudesse objetar que na verdade não me interessavam as histórias de  guerra, Delia disse que Calixto Muní   foi o  primeiro  yaqui em  atrair  sua  atenção. Contar histórias não era seu  forte. Seu  relato era direto, quase acadêmico, e apesar 

disso me

 encontrei

 pendente

 de

 cada

 palavra.

 

Calixto Muni  foi um  índio que durante anos navegou sob bandeira pirata por águas  do  Caribe.  Ao  regressar  à  sua  Sonora  natal,  dirigiu,  por  volta  de  1730,  uma revolta contra os espanhóis. Foi traído, capturado e executado. Logo Delia se estendeu 

numa  sofisticada  explicação  sobre  como,  na  década  de  1820,  depois  de  obtida  a 

independência  mexicana,  seu  governo  pretendeu  parcelar  as  terras  yaquis,  e  a 

resultante  resistência  se  converteu numa ampla  revolta. Foi  Juan Bandera, explicou, quem — guiado pelo mesmíssimo espírito — organizou as unidades  combativas dos yaquis. Armados com frequência só com arcos e flechas, as hostes de Bandera lutaram 

durante quase dez anos contra as tropas mexicanas. Em 1832 Bandera foi derrotado e 

executado. Segundo  Delia  o  líder  seguinte  que  se  destacou  foi  José  María  Leyva,  mais 

conhecido como Cajeme, “o que não bebe”, yaqui de Hermosillo e homem educado, que  havia  adquirido  seus  conhecimentos  militares  servindo  no  exército  mexicano. Graças a esses conhecimentos unificou a todos os yaquis. Desde seu primeiro levante, por  volta  de  1870,  Cajeme  manteve  suas  forças  em  estado  de  revolta  ativa.  Foi derrotado pelo exército mexicano em 1887 em Buataviche, uma cidadela montanhês fortificada,  e  apesar  de  ter  conseguido  escapar  e  se  ocultar  em  Guaymas. Eventualmente foi traído e executado. 

O  último  dos  grandes  heróis  yaquis  foi  Juan Maldonado. Conhecido  também 

como Tebiate,

 “pedra

 rolante”.

 Reorganizou

 o restante

 das

 forças

 yaquis

 nas

 montanhas  de  Bacatete,  e  dali  conduziu  uma  feroz  e  desesperada  guerra,  feita  de 

guerrilhas contra as tropas mexicanas, por mais de dez anos. —Em  fins  do  século —  e  com  isto Delia  finalizou  sua  narração —  o  ditador 

Porfirio Díaz havia  inaugurado uma  campanha de extermínio dos  yaquis. Os matava enquanto  trabalhavam  nos  campos;  milhares  foram  capturados  e  enviados  para 

trabalhar nas plantações de agave  (sisal) em Yucatán, e para Oaxaca, nas de cana de 

açúcar. Seus  conhecimentos me  impressionaram, mas  ainda não  podia entender por 

que me havia contado tudo isso. Não lhe ocultei minha admiração: 

—Soa 

como 

uma 

erudita, 

como 

uma 

historiadora 

do 

modo 

de 

vida 

dos 

yaquis. 

Quem, na verdade, é você? 

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Por um momento pareceu desconcertada por minha pergunta, que por outro 

lado era puramente retórica, mas recobrando‐se com rapidez disse: —Já lhe disse quem eu sou. Acontece que conheço muito sobre os yaquis. Vivo 

entre eles, sabia? — Caiu num momentâneo silêncio, logo fez um breve movimento de 

cabeça, como quem chega a uma conclusão, e acrescentou: —O motivo pelo qual lhe 

contei sobre

 os

 líderes

 dos

 yaquis

 é porque

 compete

 às

 mulheres

 conhecer

 a força

 e a 

debilidade do líder. —Por  quê?  —  perguntei.  —A  quem  interessa  os  líderes?  No  que  me  diz 

respeito, são todos uns tontos. Delia coçou a cabeça por baixo da peruca, espirrou repetidas vezes e disse com 

um vacilante sorriso: —Por desgraça as mulheres devem congregar‐se em torno deles, a não ser que 

desejem ser elas mesmas as que guiam. —E a quem iriam guiar? — perguntei de maneira sarcástica. Olhou‐me  com  assombro,  depois  friccionou  a  parte  superior  de  seu  braço. 

Tanto o gesto

 como

 o rosto

 pareciam

 pertencer

 a uma

  jovenzinha.

 —É

 muito

 difícil

 de

 

explicar — murmurou, a voz dominada por uma  rara suavidade, metade  ternura e a 

outra  metade  indecisão,  misturada  com  falta  de  interesse.  —É  melhor  que  nem  o 

tente. Poderia perder você para sempre. Tudo o que posso dizer no momento é que 

não sou erudita nem historiadora. Sou uma narradora de histórias, que ainda não  lhe 

contou a parte mais importante de seu conto. —E  qual  é  esse  conto? —  perguntei,  intrigada  por  seu  desejo  de mudar  de 

tema. —Tudo o que te dei até agora é informação precisa. Daquilo que ainda não falei 

é do mundo mágico a partir do qual operavam esses líderes yaquis. Para eles as ações 

do vento,

 das

 sombras,

 dos

 animais

 e das

 plantas

 eram

 tão

 importantes

 como

 os

 atos

 dos homens. Essa é a parte que mais me interessa. —As  ações  do  vento,  das  sombras,  dos  animais  e  das  plantas?  —  repeti 

zombando. Em  nada  perturbada  por  meu  tom,  Delia  assentiu  com  um  movimento  de 

cabeça, e depois de  levantar‐se no assento  tirou a peruca  loira, para permitir que o 

vento brincasse com seus cabelos negros e lisos. —Esses são os montes do Bacatete — anunciou, assinalando umas montanhas 

localizadas a nossa esquerda, apenas delineadas contra a semi‐obscuridade do céu de 

alvorada. 

—É para

 lá

 aonde

 nos

 dirigimos?

 —

 perguntei.

 —Hoje  não  —  respondeu,  deslizando‐se  de  novo  no  assento.  Um  sorriso 

enigmático brincava em torno de seus lábios quando me encarou. —Talvez algum dia você  tenha a oportunidade de visitar essas montanhas — 

acrescentou,  fechando os olhos —, o Bacatete está habitado por  criaturas de outro 

mundo, de outra época. —Criaturas de outro mundo, de outra época? — repeti, imprimindo à voz uma 

falsa seriedade. —Quem ou o que são? —Criaturas  —  disse  vagamente  —,  criaturas  que  não  pertencem  ao  nosso 

tempo ou ao nosso mundo. 

—Vamos, 

Delia. 

Está 

querendo 

me 

assustar? 

— 

não 

pude 

evitar 

riso. 

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Mesmo  na  escuridão  seu  rosto  brilhava.  Parecia  extraordinariamente  jovem, com sua pele sem rugas, que se dobrava sobre as curvas de suas bochechas,  testa e 

nariz. —Não, não estou  tentando  te assustar — disse com naturalidade, ao mesmo 

tempo em que acomodava uma mecha de cabelo atrás de sua orelha. —Simplesmente 

estou lhe

 transmitindo

 o que

 nesta

 região

 é público

 e notório.

 

—Interessante. E que tipo de criaturas são? — perguntei, e precisei morder os lábios para controlar o riso. —Já os viu? 

Respondeu‐me com tom indulgente. —É claro que os  vi. Se não  fosse assim, não estaria me  referindo a eles — e 

sorriu com doçura, sem vestígios de ressentimento. —São seres que povoaram a terra em outro tempo, e que agora se retiraram a lugares isolados. 

Inicialmente não pude evitar rir‐me de sua credulidade. Logo, ao ver quão séria e  convencida  estava  da  existência  desses  seres,  decidi  aceitá‐los  e  não  zombar‐me 

dela.  Afinal  de  contas,  ela  estava  sendo  meu  contato  com  uma  curandeira,  e  não 

desejava antagonizá

‐la

 com

 minhas

 indagações

 racionais.

 

—Esses seres, são os fantasmas dos guerreiros yaquis que perderam a vida nas guerras? — perguntei. 

Negou com um gesto de cabeça; depois, como se temesse que alguém pudesse nos escutar, se aproximou para sussurrar‐me no olvido. 

—É  bem  sabido  que  estas  montanhas  são  habitadas  por  seres  encantados: pássaros que falam, arbustos que cantam, pedras que dançam, e criaturas que podem 

adotar a forma que desejam. Reclinada em seu banco me contemplou em expectativa. —Os yaquis chamam a essas criaturas  surem, e crêem que  são  velhos yaquis 

que recusaram

 ser

 batizados

 pelos

 primeiros

  jesuítas

 que

 vieram

 catequizar

 aos

 índios.

 —Acariciou meu braço  afetuosamente. —Cuide‐se, dizem que os  surem gostam das loiras — e  riu, encantada de  sua advertência. —Talvez  seja  isso o que provoca  seus pesadelos: um surem tratando de roubar‐te. 

—Você  não  acredita  em  tudo  isso  de  verdade,  não  é?  —  perguntei desdenhosamente,  já incapaz de dissimular minha irritação. 

—Não, acabo de inventar isso de que os surem gostam das loiras — respondeu 

em tom tranquilizante. —Não lhes agrada em absoluto. Apesar  de  não  ter  me  virado  para  olhá‐la,  pude  perceber  seu  sorriso  e  o 

lampejo de humor em seus olhos, ao qual me  incomodou, e me fez pensar que Delia 

era muito

 cândida,

 esquiva

 ou,

 pior

 ainda,

 muito

 louca.

 —Na realidade não acredita na existência de seres de outro mundo, não é? — 

irrompi mal humorada. Em seguida, temendo tê‐la ofendido, a encarei com uma semi‐ansiosa desculpa 

nos lábios, mas antes que eu pudesse articular palavra, me respondeu no mesmo tom 

forte e agressivo que eu empregara anteriormente. —Mas é óbvio que eu acredito. Por que não haveriam de existir? —Sinceramente, porque não! — disse de maneira seca e autoritária, para em 

seguida desculpar‐me. Falei‐lhe de minha criação pragmática, e de como meu pai me havia  levado a 

admitir 

que 

os 

monstros 

de 

meus 

sonhos, 

meus 

supostos 

invisíveis 

companheiros 

de 

 jogo, não eram outra coisa que produto de uma imaginação hiperativa. 

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—Desde muito nova fui criada para ser objetiva e para qualificar tudo. —Esse é o problema — observou Delia —, as pessoas são tão razoáveis que só 

de falar nisso minha vitalidade diminui. —Em meu mundo — continuei, ignorando seu comentário —, não existe dado 

algum acerca de criaturas de outros mundos: só especulações e anseios, fantasias de 

mentes perturbadas.

 

—Não pode ser tão densa! — expressou‐se alegre entre acesos de riso, como 

se minha explicação tivesse oprimido suas expectativas. —Pode me provar que esses seres existem? — a desafiei. —E  em  que  consistiria  a  prova?  —  perguntou  com  um  ar  de  desconfiança, 

obviamente falso. —Se alguma pessoa pudesse vê‐los, essa seria uma prova. —Quer  dizer  que  se  você,  por  exemplo,  conseguisse  vê‐los,  essa  seria  uma 

prova de sua existência? — perguntou, aproximando sua cabeça à minha. —Esse poderia ser um começo. 

Com um

 suspiro

 Delia

 apoiou

 a cabeça

 contra

 o respaldo

 de

 seu

 banco,

 e se

 

manteve  tanto  tempo  em  silêncio  que  tive  a  certeza  de  que  havia  dormido,  e me 

surpreendi  sobremaneira  quando  se  levantou  abruptamente  para  pedir‐me  que 

parasse o automóvel ao lado do caminho. Precisava aliviar‐se, disse. Decidi aproveitar a  interrupção de nossa viagem com idêntico fim, e me enfiei 

atrás dela  no matagal.  Estava  por  abaixar meu  jeans  quando  escutei  uma  forte  voz masculina, muito perto de mim,  dizer:  “¡Qué  cuerote!” e  suspirar. Com meus  jeans ainda sem desprender corri até onde se encontrava Delia. 

—É melhor a gente dar o fora daqui — gritei —, há um homem escondido no 

matagal! 

—Não seja

 idiota

 —

 respondeu

 —,

 o único

 que

 está

 aqui

 é um

 burro.

 —Os burros não  suspiram como homens depravados — observei, e  repeti as palavras que escutei. 

Delia caiu vítima de um ataque de riso, mas ao observar minha preocupação fez um gesto conciliatório com a mão. 

—Chegou a ver o homem? —Não foi necessário — respondi —, apenas escutá‐lo me bastou. Por uns instantes não se moveu; depois se encaminhou até o carro, mas antes 

que subíssemos ao desnível da estrada se deteve num tranco e, virando‐se para mim, sussurrou: 

—Aconteceu algo

 bastante

 misterioso,

 que

 preciso

 lhe

 revelar

 —

 e,

 pegando

‐me pela mão, me levou de volta ao lugar onde me pus de cócoras. E ali mesmo, atrás de uns arbustos, vi um burro. 

—Antes não estava ali — insisti. Delia me observou, divertida, depois encolheu os ombros e se dirigiu ao animal. —Burrinho — disse no tom que se usa com os bebês —, ¿Le miraste el trasero? 

(Você olhou pra bunda dela?) Pensei que Delia era uma ventríloqua, e que se iria fazer o animal falar, mas o 

burro só zurrou forte e repetidas vezes. —Vamos sair daqui — roguei‐lhe, puxando sua manga. —Deve ser o dono dele 

que 

está 

escondido 

entre 

os 

arbustos. 

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—Mas o pobrezinho não tem dono — disse, no mesmo tom  infantil, enquanto 

acariciava suas largas e suaves orelhas. —Mas  é  claro  que  tem  dono.  Não  vê  o  tanto  que  está  bem  cuidado  e 

alimentado que até brilha? — e numa voz que enrouquecia por  império dos nervos e 

da  impaciência,  ressaltei  outra  vez  sobre  os  perigos  que  representava  para  duas 

mulheres ao

 ver

‐se

 sozinhas

 em

 um

 deserto

 a caminho

 de

 Sonora.

 

Delia me observou em silêncio, aparentemente preocupada. Logo assentiu com 

a  cabeça  e  me  convidou  por  sinais  a  segui‐la.  Pegado  a  mim  caminhava  o  burro, topando minhas nádegas com o focinho, mas quando me virei para encará‐lo, precisei me conformar com apenas um praguejar. O burro  já não estava ali. 

—Delia! — gritei assustada. —O que aconteceu com o burro? Alarmada por meu grito, um bando de pássaros alçou um ruidoso vôo, traçou 

um círculo em torno e depois se alinhou em direção ao leste, e uma frágil abertura no 

céu era indício do fim da noite e o começo do dia. —Onde está o burro? — insisti em um sussurro apenas audível. 

—Ali o tem,

 em

 frente

 a ti

 —

 retornou,

 assinalando

 uma

 árvore

 nodosa,

 

desfolhada. —Não o vejo. —Precisa de óculos. —Não  tenho  problemas  com  meus  olhos  —  repliquei. —Até  consigo  ver  as 

lindas flores da árvore — e assombrada pela beleza dos casulos brancos e brilhantes, em forma de campainhas, me aproximei. 

—Que tipo de árvore é? —Palo Santo. Por  um  segundo  desconcertante  acreditei  que  era  o  animal,  que  nesse 

momento emergia

 por

 detrás

 do

 tronco,

 que

 havia

 falado.

 Virei

‐me

 na

 direção

 de

 Delia. —Palo Santo — repetiu, rindo. Ali me ocorreu  a  idéia de que Delia me estava pregando uma peça. O burro 

provavelmente pertencia à curandeira que, sem dúvida, vivia nas imediações. —O que é que te causa tanta graça? — perguntou Delia, ao captar a expressão 

sabichona de meu rosto. —Estou com uma cólica  terrível — menti, sentando‐me com as mãos sobre o 

estômago. —Por favor, me espere no carro. Nem bem fiquei sozinha tirei meu lenço para amarrá‐lo no pescoço do burro, e 

gozei antecipando

 a surpresa

 de

 Delia

 quando

 descobrisse

 (ao

 chegar

 à casa

 da

 curandeira)  que  todo  o  tempo  eu  estava  a  par  de  sua  brincadeira.  Contudo,  toda 

esperança  de  reencontrar‐me  com  o  animal  ou  meu  lenço  desapareceram  logo. Levamos quase duas horas para chegar ao nosso destino. 

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CAPÍTULO DOIS 

Por volta das oito da manhã chegamos na casa da curandeira, nos arredores de Ciudad Obregón; uma casa velha, maciça, de paredes pintadas e teto de telhas cinzas por causa da passagem do tempo. Ostentava grades de ferro e um pórtico em forma de arco. 

A pesada

 porta

 da

 rua

 estava

 aberta

 de

 par

 em

 par,

 e com

 a confiança

 de

 quem

 conhece

 o 

terreno, Delia Flores me conduziu através de um vestíbulo escuro e um largo corredor até os  fundos, a um quarto apenas mobiliado  com uma  cama estreita, uma mesa e  várias cadeiras. O mais estranho desse cômodo era que em cada parede havia uma porta, todas elas fechadas. 

—Espere  aqui — ordenou Delia, assinalando a  cama  com a  testa. —Durma um 

pouco enquanto busco a curandeira, o que pode custar‐me algum tempo — e fechou a porta após sair. 

Aguardei a que os sons de seus passos se amortecessem antes de  inspecionar a mais estranha sala de curas que  jamais meus olhos viram. As paredes brancas estavam 

desnudas, e as

 lajotas

 marrom

‐claro

 brilhavam

 como

 um

 espelho.

 Não

 havia

 altar,

 

imagens ou figuras de santos, da Virgem nem de Jesus, que supunha fossem de praxe em 

tais quartos. Investiguei as quatro portas; duas abriam a corredores sombrios, e as outras a um pátio cercado por um muro alto. 

Quando  caminhava  nas  pontas  dos  pés  por  um  dos  corredores  rumo  a  outro 

quarto, ouvi  atrás de mim um grunhido abafado e  ameaçante. Virei‐me  lentamente, e 

apenas a poucos metros vi um enorme cão negro, de aspecto feroz. Não me atacou, mas firme em sua postura, me desafiava com grunhidos e com a exibição de seus caninos. Sem 

olhá‐lo diretamente nos olhos, mas mantendo‐o sempre enfocado, retrocedi de costas até a sala de curas, seguida até a própria porta pelo animal. Fechei a porta com suavidade em 

seu próprio

 focinho,

 para

 depois

 apoiar

‐me

 contra

 a parede,

 até

 conseguir

 que

 se

 normalizassem as batidas de meu coração. Depois me deitei na cama, e em pouco tempo, sem sequer me propor a  isso, caí  num sono profundo. Despertou‐me uma  leve pressão 

sobre o ombro, e ao abrir os olhos  tinha ante mim o rosto enrugado e  rosado de uma mulher de idade. 

—Está ensonhando — disse — e eu sou parte de seu ensonho. Assenti automaticamente  com  a  cabeça, mas  sem estar de  todo  convencida de 

estar  sonhando. A mulher era chamativamente pequena; não anã nem pigméia, e  sim, melhor dizendo, do tamanho de uma criança, de braços descarnados e ombros estreitos e 

frágeis. 

—É a curandeira?

 —

 perguntei.

 —Sou Esperanza — respondeu. —Sou a que traz os ensonhos. Sua voz era suave e muito baixa, dotada de uma qualidade curiosa e exótica, como 

se o espanhol (que falava de maneira fluida) fosse uma língua à qual os músculos do lábio 

superior não estavam acostumados. Gradualmente o som de sua voz ganhou intensidade, até  converter‐se  numa  força  desconexa  que  enchia  o  recinto,  fazendo‐me  pensar  em 

águas que corriam na profundidade de uma caverna. —Não  é  uma  mulher  —  murmurei  para  comigo  mesma  —,  é  o  som  da 

obscuridade. —Agora vou remover a causa de seus pesadelos — anunciou, fixando em mim seu 

olhar 

imperioso, 

ao 

mesmo 

tempo 

em 

que 

seus 

dedos 

pressionavam 

com 

suavidade 

minha  garganta.  —Vou  tirá‐las  uma  por  uma  —  prometeu,  enquanto  suas  mãos  se 

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moviam sobre meu peito em suaves ondulações. Sorriu de maneira triunfal, e então me convidou a examinar as palmas de suas mãos. 

—Vê? Saíram sem esforço algum. Observava‐me com tal expressão de conquista e assombro que não pude dizer‐lhe 

que não  via  nada em  suas mãos, e  certa de que  a  sessão  curativa havia  terminado,  a 

agradeci e me

 levantei.

 Ela

 sacudiu

 a cabeça

 num

 gesto

 de

 reprovação,

 e com

 suavidade

 

me obrigou a recostar‐me. —Está adormecida — me recordou. —Sou a que traz os ensonhos, lembra? Adoraria  insistir que estava  desperta, mas  a  única  coisa que  consegui  foi  sorrir 

como  uma  idiota,  ao  mesmo  tempo  em  que  o  sono  me  afundava  em  um  estado 

confortável. Risos e sussurros me cercavam como sombras; lutei por despertar, e precisei fazer 

um  grande  esforço  para  abrir  os  olhos,  levantar‐me  e  olhar  a  aqueles  que  se  haviam 

 juntado ao redor da mesa. O peculiar nevoeiro do quarto entorpecia a possibilidade de vê‐

los claramente. Delia estava entre eles, e estava a ponto de pronunciar seu nome quando 

um insistente

 som

 raspante

 me

 fez

 virar

 para

 averiguar

 o que

 acontecia

 às

 minhas

 costas.

 

Um  homem,  precariamente  erguido  sobre  um  tamborete  alto,  descascava amendoins  fazendo  muito  barulho.  A  primeira  vista  parecia   jovem,  mas  de  alguma 

maneira eu sabia que era velho. Seu sorriso era uma mistura de esperteza e inocência. —Quer? — ofereceu. Antes  que  eu  pudesse  ensaiar  qualquer  resposta  minha  boca  se  abriu  em 

assombro, e não pude fazer outra coisa que olhá‐lo fixamente, ao ver‐lhe transportar todo 

seu peso a uma mão e, sem esforço, elevar seu corpo pequeno e tenso na vertical. Dessa posição me  jogou um amendoim, que caiu em minha boca aberta. Me engasguei, e um 

golpe seco em minhas costas de imediato restabeleceu a respiração. Agradecida, virei‐me 

para averiguar

 quem,

 entre

 todos

 os

 que

 agora

 se

 haviam

 agrupado

 em

 torno

 de

 mim,

 havia reagido com tanta presteza. —Sou Mariano Aureliano — disse aquele que me havia ajudado. Me deu um aperto de mãos. Seu tom suave e a encantadora formalidade de seu 

gesto mitigaram a feroz expressão de seus olhos, e a severidade de seus traços aquilinos. A 

inclinação  de  suas  sobrancelhas  escuras  lhe  dava  um  aspecto  de  ave  de  rapina.  Seus cabelos  brancos,  e  o  rosto  bronzeado  e  curtido,  falavam  de  anos,  mas  seu  corpo 

musculoso exalava vitalidade de  juventude. Havia seis mulheres no grupo, incluindo a Delia, e todas me deram um aperto de 

mãos de idêntica e eloqüente formalidade. Não me disseram seus nomes, simplesmente 

se pronunciaram

 felizes

 por

 conhecer

‐me.

 Não

 se

 pareciam

 fisicamente,

 apesar

 de

 existir

 entre elas uma chamativa similaridade, uma contraditória mistura de  juventude e velhice, de  força  e  delicadeza  que me  desorientava,  acostumada  como  estava  à  brusquidão  e 

ausência de sutilezas de minha patriarcal família alemã. Assim como não conseguia decifrar a idade de Mariano Aureliano e do acróbata do 

tamborete, tampouco conseguia fazê‐lo com a das mulheres, que poderia estar tanto nos quarenta como nos sessenta anos. O fato de que as mulheres persistissem em olhar‐me fixamente  me  produziu  uma  ansiedade  passageira.  Experimentei  a  bem  definida 

impressão de que podiam ver dentro de mim, e estavam analisando o visto. Seus sorrisos divertidos  e  contemplativos  não me  proporcionavam maior  segurança,  de modo  que, 

ansiosa 

por 

quebrar 

esse 

incômodo 

silêncio 

por 

qualquer 

meio, 

me 

dirigi 

ao 

homem 

do 

tamborete para perguntar‐lhe se era acróbata. 

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—Sou  o  senhor  Flores  —  disse,  e  com  uma  pirueta  para  atrás  abandonou  o 

tamborete e aterrissou no chão sobre suas pernas cruzadas. —Não sou um acróbata — 

esclareceu —, sou um mágico — e com um sorriso de inocultável gozo extraiu de um bolso 

o xale de seda que eu havia atado ao pescoço do burro. —Já sei quem é você. Você é o marido dela! — e apontei um dedo acusador a 

Delia. —Vocês

 sim

 que

 me

 fizeram

 um

 belo

 truque

 sujo!

 

O senhor Flores não respondeu,  limitando‐se a olhar‐me em meio a um silêncio 

cortês. —Não sou o marido de ninguém — disse por fim, e saiu do quarto por uma das 

portas que conduziam ao pátio, fazendo medialunas. (Termo relacionado com a acrobacia, estrelinhas, meia‐lua). 

Respondendo  a  um  impulso  saltei  da  cama  e  fui  atrás  dele.  Por  uns  instantes, ofuscada  pela  luz  exterior,  fiquei  imóvel. Depois  cruzei  o  pátio  e  corri  em  paralelo  ao 

caminho de terra, até encontrar‐me num terreno recém cultivado, delimitado por árvores de eucaliptos. Fazia calor, o sol parecia estar em chamas e os sulcos resplandeciam como 

grandes víboras

 efervescentes.

 

—Senhor Flores! — gritei, sem obter resposta, e certa de que se ocultava atrás de uma das árvores, cruzei o terreno correndo. 

—Cuidado com esses pés descalços! — advertiu uma voz que chegava do alto. Surpreendida, olhei para cima e ali, cara a cara comigo, estava o  senhor Flores, 

pendurado pelas pernas. —É perigoso e bobo caminhar sem sapatos — me reprovou, balançando‐se como 

um  trapezista. —Este  lugar está  infestado de víboras cascavel. Melhor me acompanhar aqui encima. É seguro e fresco. 

Apesar de saber que os galhos estavam fora de meu alcance, elevei meus braços 

com confiança

 infantil,

 e antes

 que

 pudesse

 adivinhar

 as

 intenções

 do

 senhor

 Flores,

 ele

  já

 me havia tomado pelos pulsos, e sem maior esforço do que o necessário para alçar a uma boneca de trapo, me havia  levantado do solo e me depositado na árvore. Deslumbrada, sentei‐me  junto a ele para olhar as folhas sussurrantes que brilhavam ao sol como lascas de ouro. 

—Consegue escutar o que lhe diz o vento? — perguntou o senhor Flores depois de um longo silêncio, e girou sua cabeça em um e outro sentido para que eu pudesse apreciar a maneira assombrosa em que movia as orelhas. 

—Zamurito! — sussurrei, enquanto as lembranças inundavam minha mente. Zamurito,  “abutrezinho”,  era  o  apelido  de  um  amigo  de  minha  infância 

venezuelana. O

 senhor

 Flores

 tinha

 seus

 mesmos

 traços

 delicados,

 semelhantes

 a um

 pássaro,  cabelos negros e os olhos  cor mostarda e, para encher‐me de  assombro, ele, assim  como Zamurito, podia mover as orelhas uma de  cada  vez, ou  ambas ao mesmo 

tempo. Contei ao  senhor Flores  sobre meu amigo, a quem conhecia desde o  jardim da 

infância.  No  segundo  grau  havíamos  compartilhado  uma  mesa,  e  durante  os  longos recessos do meio‐dia, em  lugar de comer nossa merenda no colégio, nós escapávamos para fazê‐lo no alto de uma colina próxima, à sombra do que acreditávamos ser a maior árvore de manga  do mundo,  cujos  galhos mais  baixos  tocavam o  solo  e os mais  altos roçavam as nuvens. Na estação das frutas nos enchíamos de mangas. O alto dessa colina 

era 

nosso 

lugar 

favorito, 

até 

dia 

em 

que 

encontramos 

corpo 

do 

bedel 

do 

colégio 

pendurado num galho. 

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Não nos animamos a nos mover nem a gritar; nenhum desejava perder prestígio 

ante  o  outro.  Nesse  dia  não  subimos  nos  galhos.  Procuramos  comer  nosso  almoço 

praticamente embaixo do corpo do morto, perguntando‐nos internamente qual dos dois se desmoronaria primeiro. Fui eu quem cedeu. 

—Alguma vez pensou em morrer? — perguntou‐me Zamurito, em voz muito baixa. 

Eu acabara

 de

 olhar

 ao

 pendurado,

 e nesse

 instante

 o vento

 havia

 movido

 os

 

galhos com uma insistência chamativa, e nesse roçar das folhas eu havia escutado o morto 

dizer‐me que a morte era apaziguante. Isso me pareceu tão insólito que me pus de pé e 

fugi aos gritos, indiferente ao que Zamurito pudesse pensar de mim. —O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — disse o senhor Flores 

quando terminei meu conto. Sua voz era baixa e suave, e seus olhos de ouro brilharam 

com luz febril ao explicar‐me que no momento da morte, num relâmpago instantâneo, as memórias, sentimentos e emoções do velho bedel se haviam liberado para ser absorvidas pela mangueira. 

—O vento  fez com que os galhos e as  folhas  lhe  falassem —  repetiu —, pois o 

vento por

 direito

 te

 pertence.

 —

 com

 olhos

 aplanados,

 olhou

 através

 das

 folhas,

 buscando

 

além do horizonte que se perdia sob o sol. —O fato de ser mulher lhe permite comandar ao vento — prosseguiu. —As mulheres não o sabem, mas em qualquer momento podem 

dialogar com o vento. Sacudi a cabeça sem compreender. —Na verdade não sei do que você está  falando — disse‐lhe, e meu  tom de voz 

delatou minha  crescente  inquietude. —Isto  é  como  um  sonho,  e  se  não  fosse  porque 

segue e segue,  juraria que é um de meus pesadelos. Seu prolongado silêncio me incomodou, e senti o rosto sufocado pela irritação. —Que faço eu aqui, sentada numa árvore com um velho louco? — me perguntei, 

mas ao

 mesmo

 tempo,

 temendo

 tê

‐lo

 ofendido,

 optei

 por

 pedir

 desculpas

 por

 minha

 aspereza. —Sei que minhas palavras não têm muito sentido para você — admitiu. —Isso é 

porque há muita crosta em você, a qual  lhe  impede de escutar o que o vento tem para dizer. 

—Demasiada  crosta? —  perguntei,  confusa  e  duvidosa. —Você  quer  dizer  que estou suja? 

—Isso  também — disse,  fazendo‐me enrubescer. Sorriu e repetiu que eu estava envolta em uma crosta muito grossa, e que essa crosta não podia ser eliminada com água 

e  sabão,  independentemente  de  quantos  banhos  tomasse.  —Está  cheia  de  juízos  — 

explicou —,

 e eles

 lhe

 impedem

 de

 entender

 o que

 estou

 lhe

 dizendo,

 e que

 o vento

 é teu

 para o que quiser mandá‐lo. Observou‐me com olhos críticos, tensos. —E então? — exigiu com impaciência, e antes que pudesse me dar conta do que 

estava acontecendo, ele me havia tomado pelas mãos, girando‐me, e me depositado no 

chão. Acreditei  ver  como  seus  braços  e  pernas  se  estiravam,  como  se  fossem  bandas elásticas, imagem passageira que expliquei a mim mesma como uma distorção perceptual causada pelo calor. Não pensei mais nisso, pois nesse exato momento me distraíram Delia 

Flores  e  seus  amigos,  que  estendiam  um  grande  pedaço  de  lona  embaixo  da  árvore 

vizinha. 

—Quando 

vieram 

para 

cá? 

— 

perguntei‐

lhe, 

desorientada, 

pois 

nem 

havia 

visto 

nem ouvido ao grupo acercar‐se. 

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—Vamos ter uma comidinha em sua honra — disse. —Porque hoje você se uniu a nós — acrescentou outra das mulheres. —Como foi que me uni a vocês? — perguntei, sentindo‐me incômoda. Não havia 

conseguido individualizar a quem falou, e as olhei uma por uma, esperando que uma delas explicasse essa declaração. 

Indiferentes a minha

 inquietude

 as

 mulheres

 se

 concentraram

 na

 lona,

 

assegurando‐se de que estivesse uniformemente estendida. Quanto mais as observava, maior  era  minha  preocupação.  Tudo  se  me  parecia  tão  estranho.  Podia  explicar  com 

facilidade porque havia  aceitado o  convite  de Delia para  visitar  a  curandeira, mas não 

podia compreender minhas ações posteriores. Era como se alguém me tivesse privado de minhas  faculdades  racionais,  obrigando‐me  a  permanecer  ali,  e  reagir,  e  dizer  coisas alheias à minha vontade. E agora organizavam uma celebração em minha honra, da qual o 

mínimo que se podia dizer era que me era desconcertante, e apesar de meus esforços não conseguia explicar minha presença nesse lugar. 

—Por  certo  que  não  me  mereço  nada  disto  —  murmurei,  revelando  minha 

formação alemã

 —,

 as

 pessoas

 não

 costumam

 fazer

 coisas

 pelos

 outros,

 ainda

 mais

 assim,

 

sem mais. Somente quando escutei a exuberante  risada de Mariano Aureliano percebi que 

todos estavam me olhando. —Não  há  razão  alguma  para  que  considere  tão  a  fundo  o  que  está  lhe 

acontecendo hoje — disse, tocando‐me com suavidade o ombro. —Organizamos o almoço 

porque nos agrada fazer as coisas sob o impulso do momento, e posto que hoje você foi curada  por  Esperanza,  a  meus  amigos  lhes  agrada  dizer  que  o  almoço  é  em  sua homenagem. — falou de maneira casual, quase com indiferença, como se se tratasse de um assunto sem  importância, mas seus olhos diziam algo diferente; sua dureza parecia 

indicar que

 era

 vital

 que

 eu

 o escutasse

 detidamente.

 —É uma alegria para meus amigos poder dizer que é em sua honra, — continuou 

— aceite‐o tal qual eles o oferecem, com simplicidade e sem premeditação — seus olhos se encheram de ternura ao olhar às mulheres. Depois se virou para mim para acrescentar: —A comida, posso  lhe assegurar, não é em absoluto em sua honra, e sem embargo o é. Esta é uma contradição que lhe custará tempo para entender. 

—Não pedi a ninguém que faça nada por mim — disse, mal humorada. Me havia 

tornado extremadamente pesada, tal qual sempre o havia feito ao sentir‐me ameaçada. —Delia  me  trouxe  aqui,  e  estou  agradecida —  me  senti  obrigada  a  acrescentar —  e 

gostaria de pagar por qualquer coisa que tenham feito por mim. 

Estava segura

 de

 tê

‐los

 ofendido;

 sabia

 que

 a qualquer

 momento

 me

 pediriam

 que

 fosse embora, ao qual,  fora o  fato de afetar adversamente a meu ego, não me haveria 

importado em demasia. Estava assustada, e  já haviam ultrapassado minha medida. Para minha  surpresa  e  raiva  não me  levaram  a  sério.  Se  riram  de mim,  e  quanto mais me irritava maior era seu  júbilo, seus olhos sorridentes e brilhantes fixos em mim como se eu 

fosse um organismo desconhecido. A  ira fez com que eu esquecesse meu temor, e os agredi, acusando‐os de tomar‐

me por uma boba. Acusei‐os de que Delia e seu marido (não sei por quê insistia em vê‐los como parceiros) me haviam pregado uma peça suja. 

—Você me traiu — disse, virando‐me para Delia — para que você e seus amigos 

me 

usassem 

como 

palhaço. 

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Quanto  mais  rabugenta,  mais  se  riam,  deixando‐me  perto  de  chorar  de  raiva, frustração e  lástima de mim mesma,  até que Mariano Aureliano parou  junto  a mim e 

começou a falar comigo como se eu fosse uma criança. Queria dizer‐lhe que podia cuidar de mim  sozinha,  que  não  precisava  de  sua  simpatia,  e  que me  ia  embora  para  casa, quando algo em seu tom, em seus olhos, me apaziguou ao ponto de acreditar que havia 

me hipnotizado.

 E sem

 embargo,

 sabia

 que

 não

 o havia

 feito.

 

O que mais me perturbou  foi a súbita e completa mudança que se produziu em 

mim. O que normalmente haveria  levado dias havia  acontecido em um  instante.  Toda 

minha vida me havia permitido ruminar acerca das indignidades — reais ou imaginárias — 

que  havia  sofrido.  Com  cabal minuciosidade,  eu  as  desmiuçava  até  que  cada  detalhe 

ficasse  explicado  à  minha  inteira  satisfação.  Ao  olhar  para  Mariano  Aureliano,  senti vontade de rir de minha recente explosão. Podia apenas me lembrar daquilo que a pouco 

me enfureceu até quase me deixar às lágrimas. Delia  me  pegou  pelo  braço  e  me  pediu  que  ajudasse  às  outras  mulheres  a 

desembrulhar os pratos, os copos de cristal e a prataria dos vários cestos em que haviam 

sido trazidos.

 As

 mulheres

 não

 falaram

 comigo

 nem

 o fizeram

 entre

 elas,

 e apenas

 breves

 

suspiros de prazer escapavam de seus  lábios à medida que Mariano Aureliano exibia as iguarias: havia tamales, enchiladas (panquecas de milho condimentadas), um guisado de pimenta malagueta e  tortilhas  feitas à mão. Não eram  tortilhas de  farinha,  comuns no 

norte  do México,  e  que  não me  apeteciam muito,  e  sim  tortilhas  de milho. Delia me preparou um prato que continha um pouco de tudo, e comi com tal voracidade que fui a primeira a terminar. 

—Isto  é o mais  delicioso  que  já  comi  em minha  vida —  disse,  esperando  uma repetição  que  ninguém me  ofereceu.  Para  dissimular minha  frustração me  dediquei  a elogiar a beleza do velho rendado que bordeava a lona sobre a qual estávamos sentados. 

—Isso fui

 eu

 que

 fiz

 —

 anunciou

 uma

 mulher

 sentada

 à esquerda

 de

 Mariano

 Aureliano. Era velha, e seus descuidados cabelos grisalhos ocultavam seu rosto. Apesar do 

calor usava uma saia longa, blusa e malha. —É um rendado belga autêntico — me explicou com voz suave e sonolenta. Suas 

mãos  longas e delicadas, nas quais brilhavam esquisitos anéis, se demoraram amorosas sobre  a  longa  franja.  Com  riqueza  de  detalhes me  falou  de  suas  habilidades manuais, mostrando‐me os pontos e as linhas usados nesse trabalho. Por momentos obtinha uma versão passageira de seu rosto através da massa de cabelos, mas não poderia dizer que aspecto tinha. 

—É renda belga autêntica — repetiu —, é parte de meu enxoval. — Alçou um copo 

de cristal,

 bebeu

 um

 gole

 de

 água

 e acrescentou:

 —Estes

 também

 são

 parte

 de

 meu

 enxoval. São Baccarat. Eu não duvidava disso. Os lindos pratos, cada um deles diferente dos outros, eram 

da mais fina porcelana, e me estava perguntando se uma discreta olhada embaixo do meu prato passaria  inadvertida, quando a mulher sentada à direita de Mariano Aureliano me incitou a fazê‐lo. 

—Não  seja  tímida.  Anda.  Está  entre  amigos  —  e  sorrindo,  levantou  o  seu.  —Limoges — anunciou, e depois levantou o meu e marcou que era um Rosenthal. 

A mulher tinha traços delicados, infantis. Era pequena, de olhos negros, redondos, e cílios grossos. Seu cabelo era negro, exceção  feita à coroa de sua cabeça que se havia 

tornado 

branca, 

estava 

arrumado 

preso 

num 

apertado 

mignon. 

Havia 

nela 

algo 

cortante, uma força bastante gélida, que notei quando me apertou com perguntas, diretas 

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e pessoais. Não me importava seu tom inquisitorial, acostumada ao bombardeio ao qual me submetiam meu pai e meus irmãos, quando saía com um homem, ou me embarcava em  alguma  atividade  própria.  Isso me  incomodava, mas  era  o  normal  em minha  vida 

familiar.  Portanto,  nunca  aprendi  a  conversar:  a  conversação  para  mim  consistia  em 

desviar ataques verbais e defender‐me a qualquer custo. 

Me surpreendi

 quando

 o interrogatório

 coercitivo

 da

 mulher

 não

 me

 levou

 a 

defender‐me de imediato. —É casada? — me perguntou. —Não — respondi, com suavidade mas com firmeza, desejando que mudasse de 

assunto. —Tem um homem? — insistiu. —Não,  não  tenho —  rebati,  e  comecei  a  sentir  os  vestígios  de meu  velho  ser 

defensivo eriçando‐se em mim. —Há algum tipo de homem pelo qual sente particular apego? — insistiu. —Sente 

preferência por algum traço de personalidade em especial no homem? 

Por um

 momento

 pensei

 que

 ela

 estava

 brincando,

 mas

 parecia

 genuinamente

 

interessada, assim como suas companheiras. Seus rostos curiosos e ávidos me acalmaram, e deixando de lado minha natureza belicosa, e o fato de que essas mulheres tinham idade 

para  ser  minhas  avós,  lhes  falei  como  a  amigas  de  minha  mesma  geração,  com  quê estivéssemos falando sobre homens. 

—Deve  ser  alto  e  apresentável —  comecei —  e  ter  senso  de  humor. Deve  ser sensível sem ser afetado, inteligente sem ser um intelectual. —Baixei o tom de minha voz para adicionar confidencialmente: —Meu pai costumava dizer que os homens intelectuais são fracos até os ossos, e todos eles são traidores. Acho que coincido com meu pai. 

—Isso é o que deseja de um homem? 

—Não —

 me

 apressei

 em

 responder.

 —Sobretudo,

 o homem

 de

 meus

 sonhos

 deve ser atlético. —Como seu pai — observou uma das mulheres. —Naturalmente — acrescentei na defensiva. —Meu pai foi um grande atleta. Um 

fabuloso esquiador e nadador. —Você se dava bem com ele? —Maravilhosamente — disse com um tom entusiasta. —O mero pensar nele me 

faz lacrimejar. —Por que não está com ele? —Somos demasiado parecidos — expliquei. —Há algo em mim que não entendo 

plenamente nem

 posso

 controlar,

 que

 me

 afasta

 dele.

 —E o que há de sua mãe? —Minha  mãe  —  suspirei,  e  fiz  uma  momentânea  pausa  para  encontrar  as 

melhores  palavras  para  descrevê‐la.  —É  muito  forte.  É  minha  parte  sóbria;  a  parte 

silenciosa que não precisa ser reforçada. —Você é muito ligada aos seus pais? —Em espírito sim — repus com ternura —, na prática sou uma solitária. Não tenho 

muitas ligações. — Depois, como se algo dentro de mim se esforçasse por sair, revelei um 

defeito de personalidade que nem  sequer em meus momentos mais  introspectivos me animava a confessar a mim mesma. —Antes que apreciar ou alentar afeto pelas pessoas, 

eu 

as 

uso… 

— 

mas 

de 

imediato 

retifiquei 

minha 

declaração: 

—Mas 

também 

sou 

capaz 

de 

sentir afeto. 

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Com uma mistura de alívio e frustração olhei a uns e outros. Nenhum parecia ter dado  importância à minha confissão. Seguindo outra  linha, as mulheres perguntaram se descreveria a mim mesma como um ser valente ou covarde. 

—Sou uma total covarde — respondi —, mas por desgraça, minha covardia  jamais me detém. 

—Detém de

 que?

 —

 perguntou

 a mulher

 que

 me

 havia

 estado

 interrogando.

 Seus

 

olhos negros passavam uma expressão séria, e suas sobrancelhas, semelhantes a  linhas pintadas com carvão, estavam enrugadas num gesto de preocupação. 

—De  fazer  coisas  perigosas —  respondi.  Satisfeita  ao notar que pareciam  estar pendentes de cada palavra minha, passei a explicar‐lhes que outro de meus sérios defeitos era minha grande facilidade para meter‐me em problemas. 

—Em qual problema esteve do qual pode nos  falar? — perguntou, e  seu  rosto, sério até esse momento, se iluminou com um sorriso brilhante, quase malicioso. 

—Que  lhe parece este, meu problema atual? — perguntei, meio de brincadeira, temerosa de que  interpretassem mal meu comentário, mas para surpresa e alívio todos 

riram e gritaram,

 como

 costumam

 fazer

 os

 rancheiros

 mexicanos

 quando

 algo

 lhes

 é 

gracioso ou atrevido. —Como  acabou  nos  Estados  Unidos?  —  inquiriu  a  mulher  quando  todos  se 

acalmaram. Me encolhi de ombros, não sabendo ao certo o que responder. —Desejava ir à universidade — murmurei por fim. —Estive primeiro na Inglaterra, 

mas  ali  o  que mais  fiz  foi me  divertir. Na  verdade  não  sei  bem  o  que  quero  estudar. Acredito estar em busca de algo sem saber exatamente o quê. 

—Isso  nos  leva  à  minha  primeira  pergunta  —  continuou  a  mulher,  seu  rosto 

atrevido e seus olhos escuros destemidos e curiosos como os de um animal. —Busca um 

homem? —Suponho que sim — admiti, para depois acrescentar de maneira impaciente. —

Que  mulher  não  o  está,  e  por  que  me  pergunta  isso  tão  insistentemente?  Tem  um 

candidato? Seria este algum tipo de exame? —Temos um candidato —  interpôs Delia flores —, mas não é um homem… — e 

tanto ela  como  as outras  riram de  tal maneira que não pude  fazer menos do que me  juntar a seu festejo. 

—Isto é definitivamente um exame — me assegurou a inquisidora, quando todos se  haviam  aquietado.  Guardou  silêncio  durante  um  momento,  seus  olhos  alertas  e 

reflexivos.  —Pelo  quê  nos  mencionou,  concluo  que  você  é  completamente  de  classe 

média —

 prosseguiu,

 abrindo

 os

 braços

 num

 gesto

 de

 forçada

 aceitação.

 —Mas,

 que

 outra

 coisa pode ser uma mulher alemã nascida no novo mundo? — e observou a raiva refletida em  meu  rosto  com  um  sorriso  apenas  reprimido.  —As  pessoas  da  classe  média  têm 

sonhos de classe média. Ao observar que eu estava a ponto de explodir, Mariano Aureliano me explicou 

que ela fazia essas perguntas simplesmente porque sentia curiosidade por minha pessoa. Quase nunca recebiam visitas, e muito raras vezes gente  jovem. 

—Isso não quer dizer que tenham que me insultar — protestei. Como se eu não houvesse dito nada, Mariano Aureliano continuou desculpando às 

mulheres. Seu tom calmo e sua carinhosa carícia em minhas costas tornaram a derreter 

minha 

raiva, 

tal 

qual 

fizera 

anteriormente, 

seu 

sorriso 

era 

tão 

angelical 

que 

nem 

por 

um 

momento duvidei de sua sinceridade quando começou a me adular. Disse que eu era uma 

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das pessoas mais extraordinárias que eles haviam conhecido, o qual me emocionou ao 

extremo  de  convidá‐lo  a  perguntar‐me  qualquer  coisa  que  desejasse  saber  acerca  de minha pessoa. 

—Você se sente importante? — perguntou. Assenti. 

—Todos somos

 importantes

 para

 nós

 mesmos.

 Sim,

 creio

 que

 sou

 importante,

 não

 

em um sentido geral e sim específico, para mim mesma — e me embarquei num discurso 

acerca  de  uma  imagem  própria  positiva  e  valiosa,  e  do  vital  que  era o  reforçar  nossa importância a fim de sermos indivíduos fisicamente sãos. 

—E o que pensa das mulheres? Acredita que são mais ou menos importantes que os homens? 

—É óbvio que os homens são mais importantes — disse. —As mulheres não têm 

escolha.  Devem  ser  menos  importantes  para  que  a  vida  familiar  corra  bem  sobre  os trilhos, por assim dizer. 

—Mas isso está bem? — insistiu. 

—Naturalmente que

 está

 bem

 —

 declarei.

 —Os

 homens

 são

 intrinsecamente

 

superiores, por isso manejam o mundo. Eu fui criada por um pai autoritário que, apesar de conceder‐me tanta  liberdade como a de meus  irmãos, me  fez saber, não obstante, que certas  coisas  não  eram  tão  importantes  para  a mulher.  Por  isso  não  sei  que  faço  na universidade, nem o que é o que desejo da vida — e logo acrescentei num tom infantil e 

desvalido: —Suponho que busco a um homem tão seguro de si mesmo como o era meu pai. 

—É uma simplória! — disse uma das mulheres. —Não,  ela  não  é  —  assegurou  Mariano  Aureliano.  —Simplesmente  está 

confundida, e é tão persistente como seu pai. 

—Seu pai

 alemão

 —

 corrigiu

 enfaticamente

 o senhor

 Flores,

 ressaltando

 a palavra

 alemão. Havia descido da árvore como uma folha, suavemente e sem ruído. Serviu‐se de uma quantidade imoderada de comida. 

—Quanta razão você tem — concordou Mariano Aureliano, sorrindo —, ao ser tão obstinada como seu pai alemão, não fez outra coisa que repetir o que escutou toda sua vida. 

Minha raiva, que subia e abaixava como uma febre misteriosa, não se devia só ao 

que  diziam  de mim,  e  sim  ao  fato de  que  falavam  de mim  como  se  eu  não  estivesse 

presente. —Não tem remédio — disse outra das mulheres. 

—Está muito

 bem

 para

 o projeto

 que

 temos

 em

 mãos

 —

 observou

 Mariano

 Aureliano,  defendendo‐me  com  convicção.  O  senhor  Flores  respaldou  a  Mariano 

Aureliano, e a única mulher que até então não havia  falado disse  com voz profunda e 

rouca que estava de acordo com os homens: que eu servia muito bem para o propósito 

em mãos. Era alta e delgada. Seu rosto pálido, delicado e severo, estava coroado por cabelos 

brancos, trançados e ressaltados por olhos grandes e luminosos. Apesar de sua vestimenta gasta e descolorida, havia em torno dela uma aura de elegância. 

—O que estão fazendo comigo? — gritei,  já incapaz de controlar‐me. —Não se dão conta do horrível que é para mim escutar que falam como se eu não estivesse presente? 

Mariano 

Aureliano 

fixou 

em 

mim 

seus 

olhos 

ferozes. 

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—Você não está aqui — disse num  tom desprovido de  toda emotividade —, ao 

menos pelo momento. E, o mais importante, é que isto não conta. Nem agora nem nunca. Quase  desmaiei  de  ira.  Ninguém  me  havia  falado   jamais  com  tal  dureza  e 

indiferença para com meus sentimentos. —Eu cago em todos vocês, gusanos comemierda, filhos da puta! — gritei. 

—Deus meu!

 Uma

 alemã

 obscena!

 —

 exclamou

 Mariano

 Aureliano,

 e todos

 riram.

 

Estava a ponto de ficar de pé e ir‐me quando Mariano Aureliano me deu repetidos golpezinhos nas costas. 

—Bom, bom — murmurou, como quem tranquiliza à criança que arrotou. E como 

antes, em lugar de incomodar‐me ao ser tratada como criança, minha raiva desapareceu. Me senti vibrante e feliz, e sacudindo a cabeça em sinal de incompreensão, os olhei e ri. 

—Aprendi  castelhano  nas  ruas  de  Caracas  com  a  ralé —  expliquei. —Conheço 

todos os palavrões. —Não  lhe encantaram os tamales doces? — perguntou Delia, fechando os olhos 

para demonstrar sua apreciação. 

Sua pergunta

 pareceu

 ser

 uma

 senha:

 o interrogatório

 cessou.

 

—Mas é claro que lhe encantaram! — respondeu o senhor Flores por mim —, só 

lamenta que não lhe serviram mais, pois tem um apetite insaciável — e veio sentar‐se ao 

meu lado. —Mariano Aureliano se excedeu, e nos cozinhou um manjar. Não podia acreditar nisso. —Quer dizer que ele cozinhou? Tem a todas estas mulheres e cozinhou? — e de 

imediato,  preocupada  pela  interpretação  que  pudessem  dar  às  minhas  palavras,  me desculpei, explicando minha enorme  surpresa ante o  fato de que um macho mexicano 

cozinhasse em  sua casa quando havia mulheres para  fazê‐lo. As  resultantes  risadas me 

demonstraram que

 tampouco

 era

 isso

 o que

 quis

 dizer.

 —Especialmente se essas mulheres são suas mulheres; é isso o que queria dizer? — perguntou o senhor Flores, suas palavras entre misturadas com os risos de todos. —Tem razão, são as mulheres de Mariano ou, para ser mais preciso, elas lhe pertencem — e 

se deu um divertido golpe no  joelho. Depois, dirigindo‐se à mais alta das mulheres, aquela que só havia falado em uma oportunidade, disse: —Por que não lhe conta acerca de nós? 

—Obviamente o senhor Aureliano não tem essa quantidade de esposas — disse, ainda mortificada por meus lapsos. 

—E por que não? — retrucou a mulher, e todos riram de novo. O riso era alegre,  juvenil, mas não conseguia tranquilizar‐me. —Todos aqui estamos unidos por nossa luta, 

pelo profundo

 afeto

 que

 nos

 professamos

 e pela

 certeza

 de

 que

 se

 não

 estamos

  juntos

 nada é possível — disse. —Mas  vocês não  são parte de nenhum  grupo  religioso, não é? — perguntei, e 

minha  voz  revelou  minha  crescente  apreensão.  —Nem  de  nenhuma  espécie  de comunidade? 

—Pertencemos  ao  poder  —  respondeu  a  mulher.  —Meus  companheiros  e  eu 

somos os herdeiros de uma antiga tradição. Somos parte de um mito. Não compreendi o que estava dizendo; intranquila, olhei para os outros; seus olhos 

estavam  fixos  em  mim;  observavam‐me  com  uma  mistura  de  expectativa  e 

contentamento. Voltei minha atenção à mulher alta, que  também me observava com a 

mesma 

expressão 

embriagada. 

Seus 

olhos 

brilhavam 

ao 

ponto 

de 

chispar. 

Inclinada 

sobre 

seu copo de cristal, bebia sua água em delicados goles. 

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—Somos  essencialmente  ensonhadores  —  explicou  —,  agora  estamos  todos ensonhando e, pelo fato de que foi trazida a nós, você também está ensonhando conosco 

— disse isto num tom tão suave que na verdade não pude captar o que foi dito. —Você quer dizer que estou dormindo e compartilhando um sonho com vocês? — 

perguntei com  jocosa  incredulidade, e precisei morder‐me os  lábios para segurar o  riso 

que borbulhava

 em

 meu

 interior.

 

—Não é exatamente o que está fazendo, mas passa perto — admitiu, e em nada incomodada por meus risinhos nervosos, explicou que o que eu estava experimentando se parecia mais  a  um  sonho  extraordinário,  onde  todos me  ajudavam  ao  ensonhar meu ensonho. 

—Mas isso é uma...... — comecei, mas ela me silenciou com um gesto de mão. —Todos  estamos  ensonhando  o  mesmo  ensonho  —  me  assegurou, 

aparentemente extasiada por uma felicidade que eu não alcançava compreender. —E  o  que me  diz  dessas  coisas  deliciosas  que  acabo  de  comer? —  procurei  o 

molho de chili que havia derramado sobre minha blusa. Mostrei‐lhe as manchas. —Isto 

não pode

 ser

 um

 sonho!

 Eu

 comi

 dessa

 comida!

 —

 insisti

 em

 tom

 forte

 e agitado.

 —Sim,

 

eu mesma a comi! Seu olhar era tranqüilo, como se tivesse estado esperando tal arrebatamento. —E o que me diz de como o senhor Flores te subiu ao alto da árvore de eucalipto? 

— perguntou. Estava a ponto de informar‐lhe que não me havia subido ao alto da árvore, e sim 

simplesmente a um galho, quando me interrogou em voz baixa. —Você pensou nisso? —Não, não pensei nisso — respondi de mau  jeito. —É claro que não — concordou, movendo a cabeça com um gesto sabichão, como 

se soubesse

 que

 nesse

 exato

 instante

 eu

 havia

 recordado

 que

 mesmo

 o galho

 mais

 baixo

 de qualquer uma das árvores que nos rodeavam eram  impossíveis de alcançar do chão. Explicou que a razão pela qual eu não me havia dado conta disso era porque nos ensonhos não somos racionais. 

—Nos ensonhos podemos unicamente agir — ressaltou. —Um momento — interrompi —, pode ser que eu esteje um tanto atordoada, eu 

admito. Sem contar que você e seus amigos são a gente mais estranha que  jamais conheci, mas estou desperta até não mais poder — e, vendo que ria de mim, gritei: —Isto não é um 

sonho! Com um  imperceptível movimento de cabeça atraiu a atenção do senhor Flores, 

que num

 rápido

 movimento

 se

 apoderou

 de

 minha

 mão

 e,

  juntos,

 nos

 elevamos

 a um

 galho do eucalipto mais próximo. Ali ficamos uns instantes, sentados, e antes mesmo que eu pudesse dizer algo, ele me baixou para a terra, ao mesmo lugar em que estive sentada. 

—Compreende o que quero dizer? — perguntou a mulher alta. —Não, não compreendo — gritei, sabendo que havia sofrido uma alucinação. Meu 

temor se converteu em  fúria, e  lancei uma enxurrada de maldições obscenas. Esgotado 

meu furor senti lástima por mim mesma e comecei a chorar. —O que vocês me fizeram? — exigi em meio ao meu choro. —Puseram algo na minha comida? Na água? 

—Não fizemos nada disso — respondeu com bondade a mulher alta. —Você não precisa de nada… 

Apenas 

conseguia 

escutá‐

la; 

minhas 

lágrimas 

eram 

como 

um 

véu 

escuro 

que 

desfigurava tanto seu rosto como suas palavras. 

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—Aguenta  —  a  escutei  dizer,  apesar  de  não  poder  vê‐la  e  nem  a  seus companheiros. —Aguenta, não desperte ainda. 

Havia  algo  tão  imperioso em  seu  tom que  compreendi que minha própria  vida 

dependia  de  vê‐la  de  novo,  e  graças  a  uma  força  desconhecida,  e  por  completo 

inesperada,  consegui  atravessar o  véu  de minhas  lágrimas.  Escutei  um  suave  ruído  de 

aplausos e em

 seguida

 os

 vi.

 Eles

 sorriam,

 e seus

 olhos

 brilhavam

 com

 tal

 intensidade

 que

 

suas pupilas pareciam iluminadas por algum fogo interno. Me desculpei primeiro ante as mulheres, e depois aos dois homens, por minha reação boba, mas não desejavam nem 

falar dela, dizendo que eu havia me desempenhado de maneira excepcional. —Somos as partes viventes de um mito — disse Mariano Aureliano, depois do qual 

 juntou os  lábios para soprar. —Eu lhe soprarei até à única pessoa que agora tem o mito 

em suas mãos — anunciou. —Ele lhe ajudará a esclarecer tudo isto. —E quem pode ser essa pessoa? — perguntei com um certo ar petulante, e estava 

a  ponto  de  inquirir  se  essa  pessoa  seria  tão  teimosa  como  meu  pai,  mas  Mariano 

Aureliano me distraiu. Continuava soprando, os cabelos brancos eriçados, e as bochechas 

roxas e infladas.

 

Em evidente resposta a seus esforços, uma suave brisa começou a infiltrar‐se por entre os eucaliptos. Mariano Aureliano fez um sinal com a cabeça, como se admitisse estar inteirado de minha confusão e de meus pensamentos não expressados, e com suavidade 

me fez girar até eu ficar de frente às montanhas do Bacatete. A brisa se converteu em vento, um vento tão frio e áspero que tornava doloroso o 

respirar. Com um movimento ondulante, como se não tivesse esqueleto, a mulher alta se levantou, tomou minha mão e me arrastou através dos sulcos arados. No meio do campo 

culvitado fizemos uma repentina parada, e poderia  jurar que, com seus braços estendidos, incitava e atraía à espiral de terra e folhas mortas que se enredemoinhavam à distância. 

—Nos ensonhos

 tudo

 é possível

 —

 sussurrou.

 Ri, abri os braços para chamar o vento, e a terra e as folhas bailaram em torno de nós com tal força que tudo se borrou ante minha vista. De repente vi à mulher alta muito 

longe.  Seu  corpo  parecia  dissolver‐se  numa  luz  avermelhada  até  desaparecer  por completo de meu campo de visão. Então um negrume encheu minha cabeça. 

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CAPÍTULO TRÊS 

A essa altura me era difícil determinar se o piquenique havia sido um sonho ou 

se  na  realidade  havia  acontecido. Não  era  capaz  de  recordar  em  ordem  sequencial todos os eventos dos quais havia participado desde o momento em que adormeci na 

cama da

 sala

 de

 curas.

 A

 seguinte

 lembrança

 nítida

 era

 a de

 encontrar

‐me

 falando

 com

 

Delia nesse mesmo quarto. Habituada a esses lapsos de memória, comuns em minha  juventude, a princípio 

não  dediquei  demasiada  importância  a  esta  anomalia.  De  criança,  quando  me 

assaltavam ganas de brincar, com frequência abandonava a cama semi‐adormecida, e 

saía de casa furtivamente através das grades de uma  janela. Muitas vezes despertei na 

praça, brincando com outras crianças que não eram obrigadas a  ir deitar‐se tão cedo 

como eu. Não abrigava dúvidas a  respeito da autenticidade da  refeição, apesar de não 

poder situá‐la temporalmente. Tentei pensar, reconstruir os  fatos, mas me assustava 

atualizar a idéia

 de

 meus

 lapsos

 infantis.

 De

 certo

 modo

 eu

 resistia

 a fazer

 perguntas

 a 

Delia sobre suas amigas, e tampouco ela ofereceu  informação. No entanto abordei o 

tema da sessão curativa, que não duvidava ter sido um sonho. Me  introduzi no tema com cautela: —Tive um sonho muito nítido a respeito de uma curandeira — disse. —Não  só  me  disse  seu  nome  como  me  assegurou  haver  eliminado  todos  os  meus pesadelos. 

—Não  foi  um  sonho  —  rebateu  Delia,  num  tom  que  deixava  claro  seu 

desagrado, enquanto me olhava com  incômoda  insistência. —A curandeira  lhe disse 

seu nome, e de fato curou seus transtornos de sonho. —Mas foi um sonho —  insisti —, e nele a curandeira tinha o tamanho de uma 

criança. Ela

 não

 pode

 ter

 sido

 real.

 Delia  pegou  um  copo  de  água  que  havia  sobre  a mesa, mas  não  bebeu.  Em 

troca o fez girar  infinitas vezes em sua mão, sem derramar uma gota, depois do qual me olhou com olhos resplandecentes. 

—A curandeira  lhe deu a  impressão de ser pequena,  isso é  tudo — e  fez um 

movimento de cabeça como se essas palavras tivessem acabado de  lhe ocorrer, e as achou  satisfatórias.  Bebeu  sua  água  em  ruidosos  goles,  e  seus  olhos  se  tornaram 

suaves e reflexivos. —Precisava ser pequena para poder lhe curar. —Precisava  ser pequena? Quer dizer que eu  somente a  vi  como  se ela  fosse 

pequena? Delia assentiu repetidas vezes com a cabeça, e depois se aproximou de mim e 

cochichou: —O que aconteceu é que você ensonhava, e sem dúvida o que ensonhava não 

era um sonho. A curandeira na verdade veio a você e lhe curou, mas você não estava no lugar em que está agora. 

—Vamos, Delia — objetei —, do que está  falando? Eu  sei que  foi um  sonho. Sempre  tenho  plena  consciência  de  estar  sonhando,   já  que  os  sonhos  me  são 

completamente reais. Esse é meu mal, lembra‐se? —Talvez  agora  que  está  curada  já  não  seja  seu  mal,  e  sim  seu  talento  — 

retrucou 

Delia 

com 

um 

sorriso 

—, 

mas 

voltando 

à 

sua 

pergunta. 

curandeira 

tinha 

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que  ser  pequena,  como  uma  criança,  porque  você  era  muito  criança  quando 

começaram seus pesadelos. Sua declaração me soou tão absurda que nem sequer consegui rir. —E agora estou curada? — perguntei  jocosamente. —Você está — me assegurou. —Nos ensonhos as curas se realizam com grande 

facilidade, quase

 sem

 esforço.

 O

 difícil

 é fazer

 que

 a gente

 ensonhe.

 

—Difícil?  —  perguntei,  e  minha  voz  soou  mais  áspera  do  que  eu  houvesse 

desejado. —Todos sonhamos. Todos temos que dormir, não é assim? Delia dirigiu uma olhada travessa até o teto; depois me encarou para dizer: —Esses não  são os  sonhos  aos quais me  refiro.  Esses  são  sonhos  comuns. O 

ensonhar tem um propósito do qual os sonhos comuns carecem. —Mas  é  claro  que  o  têm!  —  declarei  em  enfática  oposição,  para  depois 

embarcar‐me numa longa retórica a respeito da importância psicológica dos sonhos, e 

citar obras de psicologia, filosofia e arte. Meus  conhecimentos  não  impressionaram  a Delia nem um pouco.  Estava  de 

acordo em

 que

 os

 sonhos

 cotidianos

 ajudavam

 a manter

 a saúde

 mental

 do

 indivíduo,

 

mas insistiu em que isso não lhe concernia. —Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm — reiterou. —Que  propósito,  Delia? —  perguntei  de maneira  complacente.  Desviou  seu 

rosto, como se quisesse impedir que eu o visse, mas momentos depois me encarou de 

novo. Algo  frio e  isolado dominava seus olhos, e sua mudança de expressão se havia endurecido a tal ponto que me assustou. 

—O  ensonho  sempre  tem  um  propósito  prático,  e  serve  ao  ensonhador  de 

maneira simples ou intrincada. Ele serviu a você para superar seus pesadelos, serviu às bruxas que lhe fizeram a comida para conhecer sua essência, e serviu a mim para fazer 

com que

 o guarda

 da

 fronteira,

 que

 lhe

 pediu

 seu

 visto

 de

 turista,

 não

 estivesse

 consciente de mim. —Estou começando a entender o que me diz, Delia — murmurei. —Quer dizer 

que vocês podem hipnotizar aos outros contra sua vontade? —Chame‐o assim se quiser — respondeu, e em seu rosto se distinguia por uma 

calma indiferença que denotava pouca simpatia. —O que contudo não conseguiu ver é 

que você mesma, com pouco esforço, pode entrar no que você chama de um estado 

hipnótico.  Nós  o  chamamos  ensonhar  um  sonho  que  não  é  um  sonho,  mas  um 

ensonho no qual podemos fazer quase tudo o que alguém deseje. As palavras de Delia estavam  a ponto de  adquirir  sentido para mim, mas eu 

carecia das

 necessárias

 palavras

 para

 expressar

 meus

 pensamentos

 e sentimentos.

 Olhei para ela, desorientada. De repente recordei um episódio de minha  juventude. Quando por fim me foi permitido ter aulas de direção com o  Jeep de meu pai, 

surpreendi à minha  família demonstrando que  já sabia acionar as marchas, algo que 

durante anos vinha fazendo em meus sonhos. Na minha primeira tentativa, com uma 

segurança que até a mim surpreendeu, tomei a velha estrada de Caracas ao porto de 

Guayra. Duvidei sobre falar a Delia desse episódio, e escolhi em troca abordar o tema do tamanho da curandeira. 

—Não é uma mulher alta — respondeu. —Mas tampouco é tão pequena como 

você a viu. Em seu ensonho curativo, ela projetou sua pequenez para benefício seu e, 

ao 

fazê‐

lo, 

apareceu 

pequena. 

Essa 

é 

natureza 

da 

magia. 

Deve 

ser 

aquilo 

cuja 

impressão deseja dar. 

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—É uma maga? — perguntei esperançosa. A  idéia de que  todos  trabalhavam 

em  um  circo,  de  que  eram  parte  de  um  espetáculo  de magia, me  havia  cruzado  a 

mente em várias ocasiões. Acreditava que isso explicaria muitas coisas acerca deles. —Não, não é uma maga. É uma  feiticeira — disse, e Delia me olhou  com  tal 

desdém  que  me  envergonhei  de  minha  pergunta.  —Os  magos  são  do  teatro.  Os 

feiticeiros são

 do

 mundo,

 sem

 ser

 parte

 do

 mundo

 —

 explicou.

 Logo

 caiu

 num

 longo

 

silêncio,  ao  fim  do  qual  suspirou  antes  de  fazer‐me  a  seguinte  pergunta:  —Você 

gostaria de ver Esperanza agora? —Sim! — respondi animada. —Eu gostaria muito. A  possibilidade  de  que  a  curandeira  fosse  um  ser  real  e  não  um  sonho me 

atordoava. Delia não me convencera de  tudo, e no entanto desejava crer‐lhe a  todo 

custo. Meus pensamentos  se  fragmentaram; de  repente me dei conta de não haver mencionado  a  Delia  o  fato  de  que  a  curandeira  de  meu  sonho  havia  manifestado 

chamar‐se Esperanza. Tão absorta estava em meus pensamentos que não percebi que Delia falava. 

—Perdão, o que

 disse?

 —

 perguntei

‐lhe.

 

—A única maneira em que pode encontrar sentido a tudo isto é ensonhando de 

novo — respondeu, e com um suave riso agitou sua mão, como convidando a alguém a 

apresentar‐se. Suas palavras careciam de importância para mim, meus pensamentos  já fluíam 

por  outros  trilhos.  Esperanza  era  um  ser  real,  e me  animava  a  certeza  de  que me 

esclareceria  tudo. Além disso, ela não havia  comparecido  à  refeição, nem me havia aviltado como fizeram as outras mulheres. Abrigava a vaga confiança de que eu havia 

caído  bem  a  Esperanza,  e  este  pensamento,  de  certa  forma,  restaurou  minha 

segurança.  Para ocultar meus  sentimentos  de Delia, manifestei  ansiedade  em  ver  à 

curandeira. —Queria agradecer a ela e, lógico, pagar‐lhe por tudo quanto fez por mim. 

—Já  está  tudo  pago  —  anunciou  Delia,  e  o  matiz  pungente  de  seus  olhos revelou que tinha acesso a meus pensamentos. 

—O  que  quer  dizer  com  isso  de  “já  está  tudo  pago”? —  perguntei  com  voz estridente. —Quem o pagou? 

—É difícil explicá‐lo — respondeu, e o distante toque de bondade que denotava sua voz me trouxe tranquilidade. —Tudo começou na festa de sua amiga em Nogales. Você chamou minha atenção de imediato. 

—Não me diga? — perguntei  intrigada, ansiosa por escutar elogios referentes 

ao bom

 gosto

 de

 meu

 cuidadosamente

 selecionado

 figurino.

 Sobreveio um incômodo silêncio. Não conseguia ver os olhos de Delia, velados atrás de suas pálpebras semicerradas, e havia algo perturbador em sua voz, contudo 

tranquila, quando disse haver observado que cada vez que eu precisava  falar com a 

avó de minha amiga parecia absorta e como se adormecida. —Absorta não é a palavra — respondi. —Não tem  idéia do que tive que  lutar 

para convencer à velha de que eu não era o diabo encarnado. Delia pareceu não escutar‐me, e prosseguiu falando: —De imediato percebi que tinha grande facilidade para ensonhar, de modo que 

lhe segui pela casa para ver você em ação. Você não  tinha plena consciência do que 

fazia 

ou 

dizia, 

no 

entanto 

se 

desempenhava 

muito 

bem, 

rindo, 

falando 

mentindo 

descaradamente para cair bem. 

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—Está me chamando de mentirosa? — perguntei de brincadeira, e sem dúvida 

deixando em descoberto o fato de sentir‐me ferida. Senti a necessidade de irritar‐me, e para amortizar esse perigoso impulso, fixei a vista no  jarro de água sobre a mesa. 

—Não me atreveria a chamar‐lhe de uma mentirosa — explicou Delia um tanto 

pomposamente —, eu te qualificaria como uma ensonhadora. 

Sua voz

 estava

 carregada

 de

 solenidade,

 mas

 seus

 olhos

 brilhavam

 de

 gozo

 e 

boa malícia quando disse: —Os  feiticeiros  que  me  criaram  diziam  que  não  importava  o  que  se  pode 

chegar a dizer, sempre e quando se tenha o poder para dizê‐lo — e sua voz transmitia tal entusiasmo e aprovação que tive a certeza de que havia alguém atrás de uma das portas escutando‐nos. —E a maneira de conseguir esse poder é ensonhando. Você não 

sabe disso porque o  faz de uma maneira natural, mas quando  se  vê enfrentada por alguma dificuldade, sua mente se submerge de imediato no ensonho. 

—Foi criada por feiticeiros, Delia? — perguntei para mudar de assunto. —É claro — respondeu, como se fosse a coisa mais natural do mundo. 

—Seus pais

 eram

 feiticeiros?

 

—Oh,  não  —  respondeu  com  um  riso  contido.  —Um  dia  os  feiticeiros  me 

encontraram, e dali em diante me criaram. —Que idade você tinha? Era uma criança? Delia riu como se com minha pergunta eu houvesse alcançado a quintessência 

do humor. —Não,  não  era  uma  criança.  Talvez  tivesse  sua  mesma  idade  quando  me 

encontraram e se encarregaram de minha criação. —O que quer dizer com “se encarregaram de minha criação”? Delia me olhou  sem que  seus olhos me enfocassem,  fazendo‐me pensar que 

não havia

 me

 ouvido

 ou,

 de

 tê

‐lo

 feito,

 não

 estar

 disposta

 a responder.

 Repeti

 a pergunta, ante a qual sorriu encolhendo‐se de ombros. 

—Me  criaram  como  quem  cria  a  um  menino  —  disse  finalmente.  —Não 

importa a idade que ele tenha. Em seu mundo ele é um menino. Assaltada de súbito pelo  temor de que nossa conversa pudesse ser escutada, 

olhei por cima de meu ombro e disse em voz baixa: —Quem são esses feiticeiros, Delia? —Essa é uma pergunta difícil — cochichou —, e por este momento nem sequer 

posso  intentar uma resposta. Tudo o que posso dizer acerca deles e que são aqueles me disseram que ninguém deve mentir para ser acreditado. 

—E por

 que

 então

 deveria

 alguém

 mentir?

 —

 perguntei.

 —Pelo simples prazer que há em  fazê‐lo — respondeu com presteza, e se pôs de  pé  para  dirigir‐se  até  a  porta  que  conduzia  ao  pátio, mas  antes  de  atravessar o 

umbral se virou para mim, e com um sorriso perguntou: —Conhece aquele ditado “se 

não está mentindo para ser acreditado pode dizer o que quiser, sem se importar com o 

que pensem de você?” —Nunca escutei isso — supus que o havia inventado. Tinha a sua cara. —Além 

do mais — acrescentei —, não entendo o que está tratando de dizer. —Estou segura de que sabe sim — afirmou, e me olhou de relance através da 

madeixa de sua negra cabeleira. Com um gesto de sua testa me  incitou a segui‐la. —

Vamos 

agora 

mesmo 

ver 

Esperanza. 

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  32

Me  levantei de um  salto e a segui,  somente para deter‐me abruptamente na 

porta. Cegada de momento pela  luz externa me detive procurando determinar o que 

havia acontecido. Parecia que o tempo não tinha passado desde o momento em que 

corri atrás do senhor Flores através do campo arado. O sol, como então, estava ainda 

no zênite. 

Tive uma

 rápida

 visão

 da

 saia

 vermelha

 de

 Delia

 no

 momento

 em

 que

 dobrava

 

uma esquina. Corri atrás dela, atravessando um arco de pedra que  levava a um pátio 

encantador.  Inicialmente  me  achei  cegada,  tão  intenso  era  o  contraste  entre  a 

deslumbrante luz do sol e as profundas sombras do pátio. Me mantive  imóvel, ofegante,  inalando o ar úmido,  fragrante graças ao odor 

das  laranjeiras,  madressilvas  e  ervilhas‐doce.  Subindo  por  linhas  que  pareciam 

suspensas  no  céu,  os  ramos  da  ervilha‐doce  se  destacavam  como  uma  cortina brilhante entre a folhagem de árvores, arbustos e samambaias. 

Sentada em uma cadeira de balanço, no meio do pátio, descobri a feiticeira que 

vi antes em meu sonho. Era muito mais velha que Delia e as outras mulheres, ainda 

que como

 eu

 o soube

 não

 poderia

 dizer.

 Se

 movia

 com

 um

 ar

 de

 abandono,

 e senti

 

uma angústia dolorosa em  todo meu ser quando me assaltou a certeza  irracional de 

que cada movimento de sua cadeira a afastava de mim. Uma onda de agonia e uma 

sensação de  solidão  indescritível me envolveram. Queria cruzar o pátio para  retê‐la, mas algo na  intrincada trama das escuras  lajotas  impedia o  livre movimento de meus pés.  Por  fim  pude  pronunciar  seu  nome,  porém  em  voz  débil,  apenas  audível  para 

meus ouvidos. —Esperanza. Abriu os olhos e sorriu sem demonstrar surpresa alguma, tal como se houvesse 

estado me aguardando, e após  ficar de pé, caminhou até mim. Pude então apreciar 

que não

 era

 do

 tamanho

 de

 uma

 criança,

 e sim

 da

 minha

 mesma

 altura,

 delicada

 e de

 aspecto  frágil,  apesar  do  qual  irradiava  uma  vitalidade  ante  a  qual  me  senti empequenecida. 

—Estou muito feliz em vê‐la de novo — saudou, num tom que soava sincero, e 

com um gesto me convidou a  tomar assento em uma das cadeiras de  junco  junto à 

cadeira de balanço. Em torno de nós, nas imediações, descobri às outras mulheres, incluindo Delia, 

sentadas  em  cadeiras de  junco,  semi‐escondidas  entre  árvores e  arbustos.  Também 

elas me  olhavam  com  curiosidade,  algumas  sorrindo,  outras  comendo  tamales  dos pratos que tinham sob suas saias. 

Na verde

 luz

 difusa

 do

 pátio,

 e não

 obstante

 sua

 mundana

 atividade

 gastronômica, pareciam imaginárias, insubstanciais, e contudo estranhamente vívidas, apesar da ausência de nitidez que as envolvia. Pareciam ter absorvido a verde  luz do 

pátio,  que  a  tudo  impregnava  como  uma  névoa  transparente.  A  idéia  passageira  e 

nada agradável de estar em uma casa povoada por fantasmas tomou conta de mim por um instante. 

—Quer comer algo? — perguntou Esperanza. —Delia preparou uns pratos que 

você nem imagina. —Não,  obrigado  —  murmurei,  numa  voz  que  não  parecia  a  minha,  e  ao 

observar seu olhar inquisidor acrescentei sem muita convicção: —Não tenho fome. — 

Me 

sentia 

tão 

nervosa 

agitada 

que, 

mesmo 

se 

estivesse 

desmaiando 

de 

fome, 

não 

teria podido engolir nem um bocado. 

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Esperanza  deve  ter  intuído  meu  medo  pois,  aproximando‐se,  segurou  meu 

braço como para me passar confiança. —O que é que você quer saber? — perguntou. Minha resposta saiu aos borbotões: —Achei ter visto você num sonho — e ao ver o riso em seus olhos acrescentei: 

—Estou sonhando

 agora?

 

—Sim — respondeu, enunciando suas palavras de maneira  lenta e precisa —, mas não está dormindo. 

—Como posso estar sonhando e não estar dormindo? —Algumas mulheres  podem  fazê‐lo  com  grande  facilidade.  Podem  ensonhar 

sem dormir. Você é uma delas. Outras precisam batalhar toda sua vida para consegui‐lo. 

Pressenti um toque de admiração em sua voz, mas não me senti lisonjeada nem 

um pouquinho. Ao contrário, estava mais preocupada que nunca. —Mas como é possível: sonhar sem dormir? — insisti. 

—Se eu

 te

 explico

 não

 o entenderá

 —

 contrapôs.

 —Aceite

 minha

 palavra;

 é 

preferível postergar a explicação por agora — de novo segurou meu braço, e um doce 

sorriso  iluminou seu  rosto. —Por hora  lhe basta saber que, para você, eu sou a que 

traz os ensonhos. Não considerei  isso  suficiente, mas  tampouco me animei a dizer‐lhe  isso. Em 

troca perguntei: —Eu  estava  desperta  quando  você  me  curou  de  meus  pesadelos,  e  estava 

sonhando quando estive sentada fora com Delia e as outras? Esperanza me contemplou por um longo tempo antes de fazer um movimento 

com a cabeça, como se houvesse decidido revelar uma verdade monumental. 

—É demasiado

 simplória

 para

 compreender

 o mistério

 do

 que

 fazemos

 —

 disse

 isto de maneira  tão  casual,  tão  sem  intenção de emitir um  juízo, que não me  senti ofendida nem intentei réplica alguma. 

—Mas você poderia me fazê‐lo entender, não é? — supliquei ansiosamente. Se escutaram risinhos das outras mulheres, não irônicos, mas sim um murmúrio 

como de um coro em surdina cujo eco me envolveu, som que não parecia provir das mulheres e sim das sombras do pátio. Mais que risinhos eram sussurros, uma delicada advertência a fim de apaziguar‐me, que apagou minhas dúvidas impertinentes, minhas ânsias  de  saber,  e  soube  então,  sem  a  mais  remota  dúvida,  que  em  ambas oportunidades  estive  desperta  e  ao mesmo  tempo  sonhando. Não  poderia  explicar 

esta certeza

 que

 superava

 o poder

 da

 palavra.

 Contudo,

 depois

 de

 um

 breve

 lapso,

 senti a obrigação de dissecar minha análise, de colocar tudo num marco lógico. Esperanza me olhava com evidente prazer. Depois disse: —Vou  lhe explicar quem somos e o que é que  fazemos — mas antecipou seu 

esclarecimento com uma admoestação: advertiu‐me que tudo o quanto devia me dizer era de difícil aceitação, e portanto eu deveria suspender qualquer  juízo e escutá‐la sem 

perguntas nem interrupções. —Pode fazê‐lo? —Mas é claro. Guardou  silêncio,  medindo‐me  com  seus  olhos.  Deve  ter  intuído  minha 

incerteza, 

também 

à 

pergunta 

que 

estava 

ponto 

de 

saltar 

de 

meus 

lábios. 

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—Não é que não queira  responder à suas perguntas —  sustentou —, melhor dizendo, é que neste momento lhe será impossível compreender as respostas. 

Fiz um gesto com a cabeça, temerosa de que a menor  interferência de minha parte a faria emudecer. Num tom de voz que não passava de um suave murmúrio me 

disse algo por sua vez incrível e fascinante. Disse ser a descendente de feiticeiros que 

viveram milênios

 antes

 da

 conquista

 espanhola,

 no

 vale

 de

 Oaxaca.

 Depois

 mergulhou

 

num  longo  silêncio,  e  seus  olhos,  fixos  nas  ervilhas‐doce  multicoloridas,  pareciam 

estender‐se nostalgicamente até o passado. —Pelo que sei, a parte das atividades desses feiticeiros que diz respeito a você 

se denomina  “ensonhar”—  continuou. —Esses  feiticeiros  foram  homens e mulheres possuidores  de  grandes  poderes  derivados  do  ensonho,  e  realizaram  atos  que 

desafiam a imaginação. Abraçada a meus  joelhos a escutei. Esperanza era uma  talentosa narradora e 

uma  excelente mímica.  Seu  rosto mudava  com  cada  uma  de  suas  explicações;  por momentos era o rosto de uma mulher  jovem, em outros de uma velha, ou também de 

um homem,

 ou

 de

 uma

 criança

 inocente

 e travessa.

 

Sustentou  que  milhares  de  anos  atrás  homens  e  mulheres  possuíam  a 

faculdade de entrar e sair do mundo normal, e portanto dividiram suas vidas em duas áreas: o dia e  a noite. Durante o dia desenvolviam  atividades  semelhantes  ao mais comum  dos  mortais,  sendo  sua  conduta  a  normal  e  esperada,  mas  de  noite  se 

convertiam  em  ensonhadores,  e  sistematicamente  ensonhavam  ensonhos  que 

transcendiam os limites do que consideramos a realidade. Fez  uma  nova  pausa,  como  para  dar  tempo  a  que  suas  palavras  me 

penetrassem. —Usando a escuridão como manto, eles conseguiram algo inconcebível: foram 

capazes de

 ensonhar

 estando

 despertos

 —

 antecipando

 a pergunta

 que

 eu

 estava

 a ponto  de  formular,  explicou  que  isso  lhes  significava  poder  submergir‐se,  estando 

conscientes e despertos, num ensonho que lhes dava a energia necessária para realizar prodígios que estremeciam a mente. 

Devido à modalidade agressiva  imperante em minha casa, nunca desenvolvi a 

habilidade  necessária  para  poder  escutar  durante  um  longo  período.  Se  não  podia 

enfrentar  com  perguntas  diretas,  belicosas,  então  nenhum  intercâmbio  verbal,  por mais  interessante  que  fosse,  tinha  sentido  para  mim.  Por  não  poder  discutir  me 

impacientei. Morria de vontade em  interromper Esperanza. Fervia de perguntas, mas que  me  explicassem  as  coisas  não  era  o  objetivo  de  minha  necessidade  de 

interromper. O que eu desejava era render‐me à compulsão de discutir aos gritos com ela, 

para  assim  recuperar  minha  normalidade.  Se  diria  que  Esperanza  estava  a  par  de 

minha inquietude,  já que após me olhar fixamente me ordenou a falar, ou pelo menos assim eu o acreditei. Abri a boca para dizer, como  sempre, a primeira coisa que me 

viesse na mente, estivesse ou não  relacionada  com o  tema, mas não pude articular palavra. Lutei por falar, e emiti sons guturais para deleite das mulheres nas sombras. 

Esperanza retomou a palavra, como se não houvesse notado meus  frustrados intentos,  e me  surpreendeu  sobremaneira  comprovar  que  continuava  comandando 

toda minha atenção. Disse que a origem dos conhecimentos dos  feiticeiros somente 

podia‐

se 

entender 

em 

termos 

de 

lenda. 

Um 

ser 

superior, 

apiedando‐

se 

da 

terrível 

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condição do homem, de ser perseguido, como um animal, pela fome e a reprodução, conferiu‐lhe o poder de ensonhar e lhe ensinou como usar esses sonhos. 

—Naturalmente as lendas dizem a verdade de um modo velado — explicou. —Seu êxito em ocultar a verdade reside na convicção do homem de que não passam de 

simples histórias. Lendas de homens que se transformam em anjos ou em pássaros são 

relatos de

 verdades

 ocultas

 que

 parecem

 ser

 fantasia

 ou,

 simplesmente,

 as

 alucinações

 

de mentes alteradas ou primitivas. Durante milhares de anos a  tarefa dos  feiticeiros tem  sido a de  inventar novas  lendas, ou descobrir a verdade escondida nas antigas. Aqui  é  onde  figuram  os  ensonhadores,  tarefa  na  qual  se  sobressaem  as mulheres. Possuem  a  faculdade de  abandonar‐se, de deixar‐se  ir. A mulher que me ensinou a 

ensonhar podia manter duzentos ensonhos. Esperanza me observou com atenção, como ponderando minha reação, que era 

algo de  completo estupor, pois não  tinha  idéia do  significado de  tudo  isso. Explicou 

que manter  um  ensonho  significava  que  a  pessoa  podia  ensonhar  algo  específico  a 

respeito  de  si mesmo,  e  entrar  nesse  ensonho  à  vontade.  Sua mestra,  disse,  podia 

entrar voluntariamente

 em

 duzentos

 ensonhos

 que

 lhe

 concerniam.

 

—Como  ensonhadoras  as  mulheres  são  insuperáveis  —  me  assegurou 

Esperanza. —São extremadamente práticas, e para manter um ensonho elas devem 

sê‐lo, pois o ensonho deve tocar aspectos práticos de si mesmo. O favorito de minha 

mestra  era  ensonhar‐se  como  um  falcão;  outro  como  uma  coruja.  De  modo  que, dependendo do momento do dia, podia ensonhar‐se como qualquer um dos dois e, dado que ensonhava desperta, era real e absolutamente um falcão ou uma coruja. 

Havia  tal  sinceridade  e  convicção  em  seu  tom  e  em  seus  olhos,  que  caí   por completo  sob  seu  encanto. Não  duvidei  dela  nem  por  um  instante,  e  nada  do  que 

pudesse ter dito me haveria parecido incoerente. 

Prosseguiu com

 o tema:

 —Para  levar  a  cabo  um  ensonho  dessa  natureza  as  mulheres  necessitavam 

possuir uma disciplina de ferro — e aproximando‐se a mim, como se não quisesse que 

as demais escutassem, explicou: —Por disciplina de  ferro não quero aludir a nenhum 

tipo de  rotina árdua, ou melhor, as mulheres devem acabar com a  rotina do que  se 

espera delas, e devem  fazê‐lo em sua  juventude, quando  suas  forças estão  intactas. Com frequência, quando as mulheres chegam a uma idade em que  já não têm que ser mulheres, decidem que é chegado o momento de preocupar‐se com pensamentos e 

atividades não mundanas ou extramundanas. Não sabem nem querem acreditar que 

tais empenhos quase nunca têm êxito — com suavidade golpeou meu estômago, como 

se estivesse

 tocando

 um

 tambor.

 —O

 segredo

 da

 fortaleza

 da

 mulher

 está

 em

 seu

 útero. Esperanza moveu sua cabeça de maneira enfática. Se diria que havia escutado a 

pergunta boba que invadiu minha mente: Seu útero? —As mulheres —  continuou —  devem  começar  por  queimar  seu  útero. Não 

podem ser o terreno fértil que deve ser fecundado pelo homem, seguindo o mandato 

do próprio Deus. — continuou inspecionando‐me de muito perto, sorriu e perguntou. —Por acaso, é religiosa? 

Neguei  com  a  cabeça.  Não  podia  falar,  e  minha  garganta  estava  tão 

constrangida que apenas se conseguia respirar. Me encontrava paralisada pelo medo e 

assombro, 

não 

tanto 

pelo 

que 

me 

dizia 

como 

pela 

mudança 

operada 

nela. 

Se 

me 

tivessem  perguntado  sobre  isso,  não  teria  podido  dizer  quando  mudou,  mas  de 

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repente  seu  rosto  era   jovem  e  radiante;  parecia  que  um  fogo  interno  houvesse 

incendiado seu ser. —Isso é bom! — exclamou. —Deste modo não  terá que  lutar  contra crenças 

que são muito difíceis de superar. Eu fui criada como uma devota católica, e por pouco 

não morri quando precisei examinar minha atitude  frente à religião. — suspirou, sua 

voz se

 tornou

 nostálgica

 e suave

 quando

 acrescentou:

 —Isso

 não

 foi

 nada

 comparado

 

com a batalha que precisei travar antes de converter‐me numa ensonhadora fiel. Aguardei  expectante,  respirando  apenas,  enquanto  uma  sensação  bastante 

prazerosa, semelhante a uma corrente elétrica, se estendia por todo meu corpo. Supus que me narraria algo horripilante, a crônica de sua luta contra criaturas aterrorizantes, e mal pude dissimular meu desencanto quando revelou que a tal batalha foi contra si mesma. 

—Para converter‐me numa ensonhadora precisei vencer ao eu que é nosso ser, e  nada,  absolutamente  nada,  é  tão  difícil.  Nós,  as  mulheres,  somos  as  mais desgraçadas prisioneiras de nosso ser. É nossa prisão,  feita de ordens e expectativas 

com as

 quais

 nos

 atordoam

 desde

 o momento

 em

 que

 nascemos.

 Você

 sabe

 como

 é:

 

se  o  primogênito  é  varão,  o  fato  se  celebra.  Se  é mulher,  há  um  encolhimento  de 

ombros e a resignada frase: “—Está bem; por igual irei querê‐la bem, e farei qualquer coisa por ela.” Por respeito não dei vazão ao meu riso. Jamais em minha vida havia escutado 

declarações de  tal natureza. Eu me considerava uma mulher  independente, mas era óbvio, sob a  luz do que disse Esperanza, que minha situação era  igual à de qualquer outra  mulher,  e  contrariamente  ao  que  tivesse  sido  minha  reação  normal  ante  tal conceito, concordei com ela. 

Sempre se me havia ensinado que minha precondição de mulher me obrigava à 

dependência, e se

 me

 ensinou

 que

 uma

 mulher

 podia

 considerar

‐se

 afortunada

 se

 era

 desejável, para assim conseguir a atenção dos homens. Se me disse que competia à 

minha condição de mulher o realizar de qualquer tarefa encomendada, e que o  lugar da mulher é em sua casa,  junto a seu marido e seus filhos. 

—Assim como você, fui criada por um pai autoritário, ainda que compreensivo 

—  continuou  Esperanza —  e,  como  você,  acreditei  ser  livre.  Para mim,  entender  a 

filosofia dos  feiticeiros  (que a  liberdade não significava ser o eu que era meu ser) foi quase  a morte.  Ser  eu mesma  significava  afirmar minha  feminilidade,  e  consegui‐lo 

consumia todo meu tempo, esforço e energia. Ao contrário, os feiticeiros entendem a 

liberdade  como  a  capacidade  para  fazer  o  impossível,  o  inesperado;  ensonhar  um 

ensonho que

 carece

 de

 base

 e de

 realidade

 na

 vida

 cotidiana

 —

 sua

 voz

 se

 converteu

 de  novo num  sussurro  ao  acrescentar: —O excitante e novo  é o  conhecimento dos feiticeiros, e imaginação é o que a mulher necessita para mudar seu ser e converter‐se 

numa ensonhadora. Esperanza  disse  que  se  não  tivesse  conseguido  vencer  seu  ser,  só  teria 

conseguido ter a vida de uma mulher normal: a que seus pais lhe haviam traçado, uma vida de derrota e humilhação, desprovida de todo mistério. Uma vida programada pelo 

costume e a tradição. Esperanza me beliscou o braço, e a dor me  fez gritar. —É melhor que preste 

atenção — me sermoneou. 

—Eu 

estou 

— 

murmurei 

defensivamente, 

esfregando 

braço. 

Estava 

certa 

de 

que ninguém notaria meu interesse minguante. 

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  37

—Não entrará no mundo dos  feiticeiros por  ter sido  tentada ou enganada — 

me advertiu. —Deve escolher, consciente do que lhe espera. As mudanças de meu estado de  ânimo me assombravam pelo  irracional que 

eram. Deveria de ter sentido medo, contudo me encontrava tranqüila, como se minha 

presença ali fosse o mais natural do mundo. 

—O segredo

 da

 fortaleza

 de

 uma

 mulher

 está

 em

 seu

 útero

 —

 repetiu

 

Esperanza, e  uma  vez mais me  deu  um  golpe  no  estômago. Disse  que  as mulheres ensonhavam com seus úteros ou, melhor, a partir de seus úteros. O fato de ter útero 

as  faz  ensonhadoras  perfeitas.  Antes  sequer  de  que  eu  conseguisse  completar  o 

pensamento “por que o útero é tão importante?”, Esperanza me deu a resposta. —O  útero  é  o  centro  de  nossa  energia  criativa,  a  tal  ponto  que,  se 

desaparecessem os machos do mundo, as mulheres continuariam se reproduzindo, e 

então o mundo estaria povoado unicamente pela parte feminina da espécie humana. —  Acrescentou  que,  reproduzindo‐se  unilateralmente,  as  mulheres  somente conseguiriam reproduzir clones de si mesmas. 

Me senti

 genuinamente

 surpreendida

 por

 esta

 específica

 mostra

 de

 erudição,

 

mas  não  pude  conter minha  interrupção  e  dizer  a  Esperanza  que  havia  estudado  o 

referente à reprodução assexuada e partogenéica na aula de Biologia. Se encolheu de ombros e prosseguiu com sua explicação. —A  mulher,  tendo  então  a  habilidade  e  os  órgãos  para  reproduzir  a  vida, 

também possui a habilidade para produzir ensonhos com esses mesmos órgãos — ao 

observar  a  dúvida  em  meus  olhos  me  advertiu:  —Não  se  preocupe  em  como  se 

consegue, a explicação é muito simples, e por ser simples é o mais difícil de entender. A  mim  ainda  me  causa  dificuldades,  de  modo  que,  como  uma  boa  mulher,  atuo. Ensonho, e deixo as explicações aos homens. 

Esperanza aduziu

 que

 originalmente

 os

 feiticeiros

 dos

 quais

 me

 havia

 falado

 transmitiam seus conhecimentos a seus descendentes biológicos, ou a pessoas de sua própria escolha, mas os resultados haviam sido catastróficos. 

Em  lugar  de  ampliar  essa  erudição  os  novos  feiticeiros,  escolhidos  por favoritismo arbitrário, conspiraram para promover‐se a si mesmos. Foram  finalmente destruídos,  e  essa  destruição  quase  extinguiu  o  conhecimento.  Os  poucos sobreviventes decidiram então que no futuro sua sabedoria  jamais seria legada a seus descendentes  ou  a  pessoas  de  sua  escolha,  senão  àqueles  eleitos  por  um  poder impessoal chamado “o espírito”. 

— Agora tudo isto nos traz a você. Os feiticeiros da antiguidade decidiram que 

somente aqueles

 predeterminados

 seriam

 qualificados.

 Você

 nos

 foi

 assinalada,

 e aqui

 está!  É uma ensonhadora nata, e depende das  forças  que nos  regem qual  será  seu 

futuro caminho. Não depende de você nem,  logicamente, de nós. Só pode aceitar ou 

recusar. Julgando pela urgência de sua voz e à luz especial de seus olhos, era óbvio que 

Esperanza me havia fornecido esta informação com toda a devida seriedade, e foi isto 

o  que  impediu  que  me  risse.  Ademais,  me  encontrava  demasiado  exausta.  A 

concentração  mental  que  precisei  para  segui‐la  havia  sido  por  demais  intensa. Desejava  dormir.  Ela  insistiu  em  que  eu  estirasse  as  pernas  e  me  encostasse  para relaxar‐me. O fiz ao ponto de cair adormecida. 

Despertei 

sem 

idéia 

do 

quanto 

havia 

dormido. 

Busquei 

reconfortante 

presença  de  Esperanza  ou  das  outras  mulheres,  mas  não  havia  ninguém  no  pátio. 

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Contudo, não me  senti  só; de alguma maneira  sua presença  continuava  vigente em 

torno de mim, entre a verde  folhagem. Uma brisa moveu as  folhas, e eu a senti em 

minhas pálpebras, morna e suave. Soprou em torno de mim, e depois passou por cima 

de mim como passava sobre o deserto, rapidamente, sem som. Com a vista  fixa nas  lajotas caminhei ao redor do pátio, procurando entender 

seu complicado

 desenho,

 e me

 alegrou

 comprovar

 que

 as

 linhas

 conduziam

 de

 uma

 

cadeira de  junco à outra. Tentei lembrar quem havia ocupado cada uma das cadeiras, mas meu esforço se mostrou inútil. Não podia recordá‐lo. 

Me distraiu um delicioso aroma de comida, realçado por alho e cebola, e guiada pelo odor cheguei à cozinha, um cômodo largo e retangular, tão deserta como o pátio. O desenho alegre das lajotas me recordava as do pátio, mas não me detive a constatar sua similaridade, pois achei a comida que  tinha sobrado  sobre uma maciça mesa de 

madeira  no meio  do  recinto.  Presumindo  que  era  para mim,  tomei  assento  e  comi tudo. Se tratava do mesmo guisado temperado que havia comido com eles. Aquecido 

ficava ainda melhor. 

Ao recolher

 os

 pratos,

 descobri

 um

 bilhete

 e um

 mapa

 embaixo

 de

 minha

 

esteira de palha. Nele Delia me  sugeria  regressar a Los Ângeles via Tucson, onde  se 

encontraria  comigo  em  certa  cafeteria  indicada  no  mapa.  Somente  ali,  informava, poderia dizer‐me mais acerca de si mesma e de seus amigos. 

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CAPÍTULO QUATRO 

Ansiosa  por  conhecer  as  revelações  de  Delia,  regressei  a  Los  Ângeles  via 

Tucson, e cheguei à cafeteria ao cair da tarde. Um velho me orientou até um espaço 

vazio  na  área  de  estacionamento,  e  assim,  quando  abriu  a  porta  de  meu  veículo, 

consegui reconhecê

‐lo.

 

—Mariano Aureliano! — exclamei. —Que surpresa. Me alegra tanto vê‐lo. Que 

faz você aqui? —Te  esperava  —  afirmou.  —Por  isso  meu  amigo  e  eu  lhe  reservamos  este 

espaço. Tive  uma  fugaz  visão  de  um  índio  corpulento  que  manejava  uma  velha 

camionete colorida. Deixava o local no momento em que eu entrava. —Lamento que Delia não tenha podido vir. Precisou viajar  inesperadamente a 

Oaxaca — disse Mariano Aureliano e me deu um amplo sorriso antes de agregar: —Estou aqui como seu substituto. Espero poder preencher satisfatoriamente o vazio. 

—Você não

 tem

 idéia

 do

 quanto

 encantada

 que

 estou

 em

 vê

‐lo

 —

 afirmei

 com

 

toda sinceridade, convencida de que ele, melhor que Delia, poderia me ajudar dando 

sentido a tudo o que me havia acontecido nos últimos dias. —Esperanza me explicou 

que eu estava em uma espécie de transe quando conheci a todos vocês — acrescentei. —Disse isso? — perguntou com um tom quase ausente. Sua voz, sua atitude e  todo seu comportamento diferiam  tanto da  lembrança 

que conservava dele, que me dediquei a observá‐lo com detenção, na esperança de 

descobrir  o  que  havia  mudado.  O  rosto,  rudemente  esculpido,  havia  perdido  sua 

ferocidade  mas,  preocupada  por  minhas  próprias  inquietudes,  desviei  meus pensamentos. 

—Esperanza me

 deixou

 sozinha

 na

 casa

 —

 prossegui.

 —Ela

 e todas

 as

 mulheres

 se foram sem sequer se despedir de mim, mas… — me precipitei em completar — isso 

não me preocupou, apesar de que normalmente me sinto muito incomodada quando 

as pessoas não são cortêses. —Não me  diga! —  exclamou,  como  se eu houvesse  dito  algo  extremamente 

importante. Temerosa  de  que  se  ofendesse  pelo  que  eu  havia  dito  acerca  de  suas 

companheiras, de imediato comecei a explicar‐lhe que não havia sido minha intenção 

acusar a Esperanza e às outras de não ser amigáveis. —Muito pelo contrário — lhe assegurei —, foram o mais cortêses e carinhosas. 

— estive

 a ponto

 de

 revelar

 o que

 me

 fora

 confiado

 por

 Esperanza,

 mas

 sua

 olhada

 enérgica me deteve. Não havia nessa olhada raiva nem ameaça, senão uma qualidade 

penetrante  que  perfurou minhas  defesas,  e  tive  a  sensação  de  que  tinha  acesso  à 

confusão reinante em minha mente. Desviei o olhar para esconder meu nervosismo, e declarei em  tom quase de 

brincadeira não haver me sentido por demais afetada ao ficar sozinha na casa. —O que me  intrigou  foi que conhecia cada rincão do  lugar — confessei, e me 

detive,  incerta a respeito do impacto que minhas palavras podiam haver  lhe causado. Seguiu olhando‐me fixo. —Fui ao banheiro, e comprovei que havia estado ali antes. O 

banheiro não tem espelhos, e recordei desse detalhe antes mesmo de entrar. Depois 

lembrei 

da 

ausência 

total 

de 

espelhos 

na 

casa, 

percorri 

cada 

cômodo 

confirmei. 

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Ao comprovar sua ausência de reação ante minhas palavras,  lhe confessei que 

ao escutar a rádio durante minha viagem à Tucson me havia dado conta de que andava atrasada em um dia, e terminei dizendo, num tom esforçado: 

—Devo ter dormido todo um dia. —Não dormiu um dia  inteiro — assinalou Mariano Aureliano com  indiferença 

—, caminhou

 por

 toda

 a casa

 e falou

 muito

 conosco

 antes

 de

 dormir

 como

 um

 tronco.

 

Comecei a rir, um riso próximo ao histérico, mas ele não pareceu notá‐lo. Riu 

comigo, e isso me relaxou. —Nunca durmo como um tronco — me senti obrigada a explicar. —Meu sono é 

muito instável. Mariano Aureliano  se calou, e quando  retomou a palavra  sua voz era  séria e 

exigente. —Lembra de haver sentido curiosidade sobre como as mulheres se vestiam e se 

penteavam sem a ajuda de espelhos? Não me ocorreu nenhuma resposta, e ele prosseguiu. 

—Lembra que

 lhe

 pareceu

 estranho

 a ausência

 de

 quadros

 nas

 paredes

 e…?

 

—Não  lembro  de  haver  falado  com  ninguém  —  interrompi,  para  depois observá‐lo com cautela na crença de que,  talvez, nada mais que para confundir‐me, alegaria que eu confraternizei com  todos nessa casa, quando na verdade nada disso 

havia acontecido. —Não lembrá‐lo não significa que não aconteceu — disse laconicamente. Senti em meu estômago uma involuntária revoada de mariposas. Não me havia 

sobressaltado  seu  tom  de  voz,  e  sim o  fato  de  haver  dado  resposta  às minhas  não 

formuladas  perguntas. Na  certeza  de  que  se  seguisse  falando  algo  dissiparia minha 

crescente apreensão, me embarquei em uma longa e confusa recitação acerca de meu 

estado de

 ânimo.

 Reconstruí 

 o acontecido

 e me

 deparei

 com

 buracos

 na

 ordem

 do

 que

 ocorreu entre  a  sessão  curativa e minha  viagem  à  Tucson,  prazo no qual,  eu  sabia, perdi todo um dia. 

—Vocês me estão fazendo algo — os acusei, sentindo‐me momentaneamente virtuosa —, algo incomum e ameaçante. 

—Agora  está  se  portando  como  uma  tonta  —  e  pela  primeira  vez  Mariano 

Aureliano sorriu. —Se algo é  incomum e ameaçante é só porque é novo para você. É 

uma mulher forte, e cedo ou tarde lhe encontrará o sentido. Me  incomodou  o  uso  de  mulher.  Teria  preferido  que  dissesse  garota, 

acostumada  como  estava  a  que  pedissem meus  documentos  para  provar  que  tinha 

mais de

 dezesseis

 anos.

 De

 repente

 me

 senti

 velha.

 —A  juventude deve estar unicamente nos olhos de quem contempla — disse 

como se uma vez mais estivesse  lendo meus pensamentos. —Quem quer que te olhe 

deve  perceber  sua   juventude,  seu  vigor,  mas  está  mal  que  você  se  sinta  uma 

pequenina. Precisa ser inocente sem ser imatura. Por  alguma  razão  inexplicável  suas palavras excederam minha  capacidade de 

tolerância. Desejava chorar, não por sentir‐me ferida, e sim de desalento.  Incapaz de 

sugerir algo melhor, sugeri comer. —Estou morrendo de fome — anunciei com falso alvoroço. —Isso  não  é  verdade  —  retrucou  autoritário.  —Está  tentando  mudar  de 

assunto. 

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Surpreendida por seu  tom e suas palavras olhei‐o aterrada, e minha surpresa de imediato se converteu em raiva. Não só tinha fome, como também estava cansada e  tensa  por  causa  da  longa  viagem.  Desejava  gritar,  fazê‐lo  alvo  de  minha  ira  e 

frustração,  mas  seus  olhos  me  impediam  todo  movimento,  esses  olhos  que  não 

piscavam, e pareciam possuir atributos de réptil. Por um momento pensei que poderia 

chegar a devorar

‐me,

 do

 mesmo

 modo

 em

 que

 uma

 víbora

 devora

 a um

 indefeso

 e 

hipnotizado pássaro. A  tensão  por  temor e  ira  alcançou  tal  intensidade que  senti o 

sangue invadindo meu rosto, e soube por uma curiosa e quase imperceptível elevação 

de sobrancelhas que Mariano Aureliano havia percebido essa mudança de cor. Desde 

muito nova eu havia sofrido terríveis ataques de mau gênio, e a não ser por procurar acalmar‐me, ninguém havia tentado impedir minha entrega a eles, e eu o fazia até ao 

ponto de convertê‐los em monumentais ataques de raiva, nunca causados por me ser negado  algo  que  desejava  fazer  ou  possuir,  mas  sim  por  indignações,  reais  ou 

imaginárias, infligidas à minha pessoa. Não obstante, as circunstâncias desse momento me fizeram sentir vergonha de 

meu hábito.

 Fiz

 um

 esforço

 consciente

 para

 controlar

‐me

 que

 quase

 consumiu

 todas

 as

 

minhas forças, mas me acalmei. —Esteve todo um dia conosco, um dia que agora não pode recordar — explicou 

Mariano Aureliano, pelo visto  indiferente aos meus  flutuantes estados de ânimo. —Durante  esse  tempo  esteve  muito  comunicativa  e  receptiva,  o  qual  nos  encantou. Quando ensonha melhora, e se converte num ser mais atraente, menos geniosa. Nos permitiu conhecer‐lhe muito profundamente. 

Suas palavras me  inquietaram. Por  ter  crescido defendendo‐me e afirmando‐

me, tal qual fiz, me permitiu ser muito apta em detectar significados ocultos por trás das  palavras.  “Conhecer‐me  muito  profundamente”  me  preocupou.  Em  especial 

“profundamente”. Só

 podia

 ter

 um

 significado,

 pensei,

 mas

 de

 imediato

 o descartei

 por ser descabido. Me absorvi de tal maneira em meus próprios cálculos que deixei de atentar ao 

que dizia. Continuava com as explicações do dia perdido por mim, mas apenas captei pedaços  isolados, e devo de  ter grudado minha  vista muito  fixamente nele, pois de 

repente deixou de falar. —Não está prestando atenção — me admoestou severamente. —O que me fizeram quando estive em transe? — retruquei, naquilo que, mais 

que uma pergunta, era uma acusação. Me  surpreenderam  minhas  próprias  palavras  por  impensadas,  e  Mariano 

Aureliano se

 surpreendeu

 ainda

 mais,

 e quase

 o afogou

 o rompante

 de

 riso

 que

 se

 seguiu à sua inicial expressão de sobressalto. —Pode estar  certa de que não nos  aproveitamos de  criancinhas — e não  só 

pareceu dizê‐lo com sinceridade, senão até ofendido por minha acusação. —Esperanza lhe  disse  quem  somos:  gente  muito  séria.  —E  depois,  num  tom  brincalhão, acrescentou: —E levamos a sério este negócio. 

—Que  tipo  de  negócio? — exigi belicosamente. —Esperanza não me  disse o 

que queriam de mim. —Sei  que  o  disse —  respondeu  com  tal  segurança  que  por  um  instante me 

perguntei  se  não  haveria  estado  oculto,  escutando  nossa  conversa  no  pátio.  Eu  o 

considerava 

bem 

capaz 

de 

fazer 

isso. 

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  42

—Esperanza  lhe  disse  que  você  nos  havia  sido  assinalada —  prosseguiu. —E 

agora isso nos impulsiona, como a você lhe impulsiona o medo. —A  mim  não  me  impulsiona  nada  nem  ninguém  —  gritei,  esquecendo  que 

ainda não me havia revelado o que desejavam de mim. Em  aparência  indiferente  ante  minha  raiva,  disse  que  Esperanza  havia  sido 

muito clara

 ao

 explicar

‐me

 que

 dali

 em

 diante

 eles

 estavam

 comprometidos

 em

 criar

me. —Criar‐me!?  —  gritei.  —Vocês  estão  loucos.  Já  recebi  toda  a  criação  que 

necessito! Ignorando meu  estouro  se  dedicou  a  explicar  que  o  compromisso  deles  era 

total, e o fato de que eu o entendesse ou não, não  lhes  importava. Fiquei olhando‐o, incapaz de ocultar meu medo. Jamais havia escutado a alguém expressar‐se com tanta indiferença e ao mesmo  tempo com  interesse. Num esforço por ocultar meu alarme 

procurei injetar em minha voz um valor que estava longe de sentir, e perguntei: —O que é que querem insinuar quando falam em criar‐me? 

—Exatamente o que

 ouviu

 —

 respondeu.

 —Estamos

 comprometidos

 a guiar

‐te.

 

—Mas, por quê? — estava nervosa e curiosa ao mesmo tempo. —Você não vê 

que não preciso de direção, nem quero que…? O riso de Mariano Aureliano afogou minhas palavras. —Não há dúvida alguma de que necessita direção. Esperanza  já te fez ver que 

sua  vida  carece de  significado — e antecipando minha  iminente pergunta me pediu 

silêncio.  —E  no  tocante  a  por  quê  você  e  não  outra  pessoa,  ela  lhe  explicou  que 

deixamos ao espírito a escolha de quem devemos dirigir, e o espírito assinalou você. —Um momento, senhor Aureliano — protestei —, não quero ser grosseira nem 

ingrata,  mas  você  precisa  entender  que  não  busco  direção.  A  simples  idéia  me 

aborrece. Você

 entende?

 Fui

 suficientemente

 clara?

 —Sim, e  compreendo o que quer que eu entenda — e ao dizer  isto deu um 

passo para  trás para afastar‐se de meu dedo em riste —, mas precisamente por não 

desejar nada, você se converte na candidata ideal. —Candidata? — gritei, farta de sua insistência. Olhei ao redor, perguntando‐me 

se aqueles que entravam e saíam da cafeteria poderiam ter me escutado, e continuei gritando: 

—O que é  isto? Você e seus companheiros são um bando de  loucos! Deixem‐

me em paz, me ouviu? Não preciso de vocês nem de ninguém. Para surpresa e mórbida alegria de minha parte, Mariano Aureliano  terminou 

por irritar

‐se

 e se

 pôs

 a criticar

‐me

 tal

 como

 faziam

 meus

 pais

 e meus

 irmãos.

 Com

 voz

 controlada, que não transcendia ao cenário de nossa discussão, me insultou, tratando‐

me de estúpida e de malcriada. Depois, como se o insultar‐me lhe desse ímpeto, disse 

algo imperdoável. Gritou que minha única fortuna era a de ter nascido loira e de olhos azuis, numa terra onde esses atributos eram reverenciados. 

—Jamais  teve que  lutar por nada — assegurou. —A mentalidade colonial dos mestiços de seu país fez que te olhassem como se merecesse tratamento especial. Um 

privilégio baseado na posse de uma  cabeleira  loira e olhos  azuis é o privilégio mais tonto que pode existir. 

Eu estava passada, pois  jamais fui dos que recebem insultos sem reagir. Os anos 

de 

treinamento 

familiar 

para 

essas 

batalhas 

gritadas 

que 

mantínhamos, 

as 

extremamente descritivas vulgaridades aprendidas  (e nunca esquecidas) nas  ruas de 

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  43

Caracas quando era menina, essa  tarde me  foram de  suma utilidade. Disse  coisas a 

Mariano Aureliano  que me envergonham  até o dia  de  hoje.  Tal era meu estado  de 

nervos  que  não  percebi  que  o  índio  corpulento  condutor  da  camionete  se  havia 

 juntado a nós, e apenas o soube ao escutar sua forte risada. Ele e Mariano Aureliano 

praticamente estavam no chão, segurando as barrigas e gritando alvoroçados. 

—O que

 tem

 isto

 de

 engraçado?

 —

 gritei

 ao

 índio

 corpulento,

 a quem

 também

 

insultei. —Que mulher tão boca‐suja! — disse em perfeito inglês —, se eu fosse seu pai 

lhe lavava a boca com água e sabão. —Quem te deu vela neste enterro, gordo de merda? — e cega de fúria, dei‐lhe 

um chute no tornozelo. A dor lhe fez soltar um grito, e me insultou. E eu estava a ponto de agarrar‐lhe 

o braço e mordê‐lo quando Mariano Aureliano me pegou por trás e me  jogou no ar. O  tempo  se  deteve. Minha  descida  foi  tão  lenta,  tão  imperceptível,  que me 

pareceu  estar  suspensa  no  ar  indefinidamente.  Não  caí   em  terra  com  os  ossos 

quebrados como

 esperava,

 e sim

 nos

 braços

 do

 índio

 corpulento.

 Não

 cambaleou

 ao

 

receber‐me,  sustentando‐me  como  a  uma  levíssima  almofada.  Consegui  captar  um 

malicioso reflexo em seus olhos, e  tive a certeza de que me  iria  lançar para cima de 

novo, mas deve ter intuído meu temor, pois sorriu e, com suavidade, me depositou no 

chão. Esgotadas minhas forças e minha ira, me apoiei contra o carro e chorei. Mariano Aureliano me rodeou com seus braços e acariciou minha cabeça e meu 

braço,  tal  como  fazia  meu  pai  quando  eu  era  menina.  Murmurando  palavras tranquilizantes  me  assegurou  não  estar  nem  um  pouco  incomodado  pelas barbaridades  que  lhe  havia  gritado.  A  culpa,  e  um  sentimento  de  pena  por  mim 

mesma, aumentaram a intensidade de meu choro. Ante isto ele sacudiu a cabeça num 

gesto de

 resignação,

 ainda

 que

 seus

 olhos

 brilhassem

 de

 gozo.

 Depois,

 num

 esforço

 evidentemente destinado a fazer‐me rir, confessou que, contudo, lhe custava acreditar que eu conhecesse um linguajar tão sujo, e menos ainda usá‐lo. 

—Bom —  cochichou —  suponho que  a  linguagem existe para  ser usada, e o 

linguajar sujo para quando as circunstâncias o requerem. Suas palavras não me causaram graça, e uma vez superado o ataque de auto‐

compaixão eu comecei, como era habitual em mim, a remoer sua afirmação de que a 

única coisa que eu possuía era o cabelo loiro e os olhos azuis. Devo ter revelado algo a 

Mariano Aureliano  acerca  de meus  sentimentos,  pois me  assegurou  haver  dito  isso 

somente para mortificar‐me, e que não havia nada de certo nisso. Sabia que mentia, e 

por um

 momento

 me

 considerei

 duplamente

 insultada,

 e depois

 espantada,

 ao

 dar

‐me

 conta  de  que minhas  defesas  estavam  destruídas.  Estava  de  acordo  com  ele. Havia 

estado  certo em  tudo o  que havia  dito. Com  um  só  golpe me havia  desmascarado, perfurado minha couraça. Ninguém, nem sequer meu pior inimigo,  já havia conseguido 

me  aplicar  um  golpe  tão  demolidor,  e  no  entanto,  pensasse  o  que  pensasse  de 

Mariano  Aureliano,  sabia  que  não  era  meu  inimigo.  Essa  descoberta  me  produziu 

vertigens, como se uma força  invisível estivesse pressionando algo em meu  interior a 

idéia de mim mesma. Algo que costumava fortificar‐me agora me esgotava. Mariano Aureliano me pegou pelo braço e me conduziu até a cafeteria. —Vamos  fazer uma  trégua — me sugeriu  jovialmente. —Preciso que me  faça 

um 

favor. 

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—Você não precisa nada mais do que pedir — respondi, e procurei  imitar seu 

tom. —Antes que você chegasse pedi um sanduíche na cafeteria, e praticamente se 

recusaram a me servir. Quando protestei o cozinheiro me dispensou. Isso acontece por eu ser índio — queixou‐se abatido. 

—Denuncie o cozinheiro

 para

 o gerente

 —

 sugeri

 indignada,

 meus

 próprios

 

problemas misteriosamente esquecidos. —Isso  não  me  ajudaria  em  nada  —  confessou  Mariano  Aureliano,  e  me 

assegurou que a única maneira em que eu podia ajudá‐lo era entrando na cafeteria para sentar‐me no balcão, pedir um bom almoço, e deixar cair nele uma mosca morta. 

—E  tacar  a  culpa  no  cozinheiro?  —  conclui  por  ele.  Tudo  me  parecia  tão 

absurdo que acabei rindo, mas ao perceber que falava a sério, prometi fazer o que me 

pedia. —Espere aqui — disse, e depois,  junto com o  índio corpulento (que ainda não 

me havia  sido apresentado)  se encaminharam até a camionete  roxa, estacionada na 

rua, para

 regressar

 quase

 de

 imediato.

 

—A propósito — disse Mariano Aureliano —, este é John. É um índio Yuma do 

Arizona. Estava por perguntar se John também era feiticeiro, mas Mariano Aureliano se 

adiantou a mim. —É o membro mais  jovem de nosso grupo. Com um risinho nervoso estendi minha mão: —Encantada em conhecer‐lhe. —Igualmente — retribuiu. Sua voz era profunda, ressonante, e seu aperto de 

mãos, cálido. —Espero que você e eu nunca nos agarremos a tapas. 

Apesar de

 não

 ser

 muito

 alto

 exalava

 a vitalidade

 e a força

 de

 um

 gigante.

 Até

 seus  grandes  dentes  brancos  pareciam  indestrutíveis.  Com  ânimo  brincalhão 

inspecionou meus bíceps e opinou: —Aposto que pode desmontar a um sujeito com um só soco bem dado. Antes  que  pudesse  desculpar‐me  por  meus  chutes  e  insultos,  Mariano 

Aureliano pôs uma pequena caixa em minhas mãos. —A mosca — explicou. —John sugeriu que use isto — e tirou uma peruca negra 

e enrolada de uma bolsa. —Não se preocupe, é nova em  folha — disse, enquanto a 

acomodava em minha  cabeça. Depois, afastando‐se um pouco para  inspecionar‐me, disse que  servia. —Não está mal. Não quero que  te  reconheçam — e  se ocupou de 

ocultar minha

 longa

 cabeleira

 loira.

 —Não há necessidade de disfarçar‐me — protestei. —Posso assegurar‐lhes que 

não  conheço  a  ninguém  em  Tucson.  —me  observei  no  espelho  retrovisor  de  meu 

carro. —Não posso entrar assim, pareço um  poodle. Mariano Aureliano me observava com um exasperante ar divertido, enquanto 

acomodava uns fios rebeldes. —Não  se esqueça que  tem que se sentar no balcão e gritar como uma  louca 

quando descobrir a mosca em sua comida. —Por quê? Olhou‐me como se eu fosse uma retardada. 

—Tem 

que 

chamar 

atenção 

humilhar 

ao 

cozinheiro. 

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A cafeteria estava repleta pelos clientes de primeira hora, mas não demorei em 

arranjar um  lugar no balcão. Uma cansada mas bem disposta garçonete pegou meu 

pedido. Semi‐oculto atrás da grade dos pedidos pude ver ao cozinheiro, mexicano ou 

norte‐americano de origem mexicana, que desempenhava  suas  tarefas  com  tal bom 

ânimo que  tive a  certeza de que era  inofensivo,  incapaz de malícia alguma; mas ao 

pensar no

 velho

 índio

 que

 me

 aguardava

 na

 praça

 de

 estacionamento,

 não

 hesitei

 em

 

esvaziar o conteúdo da caixa de  fósforos  sobre o hambúrguer perfeitamente assado 

que havia pedido, e o fiz com tal velocidade e dissimulação que nem sequer os homens sentados de cada  lado notaram minha ação. Meu grito de asco  foi autêntico, ao ver uma enorme barata morta em minha comida. 

—O que foi, querida? — perguntou a garçonete. —Como  o  cozinheiro  espera  que  eu  coma  isto?  —  me  queixei.  Não  foi 

necessário pretextar raiva. Estava indignada, não com o cozinheiro e sim com Mariano 

Aureliano. —Como pôde fazer isto comigo? — perguntei em voz alta. —Só  pode  ser  um  horrível  acidente  —  explicou  a  mulher  aos  dois  curiosos 

clientes que

 me

 ladeavam,

 ao

 mesmo

 tempo

 em

 que

 mostrava

 o prato

 ao

 cozinheiro.

 

—Fascinante!  —  opinou  o  cozinheiro  em  voz  alta,  e  coçando  a  testa inspecionou o prato. Não demonstrava preocupação alguma, e tive a vaga suspeita de 

que se ria de mim. —Esta barata ou caiu do teto ou… — e olhou minha cabeça como se 

fascinado — …de sua peruca. Antes  que  eu  pudesse  demonstrar‐lhe minha  indignação  e  colocá‐lo  em  seu 

lugar, me ofereceu a escolha de qualquer prato do menu. —Por conta da casa — prometeu. Pedi um bife e um caldo quente, o qual me  foi  trazido quase de  imediato, e 

quando estava a ponto de colocar os temperos em minha salada, o qual sempre deixo 

para o final,

 descobri

 uma

 aranha

 de

 respeitável

 tamanho

 emergindo

 por

 debaixo

 da

 folha. Foi tal minha surpresa ante a evidente provocação que nem sequer pude gritar, e ao levantar os olhos vi ao cozinheiro atrás da treliça, acenando‐me com a mão e com 

um amplo sorriso. Mariano Aureliano me aguardava, impaciente. —O que aconteceu? — perguntou. —Você  e  sua  asquerosa  barata! —  disse  incisiva.  —Não  aconteceu  nada. O 

cozinheiro não se  incomodou, e se divertiu muitíssimo, claro que às minhas custas. A 

única que se incomodou fui eu. A pedido  seu, dei a Mariano Aureliano um detalhado  informe do acontecido. 

Quanto mais eu falava mais parecia divertir‐se. Desconcertada por sua reação exigi: 

—O que

 é tão

 engraçado

 para

 você?

 Lutou  por  manter‐se  sério,  mas  seus  lábios  o  traíram,  e  o  riso  inicial  se 

converteu numa explosão de boas gargalhadas. —Não  pode  se  levar  tão  a  sério  —  me  repreendeu.  —É  uma  excelente 

ensonhadora, mas não é atriz. —Não estou atuando agora — retruquei defensivamente em voz chorosa. —Quero  dizer  que  contava  com  sua  habilidade  para  ser  convincente  — 

esclareceu. —Tinha que fazer o cozinheiro acreditar em algo que não era certo. Pensei que poderia fazê‐lo. 

—Como você se atreve a me criticar? — gritei. —Faço o papel de tonta em seu 

favor, 

tudo 

que 

se 

lhe 

ocorre 

dizer 

é 

que 

não 

sei 

atuar! 

— 

tirei 

peruca 

 joguei 

longe. —Por certo que agora estou com piolhos. 

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Ignorando meu rompante Mariano Aureliano observou que Florinda  já lhe havia 

antecipado que eu era incapaz de fingir. —Tínhamos  que  nos  assegurar  para  colocá‐la  na  repartição  apropriada  — 

acrescentou. — Os feiticeiros são ou ensonhadores ou espreitadores. —Do que está falando? Que bobagem é esta de ensonhadores e espreitadores? 

—Os ensonhadores

 se

 ocupam

 de

 ensonhos

 —

 explicou.

 —Obtêm

 seu

 poder

 e 

sua sabedoria dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com 

o mundo cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus semelhantes. 

—Evidentemente você não me conhece — disse de maneira depreciativa. —Eu 

sei lidar muito bem com as pessoas. —Isso não é verdade — me contradisse. —Você mesma  já disse que não sabia 

conversar.  É  uma  boa mentirosa, mas mente  só  para  conseguir  o  que  deseja.  Suas mentiras são demasiado específicas, por demais pessoais. E sabe por quê? — fez uma 

pausa, como para dar‐me tempo de responder, mas antes que eu pudesse pensar em 

algo, continuou:

 —Porque

 para

 você

 as

 coisas

 são

 brancas

 ou

 pretas,

 sem

 meios

 tons,

 

e não falo em termos de moral mas sim em termos de conveniência; sua conveniência, é  claro.  Uma  verdadeira  autoritária.  —  Mariano  e  John  trocaram  olhares,  depois ambos endireitaram  seus ombros,  fizeram  soar os  saltos de  seus  sapatos, e  fizeram 

algo para mim imperdoável. Estiraram os braços numa saudação fascista e gritaram: —Mein Führer! Quanto mais  riram mais  aumentava minha  fúria.  Senti o  sangue  zunindo em 

meus ouvidos, sufocando meu rosto, e desta vez não  fiz nada para acalmar‐me além 

de chutar meu carro e dar murros na capota. Em vez de consolar‐me, tal qual teriam 

feito meus pais ou meus amigos, os dois homens se dedicaram a rir como se eu  lhes 

estivesse proporcionando

 o espetáculo

 mais

 divertido

 imaginável.

 Sua

 indiferença,

 sua

 total  falta  de  preocupação  comigo  era  tão  chocante,  que  minha  ira  diminuía lentamente por  si mesma. Nunca havia  sido  ignorada a  tal ponto. Senti‐me perdida, sem  capacidade de manobra. Nunca  soube, até esse dia, que  se as  testemunhas de 

meus ataques de raiva se mostravam indiferentes, eu não sabia que caminho tomar. —Creio que agora está confundida. Não sabe o que fazer. — Mariano Aureliano 

disse  a  John,  e  o  rodeou  com  seu  braço  e  acrescentou  em  voz  baixa  mas  o 

suficientemente  alta  como  para que eu  escutasse: —Agora  vai  começar  a  chorar,  e 

quando  o  fizer,  chorará  até  que  a  consolemos.  Não  há  nada  mais  chato  que  uma putinha malcriada. 

Isso foi

 o auge.

 Como

 um

 touro

 ferido,

 baixei

 a cabeça

 e investi

 contra

 Mariano

 Aureliano. Tanto lhe surpreendeu meu furioso e inesperado ataque que quase perdeu 

o equilíbrio, o qual me deu tempo suficiente para cravar os dentes na parte carnosa de 

sua barriga. Seu grito foi uma mistura de dor e riso. John me pegou pela cintura para separar‐me,  mas  eu  não  afrouxei  a  mordida  enquanto  não  cedeu  minha  prótese 

dental. Havia perdido dois de meus dentes superiores  frontais aos  treze anos, numa briga entre os estudantes venezuelanos e alemães da Escola Alemã de Caracas. Os dois homens  riram  aos  gritos,  John  recostado  sobre  o  porta‐malas  de meu Volkswagen, segurando a barriga e golpeando o carro. 

—Tem um rombo entre os dentes como um  jogador de  futebol! — conseguiu 

articular 

entre 

alaridos. 

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Minha vergonha superou toda descrição. Tal era minha raiva que meus  joelhos se afrouxaram. Caí  ao chão como uma boneca de trapo e desmaiei. Quando recuperei os sentidos estava sentada dentro da camionete. Mariano Aureliano me pressionava as costas e, sorrindo, acariciava  repetidas vezes minha cabeça. Depois me abraçou. Me 

surpreendeu  minha  ausência  de  emoção;  não  me  sentia  enraivecida  nem 

envergonhada. Estava

 relaxada,

 em

 paz,

 dona

 de

 uma

 serenidade,

 de

 uma

 

tranquilidade nunca experimentada anteriormente. Pela primeira vez em minha vida 

me dei conta de que  jamais havia estado em paz comigo nem com os outros. —Gostamos muito de você — disse Mariano Aureliano —, mas precisa se curar 

desses ataques. Se não o  fizer eles  te matarão. Desta vez  foi culpa minha, e preciso 

pedir perdão por ela. Eu te provoquei deliberadamente. Me encontrava por demais tranquila para responder. Desci da camionete para 

estirar braços e pernas. Sentia  câimbras nas panturrilhas. Depois de um  tempo  lhes pedi desculpas a ambos, e lhes disse que meu caráter havia piorado desde que passei a 

tomar bebidas gasosas compulsivamente. 

—Então deixe

 de

 fazê

‐lo

 —

 sugeriu

 Mariano

 Aureliano.

 Depois

 mudou

 por

 

completo de assunto e seguiu como se nada houvesse acontecido. Disse estar muito 

contente por eu ter‐me unido a eles. —De verdade? — perguntei sem compreender. —Eu me uni a vocês? —Assim é. Um dia tudo terá sentido para você — e me assinalou um bando de 

corvos  que  nos  sobrevoavam.  —Os  corvos  são  um  bom  presságio.  Olhe  como  são 

lindos.  Como  uma  pintura  no  céu.  Vê‐los  agora  é  uma  promessa  de  que  nós  nos veremos de novo. 

Fiquei olhando aos pássaros até que desaparecessem. Quando me voltei para olhar a Mariano Aureliano  já não estava ali. A camionete se havia  ido sem sequer um 

ruído. 

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CAPÍTULO CINCO 

Sem  me  importar  com  as  aranhaças  me  lancei  atrás  do  cão  que,  a  grande 

velocidade, se enfiava por entre os arbustos de Artemísia. De súbito perdi de vista sua 

pelagem dourada, e  segui a pista de  seus  latidos, cada vez mais  fracos na distância. 

Intranquila, observei

 a grossa

 névoa

 avançando

 para

 mim,

 para

 cerrar

‐se

 em

 torno

 do

 

lugar onde me encontrava, e em poucos momentos o céu se apagou. A suavizada bola do sol declinante da  tarde era apenas avistada, e a magnífica vista da baía de Santa Mônica, agora mais imaginada que vista a partir das montanhas de Santa Susana, havia 

desaparecido com incrível rapidez. Não me preocupava a perda do cachorro, mas não 

tinha  idéia de  como  regressar  ao  apartado  local escolhido  por meus  amigos  para o 

piquenique,  nem  onde  se  encontrava  o  caminho  de  pedestres  que  tomei  para perseguir ao animal. 

Encaminhei  uns  passos  inseguros  na  mesma  direção  tomada  pelo  cachorro 

quando algo me deteve. Descendendo desde alguma abertura na névoa vi como um 

pequeno ponto

 luminoso

 caía

 até

 mim.

 Outro

 o seguiu,

 depois

 outro,

 semelhantes

 a 

pequenas  chamas  atadas  a  uma  linha;  tremiam  e  vibravam  no  ar  para  extinguir‐se 

 justo  antes  de me  alcançar,  como  tragadas pela névoa. Dado que desapareceram  a 

poucos metros diante de mim, me aproximei desejosa de examinar o extraordinário 

espetáculo, e perfurando a névoa com a vista, vi deslizarem‐se umas escuras  figuras humanas,  suspendidas  no  ar  a  curta  distância  do  sólo  como  se  caminhassem  nas pontas  dos  pés  sobre  as  nuvens. Uma  atrás  da  outra  se  agacharam  até  formar  um 

círculo. Ensaiei uns passos vacilantes para depois deter‐me quando a névoa ficou mais espessa e tragou as figuras. 

Permaneci imóvel, sem saber o que fazer, vítima de um estranho medo, não o 

conhecido, e sim

 um

 medo

 que

 afetava

 o corpo,

 o estômago,

 o

 tipo

 de

 medo

 que

 os

 animais devem experimentar. Não sei quanto  tempo permaneci ali. Quando a névoa levantou‐se o suficiente descobri à minha esquerda, a uns vinte e tantos metros, dois homens  sentados  no  chão  com  as  pernas  cruzadas. Cochichavam,  e  o  som  de  suas vozes  parecia  vir  de  todas  as  direções,  presas  em  pequenas  capas  de  névoa semelhantes a tufos de algodão. Não lhes entendi, mas uma ou outra palavra chegada aos meus ouvidos me produziu tranquilidade; falavam espanhol. 

—Estou perdida! — gritei. Ambos se viraram com lentidão, hesitantes e incrédulos, como quem vê a uma 

aparição. Olhei atrás de mim para ver se alguém que estivesse ali fosse o causador de 

sua dramática

 reação.

 Não

 havia

 ninguém.

 Sorrindo, um dos homens se  levantou. Estirou seus membros até fazer estalar suas articulações, e depois, com  rápidos passos percorreu a distância entre nós. Era  jovem,  de  baixa  estatura  e  forte  constituição:  ombros  poderosos  e  cabeça  grande. Seus olhos escuros irradiavam uma divertida curiosidade. Disse‐lhe que passeava com 

amigos e me havia perdido perseguindo seu cão. —Agora não sei como  juntar‐me de novo a eles. —Por aqui não  se pode  seguir — me  advertiu. —Estamos parados  sobre um 

penhasco — e com grande seriedade me pegou pelo braço e me conduziu à própria borda do precipício, distante não mais de uns  três metros de onde eu havia estado 

parada. 

—Este 

amigo 

— 

assinalou 

ao 

outro 

homem 

que 

havia 

permanecido 

sentado 

—  acabava de  contar‐me  que  abaixo há um  velho  cemitério  indígena,  quando  você 

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apareceu e quase nos matou de susto. Você é sueca? — perguntou, estudando meu 

rosto e minha longa trança loira. Ainda confusa com o que  foi dito pelo  jovem acerca do cemitério,  fixei minha 

vista  na  névoa.  Sob  circunstâncias  normais,  como  estudante  de  antropologia,  me 

haveria entusiasmado a  idéia do cemitério  indígena, mas nesse momento pouco me 

importava o que

 havia

 abaixo

 nessa

 cavidade

 enevoada.

 A

 única

 coisa

 em

 que

 

conseguia  pensar  era  que,  de  não  me  haver  distraído  essas  luzes,  eu  poderia  ter terminado enterrada ali. 

—Você é sueca? — insistiu. —Sim — menti,  e  de  imediato  o  lamentei, mas  não  podia  pensar  em  como 

desdizer‐me sem perder prestígio. —Fala  castelhano  com  perfeição  —  comentou.  —Os  suecos  possuem  uma 

maravilhosa facilidade para os idiomas. Apesar  de  sentir‐me  muito  culpada,  não  pude  fazer  nada  menos  que 

acrescentar  que,  mais  que  um  dom,  era  uma  necessidade  para  os  escandinavos 

aprender vários

 idiomas,

 se

 desejavam

 comunicar

‐se

 com

 o resto

 do

 mundo.

 

—Ademais — confessei —, me criei na América do Sul. Por  alguma estranha  razão esta  informação pareceu desorientá‐lo.  Sacudiu  a 

cabeça, como para exteriorizar sua dúvida; depois permaneceu um  longo  tempo em 

silêncio, absorto em seus pensamentos. Logo após, como se houvesse chegado a uma decisão,  me  pegou  pela  mão  e  me  levou  junto  ao  outro  homem  que  permanecia sentado. 

Não  era minha  intenção  entregar‐me  à  sociabilidade. Queria  juntar‐me  com 

meus amigos o mais rápido possível, mas o  jovem me deixou tão envaidecida, que em 

lugar  de  pedir‐lhe  que  me  conduzisse  ao  caminho  de  pedestres,  lhe  ofereci  uma 

detalhada versão

 das

 luzes

 e das

 figuras

 humanas

 que

 acabara

 de

 ver.

 —Que raro que o espírito tenha  lhe ajudado — murmurou o homem sentado 

como  para  seus  botões,  franzindo  o  cenho,  mas  era  óbvio  que  se  dirigia  a  seu 

companheiro,  que  respondeu  com  outro  ininteligível murmúrio,  e  trocaram  olhares que intensificaram minha inquietude. 

—Perdão?  —  disse,  dirigindo‐me  ao  homem  sentado.  —Não  entendi  o  que 

disse. Olhou para mim de modo agressivo. —Foi  advertida  do  perigo  —  anunciou  em  voz  grave  e  ressonante.  —Os 

emissários da morte vieram em seu auxílio. 

—Quem? —

 me

 senti

 obrigada

 a perguntar,

 apesar

 de

 ter

 lhe

 entendido

 perfeitamente bem. Olhei‐o de perto, e por um momento  tive a certeza de que o  conhecia bem, 

mas ao completar meu estudo cheguei à conclusão de não tê‐lo visto  jamais, apesar de 

não  poder  descartar  a  impressão  inicial. Não  era  tão  jovem  como o  outro,  embora tampouco velho, e sem dúvida alguma era índio, de tez escura, cabelo negro e liso da 

grossura de uma escova. Mas não era seu aspecto exterior o que o fazia familiar. Era mal humorado como só eu podia ser. Pelo visto meu exame o incomodou, pois ficando 

de pé abruptamente, anunciou que me levaria para  junto de meus amigos. —Siga‐me,  e  não  se  atreva  a  cair.  Cairia  encima  de  mim  e  ambos  nos 

mataríamos 

— 

disse 

em 

tom 

pouco 

amável, 

antes 

de 

dar‐

me 

oportunidade 

de 

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responder que não era uma tonta, se adiantou por um pronunciado declive na direção 

oposta ao penhasco. —Sabe aonde vai? — gritei‐lhe, revelando na voz meu nervosismo. Não podia orientar‐me (nunca fui boa para  isso), mas não achei estar subindo 

um monte  quando  persegui  ao  cão. O  homem  se  virou,  o  rosto  iluminado  por  um 

sorriso, apesar

 de

 que

 seus

 olhos

 não

 sorriram.

 Me

 lançou

 um

 olhar

 pétreo.

 

—Te levarei para com seus amigos — foi tudo o que disse. Não me  agradava o  sujeito, mas  sem dúvida  acreditava  nele. Não  era muito 

alto,  talvez  um  metro  e  setenta,  e  de  ossos  pequenos,  apesar  do  qual  seu  corpo 

impressionava por ser maciço e compacto. Se movia com muita confiança na névoa, pisando com graça e facilidade naquilo que eu acreditava ser uma baixada vertical. 

O  homem mais  jovem  desceu  atrás  de mim,  ajudando‐me  em  cada  uma  de 

minhas  dificuldades.  Tinha  as  polidas maneiras  de  um  velho  cavalheiro.  Suas mãos eram suaves ao  tato, porém  fortes, bonitas e de  tremendo poder. Várias vezes, com 

grande  facilidade, alçou‐me por cima de sua cabeça,  talvez não uma grande  façanha 

dado meu

 peso

 escasso,

 mas

 impressionante

 posto

 que

 estávamos

 parados

 sobre

 

beiradas de argila, e ele só era mais alto que eu por quatro ou cinco centímetros. —Precisa  agradecer‐lhes,  aos  emissários  da  morte  —  ordenou  o  que  havia 

encabeçado nossa travessia, nem bem alcançamos terra plana. —Sim?  —  perguntei,  zombando;  a  mera  idéia  me  parecia  ridícula.  —Devo 

ajoelhar‐me? — perguntei entre risadas. Ao homem não  lhe pareceu  tão gracioso. Com os braços na cintura me olhou 

nos olhos sem sorrir. Havia um quê ameaçante em seu porte, em seus escuros olhos inclinados, que olhavam sob sobrancelhas hirsutas que se uniam sobre a ponte de seu 

nariz esculpido. De improviso me deu as costas e se afastou, para sentar‐se sobre uma 

rocha próxima.

 —Não podemos nos ir daqui até que você agradeça aos emissários da morte — 

repetiu. De  repente  me  preocupou  a  comprovação  de  estar  só  num  lugar  perdido, 

prisioneira da névoa e  junto  com dois homens estranhos, um deles  talvez perigoso, que não  se moveria do  lugar  se para  tanto eu não  cumprisse  sua  ridícula exigência, mas, que surpresa… em  lugar do temor, senti vontade de rir. O sorriso compreensivo 

do homem  jovem revelava às claras que sabia como eu me sentia, o qual  lhe causava grande prazer. 

—Não  precisa  chegar  ao  extremo  de  ajoelhar‐se  —  disse,  depois  do  qual, 

incapaz de

 controlar

 seu

 regozijo,

 soltou

 uma

 risada

 alegre

 que

 soava

 como

 se

 pequenos  seixos  caíssem  em  torno.  Seus  dentes  eram  imaculadamente  brancos  e 

paralelos, como os de uma criança, e seu rosto por sua vez doce e travesso. —Basta 

apenas dizer obrigado — aconselhou. —Diga‐o. O que pode perder com isso? —Me sinto boba — confessei, procurando de  forma deliberada ganhá‐lo para 

meu  lado. —Não  o  farei. —  depois,  entre  risos,  repeti: —Eu  sinto muito, mas  não 

posso  fazê‐lo. Sou assim. Enquanto alguém me  insiste que  faça algo que não quero 

fazer, me ponho tensa e irritada. Com a vista fixa no chão, a testa descansando sobre os nós dos dedos, moveu a 

cabeça em sinal de estar ponderando o assunto. 

—É 

um 

fato 

que 

algo 

impediu 

que 

você 

se 

machucasse, 

talvez 

até 

que 

se 

matasse. Algo inexplicável. 

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Estive de acordo, e ainda admiti que tudo me parecia muito estranho. Inclusive 

tentei  exibir‐me  falando  sobre  um  fato  fortuito  que,  por  coincidência,  acontece  no 

lugar certo e na hora certa. —Tudo  isso está muito bem, mas não explica seu caso particular — e me deu 

um  carinhoso  golpe  na  testa.  —Você  recebeu  um  presente,  chame  ao  doador  de 

coincidência, circunstância,

 cadeia

 de

 acontecimentos

 ou

 o que

 seja,

 mas

 o fato

 é que

 

você não foi ferida e nem sofreu dor alguma. —Talvez tenha razão — concedi. —Deveria mostrar‐me mais agradecida. —Não mais  agradecida, mais  flexível, mais  fluida — opinou  rindo, e  vendo  a 

raiva que se gestava em mim, abriu bem os braços como para abarcar os arbustos de 

Artemísia que nos rodeavam.  —Meu amigo acredita que o que você viu tem relação 

com o cemitério indígena que por certo está aqui. —Não vejo nenhum cemitério — respondi na defensiva. —É difícil de reconhecer, e não é a névoa o que  impede de vê‐lo. Mesmo em 

dias de sol a única coisa que se vê são os arbustos. — se ajoelhou, e me olhou com um 

sorriso. —Não

 obstante,

 para

 o olho

 conhecedor,

 se

 trata

 de

 um

 grupo

 de

 arbustos

 de

 

forma  insólita.  —  se  deitou  no  chão,  sobre  o  estômago,  a  cabeça  virada  para  a 

esquerda, indicando‐me para fazer o mesmo. —Esta é a única forma de vê‐lo com claridade — explicou.—Eu não o saberia a 

não ser por meu amigo, que conhece todo tipo de coisas interessantes. Inicialmente  não  vi  nada;  depois,  uma  por  uma,  descobri  as  rochas  entre  o 

espesso mato.  Escuras  e  brilhantes,  como  se  a  névoa  as  houvesse  lavado,  estavam 

reunidas em círculo, e mais pareciam criaturas que pedras, e quando me dei conta de 

que  eram  idênticas  às  figuras  humanas  vistas  entre  a  névoa,  precisei  reprimir meu 

grito. 

—Agora estou

 assustada

 de

 verdade

 —

 murmurei.

 —Eu

 lhes

 disse

 que

 vi

 figuras

 humanas sentadas em círculo — e tratei de procurar em seu rosto repúdio ou  ironia, antes de acrescentar: —É demasiado inaudito, mas quase  juraria que essas rochas são 

as pessoas que vi. —Eu sei disso — falou em voz tão baixa que precisei me aproximar. —Tudo é 

muito misterioso. Meu amigo, que como você  já terá notado, é índio, disse que certos cemitérios  indígenas  têm  um  círculo  ou  uma  fila  de  pedras.  Essas  pedras  são  os emissários da morte — me observou com detenção, e depois, como para assegurar‐se 

de  minha  total  atenção,  confessou:  —Tome  nota.  São  os  emissários,  não  a 

representação dos emissários. 

Fixei minha

 vista

 no

 homem,

 não

 só

 porque

 não

 sabia

 bem

 como

 interpretar

 suas palavras, e  sim pelo  fato de que esse  rosto mudava à medida que ele  falava e 

sorria. Porém não eram os traços os que mudavam, era o rosto que um minuto era o 

de um menino de seis anos, depois de um adolescente de dezessete, e também o de 

um velho. —São crenças estranhas — continuou, indiferente a meu olhar inquisidor. —Eu 

não  lhes  dei  maior  crédito  até  o  momento  em  que  você  apareceu  de  improviso, quando meu amigo me  falava dos emissários da morte e  justamente  vem  você nos dizendo que acabara de vê‐los. Se eu  fosse dado à suspeitas — e seu  tom se  tornou 

subitamente ameaçador — diria que você e ele estão confabulados. 

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—Não o conheço! — me defendi, a simples suspeita me indignava. Depois, em 

voz baixa, para que só ele pudesse me escutar, acrescentei: —Para ser‐lhe franca, seu 

amigo me dá medo. —  Se  eu  fosse  dado  à  suspeitas  —  repetiu  o   jovem,  ignorando  minha 

interrupção —,  acreditaria  que  vocês  dois  estão  tratando  de  assustar‐me. Mas  sou 

confiante, de

 modo

 que

 o único

 que

 posso

 fazer

 é suspender

 todo

  juízo

 e desejar

 saber

 

mais sobre você. —Eu não quero que saiba nada de mim — disse com irritação — e de qualquer 

 jeito  não  sei  de  que merda  você  fala. —  olhei‐o  furiosa. Não  simpatizava  com  seu 

dilema, pois também ele me estava inspirando medo. —Está falando de agradecer aos emissários da morte — disse o homem maior 

que havia chegado onde eu estava, e me olhava de maneira estranha. Desejosa de abandonar o  lugar e a esses dois loucos, fiquei de pé e gritei meu 

agradecimento. Minha voz rebateu no mato rasteiro, que parecia ter se convertido em 

rocha, e a escutei até que o eco se extinguiu. Depois, como possuída, e fazendo algo 

que meu

 bom

  juízo

 censuraria,

 gritei

 meu

 agradecimento

 uma

 e outra

 vez.

 

—Estou  certo  de  que  os  emissários  estão  mais  que  satisfeitos  —  opinou  o 

 jovem,  golpeando  minha  panturrilha  e  deixando‐se  cair  ao  chão  para  rir  às gargalhadas. Eu não duvidei por um instante que, apesar da leviandade de meu gesto, havia  de  fato  agradecido  aos  emissários  da  morte  e,  curiosamente,  me  sentia protegida por eles. 

—Quem são vocês? — perguntei, dirigindo‐me ao mais  jovem dos dois homens. Num salto ágil se pôs de pé. —Eu sou  José Luis Cortez, meus amigos me chamam  Joe — e me estendeu a 

mão —, e este aqui, é meu amigo Gumersindo Evans Pritchard. 

Temendo soltar

 uma

 risada

 mordi

 os

 lábios

 e comecei

 a coçar

 o  joelho.

 —Há  de  ser  uma  pulga  —  disse‐lhes,  olhando  de  um  para  outro.  Ambos devolveram meu olhar, desafiando‐me  a  zombar do nome, e  tal era  a  seriedade de 

suas  expressões  que  meu  riso  se  desvaneceu.  Gumersindo  Evans‐Pritchard  pegou 

minha mão e a sacudiu com vigor. —Encantado em conhecê‐la — disse em perfeito inglês de classe alta britânica. 

—Por  um  momento  pensei  que  você  era  uma  dessas  mulherzinhas  estúpidas  e 

presunçosas sem outra graça que não a boceta. Em uníssono meus olhos e minha boca se dilataram. Apesar de intuir que suas 

palavras mais continham um elogio que um  insulto, meu choque  foi tão  intenso que 

fiquei como

 paralisada,

 apesar

 de

 ser

 capaz

 de

 competir

 com

 quem

 fosse

 no

 uso

 de

 linguajar sujo, mas a palavra boceta (coño) me soou tão espantosamente ofensiva que 

fiquei privada da fala. Joe veio em meu auxílio. Desculpou ao seu amigo com a explicação de que era 

um iconoclasta social extremado, e antes de permitir‐me a oportunidade de dizer que 

Gumersindo havia feito em pedacinhos meu sentido de decência e de boas maneiras, acrescentou  que  a  compulsão  de  Gumersindo  a  ser  iconoclasta  se  devia  a  ser  seu 

sobrenome Evans‐Pritchard. —Não deveria surpreender a ninguém. Seu pai é um  inglês que abandonou à 

sua mãe, uma índia de Jalisco, antes de Gumersindo nascer. 

—Evans‐

Pritchard? 

— 

repeti 

cautelosamente, 

depois 

perguntei 

Gumersindo 

se era correto permitir a Joe revelar a uma estranha seus segredos de família. 

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  53

—Não há  segredos de  família —  respondeu  Joe por seu amigo — e sabe por quê? — e  fixou em mim  seus olhos escuros e brilhantes, que não eram negros nem 

castanhos, e sim da cor de cerejas maduras. Sacudi a cabeça em gesto de desamparo, minha  atenção  presa  ao  seu  olhar  insistente,  onde  um  olho  parecia  rir  de  mim, enquanto o outro se mantinha sério, agourento e ameaçador. 

—Porque o que

 você

 chama

 segredos

 de

 família

 constitui

 a fonte

 de

 energia

 de

 

Gumersindo. Sabia que seu pai é agora um famoso antropólogo inglês? Gumersindo o 

odeia. Com um  gesto quase  imperceptível de  cabeça,  como orgulhoso de  seu ódio, 

Gumersindo aprovou. Não podia acreditar em minha boa sorte. Estavam se referindo a 

E. E. Evans‐Pritchard, um dos antropólogos sociais mais  importantes do  século XX, e 

era  precisamente  nesse  semestre  na  universidade  que  eu  estava  preparando  um 

trabalho  sobre  antropologia  social,  e  sobre os mais  eminentes  investigadores  nesse 

campo. Que  sorte  a minha! Precisei  reprimir a  tentação de gritar e  saltar de alegria! 

Descobrir semelhante

 segredo:

 um

 grande

 antropólogo

 que

 seduz

 e abandona

 a uma

 

mulher  índia. Pouco  importava que Evans‐Pritchard não  tenha  trabalhado no México 

(era mais conhecido por suas  investigações na África), pois estava certa de descobrir que durante alguma de suas visitas aos Estados Unidos havia estado no México. Tinha a prova diante de meus olhos. 

Com  um  sorriso  suave  nos  lábios  contemplei  a  Gumersindo,  e  me  fiz  uma 

secreta promessa de não revelar nada sem sua permissão. Bom, talvez eu dissesse algo 

a algum dos professores: depois de  tudo, uma pessoa não  topava todos os dias com 

este  tipo  de  informação.  As  possibilidades  giravam  em  minha  mente.  Talvez  uma 

conversa  íntima  com  alguns  estudantes  selecionados  na  casa  de  um  de  meus 

professores. Até

 selecionei

 o professor,

 alguém

 que

 não

 me

 caía

 muito

 bem,

 e que

 tinha  uma  maneira  um  tanto  infantil  de  querer  impressionar  a  seus  alunos.  Nos encontrávamos de  tanto em  tanto em  sua  casa, onde  cada  vez descobria  sobre  sua escrivaninha, como deixada ao acaso, uma nota dirigida a ele pelo famoso antropólogo 

Claude Lévi‐Strauss. —Não  nos  disse  seu  nome  —  recordou  Joe,  puxando‐me  suavemente  pela 

manga. —Carmen Gebauer — respondi sem titubear, dando o nome de uma amiga de 

minha infância, e para abrandar minha culpa e incômodo por ter mentido, perguntei a 

Joe  se  era  da  Argentina,  e  ao  observar  sua  expressão  confusa  me  apressei  a 

acrescentar que

 seu

 sotaque

 era

 definitivamente

 argentino,

 ainda

 que

 não

 parecesse

 um argentino, completei. —Sou mexicano — disse —,  e  julgando  por  seu  sotaque,  você  foi  criada  em 

Cuba ou na Venezuela. Não quis seguir essa linha de conversação, de modo que mudei de assunto com 

rapidez. —Sabe  como  voltar  ao  caminho  de  pedestres?  —  perguntei,  subitamente 

consciente de que meus amigos podiam estar preocupados por mim. —Eu  não  —  confessou  Joe  com  candura  infantil  —,  mas  meu  amigo 

Gumersindo Evans‐Pritchard sim. 

Gumersindo 

nos 

guiou 

através 

do 

chaparral, 

por 

uma 

estreita 

trilha 

do 

outro 

lado da montanha, e não demoramos muito em ouvir as vozes de meus amigos e ao 

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latido  de  seu  cachorro.  Experimentei  um  intenso  alívio, mas  ao mesmo  tempo me 

desiludiu e desagradou o fato de que nenhum dos dois mostrava‐se interessado em se 

comunicar de novo comigo. —Bom,  é  certo  que  voltaremos  a  nos  ver  —  se  despediu  Joe 

desinteressadamente,  e  Gumersindo  Evans‐Pritchard  me  surpreendeu  beijando 

galantemente minha

 mão,

 e o fez

 de

 maneira

 tão

 natural

 e graciosa

 que

 não

 me

 

ocorreu rir. —Está  em  seus  genes  —  explicou  Joe.  —Apesar  de  ser  só  meio  inglês,  seu 

refinamento é impecável. É um perfeito galã! Sem mais delongas ambos desapareceram na névoa, e duvidei muito se os veria 

de novo. De repente me senti muito culpada por haver mentido sobre meu nome, e 

estive a ponto de correr atrás deles, mas o cachorro de meus amigos me derrubou no 

chão ao tratar de saltar para lamber‐me a cara. 

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CAPÍTULO SEIS 

Confusa,  examinei  ao  orador  convidado.  Ajeitado  em  seu  terno,  recém 

barbeado  e  com  seu  cabelo  curto  e  enrolado,  Joe  Cortez  parecia  alguém  de  outra 

época  entre  os  estudantes  de  cabelo  longo,  barbudos,  carregados  de  enfeites  e 

vestidos com

 negligência,

 que

 lotavam

 um

 dos

 grandes

 salões

‐auditório

 da

 

Universidade da Califórnia, em Los Ângeles. Acomodei‐me no assento vazio da última fila,  que me  havia  reservado  a  amiga  com  quem  fiz  o  passeio  pelas montanhas  de 

Santa Susana. —Quem é? — perguntei. Minha  amiga  sacudiu  a  cabeça,  impaciente  e  incrédula,  e  rabiscou  Carlos 

Castaneda num pedaço de papel. —E quem diabos é Carlos Castaneda? —Te dei seu livro — respondeu, e depois acrescentou que era um antropólogo 

muito conhecido, que havia levado à cabo extensas investigações no México. 

Estava a ponto

 de

 confiar

 à minha

 amiga

 que

 o orador

 era

 a mesma

 pessoa

 que

 

conheci nas montanhas no dia em que me perdi, mas por uma razão muito boa não o 

fiz.  Esse  homem  era  responsável  pela  quase  ruptura  de  nossa  amizade,  a  qual  eu 

valorizava sobremaneira. Minha amiga insistia obstinadamente em catalogar a história do filho de Evans‐Pritchard como uma conversa fiada. Eu insistia que nenhum dos dois homens  ganharia  nada  em  mentir.  Sabia  que  de  maneira  ingênua  haviam  dito  a 

verdade,  porém minha  amiga,  indignada, me  rotulou  de  tonta  e  de  crédula.  Já  que 

nenhuma das duas estava disposta a ceder, a discussão se fez agitada, e o marido de 

minha amiga, numa  tentativa para acalmar‐nos, havia sugerido que  talvez eu dizia a 

verdade, e minha amiga,  irritada ante essa falta de solidariedade,  lhe havia ordenado 

aos gritos

 que

 se

 calasse.

 Fizemos  a  viagem  de  regresso  num  silêncio  hostil,  a  amizade  sob  tensão,  e 

precisamos  de  duas  semanas  para  restabelecer  a  cordialidade.  Entretanto  eu  fiz averiguações entre várias pessoas a respeito do filho de Evans‐Pritchard, pessoas mais versadas em antropólogos e antropologia que minha amiga e eu, e folga dizer que me 

fizeram  cair  como  uma  idiota.  Obstinada,  persisti  em  minha  versão  de  que  só  eu 

conhecia a verdade. Me haviam criado para ser prática: se alguém mentia, devia ser para obter uma vantagem de outro modo inalcançável, e não chegava a entrever quê 

vantagem pretendiam obter esses homens com a sua. Prestei pouca atenção à conferência de Carlos Castaneda, demasiado absorta 

em tratar

 de

 sondar

 sua

 razão

 para

 mentir

‐me

 sobre

 seu

 nome.

 Dada

 minha

 tendência

 a  deduzir  os  motivos  alheios  a  partir  de  uma  simples  dedução  ou  observação,  se 

mostrava muito problemático neste caso dar com uma pista satisfatória, mas depois lembrei que também eu havia dado um nome falso, e não podia explicar‐me a razão. 

Após  uma  longa  deliberação  mental  decidi  que  havia  mentido  porque 

automaticamente não havia confiado nele. Eu o achei demasiado seguro de si mesmo, demasiado presunçoso para  inspirar‐me  confiança. Minha mãe me havia ensinado a 

desconfiar dos homens latinos, em especial se não se mostravam humildes. Costumava dizer que os machos latinos eram como os galos de rinha, interessados unicamente em 

brigar, comer e  fazer amor, nessa ordem, e  suponho que acreditei nela  sem prestar 

atenção 

ao 

assunto. 

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Por  fim olhei para Carlos Castaneda. Suas palavras não tinham para mim nem 

pé nem cabeça, mas me fascinaram seus movimentos. Parecia falar com todo o corpo, e suas palavras, mais que sair de sua boca, davam a impressão de surgir de suas mãos, as quais movia  com a graça e a habilidade de um mágico. Procurei‐o ao  terminar a 

conferência.  Rodeado  por  estudantes,  se  mostrava  tão  solícito  e  amável  com  as 

mulheres que

 automaticamente

 o depreciei.

 

—Me  mentiu  acerca  de  seu  nome,  Joe  Cortez  —  disse‐lhe  em  castelhano, apontando‐lhe um dedo acusador. 

Segurando o estômago com as mãos, como se houvesse recebido um golpe, me 

olhou  com  a  mesma  expressão  vacilante  e  incrédula  que  mostrou  quando  pela 

primeira vez nos vimos na montanha. —Também  é mentira  que  seu  amigo Gumersindo  é  filho  de  Evans‐Pritchard, 

não é? — emendei antes que conseguisse repor‐se de sua surpresa. Com um gesto de  súplica me pediu para não  continuar, mas não parecia em 

absoluto  envergonhado.  Havia  em  seus  olhos  tal  olhar  de  surpresa  que  minha  ira 

 justificada se

 desvaneceu.

 Com

 suavidade

 me

 pegou

 por

 uma

 mão,

 como

 se

 temendo

 

que o abandonasse. Quando terminou com os estudantes me conduziu em silêncio até 

um banco afastado, sombreado por um gigantesco pinheiro. —Tudo isto é tão surpreendente que me deixou sem fala — disse em inglês ao 

sentarmos, olhando‐me como se ainda não pudesse crer que me tinha sentada ao seu 

lado. —Não pensei que lhe encontraria de novo — disse em tom meditativo.  —Depois que você se foi, meu amigo, cujo nome em tudo isto é Nestor, e eu falamos muito de 

você, e chegamos à conclusão de que era uma semi‐aparição. — Mudou de repente ao 

espanhol e confessou que inclusive haviam regressado ao lugar onde me deixaram na esperança de encontrar‐me. 

—Por que

 queria

 encontrar

‐me?

 —

 perguntei

 em

 inglês

 (confiada

 em

 que

 responderia nesse idioma) que o havia feito porque gostava de mim. Em castelhano não há modo de dizer que uma pessoa simplesmente “gosta” de 

outra,  a  resposta  precisa  ser  mais  enfeitada  e  ao  mesmo  tempo  mais  precisa.  Em 

castelhano uma pessoa pode  arriscar um manso me  caes bien, ou despertar paixão 

total  com  me  gustas.  Minha  inocente  pergunta  o  mergulhou  num  longo  silêncio. Parecia estar debatendo consigo entre falar ou não. Por fim disse que o encontrar‐me 

na  névoa  naquela  tarde  o  havia  transtornado,  e  seu  rosto  revelava  isso  ao  dizê‐lo, assim como  sua voz, quando acrescentou que me encontrar na  sala de conferências havia representado a culminação. 

—Por quê?

 —

 perguntei,

 aguçada

 em

 minha

 vaidade,

 mas

 de

 imediato

 lamentei

 de  ter  perguntado,  pois  estava  convencida  de  que  confessaria  estar  perdidamente apaixonado de mim, e isso me perturbaria por não saber o que responder. 

—É uma  longa história —  respondeu, ainda pensativo. Fez um  trejeito com a 

boca. Parecia estar falando sozinho, ensaiando a próxima coisa a dizer. Eu reconhecia os sinais do sujeito a ponto de proferir: —Não li nada seu — disse, visando desviar do tema. —O que você faz? —Escrevi um par de livros sobre a feitiçaria. —Que tipo de feitiçaria? Vudú, espiritualismo ou o que? —Sabe algo  sobre  feitiçaria? — perguntou,  com uma nota de expectativa na 

voz. 

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—É  claro…  cresci  com  ela.  Passei  bastante  tempo  na  região  costeira  da 

Venezuela, área famosa por seus feiticeiros. Eu passava a maior parte de meus verões com uma família de bruxos. 

—Bruxos? —Sim —  respondi,  contente  com  sua  reação. —Eu  tinha  uma  babá  que  era 

bruxa, uma

 negra

 de

 Puerto

 Cabello

 que

 me

 cuidou

 até

 a adolescência.

 Meus

 dois

 pais

 

trabalhavam,  e  quando  eu  era  menina  me  deixavam  aos  seus  cuidados.  Ela  me 

manejava melhor que a qualquer um dos dois, me deixava  fazer o que queria. Meus pais,  naturalmente,  deixavam  que  ela me  levasse  por onde  desejasse,  e  durante  as férias escolares ela me  levava para visitar sua  família, não sua família biológica e sim 

sua  família de bruxos. Não me permitiam  participar de  seus  rituais nem  sessões de 

transe, contudo ainda assim consegui ver bastante. Joe me olhou com curiosidade, como se não me acreditasse. Depois perguntou 

sorridente: —O que é que fazia dela uma bruxa? 

—Todo tipo

 de

 coisas.

 Matava

 galinhas

 e as

 oferecia

 aos

 deuses

 em

 troca

 de

 

favores. Ela e seus companheiros bruxos, homens e mulheres, dançavam até cair em 

transe, e ela recitava encantações secretas que tinham o poder de curar a seus amigos e  de  fazer  danos  a  seus  inimigos.  Sua  especialidade  eram  as  poções  de  amor.  As preparava  com  todo  tipo  de  plantas medicinais  e  resíduos  humanos,  como  sangue 

menstrual,  restos  de  unhas  e  cabelo,  em  especial  pelos  púbicos.  Confeccionava amuletos de boa sorte para o  jogo e para as coisas de amor. 

—E seus pais permitiam isso? —Em casa ninguém sabia disso, exceto é claro minha babá, seus clientes e eu. 

Fazia  visitas  a  domicílio  como qualquer médico, mas em  casa  se  limitava  a  acender 

velas no

 toalete

 dos

 fundos

 quando

 eu

 tinha

 pesadelos,

 e dado

 que

 parecia

 surtir

 efeito e não havia perigo de incêndio, por causa dos azulejos, minha mãe lhe concedia ampla liberdade para fazê‐lo. 

Subitamente Joe ficou de pé e começou a rir. —O que  tem de engraçado? — pensei que  talvez  suspeitasse que eu o havia 

inventado. —Te asseguro que é verdade. —Você afirma algo e, enquanto lhe diz respeito, isso se converte em verdade — 

e a expressão de seu rosto era serena. —Mas é verdade — insisti, certa de que se referia à minha babá. —Eu  vejo através das pessoas —  assegurou  com  calma. —Por exemplo,  vejo 

que está

 convencida

 de

 que

 lhe

 vou

 declarar

 meu

 amor.

 Se

 convenceu

 disso

 e isso

 agora é a verdade. É disso que falo. Desejei dizer algo, mas a indignação me deixou sem ar. Gostaria de ter fugido, 

mas  acabaria  sendo  muito  humilhante.  Franziu  o  cenho,  e  tive  a  desagradável impressão de que conhecia meus sentimentos. Enrubesci, e  tremi com reprimida  ira. Contudo,  em  pouco  tempo,  me  senti  extraordinariamente  calma,  ainda  que  não 

devido a um esforço consciente de minha parte. No entanto tive a clara sensação de 

que algo em mim havia mudado, e a vaga reminiscência de ter atravessado alguma vez uma experiência semelhante, ainda que minha memória falhasse tão logo entrava em 

ação. 

—O 

que 

está 

me 

fazendo? 

— 

murmurei. 

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  58

—Se dá o caso de que posso ver através das pessoas. Não sempre, e por certo 

não  com  todas,  somente  com  aquelas  com  as quais  estou  intimamente  ligado. Não 

entendo por que acontece contigo. Sua sinceridade era evidente. Parecia muito mais confundido que eu. Sentou‐se 

de novo e se aproximou de mim. Permanecemos um período em  total silêncio, e  foi 

uma experiência

 prazerosa

 o poder

 abandonar

 todo

 esforço

 por

 conversar,

 e não

 

sentir que eu era estúpida. Olhei o céu,  limpo de nuvens e  transparente como vidro 

azul. Uma  suave  brisa  soprava  entre  os  pinheiros,  e  suas  agulhas  caiam  sobre  nós como  uma  chuva mansa. Depois  a  brisa  se  tornou  vento,  e  as  folhas  caídas  de  um 

sicômoro próximo se enredemoinharam ao redor com um som suave e rítmico, e em 

uma de suas rajadas o vento as elevou até as alturas. —Essa  foi  uma  bonita  demonstração  do  espírito — murmurou —  e  foi  para 

você: as  folhas girando ao vento bem diante de nós. O  feiticeiro com quem trabalho 

diria  que  esse  é  um  presságio.  Algo  lhe  assinalou,  para  que  eu  te  visse  no  exato 

momento em que pensava que seria melhor que me  fosse embora. Agora não posso 

fazê‐lo.

 

Pensando  em  nada  mais  que  em  suas  últimas  palavras  me  senti inexplicavelmente feliz. Não uma felicidade triunfalista, do tipo que sentimos quando 

nos  sorri  um  êxito,  ou melhor,  era  uma  sensação  de  profundo  bem‐estar  que  não 

perdurou. Meu ser impulsivo tomou conta de súbito e exigiu que me desfizesse desses pensamentos e sentimentos. Eu não tinha por que estar ali. Havia faltado a uma aula, ao almoço com meus verdadeiros amigos e à minha diária cota de natação no ginásio 

feminino. —Talvez seja melhor que eu me vá — disse. A intenção foi de aparentar alívio, 

mas quando a anunciei soou como se sentisse pena de mim mesma, o qual, de certo 

modo, era

 verdade.

 Em

 lugar

 de

 ir

‐me

 lhe

 perguntei

 da

 maneira

 mais

 casual

 possível

 se

 sempre havia podido ver através das pessoas. —Não,  não  sempre  —  e  seu  tom  carinhoso  denunciou  com  clareza  que 

percebia minha inquietude interna. —O velho feiticeiro com quem trabalho o ensinou‐

me recentemente. —Acha que ele poderia ensiná‐lo a mim? —Sim,  acho  que  sim.  Se  sentir  por  ti  o  mesmo  que  eu  sinto,  ele  fará  —  e 

pareceu assombrado por suas próprias palavras. —Conhecia algo de feitiçaria antes? — perguntei com timidez, emergindo com 

lentidão de minha inquietação. 

—Na América

 Latina

 todos

 acreditam

 saber,

 e eu

 não

 era

 exceção.

 Nesse

 sentido  você me  faz  lembrar a mim mesmo. Como  você, estava  convencido de que 

sabia o que era a feitiçaria, mas depois, quando a conheci de verdade, não era como 

eu a havia concebido. —Como era? —Simples, tão simples que assusta — confessou. —Acreditamos que a feitiçaria 

assusta por sua malignidade, mas a que eu descobri não tem nada de maligno, e por isso é o mais pavoroso que existe. 

Eu  o  interrompi  para  assinalar  que  sem  dúvida  estava  se  referindo  à magia branca, em contraposição à magia negra. 

—Não 

diga 

bobagens, 

caralho! 

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  59

O choque de escutá‐lo falar‐me nesse tom me obrigou a respirar pela boca. De 

imediato renasceu minha inquietação. Ele desviou o olhar para evitar o meu. Havia se 

permitido gritar comigo, e me enfureci ao ponto de achar que me descomporia. Me 

arderam  as orelhas, e  vi pontos  negros  ante meus olhos.  Eu o  teria pegado  se não 

tivesse se posto fora de meu alcance num rápido movimento. 

—É muito

 indisciplinada

 —

 opinou

 ao

 sentar

‐se

 de

 novo

 —

 e bastante

 violenta.

 

Sua babá deve de ter permitido muito a você, e te tratado como se você fosse de vidro 

— mas ao notar meu rosto aborrecido, explicou que não me havia gritado por sentir impaciência ou raiva. —Pessoalmente não me importa se presta atenção ou não, mas importa a aquele em cujo nome gritei com você. Alguém que nos está observando. 

No  começo  senti  perplexidade,  depois  inquietude.  Olhei  em  torno  de  nós, pensando que  talvez  seu mestre  feiticeiro  fosse quem nos observava. Me  ignorou e 

prosseguiu: —Meu pai nunca me disse que  temos uma  testemunha permanente, e não o 

fez porque não o sabia, como você tampouco o sabe. 

—De que

 bobagens

 está

 falando?

 —

 e minha

 voz

 irritada

 refletia

 meus

 

sentimentos do momento. Me havia  gritado, me havia  insultado, e me  incomodava que estivesse  conversando  como  se nada  tivesse acontecido. Se ele achava que  sua 

conduta ia passar por alto uma surpresa lhe esperava. —Não  se  sairá  com essa… — disse‐lhe,  sorrindo  com malícia. —Não  comigo, 

menininho. —Estou me  referindo a uma  força, a uma entidade, uma presença que não é 

força, entidade nem presença — explicou com um sorriso angelical. Parecia totalmente indiferente a meu estado de ânimo belicoso. —Te parecerá conversa mole mas não o 

é. Refiro‐me a algo que unicamente os  feiticeiros conhecem. Chamam‐no o espírito, 

nosso observador

 pessoal,

 nossa

 testemunha

 permanente.

 Não sei exatamente como, ou qual palavra exata fez o prodígio, mas de repente 

ele teve toda a minha atenção. Prosseguiu falando dessa força que, segundo ele, não 

era  Deus,  nem  tinha  nada  que  ver  com  a  religião  ou  a  moral,  e  sim  uma  força impessoal, um poder à nossa disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos nos reduzir a nada. Inclusive me pegou pela mão, o qual não me desagradou. Melhor, me agradou seu toque suave e forte. Senti‐me morbidamente fascinada pelo estranho 

poder  que  exercia  sobre mim,  e me  horrorizava  comprovar  que  ansiava  sentar‐me 

indefinidamente com ele nesse banco, com minha mão unida à sua. Continuou falando, eu pendente de cada uma de suas palavras, mas ao mesmo 

tempo perversamente

 intrigada

 a respeito

 de

 quando

 me

 ia

 tocar

 as

 pernas.

 Sabia

 que

 somente a mão não lhe havia de satisfazer, e que eu nada podia fazer para impedi‐lo. Ou era eu que não desejava fazer nada para impedi‐lo? Explicou que ele havia sido tão 

negligente e indisciplinado mais do que tudo, porém que nunca conheceu a diferença por estar aprisionado pela modalidade do tempo. 

—E  o  que  é  a  modalidade  do  tempo?  —  perguntei  com  tom  áspero  e 

inamistoso,  destinado  a  não  fazer‐lhe  saber  que  desfrutava  por  estar  em  sua companhia. 

—Em  nossos  dias,  o  que  os  feiticeiros  chamam  a modalidade  do  tempo  é  a 

preocupação  da  classe média.  Eu  sou  homem  da  classe média,  assim  como  você  é 

mulher 

da 

classe 

média... 

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—Enquadramentos desse  tipo não  têm  validez —  interrompi  com  rudeza, ao 

mesmo  tempo  em  que  arrancava  minha  mão  da  sua.  —Não  são  mais  que 

generalidades — lancei‐lhe um olhar, furiosa e desconfiada. Havia algo chamativamente  familiar em suas palavras, mas não pude precisar 

de onde as havia escutado, ou qual  importância eu estava  lhes concedendo, contudo 

estava certa

 de

 sua

 vital

 importância

 se

 pudesse

 apenas

 recordar

 o sabido

 por

 mim

 

acerca delas. —Não me venha com essas asneiras científico‐sociais. — disse  jovialmente. —

Conheço‐as tanto como você. Cedi a um momento de total frustração, peguei sua mão e a mordi. —Na verdade sinto muito — murmurei antes que ele conseguisse se repor de 

sua surpresa. —Não sei por que fiz isso. Não mordia a ninguém desde que era menina — e escorri até o extremo do banco à espera de sua retaliação, que não chegou. 

—É completamente primitiva —  foi  tudo o que disse, esfregando a mão com 

um ar como confundido. 

Emiti um

 profundo

 suspiro

 de

 alívio.

 Havia

 se

 quebrado

 o poder

 que

 exercia

 

sobre mim, e  lembrei  ter uma  velha dívida a  cobrar.  Ele me havia  transformado na 

“faz‐me‐rir” de minhas colegas de antropologia. —Regressemos ao problema original — disse, procurando abafar minha raiva. 

—Por que me contou  todas essas besteiras acerca do  filho de Evans‐Pritchard? Você 

deve ter se dado conta de que eu cairia como uma tonta. — observei‐o com cuidado, certa  de  que,  ao  confrontá‐lo  desta maneira,  e  depois  da  mordida,  terminaria  por quebrar  seu  autocontrole,  ou  pelo  menos  incomodá‐lo.  Esperei  que  gritasse,  que 

perdesse sua confiança e insolência, mas permaneceu imperturbável. Suspirou fundo e 

adotou uma expressão séria. 

—Sei que

 parece

 um

 simples

 caso

 de

 alguém

 que

 mente

 por

 diversão,

 porém

 a coisa é mais complexa — e riu disfarçado antes de recordar‐me que naquele momento 

ele desconhecia minha condição de estudante de antropologia, e de que eu terminaria fazendo  um  papelão.  Fez  uma  pausa,  como  se  estivesse  escolhendo  as  palavras adequadas, depois encenou um impotente encolhimento de ombros e acrescentou: —Verdadeiramente  não  posso  explicar‐lhe  agora  por  que  apresentei  ao  meu  amigo 

como  filho  de  Evans‐Pritchard,  a menos  que  te  conte muito mais  acerca  de mim  e 

minhas metas, e isso não é algo prático. —Por quê? —Porque quanto mais  saiba de mim, mais  te  complicará — e  seus olhos me 

demonstravam sua

 sinceridade

 —,

 e não

 me

 refiro

 a uma

 confusão

 mental,

 e sim

 a algo pessoal comigo. 

Esta  aberta  demonstração  de  descaramento  me  devolveu  a  confiança. Desenterrei o meu  já testado sorriso sarcástico, e falei num tom cortante: 

—É  repugnante,  e  conheço  seu  tipo.  É  o  exemplo  típico  do  macho  latino 

confesso,  contra  o  qual  tenho  lutado  toda  minha  vida  —  e  ao  ver  sua  expressão 

surpreendida,  insisti,  dando  livre  vazão  a  toda minha  soberba: —Como  se  atreve  a 

pensar que posso chegar a envolver‐me contigo? Seu  rosto  não  enrubesceu  como  eu  esperava.  Em  lugar  disso  riu 

estrepitosamente, golpeando‐me o  joelho  como  se o dito por mim houvesse  sido o 

mais 

cômico 

que 

escutou 

em 

sua 

vida 

e, 

para 

completar, 

começou 

fazer‐

me 

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cosquinhas  do  mesmo  modo  em  que  se  faz  a  uma  criança.  Temendo  rir‐me  (as cosquinhas me afetavam muito), gritei minha indignação. 

—Como  se atreve a me  tocar! — e  tremendo me pus de pé para  retirar‐me, mas  em  seguida  assombrei  a  mim  mesma  recuperando  meu  assento.  Vendo  que 

pretendia continuar com as cosquinhas, cerrei os punhos e os esgrimi ante seus olhos. 

—Vou quebrar

 seu

 nariz

 se

 me

 tocar

 de

 novo

 —

 adverti.

 

Por completo  indiferente à minha ameaça, reclinou a cabeça contra o encosto 

do banco e fechou os olhos. Espasmos de riso o faziam sacudir. —Você é a típica menina alemã que cresceu rodeada por negrinhos. —Como  sabe  que  sou  alemã  se  nunca  lhe  disse  isso? —  perguntei  com  voz 

insegura, à qual tentei dar uma inflexão levemente ameaçante. —Sabia que era alemã desde o  instante em que te conheci. Você o confirmou 

no momento em que mentiu que era  sueca. Unicamente alemães nascidos no Novo 

Mundo depois da Segunda Guerra Mundial mentem assim. Isso, é claro, se vivem nos Estados Unidos. 

Apesar de

 que

 não

 se

 admitiria

 isso,

 ele

 tinha

 razão.

 Com

 frequência

 havia

 

sentido a hostilidade daqueles que se interavam de que meus pais eram alemães: para 

eles  isso nos  fazia automaticamente nazistas, e de nada adiantava  se  lhes dizia que 

meus pais eram  idealistas. Logicamente preciso admitir que, como bons alemães,  se 

achavam superiores, mas eram boas pessoas, sendo que toda sua vida foi apolítica. —Eu não fiz nada além que concordar contigo — disse acidamente. —Você viu 

cabelo  loiro, olhos  azuis, pômulos  altos, e  só pôde  pensar em  uma  sueca. Não  tem 

muita  imaginação,  sabia? —  aproveitei minha  vantagem  para  dizer‐lhe  que  ele  não 

tinha  nenhum  direito  de mentir. —A menos  que  seja  um mentiroso  de merda  por natureza — e à medida que falava minha voz se fazia estridente contra minha vontade. 

Terminei dando

‐lhe

 uns

 golpezinhos

 no

 peito

 com

 meu

 dedo

 indicador:

 —Joe

 Cortez

 então, hein? —E  seu  nome  é  Cristina  Gerbauer?  —  retrucou,  imitando  minha  voz  alta  e 

odiosa. —Carmen  Gebauer!  —  gritei,  ofendida  porque  não  o  havia  recordado 

completamente. Depois, arrependida de meu estouro, tentei uma caótica autodefesa, mas ao fim de uns minutos me detive, consciente de não estar falando com coerência. Admiti ser alemã, e que Carmen Gebauer era o nome de uma amiga de infância. 

—Eu gosto disso — comentou com um sorriso apenas esboçado, mas não pude 

estabelecer  se  se  referia  às minhas mentiras  ou  à minha  confissão.  Em  seus  olhos 

brilhava uma

 luz

 entre

 bondosa

 e divertida,

 e com

 doçura

 passou

 a me

 contar

 a história de sua amiga de infância, Fabiola Kunze. 

Porque me confundiu sua reação desviei a vista até o sicômoro próximo e aos mais  distantes  pinheiros.  Depois,  ansiosa  por  ocultar meu  interesse  em  seu  relato, comecei a brincar com minhas unhas, com a cutícula e o esmalte, que eu descascava de forma metódica. 

A  história  de  Fabiola  Kunze  se  assemelhava  tanto  à  minha  que  em  poucos minutos esqueci minha pretensa  indiferença para escutá‐la com atenção. Supus que 

era  pura  invenção,  apesar  do  qual  precisei  lhe  dar  crédito  por  certos  detalhes  que 

unicamente a filha de uma família alemã do Novo Mundo podia conhecer. 

Segundo 

história 

Fabiola 

Kunze 

vivia 

num 

mortal 

temor 

dos 

morenos 

garotos 

latinos, mas  igualmente  temia aos alemães; aos  latinos por sua  irresponsabilidade, e 

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aos  alemães  por  ser  tão  previsíveis.  Soltei  uma  risada  quando  descreveu  cenas ocorridas aos domingos de tarde na casa de Fabiola, quando duas dezenas de alemães se reuniam ao redor de uma mesa esquisitamente posta, com a melhor louça, prataria e cristaleria, e ela precisava escutar duas dezenas de monólogos que pretendiam ser conversas. 

À medida

 que

 Joe

 proporcionava

 detalhes

 dessas

 tardes

 de

 domingo

 comecei

 a 

sentir‐me mais e mais incomodada: ali estava o pai de Fabiola, que proibia os debates políticos  em  sua  casa mas  compulsivamente  intentava  dar pé  a  eles,  ao  buscar  por meios tortuosos contar piadas obscenas a respeito dos sacerdotes católicos, e o medo 

mortal da mãe: que sua louça fina estivesse nas mãos desses caipiras imorais. As palavras de Joe Cortez eram guias às quais eu respondia inconscientemente; 

comecei  a  ver  cenas  de  minhas  tardes  dominicais  projetadas  sobre  a  parede.  Me 

converti num feixe de nervos, senti desejo de chutar e de me descontrolar como só eu 

sabia fazê‐lo. Desejava odiar a esse homem, mas não podia. Necessitava ser  justiçada, receber desculpas. Queria dominá‐lo, que se enamorasse por mim para poder rejeitá‐

lo. Envergonhada

 de

 meus

 sentimentos

 imaturos

 procurei,

 mediante

 um

 grande

 

esforço, reagir, e pretextando aborrecimento me aproximei dele para perguntar: —Por que mentiu a respeito de seu nome? —Não menti —  respondeu. —Esse  é meu  nome,  tenho  vários. Os  feiticeiros 

têm nomes diferentes para ocasiões diferentes. —Que conveniente! — comentei com sarcasmo. —Muito conveniente — repetiu, e me piscou o olho, atitude que me enfureceu. Logo depois  fez algo  insólito e  inesperado. Me abraçou, sem que esse abraço 

encerrasse  conotações  sexuais.  Foi  um  espontâneo,  doce  e  simples  gesto  de  um 

menino  que  deseja  consolar  a  um  amigo,  e me  tranquilizou  ao  ponto  de me  fazer 

soluçar de

 maneira

 incontrolável.

 —Sou uma merda — confessei. —Quero agredir você e olhe‐me: estou em seus braços — e estava a ponto de acrescentar que  isso me agradava, quando me  invadiu 

uma  corrente de energia, e  como  se  saísse de um  sonho, o  afastei. —Deixe‐me! — 

gritei, e me afastei a grandes trancos. Escutei que o riso o afogava, o qual não me preocupou em absoluto, por  já ter 

se dissipado meu ataque. Fiquei paralisada, tremendo e incapacitada para afastar‐me. Então, como se respondesse a uma banda elástica aderida a meu corpo, regressei ao 

banco. —Não se sinta mal — disse com bondade. Parecia saber muito bem o que me 

arrastara de

 novo

 ao

 banco.

 Espalmou

 minhas

 costas

 tal

 como

 se

 faz

 com

 um

 bebê

 depois de ter comido. —Não é o que você e eu fazemos — continuou. —É algo fora de 

nós que nos está influenciando. Está influenciando a mim desde há muito tempo e me 

acostumei a ele, mas não entendo por que atua sobre você. Não me pergunte de quê 

se trata — disse, antecipando‐se à minha pergunta. —Ainda não o posso explicá‐lo. De todo modo não pretendia perguntar‐lhe nada. Minha mente havia deixado 

de funcionar, me sentia como dormida, sonhando que falava. Momentos depois meu 

adormecimento cedeu, e apesar de não haver regressado ao que era meu normal, me 

senti muito mais animada. —O que me está acontecendo? — perguntei. 

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  63

—Está sendo enfocada por algo que não emana de ti. Algo te está empurrando, usando‐me a mim como  instrumento. Algo está sobrepondo outro critério sobre suas convicções de classe média. 

—Não  comece  com  essa  bobagem  de  classe média —  protestei  debilmente. Senti como se o estivesse suplicando isso. 

Apresentei um

 sorriso

 desamparado,

 pensando

 que

 havia

 perdido

 minha

 usual

 

impulsividade. —Lembre‐se que estas não são minhas próprias idéias ou opiniões — disse. —

Como  você,  sou  produto  de  uma  ideologia  de  classe  média.  Imagine  meu  horror quando precisei enfrentar‐me com uma  ideologia diferente e mais avassaladora. Me 

fez em pedaços. —Que  ideologia é essa? — perguntei humildemente, minha voz  tão  fraca que 

apenas escutava‐se. —Um homem a trouxe‐me, ou melhor, o espírito falou e me influenciou através 

dele. Esse homem é um feiticeiro, sobre quem tenho escrito. Se chama Juan Matus, e é 

quem me

 fez

 enfrentar

 minha

 mentalidade

 de

 classe

 média.

 

—Juan Matus  certa  vez me  fez uma pergunta  importante:  “O que  você  acha que é uma universidade?”. Eu, evidentemente, lhe respondi como um cientista social: “um  centro de  estudos  superiores”.  Ele me  corrigiu, dizendo  que uma  universidade deveria  chamar‐se  “um  Instituto  de  Classe  Média”,  pois  é  o  lugar  ao  qual comparecemos  para  aperfeiçoar  nossos  valores  de  classe  média.  Disse  que 

comparecemos a esses institutos para nos convertermos em profissionais. A ideologia de  nossa  classe  social  nos  diz  que  devemos  nos  preparar  para  ocupar  posições gerenciais,  que  ali  vamos  para  nos  tornarmos  engenheiros,  advogados,  médicos, etecétera, e as mulheres para conseguir um marido adequado, provedor e pai de seus 

filhos.  Adequado

 é logicamente

 definido

 pelos

 valores

 da

 “classe

 média”.

 Desejava contradizê‐lo, gritar‐lhe que conhecia gente à qual não os interessava uma  carreira  ou  encontrar  marido;  que  conhecia  gente  interessada  em  idéias,  no 

conhecimento em si. Mas não conhecia a tais pessoas. Senti uma terrível pressão no 

peito, e tive um acesso de tosse seca. Não foram a tosse nem o mal estar físico os que 

me fizeram retorcer no assento e  impediram que discutisse com ele. Era a certeza de 

que se referia a mim: eu ia à Universidade para encontrar um homem adequado. De  novo me  pus  de  pé,  disposta  a  partir.  Inclusive  estendi minha mão  para 

despedir‐me,  quando  senti  um  poderoso  puxão  em  minhas  costas,  tão  forte  que 

precisei  sentar‐me  para  não  cair.  Sabia  que  ele  não  me  havia  tocado.  Estive 

observando‐o todo

 o tempo.

 Memórias

 de

 pessoas

 não

 de

 todo

 recordadas,

 de

 sonhos

 não esquecidos,  inundaram minha mente e  formaram uma  intrincada  trama da qual não podia desembaraçar‐me. Rostos desconhecidos, orações semi‐escutadas, imagens escuras  e  borradas  de  lugares  e  pessoas me  remeteram momentaneamente  a  uma espécie  de  limbo.  Estive  próxima  de  recordar  algo  deste  caleidoscópio  de  sons  e 

visualizações, mas o conhecimento  se desvaneceu, dominando‐me uma  sensação de 

calma e alívio, uma tranquilidade tão profunda que eliminou todo desejo de afirmar‐me. 

Estiquei  as  pernas  ante  mim  como  se  não  tivesse  uma  só  preocupação  no 

mundo (e nesse momento não tinha) e comecei a falar. Não lembro de tê‐lo feito com 

tanta 

franqueza 

anteriormente, 

não 

podia 

descobrir 

por 

que 

de 

repente 

baixei 

minhas  defesas  ante  ele.  Contei‐lhe  da Venezuela,  de meus  pais, minha  juventude, 

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minha  vida  inquieta  e  sem  significado.  Contei‐lhe  coisas  que  não  admitiria  a  mim 

mesma. —Venho  estudando  antropologia  desde  o  ano  passado,  e  na  verdade  não 

entendo por quê. — começava a sentir‐me levemente incômoda ante minhas próprias revelações. Me movi  inquieta  no  banco, mas  não  pude  deixar  de  acrescentar: —As 

duas matérias

 que

 mais

 me

 interessam

 são

 a literatura

 castelhana

 e a alemã,

 e estar

 

em antropologia desafia tudo o que sei acerca de mim mesma. —Isso me  intriga  sobremaneira —  opinou. —Não  posso  pensar  nisso  agora, 

mas me parece que fui posto aqui para que você me encontrasse, ou vice‐versa. —Que significa tudo isto? — perguntei, e fiquei corada ao me dar conta de que 

estava centrando e interpretando tudo em torno de minha feminilidade. Ele parecia estar  completamente  a par  de meu  estado mental. Pegou minha 

mão  e  a  apertou  contra  o  coração.  “¡Me  gustas,  Nibelunga!”,  exclamou 

dramaticamente,  e  depois  traduziu  a  frase  ao  inglês.  “Você  me  atrai  de  maneira apaixonada, Nibelunga”. 

Fez a paródia

 de

 me

 devorar

 com

 os

 olhos,

 ao

 estilo

 amante

 latino,

 e depois

 

soltou uma gargalhada. — Está convencida de que cedo ou tarde preciso dizer  isto, de modo que bem 

podia ser agora. Em  lugar de  irritar‐me por ser alvo de seu humor, ri; seu humor me agradava 

muito…  os  únicos Nibelungos  que  conhecia  eram  provenientes  do  livro  de meu  pai sobre  mitologia  alemã;  Siegfrid  e  suas  Nibelungen.  Até  onde  podia  me  lembrar  se 

tratava de seres subterrâneos, mágicos e anões. —Está me chamando de anã? — perguntei em tom de gracejo. —Que Deus não o permita! — protestou —, te estou comparando com um ser 

mitológico alemão.

 Mais tarde, como se fosse a única coisa que podíamos fazer, fomos de carro até 

as montanhas de Santa Susana, ao  lugar onde nos havíamos conhecido. Nenhum dos dois  pronunciou  palavra  alguma  quando  estivemos  sentados  no  penhasco  sobre  o 

cemitério  indígena. Movidos  por  um  puro  impulso  de  companheirismo  ficamos  em 

silêncio, indiferentes à tarde que se convertia em noite. 

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CAPÍTULO SETE 

Joe Cortez estacionou seu carro aos pés de uma baixada. Abriu minha porta, e 

com um  gesto  galante me  ajudou a descer. Senti  alívio por  ter  ao  fim detido nossa marcha, ainda que não saberia dizer por que. Estávamos no meio do nada, depois de 

haver viajado

 desde

 as

 primeiras

 horas

 da

 manhã.

 O

 calor,

 o deserto

 chato,

 o sol

 

inclemente e a poeira do caminho se tornaram uma vaga memória quando respirei o 

ar frio e pesado da noite. Agitado por esse  vento o ar  se enredemoinhava em  torno de nós  como algo 

palpável, vivo. Não havia lua, e as estrelas, incríveis em número e em brilho, pareciam 

intensificar  nosso  isolamento.  Sob  o  inquieto  resplendor  os montes  e  o  deserto  se 

estendiam ao redor, quase invisíveis, cheios de sombras e sons murmurados. Procurei orientar‐me pelas estrelas, mas não soube identificar as constelações. 

—Estamos  de  frente  ao  leste —  sussurrou  Joe Cortez,  como  se  eu  houvesse 

falado  em  voz  alta,  e  com paciência  tentou me  instruir  a  respeito  das  constelações 

maiores desse

 céu

 de

 verão.

 Eu

 só

 recordava

 da

 estrela

 Vega,

 pois

 seu

 nome

 me

 trazia

 

à memória o escritor espanhol do século XVII, Lope de Vega. Sentados  ali,  em  silêncio,  sobre  sua  perua,  passei  em  revista  aos 

acontecimentos de nossa viagem. Não se haviam ainda completado as vinte e quatro 

horas desde que, enquanto  comíamos num  restaurante  japonês de  Los Ângeles, ele 

me pedira, sem preâmbulo algum, que o acompanhasse à Sonora por uns dias. —Me  encantaria —  respondi  impulsivamente. —Minhas  aulas  terminaram  e 

estou livre. Quando planeja partir? —Esta noite! — respondeu. —Na verdade, assim que terminarmos de comer. Tive que rir. Estava certa de que esse convite não passava de um gracejo. 

—Não posso

 partir

 com

 tão

 pouco

 pré

‐aviso.

 O

 que

 você

 acha

 de

 amanhã?

 —Esta noite — insistiu, e estendeu sua mão para segurar a minha num apertão 

formal. Somente ao ver o brilho travesso e alegre de seus olhos me dei conta de que 

não estava se despedindo, e sim que selava um acordo. —Quando  se  toma  uma  decisão  se  deve  agir  de  imediato —  anunciou,  e  as 

palavras ficaram flutuando no ar diante de meus olhos. Ambos as olhamos como se na 

verdade pudéssemos adivinhar sua forma e seu tamanho. Concordei, apenas consciente de haver  tomado uma decisão. A oportunidade 

estava  ali,  independente de minha  vontade, pronta e  inevitável. Nada precisei  fazer para  que  se materializasse. De  repente,  com  uma  intensidade  demolidora,  lembrei 

minha viagem

 do

 ano

 anterior

 à Sonora,

 e meu

 corpo

 se

 endureceu,

 comovido

 e temeroso, à medida que imagens descontínuas em sequência ganhavam vida em meu 

interior.  Os  acontecimentos  daquela  viagem  rara  haviam  se  esfumaçado  de  minha consciência  a  tal  ponto  que,  até  momentos  antes,  era  como  se  nunca  tivessem 

ocorrido, mas agora adquiriam uma claridade idêntica à que tiveram no momento em 

que aconteceram. Tremia, não de frio, mas sim por um medo indefinível, e encarei Joe Cortez para 

falar‐lhe  dessa  viagem. Olhava‐me  com  rara  intensidade, e  seus olhos,  como  túneis escuros  e  profundos,  absorveram  meu  espanto  e  fizeram  retroceder  as  imagens temidas, as quais, uma vez perdido seu  impulso, deixaram minha mente em branco. 

Nesse 

momento 

acreditei, 

fiel 

à 

minha 

maneira 

de 

pensar, 

que 

nada 

poderia 

contar‐

lhe, pois uma verdadeira aventura sempre dita sua própria direção, e os eventos mais 

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emocionantes de minha vida haviam sido sempre aqueles em cujo curso não me havia interposto. 

—Como quer que te chame, Joe Cortez ou Carlos Castaneda? — perguntei‐lhe 

com  desagradável  jovialidade  feminina.  Seu  rosto  avermelhado  se  desdobrou  num 

sorriso. 

—Sou seu

 companheiro

 de

 infância

 —

 respondeu.

 —Dê

‐me

 um

 nome.

 Eu

 te

 

chamarei Nibelunga. Ao não acertar com um nome adequado, perguntei‐lhe: —Existe uma ordem em seus nomes? —Bom,  Joe Cortez é cozinheiro,  jardineiro e “faz‐tudo”, um homem solícito e 

pensativo.  Carlos  Castaneda  é  homem  do mundo  acadêmico, mas  não  creio  que  o 

tenha conhecido ainda. — olhou‐me fixo e sorriu, e esse sorriso  levava  implícito algo 

infantil e intensamente sincero. Decidi chamá‐lo Joe Cortéz. Passamos a noite (em quartos separados) num motel de Yuma, Arizona. Depois 

de sair

 de

 Los

 Ângeles,

 e através

 de

 uma

 longa

 viagem,

 me

 preocupei

 muito

 no

 que

 

dizia respeito a onde e como dormiríamos. Por momentos temi que tentaria algo antes que chegássemos ao motel. Afinal, era um homem  jovem e  forte, agressivo e muito 

seguro de si mesmo. Não me haveria preocupado tanto se ele fosse europeu ou norte‐

americano, mas por ser  latino eu sabia quais eram suas  intenções. O  fato de aceitar seu convite de passar  juntos uns dias significava que aceitava compartilhar sua cama. 

Sua  preocupação  e  bom  comportamento  durante  a  viagem  se  encaixavam 

perfeitamente com o que eu pensava e esperava dele. Preparava o terreno. Era tarde 

quando  chegamos  ao  motel.  Ele  se  dirigiu  ao  escritório  do  gerente  para  reservar quartos. Eu permaneci no carro,  imaginando obscuras cenas. Tão absorta estive com 

minhas fantasias

 que

 não

 percebi

 seu

 retorno,

 e ao

 escutar

 o tilintar

 das

 chaves,

 que

 ele fazia dançar ante meus olhos, me sobressaltei, deixando cair a sacola de papel que 

continha meus artigos de toalete, comprados no caminho, que eu  inconscientemente apertava contra o peito. 

—Te consegui um quarto na parte traseira do motel — anunciou. —Está longe 

da estrada — indicou uma porta situada próxima, antes de acrescentar: —Eu dormirei neste,  perto  da  rua.  Estou  acostumado  aos  ruídos.  Eram  os  únicos  quartos  que 

sobraram. Desiludida,  tomei  a  chave  que  me  estendia.  Todas  minhas  visões  se 

evaporaram.  Já  não  teria  a  oportunidade  de  rechaçá‐lo,  o  qual  na  verdade  não 

desejava, mas

 minha

 alma

 clamava

 por

 uma

 vitória,

 por

 pequena

 que

 fosse.

 —Não  vejo  por  que  devemos  alugar  dois  quartos  —  opinei  com  fingida indiferença, e minhas mãos tremiam ao recolher os artigos caídos, que recoloquei na 

sacola. O que acabara de dizer era incrível, mas não pude evitá‐lo. —O tráfego não te 

permitirá descansar, e você precisa tanto como eu. — não podia conceber que alguém 

pudesse dormir dado o ruído que provinha da estrada. Sem olhá‐lo, desci do carro e 

me escutei dizer: —Poderíamos dormir no mesmo quarto, em duas camas, é claro. Fiquei  aturdida  e  espantada.  Jamais  havia  feito  algo  semelhante,  nem  tido 

reação  tão  esquizofrênica.  Dizia  coisas  sem  me  propor  dizê‐las,  ou  é  que  as  dizia deliberadamente, sem saber o que sentia? Seu  riso pôs  fim à minha confusão, e era 

tão 

forte 

que 

se 

acenderam 

as 

luzes 

num 

quarto, 

alguém 

nos 

exigiu 

silêncio 

aos 

gritos. 

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—Dividir  seu  quarto  e  permitir  que  se  aproveite  de mim  no meio  da  noite, depois de ter me dado um banho de água fria? Nem pensar! — disse entre ondas de 

alegria. Enrubesci ao ponto que minhas orelhas ardiam. Quis morrer de vergonha. Esta 

não  era  uma  de  minhas  cenas  imaginadas.  Voltei  ao  carro  e  fechei  a  porta  com 

violência. 

—Leve‐me ao ônibus da Greyhound — apontei, dominando minha indignação. —Por que diabos vim contigo? Deveria fazer com que examinassem minha cabeça! 

Sem deixar de rir abriu a porta e, com suavidade, me fez sair. —Durmamos não só no mesmo quarto, e sim na mesma cama. Deixe‐me fazer 

amor com você — suplicou, e tive a impressão de que desejava isso de verdade. Horrorizada, me desfiz dele e gritei: —Jamais em sua puta vida! —Bom — disse —, diante de tão feroz recusa não me animo a insistir — pegou 

minha  mão  e  a  beijou.  —Me  rejeitou  e  me  pôs  em  meu  lugar.  Se  acabaram  os 

problemas. Está

 vingada.

 

Me afastei dele, a ponto de chorar. Meu desgosto não se devia à sua falta de 

desejo  de passar  a noite  comigo  –  se  ele  tivesse querido,  com  toda  franqueza, não 

teria  sabido  como  reagir  –  e  sim  ao  fato  de  que  me  conhecia  melhor  do  que  eu 

conhecia  a  mim  mesma.  Eu  havia  recusado  dar  crédito  ao  que  acreditava  ser  sua maneira  de  se  auto‐lisonjear.  Para  ele  eu  era  transparente,  e  de  repente  isso  me 

assustou.  Joe  se  aproximou  para  abraçar‐me,  um  abraço  doce  e  simples.  Tal  qual aconteceu  anteriormente, minha  inquietação  se  evaporou  como  se  nunca  houvesse existido. Devolvi seu abraço, e disse outra coisa incrível: 

—Esta é a aventura mais excitante de minha vida. — de imediato quis retratar‐

me; as

 palavras

 pronunciadas

 não

 eram

 minhas.

 Nem

 sequer

 sabia

 qual

 havia

 sido

 minha  intenção ao proferi‐las. Esta não era a aventura mais excitante de minha vida. Havia feito muitas viagens emocionantes: havia percorrido o mundo. 

Minha  irritação chegou ao cume quando me deu um beijo de despedida, um 

beijo  suave e doce  como o que  se dá em uma  criança, e contra minha vontade me 

agradou. Havia perdido a vontade. Com um empurrão  Joe me enviou em direção ao 

meu quarto. Maldizendo‐me, sentei‐me na cama e chorei de frustração, raiva e pena 

de mim mesma. Desde os  alvores de minha  vida  sempre  se  haviam  satisfeito meus caprichos. Estava acostumada a  isso. Estar confusa e não saber o que queria era uma experiência nova e nada agradável. Tive uma noite de sono intranquilo. Dormi vestida, 

até que

 ele

 bateu

 em

 minha

 porta

 bem

 cedo

 de

 manhã.

 Viajamos  todo  o  dia  por  caminhos  afastados  e  tortuosos.  Tal  qual me  havia 

informado,  Joe Cortez era na verdade atento, e durante  toda a  longa viagem provou 

ser o mais bondoso e divertido dos companheiros. Me mimou com comidas, canções e 

contos.  Era  dono  de  uma  profunda  porém  clara  voz  de  barítono,  e  conhecia  todas minhas  canções  favoritas:  espalhafatosas  canções  de  amor  de  todos  os  países  sul‐americanos, e seus hinos nacionais. Velhas baladas e até canções infantis. Seus contos me  fizeram  rir  até  doer  os  músculos  abdominais.  Como  narrador  me  manteve fascinada com cada caso. Era um imitador nato. Sua assombrosa imitação de todos os acentos sul‐americanos,  inclusive o singular português do Brasil, superava a  imitação 

para 

converter‐

se 

em 

magia. 

Estávamos 

empoleirados 

no 

teto 

da 

perua 

quando 

Joe 

formulou a advertência: 

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—Melhor descermos. As noites no deserto se tornam frias. —É  um  meio  ambiente  indômito  —  comentei.  Desejava  gozar  de  novo  do 

refúgio da cabine, e então nos afastamos dali. Observei‐o enquanto recolhia algumas sacolas do  interior do veículo. Havia comprado  toda sorte de presentes para aqueles que íamos visitar. 

—Por que

 paramos

 no

 meio

 do

 nada?

 —

 perguntei.

 

—Nibelunga, você  faz as perguntas mais bobas — disse. —Nós paramos aqui pois é o local onde começa nossa viagem. 

—Chegamos ao misterioso destino sobre o qual não pôde  falar? — perguntei com sarcasmo. A única coisa que havia entorpecido nossa agradável viagem havia sido 

sua renúncia a informar‐me com exatidão para onde nos dirigíamos. Em questão de segundos me enfureci ao extremo de querer lhe dar um grande 

soco no nariz, mas a noção de que minha repentina irritabilidade obedecia ao cansaço 

de um longo dia produziu o necessário alívio. —Estou me pondo desagradável, mas não por querê‐lo — disse num tom  jovial 

que soava

 falso,

 pois

 a tensão

 de

 minha

 voz

 revelava

 a dificuldade

 para

 controlar

‐me.

 

Preocupava‐me a rapidez com que me enfurecia com ele. —Na verdade você não sabe conversar — acusou‐me com um grande sorriso —

, só sabe pressionar. —Oh! Vejo que  Joe Cortez  se  foi. Vai  começar  a  insultar‐me de novo, Carlos 

Castaneda? Minha observação lhe causou graça, apesar de que minha intenção era outra. —Este  lugar  não  está  no meio  do  nada,  a  cidade  de  Arizpe  está  perto,  e  a 

fronteira dos Estados Unidos ao norte, Chihuahua ao  leste e  Los Ângeles em algum 

ponto ao noroeste — recitou. 

Sacudiu a cabeça

 num

 gesto

 desdenhoso

 e tomou

 à dianteira.

 Em

 silêncio

 caminhamos  através  do  chaparral,  mais  intuído  do  que  visto,  por  uma  estreita  e 

serpenteada trilha que se alargava ao chegar a um amplo espaço aberto encerrado por baixas  algarobeiras.  Conseguimos  discernir  os  contornos  de  duas  casas,  recortadas contra a escuridão. No interior da maior brilhavam luzes. Uma casa menor se alçava a 

curta distância. Caminhamos em direção à casa grande. Pálidas  traças  revoavam por onde a luz se infiltrava pelas  janelas panorâmicas. 

—Devo  advertir‐lhe  que  a  gente  que  vai  conhecer  é  um  tanto  estranha  — 

sussurrou. —Não diga nada. Deixe que eu falo. —Direi o que se me der na telha — respondi. —Não me agrada que me digam 

como devo

 comportar

‐me.

 Não

 sou

 uma

 criança.

 Ademais,

 meus

 hábitos

 sociais

 são

 impecáveis, e posso lhe assegurar que não te farei passar vergonha. —Deixe de idiotices, caralho! — respondeu, esforçando‐se por controlar a voz. —Não  me  trate  como  se  eu  fosse  sua  esposa,  Carlos  Castañeda  —  gritei  a 

plenos pulmões, pronunciando  seu  sobrenome como eu  considerava que deveria  se 

pronunciar: com ñ (nhe), o qual sabia que ele não gostava. Contudo, ele não se irritou. Minha tirada o fez rir, algo frequente nele quando 

eu  esperava  que  explodisse.  “Nunca  se  irrita”,  pensei  com  um  suspiro.  Sua 

equanimidade  era  extraordinária. Nada  parecia  confundi‐lo,  nem  fazer‐lhe  perder  o 

controle. Inclusive, quando gritava, os gritos soavam falsos. 

Quando 

Joe 

estava 

por 

bater, 

porta 

se 

abriu, 

um 

homem 

frágil 

projetou 

sua 

sombra negra no retângulo de luz. Com um gesto impaciente nos convidou a entrar, e 

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ingressamos  num  vestíbulo  abarrotado  de  plantas.  Com  rapidez,  como  se  temesse 

mostrar a  cara, nos precedeu e,  sem uma palavra de boas‐vindas, abriu outra porta cujos  vidros  não  estavam  bem  fixos,  e  que  soavam  ao  abri‐la. O  seguimos  por  um 

escuro corredor e através de um pátio interno, onde um  jovem sentado numa cadeira de palha cantava com voz tremulante, acompanhando‐se com o violão. Fez uma pausa 

ao nos

 ver,

 não

 retribuiu

 minha

 saudação,

 e continuou

 tocando

 quando

 dobramos

 

uma esquina e encaramos outro corredor escuro. —Por que todos são tão pouco gentis? — sussurrei no ouvido de Joe Cortez. —

Tem certeza de que estamos na casa certa? 

—Já lhe disse, são excêntricos — murmurou. —Está seguro de que os conhece? —Que  tipo  de  pergunta  é  essa?  —  rebateu  num  tom  tranquilo,  ainda  que 

ameaçante. —É claro que os conheço. —Passaremos a noite aqui? — perguntei, intranquila. —Não  tenho  a menor  idéia —  e  ao  dizê‐lo me  beijou  na  bochecha. —E  por 

favor, não

 faça

 mais

 perguntas.

 Estou

 tentando

 levar

 a cabo

 uma

 manobra

 quase

 

impossível. —Que  manobra  é  essa?  —  perguntei  também  em  voz  baixa.  Uma  súbita 

percepção  me  fez  sentir  ao  mesmo  tempo  ansiosa  e  incomodada,  e  por  sua  vez estimulada. A palavra manobra havia proporcionado a pista. 

Ao  parecer  convencido  de meus  sentimentos  íntimos,  passou  as  sacolas  que 

portava a um de seus braços, e com suavidade pegou minha mão para beijá‐la, contato 

que  enviou  agradáveis  correntes  de  prazer  através  de  meu  corpo.  Cruzamos  um 

umbral  para  ingressar  numa  sala  grande,  tenuemente  iluminada  e  exiguamente mobiliada. Não era minha idéia de uma sala de província mexicana. As paredes e o teto 

eram de

 um

 branco

 imaculado,

 por

 completo

 desprovidas

 de

 quadros

 ou

 ornamentos.

 Contra  a  parede  oposta  à  porta  havia  um  grande  sofá,  e  sentadas  sobre  ele  três imponentes senhoras, vestidas com elegância. Não pude ver bem seus rostos, mas a 

luz  fraca permitiu comprovar a chamativa semelhança e o ar  familiar existente entre 

elas, mesmo  sem parecerem‐se.  Isto me desorientou ao ponto de que apenas pude 

reparar  em  duas  pessoas  sentadas  em  poltronas  próximas. No meu  afã  por  chegar  junto  às  três mulheres  dei  um  grande  salto  involuntário,  por  não  ter  reparado  nos desníveis do piso de  ladrilhos, e ao estabilizar‐me notei um  lindo tapete oriental, e à 

mulher sentada numa das poltronas. —Delia Flores! —exclamei. —Deus santo, não posso acreditar nisso! — toquei‐a 

para assegurar

‐me

 que

 não

 era

 uma

 figura

 fruto

 de

 minha

 imaginação.

 Em

 vez

 de

 saudá‐la, perguntei: —O que está acontecendo? — e ao mesmo tempo percebi que as mulheres do 

sofá eram minhas velhas conhecidas do ano anterior na casa da curandeira. Permaneci com a boca aberta, gelada, a mente aturdida pela descoberta. Um esboço de sorriso 

crispava os cantos dos lábios das mulheres quando se viraram em direção ao ancião de 

cabelos brancos, sentado na outra poltrona. —Mariano Aureliano — minha voz  saiu  fraca e quebrada;  tinha perdido  toda 

sua energia. Virei‐me  até  Joe  Cortez,  e  nesse  mesmo  tom  débil  o  acusei  de  ter  me 

enganado. 

Desejava 

gritar‐

lhe, 

insultá‐

lo, 

agredi‐

lo 

fisicamente, 

mas 

não 

tinha 

nem 

forças  para  levantar  um  braço.  Tampouco  para  notar  que,  como  eu,  estava  parado 

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como  se  estivesse  preso  ao  chão, o  rosto  pálido  de  assombro  e  confusão. Mariano 

Aureliano, ficando de pé, se aproximou, os braços estendidos em sinal de abraço. —Estou  tão  feliz  de  ver‐lhe  novamente!  —  sua  voz  era  doce,  seus  olhos 

brilhavam de  felicidade, e com um abraço de urso me  levantou do chão. Meu corpo 

frouxo,  desprovido  de  forças,  não  acertava  em  retribuir  seu  carinho.  Não  pude 

articular palavra.

 Me

 depositou

 de

 novo

 ao

 chão,

 e foi

 em

 direção

 à Joe

 Cortez,

 para

 

dar‐lhe uma igualmente efusiva boas‐vindas. Delia  Flores  e  suas  amigas  se  aproximaram,  cada  uma  com  seu  abraço,  e 

murmuraram  algo  em meu  ouvido. Me  reconfortaram  suas  carícias  e  vozes  suaves, contudo não entendi uma só palavra. A mente não me acompanhava. Podia sentir e 

escutar, mas não captar a essência de minhas sensações. Mariano Aureliano dirigiu‐se 

a mim com voz clara que dissipou meu nublado entendimento. —Você não foi enganada. Eu lhe disse desde o princípio que te sopraria até ele. —De modo que você é… — não pude terminar a frase, pois finalmente captei 

que Mariano Aureliano era o homem de quem tanto me havia falado Joe Cortez: Juan 

Matus, o feiticeiro

 que

 mudou

 o curso

 de

 sua

 vida.

 

Abri a boca para dizer algo, e em seguida a fechei. Tinha a sensação de ter sido 

separada de meu corpo. Minha mente não podia acomodar novas surpresas. Depois vi ao senhor Flores emergir por entre as sombras, e ao dar‐me conta de que havia sido 

ele quem nos abriu a porta, desmaiei. Quando  recuperei os sentidos me encontrava sobre o sofá, sentindo‐me extraordinariamente bem, descansada e livre de ansiedade. Para  determinar o  tempo  que  estive  inconsciente me  levantei  para  alçar o  braço  e 

olhar meu relógio de pulso. —Esteve  fora  de  comissão  exatamente  dois  minutos  e  vinte  segundos  — 

anunciou  o  senhor  Flores,  consultando  seu  pulso  desprovido  de  relógio.  Estava 

sentado numa

 otomana

 de

 couro

 vizinha

 ao

 sofá,

 e na

 posição

 de

 sentado

 pareceu

 mais alto, pois suas pernas eram curtas e seu dorso largo. —Que  terrivelmente  dramático,  isso  de  desmaiar‐se! —  disse  ao  sentar‐se  a 

meu  lado. —Sinto muito que  tenhamos  lhe assustado — mas  seus olhos cor âmbar, plenos de riso, desdiziam o tom genuinamente preocupado de sua voz. —E desculpe‐

me por não os ter saudado ao abrir a porta. Com seu cabelo escondido sob o chapéu, e 

com  essa  pesada  jaqueta,  pensei  que  você  era  homem. —  entretanto  ele  brincava, encantado, com minha trança. 

Ao ficar de pé precisei me apoiar no sofá. Continuava algo mareada. Insegura, percorri o quarto com a vista. Nem as mulheres nem Joe Cortéz estavam ali. Mariano 

Aureliano estava

 sentado

 numa

 das

 poltronas

 com

 a vista

 fixa

 à frente.

 Talvez

 estivesse

 dormido com os olhos abertos. —Assim que os vi de mãos dadas pensei que Charlie Spider tinha virado bicha… 

— disse o senhor Flores em inglês, pronunciando cada palavra de maneira impecável e 

com genuíno gosto. Ri ao escutar esse nome, e da formal pronúncia inglesa. —Charlie Spider? Quem é? —Não o sabe? — perguntou, abrindo os olhos, autenticamente desconcertado. —Não, não sei. Por acaso deveria saber? Expressou  sua  surpresa  ante  minha  negação  coçando  a  cabeça,  e  depois 

perguntou: 

—Com quem estava de mãos dadas? 

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—Carlos segurava minha mão ao entrar nesta casa. —Pois  isso  —  aprovou  o  senhor  Flores,  sorrindo  contente  como  se  tivesse 

solucionado  um  difícil  enigma.  Depois,  ao  ver  minha  expressão  ainda  perplexa, acrescentou: —Carlos Castaneda não só é Joe Cortez como também Charlie Spider. 

—Charlie Spider — repeti. —É um nome muito repelente. 

—Dos três,

 era

 o que

 mais

 me

 agradava,

 sem

 dúvida

 devido

 à minha

 afeição

 

pelas  aranhas,  às  quais  jamais  temi. Nem  sequer  às  grandes  aranhas  tropicais. Nos cantos de meu apartamento sempre se podiam encontrar suas teias, as que não eram 

destruídas ao se fazer a limpeza. —Por que se faz chamar Charlie Spider? — perguntei. —Diferentes  nomes  para  diferentes  situações —  e o  senhor  Flores  recitou  a 

resposta como se estivesse anunciando um produto. —Quem pode explicar‐lhe  tudo 

isto é Mariano Aureliano. —Mariano Aureliano é também Juan Matus? —Eu acho que sim — respondeu com um amplo e divertido sorriso. —Também 

ele tem

 distintos

 nomes

 para

 distintas

 situações.

 

—E você, senhor Flores, também tem diferentes nomes? —Flores é meu único nome. Genaro flores — e aproximando‐se, se insinuou em 

tom conquistador, apenas murmurado: —Pode me chamar de Genarito. Sacudi  a  cabeça  sem  querer.  Algo  nele  me  assustava  mais  que  Mariano 

Aureliano, mas num nível racional não conseguia determinar a causa. O senhor Flores parecia muito mais  abordável  que  o  outro.  Era  infantil,  brincalhão  e  de  fácil  trato, apesar  do  qual  não  me  sentia  confortável  em  sua  companhia.  O  senhor  Flores interrompeu meus pensamentos profundos: 

—A razão pela qual tenho um só nome é que não sou um nagual. 

—E o que

 é um

 nagual?

 —Ah, isso é muito difícil de explicar — e me ofereceu um sorriso cativante. —Unicamente Mariano Aureliano ou Isidoro Baltazar podem explicar isso. 

—Quem é Isidoro Baltazar? —Isidoro Baltazar é o novo nagual. —Basta. Não me diga mais nada — e levando a mão à frente me sentei no sofá. 

—Está me confundindo, senhor Flores, e ainda estou fraca — e com olhar suplicante, perguntei: —Onde está Carlos? 

—Charlie Spider está  tecendo um sonho aracnóide — o senhor Flores disse a 

frase  inteira em seu  inglês extravagante, após o qual emitiu um breve  riso, como se 

estivesse saboreando

 uma

 anedota

 especialmente

 boa.

 Olhou

 com

 malícia

 a Mariano

 Aureliano (que seguia com a vista fixa na parede), depois a mim, e por último de novo 

a seu amigo. Deve de ter pressentido meu crescente medo, pois encolheu os ombros e 

elevou  as  mãos  num  gesto  resignado  antes  de  dizer:  —Carlos,  também  conhecido 

como Isidoro Baltazar, foi visitar a… 

—O que, ele  se  foi?! — meu grito  fez  com que Mariano Aureliano  se  virasse 

para olhar‐me. Me perturbava mais  ficar  sozinha  com os dois  velhos que  saber que 

Carlos Castaneda tinha ainda outro nome e era o novo nagual, fosse isso o que fosse. Mariano Aureliano se  levantou, fez uma profunda reverência, e estendendo sua mão 

para ajudar‐me a ficar de pé, perguntou: 

—O 

que 

pode 

ser 

mais 

agradável 

recompensador 

para 

dois 

velhos 

que 

cuidar 

de ti até que te despertará de seus ensonhos? 

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Seu gracioso sorriso e sua cortesia finissecular eram irresistíveis. Relaxei‐me de 

imediato. —Não posso pensar em nada mais agradável — concordei, e permiti que me 

conduzisse a um refeitório bem  iluminado, situado do outro  lado do corredor, a uma mesa de caoba ovalada nos fundos do aposento. Com um gesto galante me ofereceu 

uma cadeira.

 Aguardou

 a que

 me

 instalasse

 comodamente,

 e depois

 disse

 que

 não

 era

 

demasiado  tarde  para  comer,  e  que  ele mesmo  se  encarregaria  de  trazer‐me  algo 

delicioso da cozinha. Minha proposta de ajudar foi recusada com finura. O senhor Flores, em vez de caminhar até a mesa, exibiu sua destreza acrobática 

impulsionando‐se  com  uma  meia‐lua,  e  calculou  a  distância  com  tal  precisão  que 

aterrissou a poucos centímetros da mesa. Com um sorriso tomou assento a meu lado. Seu rosto não revelava o esforço realizado, e nem sequer ofegava. 

—Apesar  de  que  negue  ser  um  acrobata,  creio  que  você  e  seus  amigos  são 

parte de um espetáculo mágico — opinei. O  senhor  Flores  saltou  de  sua  cadeira,  o  rosto  iluminado  por  intenções 

travessas. 

—Você tem toda a razão do mundo! Somos parte de um espetáculo mágico! — 

e pegou um  jarro de  cerâmica que estava  sobre um  largo aparador. Serviu‐me uma caneca de chocolate quente. —Isto e um pedaço de queijo representam para mim uma 

refeição — e me cortou um pedaço de queijo Manchego. Juntos eram uma delícia. Apesar de meus desejos não me ofereceu repetir. A meia caneca que me serviu 

não me satisfez. Sempre gostei de chocolate, que nenhum dano me fazia por mais que 

comesse, e tinha a certeza de que se me concentrasse em meu desejo de comer mais, ele se veria na obrigação de oferecer‐me outra caneca sem um pedido de minha parte. De menina, isto me dava resultado quando era forte meu desejo por algo. Observei‐lhe 

retirar dois

 copos

 e dois

 pratinhos

 extras

 do

 armário,

 e notei

 que

 entre

 a louça,

 os

 cristais e a prataria, pastava uma rara mistura de figuras de cerâmica pré‐hispânica e 

uns monstros pré‐históricos de plástico. —Esta é a casa das bruxas — informou o senhor Flores com ar de conspirador, 

como se isso explicasse a incongruência do conteúdo do móvel. —As esposas de Mariano Aureliano? — perguntei desafiante. Em  vez  de  responder  me  convidou  com  um  gesto  a  olhar  atrás  de  mim. 

Mariano Aureliano estava às minhas costas. —As mesmas — admitiu, colocando uma sopeira de porcelana sobre a mesa. —

As mesmas bruxas que fizeram esta deliciosa sopa de rabo de boi — e com um concha 

de prata

 encheu

 um

 prato

 e me

 instou

 a  juntar

‐lhe

 um

 pedaço

 de

 lima

 e outro

 de

 abacate. Assim  fiz,  devorando  tudo  nuns  poucos  goles. Comi  vários  pratos  até  ficar fisicamente satisfeita, quase saciada. 

Permanecemos  ao  redor  da mesa  um  longo  tempo.  A  sopa  de  rabo  de  boi exerceu  um  maravilhoso  efeito  sedativo  sobre  mim.  Sentia‐me  tranquila.  Algo 

usualmente muito desagradável em mim estava desconectado, e todo meu ser, corpo 

e  espírito,  agradecia  ao  fato  de  não  ter  que  utilizar  energia  para  defender‐me. Assentindo  com  a  cabeça,  como  confirmando  em  silêncio  cada  um  de  meus pensamentos, Mariano Aureliano me observava com olhos agudos e divertidos. Estava a ponto de dirigir‐me a ele chamando‐o Juan Matus quando antecipou meu intento e 

disse: 

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—Eu  sou  Juan Matus  para  Isidoro Baltazar.  Para  você  sou  o  nagual Mariano 

Aureliano. — sorrindo, chegou mais perto e sussurrou confidencialmente: —O homem 

que  te  trouxe  aqui é o novo nagual, o nagual  Isidoro Baltazar. Você deve usar esse 

nome quando falar com ele ou o mencionar. —Não está totalmente dormida nem desperta — continuou Mariano Aureliano 

—, de

 modo

 que

 poderá

 entender

 e recordar

 tudo

 o que

 lhe

 dizemos

 —

 e vendo

 que

 

eu estava a ponto de  interrompê‐lo, acrescentou com suavidade: —E esta noite não 

vai ficar fazendo perguntas estúpidas. Não foi tanto seu tom e sim uma força, um cordão, o que me gelou, paralisando 

minha  língua. Contudo minha cabeça, como  independente de minha vontade, fez um 

gesto de assentimento. —Precisa colocá‐la à prova — lembrou o senhor Flores a seu amigo. Um brilho 

decididamente perverso apareceu em seus olhos. —Ou melhor ainda, deixe que eu o 

faça. Mariano  Aureliano  fez  uma  pausa,  longa  e  deliberada,  plena  de  sinistras 

possibilidades, e me

 olhou

 em

 forma

 crítica,

 como

 se

 minhas

 feições

 pudessem

 dar

‐lhe

 

um  indício para  algum  importante  segredo.  Imobilizada por  seus olhos penetrantes, nem  sequer  pisquei.  Depois  deu  seu  perdão,  e  o  senhor  Flores  me  formulou  uma pergunta em voz grave e profunda: 

—Está enamorada de Isidoro Baltazar? E que me condenem se não disse que sim, de maneira mecânica e inanimada. O senhor Flores se aproximou até que nossas cabeças quase se tocaram, e em 

um murmúrio  cheio  de  riso  sufocado  perguntou: —De  verdade,  louca,  loucamente apaixonada? 

Repeti  que  sim,  e  ambos os  homens  estouraram  em  sonoras  gargalhadas. O 

som de

 suas

 risadas,

 repiqueteando

 em

 torno

 do

 aposento

 como

 bolinhas

 de

 ping

‐pong, pôs fim a meu estado de transe. Me agarrei ao som e saí  do encantamento. —Que porra é esta? — perguntei a todo pulmão. Ambos os homens saltaram em suas cadeiras, assustados por meus gritos. Se 

olharam, e logo seus olhares convergiram em mim, e ambos se abandonaram a um riso 

extático. Quanto mais eloqüentes eram meus insultos, maior eram suas gargalhadas, e 

tão contagioso era seu entusiasmo que não pude evitar de aderir‐me a ele. Quando  nos  acalmamos,  Mariano  Aureliano  e  o  senhor  Flores  me 

bombardearam  com  perguntas.  Os  interessava  em  especial  como  e  quando  havia 

conhecido  a  Isidoro Baltazar, e  cada pequeno detalhe os enchia de  alegria. Quando 

repeti os

 acontecimentos

 pela

 quarta

 ou

 quinta

 vez,

 havia

 ampliado

 ou

 melhorado

 a história, ou recordado detalhes que não teria suspeitado que poderia recordar. 

—Isidoro Baltazar conseguiu ver através de você e de todo o assunto —  julgou 

Mariano  Aureliano  quando  finalizei  minha  exposição.  —Contudo,  ainda  não  vê  o 

suficientemente bem. Nem sequer concebeu que fui eu quem te enviou a ele — e me 

lançou outra de suas olhadas perversas antes de corrigir‐se: —Na verdade não fui eu e 

sim  o  espírito,  que me  elegeu  para  fazer  seu mandato,  e  te  soprei  até  ele  quando 

estava  no  máximo  de  seu  poder,  no  meio  de  seu  ensonhar  desperta  —  falava  de 

maneira  casual,  quase  com  negligência,  e  somente  seus  olhos  transpareciam  sua sabedoria. —Talvez  seu  poder para  ensonhar  desperta  foi  a  razão pela  qual  Isidoro 

Baltazar 

não 

percebeu 

quem 

era, 

apesar 

que 

estava 

vendo, 

ainda 

quando 

espírito 

tenha revelado desde o primeiro momento em que ele te viu. Não pode existir maior 

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indício que essa exibição de luzes na névoa. Que estupidez a de Isidoro Baltazar de não 

ver o óbvio. Riu contidamente e eu concordei, sem saber com quê estava concordando. —Isso  te demonstrará que o  fato de ser  feiticeiro não é grande coisa.  Isidoro 

Baltazar é feiticeiro; ser um homem de conhecimento é algo diferente. Para chegar a 

isso, os

 feiticeiros

 precisam

 às

 vezes

 esperar

 toda

 uma

 vida.

 

—Qual é a diferença? — perguntei. —Um homem de conhecimento é um líder — explicou em voz baixa, sutilmente 

misteriosa.  —Os  feiticeiros  precisam  de  líderes  para  guiá‐los  até  e  através  do 

desconhecido. Um  líder se revela por suas ações; eles não têm preço, o que significa que não se pode os comprar, subornar, adular ou mistificar. 

Acomodou‐se melhor em  sua  cadeira, e disse que  todos os membros de  seu 

grupo haviam concordado em estudar aos líderes através da História, para descobrir se 

algum deles chegou a  justificar sua condição de tal. —E vocês encontraram alguns que o conseguiram? 

—Alguns —

 admitiu.

 —Os

 que

 encontramos

 poderiam

 ter

 sido

 naguais.

 Os

 

naguais são, pois, líderes naturais, homens de tremenda energia, que se convertem em 

feiticeiros  agregando um marco a mais  ao  seu  repertório: o desconhecido.  Se esses feiticeiros  chegam  a  converter‐se  em  homens  de  conhecimento  não  existe 

praticamente limite ao que podem alcançar. —Podem as mulheres…? — não me permitiu terminar. —As mulheres, como descobrirá algum dia, podem  fazer coisas  infinitamente 

mais complexas ainda. —Isidoro Baltazar — interrompeu o senhor Flores —, lhe fez lembrar a alguém 

que conhecera previamente? 

—Bom —

 respondi

 —,

 me

 senti

 muito

 bem

 com

 ele,

 como

 se

 o conhecesse

 de

 toda  a  vida. Me  fez  recordar a alguém,  talvez  alguém de minha  infância, um amigo 

esquecido. —De modo que não recorda tê‐lo conhecido antes? — insistiu o senhor Flores. —Você  quer  dizer  na  casa  de  Esperanza?  —  talvez  estivera  ali  e  eu  não  o 

recordava. Sacudiu  sua cabeça, desiludido. Depois, pelo visto esgotado seu  interesse em 

minha resposta, perguntou se eu havia reparado em alguém que nos saudava com a 

mão quando dirigíamos em direção à casa. —Não, ninguém. 

—Pense bem

 —

 insistiu.

 Contei‐lhe que depois de Yuma, em vez de nos dirigirmos ao leste, a Nogales na 

Rota 8, o caminho mais  lógico,  Isidoro Baltazar havia marchado até o sul, ao México, depois ao  leste através de “El Gran Desierto”, depois de novo ao norte entrando nos Estados Unidos por Sonoyta a Ajo, Arizona, depois de novo ao México à Caborca, onde 

desfrutamos de um delicioso almoço de  língua de boi em molho picante de pimenta verde. 

—Quando  voltamos  ao  carro  com  o  estômago  cheio,  já  quase  nem  prestei atenção à rota — admiti. —Sei que passamos por Santa Ana, e após nos dirigimos até o 

norte à Cananea, e depois outra vez ao sul. Tudo muito confuso, em minha opinião. 

—Não 

lembra 

ter 

visto 

alguém 

na 

rota 

— 

insistiu 

senhor 

Flores 

—, 

alguém 

que os saudava com a mão? 

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Fechei bem os olhos, procurando visualizar a quem pudesse ter‐nos saudado de 

tal maneira, mas minha  lembrança da viagem era  feita de contos, canções e cansaço 

físico. E de repente, quando estava a ponto de abrir os olhos, surgiu a fugaz imagem de 

um  homem.  Disse‐lhes  que  recordava  vagamente  a  um  jovem  às  margens  de  um 

desses povoados, de quem pensei que nos pedia que o levássemos. 

—Pode ter

 feito

 sinais

 com

 a mão,

 mas

 não

 o posso

 assegurar.

 

Ambos riram como crianças empenhadas em ocultar um segredo. —Isidoro  Baltazar  não  estava  muito  seguro  de  nos  encontrar  —  anunciou 

Mariano Aureliano —, por isso seguiu essa rota insólita. Seguiu a rota dos feiticeiros, o 

caminho do coiote. —Por que não estaria seguro de encontrá‐los? —Não sabia se nos encontraria até ver ao  jovem fazendo‐lhe sinais — explicou 

Mariano Aureliano. —Esse  jovem é uma sentinela do outro mundo. Seu sinal era prova 

de que  se podia  seguir adiante.  Isidoro Baltazar deveria  ter  sabido ali mesmo quem 

era. Mas, como você, é extremamente cauteloso, e quando não o é, é extremamente 

temerário. —

 fez

 uma

 pausa

 para

 permitir

 que

 suas

 palavras

 se

 registrassem,

 e depois

 

acrescentou  significativamente: —O mover‐se  entre  esses  dois  pontos  é  a maneira mais segura de errar. A cautela cega tanto como o atrevimento. 

—Não entendo a lógica de tudo isto — murmurei fatigada. Mariano Aureliano esclareceu: —Quando Isidoro Baltazar traz um convidado, precisa prestar atenção ao sinal 

da sentinela antes de seguir viagem. —Certa vez  trouxe a uma garota por quem estava enamorado —  informou o 

senhor Flores, e fechou os olhos como transportado por sua  lembrança da garota. —Era alta, forte e de cabelos escuros. Pés grandes e rosto bonito. Percorreu toda a Baja 

Califórnia, e a sentinela

 nunca

 lhe

 autorizou

 a passagem.

 —Quer dizer que traz suas namoradas? — perguntei com mórbida curiosidade. —Quantas tem trazido? 

—Umas tantas — respondeu o senhor Flores com inocência. —Naturalmente o 

fez por conta própria. Seu caso é diferente. Você não é sua namorada; você retornava. Isidoro  Baltazar  quase  explodiu  quando  descobriu  que  por  tonto  não  compreendeu 

todas  as  indicações  do  espírito.  Ele  simplesmente  serviu  de  chofer.  Nós  te 

esperávamos. —O que teria acontecido se a sentinela não estivesse lá? —O  que  sempre  acontece  quando  Isidoro  Baltazar  vem  acompanhado  — 

retrucou Mariano

 Aureliano.

 —Não

 nos

 teria

 encontrado,

 porque

 não

 corresponde

 a ele eleger a quem  trazer ao mundo dos  feiticeiros — sua voz se  fez agradavelmente 

doce ao acrescentar: —Somente aqueles a quem o espírito  tenha assinalado podem 

bater à nossa porta, depois que um de nós o tenha admitido. Estive  a  ponto  de  interromper, mas  recordando  a  advertência  de  não  fazer 

perguntas  tontas,  tapei minha boca com a mão. Com um  sorriso Mariano Aureliano 

acrescentou que em meu caso Delia havia sido quem me trouxe ao mundo. —É uma de nossas duas colunas, por assim dizer, que fazem a porta de nosso 

mundo, a outra é Clara, a quem conhecerá logo. Havia uma genuína admiração em seus olhos e em sua voz quando disse: 

—Delia 

cruzou 

fronteira 

nada 

mais 

que 

para 

trazer‐

lhe 

à 

casa. 

fronteira 

é 

um  fato  concreto, mas  os  feiticeiros  o  usam  de maneira  simbólica. Você  estava  do 

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outro  lado e precisava  ser  trazida a este  lado. No outro está o mundo do cotidiano, mas neste se encontra o mundo dos feiticeiros. 

“Delia  te escoltou com delicadeza, um  trabalho verdadeiramente profissional; uma  manobra  impecável  que  você  apreciará  mais  e  mais  à  medida  que  passe  o 

tempo.” 

Mariano Aureliano

 se

 levantou

 em

 sua

 cadeira

 para

 alcançar

 a compoteira

 de

 

porcelana  da  divisória.  Colocou‐a  diante  de  mim  com  um  convite:  —Sirva‐se,  são 

deliciosos. Fascinada  olhei  os  damascos  polpudos  e  logo  provei  um  deles.  Eram  tão 

deliciosos que, de imediato, despachei mais três. O senhor Flores, depois de piscar‐me 

um olho, me  instigou  a  comê‐los  todos,  antes  que  retirassem o  prato. Com  a  boca 

cheia fiquei corada, e procurei pedir desculpas. —Não  se desculpe! —  recomendou Mariano Aureliano. — Seja  você mesma, 

mas  você  mesma  sob  controle.  Se  quer  acabar  com  os  damascos,  termine‐os,  e 

assunto encerrado. O que  jamais deve fazer é terminá‐los e depois arrepender‐se. 

—Então os

 terminarei

 —

 disse,

 e isso

 os

 fez

 rir.

 

—Sabia  que  conheceu  a  Isidoro Baltazar  no  ano  passado? —  disse  o  senhor Flores, que se balançava tão precariamente em sua cadeira que temi que caísse para trás e batesse contra o armário das louças. Um brilho maligno apareceu em seus olhos, ao  mesmo  tempo  em  que  começou  a  cantarolar  uma  bem  conhecida  ranchera, fazendo  um  arremedo  da  letra  para  contar  a  estória  de  Isidoro  Baltazar,  famoso 

cozinheiro de Tucson, que  jamais perdia a calma, nem sequer quando se lhe acusavam 

de pôr baratas mortas na comida. —Oh!  —  exclamei  —,  o  cozinheiro!  O  cozinheiro  da  cafeteria  era  Isidoro 

Baltazar! Mas  isso não pode estar certo. Não acredito que ele… —  interrompi a frase 

na metade.

 Olhei  fixamente a Mariano Aureliano, na esperança de descobrir algo em seu 

rosto,  em  seu  nariz  aquilino,  em  seus  olhos  penetrantes,  e  senti  um  involuntário 

calafrio. Havia algo de selvagem em seus olhos frios. —Sim — me  incitou. —Não  acredita  que  ele… —  e  com  um movimento  de 

cabeça me pressionava a completar minha  frase. Estive por dizer que não acreditava que  Isidoro  Baltazar  era  capaz  de mentir‐me  dessa maneira, mas  não me  animei  a 

formular a  frase. Os olhos de Mariano Aureliano se endureceram, mas eu me sentia tão mal comigo mesma que não tinha cabimento para o medo. 

—Ou seja, que, depois de tudo, fui enganada — explodi por fim, olhando‐o com 

fúria. —Isidoro

 Baltazar

 sabia

 todo

 o tempo

 quem

 era

 eu.

 Tudo

 não

 é mais

 que

 um

  jogo. —Tudo  é  um   jogo  —  concordou  Mariano  Aureliano  —,  mas  um   jogo 

maravilhoso. O único que vale a pena  jogar. —  fez uma pausa, como para dar‐me a 

oportunidade de continuar com minhas queixas, mas antes que eu pudesse fazê‐lo me 

lembrou da peruca que ele  insistiu em colocar‐me naquela oportunidade. —Se você 

não reconheceu a Isidoro Baltazar, que não estava disfarçado, o que te faz pensar que 

ele te reconheceu em seu disfarce de cachorro peludo? Mariano  Aureliano  seguia  me  observando.  Seus  olhos  haviam  perdido  sua 

dureza, agora se viam tristes e cansados. 

—Não 

foi 

enganada, 

nem 

sequer 

pensei 

em 

fazê‐

lo, 

não 

que 

não 

faria 

se 

 julgasse necessário — acrescentou. —Disse‐lhe como eram as coisas desde o começo. 

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Tem sido testemunha de coisas estupendas, mas não tem reparado nelas. Como faz a 

maioria  das  pessoas,  associa  a  feitiçaria  com  comportamentos  incomuns,  rituais, drogas, encantamentos — e, aproximando‐se, baixou a  voz ao nível de um  sussurro 

para  acrescentar  que  a  verdadeira  feitiçaria  era  uma  muito  sutil  e  esquisita manipulação da percepção. 

—A verdadeira

 feitiçaria

 —

 o senhor

 Flores

 concluiu

 —

 não

 permite

 a 

interferência humana. —Mas o senhor Aureliano diz ter me soprado até  Isidoro Baltazar — assinalei 

com imatura impertinência. —Não é isso uma interferência? —Sou  um  nagual —  respondeu Mariano  Aureliano. —Sou  o  nagual Mariano 

Aureliano, e o fato de ser o nagual me permite manipular a percepção. Eu o havia escutado com  toda atenção, mas não  tinha a menor  idéia do que 

queria dizer com manipulação da percepção. De puro nervosismo, estendi a mão para tomar o último damasco do prato. 

—Você  vai  ficar  doente  —  disse  o  senhor  Flores  —,  é  tão  pequena,  e  no 

entanto é uma

 dor

 de

 cabeça.

 

Mariano Aureliano parou atrás de mim, e apertou minhas costas de tal maneira que me fez devolver o último damasco que tinha na boca. 

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CAPÍTULO OITO 

Neste ponto a sequência dos fatos, tal como eu os recordo, se faz confusa. Não 

sei o que aconteceu depois. Talvez dormi  sem  ter me dado  conta disso, ou  talvez a 

pressão  que  exerceu  Mariano  Aureliano  sobre  minhas  costas  foi  tão  forte  que 

desmaiei. Quando

 voltei

 a mim

 estava

 estendida

 sobre

 uma

 esteira

 no

 chão.

 Abri

 os

 

olhos  e  de  imediato me  dei  conta  da  luminosidade  que me  rodeava. O  sol  parecia brilhar dentro do quarto. Pisquei repetidas vezes, pensando ter algum problema com 

os olhos, pois não podia centrá‐los. —Senhor Aureliano — chamei —, acho que algo anda mal com meus olhos… — 

tentei levantar‐me sem consegui‐lo. Não eram o  senhor Aureliano ou o  senhor Flores que estavam de pé  junto a 

mim, e sim uma mulher, que estava inclinada para frente a partir da cintura, tapando a 

luz.  Seus  cabelos negros balançavam  soltos em  torno de  seus ombros e  seus  lados; tinha um  rosto  redondo e um busto  imponente. De novo procurei  levantar‐me. Não 

me tocava,

 apesar

 do

 qual

 soube

 que

 de

 alguma

 maneira

 era

 ela

 que

 me

 retinha.

 

—Não o chame de senhor Aureliano, ou senhor Mariano. Essa é uma  falta de 

respeito  de  sua  parte.  Chame‐o  nagual,  e  quando  falar  dele  refira‐se  ao  nagual Mariano  Aureliano.  Ele  gosta  de  seu  nome  completo.  —  sua  voz  era  melodiosa. Simpatizei com essa mulher. 

Queria averiguar o que era toda essa bobagem com relação à falta de respeito. Tinha  escutado  a  Delia  e  todas  as  outras  mulheres  chamá‐lo  pelos  mais  ridículos diminutivos, e fazer‐lhe festa como se ele fosse seu boneco  favorito, e por certo que 

ele havia desfrutado de cada momento, mas eu não podia recordar de onde o havia presenciado. 

—Entende? —

 perguntou

 a mulher.

 Quis dizer que  sim, mas  tinha  ficado  sem  voz. Aventei,  sem êxito, de abrir  a 

boca, de falar, mas quando ela insistiu em perguntar se eu havia compreendido, tudo o 

que  pude  fazer  foi  afirmar  com  a  cabeça. Ofereceu‐me  sua mão  para me  ajudar  a 

levantar, mas antes que me tocasse eu  já estava de pé, como se meu desejo tornasse 

inútil o  contato  com  sua mão, e  conseguido  seu objetivo  antes de  sua  intervenção. Assombrada por esta  inesperada derivação quis  fazer‐lhe perguntas, mas apenas era possível manter‐me em pé, e quanto a falar, as palavras se recusavam a sair de minha boca. Acariciou repetidas vezes meus cabelos, obviamente interada de meu problema. Sorriu bondosamente e disse: 

—Está ensonhando.

 Não a escutei dizer  isso, mas  sabia que  suas palavras  se haviam movido  sem 

transição de sua mente à minha. Fez um sinal afirmativo com a cabeça, e me informou 

que, de  fato, eu podia escutar seus pensamentos e ela aos meus. Me assegurou ser como  uma  invenção  de  minha  imaginação,  apesar  do  qual  podia  atuar  comigo  ou 

sobre mim. —Preste atenção! — ordenou. —Não estou movendo meus  lábios e contudo 

estou lhe falando. Faça o mesmo. Sua boca não se movia em absoluto, e a fim de averiguar se seus lábios o faziam 

ao enunciar suas palavras, desejei tocar sua boca com meus dedos. Era bonita, mas de 

aspecto 

ameaçante. 

Tomou 

minha 

mão 

apertou 

contra 

seus 

lábios 

sorridentes. 

Não senti nada. 

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—Como posso falar sem meus lábios? — pensei. —Tem uma fenda entre as pernas — me informou, introduzindo as palavras de 

maneira direta em minha mente. —Concentre sua atenção nela. A perereca fala. Essa  observação  tocou  uma  fibra  especial  em  mim,  e  ri  até  ficar  sem  ar  e 

desmaiar  de  novo.  A  mulher  me  sacudiu  até  me  fazer  reagir.  Continuava  sobre  a 

esteira no

 chão,

 mas

 agora

 apoiada

 num

 grosso

 almofadão

 em

 minhas

 costas.

 Pisquei,

 

um calafrio me sacudiu, suspirei fundo e a olhei. Estava sentada ao meu lado sobre o 

chão. —Não costumo desmaiar — disse, surpreendida de poder fazê‐lo com palavras. 

O som de minha própria voz era tão reconfortante que ri forte e repeti a mesma frase 

várias vezes. —Eu  sei, eu  sei — disse para apaziguar‐me. —Não  se preocupe, não está de 

todo desperta. Eu sou Clara. Já nos conhecemos na casa de Esperanza. Deveria ter protestado, ou perguntado o que queria dizer com isso. Entretanto, 

sem duvidar por um só  instante, aceitei que seguia adormecida e que havíamos nos 

conhecido na

 casa

 de

 Esperanza.

 Lembranças,

 pensamentos

 brumosos,

 visões

 de

 gente

 

e  de  lugares  começaram  a  surgir  lentamente.  Um  pensamento  muito  claro  tomou 

conta de minha mente. Certa vez havia sonhado que a conheci; foi um sonho, portanto 

nunca havia pensado nele como num acontecimento real. Nesse momento lembrei de 

Clara. —É  claro  que   já  nos  conhecemos  —  declarei  triunfalmente  —,  mas  nos 

conhecemos num sonho, por conseguinte não é  real. Devo de estar sonhando neste 

momento, e desse modo posso me lembrar de você. Suspirei, feliz de que tudo pudesse ser explicado com tamanha facilidade, e me 

reclinei sobre os almofadões. Outra clara  lembrança de um sonho se estampou. Não 

podia lembrar

 quando

 o havia

 sonhado,

 porém

 me

 lembrava

 dele

 com

 a mesma

 fidelidade de um fato real. Nele, Delia me apresentava à Clara, a quem havia descrito 

como a mais gregária das mulheres ensonhadoras. —Tem amigos que a adoram — me confessou. A Clara do sonho era bastante alta, forte e rotunda, e me havia observado com 

insistência  como  quem  observa  a  um membro  de  uma  espécie  desconhecida,  com 

olhos atentos e sorrisos nervosos. E entretanto, apesar de seu olhar penetrante, havia gostado muito dela. Seus olhos eram especulativos, verdes e sorridentes, e o que mais recordava de seu olhar era sua similaridade com o de um gato: o fato de não piscar. 

—Eu  sei  que  este  é  só  um  sonho,  Clara  —  repeti,  como  se  precisasse  me 

assegurar disso.

 —Não, este não é só um sonho, é um sonho especial — me contradisse Clara. —Faz mal em urdir  tais pensamentos. Os pensamentos  têm poder, você deve cuidar deles. 

—Você  não  é  real,  Clara —  insisti, minha  voz  aguda  e  tensionada —,  é  um 

sonho. Por isso não posso lembrar de você quando estou acordada. Minha obstinada persistência fez Clara sorrir. —Nunca intentou recordar‐me. Não havia razão nem sentido para isso. Nós, as 

mulheres,  somos  extremamente  práticas.  É  nosso  grande  defeito  e  nosso  grande 

capital. 

Estava 

ponto 

de 

perguntar‐

lhe 

qual 

era 

aspecto 

prático 

de 

recordá‐

la 

agora, 

quando se antecipou à minha pergunta. 

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  80

—Dado  que  estou  frente  a  você  necessita  recordar‐me,  e me  recorda. —  se 

agachou  ainda  mais  para  fixar  em  mim  seu  olhar  felino  e  disse:  —E   já  não  me 

esquecerá. Os  feiticeiros  que me  criaram me  disseram  que  as mulheres  necessitam 

dois de cada coisa para que se fixe. Duas vistas de algo, duas leituras, dois sustos, etc. Você  e  eu  já  nos  encontramos  um  par  de  vezes. Agora  sou  sólida  e  real —  e  para 

provar o quanto

 era

 real,

 arregaçou

 a blusa

 e flexionou

 seus

 bíceps.

 —Toque

‐os

 —

 

convidou‐me. Rindo,  eu  o  fiz.  Na  verdade  ela  tinha  músculos  duros,  poderosos  e  bem 

definidos. Também me fez provar os de suas coxas e panturrilhas. —Se este é um sonho especial, que faço eu nele? — perguntei cautelosamente. —O que se te der vontade. Até agora está indo bem. Não posso guiar você, pois 

não sou sua mestra de ensonhos, e sim simplesmente uma bruxa gorda que cuida de 

outras bruxas. Foi minha sócia, Delia, quem te trouxe ao mundo dos feiticeiros, como 

uma parteira. Mas não foi quem primeiro te encontrou. Essa foi Florinda. —E quem é Florinda, e quando me encontrou? 

—Florinda é outra

 bruxa.

 Você

 a conheceu;

 é a que

 te

 levantou

 em

 seu

 

ensonho, na casa de Esperanza. Lembra da refeição no campo? —Ah…  —  suspirei,  compreendendo.  —Refere‐se  à  mulher  alta  de  voz 

profunda? — me senti feliz; sempre admirei as mulheres altas. Clara confirmou minha suposição: —A mulher alta de voz profunda. Ela encontrou você em uma festa, à qual você 

compareceu faz alguns anos, com seu amigo. Um acontecimento elegantíssimo na casa 

de um petroleiro, em Houston, Texas. —E o que fazia uma bruxa numa festa na casa de um petroleiro? — perguntei. 

Em seguida, me golpeou o pleno  impacto de sua declaração. Fiquei muda. Apesar de 

não lembrar

 ter

 visto

 a Florinda

 lembrava

 muito

 bem

 da

 festa.

 Eu

 havia

 comparecido

 com  um  amigo,  que  havia  voado  de  propósito  em  seu   jato  particular  desde  Los Ângeles,  e  regressado  no  dia  seguinte.  Eu  fui  sua  tradutora.  Compareceram  vários homens de negócios, mexicanos que não falavam inglês. 

—Meu Deus! — exclamei em segredo. —Que insólito! — e descrevi a festa com 

riqueza de detalhes à Clara. Aquela  foi minha primeira visita ao Texas, e como uma 

deslumbrada admiradora de estrelas de cinema, os homens me deixaram boba, não 

por  serem  lindos  e  sim  porque  me  parecia  tão  chamativa  sua  indumentária:  seus chapéus Stetson,  seus  ternos  cor pastel e  suas botas de cowboy. O petroleiro havia contratado  artistas  e montado  um  espetáculo  digno  de  Las Vegas,  numa  gruta  que 

fazia as

 vezes

 de

 um

 night

‐club,

 cheia

 de

 luzes

 e música

 estridente,

 e lembrava

 da

 comida como sendo de primeiríssima qualidade. —Mas por que Florinda iria a uma festa desse tipo? —O mundo dos feiticeiros é o que de mais estranho existe — respondeu Clara, 

que  com  um  acrobático  salto  se  levantou  sem  utilizar  os  braços,  para  percorrer  o 

quarto num ir e vir frente à esteira e ostentar seu aspecto chamativo: uma ampla saia escura, blusa de algodão com as costas bordadas em alegres cores, e sólidas botas de 

vaqueiro. Um chapéu australiano, cuja  longa aba escondia seu rosto do sol do meio‐

dia, dava o toque final à tão insólita vestimenta. —Gostou do meu conjunto? — perguntou radiante, detendo‐se frente a mim. 

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—É fabuloso! — aplaudi. Não havia dúvida de que Clara possuía o atrevimento 

e  a  confiança  necessários  para  usar  tais  roupas.  —Elas  lhe  caem  muito  bem  — 

acrescentei. Ajoelhando‐se  junto a mim me fez uma confidência: —Delia está verde de  inveja. Sempre competimos para ver quem  se anima a 

usar a roupa

 mais

 maluca.

 Precisa

 ser

 louca

 sem

 ser

 estúpida

 —

 guardou

 silêncio

 

durante os segundos em que me contemplou: —Se desejar competir é bem‐vinda — 

ofereceu. —Quer participar do nosso  jogo? Aceitei com muito prazer, e ela me pôs a par das regras. —Originalidade, praticidade, preço baixo e nada de ostentação — enumerou. 

Depois se pôs novamente de pé para percorrer o quarto e, rindo, desparramar‐se ao 

meu lado. —Florinda acha que devo animá‐la a participar. Disse‐me que naquela festa 

descobriu que você mostra uma tendência para conjuntos sumariamente práticos… — 

apenas conseguiu terminar a frase, pois a assaltou um ataque de risos. —Florinda falou comigo lá? — perguntei, olhando‐a furtivamente, intrigada por 

saber se

 ela

 forneceria

 os

 detalhes

 daquela

 festa

 que

 eu

 não

 havia

 dado,

 e nem

 estava

 

disposta a proporcionar. Clara negou com um movimento de cabeça, e logo sorriu de maneira distraída, 

destinada a evitar novas referências à festa. —Como  foi que Delia assistiu ao batismo em Nogales, Arizona? — perguntei, 

orientando a conversa para o tema da outra festa. —Florinda  a  enviou  —  admitiu  Clara,  recolhendo  seus  cabelos  soltos  sob  o 

chapéu australiano. —Chegou dizendo a todos que voltaria contigo. —Um momento! —  interrompi. —Isto não é um sonho. O que está  tentando 

fazer comigo? 

—Estou procurando

 instruir

‐lhe

 —

 insistiu

 Clara

 sem

 modificar

 seu

 ar

 indiferente, utilizando um  tom quase casual. Não parecia  interessar‐lhe o efeito que 

suas  palavras  pudessem  ter  em  mim,  apesar  do  qual  me  observou  de  maneira cuidadosa ao agregar: —Este é um ensonho, e  certamente estamos  falando em  seu 

ensonho porque eu também estou ensonhando seu ensonho. Que suas insólitas declarações bastaram para apaziguar‐me foi prova de que eu 

ensonhava. Minha mente se acalmou, sonolenta, e capaz de aceitar a situação. Escutei minha voz separada de minha vontade. 

—Não  havia modo  de  que  Florinda  soubesse  de minha  viagem  a Nogales — 

disse. —O convite de minha amiga foi feito no último momento. 

—Sabia que

 isto

 seria

 incompreensível

 a você

 —

 suspirou

 Clara,

 e olhando

 no

 fundo de meus olhos e pesando suas palavras cuidadosamente, declarou: —Florinda é 

sua mãe, mais que qualquer outra mãe que  jamais tenha tido. Essas palavras me pareceram absurdas, mas não podia dizer nada a respeito. —Florinda te pressente — continuou Clara com um toque diabólico nos olhos. 

— Utiliza um dispositivo rastreador. Sabe onde você se encontra. —Que aparelho rastreador? — perguntei, sentindo que de súbito minha mente 

estava  sob  controle. O  simples  pensar  que  alguém  pudesse  saber meu  paradeiro  a 

todo o momento me encheu de medo. —Os sentimentos dela por você são um aparelho rastreador — respondeu Clara 

com 

esquisita 

simplicidade, 

num 

tom 

tão 

doce 

harmonioso 

que 

meus 

temores 

desapareceram. 

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—Que sentimentos, Clara? —Quem  sabe,  filha?  —  e  encolheu  as  pernas,  as  rodeou  com  os  braços  e 

descansou a testa sobre os  joelhos. —Nunca tive uma filha assim. Meu estado de ânimo mudou de maneira abrupta; o temor voltou, e com meu 

velho estilo racional e ponderado, comecei a preocupar‐me pelas sutis implicações do 

que foi

 dito

 por

 Clara.

 E foram

 precisamente

 essas

 deliberações

 racionais

 as

 que

 me

 

fizeram retomar minhas dúvidas. Não era possível que isto fosse um sonho. Eu estava desperta, somente assim se poderia explicar meu intenso grau de concentração. 

Deslizando‐me pelo almofadão, no qual apoiava minhas costas,  semicerrei os olhos.  Mantive  a  vista  fixa  em  Clara  através  das  pálpebras,  e  me  perguntei  se 

desapareceria lentamente, como desaparecem as pessoas e as visões nos sonhos. Não 

o  fez,  e  momentaneamente  me  tranquilizou  a  idéia  de  que  ambas  estávamos despertas. 

—Não, não estamos despertas — contradisse Clara, de novo  intrometendo‐se 

em meus pensamentos. 

—Posso falar

 —

 disse,

 para

  justificar

 meu

 estado

 de

 total

 consciência.

 

—Grande  façanha! — zombou ela. —Agora  farei algo que te despertará, para que possa continuar esta conversa estando verdadeiramente desperta — e enunciou a 

última palavra com extremo cuidado, prolongando‐a exageradamente. —Espere, Clara, espere — roguei. —Dê‐me tempo para adaptar‐me a tudo isto 

— preferia minha insegurança ao que pudesse me fazer. Indiferente à minha súplica, Clara ficou de pé e esticou a mão até uma  jarra de 

água  colocada  sobre uma mesa próxima. Rindo, girou  sobre mim, mantendo a  jarra sobre minha cabeça. Tentei desviar‐me para um  lado sem consegui‐lo; meu corpo se 

recusava a obedecer, parecia cimentado à esteira. Antes que ela chegasse a despejar a 

água sobre

 mim,

 senti

 uma

 suave

 e fria

 garoa

 sobre

 meu

 rosto,

 e o frio,

 mais

 que

 o molhado, produziu uma sensação muito particular. Primeiro semi‐ocultou o  rosto de 

Clara, como as ondas que distorcem a superfície da água: logo o frio se concentrou em 

meu estômago,  fazendo me retrair sobre mim mesma como uma manga  invertida, e 

meu  último  pensamento  foi  que me  afogaria  num  jarro  de  água.  Borbulhas  e mais borbulhas escuras bailaram ao meu redor até que tudo se fez negro. 

Quando  recobrei a consciência  já não estava sobre a esteira, e sim sobre um 

divã na sala. Duas mulheres se encontravam aos meus pés, olhando‐me com grandes olhos  fixos.  Florinda,  a  mulher  alta  de  voz  rouca,  estava  sentada  ao  meu  lado, cantarolando uma canção de ninar, ou assim pareceu a mim, e acariciava meu cabelo, 

meu rosto

 e meus

 braços

 com

 grande

 ternura.

 O

 contato

 e o som

 de

 sua

 voz

 me

 serenaram.  Permaneci  deitada,  meus  olhos  fixos  nos  seus,  certa  de  estar experimentando um de meus sonhos vívidos que sempre começavam como sonhos e 

acabavam como pesadelos. Florinda me falava, me ordenava olhá‐la nos olhos, e suas palavras se moviam 

sem  som,  como asas de mariposa, mas o que  vi em  seus olhos me encheu de uma sensação familiar, o terror abjeto e irracional que experimentava em meus pesadelos. Levantei‐me  de  um  salto  e  corri  até  a  porta,  respondendo  à  reação  automática  e 

animal que sempre as acompanhava. —Não tenha medo, meu amor — me consolou Florinda, que me havia seguido. 

—Relaxe, 

estamos 

todos 

aqui 

para 

lhe 

ajudar. 

Não 

deve 

se 

angustiar, 

pois 

danificará 

seu corpinho se o submeter ao temor desnecessário. 

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Eu me havia detido  junto à porta, não em  reação às suas palavras, e sim por não  poder  abri‐la. Meu  tremor  aumentou,  sacudindo‐me  ao  ponto  de  fazer  doer  o 

corpo e bater o coração de maneira tão forte e irregular que pressenti que terminaria por estourar. 

—Nagual! — gritou Florinda por cima de seu ombro —, terá que fazer algo ou 

ela morrerá

 de

 susto.

 

Eu não conseguia ver a quem se dirigia, mas em minha aloucada busca de um 

lugar por onde fugir divisei uma segunda porta no outro extremo do cômodo. Estava certa de  contar  com  suficiente energia  como para  alcançá‐la, porém minhas pernas cederam, e como se a vida tivesse abandonado meu corpo, caí  ao chão  já sem respirar. Os  longos  braços  da  mulher  descenderam  sobre  mim  como  as  asas  de  uma  águia enorme,  me  recolheram,  e  pondo  sua  boca  sobre  a  minha  insuflou  ar  em  meus pulmões. 

Lentamente meu  corpo  se  relaxou,  se  fez  normal meu  ritmo  cardíaco,  e me 

invadiu uma estranha paz que, de repente, se transformou em viva excitação. Não era 

o medo

 a causa,

 e sim

 o ar

 recebido

 da

 mulher,

 ar

 forte

 que

 abrasou

 minha

 garganta,

 

meus pulmões, meu estômago e virilha para chegar às minhas mãos e meus pés. Num 

instante percebi que ela era igual a mim, só que mais alta, tão alta como eu gostaria de 

ter sido, e senti tal amor por ela que fiz algo  incrível: beijei‐a apaixonadamente. Senti que sua boca se alargou num sorriso, e depois  jogou a cabeça para trás e riu. 

—Esta ratita me beijou — anunciou, dirigindo‐se aos outros. —Estou sonhando! — exclamei, e todos riram com um abandono infantil. Inicialmente  não  pude  evitar  rir  com  eles,  mas  quase  em  seguida  me 

transformei em meu verdadeiro eu: envergonhada por causa de um ato  impulsivo, e 

irritada por ter sido desmascarada. A mulher alta me abraçou. 

—Sou Florinda

 —

 disse,

 e alçando

‐me

 me

 ninou

 em

 seus

 braços

 como

 se

 fosse

 uma criança. —Você e eu somos  iguais. Você é tão pequena como eu gostaria de ser. Ser alta é uma grande desvantagem. Ninguém pode ninar você. Eu meço um metro e 

setenta e sete. —Eu,  um  metro  e  cinquenta  e  sete  —  confessei,  e  ambas  rimos,  pois  nos 

entendíamos à perfeição. Eu era um pouco menor no último centímetro mas sempre o 

arredondava, e estava certa de que com Florinda acontecia ao contrário. Beijei  suas  bochechas  e  seus  olhos,  amando‐a  com  um  amor  que  me  era 

incompreensível,  sem  dúvidas, medo ou  expectativas.  Era o  amor  que  se  sente nos sonhos.  Pelo  visto  concordou  comigo.  Florinda  deixou  escapar  um  suave  riso. A  luz 

fugaz de

 seus

 olhos

 e o branco

 fantasmal

 de

 seu

 cabelo

 representavam

 algo

 assim

 como  uma  lembrança  esquecida.  Tinha  a  impressão  de  conhecê‐la  desde o  dia  que 

nasci,  e  se  me  ocorreu  que  os  meninos  que  admiram  às  suas  mães  têm  que  ser meninos perdidos. O amor filial, unido à admiração física pela mãe, deve produzir um 

amor total como o que eu sentia por esta mulher alta e misteriosa. Depositou‐me no 

chão, e virando‐me até a uma mulher bonita, de cabelo e olhos escuros, disse: —Esta é Carmela. — os traços de Carmela eram delicados e sua pele impecável; 

pele suave e da palidez cremosa de quem está sempre dentro de casa. —Somente tomo banhos de lua — sussurrou em meu ouvido ao abraçar‐me. —

Deveria  fazer o mesmo. É demasiado branca para estar ao sol; está  lhe arruinando a 

pele. 

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  84

Mais que nada  foi  sua voz a que  reconheci. Era a mesma que me havia  feito 

todas  aquelas  perguntas  diretas  e  pessoais  na  refeição  do  campo.  Lembrava  dela sentada,  e  então me  parecia  frágil;  agora,  para minha  surpresa,  comprovei  que me 

ultrapassava em oito ou nove centímetros, e seu corpo poderoso e muscular me fez se 

sentir insignificante em comparação. 

Com seu

 braço

 em

 torno

 de

 meu

 ombro

 Florinda

 me

 guiou

 até

 a outra

 mulher,

 

que estava parada  junto ao divã quando despertei. Era alta e musculosa, ainda que não 

tão  alta  como  Florinda;  a  sua  não  era  uma  beleza  convencional  (seus  traços  eram 

demasiado  fortes  para  isso),  apesar  do  qual  havia  nela  algo  chamativo  que  atraía, inclusive a  tênue sombra que povoava  seu  lábio superior, e que obviamente eu não 

achava necessário  ter. Pressenti nela uma  tremenda  força, uma agitação subjacente, mas totalmente controlada. 

—Esta é Zoila — disse Florinda. Zoila  não  insinuou  abraçar‐me  ou  apertar  minha  mão,  e  foi  Carmela  quem, 

rindo, falou por ela: 

—Estou muito

 contente

 de

 ver

 você

 de

 novo.

 —

 a boca

 de

 Zoila

 se

 curvou

 no

 

mais delicioso dos sorrisos, mostrando dentes brancos, grandes e paralelos, e quando 

sua  longa e  fina mão cheia de  jóias roçou minha bochecha me dei conta de que era aquela cujo rosto esteve oculto sob uma massa de cabelos desarrumados. Era quem 

havia costurado a  renda belga nas bordas da  lona  sobre a qual nos  sentamos nessa ocasião da comida. 

As três mulheres me rodearam, obrigando‐me a sentar no divã. —Quando  lhe  conhecemos  estava  ensonhando  —  informou  Florinda  —,  de 

modo que não houve oportunidade para nos  relacionarmos. Agora está desperta, e 

sendo assim, então nos fale de você. 

Estive a ponto

 de

 interrompê

‐la

 para

 dizer

‐lhe

 que

 este

 era

 um

 sonho,

 e que

 durante o piquenique, adormecida ou desperta,  já  lhes havia contado  tudo o que se 

merecia saber de minha vida. —Não,  não.  Está  equivocada  —  respondeu  Florida,  como  se  de  fato  eu 

houvesse exteriorizado esse pensamento. —Agora está totalmente desperta, e o que 

desejamos saber é o que tem  feito desde nosso último encontro. Em especial conte‐

nos de Isidoro Baltazar. —Quer dizer que este não é um sonho? — perguntei timidamente. —Não, não é um sonho — assegurou‐me. —Há uns minutos você ensonhava, 

mas isto é diferente. 

—Não vejo

 a diferença.

 —Isso se deve a que é uma boa ensonhadora — explicou. —Seus pesadelos são 

reais; você mesma disse isso. Todo meu  corpo  se  tensionou  e,  depois,  como  sabendo  que  não  resistiria  a 

outro ataque de medo, se afrouxou, abandonando‐se ao momento. Repeti a elas o  já 

narrado  e  recontado  a  Mariano  Aureliano  e  ao  senhor  Flores.  Contudo,  nesta oportunidade  recordei detalhes passados por  alto  anteriormente,  tais  como os  dois lados  do  rosto  de  Isidoro  Baltazar,  e  os  dois  simultâneos  estados  de  ânimo  que 

revelavam  seus olhos: o esquerdo  sinistro,  ameaçador, o  direito  aberto e  amistoso. Sustentei que era um homem perigoso. 

—Possui 

raro 

poder 

de 

mover 

os 

fatos 

até 

onde 

lhe 

agrada, 

enquanto 

ele 

permanece fora deles e observa como estes se contorcem. 

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  85

Às mulheres  lhes  fascinou o que eu  revelava, e Florinda me  indicou  com um 

sinal que prosseguisse. —O que  torna à gente  tão vulnerável a seus encantos é  sua generosidade — 

continuei  —,  e  a  generosidade  é  talvez  a  virtude  que  não  podemos  resistir  por estarmos despossuídos dela, seja qual for nossa base. — ao dar‐me conta do alcance 

dessas palavras

 me

 detive

 abruptamente

 e as

 observei

 espantada,

 medindo

 sua

 

reação. —Não sei o que me aconteceu — disse tentando desculpar‐me. —Na verdade 

não sei por que disse  isso, quando eu mesma não pensei em  Isidoro Baltazar nesses termos. Não sou eu quem fala, pois nem sequer sou capaz de fazer esse tipo de  juízo. 

—Não  importa  de  onde  lhe  vêm  esses  pensamentos,  menina  —  consolou 

Florinda. —Obviamente os está sacando direto da fonte. Todos nós fazemos isso: tirá‐

los da própria fonte, mas se precisa ser feiticeiro para dar‐se conta disso. Não  entendi  o  que  intentava  dizer‐me.  Repeti  que  não  havia  sido  minha 

intenção  deixar  que  minha  língua  me  dominasse.  Florinda  riu,  e  durante  uns 

momentos me

 contemplou

 pensativa.

 

—Atue como se estivesse ensonhando. Seja audaz e não se desculpe. Me  senti  tonta,  incapaz  de  analisar  o  que  sentia.  Florinda  ordenou  às  suas 

companheiras: —Conte‐lhe de nós. Carmela limpou sua garganta, e sem olhar‐me, disse: —Nós três e Delia formamos uma unidade. Nos ocupamos do mundo cotidiano. Eu estava atenta a cada uma de suas palavras, mas não consegui entendê‐la. —Somos a unidade de feiticeiras que trata com a gente. Há outra unidade de 

quatro mulheres que nada têm a ver com as pessoas. 

Carmela tomou

 minha

 mão

 na

 sua

 e examinou

 a palma,

 como

 se

 estivesse

 por

 ler minha  sorte,  para depois  formar  um  punho  com ela  e  acrescentar: —Por  alto  é 

como nós, e em particular como Florinda. Pode lidar com as pessoas. — fez uma nova 

pausa, e com uma olhada sonolenta repetiu o que Clara  já me havia antecipado: —Foi Florinda quem te encontrou. Assim, enquanto permanecer no mundo dos 

feiticeiros,  lhe pertence. Ela há de guiar e cuidar de você. — era tal a certeza de seu 

tom que me deixou em profunda preocupação. —Não pertenço a ninguém e não preciso que cuidem de mim — disse, e minha 

voz soava tensa, insegura e nada natural. As três mulheres me observaram em silêncio, sorridentes. 

—Crêem que

 necessito

 ser

 guiada?

 —

 perguntei

 desafiante,

 passando

 meu

 olhar  de  uma  à  outra.  Seus  olhos  estavam  semicerrados,  seus  lábios  abertos  em 

sorrisos contemplativos, e os imperceptíveis movimentos de suas testas, indicava que 

aguardavam  que  eu  terminasse  com  o  que  tinha  a  dizer.  —Creio  que  me  arranjo 

bastante bem na vida — terminei alegando com escassa convicção. —Lembra‐se  do  que  fez  na  festa,  aquela  onde  te  encontrei?  —  perguntou 

Florinda. Ao notar que eu reagia assombrada, Carmela cochichou em meu ouvido: —Não se  inquiete. Sempre encontrará um modo de explicá‐lo por  inteiro — e 

pelo  gesto  de  desdém  que  traçou  com  sua  mão,  deu  a  entender  não  estar 

minimamente 

preocupada. 

mim 

me 

dominou 

pânico 

só 

de 

pensar 

que 

pudessem 

saber que naquela festa eu me havia passeado desnuda frente a dezenas de pessoas. 

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Até esse momento, se não até orgulhosa dele, eu aceitava esse ato desinibido 

como uma manifestação de minha personalidade espontânea. Em primeiro lugar havia feito um longo passeio a cavalo com o dono da casa, vestindo meu traje de noite e sem 

cela,  depois  que  ele  me  desafiou  a  fazê‐lo  e  apostasse  que  não  o  faria.  Foi  para demonstrar  que  eu  era  tão  boa montando  como  qualquer  cowboy.  Tive  um  tio  na 

Venezuela dono

 de

 um

 haras,

 e montava

 desde

 que

 era

 muito

 pequena.

 Após

 ganhar

 a 

aposta, mareada  pelo  esforço  e  pelo  álcool,  arrematei minha  façanha mergulhando 

nua na piscina. —Foi ali, na piscina, onde você se exibiu pelada — disse Florinda, obviamente a 

par de meus pensamentos. —Me roçou com suas nádegas desnudas, e escandalizou a 

todos, inclusive a mim. Me agradou sua ousadia, sobretudo a atitude de caminhar nua 

de um  lado ao outro da piscina, nada mais que para esfregar‐se contra mim. O tomei como uma indicação de que o espírito te estava assinalando para benefício meu. 

—Não pode estar certo — murmurei —, se  tivesse estado nessa  festa eu me 

lembraria de você. É muito alta e chamativa para passar inadvertida. — não disse isso 

em som

 de

 elogio.

 Queria

 convencer

‐me

 de

 que

 estava

 sendo

 enganada,

 manipulada.

 

—Me  agradou  isso  de  você  estar  se  matando  para  exibir‐se  —  continuou 

Florinda.  —Era  um  palhaço  ansioso  por  chamar  a  atenção  por  qualquer  meio,  em 

especial  quando  saltou  sobre  uma  mesa  e  dançou  sacudindo  sua  bunda desavergonhadamente enquanto o anfitrião gritava como louco. 

Ao  invés de envergonhar‐me, seus comentários me produziram uma sensação 

incrível de  tranquilidade e agrado. Se havia  feito público meu segredo, o que  jamais me  havia  animado  a  admitir:  eu  era  uma  exibicionista  capaz  de  qualquer  ato  que 

centrasse a atenção em mim. Dominou‐me um novo estado de ânimo, definitivamente mais  humilde, menos  defensivo, mas  temi  que  este  estado  seria  de  curta  duração. 

Sabia que

 as

 percepções

 e as

 realizações

 às

 quais

 alcancei

 em

 sonhos

  jamais

 foram

 duradouras.  Mas  talvez  Florinda  estivesse  certa  e  não  era  este  um  sonho,  e  por conseguinte meu  exaltado  estado  perduraria.  Evidentemente  conhecedora  de meus pensamentos, as três mulheres concordaram de maneira enfática, o qual, em lugar de 

estimular‐me, só fez reavivar minha incerteza. Tal como temia, meu estado perceptivo 

foi efêmero. Em poucos minutos fervia de dúvidas, e precisava de uma trégua. —Onde está Delia? — perguntei. —Em Oaxaca —  informou Florinda, e depois acrescentou sutilmente: —Esteve 

aqui nada mais que para saudar‐lhe. Pensei que se mudasse de assunto conseguiria um respiro e a oportunidade de 

recuperar minhas

 forças,

 mas

 agora

 enfrentava

 algo

 contra

 o qual

 me

 encontrava

 desprovida de recursos. Não podia acusar a Florinda de mentir deliberadamente para manipular‐me,  o  qual  normalmente  teria  feito  com  qualquer  um.  Não  podia 

argumentar que suspeitava que me houvessem drogado e levado de quarto em quarto 

enquanto estava inconsciente. —O  que  você  disse,  Florinda,  é  absurdo  —  a  censurei.  —Sem  dúvida  não 

esperará que te leve a sério. Sei que Delia está escondida em um dos quartos. Os olhos de Florinda pareciam dizer‐me que entendia meu dilema. —Não tem outra alternativa que a de  levar‐me a sério — e apesar do tom ser 

moderado, a intenção era categórica. 

Virei‐

me 

até 

as 

outras 

duas 

mulheres, 

com 

esperança 

de 

obter 

algum 

tipo 

de 

resposta, qualquer coisa capaz de apaziguar meu crescente temor. 

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—Se outra pessoa  lhe guia é muito fácil ensonhar — confiou‐me Carmela. —A 

única desvantagem é que essa pessoa precisa ser um nagual. —Faz tempo que venho escutando essa palavra. O que é um nagual? —Um  nagual  é  um  feiticeiro  de  grande  poder,  que  pode  conduzir  a  outros 

feiticeiros através da escuridão e levá‐los à luz — explicou Carmela —, mas o nagual  já 

lhe disse

 isso,

 não

 se

 lembra?

 

Florinda intercedeu ao comprovar o esforço que eu fazia para recordar. —Os  acontecimentos  de  nossa  vida  cotidiana  são  fáceis  de  recordar.  Temos 

muita  prática  nela,  mas  os  que  vivemos  em  ensonhos  são  farinha  de  outro  saco. Precisamos lutar muito para recuperá‐los, simplesmente porque o corpo os armazena em diferentes lugares. Com mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula — 

continuou — as instruções para ensonhar começam por fazer com que desenhem um 

mapa de seus corpos, um trabalho cuidadoso que revela onde as visões dos ensonhos são armazenadas. 

—Como se traça esse mapa, Florinda? — perguntei, autenticamente intrigada. 

—Percorrendo e investigando

 cada

 polegada

 do

 corpo,

 mas

 não

 posso

 dizer

 

mais. Sou sua mãe, não sua mestra de ensonho. Sua mestra recomenda um martelinho 

de madeira para golpear o corpo e tatear somente as pernas e os quadris, pois muito 

raramente o corpo armazena estas memórias no peito ou no ventre. O que se guarda no peito, costas e ventre são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A 

única coisa que diz respeito a você agora é que recordar ensonhos  tem a ver com a 

pressão física sobre o ponto específico onde está armazenada essa visão. Por exemplo 

— terminou dizendo com amável simplicidade — se empurrar sua vagina pressionando 

o clitóris, recordará o que te disse Mariano Aureliano. Olhei‐a espantada, e depois caí  num acesso de risinhos nervosos. Não pensava 

empurrar nada.

 Florinda

 também

 riu,

 ao

 parecer

 estar

 desfrutando

 de

 meu

 desconcerto. —Se não o fizer — ameaçou —, então terei que fazer com que Carmela o faça 

por você. Virei‐me até Carmela, que com um sorriso a ponto de tornar‐se gargalhada, me 

assegurou que o faria. —Não faz falta! — gritei. —Eu lembro de tudo! — e de verdade o recordava, e 

não só o dito por Mariano Aureliano. —O senhor Aureliano... Carmela não me permitiu continuar. —Clara lhe disse que o chame de nagual Mariano Aureliano. 

—Os ensonhos

 são

 portas

 que

 conduzem

 ao

 desconhecido

 —

 disse

 Florinda,

 acariciando  minha  cabeça. —Os  naguais  guiam  por  meio  de  ensonhos,  e  o  ato  de 

ensonhar com um propósito é a arte dos feiticeiros. O nagual Mariano Aureliano tem 

lhe ajudado a chegar aos ensonhos que todos nós ensonhamos. Pisquei  repetidas  vezes,  sacudi  a  cabeça,  e  depois  me  deixei  cair  sobre  os 

almofadões do divã, espantada pelo absurdo do quanto estava  recordando. Lembrei ter  sonhado  com  eles  um  ano  atrás  em  Sonora,  um  sonho  que  pareceu  durar eternamente.  Nesse  sonho  conheci  a  Clara,  Nélida  e  Hermelinda,  a  equipe  de 

ensonhadoras. Disseram‐me  que  quem  dirigia  essa  equipe  era  Zuleica, mas  que  eu 

ainda não podia sonhar com ela. 

À 

medida 

que 

memória 

desse 

sonho 

se 

aclarava, 

também 

se 

fez 

claro 

que 

entre  essas mulheres  nenhuma  era mais  ou menos  que  a outra. Que  uma  de  cada 

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grupo  fosse  líder de nenhuma maneira  implicava poder, prestígio ou  realização, mas sim por uma simples questão de eficiência. Não sei por que, mas eu estava convencida de que a única coisa que a elas importava era o profundo afeto existente entre elas. 

Naquele  sonho  todos  me  haviam  dito  que  Zuleica  era  minha  professora  de 

ensonhos; era  tudo o que podia  recordar. Tal como me havia dito Clara, necessitava 

vê‐las

 ou

 sonhar

 com

 elas

 uma

 vez

 mais

 para

 cimentar

 meu

 conhecimento

 de

 suas

 

personalidades. No momento não passavam de lembranças incorpóreas. Vagamente escutei a Florinda dizer que depois de outras poucas tentativas eu 

melhoraria em mover‐me de minha lembrança de um ensonho ao ensonho que estava ensonhando, e depois ao estado normal de consciência. Escutei Florinda rindo, mas eu 

 já não estava na casa e sim  fora, caminhando através do chaparral,  lentamente, por uma trilha invisível, e um tanto intranquila devido à falta de luz, lua ou estrelas. 

Atraída por uma  força  invisível entrei num aposento grande, escuro salvo por umas  linhas de  luz que cruzavam de parede a parede sobre as cabeças daqueles que 

estavam  sentados  em  dois  círculos,  um  externo  e  outro  interno,  linhas  que 

aumentavam e diminuíam

 de

 intensidade

 como

 se

 alguém

 no

 círculo

 manipulasse

 um

 

interruptor que acendia e apagava a corrente. Reconheci  a  Mariano  Aureliano  e  a  Isidoro  Baltazar,  sentados  costas  contra 

costas no meio do círculo  interior. Reconheci  tanto  seus  rostos como sua energia, a 

qual não era mais brilhante ou  intensa que  a  dos outros, e  sim mais massiva, mais volumosa; um esplêndido e enorme montão de brilho inacabável. 

O quarto emitia um brilho  límpido e  tudo, cada ângulo, cada esquina,  reluzia uma  força quase  irreal. Tal era a  claridade que  tudo  se destacava em  separado, em 

especial  aquelas  linhas  de  luz  aderidas  às  pessoas  sentadas  no  círculo,  ou  que 

emanavam delas. Todas elas estavam conectadas por raios luminosos que pareciam os 

pontos de

 suspensão

 de

 uma

 gigantesca

 teia

 de

 aranha,

 e se

 comunicavam

 sem

 palavras através da luz. Me vi atraída em direção a essa tensão elétrica e silenciosa, até 

converter‐me eu também num ponto dessa rede de luminosidade. —O que vai acontecer? — perguntei a Florinda. Encontrava‐me estirada no divã 

com a cabeça em seu colo. Não  respondeu;  tampouco Carmela nem Zoila, que estavam  sentadas  ao  seu 

lado  com  os  olhos  fechados.  Repeti  a  pergunta  várias  vezes,  mas  só  obtive  como 

resposta a suave respiração das três mulheres. Tinha a certeza de que dormiam, e no 

entanto sentia sobre mim a presença de seus olhos. O silêncio e a escuridão rondavam 

a casa como algo vivo, trazendo com eles um vento gelado e o perfume do deserto. 

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  89

CAPÍTULO NOVE 

Tremendo de frio apertei a coberta ao redor de meu corpo e me  levantei. Me 

encontrei numa cama estranha, num quarto estranho mobiliado só com uma cama e 

uma mesa de noite, apesar do qual  todo o entorno exsudava  familiaridade. Contudo 

não conseguia

 dizer

 por

 que

 tudo

 me

 era

 tão

 bem

 conhecido.

 “Talvez

 ainda

 esteja

 

dormindo”, pensei. “Como sei que não é um sonho?” Me deixei cair novamente sobre 

as almofadas e permaneci ali, com meus braços atrás da cabeça, deixando que os raros acontecimentos  presenciados  e  vividos,  metade  sonho,  metade  lembrança, percorressem minha mente. 

Pelo visto  tudo havia começado no ano anterior, quando acompanhei a Delia Flores à casa da curandeira. Ela mantinha que a comida que compartilhei com todos havia sido um ensonho, e eu  rejeitei suas pretensões como absurdas. Não obstante, ela tinha razão. Agora eu sabia que a refeição no campo havia sido um ensonho, não 

meu, e sim um ensonho ensonhado por outros, ao qual eu fui convidada: eu fui uma 

convidada participante.

 Meu

 erro

 todo

 esse

 tempo

 havia

 sido

 o de

 negá

‐lo

 

obstinadamente, em descartar como falso sem saber o que significava falso para mim. A  única  coisa  que  consegui  com  isso  foi  banir o  fato  tão  completamente  de minha mente que perdi consciência dele. 

Eu precisava aceitar o fato de que possuímos uma senda por onde somente os ensonhos  transitam. De  ter‐me  decidido  a  recordar  o  ensonho  que  tive  em  Sonora unicamente  como  tal,  teria  conseguido  reter  todo  o  admirável  que  aconteceu 

enquanto o ensonho era ensonhado. Quanto mais especulava acerca disso, e de tudo o 

que me estava acontecendo, maior era meu mal‐estar, porém o mais surpreendente era  que  toda  essa  gente  não  me  assustava,  pois  apesar  a  que  me  apoiavam,  não 

deixavam de

 ser

 um

 grupo

 intimidante.

 E de

 repente

 me

 ficou

 claro

 o motivo

 pelo

 qual

 não  os  temia:  os  conhecia  muito  bem,  e  a  prova  era  que  eles  mesmos  haviam 

expressado a estranha e no entanto reconfortante sensação que eu sentia: a de estar voltando para casa. 

Descartei todos estes pensamentos nem bem os havia formulado, e com toda honestidade  me  perguntei  se  não  seria  eu  uma  desequilibrada  mental,  e  eles, conscientes disso, estavam se aproveitando de mim. De maneira séria e sistemática, passei  em  revista  a  minha  história  familiar,  num  intento  de  recordar  tudo  o  que 

pudesse ter escutado acerca de enfermidades mentais na família. Existiu, por exemplo, aquele  tio‐avô materno que,  com a Bíblia em mãos, pregava nas esquinas das  ruas. 

Depois tanto

 meu

 bisavô

 como

 meu

 avô,

 em

 começos

 da

 Primeira

 e da

 Segunda

 Guerra Mundial, haviam se suicidado ao comprovar que tudo estava perdido para eles, e uma de minhas avós estourou os miolos quando se deu conta de que havia perdido 

sua beleza e atração sexual. Agradava‐me pensar que havia herdado meu sentido de 

autonomia por ser a autêntica neta de todos esses  loucos. Sempre acreditei que meu 

sentido de autonomia era o que alimentava minha audácia. Estes  mórbidos  pensamentos  me  causaram  tal  ansiedade  que,  com 

movimentos  nervosos, me  desfiz  de minhas  cobertas  e  saltei  da  cama.  Para minha enorme surpresa e desconcerto me encontrei vestindo um grosso camisão de flanela, meias  longas de  lã,  luvas e um cardigã  (blusa de  lã). “—Devo estar doente”, disse a 

mim, 

— 

“por 

que, 

se 

não, 

estaria 

sentindo 

frio 

com 

todas 

estas 

roupas?”. 

Normalmente eu dormia nua, indiferente às condições atmosféricas. 

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Recém então notei a luz do sol no quarto, filtrando‐se através do grosso e semi‐opaco  vidro  da   janela.  Tinha  a  certeza  de  que  essa  luz  em  meus  olhos  era  a 

responsável por me acordar, além do mais tinha necessidade de encontrar o banheiro. Temendo  que  a  casa  não  tivesse  instalação  sanitária  interna  me  dirigi  até  a  porta corrediça no outro extremo do cômodo, e ali encontrei um guarda‐roupa grande com 

um pinico

 com

 tampa

 encima.

 

—Caralho! — gritei. —Não posso ir ao banheiro num guarda‐roupa! A porta se abriu para deixar que Florinda entrasse. —Está bem — disse, abraçando‐me. —Há uma  latrina fora da casa. O pinico é 

uma relíquia do passado. —Que  sorte  que  já  é  de  dia —  disse  rindo. —Ninguém  saberá  que  sou  por 

demais covarde para ir à latrina na escuridão. Florinda me olhou de maneira estranha, e depois desviou seus olhos antes de 

perguntar‐me num sussurro. —O que te faz pensar que  já é de manhã? 

—O sol

 me

 despertou

 faz

 um

 tempinho

 —

 respondi,

 movendo

‐me

 até

 a  janela.

 

Era incrível para mim que ainda fosse de noite. O  rosto de  Florinda  se  iluminou, e  a  risada  sacudia  seus ombros quando me 

assinalou  o  foco  de  luz  da  lâmpada  situada   junto  a  minha  cama,  que  eu  havia confundido com a luz do sol. 

—O que te faz tão segura de que está desperta? — perguntou. —Minha incontível necessidade de ir ao banheiro — respondi. Tomando‐me pelo braço me ofereceu sua ajuda. —Deixe que eu te leve à latrina antes que se desgrace. —Não vou a parte alguma se para  tanto não me disser  se estou desperta ou 

adormecida —

 gritei.

 —Que mau gênio! — comentou Florida, baixando sua cabeça até fazer que sua frente  tocasse  com  a minha. —Está  ensonhando  desperta —  informou,  enunciando 

cada palavra com suma deliberação. Apesar  de  minha  crescente  apreensão  comecei  a  rir,  e  o  som  desse  riso, 

reverberando por todo o quarto como um eco distante, dissipou minha ansiedade, e  já 

não  me  preocupou  o  fato  de  estar  desperta,  ou  dormida  sonhando.  Toda  minha 

atenção se concentrou em chegar ao banheiro. —Onde fica o vaso? — perguntei de mau modo. —Você sabe onde está — respondeu Florinda dobrando os braços sobre o peito 

— e nunca

 chegará

 a tempo

 a menos

 que

 se

 obrigue

 a isso.

 Mas

 não

 traga

 o vaso

 à sua

 cama.  A  isso  lhe  chamam  “o  ensonhar  do  desleixado”,  e  é  a melhor maneira  para emporcalhar sua cama. Anda até a latrina em um abrir e fechar de olhos! 

Comprovei espantada, ao  tentá‐lo, que não podia alcançar a porta. Meus pés haviam  perdido  a  confiança  e,  lentos  e  incertos,  como  indecisos,  se  arrastavam  um 

após  o  outro.  Resistindo‐me  a  aceitar  que  já  não  me  obedeciam,  intentei  acelerar meus movimentos ajudando‐os com minhas mãos, levantando um e depois o outro pé. 

A Florinda parecia não importar‐lhe o que me acontecia. Lágrimas de frustração 

e pena de mim mesma começaram a  formar‐se em meus olhos enquanto eu  seguia como parafusada ao chão. Meus lábios contornaram a palavra ajude‐me, mas nenhum 

som 

escapou 

de 

minha 

boca. 

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—O que acontece? — perguntou, tomando um de meus braços para fazer que, com suavidade, me sentasse no chão. 

Depois me tirou as grossas meias de lã e examinou meus pés, e ali se mostrou 

autenticamente preocupada. Queria explicar‐lhe que minha incapacidade para mover‐me obedecia a que me encontrava emocionalmente exausta, porém, por mais que o 

tentasse, não

 podia

 transformar

 meus

 pensamentos

 em

 palavras,

 e enquanto

 lutava

 

por  emitir  sons  descobri  problemas  com  minha  vista:  meus  olhos  não  conseguiam 

enfocar  seu  objetivo,  e  o  rosto  de  Florinda  permanecia  borrado  apesar  de  meus intentos, independente de se estar meu rosto perto ou longe do seu. 

—Eu sei o que te acontece — sussurrou Florinda em meu ouvido. —Tem que ir ao vaso. Faça‐o! Intente chegar lá! 

Com  um  enfático movimento  de  cabeça  evidenciei meu  assentimento.  Sabia 

que  eu  estava  ensonhando  desperta,  ou melhor,  que  vivia  em  outra  realidade  que 

ainda  não me  pertencia  por  inteiro, mas  à  qual  tinha  acesso  por  intermédio  desta gente.  E me  senti  inexplicavelmente  tranquila,  e  de  repente  estava  na  latrina,  uma 

autêntica latrina,

 não

 produto

 dos

 sonhos.

 Gastei

 bastante

 tempo

 em

 inspecionar

 o 

que me  cercava,  em  assegurar‐me  de  sua  realidade,  e  durante  um  certo  período o 

consegui. Depois,  não  sei  como,  me  encontrei  de  novo  no  quarto.  Florinda  ponderou 

sobre  minha  capacidade  para  ensonhar,  ao  qual  prestei  escassa  atenção,  pois  me 

distraiu a pilha de cobertores acomodados contra a parede. Não os havia notado ao 

despertar, mas  tinha  a  certeza  de  tê‐los  visto  antes. Minha  sensação  de  bem‐estar desapareceu  rapidamente  quando  procurei  recordar  de  onde  havia  visto  essas cobertas.  Cresceu minha  ansiedade.  Já  não  soube  se  seguia  na mesma  casa  à  qual chegara com Isidoro Baltazar, ou em algum outro lugar. 

—De quem

 é esta

 residência?

 —

 perguntei

 —

 e quem

 me

 vestiu

 com

 toda

 esta

 roupa? — escutar minha própria voz me aterrorizava. Florinda me acariciou os cabelos, e com voz suave revelou que pelo momento a 

casa  era  minha.  Também  que  havia  sido  ela  quem  me  abrigou  para  evitar  um 

esfriamento,  explicando  que  o  deserto  era muito  enganador,  em  especial  de  noite. Olhava‐me  com  uma  expressão  enigmática,  como  se  aludisse  a  algo,  o  qual  me 

preocupou,  pois  suas  palavras  não  proporcionaram  indício  algum  acerca  do 

presumivelmente  insinuado. Meus pensamentos giravam sem rumo. A palavra‐chave, decidi, era deserto. Eu não sabia que a casa das bruxas se  localizava no deserto, pois havíamos  chegado  nela  depois  de  tantos  rodeios  que  não  poderia  localizá‐la  com 

exatidão. —De quem é esta casa, Florinda? — perguntei. 

Ela parecia estar  lutando com algum problema importante, pois sua expressão 

mudou várias vezes, de pensativa a preocupada. “Está em sua casa”, disse por fim, sua 

voz  profunda  embargada  de  emoção,  e  antes  que  eu  pudesse  lembrar‐lhe  que  não 

havia  respondido  à minha  pergunta,  apontou  em  direção  à  porta  e me  indicou  por sinais para ficar em silêncio. 

Algo sussurrou na escuridão externa. Podia ter sido o vento e as folhas, mas eu 

sabia  que  não  era  nem  um  nem  outro.  Era  um  som  familiar,  tranquilizante,  que 

recriava  a  memória  da  refeição  no  campo,  em  especial  as  palavras  de  Mariano 

Aureliano: 

“Te 

soprarei, 

como 

soprei 

às 

outras, 

à 

pessoa 

que 

agora 

tem 

mito 

em 

suas 

mãos”. 

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As palavras soaram em meus ouvidos, e me virei como se Mariano Aureliano 

tivesse entrado no quarto, e nesse exato momento as estivesse pronunciando em voz alta. Florinda assentiu com um movimento de cabeça. Havia lido meus pensamentos, e 

seus olhos,  fixos nos meus, estavam me obrigando a aceitar minha compreensão da 

frase  do  nagual.  Durante  a  comida  não  havia  designado  demasiada  importância  à 

frase, simplesmente

 me

 pareceu

 absurda.

 Agora

 era

 tal

 minha

 curiosidade

 por

 

averiguar quem eram “as outras” que não podia permitir que o tema se desvanecesse. —Isidoro Baltazar falou acerca de certa gente que trabalha com ele — insinuei 

com cautela. —Disse que  lhe havia sido encomendada, e que era seu dever sagrado 

ajudá‐los. São eles os que… foram soprados até ele? — perguntei vacilante. Florinda  repetiu  seu característico movimento afirmativo de  cabeça. Um  leve 

sorriso ondulava seus  lábios, como se minha renúncia em utilizar a palavra soprar  lhe 

causasse  graça.  —Essas  são  as  que  o  velho  nagual  soprou  ao  novo  nagual.  São 

mulheres e se parecem com você. —Se parecem a mim? — perguntei  insegura, e pensei que teria sido preferível 

se, em

 lugar

 de

 estar

 tão

 absorta

 com

 meus

 alternantes

 estados

 de

 ânimo

 e 

sentimentos com relação a  Isidoro Baltazar durante a viagem, tivesse prestado maior atenção a tudo o que me revelou acerca de seu mundo. 

—Em  quê  maneira  essas  mulheres  se  parecem  a  mim?  —  perguntei,  para 

depois acrescentar com fingida indiferença: —Você as conhece? —Eu  já as vi — disse sem comprometer‐se. —Quantas  mulheres  foram  sopradas  a  Isidoro  Baltazar?  —  perguntei  sem 

conseguir ocultar que me afetava, apesar de que o mero pensar nelas era ao mesmo 

tempo excitante e alarmante. A Florinda lhe encantou minha reação. 

—Umas tantas.

 Não

 se

 parecem

 fisicamente

 com

 você,

 e contudo

 são

 como

 você.  O  que  quero  dizer  é  que  se  parecem  entre  si  como  eu  com  minhas  irmãs feiticeiras. Você mesma não se surpreendeu com nossa grande semelhança assim que 

nos conheceu? Dei‐lhe a razão, depois do qual Florinda explicou que o que fazia tão parecidas 

às suas companheiras com ela, apesar das óbvias diferenças  físicas, era sua absoluta devoção ao mundo dos feiticeiros. 

—Nos une um afeto até agora incompreensível para você. —Não me  cabe dúvida  alguma —  comentei  com o  tom mais  cínico possível. 

Depois minha curiosidade em respeito às mulheres que haviam sido sopradas a Isidoro 

Baltazar me

 dominou:

 —Quando

 as

 conhecerei?

 —Quando as encontrar — respondeu Florinda. —E como poderei encontrá‐las se não as conheço? Será algo impossível. —Não para uma bruxa. Como  já disse, não se parecem fisicamente com você, 

mas  seu  resplendor  interno  é  tão  intenso  como  o  delas.  Por  esse  resplendor  as reconhecerá, é o resplendor dos feiticeiros. — Seus olhos se fixaram intensamente em 

mim, como se de  fato pudesse ver meu resplendor  interno, sua voz baixou de tom e 

seu rosto adquiriu um matiz grave. Teria preferido dizer uma irreverência, mas algo em sua postura me alarmou. —Eu posso ver esse resplendor? — perguntei. 

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—Para  isso  necessitamos  do  nagual  —  respondeu  Florinda,  apontando  para 

Mariano  Aureliano,  que  estava  de  pé  no  canto  em  sombras  do  quarto.  Não  havia 

notado sua presença, mas sua repentina aparição não me alarmou. Florinda o colocar a par de meu desejo, e ele me fez sinais para segui‐lo até o 

meio do recinto. 

—Vou lhe

 mostrar

 esse

 resplendor

 —

 disse,

 pondo

‐se

 de

 cócoras,

 e,

 elevando

 

ambas as mãos, me instruiu por sinais a que eu subisse em suas costas. —O que? Vamos dar um passeio de cavalinho? — perguntei sem ocultar minha 

desilusão. —Você não ia me mostrar o resplendor dos feiticeiros? — apesar de lembrar muito  bem  de  sua  advertência  de  que  a  verdadeira  feitiçaria  não  implicava comportamento estranho,  rituais, drogas ou encantamentos, agora esperava alguma demonstração de  seu poder,  tal como o misturar  feitiços e ervas  sobre o  fogo, mas ignorando  meu  desencanto  me  convidou  a  rodear  seu  pescoço  com  meus  braços, recomendando fazê‐lo com a devida precaução a fim de não sufocá‐lo. 

—Você não acha que sou um pouco crescidinha para que me levem assim? 

Surgiu um

 riso

 na

 garganta

 de

 Mariano

 Aureliano

 e explodiu

 com

 gosto.

 Em

 um

 

salto  ficou de pé, e acomodando  seus braços atrás de meus  joelhos me colocou em 

posição cômoda, e  saiu ao hall  sem que minha  cabeça batesse no umbral da porta. Caminhou  tão  sem  esforço  e  com  tal  rapidez  que  experimentei  a  sensação  muito 

concreta de estar flutuando pelo longo e escuro corredor. Observei curiosa tudo o que 

me rodeava, mas nossa velocidade me impedia de captar detalhes da casa. Um suave 

embora persistente perfume  invadia  tudo: uma  fragrância de  laranjeiras e a  frescura do ar frio. 

Uma mortalha de névoa cobria o pátio exterior, reduzindo minha visão a uma 

massa  uniforme  de  silhuetas  escuras,  revelando  e  depois  apagando  as  estranhas 

formas de

 árvores

 e pedras.

 Contudo,

 de

 uma

 coisa

 eu

 tinha

 certeza:

 não

 estávamos

 na casa das bruxas. Um único som chegava a meus ouvidos, um rítmico resfolegar (não 

sabia  se meu  ou  de Mariano  Aureliano),  que  invadia  todo  o  pátio,  fazia  tremer  as folhas e  invadia meu corpo para produzir uma tontura que me obrigava a aferrar‐me 

aos ombros do nagual a fim de não perder os sentidos; mas antes que pudesse dizer‐lhe o que estava experimentando a névoa me envolveu e senti que me dissolvia em 

um nada. —Descansa sua testa sobre minha cabeça — ordenou Mariano Aureliano numa 

voz que parecia vir de muito longe, e me produziu uma sacudida, pois havia esquecido 

que cavalgava sobre suas costas. — Faça o que  fizer — continuou — não se solte — 

disse, acomodando

‐me

 de

 maneira

 que

 minha

 cabeça

 sobressaísse

 sobre

 a sua.

 —O  que  poderia  acontecer  se  eu  me  soltar?  —  perguntei,  revelando  meu 

temor —, somente cairia ao chão, não é? Mariano  Aureliano  riu  sem  contestar.  Pausadamente,  quase  com  passos  de 

dança, percorreu várias vezes o extenso pátio, depois do qual, por um instante, tive a 

muito  aguda  sensação  de  que  nos  elevávamos,  perdíamos  peso  e  sulcávamos  o 

espaço. Depois, através do corpo de Mariano Aureliano, me  senti de novo em  terra firme. Não soube se a névoa se havia dissipado ou se havíamos mudado de cenário, mas  algo havia mudado.  Talvez  fosse  só o  ar que  se  fez mais denso, mais difícil de 

respirar. Não havia lua e apenas se avistavam as estrelas, porém o céu brilhava como 

iluminado 

desde 

algum 

lugar 

distante. 

Lentamente, 

como 

se 

alguém 

estivesse 

reforçando seus contornos, as árvores adquiriram nitidez. 

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Mariano  Aureliano  fez  uma  parada  frente  a  uma  alta  e  frondosa  árvore  de 

sapoti, em cujos pés estava  reunido um grupo de umas doze ou catorze pessoas. As folhas,  pesadas  de  névoa,  escureciam  seus  rostos  ressaltados  por  uma  estranha  luz verde emanada da árvore, cujo reflexo relampejava cada traço, olhos, narizes e lábios, apesar  do  qual  eu  não  conseguia  identificar  a  nenhum,  nem  sequer  determinar  se 

eram homens

 ou

 mulheres.

 

—O que fazem? Quem são? — sussurrei no ouvido de Mariano Aureliano. —Mantenha sua testa sobre minha cabeça. Obedeci  sua  ordem,  temerosa  de  exercer  demasiada  pressão  e  fundir  meu 

rosto em seu crânio. Na esperança de reconhecer a alguém pela voz lhes dei um “boa‐

noite”, mas apenas  consegui  sorrisos muito  fugazes, pois me  viraram os  rostos. Um 

som raro partiu do grupo, um som carregado de energia pois, igual à árvore, cada um 

deles começou a resplandecer, não com  luz verde e sim com um brilho dourado, que 

em pouco tempo se converteu numa enorme bola de ouro, que ficou suspensa sob a 

árvore. Depois a bola  se dissolveu para  formar pedaços de  luminosidade que, como 

gigantescos vaga

‐lumes,

 apareciam

 e desapareciam

 entre

 as

 árvores,

 espalhando

 luzes

 

e sombras quando passavam. —Lembre‐se  desse  fulgor  —  murmurou  Mariano  Aureliano,  e  sua  voz 

repercutiu dentro de minha cabeça. —É o fulgor dos… surem. Um  repentino  golpe  de  vento  esparramou  suas  palavras,  um  vento  vivo  que 

brilhava contra a escuridão do céu, soprando com grande violência e um estranho e 

desgarrante som. E esse vento se virou contra mim, e tive a certeza de que pretendia aniquilar‐me. Gritei de dor quando uma  forte baforada chamuscou meus pulmões, e 

um intenso frio dominou e endureceu meu corpo. Não pude determinar se foi Mariano Aureliano ou o vento quem falou. O vento 

rugiu em

 meus

 ouvidos,

 e depois

 penetrou

 meus

 pulmões,

 agitando

‐se

 como

 um

 ser

 vivo  desejoso  de  devorar  cada  célula  de meu  corpo.  Senti  que me  desmoronava,  e 

soube que estava morrendo, mas o rugido cessou, e se fez um silêncio tão repentino 

que cheguei a ouvi‐lo. Ri com todas as minhas  forças, agradecida pelo  fato de seguir com vida. 

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CAPÍTULO DEZ 

A  cama  era  grande,  branda  e  confortável.  Uma  irradiação  aurífera  enchia  o 

quarto, e na esperança de prolongar esse momento de bem‐estar  fechei os olhos e 

mergulhei numa  felicidade sonolenta, entre  fragrantes  lençóis de  linho e o aroma de 

travesseiros perfumados

 com

 lavanda.

 Sentia

 tensos

 cada

 músculo

 e cada

 osso

 de

 meu

 

corpo  ao  recordar os  acontecimentos  da noite,  fragmentos desunidos  de um  sonho 

horrível. Não existia continuidade nem sequência  linear em tudo o que experimentei durante  essas  horas  intermináveis.  Duas  vezes  despertei  aquela  noite  em  camas diferentes, em quartos distintos, inclusive em casas distintas. 

Se diria que essas imagens separadas possuíam vida própria, pois de repente se 

empilharam  e  se  expandiram  para  formar  um  labirinto  que,  de  alguma  maneira, consegui  compreender.  Melhor  dizendo,  percebi  cada  evento  simultaneamente.  A 

sensação  dessas  imagens,  nascendo  de  minha  cabeça  para  formar  uma  enorme  e 

caprichosa touca, era tão forte que saltei da cama para chegar até a cômoda de aço e 

vidro, cujo

 espelho

 de

 três

 painéis

 encontrei

 coberto

 com

 papel

 arroz.

 Tentei

 arrancar

 

um pedaço desse papel, mas estava aderido como uma pele. Ver o  jogo de escova e 

pentes montados sobre prata, os frascos de perfume e os potes de cosméticos sobre a 

cômoda,  teve sobre mim um efeito  tranquilizante, pois  também eu os  teria disposto 

por tamanho como ferramentas. De algum modo soube que me encontrava no quarto 

de Florinda, na casa das bruxas, e isto restabeleceu meu sentido de equilíbrio. O quarto de Florinda era enorme, e a  cama e a  cômoda  seus únicos móveis. 

Estavam localizadas em cantos opostos, em ângulo, e separadas das paredes, deixando 

atrás delas um espaço triangular. Esta disposição não deixou de  intrigar‐me, pois não 

sabia se era em resposta a alguma trama esotérica cujo significado me escapava, ou se 

simplesmente respondia

 ao

 capricho

 estético

 de

 sua

 dona.

 Senti curiosidade pelas três portas do quarto. E meu desejo de saber para onde 

conduziam me levou a prová‐las. A primeira estava fechada por fora, a segunda abria a 

um pequeno pátio, retangular e amuralhado. Estudei  intrigada o céu, até que por fim 

me dei  conta de que não era de manhã,  tal qual  supus ao despertar, mas o  fim da 

tarde. Não me preocupava o fato de haver dormido todo o dia: ao contrário, me senti feliz, pois convencida de ser uma insone crônica, sempre me extasia o exceder‐me em 

dormir. A terceira porta abria a um corredor, e ansiosa por encontrar a Isidoro Baltazar me dirigi à sala, que encontrei vazia. 

Havia algo  imponente na maneira prolixa e simples em que estava disposto o 

mobiliário. Nada

 induzia

 a crer

 que

 o sofá

 e as

 poltronas

 tivessem

 sido

 ocupados

 na

 noite  anterior.  Até  as  almofadas  estavam  esticadas  como  soldados  em  posição  de 

sentido. Também o refeitório, seguindo pelo corredor, parecia abandonado. Nem uma cadeira fora de lugar, nem uma migalha, nem uma mancha sobre a lustrada superfície da mesa de caoba, nada delatava o  fato de que na noite anterior eu havia ceiado ali com o nagual Mariano Aureliano e o senhor Flores. 

Na  cozinha,  separada  do  refeitório  por  um  pórtico  e  um  estreito  vestíbulo, encontrei  um  jarro  com  restos  de  champurrada  e  um  prato  tampado,  de  tamales doces. A fome me fez resistir ao  incômodo de esquentá‐los. Me servi uma caneca do 

espesso  chocolate  e  comi  os  três  tamales  diretamente  de  seus  pacotes.  Tinham 

recheio 

de 

pedaços 

de 

pinha, 

uvas 

passas 

amêndoas, 

que 

achei 

deliciosos. 

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Era‐me  inconcebível que me tivessem deixado sozinha na casa, mas não podia 

ignorar  o  silêncio  que  me  rodeava.  Não  era  a  paz  reconfortante  que  se  percebe quando os moradores deliberadamente se abstêm de fazer ruídos, antes era o rotundo 

silêncio de  lugar deserto, e a possibilidade de  ter  sido abandonada me  fez engasgar com um pedaço de tamale. 

De volta

 ao

 quarto

 de

 Florinda

 me

 detive

 ante

 cada

 porta

 para

 golpear

 

repetidas  vezes  e perguntar  “Tem  alguém em  casa?”; ninguém  respondeu.  Estava  a 

ponto de sair ao pátio quando ouvi com nitidez uma voz que perguntava: —Quem  chama?  —  voz  profunda  e  áspera  cujo  sexo  não  pude  determinar, 

assim como tampouco a direção de onde vinha. Retrocedi  e  repeti  a  pergunta  a  plenos  pulmões.  Ao  chegar  ao  extremo  do 

corredor parei um  instante frente a uma porta fechada, depois acionei a maçaneta e 

entrei.  Com  os  olhos  fechados,  apoiada  contra  a  parede,  esperei  até  que  se 

normalizassem  as  batidas  de  meu  coração,  e  pensei  com  antecipada  culpa  nas consequências  que  podia  acarretar‐me  o  fato  de  ser  surpreendida  ali.  Mas  minha 

curiosidade venceu,

 superei

 a sensação

 de

 estar

 cometendo

 um

 ato

 delituoso,

 e aspirei

 

o ar de encanto e de mistério que impregnava o cômodo. Pesadas cortinas escuras  impediam  toda a claridade, e a  iluminação vinha de 

uma  lâmpada  cujo  enorme  abajur  adornado  com  franjas  vertia  um  círculo  de  luz amarela  sobre  o  sofá  próximo  à   janela.  No  próprio  centro  uma  cama  de  quatro 

colunas, com dossel e cortinado, dominava tudo qual se  fosse um trono, e as  figuras orientais de bronze e madeira, talhadas a mão e dispostas sobre as quatro mesinhas situadas  em  cada  canto,  pareciam  ser  as  sentinelas  celestiais  que  guardavam  o 

aposento. Livros, papéis e  jornais estavam amontoados sobre a escrivaninha e sobre 

um armário; a cômoda carecia de espelho, e em lugar de pente e escova, ou frascos de 

perfume e cosméticos,

 a superfície

 de

 vidro

 estava

 coberta

 por

 uma

 coleção

 de

 pequenas taças. Colares de pérolas, correntes de ouro, anéis e broches transbordavam 

das taças de bordas douradas como tesouros abandonados, e reconheci dois dos anéis por tê‐los visto nas mãos de Zoila. 

Reservei para o  final a  inspeção da cama. Quase com  reverência, como se de 

fato  se  tratasse de um  trono, corri o cortinado e emiti uma exclamação de gozo: as almofadas brilhantes sobre a colcha verde me lembravam flores silvestres num prado. Contudo,  não  pude  impedir  que  um  calafrio  sacudisse  meu  corpo,  pois  só  podia 

atribuir a uma ilusão esse calor e mistério que o quarto exalava. A  sensação  de  ter‐me  introduzido  em  algum  tipo  de  miragem  se  fez  mais 

pronunciada no

 terceiro

 cômodo,

 que

 a princípio

 também

 me

 pareceu

 cálido

 e amistoso. O próprio ar era suave e afetuoso, ecos de  risos pareciam  repicar de suas 

paredes,  porém  esta  atmosfera  era  tão  tênue  e  fugaz  como  a  luz  do  entardecer infiltrando‐se através do cortinado transparente de uma  janela. Como no outro quarto, a cama, também com dossel, e decorada com almofadas multicolores distribuídas ao 

acaso, dominava o espaço. Uma máquina de costura descansava contra uma parede: velho artefato de pé, pintado a mão. Junto a ela havia uma biblioteca, cujas estantes se 

viam  forradas  com  rolos  das  mais  finas  sedas,  algodões  e  gabardines  de  lã, prolixamente  empilhados  por  cor  e  por  textura.  Seis  perucas  de  diferentes  cores, estendidas sobre cabaças, estavam em exibição sobre uma mesa baixa  junto à  janela, 

entre 

elas 

peruca 

loira 

que 

usou 

Delia 

Flores, 

escura 

esquisita 

que 

Mariano 

Aureliano me enfiou na cabeça no dia do incidente da cafeteria de Tucson. 

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O  quarto  cômodo  estava  um  tanto  afastado  dos  outros,  e  do  outro  lado  do 

vestíbulo. Comparado com os demais dava a impressão de estar vazio. Os últimos raios do sol da tarde,  infiltrando através de uma parede treliçada,  jaziam no piso como um 

tapete de luzes e sombras, trama ondulante e retangular. As poucas peças de mobília estavam  tão engenhosamente  distribuídas  que  faziam  com que  parecesse maior do 

que na

 realidade

 era.

 Estantes

 baixas

 para

 livros,

 com

 portas

 de

 vidro,

 se

 alinhavam

 

 junto às paredes, e num extremo do cômodo havia uma cama estreita cuja manta com 

quadrinhos cinzas e brancos pendia até o piso e fazia  jogo com as sombras no piso. A 

delicada  secrétaire de madeira  rosa,  com  sua  cadeira de  igual madeira  com bronze, antes  aumentava  que  reduzia  a  sensação  espartana  do  ambiente.  Sabia  que  era  o 

quarto de Carmela. Gostaria de ter examinado os títulos dos livros, mas minha ansiedade era muito 

grande, e  como  perseguida por  alguém,  saí  precipitadamente  ao  corredor e dali  ao 

pátio. Sentei‐me numa cadeira de  junco: tremia e transpirava, e apesar disso sentia as mãos geladas. Não era por causa da culpa que tremia (não me teria importado que me 

surpreendessem xeretando)

 e sim

 a estranha,

 não

 mundana,

 qualidade

 que

 distinguia

 

esses  quartos  tão  lindamente  mobiliados,  a  quietude  aderida  às  paredes  era  uma 

quietude singular que nada  tinha a ver com a ausência de seus moradores, mas sim 

com a ausência dos sentimentos e emoções que normalmente distinguem os  lugares habitados. 

Eu havia rido comigo mesma cada vez que alguém se referia às mulheres como 

bruxas e feiticeiras. Nem se pareciam ou se comportavam como se espera que façam 

as bruxas: extravagantemente dramáticas e sinistras. Mas agora não me cabia dúvida alguma de que eram diferentes de outros seres humanos. Assustava‐me que  fossem 

diferentes de uma maneira para mim incompreensível e inconcebível. 

Um som

 suave

 e raspante

 pôs

 fim

 a meus

 inquietantes

 pensamentos,

 e em

 busca  de  sua  origem  deslizei  na  ponta  dos  pés  pelo  corredor,  afastando‐me  dos dormitórios em busca dos  fundos da casa. O ruído emanava de um quarto detrás da 

cozinha,  mas  quando  cheguei  a  ele  e  encostei  meu  ouvido  na  porta,  parou,  para reiniciar assim que me afastei. Intrigada, aproximei de novo minha orelha e outra vez parou, e assim várias vezes, como se o som e o consequente silêncio dependessem de 

meus movimentos. Decidida a descobrir quem se escondia ou, pior ainda, quem deliberadamente 

tratava de assustar‐me, busquei a maçaneta da porta, mas ao não poder abrir  lutei vários  minutos  antes  de  me  dar  conta  de  que  estava  fechada,  e  com  a  chave  na 

fechadura. Nem  bem me  encontrei  dentro  pensei  que  alguém  perigoso  bem  podia,  por 

muitas  boas  razões,  estar  encerrado  neste  aposento.  Uma  penumbra  opressiva  se 

aderia às pesadas cortinas fechadas, como algo vivo que atraía às sombras de toda a 

casa até esse  recinto enorme. A  luz  se enfraqueceu, as  sombras  se engrossaram ao 

redor  do  que  pareciam  ser móveis  descartados,  e  de  figuras  incomuns,  enormes  e 

pequenas, feitas de madeira e de metal. O mesmo  som  raspante que me  trouxe  a este quarto quebrou o  silêncio. As 

sombras  se deslizavam pelo quarto como  felinos em busca de uma presa, enquanto 

gelada  de  terror  eu  observava  como  a  cortina  batia  e  respirava  igual  a  um  dos 

monstros 

de 

meus 

pesadelos. 

De 

repente 

cessaram 

som 

movimento, 

fazendo 

ainda mais  temível a resultante quietude e silêncio, e  já me dispunha a abandonar o 

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lugar  quando  o  ruído  recomeçou.  Então,  armando‐me  de  valor,  cruzei  o  quarto  e 

descorri o cortinado, e soltei uma risada ao comprovar que através do vidro quebrado 

da  janela o vento havia estado chupando e soprando a cortina. A  luz declinante da tarde, ao penetrar pelas cortinas semi‐abertas, reagrupava 

as  sombras e  revelava um espelho ovalado quase escondido por uma das estranhas 

figuras de

 metal.

 Consegui

 deslizar

‐me

 entre

 a escultura

 e a parede

 para

 contemplar

 

embelezada  o  velho  espelho  veneziano,  manchado  e  gasto  pelos  anos,  que  ao 

distorcer grotescamente minha imagem me obrigou a fugir do lugar. Saí  afora pela porta traseira e encontrei deserta a ampla clareira detrás da casa. 

O céu seguia brilhante, mas as altas árvores de frutas  já haviam adquirido os tons do 

crepúsculo. Um bando de corvos passou voando, suas negras asas escureceram a luz, e 

se fez noite sobre o lugar. Dominada pela tristeza e a desesperança me sentei no chão 

e chorei, e quanto mais  forte era meu pranto maior prazer me ocasionava  lamentar‐me em viva voz. O ruído de um rastelo me tirou de meu lamento, e ao levantar a vista vi a uma pessoa ágil arrastando folhas em direção a um fogo que ardia nos fundos do 

pátio. 

—Esperanza! — gritei, correndo até ela, mas me detive ao comprovar que não 

era ela e sim um homem quem manipulava o rastelo. — Eu lamento — murmurei —, o 

confundi com outra pessoa — e lhe estendi minha mão para apresentar‐me. Procurei não olhá‐lo muito fixamente, mas não pude evitar, pois não estava de todo segura de 

que não se tratasse de Esperanza disfarçada de homem. Apertou minha mão suavemente, e a título de apresentação anunciou que era 

o  “cuidador”. Não disse  seu nome. Quando  tive  sua mão na minha me pareceu  tão 

frágil como a asa de um pássaro; também seu rosto tinha algo de pássaro, aquilino e 

de olhos vivos, cabelo branco semelhante a plumas e penacho. Em suma, um homem 

fraco e antigo.

 Mas

 não

 eram

 só

 sua

 aparência

 de

 passarinho

 e sua

 delicadeza

 as

 que

 me  faziam  lembrar  a  Esperanza,  como  também  o  rosto  enrugado  e  carente  de 

expressão,  os  olhos  límpidos  e  brilhantes  como  os  de  uma  criança,  e  os  dentes pequenos, quadrados e muito brancos. 

—Sabe  onde  está  Florinda?  —  perguntei,  e  ante  sua  resposta  negativa acrescentei: —E os outros? 

Aguardou num amplo silêncio, e depois, como se eu não tivesse feito pergunta alguma, repetiu que era o cuidador. 

—Eu cuido de tudo o que está aqui — disse. —Não  me  diga?  —  perguntei,  observando‐o  com  desconfiança.  Tal  era  sua 

fragilidade que

 era

 difícil

 concebê

‐lo

 cuidando

 de

 algo,

 inclusive

 de

 si

 mesmo.

 —Cuido de  tudo —  repetiu com um doce  sorriso, destinado  talvez a eliminar minhas dúvidas, e parecia estar a ponto de acrescentar algo quando mudou de  idéia, mordeu pensativo seu lábio inferior, para logo dar meia volta e continuar reunindo as folhas num pequeno monte, mediante hábeis movimentos de sua ferramenta. 

—Onde estão todos? — perguntei. Com a testa descansando sobre a mão que segurava o rastelo me dirigiu uma 

olhada  ausente. Depois,  com  um  sorriso  vazio,  olhou  ao  redor  como  se  a  qualquer momento alguém pudesse aparecer por detrás de uma das árvores de frutas. Com um 

forte e audível suspiro eu estava prestes a me retirar. Ele limpou sua garganta, e com 

voz 

rouca 

gasta 

pelos 

anos, 

disse: 

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—O velho nagual levou a Isidoro Baltazar às montanhas. — não me olhou; seus olhos enfocavam algo na distância. —Regressarão em alguns dias. 

—Dias! — gritei indignada. —Está certo de ter escutado bem? — e abatida por haver se concretizado meu maior  temor, só pude murmurar: —Como podem  ter me 

deixado sozinha desta maneira? 

—Partiram de

 noite.

 —

 informou

 o velho,

 ao

 mesmo

 tempo

 em

 que

 recobrava

 

uma folha que o vento lhe havia roubado. —Isso é impossível, acabamos de chegar de noite — retruquei. —Bem tarde. Indiferente  à  minha  presença  e meu  tom  agressivo,  o  velho  botou  fogo  no 

monte de folhas. —Isidoro Baltazar deixou alguma mensagem para mim? — perguntei,  ficando 

de cócoras  junto a ele. —Não deixou nada dito para mim ou algo parecido? — sentia vontade de gritar, mas algo me impedia disso. Um certo aspecto mistificador do velho 

me desconcertava, e a  idéia de que pudesse  ser Esperanza disfarçada não me havia abandonado ao todo. 

—E Esperanza,

 foi

 com

 eles

 para

 as

 montanhas?

 —

 perguntei,

 e minha

 voz

 

tremeu, atacada por um súbito e desesperado desejo de rir. A não ser que abaixasse suas calças e me mostrasse seus genitais, nada que ele fizesse poderia me convencer de que era homem. 

—Esperanza está na casa — murmurou, sua atenção  fixa no monte de  folhas fumegantes. —Está na casa com os demais. 

—Não seja ridículo, ela não está na casa — o contradisse de mau modo. —Não 

há ninguém na casa. Eu os estive buscando toda a tarde, e revistei todos os quartos. —Está na  casa pequena —  repetiu o  velho  com obstinação,  transferindo  seu 

intenso olhar das folhas ao meu rosto. O brilho malicioso de seus olhos fez com que eu 

desejasse chutá

‐lo.

 —Que pequena…? — não completei a pergunta, pois lembrei da outra casa que 

havia visto quando chegamos, e a lembrança chegou a me causar uma dor física. —Deveria  de  ter  me  dito  desde  o  princípio  que  Esperanza  estava  na  casa 

pequena — o censurei, enquanto sub‐repticiamente buscava o lugar, oculto de minha 

vista pelas grandes árvores e por uma parede. —Irei ver se é verdade que Esperanza está lá como disse — e fiquei de pé. 

O velho também se levantou, e da árvore mais próxima pegou uma lamparina e 

um saco de estopa que estavam pendurados num galho baixo. —Eu sinto muito, mas não posso deixá‐la ir lá sozinha — anunciou. 

—Não vejo

 por

 que

 não?

 —

 respondi

 incomodada.

 —Talvez

 não

 o saiba,

 mas

 sou hóspede de Florinda. Me  levaram à casinha de noite. —  fiz uma pausa antes de 

acrescentar: —Estive lá, não duvide disso. Escutou com atenção, mas a dúvida se refletia em seu rosto. —É  complicado  chegar  lá  —  advertiu  —,  preciso  lhe  preparar  o  caminho. 

Preciso… — pareceu parar no meio de um pensamento que não desejava expressar. Encolheu‐se de ombros e repetiu o referente à preparação do caminho. 

—O  que  é que  tem que preparar?  Tem que  se  abrir  caminho pelo  chaparral com um facão? — perguntei sem ocultar minha irritação. 

—Sou  o  cuidador.  Eu  preparo  o  caminho  —  repetiu  com  obstinação,  e  se 

sentou 

no 

chão 

para 

acender 

lamparina 

de 

azeite. 

Antes 

de 

acender‐

se 

satisfatoriamente, a  lamparina apresentou problemas. Depois,  sob  sua  luz, os  traços 

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do  velho  pareceram  descamados,  sem  rugas,  como  se  essa  luz  tivesse  apagado  os maus‐tratos do tempo. 

—Assim que terminar de queimar estas folhas te levarei até lá. —Eu lhe ajudarei — retorqui. Era óbvio que estava senil e necessitava que o satisfizessem. Colaborei com ele 

 juntando as

 folhas

 em

 pequenos

 montículos

 que

 ele

 de

 imediato

 queimava,

 para

 

colocá‐las  no  saco  de  estopa  assim  que  se  esfriavam.  O  interior  da  bolsa  estava recoberto  de  plástico.  E  foi  este  detalhe,  o  forro  plástico,  o  que  ressuscitou  uma 

lembrança quase esquecida de minha infância. Enquanto  juntávamos  as  folhas  na  bolsa  contei‐lhe  que  de menina,  vivendo 

num povoado vizinho à Caracas, com frequência me despertava o ruído de um rastelo. Então me escapulia da cama, e com passo de gato deixava para trás os dormitórios dos meus pais e  irmãos, e chegada ao quarto que  ficava de  frente à praça, com extremo 

cuidado  por  causa  das  dobradiças  traiçoeiras,  abria  as  persianas  de madeira  e  me 

deslizava por entre as barras de  ferro. O  velho,  a  cujo encargo estava  a  limpeza da 

praça, me

 dava

 as

 boas

‐vindas

 com

 um

 sorriso

 desdentado,

 e  juntos

 costumávamos

 

recolher  as  folhas  caídas  durante  a  noite  em  pequenos  montículos,  relegando  os demais  dejetos  às  latas  de  lixo.  Queimávamos  as  folhas  e,  ao  esfriarem‐se,  as metíamos em um saco de estopa forrado de seda. Segundo o velho, as fadas aquáticas que moravam num riacho sagrado nas montanhas próximas convertiam as cinzas em 

pó de ouro. —Também  conhece  às  fadas  que  transformam  as  cinzas  em  pó  de ouro? — 

perguntei ao perceber o quão feliz que estava o velho com o conto. Não respondeu, mas riu com tal prazer e abandono que não pude fazer menos 

que  juntar‐me à sua felicidade. Logo chegamos ao último montículo de cinzas  junto ao 

portão em

 arco

 implantado

 na

 parede:

 o portão

 de

 madeira

 estava

 aberto

 de

 par

 em

 par. Do outro lado do chaparral, quase oculta em sombras, encontrava‐se a outra casa. Nenhuma  luz brilhava em suas  janelas, e me deu a  impressão de que se afastava de 

mim. Perguntei‐me se  tudo não seria mais que  fruto de minha  imaginação, um  lugar recordado em um sonho, e pisquei repetidas vezes e esfreguei meus olhos. Decidi que 

algo andava mal ao  lembrar minha chegada à casa das bruxas na noite anterior com 

Isidoro Baltazar. A casa menor  ficava à direita da maior. Como, então, a via agora do 

pátio traseiro da casa das bruxas? Em minha tentativa por orientar‐me me movi de um 

lado a outro, choquei‐me com o velho, agachado  junto a um monte de cinzas, e cai no 

chão. Com incrível agilidade ficou pé e me ajudou a levantar. 

—Está cheia

 de

 cinzas

 —

 disse,

 limpando

‐me

 o rosto

 com

 o punho

 recolhido

 de

 sua camisa de trabalho. —Lá está! — gritei. Recortada nitidamente contra o céu a casa esquiva parecia 

estar a poucos passos. —Lá está. — repeti, e comecei a saltar como se com esses pulos conseguiria  reter  a  casa  em  seu  lugar  e  no  tempo. —Essa  é  a  verdadeira  casa  das bruxas — acrescentei, enquanto deixava que o  velho  continuasse  com a  limpeza de 

meu rosto —, a casa grande é só uma fachada. —A casa das bruxas — repetiu ele, lentamente, saboreando cada palavra, para 

depois gargalhar, parecendo se divertir. Enfiou as últimas cinzas em sua bolsa, e com um sinal me convidou a segui‐lo. 

Dois 

pés‐

de‐

laranja 

cresciam 

do 

outro 

lado 

do 

portão, 

afastados 

da 

parede. 

Uma 

brisa 

fresca soprava através de seus galhos floridos, mas as flores em si não se moviam, não 

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caíam ao chão. Contra a escura folhagem, pareciam talhadas em quartzo leitoso. Como 

sentinelas, as duas árvores guardavam o estreito caminho, branco e muito reto, como 

traçado com uma régua. O  velho me  entregou  a  lamparina;  depois  extraiu  um  punhado  de  cinzas  da 

bolsa, as quais passou várias vezes de uma mão à outra, como se as pesasse, antes de 

espalhá‐las

 pelo

 chão.

 

—Não faça perguntas e siga minhas instruções — disse numa voz  já não rouca, e sim dotada de uma qualidade aérea, enérgica e convincente. Levemente encurvado e 

caminhando para  trás deixou que o  resto das cinzas caíssem da bolsa sob o estreito 

caminho. —Mantenha  seus pés na  linha das cinzas — advertiu. —Se não o  fizer nunca 

chegará na casa. Tossi  para  esconder  meu  riso  nervoso,  e  estendendo  os  braços  encarei  a 

estreita  linha de  cinzas  como  se  caminhasse por uma  corda bamba: e  cada  vez que 

parávamos  para  permitir  ao  velho  recuperar  o  fôlego, me  virava  para  olhar  a  casa 

recém abandonada,

 a qual

 parecia

 afastar

‐se

 apesar

 de

 que

 a outra

 não

 dava

 a 

impressão de aproximar‐se. Tentei me convencer de que se tratava de uma  ilusão de 

ótica, mas me pesou a vaga certeza de que  jamais alcançaria uma ou outra casa se o 

tentasse por minha conta. Diria‐se que o velho percebeu meus temores, pois segurou 

meu braço para dar‐me ânimo. —Por  isso estou preparando o caminho — explicou, e olhando dentro de sua 

bolsa acrescentou: —Não tardaremos a chegar. Lembre‐se de manter seus pés sobre a 

linha de  cinzas.  Se o  fizer poderá  transitar  sem  problema num ou  noutro  sentido  a 

qualquer momento. Minha mente me dizia que o homem era um  louco, mas meu corpo sabia que 

sem ele

 e suas

 cinzas

 eu

 estava

 perdida.

 E tão

 absorta

 estive

 em

 manter

 meus

 pés

 sobre a linha que me surpreendeu quando finalmente nos encontramos frente à porta. O  velho  pegou  de  volta  a  lamparina,  limpou  sua  garganta  e  depois  golpeou 

suavemente com os nós dos dedos sobre o painel entalhado. Não esperou  resposta, empurrou e entramos. 

—Não vá tão rápido! — gritei, temerosa de ser deixada para trás. O  segui por um estreito vestíbulo, onde deixou a  lamparina  sobre uma mesa 

baixa, e  logo a seguir, sem uma palavra, e sem sequer olhar atrás, abriu uma porta e 

desapareceu tragado pela escuridão. Guiada por uma vaga lembrança entrei no quarto 

adjacente, apenas  iluminado, e de imediato me dirigi à esteira que cobria o piso. Não 

tinha a menor

 dúvida

 de

 ter

 estado

 ali

 e dormido

 sobre

 essa

 esteira

 na

 noite

 anterior,

 mas não estava tão segura sobre o  jeito em que cheguei. Que Mariano Aureliano me 

havia carregado em  suas costas através do chaparral estava  claro em minha mente, como  também  ter  despertado  nesse  quarto  com  Clara  ao  meu  lado,  antes  de  ser levada pelo velho nagual. 

Confiante de que tudo me seria explicado em breve me sentei sobre a esteira. A 

luz da lamparina vacilou e depois se apagou, e pressenti, mais que vi, coisas e pessoas movendo‐se  ao  redor.  Escutei  o murmúrio  de  vozes  e  sons  intangíveis  surgindo  de 

cada canto, e entre todos eles reconheci um familiar frufru de saias e um suave risinho. —Esperanza? —  sussurrei. —Meu Deus,  não  sabe  quanto me  alegra  por  lhe 

ver! 

— 

apesar 

de 

ser 

ela 

quem 

me 

esperava, 

me 

surpreendi 

quando 

tive 

meu 

lado. Timidamente toquei seu braço. 

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—Sou eu — me assegurou. Apenas escutar sua voz me convenceu de que na verdade era Esperanza, e não 

o cuidador, que havia trocado sua roupa de trabalho caqui por anáguas sussurrantes e 

um vestido branco. Quando senti o toque tranquilizante de sua mão sobre meu rosto 

desapareceu toda a preocupação pelo cuidador. 

—Como cheguei

 aqui?

 —

 perguntei.

 

—O cuidador te trouxe — respondeu rindo. —Não lembra? — e virando‐se até 

a mesa acendeu de novo a lamparina. —Falo da outra noite — esclareci. —Sei que estive aqui, despertei sobre esta 

esteira. Clara estava comigo, e Florinda, e as outras mulheres… — e minha voz apagou 

ao  lembrar que depois havia despertado na  sala da outra casa, e depois  sobre uma 

cama.  Sacudi  a  cabeça,  como para  por ordem  em minhas  lembranças.  Sentindo‐me 

desamparada olhei para Esperanza, confiante de que ela estava enrolando, e lhe falei das dificuldades que estava experimentando para recordar, em sua ordem seqüencial, dos acontecimentos daquela noite. 

—Não deveria

 ter

 problemas

 —

 respondeu.

 —Meteu

‐se

 no

 trilho

 dos

 

ensonhos. Agora está ensonhando desperta. —Quer  dizer  que  neste  exato  instante  estou  dormindo?  —  perguntei 

brincando. —Você também dorme? —Não  estamos  dormindo  —  respondeu,  articulando  suas  palavras  com 

cuidado. —Você e eu estamos ensonhando despertas — e elevando suas mãos num 

gesto desvalido, acrescentou: —Eu lhe disse isso no ano passado. Lembra? Tive de repente um pensamento salvador que chegou como se dito por alguém 

em  meu  ouvido:  na  dúvida  a  pessoa  deve  separar  os  dois  trilhos,  o  dos  assuntos ordinários e o dos ensonhos,  já que cada um tem um diferente estado de consciência. 

Isso me

 levantou

 o ânimo,

 pois

 sabia

 que

 o primeiro

 a ser

 examinado

 era

 o dos

 ensonhos;  se  a  situação  não  corresponde  a  este  trilho  então  a  pessoa  não  está ensonhando. Meu  júbilo desapareceu quando tentei examinar o trilho dos ensonhos. Não tinha noção de qual era, nem de como se faz, para proceder à sua revisão e, para piorar, não lembrava quem me havia recomendado este procedimento. 

—Fui  eu  —  revelou  Esperanza.  —Você  tem  avançado  muito  no  reino  dos ensonhos. Quase  recordou o que  te disse o ano passado, no dia depois da  comida. Disse  então  a  você  que  quando  duvidar  sobre  se  está  ou  não  ensonhando,  precisa examinar o  trilho pelo qual marcham os ensonhos, significando com  isto que precisa examinar o grau de consciência que temos nos ensonhos, sentindo aquele com o qual 

está nesse

 momento

 em

 contato.

 Se

 está

 ensonhando,

 esse

 sentir 

 regressa

 a você

 como um eco; se não regressar, é sinal de que não está ensonhando. Sorrindo, beliscou minha coxa e disse: —Prove com esta esteira sobre a qual está  recostada. Experimente com suas 

nádegas. Se obter resposta, então está ensonhando… 

Minhas  intumescidas nádegas não receberam resposta. De fato, eu estava tão 

intumescida  que  nem  sequer  sentia  a  esteira.  Tinha  a  sensação  de  estar  estendida sobre as ásperas  lajotas do chão. Experimentei um  forte desejo de  informar‐lhe que 

deveria  imperar o oposto: caso  se  receba  resposta, então  se está desperto, mas me 

detive a tempo pois sabia, acima de qualquer dúvida, que para ela o significado de “o 

sentir 

que 

regressa 

como 

um 

eco” 

nada 

tinha 

ver 

com 

nosso 

conhecido 

aceito 

entendimento do que é uma sensação ou um eco. A diferença entre estar desperta e 

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ensonhar desperta me escapava, apesar de minha certeza de que essa diferença não 

coincidia em absoluto com nossa maneira convencional de entender a consciência. No 

entanto,  nesse  momento,  as  palavras  abandonavam  minha  boca  sem  controle  de 

minha parte. Disse: —Sei  que  estou  ensonhando  desperta  e  ponto  final.  —  Pressenti  a  estar 

aproximando‐me

 a um

 novo

 e mais

 profundo

 nível

 de

 compreensão

 que,

 contudo,

 não

 

conseguia assimilar. —O que queria saber é: quando eu dormi? — perguntei. —Já te disse, não está adormecida. Está ensonhando desperta. Sem querer comecei a rir de maneira tranquila, mas visivelmente nervosa. Ela 

não pareceu notá‐lo nem importar‐se. —Quando teve lugar a transição? — perguntei. —Quando  o  cuidador  te  estava  fazendo  cruzar  o  chaparral,  e  tinha  que 

concentrar‐se em manter seus pés sobre as cinzas. —Deve ter me hipnotizado! — disse de não muito bom grado. Comecei  a  falar  de  forma  incoerente,  enredando‐me  em  palavras  sem 

conseguir que

 elas

 tivessem

 sentido,

 para

 terminar

 chorando

 e denunciando

 a todos.

 

Esperanza  me  observou  em  silêncio,  sobrancelhas  levantadas  e  olhos  abertos  em 

atitude de surpresa. De imediato lamentei meu rompante, apesar de que me satisfez o 

fato de ter falado, pois senti um momentâneo alívio do tipo que se experimenta depois de uma confrontação. 

—Sua  confusão  se  origina  em  sua  facilidade  para  passar  de  um  tipo  de 

consciência  a outra.  Se  tivesse  tido  que  lutar  para  conseguir  isso,  como  o  faz  todo 

mundo, então saberia que o ensonhar desperto não é somente hipnose. — Esperanza fez uma pausa antes de continuar. —O ensonhar desperto é o estado mais sofisticado 

que os seres humanos podem conseguir. 

Olhou em

 direção

 às

 sombras

 do

 quarto,

 como

 se

 de

 lá

 alguém

 pudesse

 lhe

 fornecer uma explicação mais clara. Depois, virando‐se para mim, perguntou: —Você comeu sua comidinha? A mudança de assunto me  surpreendeu, e comecei a balbuciar. Ao  recobrar‐

me, disse‐lhe que, de fato, havia comido os tamales doces, que havia tido tanta fome 

que nem me incomodei em esquentá‐los, e que estavam deliciosos. Enquanto brincava com seu chale Esperanza me pediu uma detalhada versão de  tudo o que havia  feito 

desde meu despertar no quarto de Florinda. Como se me tivessem administrado uma poção  reveladora  da  verdade,  soltei  mais  do  que  era  minha  intenção  divulgar.  A 

Esperanza  não  pareceu  importar‐lhe  minha  passagem  pelos  quartos  das  mulheres, 

nem lhe

 impressionou

 o fato

 de

 que

 eu

 soubesse

 qual

 quarto

 correspondia

 a cada

 uma. O que se lhe interessou, não obstante, foi meu encontro com o cuidador, e com 

um  sorriso  de  inocultável  felicidade,  escutou  o  relato  de minha  confusão,  de  tê‐lo 

tomado a ele por ela. Ao admitir que em determinado momento estive  a ponto de 

pedir‐lhe a exibição de seus genitais como prova, fez com que ela se torcesse de risos sobre a esteira. 

Apoiando‐se em mim, cochichou em meu ouvido: —Te tranquilizarei — e com um brilho perverso nos olhos adicionou —, olhe os 

meus. —Não  é  necessário,  Esperanza  —  retruquei,  intentando  dissuadi‐la.  —Não 

duvido 

de 

que 

seja 

mulher. 

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  104

—Não há como se estar seguro disso — rebateu, ignorando minhas palavras, e 

indiferente ao meu desconcerto (ocasionado não tanto pela iminente desnudez, e sim 

pelo fato de ter que contemplar um corpo velho e enrugado) se recostou na esteira e, com grande sutileza, levantou lentamente suas saias. 

Minha curiosidade triunfou sobre meu desconcerto, e a olhei boquiaberta. Não 

usava calcinhas,

 e carecia

 por

 completo

 de

 pelos

 púbicos.

 Seu

 corpo

 era

 incrivelmente

 

 jovem, as carnes fortes e firmes, e os músculos delicadamente delineados. Era de uma só  cor,  um  uniforme  rosa‐avermelhado;  sua  pele  não  exibia  uma  só  mancha  nem 

varizes, e nada danificava a uniforme suavidade de suas pernas e seu abdômen. Me estiquei para tocá‐la, como se precisasse do tato para assegurar‐me de que 

essa pele  sedosa era  real, e ela abriu os  lábios de  sua vagina com os dedos. Afastei meu rosto, não tanto por sentir‐me incomodada, mas por causa de minhas conflitadas emoções.  Não  era  uma  questão  de  desnudez:  havia  nascido  num  lugar  sem 

preconceitos,  onde  ninguém  tinha  problemas  a  esse  respeito,  e  durante meus  dias escolares na  Inglaterra  fui convidada um verão a passar duas semanas na Suécia, na 

casa de

 uma

 amiga

 que

 morava

  junto

 ao

 mar.

 Toda

 sua

 família

 pertencia

 a uma

 colônia

 

nudista que adorava o sol com cada pedaço de sua pele desnuda. Ver a Esperanza sem roupas ante mim foi diferente, e me excitou de maneira 

muito  especial.  Nunca  havia  reparado  antes  nos  órgãos  sexuais  de  uma  mulher. Certamente  já havia examinado a mim mesma no espelho. Desde todo ângulo possível. Também  havia  assistido  à  exibição  de  filmes  pornográficos,  que  não  só  me 

desagradaram como me ofenderam, mas vê‐la assim a Esperanza foi uma experiência demolidora, pois sempre considerei normais minhas reações no terreno sexual. Pensei que  como  mulher  unicamente  me  excitaria  um  homem,  e  me  surpreendeu 

tremendamente um  incontível desejo de montá‐la, neutralizado  somente por minha 

falta de

 pênis.

 Quando Esperanza ficou de pé e tirou a blusa, aspirei o ar num sonoro gesto de 

surpresa, e depois mantive a vista fixa no piso até que se amainou a sensação febril em 

meu pescoço e em meu rosto. —Olhe‐me! — exigiu  impaciente. Estava totalmente nua, os olhos brilhantes e 

as  bochechas  coradas.  Seu  corpo  era  leve,  porém  maior  e  mais  forte  do  que 

aparentava vestida, e seus seios cheios e firmes. —Toque‐os! — ordenou num tom suave e convidativo. Suas palavras rebateram ao redor do quarto como um ritmo enfeitiçador, um 

som  mais  sentido  que  escutado,  que  pouco  a  pouco  cresceu  em  intensidade  até 

tornar‐se

 tão

 forte

 como

 o de

 meu

 próprio

 coração.

 Depois

 não

 escutei

 nem

 senti

 outro som além do da risada de Esperanza. —O cuidador não estará escondido aqui, verdade? — perguntei quando pude 

falar, repentinamente receosa e sentindo‐me culpada por minha ousadia. —Espero que não! — rebateu com tal ar de espanto que não pude evitar o riso. —Onde está? — insisti. Esperanza abriu bem os olhos e sorriu, como quem se preparara a gargalhar, 

mas de imediato adotou uma expressão séria, e em tom formal explicou que o homem 

cuidava das duas casas, e não era seu costume espiar as pessoas. —Mas é verdadeiramente o cuidador? — perguntei, cuidando para mostrar‐me 

ascética. 

—Não 

quero 

menosprezá‐

lo, 

mas 

não 

me 

parece 

capaz 

de 

cuidar 

de 

nada. 

Segundo Esperanza, a fragilidade do cuidador era só aparente. 

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  105

—É muito capaz, — me assegurou — e deve se  ter cuidado com ele, pois ele 

gosta de moças  jovens, em especial das  loiras — e se aproximou para cochichar em 

meu ouvido: —Ele tentou algo contigo? Acudi em sua defesa. —Céus, não! Foi muito correto e de grande utilidade. É só que… — e minha voz 

se arrastou

 até

 se

 fazer

 um

 sussurro,

 e minha

 atenção

 se

 desviou

 até

 os

 móveis

 do

 

quarto, que não conseguia distinguir por causa da má luz da lamparina de azeite. Quando por fim pude enfocar de novo minha atenção em Esperanza o cuidador 

deixou de me preocupar. Somente podia pensar, com  tenaz  insistência, em por que 

Isidoro Baltazar havia partido sem avisar‐me, sem sequer deixar‐me um bilhete. —Por que me deixou desta maneira? — perguntei a Esperanza. — A alguém 

deve de  ter avisado quando voltará — e, ao notar seu sorriso  irônico, emendei com 

tom beligerante: —Estou segura de que você sabe algo sobre tudo isto. —Não  sei  de  nada  —  insistiu,  incapaz  de  entender  meu  problema.  —Essas 

coisas não me preocupam, e tampouco deveriam preocupar a você. Isidoro Baltazar se 

foi, e assunto

 acabado.

 Regressará

 num

 par

 de

 dias,

 num

 par

 de

 semanas…

 quem

 

sabe? Tudo depende do que aconteça nas montanhas. Achei abominável sua falta de compreensão e simpatia. —Tudo depende?! — gritei. —E eu? Eu não posso ficar semanas aqui. —Por que não? — perguntou Esperanza com ar inocente. Olhei‐a como quem olha a um demente, e logo me lancei a dizer que não tinha 

com que me  arranjar, que não havia nada que eu  pudesse  fazer  ali. Minha  lista de 

queixas era interminável, e mal a havia acabado quando me esgotei. —Simplesmente tenho que ir pra casa, regressar a meu meio normal — concluí, 

lutando contra minhas inevitáveis lágrimas, às quais opus valente batalha. 

—Normal? —

 e Esperanza

 repetiu

 a palavra

 com

 lentidão,

 como

 se

 estivesse

 saboreando‐a. —Pode  ir quando quiser; ninguém lhe impede disso. Podemos arranjar para  fazer‐lhe chegar sem problemas à  fronteira, de onde pode  tomar um ônibus da 

Greyhound que lhe deixará em Los Ângeles. Não me animei a  falar, de modo que assenti com um gesto. Tampouco  sabia 

que  não  partir  era  o  que  eu  desejava,  pois  a  mera  idéia  de  ausentar‐me  me  era intolerável. De algum modo eu  sabia que  se eu  fosse,  jamais encontraria de novo a 

essas  pessoas,  nem  sequer  a  Isidoro  Baltazar  em  Los  Ângeles.  Comecei  a  chorar incontrolavelmente. Não poderia ter posto minhas emoções em palavras, mas a aridez de uma vida, de um futuro sem essa gente, me era inconcebível. 

Não percebi

 a partida

 e o regresso

 de

 Esperanza

 do

 quarto,

 mas

 não

 teria

 percebido  nada  a  não  ser  pelo  aroma  delicioso  de  chocolate  que  senti  sob minhas narinas. 

—Se sentirá melhor depois que tiver comido — disse, colocando uma bandeja em minha  saia, e  sorrindo  carinhosamente  tomou  assento  a meu  lado, e  confessou 

que o chocolate era o melhor remédio para a tristeza. Concordei  plenamente  com  ela,  bebi  uns  poucos  goles  e  comi  umas  tantas 

tortilhas enroladas e untadas com manteiga, e confessei que, apesar de não conhecer bem a ela nem às  suas amigas, não podia  conceber o afastar‐me e não  vê‐las mais. Admiti que com elas sentia uma liberdade e uma soltura  jamais experimentada antes. 

Uma 

sensação 

estranha, 

expliquei, 

em 

parte 

física 

em 

parte 

psicológica, 

que 

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desafiava toda análise, que só podia se descrever como uma sensação de bem‐estar, ou como a certeza de ter encontrado por fim um lugar ao qual pertencia. 

Esperanza  sabia  com  exatidão  o  que  eu  intentava  expressar.  Disse  que  o 

pertencer  ao  mundo  dos  feiticeiros,  ainda  por  um  curto  tempo,  provocava  vício, dependência.  Não  era  a  extensão  do  tempo,  ressaltou,  e  sim  a  intensidade  dos 

encontros o que

 importava.

 —Seus

 encontros

 foram

 muito

 intensos…

 —

 afirmou.

 

—Eles foram? — perguntei. Esperanza levantou as sobrancelhas num autêntico gesto de surpresa, e depois 

coçou sua  testa de maneira exagerada, como se estivesse ponderando um problema sem solução. Depois de um longo silêncio emitiu sua opinião: 

—Caminhará mais  aliviada  quando  se  der  completamente  conta  de  que  não 

pode voltar à sua antiga vida — sua voz, apesar de ser apenas audível, continha uma força  extraordinária;  seus  olhos  prenderam  um  instante  os meus,  e  ali  reconheci  o 

significado de suas palavras. —Para mim nada voltará a ser igual — disse. Esperanza concordou. 

—Regressará ao

 mundo,

 mas

 não

 ao

 seu

 mundo,

 à sua

 antiga

 vida

 —

 

considerou, levantando‐se da esteira com essa abrupta majestade própria de pessoas pequenas. Correu até a porta, parou bruscamente e, virando‐se para mim, pronunciou 

outra de suas sentenças: —É muito excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o 

é mais, se você se decide a fazer algo sem saber qual será o resultado. Estive em completo desacordo com ela, e disse‐lhe: —Preciso saber o que faço. Necessito saber em quê estou me metendo. Esperanza suspirou e levantou as mãos numa cômica atitude de súplica. —A liberdade causa muito temor — disse asperamente, e antes que eu tivesse 

chance de  responder, mudou  de  tom, e  agregou  com doçura: —A  liberdade  requer 

atos espontâneos.

 Não

 tem

 idéia

 do

 que

 significa

 o abandonar

‐se

 espontaneamente...

 —Tudo o que eu  faço é espontâneo —  interrompi. —Por que acha que estou 

aqui? Acha que pensei muito sobre se deveria vir ou não? Voltou à esteira e ficou contemplando‐me um longo período antes de dizer: —É  evidente  que  não o  pensou muito, mas  seus  atos  de  espontaneidade  se 

devem mais à sua falta de avaliação que a um ato de abandono — e golpeando o chão 

com o pé para impedir uma nova interrupção de minha parte, acrescentou: —Um ato 

verdadeiramente espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas só depois de uma profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram 

devidamente  levados  em  conta  e  descartados,  pois  nem  se  espera  nada  nem  se 

lamenta nada.

 Com

 atos

 dessa

 natureza

 os

 bruxos

 convocam

 a liberdade.

 —Não sou uma bruxa — murmurei em voz baixa, e procurei retê‐la segurando 

o meio de seu vestido, mas ela deixou bem claro que não  tinha  interesse algum em 

continuar com nossa conversa. Eu a segui pelo caminho que conduzia à outra casa. Tal qual  fizera o cuidador,  também ela me  recomendou manter os pés sobre a  linha de 

cinzas. —Se não o fizer — disse —, você cairá no abismo. —Abismo? — repeti, olhando em torno, à massa do escuro chaparral que nos 

rodeava. Se  alçou  uma  leve  brisa,  e  das  sombras  chegaram  vozes  e  sussurros. 

Instintivamente 

me 

aferrei 

à 

sua 

saia. 

—Pode ouvi‐los? — perguntou. 

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—O que é que devo ouvir? Ela se aproximou como se temesse que alguém nos escutasse, para me dizer no 

ouvido: —Surems  de  outro  tempo.  Usam  o  vento  para  vagar  pelo  deserto,  sempre 

despertos. 

—Fantasmas? 

—Não existem os fantasmas — manifestou de maneira terminante, e retomou 

sua caminhada. Me certifiquei muito bem de manter os pés sobre a linha de cinzas, e não soltei 

a saia de Esperanza até que ela parou bruscamente no meio do pátio da casa grande. Ali  vacilou um  instante,  como  se não pudesse decidir a qual parte da  casa havia de 

levar‐me.  Percorreu  corredores  e  dobrou  em  várias  esquinas,  até  que  por  fim 

ingressamos num enorme aposento que havia escapado de minha exploração anterior. As paredes estavam cobertas do piso ao  teto com  livros; em um extremo havia uma 

mesa larga e forte, e em outro estava pendurada uma rede tecida, de cor branca. 

—Que quarto

 magnífico!

 —

 exclamei.

 —A

 quem

 pertence?

 

—É seu — ofereceu Esperanza com um gracioso gesto, e depois, de um armário 

próximo à porta, extraiu três grossas cobertas de lã. —Pegue, as noites são frias — disse. —Quer dizer que posso dormir aqui? — perguntei, e  todo meu corpo  tremeu 

de prazer quando forrei a rede com as cobertas e me instalei nela… De menina, foram 

muitas as vezes em que dormi numa rede, de modo que, recriando esses momentos, suspirei  feliz  e  passei  a  me  balançar.  Depois  meti  as  pernas  e  me  estendi voluptuosamente. 

—Saber dormir em rede é como saber andar de bicicleta. Nunca se esquece — 

disse, mas

 ninguém

 me

 escutou.

 Esperanza havia partido sem que eu o notasse. 

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  108

CAPÍTULO ONZE 

Apaguei  a  luz  e  permaneci muito  quieta  na  rede,  embalada  pelos  ruídos  da 

casa: estalos estranhos, e o gotejar da água de um filtro de barro situado  junto à porta de  meu  quarto.  O  inconfundível  som  de  passos  no  corredor  me  fez  levantar 

bruscamente. 

—Quem pode ser a esta hora? — me perguntei. Abandonei  a  rede, e  nas  pontas dos pés me  aproximei  da porta para  apoiar 

meu ouvido contra ela. Os  ruídos eram  fortes, e meu coração acelerou ao constatar que  chegaram  perto  e  pararam  ante  meu  quarto.  Houve  uma  batida  na  porta carregada de urgência que, apesar de esperar por isso, me sobressaltou. Dei um salto 

para trás e derrubei uma cadeira. —Teve um pesadelo? — perguntou  Florinda  ao entrar. Deixou  a porta  semi‐

aberta, e a luz do corredor invadiu o recinto. —Pensei que ficaria feliz ao escutar o som 

de meus passos — disse de brincadeira. —Não queria me aproximar  furtivamente — 

acrescentou, enquanto

 pendurava

 uma

 camisa

 e uma

 calça

 cor

 caqui

 sobre

 o encosto

 

de uma cadeira. —Com os cumprimentos do cuidador. Disse que pode ficar com elas. —Ficar  com elas? —  repeti, olhando  as prendas  com desconfiança. Davam  a 

impressão de estar limpas e recém passadas. —O que tem de errado com meus  jeans? —Se  sentirá  mais  cômoda  com  essas  calças  durante  a  longa  viagem  a  Los 

Ângeles — explicou Florinda. —Mas eu não quero ir! Eu fico aqui até que Isidoro Baltazar volte. Ao observar que eu estava a ponto de entregar‐me ao choro, Florinda riu. —Isidoro  Baltazar  regressou,  e  você  pode  ficar  mais  um  tempo,  se  assim  o 

desejar. 

—Oh, não,

 nada

 disso

 —

 respondi,

 esquecida

  já

 de

 toda

 a ansiedade

 acumulada

 nesses  dois  dias,  assim  como  também  de  todas  as  perguntas  que  desejava  fazer  a 

Florinda. Somente conseguia pensar no fato de que Isidoro Baltazar estava de volta. —Posso vê‐lo  já? —Temo que não — e Florinda me impediu que abandonasse o quarto. Por uns minutos não compreendi o sentido de suas palavras. Olhei‐a fixo sem 

entender, até que ela repetiu que naquela noite não seria possível ver ao novo nagual. —Por que não? — perguntei confundida. —Estou certa de que ele desejaria me 

ver. —Sem dúvida alguma —  rebateu —, mas está profundamente adormecido, e 

não pode

 ser

 despertado.

 —

 ante

 a tão

 terminante

 recusa

 não

 pude

 fazer

 nada

 mais

 que contemplá‐la em silêncio. Florinda passou um  longo tempo com o olhar  fixo no chão, e quando por  fim 

me encarou seu olhar era triste. Por um momento achei que modificaria sua decisão e 

me levaria  junto a Isidoro Baltazar, mas concluiu repetindo que não poderia vê‐lo essa 

noite,  e  dito  isto,  como  temerosa  de  arrepender‐se,  me  abraçou  e  me  beijou, abandonou o quarto, apagou a luz do corredor, e das sombras me mandou ir dormir. 

Incapaz  de  conciliar  o  sono,  passei  longas  horas  revolvendo‐me  na  rede.  Já 

estava por  amanhecer quando decidi  levantar‐me e  vestir os presentes  trazidos por Florinda.  Salvo  as  calças,  que  por  falta  de  cinta  precisei  segurar  com  uma  corda,  o 

conjunto 

me 

caía 

bem. 

Com 

os 

sapatos 

na 

mão 

atravessei 

corredor, 

deixei 

para 

trás 

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  109

o quarto do cuidador, e me dirigi à entrada  traseira. Cuidando para não  fazer  ruído, abri parcialmente a porta. 

Lá fora estava escuro, mas o suave azul da madrugada  já coloria o céu. Corri até 

o pórtico assentado sobre a parede, parando apenas  junto às duas árvores sentinelas do caminho. Um forte aroma de flor de  laranjeiras perfumava o ar, e toda a dúvida a 

respeito de

 cruzar

 o chaparral

 morreu

 quando

 comprovei

 que

 cinzas

 frescas

 cobriam

 o 

chão. Sem pensar duas vezes corri até a outra casa. A  porta  estava  entreaberta,  porém  adiei  meu  ingresso.  Escondida  sob  uma 

 janela, esperei ser guiada por algum som, que me chegou em pouco tempo na forma de  sonoros  roncos.  Deixei  passar  uns  minutos,  entrei,  e  guiada  pelos  roncos  me 

encaminhei diretamente ao quarto dos fundos da casa. Na escuridão apenas distingui uma forma adormecida sobre uma esteira, mas não tive dúvidas de que se tratava de 

Isidoro Baltazar.  Temerosa  de  que  um  despertar  repentino o  perturbasse,  voltei  ao 

aposento da  frente e me sentei no sofá. Tal era minha excitação que não conseguia ficar  quieta,  feliz  com  a  idéia  de  que  a  qualquer momento  despertaria. Duas  vezes 

regressei na

 ponta

 dos

 pés

 para

 olhá

‐lo.

 Havia

 mudado

 de

 posição

 durante

 o sono,

 e  já

 

não roncava. Devo  ter  adormecido  no  sofá,  pois  através  de  meu  inquieto  sono  tive  a 

sensação de que alguém havia entrado no quarto. Ergui‐me um pouco para murmurar “estou esperando que  Isidoro Baltazar desperte”, mas  sabia que nenhum  som havia 

saído de minha boca. Com um esforço consciente me sentei, e tudo dançou ante meus olhos, até que pude enfocar ao homem de pé diante de mim. Era Mariano Aureliano. 

—Isidoro Baltazar, ainda dorme? — perguntei. O  velho  nagual  me  contemplou  por  um  longo  período,  e  não  sabendo  se 

sonhava,  tentei  pegar  sua mão.  Precisei  soltá‐la  precipitadamente,  pois  ardia  como 

uma brasa.

 Arqueou

 as

 sobrancelhas,

 ao

 parecer

 surpreendido

 por

 meu

 comportamento. —Não poderá ver a  Isidoro Baltazar até a manhã — disse, e pronunciou estas 

palavras lentamente, como se o fazê‐lo lhe ocasionasse um grande esforço. Antes  que  tivesse  oportunidade  de  dizer  que  já  era  quase  de manhã,  e  que 

aguardaria a Isidoro Baltazar onde estava, senti a mão fervente de Mariano Aureliano 

sobre minhas costas, expulsando‐me do quarto. —Volte para a sua rede. Houve um repentino golpe de vento, e quando me virei para protestar Mariano 

Aureliano  já  não  estava  ali. O  vento  retumbou  em minha  cabeça  como  um  tambor 

grave, para

 fazer

‐se

 cada

 vez

 mais

 suave

 e morrer

 numa

 simples

 vibração.

 Abri

 a boca

 para prolongar os últimos frágeis ecos. Despertei no meio da manhã na rede, vestindo 

as  roupas  que  me  deixara  Florinda.  Automaticamente,  quase  sem  pensar,  me 

encaminhei  até  a  casa  pequena,  cuja  porta  encontrei  fechada  à  chave.  Apesar  dos golpes que dei nela e de meus gritos não recebi resposta. Tentei forçar as  janelas, que 

também encontrei fechadas. Aturdida  e  próxima  às  lágrimas,  corri  colina  abaixo  até  a  clareira  junto  ao 

caminho, único  lugar onde se podia estacionar um carro, para descobrir que a perua de Isidoro Baltazar não estava ali. Depois percorri em vão um bom trecho do caminho 

em busca de rastros recentes de rodas de carro. Não havia nenhum. 

Muito 

confusa 

voltei 

à 

casa, 

sabendo 

que 

seria 

inútil 

buscar 

pelas 

mulheres 

em seus quartos, parei no meio do pátio  interno e chamei aos gritos por Florinda. A 

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única  réplica  foi  o  eco  de  minha  voz.  Repassei  incontáveis  vezes  às  palavras  de 

Florinda, sem chegar a uma conclusão satisfatória. A única certeza que me assistia era a  de  que  Florinda  tinha  vindo  ao meu  quarto  no meio  da  noite  para  trazer‐me  as roupas que agora eu  vestia. Essa  visita, e  seu anúncio de que  Isidoro Baltazar havia regressado, sem dúvida alguma haviam produzido tão vivido sonho em mim. 

Para conter

‐me

 de

 toda

 especulação

 acerca

 do

 motivo

 de

 estar

 só

 na

 casa,

 pois

 

nem sequer o cuidador havia dado sinais de vida, me dediquei a  lavar os pisos. Este 

tipo  de  trabalho  sempre  exerceu  um  efeito  tranquilizante  sobre  mim,  e  havia terminado com todos os cômodos, inclusive a cozinha, quando escutei o inconfundível som de um motor Volkswagen. Corri colina abaixo e me atirei nos braços de  Isidoro 

Baltazar ainda antes que ele abandonasse o veículo, quase derrubando‐o no chão. —Não posso acreditar — disse rindo, enquanto me abraçava. —Você é a moça 

de  quem  tanto me  falou o nagual.  Sabia  que quase  desmaiei  quando  lhe  deram  as boas‐vindas? 

Não esperou minha  resposta. Abraçou‐me de novo e,  rindo, me  levantou nos 

braços. Depois,

 como

 se

 alguma

 comporta

 se

 tivesse

 aberto

 nele,

 começou

 a falar

 sem

 

pausa. Disse que fazia um ano que sabia de minha existência, pois o nagual  lhe havia informado que  lhe encomendaram uma garota estranha, à qual descreveu  como  “o 

meio‐dia de um dia  claro, não  ventoso nem  calmo, nem  frio  nem quente, mas que 

alterna entre  tudo  isso, deixando‐lhe  louco”.  Isidoro Baltazar confessou que sendo o 

tonto  pomposo  que  era,  havia  sabido  instantaneamente  que  o  nagual  estava  se 

referindo à sua namorada. —Quem é sua namorada? — o interrompi. Fez um movimento brusco com a mão, evidentemente incomodado por minhas 

palavras. 

—Esta não

 é uma

 história

 de

 feitos

 —

 disse

 irritado

 —,

 é uma

 história

 de

 idéias,

 de modo  que  verá  o  idiota  que  sou. —  de  repente  sua  irritação  cedeu  lugar  a  um 

brilhante  sorriso. —Até  cheguei  a  acreditar  que  poderia  averiguar  por mim mesmo 

quem era essa garota — e fez uma pausa antes de acrescentar: —Inclusive cheguei a 

incluir a uma mulher casada, com filhos, em minha busca. Suspirou fundo, sorriu e disse: —A moral desta história é que no mundo dos feiticeiros a pessoa deve eliminar 

o  ego  ou  sofrer  as  consequências,  pois  não  há  forma  em  que  pessoas  como  nós possam predizer algo. 

Ao notar que eu chorava me afastou um pouco e perguntou ansioso: 

—O que

 aconteceu,

 Nibelunga?

 —Na verdade nada — respondi, rindo em meio a meus soluços. —Não possuo 

uma mentalidade abstrata capaz de preocupar‐se do mundo das histórias abstratas — 

e acrescentei, com todo o cinismo e a dureza que pude reunir: —Me preocupo com o 

aqui e o agora. Não tem idéia das coisas que passei nesta casa. —Claro que sim; tenho uma muito boa idéia — retrucou com deliberada rudeza 

— pois  já faz anos que lido com isso. — olhou‐me com olhos de inquisidor ao formular sua  seguinte  pergunta: —O  que  desejo  saber  é  por  que  não me  disse  que  já  havia estado com eles? 

—Estava  a  ponto  de  fazê‐lo,  mas  não  me  pareceu  importante  —  respondi 

confusa, 

mas 

em 

seguida 

minha 

voz 

se 

fez 

firme 

à 

medida 

que 

as 

palavras 

surgiam 

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alheias à minha vontade: —De longe, vejo que a única coisa importante que fiz na vida 

é ter me relacionado com eles. Para ocultar a surpresa que me produziu esta admissão, comecei a queixar‐me 

de ter sido abandonada, de ter ficado sozinha nessa casa. —Não tive oportunidade de lhe avisar que eu ia às montanhas com o nagual — 

disse. 

—Isso  eu  já  esqueci  —  assegurei‐lhe.  —Estou  falando  do  dia  de  hoje.  Esta 

manhã, ao despertar, esperava ver você aqui. Estava segura de que  tinha passado a 

noite na casinha, dormindo sobre uma esteira, e ao não te encontrar entrei em pânico. Ao notá‐lo  intrigado, contei‐lhe da visita noturna de Florinda, e de meu sonho 

de encontrar‐me sozinha na casa ao despertar. Sabia que meu discurso era incoerente, meus pensamentos e palavras confusas, mas não pude deter‐me. Conclui meu discurso 

dizendo: —Há tanto que não posso aceitar, e tampouco refutar. Isidoro Baltazar não respondeu, e seu olhar, suas sobrancelhas arqueadas e a 

expressão espirituosa

 de

 seu

 rosto

 delgado

 e cansado,

 cor

 de

 fumaça,

 pareciam

 indicar

 

que  aguardava  a  que  eu  continuasse  falando.  Sua  pele  exsudava  uma  estranha frescura,  e  um  vago  cheiro  a  terra,  como  se  houvesse  passado  dias  numa  caverna subterrânea. 

Todo  vestígio  de  inquietude  desapareceu  quando  encarei  seu  sinistro  olho 

esquerdo e  sua  terrível,  inclemente olhada. Nesse momento deixou de  importar‐me 

qual  era  a  verdade  autêntica,  a  ilusão, o  ensonho  dentro  do  ensonho. Ri  feliz,  leve 

como o vento, livre do insuportável peso que carregava em minhas costas. Reconheci o 

olho  de  bruxo,  igual  ao  que  tinham  Florinda,  Mariano  Aureliano,  Esperanza  e  o 

cuidador. Destinado desde os princípios do tempo a carecer de sentimento e emoção, 

esse olho

 refletia

 o vazio,

 e como

 se

  já

 tivesse

 revelado

 demais,

 uma

 pálpebra

 interna,

 como a do olho de um lagarto, se fechou sobre a pupila esquerda. Antes que eu tivesse 

chance de comentar sobre seu olho Isidoro Baltazar fechou ambos; quando, depois de 

um  instante, os abriu, se viam  idênticos, escuros, brilhantes e sorridentes. O olho de 

bruxo caiu em ilusão. Com um braço rodeando meus ombros subimos a encosta. Antes de chegar na casa Isidoro Baltazar me ordenou recolher minhas coisas. 

—Te espero no automóvel — disse. Pareceu‐me estranho que não entrasse comigo, mas nesse momento não me 

ocorreu  investigar  sua  razão,  e  somente  quando  estava  recolhendo  meus  poucos pertences, ocorreu‐me que talvez temesse às mulheres, o qual me provocou riso, pois 

se havia

 algo

 que

 Isidoro

 Baltazar

 não

 temia

 era

 às

 mulheres.

 Disso

 estava

 totalmente

 segura. Ao chegar  junto ao carro continuava com meu riso, e abri a boca para explicar a  Isidoro Baltazar o motivo de meu  júbilo, quando me  invadiu uma  forte e estranha emoção. 

Não era paixão sexual o que sentia, tampouco afeto platônico, e menos ainda aquele carinho para com meus pais e irmãos. Simplesmente amava a ele com um amor ausente de expectativas, dúvidas e temores, e como se eu tivesse dito tudo isto em voz alta, Isidoro Baltazar me abraçou com tal força que apenas me permitia respirar. 

Partimos  muito  lentamente,  e  botei  a  cabeça  pela  janela,  acreditando  que 

poderia ver o cuidador entre as árvores. 

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“Sinto‐me rara, partindo desta maneira”, pensei. “De certo modo, Florinda se 

despediu  de  mim  à  noite,  mas  eu  teria  gostado  de  agradecer  a  Esperanza  e  ao 

cuidador.” O caminho de terra serpenteava em torno do monte, e ao chegar a uma curva 

fechada vimos de novo a casa. Isidoro Baltazar parou o carro, desligou o motor, e com 

o dedo

 assinalou

 ao

 velho,

 sentado

 sobre

 um

 caixote

 em

 frente

 à casa.

 Quis

 abandonar

 

o veículo e correr até ele, mas Isidoro Baltazar me deteve. —Dê adeus com a mão. O cuidador se  levantou; o vento brincava com sua camisa solta e suas calças, 

fazendo que parecessem asas batendo contra seus membros. Soltou uma gargalhada, se encurvou, e ao parecer aproveitando a força do vento, deu dois saltos mortais para 

trás.  Por  um  momento  pareceu  estar  suspenso  no  ar,  porém  nunca  aterrissou. Simplesmente se evaporou, como se o próprio vento o tivesse sugado. 

—O que aconteceu? Para onde foi? — perguntei assombrada. —Ao outro  lado — respondeu  Isidoro Baltazar, rindo com a felicidade de uma 

criança se

 divertindo.

 —Essa

 foi

 sua

 maneira

 de

 se

 despedir.

 

Colocou o carro em movimento, e enquanto viajávamos, como se estivesse me 

tentando, lançava‐me ocasionais olhadas irreverentes. —O que é que te preocupa, Nibelunga? — perguntou. —Você sabe quem ele é, verdade? — acusei‐o —Não é o cuidador, não? Isidoro  Baltazar  franziu o  cenho,  e  depois  de  um  longo  silêncio me  lembrou 

que,  para  mim,  o  nagual  Juan  Matus  era  Mariano  Aureliano,  assegurando‐me  que 

deveria existir uma razão muito boa para que o conhecesse por esse nome, e agregou: —Estou  certo de que deve de existir uma  justificativa  igualmente válida para 

que o cuidador não te revele seu nome. 

Eu argumentei

 que

  já

 que

 sabia

 quem

 era

 Mariano

 Aureliano,

 a pretensão

 do

 cuidador  não  tinha  sentido  e  —  acrescentei  com  propriedade —  eu  sei  quem  é  o 

cuidador… — e ao dizê‐lo, olhei de soslaio a Isidoro Baltazar, cujo rosto nada revelou. Quando falou foi para dizer que, como todos os seres do mundo dos feiticeiros, 

o cuidador também era um feiticeiro, mas que eu não sabia quem era. Lançou‐me um 

breve olhar, e em seguida transferiu sua atenção ao caminho. —Depois de  todos estes anos eu mesmo não sei quem são eles  realmente, e 

incluindo  ao  nagual  Juan Matus.  Enquanto  estou  com  ele  creio  saber  quem  é, mas assim que me vira as costas, estou perdido. 

Com  acento  quase  sonhador,  Isidoro  Baltazar  acrescentou  que  no  mundo 

cotidiano nossos

 estados

 subjetivos

 eram

 compartilhados

 por

 todos

 nossos

 semelhantes. Por tal razão sabemos a todo momento o que fariam estes semelhantes sob certas condições. 

—Está equivocado! — gritei. — Totalmente equivocado. Não saber o que farão 

nossos semelhantes sob certas circunstâncias é o que faz excitante a vida. É uma das poucas coisas excitantes que nos sobram. Não me diga que o quer eliminar. 

—Não  sabemos  com  exatidão  o  que  fariam  nossos  semelhantes, —  explicou 

pacientemente  —  mas  poderíamos  redigir  uma  lista  de  possibilidades  que  teria sentido. Uma lista muito longa, te advirto, no entanto uma lista limitada. Para escrevê‐

la não necessitamos averiguar as preferências de nossos semelhantes. Só precisamos 

nos 

colocar 

em 

seu 

lugar 

escrever 

as 

possibilidades 

que 

nos 

concernem. 

Serão 

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aceitáveis  a  todos,  pois  as  compartilhamos.  Nossos  estados  subjetivos  são 

compartilhados por todos nós. Disse  depois  que  nosso  conhecimento  subjetivo  do mundo  nos  é  conhecido 

como  sentido  comum. Pode  diferir de  grupo em  grupo, de  cultura em  cultura, mas apesar de todas essas diferenças, o sentido comum é o suficientemente homogêneo, 

como para

 garantir

 a declaração

 de

 que

 o mundo

 cotidiano

 é um

 mundo

 

intersubjetivo. —Entretanto  com  os  feiticeiros  o  sentido  comum,  ao  qual  estamos 

acostumados,  não  tem  vigência.  Possuem  outro  tipo  de  sentido  comum,  pois  têm 

outro tipo de estados subjetivos. —Quer dizer que são como seres de outro planeta? — perguntei. —Sim — respondeu Isidoro Baltazar, rindo —, são como seres de outro planeta. —É por isso que são tão reservados? —Não  acho que o  termo  reservado  seja o  correto — observou pensativo. —

Lidam de maneira diferente com o mundo cotidiano, e seu comportamento nos parece 

reservado pois

 não

 compartilhamos

 seu

 significado,

 e  já

 que

 carecemos

 de

 padrões

 

para  medir  o  que  para  eles  é  sentido  comum,  optamos  por  acreditar  que  seu 

comportamento é reservado. —Eles  fazem o que nós  fazemos: dormem,  cozinham  suas  refeições,  lêem — 

observei —, contudo, nunca pude surpreendê‐los no ato de  fazê‐los. Eu  lhe asseguro 

que são reservados. Sorrindo, sacudiu a cabeça. —Viu o que eles quiseram que visse, apesar do qual não  te ocultavam nada. 

Simplesmente você não conseguia ver. Estava  a  ponto  de  contradizê‐lo,  mas  me  abstive,  pois  não  queria  que  me 

tomasse antipatia.

 Não

 era

 tanto

 o fato

 de

 que

 tivesse

 a razão,

 pois

 afinal

 eu

 não

 entendia  de  quê  falava.  Antes  disso,  sentia  que  todas  minhas  averiguações  e 

curiosidades  não  me  haviam  dado  pista  alguma  a  respeito  de  quem  eram  essas pessoas  e  o  que  faziam.  Com  um  suspiro,  fechei  os  olhos  e  reclinei minha  cabeça contra o encosto do banco. 

No trajeto  lhe falei de meu sonho, do quão real que me foi o vê‐lo dormido e 

roncando  sobre  a  esteira.  Falei‐lhe  de minha  conversa  com Mariano  Aureliano,  do 

calor de sua mão, e quanto mais falava mais me convencia de que tudo isso não havia 

sido um sonho, e me agitei de tal forma que terminei chorando. —Não sei o que me fizeram — disse. —Neste momento não estou muito certa 

se estou

 sonhando

 ou

 se

 me

 encontro

 desperta.

 Florinda

 sempre

 insiste

 em

 que

 eu

 ensonho desperta. —O  nagual  Juan Matus  se  refere  a  isso  como  “consciência  intensificada” — 

esclareceu Isidoro Baltazar. —Consciência intensificada — repeti. As palavras me eram familiares, ainda que parecessem exatamente o oposto de 

ensonhar desperto. Recordei vagamente de tê‐las ouvido antes. Florinda ou Esperanza as  havia  utilizado,  mas  não  lembrava  em  quê  contexto,  e  já  estavam  a  ponto  de 

adquirir  sentido  (vago  talvez) mas minha mente  se  encontrava  sobrecarregada  por minhas vãs tentativas de recontar minhas atividades diárias na casa das feiticeiras. 

Apesar 

do 

muito 

que 

me 

esforcei 

não 

conseguia 

lembrar 

certos 

episódios. 

Lutava por dar com palavras que empalideciam e se desvaneciam ante meus próprios 

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olhos,  igual  a  visões  semivistas  e  lembradas  pela  metade.  Não  era  que  tivesse 

esquecido,  e  sim  que  as  imagens me  chegavam  fragmentadas,  como  peças  de  um 

quebra‐cabeça  que  se  recusam  a  encaixar.  Tudo  isto  adquiria  estatura  de  sensação 

física,  e  podia  resumir‐se  como  uma  névoa  descida  sobre  certas  partes  de  meu 

cérebro. 

—De modo

 que

 consciência

 intensificada

 e ensonhar

 desperto

 são

 o mesmo?

 

— mais que uma pergunta era essa uma declaração cujo significado me escapava. Mudei de posição no assento, e  recolhendo as pernas me  sentei de  frente a 

Isidoro Baltazar. O sol fazia ressaltar seu perfil, seus cabelos negros e enrolados caindo 

sobre sua frente, os pômulos cinzelados, sua forte testa e nariz, e os  lábios finos,  lhe 

davam um aspecto romano. —Devo de estar ainda em estado de consciência  intensificada — disse —, não 

me havia fixado antes em você. Jogou a cabeça para trás e riu, e essa ação fez com que o carro balançasse. —Não há dúvida de que está ensonhando desperta. A pouco você se esqueceu 

de que

 sou

 nanico,

 negro

 e de

 aspecto

 insignificante?

 

Tive que rir, não porque estivesse de acordo com essa descrição de si mesmo, e 

sim porque era a única coisa que lembrava que ele havia dito naquela conferência em 

que o conheci formalmente. Minha alegria logo cedeu lugar a uma estranha ansiedade. Tive a sensação de que haviam se passado meses, e não apenas dois dias, desde nossa chegada à casa das feiticeiras. 

—A passagem do  tempo é diferente no mundo dos  feiticeiros — disse  Isidoro 

Baltazar,  interpretando  meus  pensamentos  —,  e  também  o  vivemos  de  maneira diferente. 

Depois acrescentou que um dos aspectos mais difíceis de sua aprendizagem foi 

o de

 ter

 que

 lidar

 com

 sequências

 de

 acontecimentos

 em

 termos

 de

 tempo.

 Com

 frequência  essas  confusas  imagens  se misturavam  em  sua mente,  que  penetravam 

mais profundamente quando mais tentava enfocá‐las. —Somente agora, com a ajuda do nagual, consigo recordar fatos e aspectos de 

seus ensinamentos, que tiveram lugar há muitos anos — disse. —Como te ajuda? — perguntei. —Te hipnotiza? —Me  fez  mudar  os  níveis  de  consciência  e,  ao  fazê‐lo,  não  só  lembro 

acontecimentos passados como também os revivo. —E como faz isso? Me refiro a fazer‐lhe mudar seus níveis de consciência. —Até a bem pouco  tempo achava que  se conseguia com uma  forte palmada 

nas costas,

 entre

 os

 ombros,

 mas

 agora

 estou

 seguro

 que

 o consegue

 com

 sua

 mera

 presença. —Então, não te hipnotiza? Sacudiu a cabeça. —Os  feiticeiros  são  experts  em  mudar  seus  próprios  níveis  de  consciência. 

Alguns o são tanto que conseguem mudar os níveis de outros. Eu fervia de perguntas, mas com um gesto ele me pediu paciência. —Os feiticeiros nos fazem ver que a natureza total da realidade é diferente de 

nosso  conceito  dela, ou  seja, o  que  nos  foi ensinado  a  acreditar que é  a  realidade. Intelectualmente  estamos  dispostos  a  brincar  com  a  idéia  de  que  a  cultura 

predetermina 

nossa 

existência, 

nossa 

conduta, 

que 

estamos 

preparados 

aprender 

e o que podemos sentir. Mas não estamos dispostos a dar corpo a esta idéia, aceitá‐la 

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como uma proposta prática e concreta, e a razão é que não queremos aceitar que a 

cultura também predetermina o que somos capazes de perceber. —A  feitiçaria  —  continuou  —  nos  faz  dar  conta  de  diferentes  realidades, 

diferentes  possibilidades,  não  só  acerca  do  mundo  e  sim  sobre  nós  mesmos,  ao 

extremo  de  nos  fazer  entrar  num  estado  no  qual  já  não  estamos  em  condições  de 

acreditar sequer

 nas

 mais

 sólidas

 convicções

 a nosso

 respeito

 e ao

 nosso

 entorno.

 

Surpreendeu‐me poder absorver suas palavras com tanta  facilidade, visto que 

na realidade não as compreendia. —Um  feiticeiro não só  tem consciência de diferentes realidades — continuou 

— como usa a esse conhecimento com um sentido prático. Os  feiticeiros sabem, não 

só  intelectualmente,  e  sim  praticamente,  que  a  realidade, ou o mundo,  tal  como o 

conhecemos,  consiste apenas de um acordo extraído a  cada um de nós. Se poderia fazer que esse acordo se derrube, dado que é apenas um fenômeno social, e quando 

se derruba, todo o mundo se derruba com ele. Ao ver que eu não conseguia seguir seus argumentos, tratou de apresentá‐los 

por outro

 ângulo.

 Disse

 que

 o mundo

 social

 nos

 define

 a percepção

 em

 proporção

 à 

sua utilidade em nos guiar através da complexidade da experiência na vida diária. O 

mundo  social  fixa  limites ao que percebemos e ao que  somos capazes de perceber. Para  um  feiticeiro  a  percepção  pode  exceder  esses  parâmetros  acordados.  Estes parâmetros estão feitos e respaldados por palavras, pelo idioma, por pensamentos, ou 

seja, por acordos. —E  os  feiticeiros  não  têm  acordos?  —  perguntei,  fazendo  um  esforço  para 

compreender sua premissa. —Sim,  eles  os  têm  —  respondeu  —,  mas  seus  acordos  são  diferentes.  Os 

feiticeiros quebram o acordo normal, não só  intelectual como física ou praticamente. 

Os feiticeiros

 derrubam

 os

 parâmetros

 da

 percepção

 socialmente

 determinada,

 e para

 compreender o que querem dizer os feiticeiros com  isso, a pessoa deve converter‐se 

em um praticante, ela precisa comprometer‐se, ela precisa empregar  tanto a mente 

como o corpo. Precisa ser uma rendição consciente e sem medo. —O corpo? — perguntei, de  imediato desconfiada a respeito do tipo de ritual 

que isso poderia exigir. —O que é que querem com meu corpo? —Nada,  Nibelunga  —  esclareceu  rindo.  Depois,  num  tom  sereno  embora 

bondoso, acrescentou que nem meu corpo nem minha mente se encontravam ainda em condições de seguir o árduo caminho de feiticeiro, e ao perceber minha  intenção 

de  protestar,  se  apressou  a  assegurar‐me  que  nem  meu  corpo  nem  minha  mente 

sofriam de

 falha

 alguma.

 —Um momento! — interrompi. Isidoro Baltazar ignorou minha interrupção e prosseguiu seu discurso para dizer 

que  o  mundo  dos  feiticeiros  era  um  mundo  sofisticado,  e  que  não  era  suficiente compreender seus princípios de maneira intuitiva. Também era necessário assimilá‐los intelectualmente. 

—Contrariamente  ao  que  as  pessoas  acreditam —  explicou —,  os  feiticeiros não são praticantes de obscuros e esotéricos ritos, e sim que estão à frente de nosso 

tempo. E a modalidade de nosso tempo é a razão. Em geral somos homens razoáveis. Não obstante os  feiticeiros são homens de  razão, o que é  totalmente diferente:  têm 

um 

romance 

com 

as 

idéias, 

cultivam 

razão 

até 

seus 

limites, 

pois 

crêem 

que 

unicamente compreendendo plenamente o  intelecto podem corporificar os princípios 

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da  feitiçaria sem perder sua própria  integridade e sobriedade. Aqui  reside a drástica diferença entre os  feiticeiros e nós. Nós possuímos pouca sobriedade e ainda menos integridade. 

Lançou‐me uma olhada furtiva e sorriu. Eu sentia a desagradável impressão de 

que ele sabia com exatidão o que eu estava pensando nesse momento, ou melhor, que 

me encontrava

 incapacitada

 para

 pensar.

 Havia

 entendido

 suas

 palavras,

 mas

 não

 seu

 

significado. Não sabia o que dizer nem sequer o que perguntar, e pela primeira vez em 

minha vida me senti uma estúpida total. Contudo não me  incomodei, pois não podia 

negar que ele  tinha  razão. Meu  interesse em assuntos  intelectuais  foi sempre muito 

superficial, e para mim pensar em ter um romance com idéias era totalmente insólito. Chegamos  à  fronteira  em  poucas  horas,  mas  a  viagem  acabou  sendo 

extremamente cansativa. Eu queria  falar, mas não sabia o que dizer, ou melhor, não 

encontrava as palavras para expressar‐me. Sentia‐me  intimidada, uma sensação nova 

para mim! Isidoro Baltazar notou minha  insegurança e meu mal‐estar, e se apropriou da 

palavra. Com

 candidez

 admitiu

 que

 até

 esse

 mesmo

 momento

 o mundo

 dos

 feiticeiros

 

o desorientava, apesar dos muitos anos de estudar e agir com eles. —E  quando  digo  estudar,  falo  muito  à  sério  —  esclareceu.  —Esta  mesma 

manhã esse mundo me avassalou de uma maneira impossível de descrever. Falava num tom que era meio afirmação e metade queixa, apesar do qual sua 

voz  estava  carregada  de  tal  alegria  e  potência  interior  que  me  senti  exaltada.  Me 

transmitiu uma sensação de onipotência e de capacidade para tolerar tudo sem deixar que nada importasse, e constatei uma vontade e habilidade para sobrepor‐se a todos os obstáculos. 

—Imagine: pensei que minha viagem com o nagual havia sido de só dois dias — 

e virando

‐se

 para

 mim,

 e rindo,

 me

 sacudiu

 com

 sua

 mão

 livre.

 Eu  estava  tão  absorta  pela  vitalidade  de  sua  voz  que  não  compreendi  o 

significado de suas palavras. Pedi a ele para repetir o que dissera: ele o fez, e continuei sem compreender. 

—Não entendo o que é que te excita tanto — disse repentinamente irritada por minha incapacidade para entender o que pretendia dizer‐me. —Esteve ausente um par de dias, e daí? 

—Como? — gritou, e seu grito fez com que eu saltasse em meu banco e batesse com a cabeça no teto do veículo. 

Seu olhar penetrou até o  fundo de meus olhos, mas não pronunciou uma  só 

palavra. Sabia

 que

 não

 me

 acusava

 de

 nada,

 mas

 sim

 que

 zombava

 de

 minha

 aspereza,

 meus  humores  variantes  e minha  falta  de  atenção.  Parou  o  veículo  às margens  do 

caminho, desligou o motor, e se acomodou para ficar de frente para mim. —Agora quero que me conte todas as suas experiências — sua voz transmitia 

excitação  nervosa,  inquietação  e  vitalidade,  ao  assegurar‐me  que  a  ordem  dos acontecimentos não importava em absoluto, e seu sorriso me tranquilizou ao extremo 

de fazer‐me contar em detalhes tudo o que recordava. Escutou com atenção, rindo de 

tanto em tanto e animando‐me com um gesto de sua testa cada vez que eu vacilava. —De modo que… tudo isto te aconteceu em… dois dias? —Sim — rebati com firmeza. 

Cruzou 

os 

braços 

sobre 

seu 

peito. 

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—Tenho  uma  notícia  para  você  —  e  a  luz  divertida  de  seus  olhos  traiu  a 

seriedade de sua voz e a firmeza de sua boca quando acrescentou: —Eu estive ausente doze dias, mas achei que foram só dois. Pensei que  iria apreciar a  ironia de meu erro 

por  ter mantido  um melhor  controle  do  tempo, mas  não  foi  assim.  É  igual  a mim: perdemos dez dias. 

—Dez dias

 —

 murmurei

 perplexa,

 e meu

 olhar

 se

 perdeu

 na

 paisagem

 que

 

estava além da  janela. Não pronunciei uma só palavra durante o resto da viagem. Não era que não lhe 

acreditasse,  nem  que  não  quisesse  falar.  Simplesmente  nada  tinha  para  dizer,  nem 

sequer depois de ter comprado o Los  Ângeles Times e corroborado a verdade sobre a 

perda dos dez dias. Contudo, estavam de verdade perdidos? Me fiz essa pergunta sem 

desejar obter uma resposta. 

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CAPÍTULO DOZE 

A oficina‐estúdio  de  Isidoro Baltazar  consistia  em um  quarto  retangular, que 

dava  sobre uma praça de estacionamento, uma pequena  cozinha e um banheiro de 

azulejos rosados. Levou‐me para ali na noite que voltamos de Sonora. Eu, por demais 

exausta para

 notar

 algo,

 o segui

 dois

 pisos

 acima

 por

 um

 corredor

 acarpetado

 de

 cor

 

escura  até  o  apartamento  8.  Assim  que  minha  cabeça  entrou  em  contato  com  o 

travesseiro caí  adormecida, e sonhei que seguíamos pela rota. Havíamos viajado sem 

parar  desde  Sonora,  alternando  ao  volante,  parando  somente  para  comer  e  para 

colocar combustível. O apartamento estava mobiliado apenas com o imprescindível. Junto ao beliche 

havia  uma  longa  mesa  dobrável  que  servia  de  escrivaninha,  uma  cadeira,  também 

dobradiça, e dois arquivos de metal para suas anotações. Vários ternos e meia dúzia de 

camisas  pendiam  em  dois  guarda‐roupas  junto  ao  banheiro. O  resto  do  espaço  era 

ocupado por livros, pilhas de livros. Não havia estantes, e os livros davam a impressão 

de nunca

 ter

 sido

 abertos,

 menos

 ainda

 lidos.

 Também

 os

 armários

 da

 cozinha

 estavam

 

repletos de  livros, salvo um reservado para um prato, um  jarro, um  jogo de garfos e 

facas, e uma colher. Sobre o fogão havia uma chaleira para ferver água e uma caçarola. Em três semanas encontrei um apartamento novo para mim, a mais ou menos 

uma  milha  da  universidade  e  virando  a  esquina  do  escritório‐estudio  de  Isidoro 

Baltazar, apesar do qual  continuava passando a maior parte de meu  tempo em  sua casa. Ele  instalou uma segunda cama para mim, uma mesa daquelas que se usa para 

 jogar cartas, e uma cadeira dobrável idêntica à sua, no outro extremo do quarto. Nos seis meses seguintes, Sonora se converteu para mim num lugar mítico. Não 

desejando   já  bloquear  minhas  experiências   juntei  as  lembranças  das  duas 

oportunidades em

 que

 estive

 lá,

 mas

 por

 mais

 que

 o intentasse

 não

 consegui

 recordar

 absolutamente  nada  dos  onze  dias  perdidos:  um  na  primeira  e  dez  na  segunda oportunidade. 

Isidoro Baltazar recusou de imediato qualquer menção à perda desses dias. Por momentos  eu  concordava  plenamente  com  ele:  o  absurdo  de  considerar  perdidos esses dias,  simplesmente porque não podia  recordá‐los,  se me  fez  tão evidente que 

muito  lhe  agradeci  por  não  conceder  importância  ao  assunto.  Estava  claro  que me 

protegia. Não obstante, em outras oportunidades, e sem que me desse razão para isso, me  dominava  um  forte  ressentimento.  Era  seu  dever  ajudar‐me,  esclarecer‐me  o 

mistério,  repetia  a  mim  mesma,  até  convencer‐me  de  que  deliberadamente  me 

escondia coisas.

 —Você vai ficar louca se continuar com isso — disse‐me um dia —, e toda sua preocupação será em vão porque nada resolverá. — titubeou um momento, como não 

se animando a por em palavras o que desejava dizer, depois encolheu de ombros e 

acrescentou num  tom desafiante: —Por que não usa essa mesma energia de modo 

mais prático, como para enumerar e examinar seus maus hábitos? Eu, em  lugar de admitir a  sabedoria da  sugestão, de  imediato  contra‐ataquei 

com a outra queixa que se aninhava em mim, que ainda não havia conhecido às outras mulheres  jovens encomendadas a ele pelo velho nagual. Me havia  falado tanto delas que sentia que  já as conhecia, pois cada vez que  fiz perguntas ele me respondeu em 

detalhes. 

Falava 

delas 

extasiado, 

com 

profunda 

pelo 

visto 

sincera 

admiração, 

dizendo  que  alguém  de  fora  as  descreveria  como  atraentes,  inteligentes  e  exitosas. 

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Todas  possuíam  títulos  universitários  e  eram  seguras  de  si  mesmas,  e  ferozmente independentes.  Mas  para  ele  eram  muito  mais  que  isso:  eram  seres  mágicos  que 

compartilhavam seu destino, unidas a ele por laços de afeto e compromisso que nada 

tinham  a  ver  com  a  ordem  social.  Compartilhavam  a  comum  busca  pela  liberdade. Certa vez até lhe dei um ultimato: 

—Tem que

 me

 levar

 para

 conhecê

‐las,

 ou

 do

 contrário…

 

Isto provocou risos em Isidoro Baltazar. —Tudo o que posso lhe dizer é que não é o que você imagina, e não há forma 

de determinar quando as conhecerá. Simplesmente terá que esperar. —Já  esperei  o  bastante!  —  gritei,  e  ao  não  receber  reação  de  sua  parte, 

acrescentei: —Está  louco se acha que poderei encontrar a um grupo de mulheres em 

Los Ângeles. Nem sequer sei por onde começar a buscar. —As encontrará como encontrou a mim, e como encontrou ao nagual Mariano 

Aureliano. Olhei‐o com desconfiança. Não podia menos que suspeitar que abrigava uma 

certa e secreta

 malícia.

 

—Não te andava buscando — respondi com impertinência — nem tampouco a 

Mariano Aureliano. Acredite em mim que, em ambos os casos, nossos encontros foram 

fortuitos. —Não existem os encontros  fortuitos no mundo dos  feiticeiros — disse, e  já 

estava  a  ponto  de  dizer‐lhe  que  não  precisava  deste  tipo  de  conselho,  quando  ele 

acrescentou seriamente: —As conhecerá quando chegar o momento adequado. Não 

tem que andar em busca delas. De  cara  para  a  parede  contei  até  dez,  depois  o  enfrentei  para  dizer  com 

suavidade. 

—O problema

 contigo

 é que

 é um

 típico

 latino.

 Amanhã

 sempre

 é perfeito

 para

 você. Não tem conceito de apressar ou fazer as coisas — elevei a voz para impedir que 

me  interrompesse,  e  terminei  dizendo:  —Minha  insistência  em  conhecer  às  suas amigas é um exemplo de apressar as coisas. 

—De apressar as coisas? — repetiu sem compreender. —Qual é a afobação? —Você vem me dizendo, quase que diariamente, que resta muito pouco tempo 

— recordei‐lhe. —Você mesmo sempre fala do importante que é para mim o conhecê‐

las, e no entanto age como se tivesse a eternidade pela frente. Tornou‐se impaciente. —Te digo  isto constantemente porque desejo que se apresse a  limpar seu ser 

interno, não

 porque

 quero

 que

 se

 levem

 a cabo

 com

 rapidez

 atos

 sem

 importância

 como pretende  você. Não é meu dever o  apresentá‐las  a  você;  se  assim  fosse, não 

estaria sentado aqui, escutando suas tolices. — Fechou os olhos e suspirou de modo 

exagerado,  num  gesto  de  fingida  resignação, mas  em  seguida  acrescentou  com  um 

doce sorriso: —É demasiado tonta para dar‐se conta do que acontece. —Não acontece nada — retruquei, doída pelo  insulto. —Não sou tão estúpida 

como acha. Tenho notado o ar de ambivalência que envolve suas reações para comigo. Às vezes tenho a clara impressão de que não sabe o que fazer comigo. 

—Sei exatamente o que devo fazer — assegurou. —Se é assim, por que reage sempre de maneira tão indecisa quando proponho 

algo? 

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  120

Isidoro Baltazar me  lançou um olhar severo, e por um  instante pensei que me 

atacaria utilizando essas palavras ásperas que costumava usar para demolir‐me com 

alguma crítica aguda, mas quando falou para conceder razão sobre minha opinião o fez com suavidade. 

—Sempre espero até que os acontecimentos decidam por mim — afirmou. —

Depois me

 movo

 com

 velocidade

 e com

 vigor.

 Se

 não

 se

 cuidar

 te

 deixarei

 para

 trás.

 

—Já estou muito atrás — disse lamentando‐me. —Dado que não me ajudará a 

encontrar a essas mulheres estou condenada a continuar atrasada. —Mas  não  é  esse  o  verdadeiro  problema.  O  mal  é  que  você  ainda  não  se 

decidiu — e levantou as sobrancelhas como se estivesse à espera de um rompante de 

minha parte. —Não sei o que quer dizer com isso. O que é que devo decidir? —Não se decidiu a  juntar‐se ao mundo dos feiticeiros. Está parada no umbral, 

observando, à espera do que está por acontecer. Está à espera de algo prático que lhe 

possa ser lucrativo. 

Palavras de

 protesto

 se

 formaram

 em

 minha

 garganta,

 mas

 antes

 que

 pudesse

 

manifestar minha profunda  indignação, ele acrescentou que eu tinha a errônea  idéia de que o  ter‐me mudado a um novo  apartamento e deixado para  trás minha  velha forma de vida significavam uma mudança. 

—E o que é então uma mudança? — perguntei com sarcasmo. —Não deixou nada para  trás exceto  seus pertences —  respondeu,  ignorando 

meu tom. —Para certas pessoas isso significa um passo gigantesco, mas para você isso 

não é nada. Você não se interessa em possuir coisas. Estava de acordo. —Não, não me  interessa — disse, e depois  insisti que, não obstante seu  juízo, 

eu me

 havia

 decidido

 a  juntar

‐me

 ao

 mundo

 dos

 feiticeiros

 há

 muito

 tempo.

 —Por

 que

 acha que estou aqui se ainda não me decidi? —Sem dúvida o fez corporalmente, mas não em espírito. Agora está esperando 

que te dêem um mapa, algum plano reconfortante, antes de tomar sua decisão final. Entretanto  seguirá  dando‐lhes  corda.  Seu  principal  problema  é  que  necessita  estar convencida de que o mundo dos feiticeiros tem algo para lhe oferecer. 

—E então ele não tem? 

Isidoro Baltazar me encarou com o rosto estampado por um sorriso. —Sim, tem algo muito especial para oferecer. Chama‐se liberdade, mas não há 

garantia alguma de que a obtenha, ou que algum de nós tenha êxito nesta empresa. 

Digeri suas

 palavras,

 e depois

 lhe

 perguntei

 o que

 devia

 fazer

 para

 convencê

‐lo

 de que  já me havia unido ao seu mundo. —Não  é  a mim  a  quem  precisa  convencer,  e  sim  ao  espírito. Deve  fechar  a 

porta atrás de você. —Que porta? —A que você mantém aberta; a que te permitirá escapar se as coisas não são 

de seu agrado, ou não se encaixam em suas expectativas. —Está dizendo que deserdarei? Olhou‐me com uma expressão enigmática, depois deu de ombros. —Isso  fica 

entre o espírito e você. 

—Mas 

se 

você 

mesmo 

acha 

que… 

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  121

—Eu não acho nada — interrompeu. —Entrou neste mundo da mesma maneira que todos os outros. Ninguém teve nada a ver com isso, e tampouco o terá se você ou 

qualquer outro decide se retirar. Olhei‐o, confusa. —Mas suponho que tentará me convencer… se eu… — gaguejei. 

Sacudiu a cabeça

 antes

 que

 eu

 terminasse

 de

 falar.

 

—Não convencerei a você nem a ninguém. Sua decisão carecerá de poder se 

precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou duvidar. —Quem me ajudará então? — perguntei alarmada. —Eu;  eu  sou  seu  servidor —  respondeu  com  um  sorriso  doce  e  tímido,  por 

completo desprovido de cinismo. —Mas antes sirvo ao espírito. Um guerreiro não é 

um  escravo,  e  sim  um  servidor  do  espírito.  Os  escravos  não  tomam  decisões,  os servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente. 

—E minha ajuda não entra no cálculo — continuou. —Não posso  investir em 

você e, claro, tampouco você pode investir em mim ou no mundo dos feiticeiros. Esta 

é a premissa

 básica

 desse

 mundo:

 nada

 se

 faz

 que

 possa

 ser

 catalogado

 como

 útil.

 Só

 

se permitem atos estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como 

vivo. O  feiticeiro pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas. Quando chegar a compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você. 

Sobreveio um  longo  silêncio; eu mudei de posição  sobre a  cama em que me 

achava  sentada.  Minha  mente  se  encheu  de  pensamentos.  Talvez  nenhum  dos feiticeiros poderia chegar a acreditar‐me, mas sem dúvida alguma eu havia mudado, imperceptivelmente  a  princípio.  Eu  o  notava  porque  tinha  a  ver  com  um  dos problemas mais difíceis que uma mulher pode enfrentar: os ciúmes e a necessidade de 

saber. 

Meus ataques

 de

 ciúmes

 eram

 um

 pretexto,

 não

 necessariamente

 um

 pretexto

 consciente, mas contudo havia neles algo de posse. Algo em mim exigia que  tivesse ciúmes de todas as outras mulheres que formavam parte da vida de  Isidoro Baltazar, mas de  igual maneira algo me fazia perceber que a vida do novo nagual não era a de 

um homem comum, nem sequer de quem pudesse ter muitas esposas. Nossa relação, se assim se podia chamá‐la, não se encaixava em nenhum dos 

moldes habituais e conhecidos, apesar de meus esforços por conseguir  inseri‐la num 

contexto. Para que os ciúmes e o sentido de posse tenham sustentação é necessário 

um espelho, não só um próprio, como também um do companheiro, e Isidoro Baltazar  já  não  refletia  os  impulsos,  os  sentimentos,  as  necessidades  e  as  emoções  de  um 

homem. Minha necessidade de conhecer a vida de Isidoro Baltazar era opressora, e me 

amargava o fato de que não me dava acesso a seu mundo privado. Não obstante, eu 

não lutava contra isso. Teria sido fácil segui‐lo ou revisar seus papéis para descobrir de 

uma vez por todas quem era ele de verdade, mas não pude fazê‐lo. Algo me dizia que 

com ele eu não podia proceder como estava acostumada; e o que me inibia, mais que 

um  sentido  de  decência,  era  a  confiança  que  havia  depositado  em  mim.  Isidoro 

Baltazar  me  havia  dado  livre  acesso  a  seus  pertences,  e  isso  para  mim  o  tornava inviolável. 

Ri  forte.  Entendia  qual  era  o  ato  estratégico  do  guerreiro.  Isidoro  Baltazar 

estava 

equivocado; 

confundia 

meu 

inveterado 

mau 

humor 

minha 

afetação 

alemã 

com  falta  de  decisão. Não  importava.  Eu  sabia  que  pelo menos  havia  começado  a 

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compreender  e  praticar  a  estratégia  do  guerreiro,  ao  menos  enquanto  ele  se 

encontrava presente. Não obstante, na sua ausência, com frequência eu fraquejava, e 

quando isso acontecia costumava dormir em seu estúdio. Certa noite, enquanto enfiava a chave na fechadura, apareceu um braço e, sem 

mais nem menos, me  levou  ao  interior  do estúdio. Gritei  aterrorizada, e  comecei  a 

balbuciar “quê…”,

 quando

 a mão

 que

 apertava

 meu

 braço

 me

 soltou.

 Para

 recuperar

 

meu equilíbrio e acalmar meu coração que galopava, recostei‐me contra a parede, e ali surgiu uma figura conhecida. 

—Florinda! — gritei, ainda confusa. Ela vestia uma longa bata, presa na cintura, e seus cabelos pendiam por suas costas e por ambos os lados de seu rosto. Duvidando 

se era na verdade ela ou uma aparição,  ressaltada por uma  suave  luz atrás de  suas costas, me aproximei para tocar sua manga. 

—É você, Florinda, ou estou sonhando? —Eu em pessoa, querida. O produto autêntico. —Como  chegou aqui? Está  sozinha? — perguntei  tontamente, e em  seguida, 

procurando sorrir,

 acrescentei:

 —Se

 eu

 soubesse

 que

 você

 viria

 teria

 iniciado

 a limpeza

 

mais cedo. Eu adoro  limpar o estúdio de  Isidoro Baltazar de noite. Sempre o  faço de 

noite. Em  vez  de  responder  Florinda  se  situou  de maneira  que  a  luz  iluminava  seu 

rosto, e um sorriso perverso brilhou em seus olhos. —Eu  lhe adverti que nunca deveria seguir a nenhum de nós, ou apresentar‐se 

sem  ser  convidada.  Tem  sorte  de  que não  foi outra  pessoa quem  te  conduziu  para dentro esta noite. 

—E que outra pessoa poderia  ter  sido? — perguntei com um  tom desafiante que estava longe de sentir. 

Florinda me

 contemplou

 um

 instante,

 depois

 se

 virou

 e me

 deu

 sua

 resposta

 por cima do ombro. —Alguém  a  quem  não  lhe  teria  importado  que  você morresse  de  susto.  — 

agitou uma mão no ar como para afastar suas palavras enquanto atravessava o quarto 

procurando  a  pequena  cozinha. Não  parecia  caminhar,  e  sim  deslizar  num  tipo  de 

dança  não  premeditada  que  balançava  seus  longos  cabelos  brancos,  semelhantes  a 

uma cortina prateada tocada por uma luz indefinida. Eu a segui, parodiando seu gracioso andar. —Saiba que tenho a chave — informei‐lhe. —Tenho vindo aqui todos os dias, a 

qualquer hora, desde que  regressamos de Sonora. Na verdade eu praticamente vivo 

aqui.  —Isidoro Baltazar não te disse para não vir aqui enquanto ele está no México? 

— o tom de Florinda era suave, quase casual. Não me acusava, mas eu senti como se o 

fizesse. —Talvez  tenha dito algo —  respondi  com estudada  indiferença, e  vendo que 

franzia o cenho me senti obrigada a me defender. Confessei‐lhe que muitas vezes eu 

estava sozinha no apartamento, e achava que não importava muito se Isidoro Baltazar estava  a  cinco  ou  quinhentas  milhas  de  distância,  e  alentada  por  sua  aparente aprovação às minhas palavras admiti que, além de  fazer ali minhas tarefas escolares, passava horas pondo em ordem seus  livros, classificando‐os por tema e por autor. —

Alguns 

deles 

são 

tão 

novos 

que 

as 

páginas 

nem 

sequer 

foram 

cortadas 

— 

expliquei. 

—Eu os estou abrindo. Isso é o que vim fazer esta noite. 

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—Às três da manhã? Não pude evitar de ficar vermelha ao responder: —É, sim. Há muito por fazer. Quando se é cuidadosa e não se deseja danificar 

as  páginas,  este  é  um  trabalho  de  nunca  acaba. Mas  é  tranquilizante,  e  a mim me 

ajuda a dormir bem. 

O comentário

 de

 Florinda

 se

 reduziu

 a uma

 palavra,

 apenas

 modulada:

 

—Extraordinário. Animada por sua aparente aprovação continuei falando. —Tenho  certeza  de  que  você  entende  o  que  estar  aqui  significa  para  mim. 

Neste  apartamento me  sinto  livre  de minha  antiga  vida,  de  todos  e  de  tudo,  salvo 

Isidoro Baltazar e seu mundo mágico. O próprio ar me enche de um sentido de entrega total. —  suspirei  profundamente. —Aqui  nunca me  sinto  sozinha,  apesar  da maior parte do  tempo o estar. Há algo na atmosfera que me  lembra a casa das  feiticeiras. Essa  mesma  frieza  e  ausência  de  sentimentos  banais,  que  a  princípio  tanto  me 

incomodavam, se aderem a estas paredes, e é precisamente essa distância, essa falta 

de calidez,

 o que

 busco

 dia

 e noite.

 Eu

 a acho

 curiosamente

 reconfortante,

 me

 dá

 

forças. Enquanto  se dirigia à pia da  cozinha com o bule na mão, Florinda meneou a 

cabeça como se duvidando, murmurou “incrível” e depois algo que não alcancei ouvir, afogadas as palavras pelo ruído da água. 

—Fico  muito  feliz  de  saber  que  se  sente  confortável  aqui  —  suspirou 

dramaticamente  e  completou:  —Deve  sentir‐se  muito  segura  neste  ninhozinho, sabendo que têm um companheiro — e terminou num tom  jocoso, aconselhando‐me a 

fazer todo o possível por  fazer  feliz a  Isidoro Baltazar, mencionando práticas sexuais, que descreveu com horrenda grosseria. 

Contemplei‐a boquiaberta,

 espantada

 pelo

 que

 acabara

 de

 ouvir,

 enquanto

 ela,

 com  a  segurança  e  a  eficiência  de  alguém  conhecedora  da  disposição  da  cozinha, pegava duas xícaras, meu bule de chá  favorito e o pacote de biscoitos de chocolate que eu mantinha escondido por trás dos dicionários de idiomas alemão e francês. 

Com um sorriso Florinda virou‐se para mim e perguntou: —A quem esperava encontrar aqui esta noite? —Não a você — respondi abruptamente, percebendo tarde demais que minha 

resposta me delatava, e me  lancei numa extensa e elaborada explicação de por que 

esperava encontrar ali, se não a todas, pelo menos a uma das outras  jovens mulheres. —Cruzarão  seu  caminho  quando  chegar  o  tempo  adequado  —  respondeu 

Florinda. —Não

 é sua

 obrigação

 forçar

 um

 encontro

 com

 elas.

 De repente, sem poder controlar minhas palavras, me encontrei culpando a ela, a Mariano Aureliano e a  Isidoro Baltazar por minha atitude  furtiva. Disse‐lhe que era impraticável,  para  não  dizer  impossível,  pretender  que  eu  esperasse  a  que  umas mulheres desconhecidas cruzassem meu caminho, e achar que eu as reconheceria por algo tão inconcebível como sua radiação interna, e como de costume, quanto mais me 

queixava, melhor me sentia. Florinda  me  ignorou,  e  com  exagerado  acento  britânico  cantarolou —  uma, 

duas colheradas, e uma para a chaleira — à medida que colocava o chá. Depois, de 

maneira  casual,  observou  que  a  única  coisa  caprichosa  e  impraticável  era  que  eu 

pensasse 

em 

Isidoro 

Baltazar 

como 

homem, 

tratasse 

como 

tal. 

—Não sei o que me quer dizer com isso — rebati na defensiva. 

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Olhou‐me com tal intensidade que corei. —Sabe perfeitamente o que quero dizer — retrucou enquanto servia o chá nas 

xícaras, e com um rápido gesto de sua testa indicou qual das duas era a minha. Com o 

pacote  de  biscoitos na mão,  sentou  na  cama de  Isidoro Baltazar, e  sorveu  seu  chá, enquanto eu, sentada ao seu lado, fazia o mesmo. 

De improviso

 me

 lançou

 uma

 acusação:

 

—Você não mudou nada. —Isso é exatamente o que me disse  Isidoro Baltazar  faz uns dias — repus —, 

mas eu sei que mudei muito. Disse‐lhe que meu mundo havia mudado totalmente desde a volta de Sonora, e 

expliquei em detalhes sobre a troca de apartamento, minha mudança, deixando para 

trás todas minhas posses. Escutou com glacial indiferença, dura como uma pedra. —Na verdade não posso me atribuir muito crédito por romper rotinas e fazer‐

me inacessível — admiti, sentindo‐me incômoda ante seu silêncio. —Qualquer um que 

esteja em estreito contato com Isidoro Baltazar deve esquecer que há  limites entre o 

dia e a noite,

 entre

  jornadas

 de

 trabalho

 e feriados.

 O

 tempo

 flui

 e…

 —

 não

 pude

 

terminar minha frase, pois me assaltou um estranho pensamento. Que eu  lembrasse, ninguém me  havia  falado  de  romper  rotinas  e  fazer‐me  inacessível. Olhei  fixo  para Florinda, e meu olhar fraquejou. Seria coisa dela? De onde me vinham essas idéias? E o 

mais  desconcertante  era  que  eu  sabia  com  exatidão  o  que  era  que  essas  idéias significavam. 

—Isso deveria servir para advertir‐lhe que algo está por acontecer em você — 

sentenciou  Florinda,  como  se  tivesse  seguido  o  fluxo  de  meus  pensamentos,  e 

acrescentou que tudo o que foi feito por mim em ensonhos, até esse momento, ainda não havia  imbuído minhas horas de vigília com a dureza e a autodisciplina necessária 

para atuar

 no

 mundo

 dos

 feiticeiros.

 —Nunca  fiz  algo  assim  em  minha  vida  —  protestei.  —Dê‐me  uma oportunidade. Sou nova nisto. 

Estava de acordo nisso. —Naturalmente — disse, e reclinou sua cabeça na almofada e fechou os olhos. 

Foi  tão  longo  seu  silêncio  que  pensei  que  tivesse  dormido,  e  por  conseguinte  me 

assustei  quando  falou.  —Uma  mudança  verdadeira  não  inclui  mudança  de  ânimo, atitude ou ponto de vista, e sim uma  transformação  total do ser — e ao ver que eu 

estava a ponto de interrompê‐la, tapou meus lábios com seus dedos e acrescentou: —O  tipo de mudança ao qual aludo não  se  consegue em  três meses, um ano ou dez. 

Toma toda

 a vida

 —

 e terminou

 dizendo

 que

 era

 sumamente

 difícil

 converter

‐se

 em

 algo diferente ao que alguém havia sido destinado a ser. —O mundo dos feiticeiros é 

um  ensonho,  um mito,  e  no  entanto  tão  real  como  o mundo  de  todos  os  dias — 

prosseguiu. “Para  perceber  e  funcionar  nesse  mundo  devemos  nos  despojarmos  da 

máscara  cotidiana  que  levamos  aderida  aos  nossos  rostos  desde  o  dia  em  que 

nascemos, e colocarmos a segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso 

entorno como realmente são: acontecimentos extraordinários que  florescem só uma vez, adquirem existência  transitória e nunca  se  repetem. Essa máscara  você mesma terá que confeccionar.” 

—Como 

faço? 

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  125

—Ensonhando  seu  outro  ser  —  murmurou.  —Certamente  não  adquirindo 

novas roupas, novos  livros e uma nova direção e, — acrescentou sarcasticamente — 

por certo não acreditando que tem um novo homem. Antes que eu pudesse desmentir sua brutal acusação disse que externamente 

eu era uma pessoa fluida, capaz de mover‐me a grande velocidade, mas por dentro era 

rígida e dura.

 Como

  já

 o havia

 assinalado

 Isidoro

 Baltazar,

 ela

 também

 sustentava

 que

 

era enganoso acreditar que adquirir um apartamento novo e dar de presente tudo o 

que possuía era uma mudança. Curvei  a  cabeça  em  sinal  de  que  aceitava  sua  crítica.  Sempre  senti  uma 

inclinação  a  despojar‐me  de  coisas  e,  tal  como  ela  o  apontou,  isso  representava basicamente  uma  compulsão.  Para  incômodo  de meus pais,  e  desde que  era muito 

nova,  eu  periodicamente  me  desfazia  de  minhas  roupas  e  meus  brinquedos,  e  a 

felicidade de ver meu quarto e meus armários ordenados e quase vazios ultrapassava a 

de adquirir posses. Às  vezes  minha  compulsão  se  fazia  tão  intensa  que  também  dizimava  os 

armários de

 meus

 pais

 e de

 meus

 irmãos,

 fato

 que

 costumava

 passar

 inadvertido,

 pois

 

tomava o cuidado de se desfazer de roupas que haviam caído em desuso. Contudo, de 

tarde em tarde, a casa explodia quando meu pai percorria os cômodos abrindo guarda‐

roupas e vociferando, em busca de uma determinada camisa ou calça. A Florinda  isto  lhe causou graça e, de pé  junto à  janela que dava a uma viela, 

fixou sua vista na grossa cortina negra que servia para se ter escuridão total, como se 

pudesse ver através dela, e opinou que era muito mais fácil para uma mulher que para 

um homem cortar amarras com a família e o passado. —As  mulheres  —  manteve  —  não  são  responsáveis,  e  esta  falta  de 

responsabilidade  lhes dá uma grande medida de fluidez que,  lamentavelmente, raras 

vezes aproveitam

 —

 e enquanto

 falava

 percorreu

 o aposento

 acariciando

 a mobília.

 —

O mais difícil de compreender a respeito do mundo dos feiticeiros é que ele oferece a 

liberdade, mas… — e ao dizer  isto se virou para  ficar de  frente a mim — a  liberdade não se obtém gratuitamente. 

—O que custa essa liberdade? — perguntei. —A liberdade lhe custará a máscara que leva posta: essa tão cômoda e difícil de 

descartar, não por ser cômoda, mas sim porque a tem estado usando tanto tempo… — 

com isto deixou de percorrer o quarto e veio a instalar‐se frente à mesa. —Sabe o que 

é  a  liberdade?  É  a  total  ausência  de  preocupação  acerca  de  si  mesma  —  disse, sentando‐se  junto a mim sobre a cama — e a melhor maneira de deixar de preocupar‐

se com

 sua

 pessoa

 é preocupando

‐se

 por

 outros.

 —Eu  me  preocupo  —  assegurei‐lhe.  —Penso  constantemente  em  Isidoro 

Baltazar e suas mulheres. —Não me cabe dúvida — concordou, sacudindo a cabeça e bocejando. —Já é 

hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém mais que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em você, e  haverá  momentos  em  que  a  sentirá  muito  ajustada,  muito  solta,  muito  quente, muito fria… — e prosseguiu enumerando uma série de insólitas incomodidades. 

Caímos  em  um  longo  silêncio,  depois  do  qual,  com  a mesma  voz  sonolenta, Florinda prosseguiu seu discurso: 

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—Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que  já o fêz: deve 

agir nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar. Tem ensonhado desperta desde seu 

regresso? Precisei admitir que não o havia feito. —Então ainda não se decidiu — observou com severidade. —Não está talhando 

sua máscara.

 Não

 está

 ensonhando

 seu

 outro

 ser.

 Os

 feiticeiros

 estão

 comprometidos

 

com  seu mundo  somente  através  de  sua  impecabilidade —  e  os  olhos  de  Florinda brilharam ao completar: —Os  feiticeiros não  têm  interesse em converter a outros às suas idéias. Entre eles não há gurus nem sábios, só naguais. Eles são os líderes, não por saber mais, ou ser melhores feiticeiros que os outros, e sim por simplesmente possuir mais  energia,  e  não  me  refiro  necessariamente  à  força  física,  e  sim  a  certa configuração de seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os parâmetros da 

percepção. —Se aos  feiticeiros não  lhes  interessa  converter ao próximo, por que  Isidoro 

Baltazar é aprendiz do nagual velho? 

—Isidoro Baltazar

 apareceu

 no

 mundo

 dos

 feiticeiros

 do

 mesmo

 modo

 em

 que

 

você apareceu. Não importa o que o trouxe, o certo é que não pôde ser ignorado por Mariano Aureliano, e ensinar‐lhe  tudo o  referente ao mundo  feiticeiro  se  converteu 

em obrigação para ele. — Depois explicou que ninguém nos andou buscando, nem a 

Isidoro Baltazar e  a mim. Nosso  ingresso nesse mundo não  foi obra  nem desejo de 

ninguém. —Nenhum de nós faria nada por mantê‐los neste mundo mágico contra sua vontade — acrescentou sorrindo — mas sim  faríamos o possível e o  impossível para 

ajudá‐los a permanecer nele. Florinda se virou como se desejasse esconder seu rosto de mim, e um instante 

depois me olhou por cima de seu ombro. Havia em seu olhar algo  frio e remoto, e a 

mudança de

 expressão

 era

 tal

 que

 me

 inspirou

 temor.

 Instintivamente

 me

 afastei

 dela.

 —A  única  coisa  que  nem  eu  nem  Isidoro  Baltazar  faríamos  nem  quiséramos fazer é ajudar‐lhe a que continue com sua existência disforme, voraz e complacente. Isso seria uma fraude — e como para suavizar o insulto me abraçou. 

—Te direi o que necessita… — e esteve calada por tão longo tempo que pensei que havia esquecido o que estava por me dizer. Finalmente murmurou: —O que você 

precisa é de uma boa noite de sono. —Não  estou  nada  cansada —  respondi,  resposta  automática  como  todas  as 

minhas,  sempre contrárias ao que  se estava dizendo. Para mim  ter a  razão era uma questão de princípios. 

Florinda riu

 e me

 abraçou

 de

 novo.

 —Não  seja  tão  alemã, e  não espere  a que  tudo  seja  soletrado  com precisão 

para seu benefício. — acrescentou que nada no mundo deles era tão claro e preciso. As coisas se desenvolviam de maneira vaga e lenta. —Isidoro Baltazar te ajudará — me 

assegurou — mas  é  necessário  que  lembre  que  não  te  ajudará  do modo  que  você 

espera que o faça. —O  que  quer  dizer  com  isso? —  perguntei,  livrando‐me  de  seu  abraço  para 

poder olhá‐la. —Não lhe dirá as coisas que deseja ouvir, nem te dirá como deve se comportar 

pois, como sabe, em nosso mundo não existem regras nem regulamentos. — Pelo visto 

minha 

crescente 

frustração 

lhe 

causava 

graça, 

pois 

riu 

com 

vontade. 

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—Lembre‐se sempre que só existem improvisações… — e com isso e um grande 

bocejo, se estendeu na cama, depois de pegar uma das mantas empilhadas no piso. Mas antes de cobrir‐se se ergueu sobre um de seus cotovelos para dirigir‐me um olhar penetrante, e numa voz sonolenta e levemente hipnótica, me aconselhou a ter sempre 

presente que a minha era a mesma senda guerreira que a de Isidoro Baltazar. Com os 

olhos fechados,

 e num

 tom

 apenas

 audível,

 completou:

 

—Nunca o perca de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que você 

nem  sequer  se  perceberá  disso.  Isidoro  Baltazar  é  um  guerreiro  impecável  e 

incomparável. Sacudi seu braço,  temendo que dormisse antes de  terminar com o que  tinha 

que dizer‐me, e sem abrir os olhos continuou seu discurso. —Se o observar cuidadosamente verá que ele não busca amor nem aprovação. 

Verá  que  permanece  impávido  sob  qualquer  situação.  Não  pede  nada,  mas  está 

disposto a dar tudo de si mesmo. Aguarda permanentemente um sinal do espírito, na 

forma de uma palavra amável ou um gesto apropriado, e quando o recebe, expressa 

seu agradecimento

 redobrando

 seus

 esforços.

 

Continuou dizendo que Isidoro Baltazar não  julgava. —Se  reduziu  ele  mesmo  a  nada  para  escutar  e  observar,  para  assim  poder 

conquistar e ser humilhado na conquista, ou ser derrotado e enaltecido na derrota. Se 

observar com cuidado verá que  Isidoro Baltazar não se  rende. Podem vencê‐lo, mas não se renderá e, acima de tudo, Isidoro Baltazar é livre. 

Eu  me morria  por  interrompê‐la,  por  dizer‐lhe  que  tudo  isso  já  o  havia me 

contado, mas antes que pudesse  falar Florinda  já havia adormecido, e  temendo não 

dar com ela de manhã, caso voltasse ao meu apartamento, sentei‐me sobre a outra cama. 

Estranhos pensamentos

 me

 invadiram.

 Me

 relaxei

 e me

 deixei

 ir,

 ao

 compreender  que  estavam  desconectados  do  resto  de meus  pensamentos  normais, vistos  como  raios de  luz e  relâmpagos de  intuição.  Seguindo um destes  relâmpagos intuitivos decidi sentir a cama com minhas nádegas, e para minha grande surpresa foi como se minhas nádegas se tivessem fundido na própria cama. Por uns momentos eu 

era a cama que se esforçava por tocar minhas nádegas. Durante um bom tempo gozei esta situação. Sabia que ensonhava, e compreendi com absoluta claridade que acabara de  experimentar  o  que  Esperanza  havia  descrito  como  “minha  sensação  sendo 

devolvida  como  um  eco”.  Depois  todo  meu  ser  se  derreteu  ou,  melhor  dizendo, explodiu. 

Teria querido

 rir

 de

 felicidade,

 mas

 não

 desejei

 despertar

 a Florinda.

 Eu

 me

 lembrava de tudo! E não tive dificuldade alguma em lembrar o que havia feito na casa 

das  feiticeiras  durante  aqueles  dez  dias  perdidos.  Havia  ensonhado!  Sob  o  olhar vigilante de Esperanza eu ensonhei sem deter‐me, despertando na casa das bruxas, na 

de Esperanza, ou em outros lugares irreconhecíveis no momento. Clara  havia  insistido  que  antes  que  um  fato  particular  pudesse  se  fixar  na 

memória de modo permanente, era necessário tê‐lo visto um par de vezes, e sentada ali na cama, observando a Florinda dormir,  lembrei às outras mulheres do grupo dos feiticeiros, com quem havia convivido em ensonhos durante esses dias esquecidos. Eu 

as  vi  com  claridade,  como  se  tivessem  se materializado  diante  de mim,  ou melhor, 

como 

se 

eu 

houvesse 

sido 

fisicamente 

transportada 

de 

volta 

essas 

circunstâncias. 

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Para mim a mais chamativa era Nélida, que se parecia  tanto a Florinda que a 

princípio pensei que fossem gêmeas. Não só era alta e delicada como Florinda, como 

tinha  a  mesma  cor  de  olhos,  cabelo  e  pele.  Até  suas  expressões  eram  idênticas. Também  se pareciam no  temperamento, apesar de que  se poderia dizer que Nélida que era mais suave, menos dominante. Dava a impressão de não possuir a sabedoria e 

a força

 energética

 de

 Florinda,

 mas

 sim

 uma

 energia

 paciente

 e silenciosa,

 muito

 

reconfortante. Quanto  à  Hermelinda,  com  muita  facilidade  poderia  ter  passado  por  irmã 

menor de Carmela. Seu corpo pequeno e delicado, de apenas um metro e cinquenta e 

sete  centímetros, era delicadamente  arredondado, e  seus modos esquisitos. Dava  a 

impressão de possuir menos autoconfiança que Carmela. Sua fala era doce, e se movia 

com meneios rápidos e bruscos, não  livre de graça. Suas companheiras me confiaram 

que sua timidez e sossego faziam com que aqueles que  lidavam com ela tendessem a 

se mostrar sob suas melhores luzes, e também que não poderia manejar a um grupo, nem sequer a duas pessoas por vez. 

Clara e Delia

 formavam

 um

 estupendo

 par

 de

 travessas.

 A

 princípio

 pareciam

 

ser de grande  tamanho, mas era sua  robustez, vigor e energia o que se  fazia pensar nelas  como  em  mulheres  gigantescas  e  indestrutíveis.  Dedicavam‐se  a   jogos deliciosamente  competitivos,  e  com  o  menor  pretexto  exibiam  vestimentas excêntricas. Ambas tocavam muito bem o violão, possuíam lindas vozes, e rivalizavam 

cantando  não  só  em  espanhol  como  em  inglês,  alemão,  francês  e  italiano.  Seu 

repertório incluía baladas, canções folclóricas e todo tipo de canção popular, inclusive 

os mais recentes sucessos  pop. Não era necessário mais que cantarolar a primeira linha de uma canção, e  já Clara e Delia a completavam. Também organizavam competições poéticas, escrevendo versos para as ocasiões em que se apresentavam. 

A mim

 me

 haviam

 dedicado

 poemas

 que

 depois

 atiravam

 embaixo

 da

 minha

 porta sem assinar, devendo eu adivinhar quem o havia escrito, e ambas sustentavam 

que se a amava como ela a mim, a intuição se encarregaria de revelar‐me o nome da 

autora. O  atraente  destas  competições  era  a  ausência  de  segundas  intenções.  Seu 

objetivo era entreter, não o de vencer o oponente, e desnecessário dizer que Clara e 

Delia se divertiam  junto com quem as assistia. Se alguém  lhes caía nas graças, como 

parecia  ter‐lhes  caído  eu,  seu  afeto  e  lealdade  não  tinham  limite.  Ambas  me 

defenderam com assombrosa perseverança, ainda que eu estivesse errada, pois para 

elas eu era perfeita e  incapaz de errar. Elas me ensinaram que manter essa confiança significava para mim uma dupla responsabilidade, e não foi propriamente o meu temor 

em decepcioná

‐las

 e sim

 que,

 para

 mim,

 acabou

 sendo

 natural

 acreditar

‐me

 perfeita,

 o que fez com que me comportasse com elas de maneira impecável. 

A mais estranha das mulheres feiticeiras era minha suposta professora na arte 

de ensonhar, Zuleica, que nunca me ensinou nada. Jamais me dirigiu a palavra, e talvez nem sequer chegou a reparar em minha existência. Zuleica, assim como Florinda, era muito bonita,  talvez não  tão chamativa mas  sim bela, num sentido mais etéreo. Era pequena,  e  seus  olhos  escuros  com  suas  sobrancelhas  aladas,  e  sua  boca  e  nariz, perfeitos,  estavam  emoldurados  por  cabelos  escuros  e  ondulados,  próximos  do 

grisalho, que acentuavam sua aura de ser de outro mundo. Não era a sua uma beleza normal,  e  sim  sublime,  moderada  por  seu  implacável  autocontrole.  Possuía  plena 

consciência 

do 

cômico 

que 

era 

ser 

linda 

atraente 

aos 

olhos 

de 

terceiros. 

Havia 

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aprendido a admiti‐lo, e o usava como se fosse um prêmio que havia ganhado, tudo o 

qual a fazia “não‐igual” a todos e a tudo. Zuleica havia aprendido a arte do ventriloquismo, levando‐o a níveis excelsos, e 

sustentava que as palavras enunciadas pelo movimento dos  lábios se tornavam mais confusas  do  que  na  realidade  eram.  A mim me  encantava  o modo  em  que  Zuleica 

como ventríloqua

 fazia

 falar

 as

 paredes,

 as

 mesas,

 os

 pratos

 ou

 qualquer

 objeto

 que

 

tivesse  diante  de  si,  e  eu  havia  pego  o  costume  de  segui‐la  pela  casa.  Mais  que 

caminhar  Zuleica  parecia  flutuar  sem  tocar  o  solo  e  sem  mover  o  ar,  e  quando 

perguntei às outras  feiticeiras se  isto representava uma  ilusão, me responderam que 

era porque Zuleica detestava deixar suas pegadas no chão. Depois de conhecer e  lidar com todas, as mulheres me explicaram a diferença 

entre ensonhadoras e espreitadoras. Chamavam a esta diferença “os dois planetas”. Florinda, Carmela,  Zoila e Delia eram espreitadoras:  seres  fortes dotados de grande 

energia física; agressivas, trabalhadoras incansáveis, e especialistas nesse extravagante estado de consciência que chamavam ensonhar  desperto. 

O outro

 planeta,

 as

 ensonhadoras,

 era

 composto

 pelas

 outras

 quatro

 mulheres:

 

Zuleica, Nélida, Hermelinda e Clara. Sua qualidade era mais etérea, não por ser menos forte  ou  enérgica,  mas  simplesmente  porque  sua  energia  era  menos  aparente. Projetavam  uma  imagem  de  não  ser  deste  mundo,  ainda  quando  ocupadas  com 

tarefas mundanas, e eram especialistas em outro estado especial de consciência, que 

chamavam “ensonhar em mundos outros que este mundo”. Me  informaram que este 

era o estado de consciência mais complexo que uma mulher podia alcançar. Quando  todas  elas  trabalhavam  juntas,  as  espreitadoras  representavam  uma 

cortiça exterior, dura e protetora, que ocultava um núcleo profundo: as ensonhadoras. Elas eram a matriz suave que acolchoava a dura cortiça exterior. 

Durante esses

 dias

 na

 casa

 das

 feiticeiras

 elas

 cuidaram

 de

 mim

 como

 se

 eu

 fosse algo precioso. Fui adulada e mimada, cozinharam para mim seus pratos favoritos, e me  fizeram a roupa mais elegante que  jamais tive. Me atordoaram com presentes, coisas bobas e  jóias preciosas que guardaram, segundo disseram, para o dia do meu 

despertar. Havia  outras  duas mulheres  no mundo  dos  feiticeiros,  ambas  espreitadoras, 

ambas gordas, e de nome Marta e Teresa. As duas eram bonitas e possuíam fabulosos apetites. No armário  tinham escondido um  sortido de biscoitos,  chocolates e doces, muito convencidas de que somente elas conheciam  sua  localização, e me agradou e 

alegrou sobremaneira que desde a primeira hora me fizeram partícipe deste tesouro, 

habilitando‐me

 para

 fazer

 uso

 dele

 ao

 meu

 prazer,

 o qual,

 é claro,

 não

 deixei

 de

 fazer.

 Das duas, Marta era a maior, uma exótica mistura de  índia e alemã de vinte e 

tantos  anos.  Sua  tez,  se  bem  não  de  todo  branca,  era  pálida;  seu magnífico  cabelo 

negro era suave e ondulado, e emoldurava um rosto cheio com maçãs do rosto altas. Os olhos amendoados eram de um verde azulado, e suas pequenas e delicadas orelhas pareciam, por ser de um rosado quase transparente, as de um gato. Marta era muito 

dada a emitir  longos e  tristes  suspiros,  segundo ela devido a  sua origem alemã, e a 

melancólicos  silêncios,  herança  de  sua  alma  indígena.  Há  pouco  tempo  havia 

começado a tomar lições de violino, e praticava a qualquer hora do dia, mas longe de 

criticá‐la ou irritarem‐se com ela, a reação unânime era que Marta tinha um fabuloso 

ouvido 

musical. 

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  130

Teresa media apenas um metro e cinquenta, mas sua robustez a fazia parecer mais alta. Mais que mexicana, parecia uma índia da Índia. Sua pele perfeita era de uma cremosa  cor  cobre  claro,  seus  olhos  puxados,  escuros  e  líquidos,  tinham  por complemento cílios enrolados de tal peso que mantinham baixas as pálpebras, dando‐

lhe uma expressão distante e  sonhadora. Seu  caráter doce e gentil nos  convidava  a 

protegê‐la.

 

Também em Teresa  jazia um temperamento artístico. Pintava aquarelas ao cair da  tarde.  Diante  de  seu  cavalete,  com  todos  seus  elementos  prontos,  sentava‐se 

durante horas no pátio  à espera de que  a  luz e as  sombras  alcançassem  seu ponto 

ideal, e então, com um controle e uma fluidez que pareciam ditados pela filosofia Zen, fazia entrar em ação seus pincéis, e dava vida às suas telas. 

O  grosso  de  minhas  memórias  ocultas  havia  alcançado  a  superfície.  Estava 

exausta. O ritmo dos  leves roncos de Florinda, crescendo e diminuindo como um eco 

distante,  tinha  um  poder  hipnotizante. Quando  abri  os  olhos meu  primeiro  ato  foi pronunciar  seu  nome.  Não  recebi  resposta.  A  cama  estava  vazia.  Os  lençóis 

cuidadosamente esticados

 não

 mostravam

 sinais

 de

 que

 alguém

 tivesse

 sentado

 sobre

 

eles, e muito menos dormido. Os dois  travesseiros  se  encontravam em  sua posição 

original,  contra  a  parede,  e  a  manta  que  ela  usou,  dobrada  junto  com  as  outras, empilhadas sobre o piso. Ansiosa, revistei o apartamento em busca de algum  indício 

de sua presença. Não encontrei nada, nem sequer um cabelo grisalho no banheiro. 

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  131

CAPÍTULO TREZE 

Nos momentos  em  que me  encontrava  totalmente  desperta,  não  recordava muito bem esses dias perdidos, apesar de saber sem espaço a dúvidas, que não eram 

dias perdidos. Algo me havia acontecido nesse tempo, algo com um significado interior 

que me

 escapava.

 Não

 realizei

 nenhum

 esforço

 consciente

 para

 recapturar

 todas

 essas

 

memórias  vagas:  sabia  que  estavam  ali,  semi‐ocultas,  como  essas  pessoas  a  quem 

alguém conhece apenas, e cujos nomes não se consegue lembrar. Nunca  fui  de  dormir  bem, mas  dessa  noite  em  diante,  desde  a  aparição  de 

Florinda  no  estúdio  de  Isidoro  Baltazar,  eu  dormia  a  toda  hora  com  o  exclusivo 

propósito  de  ensonhar.  Adormecia  com  inteira  naturalidade  cada  vez  que  me 

encostava,  e  por  longos  períodos.  Inclusive  engordei,  por  desgraça  não  nos  lugares apropriados. No entanto  jamais ensonhei com os feiticeiros. 

Uma tarde um forte ruído de lata me despertou. Isidoro Baltazar havia deixado 

cair a chaleira na pia da cozinha. Doía‐me a cabeça, suava copiosamente e tinha a vista 

nublada. Restou

‐me

 a lembrança

 de

 um

 sonho

 terrível,

 que

 se

 desvaneceu

 muito

 

rápido. —É culpa sua! — gritei‐lhe. —Se apenas me ajudasse não desperdiçaria minha 

vida dormindo. — Desejava ceder à minha frustração e à minha impaciência mediante 

um protesto retumbante, mas rapidamente me dei conta de que  isso era  impossível, pois  já não desfrutava protestando como antes. 

O  rosto  de  Isidoro  Baltazar  exteriorizava  sua  satisfação,  como  se  eu  tivesse expressado meus pensamentos em voz alta. Pegou uma cadeira e, cavalgando‐a, disse: 

—Sabe  que  não  posso  lhe  ajudar. As mulheres  possuem  uma  rota  diferente para  seus  ensonhos.  Nem  sequer  posso  conceber  o  que  fazem  as  mulheres  para 

ensonhar. —Deveria  saber —  retruquei de mau modo —, com  tantas mulheres em  sua 

vida… 

Minha réplica provocou sua risada. Nada parecia perturbar seu bom ânimo. —Não posso conceber o que fazem as mulheres para ensonhar — repetiu. —Os 

homens  precisam  lutar  incessantemente  para  enfocar  sua  atenção  nos  sonhos.  As mulheres não  lutam, mas precisam adquirir disciplina  interna. Há algo que pode  lhe 

ajudar —  agregou  sorrindo —,  trate  de  não  ensonhar  com  sua  acostumada  atitude compulsiva. Deixe que o ensonho venha a ti. 

Abri  e  fechei  a  boca,  e  rapidamente  meu  assombro  se  trocou  por  fúria. 

Esquecida minha

 recente

 lucidez,

 calcei

 meus

 sapatos

 e abandonei

 a casa,

 batendo

 a porta ao  sair. Sua  risada me  seguiu até onde  se encontrava estacionado meu  carro. 

Deprimida, sentindo que não me amavam, sozinha e, acima de tudo, com pena de mim 

mesma, me dirigi à praia. Estava deserta, e chovia mansamente. A ausência de vento 

era  total.  O  som  das  ondas  lambendo  a  praia,  e  o  da  chuva  golpeando  as  águas, atuaram  sobre mim como um  calmante. Tirei os  sapatos, arregacei minhas calças, e 

caminhei até ficar limpa de meus caprichosos arranques. Reconheci estar limpa, pois o 

sussurro das ondas me trouxe as palavras de Florinda: “É uma  luta solitária”. Não me 

senti ameaçada,  simplesmente aceitei minha  solidão, e  foi esta  aceitação o que me 

deu a convicção do que precisava fazer; e posto que não sou dada às postergações, agi 

de 

imediato. 

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  132

Deixei  um  bilhete  sob  a  porta  de  Isidoro  Baltazar  (não  queria  que  ele  me 

dissuadisse) e  tomei  rumo  à  casa das  feiticeiras. Dirigi  toda  a  noite.  Em  Tucson me 

registrei num motel, dormi a maior parte do dia, e retomei minha viagem ao cair da 

tarde,  seguindo  a  mesma  rota  que  tomou  Isidoro  Baltazar  em  nossa  viagem  de 

regresso. 

Meu sentido

 de

 direção

 é pobre,

 mas

 tinha

 bem

 gravada

 essa

 rota.

 Com

 

segurança assombrosa soube quais caminhos tomar, onde virar, e em escasso tempo 

cheguei  ao  destino. Não me  incomodei  em  consultar meu  relógio,  pois  não  queria perder a sensação de que o tempo não se havia movido entre minha partida de Tucson 

e minha chegada à casa das feiticeiras. Não me incomodou não encontrar a ninguém na casa, pois tinha bem presente 

que não me havia se estendido nenhum convite formal, mas lembrava muito bem que 

Nélida, ao esconder numa gaveta uma pequena cesta contendo os presentes que me 

fizeram, me disse que devia voltar todas as vezes que quisesse. Suas palavras soavam 

em meus ouvidos: “De dia ou de noite esta cesta te ajudará a que chegue bem.” 

Com uma

 segurança

 à qual

 normalmente

 se

 chega

 com

 a prática,

 fui

 

diretamente ao quarto que Esperanza me designara, onde a rede branca com franjas parecia estar me esperando. Finalmente me  invadiu uma vaga  inquietude, mas não o 

medo que deveria ter sentido. Um pouco inquieta, instalei‐me na rede, deixando uma perna para fora, com a qual balançar‐me. 

—Ao  diabo  com  meus  temores  —  gritei,  e  em  seguida  recolhi  a  perna,  e 

totalmente  instalada na  rede me estirei  com a  voluptuosidade de um gato,  fazendo 

estalar todas as minhas articulações. Uma voz me saudou vinda do corredor: —Vejo que chegou sã e salva. 

Não precisei

 vê

‐la

 para

 reconhecer

 a voz.

 Sabia

 que

 era

 Nélida,

 e esperei

 em

 vão a que entrasse no quarto. Eu a ouvi dizer “sua comida está na cozinha”, e depois seus passos se afastaram pelo corredor. Abandonei a rede e corri atrás dela, mas não 

havia  ninguém  no  corredor  nem  nos  quartos  que  passei  a  caminho  da  cozinha. Na 

verdade não havia ninguém em  toda a  casa. Contudo, eu  tinha a  certeza de que  se 

encontravam ali. Escutei suas vozes, suas risadas e o ruído de pratos e panelas. Meus dias seguintes transcorreram em permanente estado de antecipação, em 

esperar a que algo importante ocorresse. Não imaginava o quê, mas tinha a certeza de 

que esse algo estava ligado às mulheres. Por alguma razão insondável as mulheres não 

desejavam  ser  vistas,  e  esse  insólito  comportamento  furtivo  me  manteve  nos 

corredores a toda

 hora,

 espreitando

 silenciosa

 como

 uma

 sombra,

 mas

 apesar

 de

 meus  engenhosos  estratagemas me  foi  impossível  surpreendê‐las,  ou  obter  sequer uma fugaz visão de seus corpos. Se deslizavam  invisíveis por toda a casa, entravam e 

saíam de seus quartos como se  fosse entre diferentes mundos, deixando o rastro de 

suas vozes e seus risos. Houve momentos  em  que  duvidei  de  sua  presença  na  casa,  e  até  cheguei  a 

suspeitar que os  ruídos de passos, murmúrios e  risos não passavam de  ser  fruto de 

minha  imaginação;  e  quando  me  encontrava  a  ponto  de  aceitar  como  válida  esta 

suspeita, escutava a alguma delas fazendo algo no pátio, e então, plena de expectativa e  de  fervor  renovado,  corria  até  a  parte  posterior  da  casa  para  topar‐me  com  a 

realidade 

de 

ter 

sido 

enganada 

mais 

uma 

vez. 

Nesses 

momentos 

me 

convencia 

de 

que 

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elas, sendo como eram, verdadeiras bruxas, possuíam algum  tipo de  sistema de eco 

interno, parecido ao dos morcegos, que as alertava a respeito de minha aproximação. Meu  desencanto  ao  não  poder  surpreendê‐las   junto  ao  fogão  sempre 

desaparecia  ante  as  exóticas  comidas  que  me  deixavam,  e  cujo  delicioso  sabor compensava  a  mesquinhez  das  porções.  Com  enorme  prazer  comia  sua  magnífica 

comida, apesar

 do

 qual

 sempre

 sentia

 fome.

 

Certo  dia,  um  pouco  antes  do  crepúsculo,  escutei  a  voz  de  um  homem, pronunciando meu nome com suavidade, vinda dos  fundos da casa. Saltei da  rede e 

corri até  lá, e me produziu  tal  felicidade encontrar  ao  cuidador que  saltei  sobre ele 

como  salta  um  cachorro.  Incapaz  de  conter  minha  alegria  o  beijei  em  ambas  as bochechas. 

—Cuidado, Nibelunga — disse com a mesma voz e modo de  Isidoro Baltazar. Minha surpresa me fez dar um salto e abrir os olhos surpreendida. Com uma piscada me formulou uma maliciosa advertência: 

—Controle‐se, pois se não me cuido é capaz de se aproveitar de mim. 

Por um

 momento

 não

 soube

 como

 interpretar

 suas

 palavras,

 mas

 ao

 ver

 que

 

ria, e sentir que me espalmava as costas para me animar, relaxei por completo. —Me alegra muito ver você — disse‐me com suavidade. —E eu — respondi alegremente — me alegro muitíssimo de ver você! — depois 

lhe perguntei onde estavam os demais. —Oh,  andam  por  aí   —  respondeu  de  maneira  ambígua. —Neste  momento, 

misteriosamente  inacessíveis,  mas  sempre  presentes  —  e  percebendo  minha 

desilusão, acrescentou: —Tenha paciência. —Sei que andam por aí, pois me deixam comida — confessei —, mas sempre 

tenho fome,  já que as porções são muito pequenas. 

Em sua

 opinião

 essa

 era

 a condição

 natural

 das

 iguarias

 que

 conferiam

 poder:

 nunca se recebia o suficiente. Disse que cozinhava sua própria comida, arroz e feijões com  pedaços  de  porco,  vaca ou  frango  uma  vez  ao  dia, mas  nunca  à mesma  hora. Depois me  levou  a  seu  aposento. Vivia num quarto  grande e  desordenado  atrás da 

cozinha, entre as estranhas esculturas de ferro e de madeira, onde o ar impregnado de 

 jasmim e eucalipto pairava  imóvel ao redor das cortinas fechadas. Dormia sobre uma 

cama portátil, que mantinha dobrada dentro de um armário quando não estava em 

uso, e comia sobre uma pequena mesa Chippendale de pernas frágeis. Confessou‐me  que  assim  como  as  misteriosas mulheres,  detestava  a  rotina. 

Para ele tanto importava o dia como a noite, a manhã como a tarde. Mantinha limpos 

os pátios

 e se

 ocupava

 de

 varrer

 quando

 sentia

 vontade

 de

 fazer,

 indiferente

 a se

 o que  jazia no chão eram folhas ou flores. 

Nos dias subseqüentes tive grandes problemas para ajustar‐me a este tipo de 

vida desarticulada. Mais por compulsão que por desejo de ser útil, ajudei ao cuidador em suas tarefas, e também aceitei seus convites de compartilhar suas comidas, que se 

mostraram  ser  tão deliciosas  como  sua  companhia. Convencida de que ele era  algo 

mais que um cuidador, tentei, com perguntas manhosas, surpreendê‐lo desprevenido; técnica inútil, que não produziu respostas satisfatórias. 

—De  onde  você  é?  —  perguntei‐lhe  a  queima‐roupa  certo  dia  enquanto 

comíamos. 

Levantou 

vista 

do 

prato 

apontou 

com 

dedo 

em 

direção 

às 

montanhas, 

que 

a  janela aberta emoldurava como se fosse um quadro. 

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  134

—El Bacatete? — perguntei, revelando no tom de voz minha  incredulidade. —Mas você não é índio — murmurei desconcertada. —De acordo com como eu vejo tais coisas,  somente  o  nagual Mariano Aureliano, Delia  e Genaro  Flores  são  índios —  e 

encorajada  pela  expressão  de  surpresa  e  expectativa  refletida  em  seu  rosto 

acrescentei  que,  sempre  em  minha  opinião,  Esperanza  transcendia  as  categorias 

raciais. Aproximando

‐me,

 e baixando

 a voz

 a um

 nível

 de

 conspirador,

 confessei

‐lhe

 o 

que  já  havia  confiado  a  Florinda.  —Esperanza  não  nasceu  como  ser  humano.  Foi estabelecida por um ato de bruxaria. É o diabo em pessoa. 

Afastando sua cadeira para trás, o cuidador extravasou sua alegria. —E o que me diz de Florinda? Sabia que é francesa? Ou melhor, que seus pais 

eram franceses, das famílias que vieram ao México com Maximiliano e Carlota. —É muito bonita — murmurei, tratando de lembrar em que momento exato do 

século passado Napoleão havia enviado o príncipe austríaco ao México. —Não  a  viu  quando  se  enfeita  toda… —  acrescentou  o  cuidador. —É  outra 

pessoa, para quem a idade não conta. 

—Carmela me

 disse

 que

 eu

 sou

 como

 Florinda

 —

 me

 aventurei

 a dizer,

 num

 

ataque de vaidade e anseio ilusório. Impulsionado  pelo  riso  que  fervia  em  seu  interior,  o  cuidador  saltou  de  sua 

cadeira. —Bem que você gostaria que fosse… — comentou sem maior ênfase, como se 

não lhe interessasse a repercussão que teriam em mim suas palavras. Irritada  por  seu  comentário  e  sua  falta  de  sensibilidade  olhei‐o  com  um 

aborrecimento  mal  disfarçado.  Depois,  ansiosa  por  mudar  de  assunto,  lhe  fiz  uma pergunta relacionada com o nagual Mariano Aureliano: 

—E ele, exatamente de onde provém? 

—Quem sabe

 de

 onde

 provém

 os

 naguais

 —

 contrapôs,

 e aproximando

‐se

 da

  janela  fixou  sua  vista  durante  um  longo  período  nas  montanhas  distantes.  Depois completou:  —Há  quem  diga  que  os  naguais  vêm  do  próprio  inferno.  Eu  acredito. Alguns dizem que nem sequer são humanos… — houve uma nova pausa que me  fez perguntar‐me  se  o  longo  silêncio  seria  repetido,  ao  fim  do  qual,  como  se  tivesse 

intuído minha  impaciência, sentou‐se a meu  lado e continuou: —Se perguntassem a 

mim eu diria que os naguais são super‐humanos. Por essa razão conhecem tudo acerca 

da natureza humana. Não se pode mentir a um nagual. Vêem através de ti. Até vêem 

através do espaço os outros mundos além deste, e outras eras deste mundo. Me  senti  incômoda,  e  essa  incomodidade  me  pôs  inquieta.  Desejava  que 

deixasse de

 falar,

 e lamentei

 tê

‐lo

 levado

 a essa

 conversa.

 Tinha

 a certeza

 de

 que

 o homem estava louco. 

—Não,  não  estou  louco —  assegurou,  e  ao  escutar  essas  palavras  soltei  um 

grito. —Simplesmente estou falando de coisas que você nunca escutou antes. Colocada  na  defensiva,  meus  olhos  piscaram  repetidas  vezes,  mas  essa 

inquietação  me  proporcionou  a  coragem  necessária  para  perguntar‐lhe  sem 

preâmbulo algum: —Por que se escondem de mim? —É  óbvio  —  respondeu.  Depois,  ao  ver  que  para  mim  não  era  tão  óbvio, 

acrescentou: —Deveria saber. Você, e os que são como você, constituem a tripulação, 

não 

eu. 

Não 

sou 

um 

deles, 

sou 

apenas 

cuidador, 

que 

azeita 

máquina. 

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—Está  me  confundindo  cada  vez  mais  —  respondi  irritada.  Depois  tive  um 

momento de intuição. —Quem são os da tripulação à qual se referiu? —Todas  as  mulheres  que  conheceu  da  última  vez  que  esteve  aqui.  As 

espreitadoras e as ensonhadoras. Me disseram que você pertence às espreitadoras. Após servir‐se de um copo de água se dirigiu à  janela, levando consigo o copo. 

Bebeu uns

 goles

 antes

 de

 me

 informar

 que

 o nagual

 Mariano

 Aureliano

 havia

 posto

 à 

prova minhas condições de espreitadora em Tucson, quando me fez entrar na cafeteria para por uma barata na comida. Depois, encarando‐me, anunciou: 

—Você falhou. Eu o interrompi, pois não desejava escutar o resto dessa estória. —Não quero escutar essa bobagem. Enrugou o rosto, prelúdio nele de alguma travessura. —Mas  depois  do  fracasso  você  se  reabilitou,  gritando  e  chutando  ao  nagual 

Mariano  Aureliano  sem  vergonha  nem  consideração  alguma  —  e  ressaltou  que  as espreitadoras são pessoas que possuem a habilidade de lidar com outras pessoas. 

Abri a boca,

 a ponto

 de

 dizer

‐lhe

 que

 não

 entendera

 uma

 só

 palavra,

 mas

 a 

fechei de novo. —O desconcertante é que  também é uma grande ensonhadora. Se não  fosse 

por isso seria como Florinda, naturalmente sem sua estatura e sua beleza. Sorrindo  venenosamente,  maldisse  em  silêncio  ao  velho  debochado.  De 

repente me disparou uma pergunta. —Lembra quantas mulheres havia no piquenique? Fechei os olhos para visualizar melhor o acontecimento. Vi com clareza a seis 

mulheres  sentadas  em  torno  da  lona  estendida  sob  os  eucaliptos.  Esperanza  não 

estava presente, mas sim Carmela, Zoila, Delia e Florinda. 

—Quem eram

 as

 outras

 duas?

 —

 perguntei,

 mais

 confusa

 que

 nunca.

 —Ah — murmurou, apreciando minha pergunta, a  julgar pelo brilhante sorriso 

que enrugou seu rosto. —Essas eram duas ensonhadoras de outro mundo. Você as viu 

claramente, mas  logo desapareceram, e sua mente não as registrou, pois  lhe pareceu 

completamente inconcebível. Aceitei sua explicação sem lhe prestar demasiada atenção, incapaz de conceber 

como  havia  visto  somente  quatro  mulheres,  quando  sabia  que  eram  seis.  Minha dúvida deve de ter‐se transparecido a ele, pois explicou que era muito natural que eu 

tivesse me concentrado somente em quatro. —As outras duas são sua fonte de energia. São incorpóreas, e não pertencem a 

este mundo.

 Perdida  e  desconcertada, não  pude  atinar,  senão olhá‐lo  fixo.  Se me haviam 

esgotado as perguntas. —Dado  que  você  não  está  no  planeta  das  ensonhadoras,  seus  sonhos  são 

pesadelos,  e  suas  transições  entre  ensonhos  e  realidade  lhe  acabam  sendo  muito 

instáveis  e  perigosas,  a  você  e  às  demais  ensonhadoras.  Por  conseguinte,  Florinda assumiu a tarefa de apoiar‐lhe e proteger‐lhe. 

Fiquei de pé com tal ímpeto que minha cadeira foi ao chão. —Não quero saber mais! — gritei, e  justo a tempo me abstive de acrescentar 

que estava melhor assim, sem conhecer seus loucos costumes e explicações. 

cuidador 

me 

pegou 

pela 

mão 

me 

conduziu 

para 

fora, 

através 

do 

pátio 

do 

chaparral, até a parte traseira da casa pequena. 

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—Preciso da sua ajuda com o gerador — pediu. —Tem que repará‐lo. Seu  pedido  me  causou  graça.  Respondi  que  ignorava  tudo  a  respeito  de 

geradores, e assim que abriu a portinhola de uma pequena casinha de cimento, me dei conta de que a corrente elétrica para as luzes da casa se gerava ali. Até então presumi que as luzes e eletrodomésticos do México rural eram os mesmos que na cidade. 

Deste dia

 em

 diante

 procurei

 não

 fazer

‐lhe

 demasiadas

 perguntas,

 pois

 não

 me

 

sentia  preparada  para  suas  respostas.  Então  nossa  relação  adquiriu  contornos  de 

ritual, onde eu me esmerava por  igualar o esquisito domínio que o velho possuía do 

idioma espanhol. Dediquei horas à consulta de vários dicionários, buscando palavras novas e quase sempre arcaicas, com as quais impressioná‐lo. 

Certa  tarde  em  que  esperava  que  o  cuidador  trouxesse  a  comida,  (era  a 

primeira vez desde que conheci seu quarto que me encontrava sozinha nele)  lembrei do  velho  e  estranho  espelho,  e  me  dediquei  a  examinar  sua  superfície  brumosa  e 

manchada. —Cuidado.  Esse  espelho  te  prenderá  se  você  se  contemplar  muito  nele  — 

aconselhou uma

 voz

 em

 minhas

 costas.

 

Minhas esperanças de ver ao cuidador se frustraram pois, ao virar‐me, o quarto 

estava deserto de presença humana, e em meu precipitado afã por alcançar a porta 

esbarrei numa das esculturas. Automaticamente estirei a mão para estabilizá‐la, mas antes  sequer  de  que  pudesse  aproximar‐me,  a  figura  pareceu  afastar‐se  com  um 

estranho movimento rotativo, para depois retomar sua posição original após emitir um 

suspiro quase humano. —O que acontece? — perguntou o cuidador, entrando no quarto. Colocou uma 

grande bandeja sobre a mesinha frágil e, reparando em meu rosto, que devia de estar verde, insistiu em sua questão. 

Respondi assinalando

 a escultura.

 —Há momentos em que sinto que essas monstruosidades  têm vida própria e 

me  espiam —  disse,  e  ao  observar  a  expressão  séria  e  chateada  de  seu  rosto me 

apressei em assegurar‐lhe que por “monstruosidade” não me referia à feiúra e sim ao 

tamanho  das  peças.  Após  respirar  profundamente  repeti  minha  impressão  de  que 

estavam vivas, o qual, depois de olhar furtivamente em torno dele, e com apenas um 

fio de voz, o cuidador confirmou com seu “Têm vida”. Me  senti  tão  incômoda  que  comecei  a  tagarelar  acerca  da  tarde  em  que 

descobri seu quarto, de como me senti atraída a ele por um inquietante murmúrio que 

no fim era obra do vento empurrando a cortina através de uma  janela quebrada. 

—Sem dúvida

 nesse

 momento

 achei

 que

 se

 tratava

 de

 um

 monstro

 —

 confessei

 entre  risinhos  nervosos  —,  uma  presença  estranha  alimentada  pelas  sombras  do 

crepúsculo. Fui objeto do olhar penetrante do  cuidador, que mordeu  seu  lábio  inferior e 

depois deixou que esse olhar vagasse em  torno do aposento antes de chegar a uma decisão. 

—É  melhor  que  nos  sentemos  à  mesa  antes  que  a  comida  se  esfrie.  — 

ofereceu‐me uma cadeira, e assim que me sentei acrescentou em tom vibrante: —Tem 

muita  razão em chamá‐las presenças, pois não  são esculturas,  são  invenções. Foram 

concebidas segundo modelos vistos em outro mundo por um grande nagual. 

—Por 

Mariano 

Aureliano? 

—Não, por um nagual muito mais velho, chamado Elías. 

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—E por que estão estas  invenções em seu quarto? Esse grande nagual as  fez para você? 

—Não — respondeu —, eu só cuido delas — e pondo‐se de pé, tirou um lenço 

branco de um bolso e começou a limpar com ele a invenção mais próxima. —Dado que 

sou o cuidador, me corresponde cuidar delas. Algum dia, com a ajuda dos  feiticeiros 

que você

 conheceu,

 entregarei

 estas

 invenções

 ao

 lugar

 onde

 lhes

 corresponde.

 

—E onde é isso? —O infinito, o cosmos, o vazio. —E como pretende levá‐las até lá? —Mediante o mesmo poder que as trouxe: o poder de ensonhar desperto. —Se  você  ensonha  como  ensonham  estes  feiticeiros  —  disse  com  cautela, 

procurando  evitar  que  minha  voz  adquirisse  um  tom  triunfalista  —,  então  você 

também há de ser um feiticeiro. —Eu sou, mas não sou como eles. Sua ingênua admissão me confundiu. 

—Qual é a diferença?

 

—Ah! — exclamou com ar sabichão. —Existe uma enorme diferença, que não 

posso  lhe  explicar  agora.  Se  o  fizesse,  te  afetaria muito,  e  te  poria mais  triste  que 

nunca. No entanto chegará o dia em que o saberá sozinha, sem necessidade de que 

alguém o revele a você. Senti em minha mente girar as rodas do esforço enquanto buscava algo novo 

para dizer, alguma outra pergunta para fazer. —Pode me dizer como chegaram essas invenções ao poder do nagual Elías? —Ele as viu em seus ensonhos e as capturou. Algumas são cópias feitas por ele, 

cópias  de  invenções  que  não  pôde  transportar.  Outras  são  o  produto  verdadeiro; 

invenções que

 o nagual

 trouxe

 até

 aqui.

 Não  lhe  acreditei  nem  em  uma  só  palavra,  contudo  não  pude  evitar  outra pergunta. 

—Por que o nagual Elías as trouxe? —Porque as próprias invenções lhe pediram. —E por quê? O cuidador me silenciou com um gesto de sua mão, e me instou a comer, e essa 

renúncia a satisfazer minha curiosidade serviu como incentivo para meu interesse. Não 

podia  imaginar os motivos que  lhe  impediam de  falar dos artefatos, quando era  tão 

hábil em matéria de  respostas evasivas. Poderia  ter me  respondido a primeira coisa 

que lhe

 ocorresse.

 Nem  bem  terminamos  nossa  refeição  me  pediu  que  tirasse  sua  cama  do 

armário, e conhecendo suas preferências, eu a armei em frente à porta francesa que 

tinha uma cortina. Com um suspiro que demonstrava seu bem‐estar estendeu‐se nela, descansando  a  cabeça  sobre  uma  pequena  almofada  presa  num  dos  extremos.  A 

almofada  havia  sido  recoberta  com  feijões  secos  e  grãos  de milho  e,  segundo  ele, garantia‐lhe sonhos felizes. 

—Já estou pronto para minha siesta (cochilo da tarde) — anunciou, enquanto 

afrouxava sua cinta. Era  sua maneira  discreta  de  pedir‐me  que me  retirasse.  Aborrecida  por  sua 

negativa 

de 

falar 

das 

invenções, 

empilhei 

os 

pratos 

sobre 

bandeja 

abandonei 

quarto, escoltada por seus roncos, que me seguiram até a própria cozinha. 

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Essa noite me despertou os acordes de um violão. Automaticamente busquei a 

lanterna que guardava  junto à minha rede e consultei meu relógio: apenas passava da 

meia‐noite.  Enrolei‐me  numa  coberta  e,  na  ponta  dos  pés,  saí   ao  corredor  que 

conduzia ao pátio interior. Ali, sentado sobre uma cadeira de  junco, um homem tocava o  violão.  Apesar  de  não  poder  ver  seu  rosto  sabia  que  era  o  mesmo  que  Isidoro 

Baltazar e eu

 havíamos

 visto

 e escutado

 na

 ocasião

 de

 minha

 primeira

 visita.

 Como

 

naquela oportunidade, parou de tocar assim que me viu, ficou de pé e entrou na casa. Assim  que  cheguei  de  volta  ao meu  quarto  a música  recomeçou,  e  estava  a 

ponto de dormir quando o escutei cantar com voz clara e  firme. A melodia era uma invocação ao vento, um convite a cruzar milhas e milhas de silêncio e de vazio, e como 

se  fosse  em  resposta  a  essa  convocação,  o  vento  ganhou  força,  silvou  através  do 

chaparral, arrancou as folhas secas das árvores e as depositou em montões contra as paredes da casa. 

Num impulso abri a porta que dava ao pátio, e o vento se introduziu e encheu o 

quarto de profunda tristeza; não a tristeza das lágrimas, e sim a da melancólica solidão 

do deserto,

 a poeira

 e as

 sombras

 velhas.

 O

 vento

 percorreu

 o quarto

 como

 se

 fosse

 

uma fumaça. Eu o aspirei com cada inalação, e o senti pesado nos pulmões, apesar do 

qual cada profunda aspiração me fez sentir mais aliviada. Fui para fora, e deslizando‐me por entre os altos arbustos, cheguei à parte de 

trás da  casa  cujas paredes  caiadas  captavam o brilho da  lua, para  refletí ‐lo  sobre o 

descampado,  varrido  pelo  vento.  Temendo  ser  vista  corri  de  árvore  em  árvore, aproveitando  as  sombras  para  ocultar‐me,  até  chegar  aos  dois  pés‐de‐laranja guardiões  do  caminho  que  levava  à  casa  pequena. O  vento me  trouxe  o  rumor  de 

risinhos e  vagas murmurações, e em  sua procura, numa atitude decidida, me  lancei pela trilha para só me acovardar ao chegar à porta da casinha escura. Tremendo, me 

aproximei pouco

 a pouco

 da

  janela

 aberta.

 Reconheci

 as

 vozes

 de

 Delia

 e Florinda,

 mas

 a altura da  janela me impediu de ver o que faziam. Escutei,  à  espera  de  algo  profundo,  de  ser  transportada  a  alguma  revelação 

transcendente capaz de me ajudar a resolver o porquê de minha presença ali, minha inabilidade  para  ensonhar,  mas  unicamente  escutei  fofocas,  e  me  prendi  de  tal maneira a suas maliciosas insinuações que ri forte várias vezes, esquecendo de minha 

situação. Inicialmente  achei  que  falavam  de  terceiros,  mas  depois  compreendi  que 

falavam das ensonhadoras, e que  seus comentários mais  insidiosos eram dirigidos a 

Nélida.  Disseram  que  até  o  momento,  apesar  dos  anos  transcorridos,  não  havia 

conseguido desprender

‐se

 da

 atração

 do

 mundo.

 Não

 só

 era

 vaidosa,

 pois

 segundo

 elas passava o dia  inteiro em  frente ao espelho, como  também era  impudica,  já que 

fazia todo o possível para ser sexualmente atrativa a fim de agarrar ao nagual Mariano 

Aureliano,  e  uma  vez  até  chegou  a  contar  que  era  a  única  capaz  de  acomodar  seu 

enorme e intoxicante órgão. Depois  foi a vez de Clara. A apelidaram de elefante pomposo, que  se achava 

encarregada  de  distribuir  bênçãos  a  todos.  O  receptor  de  sua  atenção  era  nesse 

momento  o  nagual  Isidoro  Baltazar,  e  o  prêmio,  seu  corpo  desnudo,  prêmio  que  o 

nagual  podia  contemplar mas  não  possuir. Uma  vez,  de manhã  e  de  novo  à  noite, presenteava‐lhe  o  espetáculo  de  sua  nudez,  convencida  de  que  ao  fazê‐lo  se 

assegurava 

potência 

sexual 

do 

novo 

nagual. 

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A terceira mulher de quem  falaram foi Zuleica. Disseram que tinha aspirações de santa, de ser a Virgem Maria, e que sua assim chamada espiritualidade não passava de  ser  loucura.  Periodicamente  perdia  o  rumo,  e  em  seus  ataques  de  insânia  lhe 

ocorria  por  limpar  a  casa  de  ponta  a  ponta,  as  rochas  do  pátio  e  inclusive  as  dos terrenos vizinhos. 

Depois Hermelinda,

 a quem

 descreveram

 como

 muito

 sensata

 e decorosa,

 um

 

perfeito modelo dos valores da classe média. Assim como Nélida, era incapaz de cessar de  ambicionar  ser  a mulher perfeita,  a perfeita dona  de  casa. Apesar  de não  saber cozinhar,  costurar,  bordar  ou  tocar  piano  para  entreter  aos  hóspedes,  Hermelinda desejava ser conhecida — e  isto o disseram entre acessos de risinhos debochados — 

como o modelo de perfeição da casta  feminina, assim como Nélida aspirava a  ser o 

paradigma da mulher libidinosa. Escutei  uma  voz  lamentar‐se  do  fato  de  que  ambas  não  combinassem  seus 

talentos, pois se o fizessem chegariam a constituir a mulher perfeita, capaz de agradar ao amo: perfeita na cozinha e na sala, quer seja vestindo avental ou traje de noite, e 

perfeita na

 cama,

 com

 as

 pernas

 abertas

 quando

 assim

 o desejasse

 seu

 amo.

 

Quando se calaram voltei à casa, ao meu quarto e à minha rede, onde apesar de  meus  esforços  não  pude  recuperar  o  sono.  Sentia  que  algum  tipo  de  cápsula protetora havia se arrebentado, destruindo o encanto e a felicidade de encontrar‐me 

na casa das feiticeiras. Somente podia pensar em que, desta vez por escolha própria, me  achava  presa  em  Sonora  com  uma  coleção  de  velhas  loucas,  cujo  único 

entretenimento era a fofoca, ao invés de estar me divertindo em Los Ângeles. Vim em busca de conselhos, e ao  invés de achá‐los  fui  ignorada e  reduzida à 

companhia de um velho senil de quem suspeitava que fosse mulher, e quando chegou 

a  manhã  e  o momento  de  sentar‐me  para  comer  com  o  velho  cuidador,  eu  havia 

levado meu

 sentido

 de

 legítima

 indignação

 a tal

 ponto

 que

 não

 pude

 comer

 nada.

 —O  que  se  passa?  —  perguntou  o  velho,  olhando‐me  nos  olhos,  quando 

normalmente evitava este tipo de contato direto. —Está sem apetite? Eu  lhe devolvi um olhar venenoso, e abandonando todo  intento de controlar‐

me, descarreguei minha  raiva e  frustração acumuladas. Enquanto o  fazia prevaleceu 

por  um  momento  meu  sentido  de  moderação:  disse‐me  que  era  injusto  culpar  ao 

velho, que me havia tratado com todo carinho. Devia lhe estar agradecida, mas  já não 

podia me  conter. Minhas pequenas queixas haviam adquirido  vida própria, e minha 

voz se fazia cada vez mais aguda à medida que exaltava e distorcia os fatos dos últimos dias. Com maliciosa satisfação, confessei ter escutado a conversa das mulheres. 

—Elas não

 têm

 nenhuma

 intenção

 de

 ajudar

‐me

 —

 assegurei.

 —Não

 fazem

 outra coisa que falar mal das ensonhadoras, de quem disseram coisas horríveis. —O que as escutou dizer? Com gosto  lhe relatei tudo, surpreendendo a mim mesma pela fidelidade com 

que lembrei de cada um dos maliciosos comentários. —Obviamente  falavam de você — declarou, nem bem havia  finalizado minha 

exposição.  —Logicamente  que  em  sentido  figurado.  —  esperou  que  suas  palavras ganhassem  peso  em  mim,  e  antes  que  eu  pudesse  protestar,  perguntou 

inocentemente: —Não é você muitissimamente assim? —Como se atreve! — explodi —, e não me venha com essa merda psicológica. 

Não 

aceito 

de 

um 

homem 

educado, 

menos 

ainda 

de 

você, 

peão 

de 

merda. 

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  140

Meu  ataque  súbito o  pegou de  surpresa. Abriu bem os olhos, e  seus  frágeis ombros se encolheram. Não senti nenhuma pena por ele, só  lástima de mim mesma. Comunicar‐lhe o que ouvi havia sido uma perda de tempo. Estava a ponto de lhe dizer que ter feito essa longa e árdua viagem havia sido um erro da minha parte, quando me 

olhou com tal desprezo que senti vergonha de minha explosão. 

—Se controlar

 seu

 gênio

 se

 dará

 conta

 de

 que

 nada

 do

 que

 fazem

 estes

 

feiticeiros é para entreter‐se ou para impressionar a alguém, ou dar livre vazão às suas compulsões. Tudo o que fazem ou dizem tem uma razão, um propósito — e me olhou 

com tal frieza que senti vontade de me afastar. —Não vá pensando que está aqui de 

férias — insistiu. —Para estes feiticeiros as férias não existem. —Por que me disse isto? — perguntei irritada. —E não fique dando voltas. Diga. —Não  vejo  como  posso  dizê‐lo mais  claramente —  respondeu.  Sua  voz  era 

enganosamente  suave,  carregada  de  uma  intenção  cujo  alcance  eu  não  conseguia decifrar. —As bruxas  já te disseram de noite o que você é. Usaram as quatro mulheres do planeta das ensonhadoras como  fachada para descrever você, para  fazer saber, a 

quem estava

 escondida

 atrás

 da

  janela,

 o que

 é:

 uma

 puta

 com

 delírios

 de

 grandeza.

 

Foi  tal  o  impacto  que  fiquei  momentaneamente  aturdida.  Depois  a  fúria, quente como lava, tomou posse de meu corpo. 

—Miserável, insignificante pedaço de merda — gritei‐lhe, chutando‐o na virilha. Não havia chegado meu chute ao alvo e  já me deparava com a  imagem do pequeno 

bastardo  retorcendo‐se no  chão de dor, e  contudo o destino de meu  chute  acabou 

sendo o ar. Com a velocidade de um boxeador ele o havia evitado. Sorriu  com  a  boca,  mas  não  com  os  olhos,  que,  frios  e  inexpressivos, 

contemplaram minhas investidas e lamentos. —Está  fazendo  ao  nagual  Isidoro  Baltazar  vítima  de  tudo  o  que  disseram  as 

bruxas. Treinaram

 você

 para

 isso.

 Pense

 nisso,

 e não

 se

 limite

 apenas

 em

 irritar

‐se.

 Abri a boca para dizer algo, mas não emiti som. Não eram tanto suas palavras que  me  deixaram  sem  fala,  e  sim  seu  tom  indiferente,  gelado  e  demolidor.  Teria 

preferido que me gritasse,  já que assim saberia como reagir: teria gritado mais forte. Não  tinha  sentido  enfrentá‐lo,  disse  a  mim  mesma.  Não  tinha  razão.  Era 

simplesmente  um  velhinho  senil  com  uma  língua  de  víbora.  Não,  decidi,  não  me 

irritaria com ele, mas tampouco o levaria a sério. —Espero  que  não  vá  começar  a  chorar — me  advertiu,  ainda  antes  que me 

recobrasse. Decidi não exteriorizar minha raiva, contudo não pude evitar que enrubescesse 

o rosto

 quando

 mencionei

 que

 nem

 pensava

 fazê

‐lo,

 e que

 dada

 sua

 condição

 de

 pobre servente, merecia ser açoitado por sua  impertinência; mas seu olhar duro me 

aplacou, e finalmente, persistindo em seu trato cortês mas inexpressivo, conseguiu me 

convencer de que devia desculpar‐me. —Eu sinto muito — e na verdade o sentia —, meu mau gênio e maus modos 

sempre terminam por vencer‐me. —Eu  sei,  todos me  advertiram  a  seu  respeito —  disse muito  sério, mas  em 

seguida seu sorriso reapareceu quando me convidou a comer. Sentia‐me incomodada durante a refeição. Mastigando com lentidão o observei 

sub‐repticiamente, e constatei que apesar de não se esforçar por mostrar‐se amável 

sua 

raiva 

havia 

desaparecido. 

Tentei 

sem 

êxito 

consolar‐

me 

com 

esse 

pensamento, 

percebi que sua falta de interesse em mim não era algo deliberado nem estudado. Não 

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me  castigava,  pois  nada  do  que  foi  dito  ou  feito  por mim  podia  afetá‐lo.  Terminei minha comida, e disse a primeira coisa que me ocorreu com uma segurança que não 

deixou de me assombrar. —Você não é o cuidador. Reapareceu seu sorriso quando perguntou: 

—E quem

 acha

 que

 sou?

 

Esse sorriso me fez abandonar toda precaução, e com um tremendo descaro e, naturalmente  com  intenção de  insulto, disse‐lhe que era uma mulher: Esperanza. O 

fato de ter‐me descarregado dessa suspeita me trouxe alívio. Suspirei e completei: —Por  isso  somente  você  tem  espelho.  Quer  seja  como  mulher  ou  como 

homem, precisa soar convincente. —O  ar  de  Sonora  deve  ter  lhe  afetado.  É  bem  sabido  que o  ar  rarefeito  do 

deserto  afeta  às  pessoas  de  maneira  peculiar  —  e  agarrou  meu  pulso  quando 

acrescentou: —Ou talvez seja normal em você ser mesquinha e chata, e dizer o que lhe 

convém com ar de absoluta autoridade. 

Em seguida

 mudou

 de

 atitude,

 e rindo

 me

 propôs

 compartilhar

 sua

 siesta.

 

—Nos fará muito bem. Ambos somos chatos. —De modo que assim são as coisas — acusei, não muito segura de se devia me 

ofender ou rir. —Quer dormir comigo, é? Esperanza  já me havia advertido disto. —E por que  razão  se opõe  a  sestear   comigo  se  acha que  sou  Esperanza? — 

perguntou, acariciando minha nuca com uma mão tíbia e apaziguante. Minha defesa foi frágil. —Não me oponho. Acontece que odeio as siestas. Nunca durmo a siesta, e me 

disseram que até quando era criança as odiava. — me defendi  falando com  rapidez, gaguejando, repetindo palavras. Desejava abandonar o quarto, mas a  leve pressão de 

sua mão

 sobre

 minha

 nuca

 me

 impedia

 disso.

 —Sei

 que

 é Esperanza

 —

 repeti.

 —

Reconheço esse  tato. Possui o mesmo efeito sedante que o seu. — senti que minha cabeça se bamboleava e que meus olhos se fechavam contra minha vontade. 

—Assim é — concordou. —Te fará bem recostar‐se mesmo que não seja mais que por uns minutos — e interpretando meu silêncio como sinal de aceitação, tirou do 

armário sua cama dobrável e um par de mantas, uma das quais me cedeu. Continuaram as  surpresas. Sem  saber por que, e  sem protestar, me deitei, e 

através das pálpebras entreabertas o observei estirar‐se até fazer estalar cada uma de 

suas  articulações,  tirar  as  botas,  desajustar  a  cinta  e  encostar‐se  ao  meu  lado.  Já 

coberto  pela manta  se  desfez  de  suas  calças,  que  depositou  no  chão  junto  às  suas 

botas, depois

 do

 qual

 levantou

 a manta

 e se

 mostrou.

 Roxa

 de

 vergonha,

 comprovei

 que seu corpo desnudo,  igual ao de Esperanza, era a antítese do  imaginado. Era um 

corpo flexível, imberbe e  limpo; delicado como um  junco, mas por sua vez musculoso 

e,  definitivamente  masculino  e   jovem!  Não  me  parei  para  pensar.  Prendendo  a 

respiração levantei cautelosamente minha própria manta. Um risinho feminino me fez fechar os olhos e fazer de conta que dormia, mas 

me aquietou o saber que quem se ria não entraria no quarto. Apoiei a cabeça em meus braços,  e  me  absorveu  a  sensação  de  que  o  cuidador  e  os  risinhos  haviam 

restabelecido um equilíbrio, e recriado em torno de mim a borbulha mágica. Não sabia com exatidão qual significado lhe dava a isto, mas sim que quanto mais meu corpo se 

relaxava 

mais 

me 

aproximava 

uma 

resposta. 

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CAPÍTULO CATORZE 

Do meu  regresso  da  casa  das  feiticeiras  já  não  necessitei  ser  persuadida  ou 

animada. As mulheres haviam conseguido  infundir‐me uma estranha coerência, uma certa estabilidade emocional como nunca antes possuí. Não me converti da noite para 

o dia

 em

 outra

 pessoa,

 mas

 minha

 existência

 adquiriu

 um

 propósito

 definitivo,

 meu

 

destino estava traçado: devia lutar para livrar minha energia. Simples assim. Porém não podia recordar, quer fosse clara ou mesmo vagamente, tudo o que 

aconteceu nos três meses transcorridos nessa casa. Tal tarefa me demandou anos de 

esforço  e  determinação.  Contudo,  o  nagual  Isidoro  Baltazar me  advertiu  acerca  da 

falácia das metas definidas e das  conquistas emocionalmente  carregadas. Disse que 

careciam de valor, pois o verdadeiro cenário de um feiticeiro é a vida cotidiana, e ali as motivações conscientes superficiais não aguentam as pressões. 

As feiticeiras haviam expressado mais ou menos o mesmo, só que de um modo 

mais  harmonioso.  Explicaram  que  dado  que  as mulheres  estão  habituadas  a  serem 

manipuladas, elas

 acediam

 com

 facilidade,

 e que

 suas

 conformidades

 eram

 

simplesmente ocas adaptações à pressão. Mas de ser na verdade factível convencer à 

mulher da necessidade de mudar seus hábitos, então metade da batalha estava ganha; ainda  sem  sua  conformidade,  seu  êxito  é  infinitamente  mais  durável  que  o  dos homens. 

Podia optar entre as duas opiniões, ambas a meu ver acertadas. De tanto em 

tanto, todas as razões fundamentais da feitiçaria que eu havia aprendido sucumbiam 

sob a pressão do mundo diário, mas minha entrega ao mundo dos feiticeiros nunca foi posta no tapete da dúvida. 

Pouco a pouco comecei a adquirir a energia necessária para ensonhar, o que 

significava que

 por

 fim

 havia

 compreendido

 o que

 me

 disseram

 as

 mulheres:

 Isidoro

 Baltazar era o novo nagual, e havia deixado de ser um homem. Compreender isto me 

deu suficiente energia para regressar periodicamente à casa das feiticeiras. Essa  casa  era  propriedade  de  todos  os  pertencentes  ao  grupo  de  Mariano 

Aureliano,  grande  e  encorpada  vista  de  fora,  mas  indistinguível  de  outras;  apenas visível,  apesar  da  exuberante   primavera  florida  que  pendia  sobre  o  muro  que 

circundava a propriedade. A razão pela qual as pessoas passavam sem vê‐la, diziam os feiticeiros, residia na tênue névoa que a cobria, delicada como um véu, visível ao olho, porém impossível de perceber para a mente. 

Não  obstante,  uma  vez  dentro  da  casa,  tinha‐se  a  aguda  sensação  de  ter 

ingressado em

 outro

 mundo.

 Os

 três

 pátios,

 sombreados

 por

 árvores

 frutíferas,

 conferiam uma luz de ensonho aos escuros corredores e aos muitos aposentos que se 

abriam sobre eles, e impressionavam os pisos de tijolos e lajotas, com seus intrincados desenhos. 

Não era um  lugar  cálido, mas  sim acolhedor, e de nenhuma maneira um  lar, dada sua onipresente personalidade e sua  implacável austeridade. Era o  lugar onde o 

velho  nagual  Mariano  Aureliano  e  seus  feiticeiros  concebiam  seus  ensonhos  e 

realizavam  seus  propósitos,  e  dado  que  suas  inquietudes  nada  tinham  a  ver  com o 

mundo  cotidiano,  essa  casa  era  o  reflexo  de  suas  preocupações  não  humanas,  e 

refletia  a  autêntica  medida  de  sua  individualidade,  não  como  pessoas,  mas  como 

feiticeiros. 

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  143

Nessa  casa me  relacionei e  lidei  com  todas as  feiticeiras do  grupo do nagual Mariano Aureliano, que não me ensinaram feitiçaria, nem sequer a ensonhar. Segundo 

elas, não havia nada para ensinar. Disseram que minha tarefa era recordar de tudo o 

que aconteceu entre elas e eu durante esses momentos iniciais de nossa convivência, em especial tudo o que Zuleica e Florinda me fizeram ou disseram, mas Zuleica nunca 

me havia

 dirigido

 a palavra.

 

Quando  tentava  pedir‐lhes  ajuda  recusavam  fazê‐lo.  Seu  argumento  era  que 

sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir‐se, e não dispunham 

de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois  de  um  tempo  abandonei  toda  tentativa  de  indagá‐las,  e  me  dediquei  a 

desfrutar de sua presença e de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para 

não  querer  jogar  nosso  jogo  intelectual  predileto,  esse  de  pretextar  interesse  nas assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela 

verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela. 

Não obstante,

 graças

 a essa

 diária

 inter

‐relação,

 cheguei

 a compreender

 muitas

 

coisas acerca de seu mundo. As ensonhadoras e as espreitadoras representavam duas formas de comportamento entre mulheres, muito distintas entre si.  Inicialmente me 

perguntei  se  o  grupo  que  me  havia  sido  descrito  como  ensonhadoras:  Nélida, Hermelinda  e  Clara,  eram  na  realidade  as  espreitadoras  pois,  até  onde  eu  podia 

determinar,  minha  relação  com  elas  era  sobre  uma  base  estritamente  mundana  e 

superficial.  Somente  mais  tarde  pude  dar‐me  conta  de  que  sua  mera  presença provocava em mim uma nova maneira de comportamento. Com elas não necessitava reafirmar‐me.  De  minha  parte  não  existiam  dúvidas  nem  perguntas.  Possuíam  a 

singular  habilidade  de  fazer‐me  ver,  sem  necessidade  de  verbalizá‐lo,  o  absurdo  de 

minha existência,

 apesar

 do

 qual

 não

 achava

 necessário

 defender

‐me.

 Talvez  fosse  esta  ausência  de  esforço  o  que  me  levou  a  aceitá‐las  sem 

resistência, e não  levei muito  tempo para dar‐me conta de que as ensonhadoras, ao 

tratar‐me num nível mundano, me estavam proporcionando o modelo necessário para recanalizar minhas energias. Desejavam que eu mudasse minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais como cozinhar, limpar, estudar ou ganhar a vida. Disseram‐me 

que  essas  tarefas  deviam  fazer‐se  com  distintos  auspícios,  não  como  tarefas mundanas, e sim como esforços artísticos, todos de igual importância. 

Sobretudo  foi  sua mutua  inter‐relação, e sua  relação com as espreitadoras, o 

que me deu a pauta do quão especial eram. Em seu trato habitual careciam de falhas 

humanas. Seu

 sentido

 de

 dever

 coexistia

 facilmente

 com

 suas

 características

 individuais,  fossem estas o mau  gênio,  a  irritabilidade,  grosseria,  loucura ou  doçura excessiva. Na presença e companhia de qualquer destas feiticeiras eu experimentava a 

rara sensação de estar em férias permanentes, só que isso era uma miragem, pois elas viviam em permanente estado de guerra, sendo o inimigo a idéia do “eu”. 

Na casa delas conheci a Vicente e Silvio Manuel, os outros dois  feiticeiros do 

grupo de Mariano Aureliano. Vicente era obviamente de origem espanhola, e  soube 

que seus pais eram oriundos da Catalunha. Era magro, de aspecto aristocrático, com 

mãos  e  pés  que  davam  uma  errônea  impressão  de  fragilidade. Andava  sempre  em 

alpargatas, e preferia blusas de pijamas  (pendiam abertas sobre  suas calças caqui) a 

camisas. 

Suas 

bochechas 

eram 

rosadas 

apesar 

de 

sua 

palidez. 

Ostentava 

uma 

barbinha 

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que  cuidava  com  esmero,  a  qual  lhe  conferia  um  toque  de  distinção  a  seu  porte 

abstraído. Não  só  parecia,  como  era  de  fato  um  erudito;  os  livros  no  quarto  que  eu 

ocupava eram seus, ou melhor, era ele quem os colecionava, lia e cuidava. O atraente de  sua  erudição  (sabia  de  tudo)  era  que  se  portava  como  se  fosse  um  perpétuo 

aprendiz. Eu

 tinha

 a certeza

 de

 que

 não

 era

 assim,

 pois

 era

 óbvio

 que

 sabia

 mais

 que

 os

 

outros,  e  seu  espírito  generoso  o  levava  a  compartilhar  seus  conhecimentos  com 

magnífica naturalidade e humildade,  já que  jamais envergonhava a terceiros por saber menos que ele. 

Silvio  Manuel  era  de média  estatura,  corpulento,  sem  pelos  e  moreno.  Um 

índio sinistro e misterioso, perfeito exemplo da imagem que eu me havia formado do 

que deveria ser um bruxo. Sua aparente taciturnidade me assustava, e suas  lacônicas respostas  revelavam  o  que  eu  suspeitava  ser  uma  natureza  violenta.  Somente  ao 

conhecê‐lo melhor compreendi o muito que gozava cultivando essa  imagem. Acabou 

se mostrando ser o mais aberto e, para mim, o mais encantador de todos os feiticeiros. 

As intrigas

 e os

 segredos

 eram

 sua

 paixão,

 fossem

 ou

 não

 autênticos,

 e era

 a maneira

 

em que os contava o que, para mim e para todos, não tinha preço. Além disso, possuía um inextinguível repertório de piadas, a maioria delas pesadas, sujas. Era o único que 

se divertia vendo TV, e portanto sempre estava em dia com as notícias do mundo, as quais  transmitia  aos  outros,  grosseiramente  exageradas  e  temperadas  com  uma 

grande dose de malícia. Silvio Manuel era um excelente bailarino, e era legendária sua habilidade e seus 

conhecimentos  das  várias  danças  sagradas  indígenas.  Se  movia  com  extático 

abandono, e com frequência me pedia que dançasse com ele. Fosse a dança um  joropo 

venezuelano, uma cumbia, um samba, um tango, o twist, rock and roll ou um bolero 

dos que

 se

 dançam

 de

 rosto

 colado,

 conhecia

 a todas.

 Também  interagi  com  John,  o  índio  que  me  apresentou  o  nagual  Mariano 

Aureliano em Tucson, Arizona. Seu aspecto rotundo,  inalterável e  jovial não era outra coisa que uma  fachada, pois era o menos abordável dos  feiticeiros. Conduzindo  sua 

camionete se encarregava dos recados de todos, e também reparava o que precisava ser consertado dentro e ao redor da casa. 

Se  me  mantinha  em  silêncio,  não  o  incomodando  com  perguntas  e 

comentários,  John  me  permitia  acompanhá‐lo  em  suas  viagens,  e  me  ensinava  a 

consertar  coisas: banheiros,  torneiras e máquinas  de  lavar  roupas, e  também  como 

reparar  uma  placa,  comutadores  elétricos,  e  lubrificar  e  mudar  as  velas  de  meu 

automóvel. Ensinada

 por

 ele,

 o uso

 de

 martelos,

 chaves

‐de

‐fenda

 e serras

 se

 converteu

 em tarefa fácil para mim. A única coisa em que não me ajudaram foi em responder às minhas perguntas e 

averiguações acerca de seu mundo, e quando  intentava comprometê‐los se referiam 

ao nagual Isidoro Baltazar. Sua recusa usual era: “Ele é o novo nagual, e é missão dele 

lidar com você. Nós somos meramente seus tios e tias”. Inicialmente o nagual Isidoro Baltazar representava para mim algo mais que um 

mistério.  Não  tinha  bem  claro  onde  residia,  pois  indiferente  a  horários  e  rotinas, aparecia e desaparecia do estúdio a toda hora. O dia e a noite  lhe eram  indiferentes. Dormia  quando  estava  cansado,  quase  nunca,  e  comia  quando  tinha  fome,  quase 

sempre. 

Em 

meio 

às 

suas 

frenéticas 

idas 

vindas 

trabalhava 

com 

uma 

concentração 

na 

verdade  assombrosa,  sendo  sua  capacidade  para  esticar  ou  comprimir  o  tempo 

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  145

incompreensível para mim. Tinha a certeza de  ter passado horas, e até dias  inteiros com ele, quando na realidade poderiam ter sido só momentos, furtados aqui e ali, seja lá durante o dia ou a noite, ou a outras de suas desconhecidas atividades. 

Sempre me considerei uma pessoa ativa, cheia de energia, mas descobri que 

me era impossível manter‐me a par de seu ritmo. Vivia em permanente movimento — 

ou assim

 parecia

 —,

 ágil

 e ativo,

 sempre

 pronto

 para

 encarar

 algum

 projeto.

 Seu

 vigor

 

era permanente e francamente incrível. Muito tempo depois cheguei a compreender que a fonte da inesgotável energia 

de  Isidoro  Baltazar  residia  em  sua  falta  de  preocupação  por  si  mesmo,  e  foi  seu 

permanente apoio, suas imperceptíveis e por sua vez hábeis maquinações, as que me 

mantiveram  na  senda  correta.  Residia  nele  uma  alegria,  um  gozo  em  sua  sutil  e 

contudo poderosa  influência, que me  levou a mudar sem que eu notasse que estava sendo conduzida por um novo caminho, um caminho em que  já não valiam os  jogos, os pretextos ou o uso de minhas argúcias femininas para conseguir meus propósitos. 

O  que  tornou  tão  urgente  sua  guia  e  conselhos  era  o  fato  de  que  não  o 

abrigavam motivos

 ulteriores.

 Não

 era

 possessivo,

 e sua

 diretiva

 não

 se

 via

 adulterada

 

por promessas ou atos de sentimentalismo. Não me empurrou em nenhuma direção 

precisa, ou seja, não me aconselhou a respeito do rumo a se tomar ou aos  livros que 

devia ler. Nisso tive caminho livre. Somente impôs uma condição: eu devia trabalhar exclusivamente em favor do 

edificante  e  agradável  processo  de  pensamento.  Uma  proposta  estremecedora!  Eu 

nunca havia entrevisto o pensar nesses ou em outros termos, e apesar de que não me 

desagradava  estudar,   jamais  havia  considerado  as  tarefas  escolares  como  algo 

prazeroso,  e  sim  como  algo  que  eu  era  obrigada  a  fazer,  no  geral  às  pressas  e 

empregando nele um mínimo de esforço. 

Não pude

 evitar

 o estar

 de

 acordo

 com

 o que

 Florinda

 e seus

 companheiros,

 tão sem delicadeza, me haviam dito na ocasião de nosso primeiro encontro: que eu 

havia  ido  ao  colégio  não  para  aprender, e  sim para  divertir‐me,  e o  fato de  ter‐me 

distinguido  obedecia  mais  a  uma  questão  de  sorte  e  loquacidade  do  que  por  ter estudado.  Eu  possuía  uma memória  bastante  boa,  sabia  falar,  e  sabia  convencer  a 

terceiros. Uma  vez  superada  a  vergonha  inicial  de  ver‐me  forçada  a  aceitar  e  admitir 

minhas limitações intelectuais, e que só sabia pensar de maneira superficial, me senti aliviada, pronta para colocar‐me sob a tutela dos feiticeiros e seguir o plano de estudos de  Isidoro Baltazar. Me desiludiu descobrir que tal plano não existia, e que sua única 

insistência era

 que

 eu

 deixasse

 de

 estudar

 e ler

 ao

 ar

 livre,

 como

 era

 meu

 costume.

 Isidoro  Baltazar  sustentava  que  o  processo  de  pensar  era  um  rito  privado,  quase 

secreto,  que  não  podia  realizar‐se  em  público.  Comparou  esse  processo  ao  da 

levedura, que só fermenta dentro de um recinto fechado. “O melhor  lugar  para  compreender  algo  é  naturalmente  a  cama”, me  disse 

certa vez. Se estirou na sua, reclinou a cabeça contra várias almofadas, e cruzou sua 

perna direita  sobre a esquerda, descansando o  tornozelo  sobre o  joelho elevado de 

sua perna esquerda. Não me impressionou essa absurda posição para a leitura, mas a 

pratiquei  sempre  que  estava  só.  Me  fazia  cair  num  profundo  sono,  e  dada  minha sensibilidade e até minhas tendências à  insônia, gozava mais com o sono que com o 

conhecimento. 

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  146

Às vezes, no entanto, sentia como se umas mãos se enroscassem ao redor de 

minha  cabeça, pressionando  suavemente minhas  têmporas.  Então  automaticamente olhava  a  página  aberta  ainda  antes  de  ter  consciência  do  que  estava  fazendo,  e 

captava  parágrafos  inteiros  do  papel,  cujas  palavras  bailavam  ante meus  olhos  até 

fazer  que  conjuntos  de  conhecimento  explodissem  dentro  de  meu  cérebro 

semelhantes a revelações.

 

Ansiosa por desenterrar esta nova possibilidade que  se  abria diante de mim, insisti nela como se me impulsionasse um professor desapiedado, e houve momentos em que este esforço me esgotou  tanto  física como mentalmente. Nesses momentos perguntava  a  Isidoro  Baltazar  acerca  do  conhecimento  intuitivo,  esse  brilho  de 

percepção  interior  e  de  compreensão  que  se  supõe  cultivam  os  feiticeiros  com 

preferência a todos os demais. Nesses momentos costumava dizer‐me que conhecer algo somente de maneira 

intuitiva não  tem valor algum. Essas centelhas de percepção  interna, que comparava com visões de fenômenos inexplicáveis, precisam ser transformadas em pensamentos 

coerentes. Tanto

 um

 como

 outro

 se

 desfazem

 tão

 rápido

 como

 surgem,

 e se

 não

 são

 

reforçados  continuamente  sobrevêm  à  dúvida  e  o  esquecimento,  pois  a  mente  é 

condicionada para ser prática e aceitar unicamente o verificável e factível. Explicou que os feiticeiros são homens de conhecimento antes que homens de 

razão,  e  como  tal  estão  adiantados  em  relação  aos  intelectuais  do  Ocidente,  que 

assumem  que  a  realidade  (frequentemente  equiparada  com  a  verdade)  se  conhece através  da  razão.  Um  feiticeiro  mantém  que  a  única  coisa  que  se  pode  conhecer mediante a razão são nossos processos de pensamento, mas que é só mediante o ato 

de  compreender  nosso  ser  total,  em  seu  nível  mais  sofisticado  e  intrincado,  que 

poderemos apagar os limites com os quais a razão define a realidade. 

Isidoro Baltazar

 me

 explicou

 que

 os

 feiticeiros

 cultivam

 a totalidade

 de

 seu

 ser,

 ou seja, que não necessariamente  fazem uma distinção entre os aspectos racionais e 

intuitivos  do  homem.  Utilizam  ambos  para  chegar  ao  reino  da  consciência,  que 

chamam de “conhecimento silencioso”, o qual existe mais além da  linguagem e mais além do pensamento. 

Uma e outra vez, Isidoro Baltazar ressaltou que para que alguém possa silenciar seu  lado  racional, primeiro deve  compreender os processos do pensamento em  seu 

nível  mais  sofisticado  e  complexo.  Acreditava  que  a  filosofia,  começando  com  o 

pensamento  clássico  grego,  forneceu  a  melhor  maneira  de  iluminar  este  processo. Nunca se cansava de repetir que, seja como eruditos ou como leigos, somos membros 

e herdeiros

 da

 tradição

 cultural

 do

 Ocidente,

 significando

 que,

 independente

 de

 nosso

 nível de educação e sofisticação, somos prisioneiros dessa tradição e de sua maneira de interpretar a realidade. 

Isidoro  Baltazar  sustentava  que  somente  de  maneira  superficial  estamos dispostos  a  aceitar  que  aquilo  que  chamamos  de  realidade  é  algo  culturalmente determinado,  e o  que  precisamos  é  aceitar,  ao  nível mais  profundo  possível,  que  a 

cultura  é  o  produto  de  um  processo  longo,  cooperativo,  altamente  seletivo  e 

desenvolvido, e por último, mas para ele não menos importante, altamente coercitivo, que  culmina  num  acordo  que  nos  desvia  e  nos  afasta  de  outras  possibilidades. Os feiticeiros procuram, de forma ativa, desmascarar o fato de que a realidade é ditada e 

mantida 

por 

nossa 

razão: 

que 

as 

idéias 

os 

pensamentos 

surgidos 

da 

razão 

se 

convertem  em  regimes  de  conhecimento  que  ordenam  a  forma  como  vemos  e 

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atuamos  no  mundo;  e  que  todos  estamos  sujeitos  à  uma  incrível  pressão  para 

assegurar que certas ideologias nos sejam aceitáveis. Ressaltou  que  os  feiticeiros  estão  interessados  em  perceber  o  mundo  de 

maneira diferente ao culturalmente definido, e o culturalmente definido é que nossa experiência  pessoal,  mais  um  acordo  social  compartilhado  acerca  do  que  nossos 

sentidos são

 capazes

 de

 perceber,

 determinam

 o que

 percebemos.

 Qualquer

 coisa

 fora

 

deste  reino  perceptual,  sensorialmente  convencionado,  é  automaticamente encapsulado e posto de lado pela mente racional, e desta maneira nunca se danifica o 

frágil manto das presunções humanas. Os  feiticeiros  ensinam  que  a  percepção  ocorre  em  um  lugar  fora  do  reino 

sensorial; sabem que existe algo mais vasto que o que nossos sentidos podem captar. Dizem que a percepção tem lugar em um ponto fora de nosso corpo, fora dos sentidos, mas não é suficiente acreditar meramente nesta premissa. Não é apenas questão de 

ler  acerca  disso,  ou  escutá‐lo  da  boca  de  terceiros.  Para  transformá‐lo  em  algo 

corpóreo, a pessoa precisa tê‐lo experimentado. 

Isidoro Baltazar

 disse

 que

 os

 feiticeiros

 lutam

 ativamente

 durante

 todas

 suas

 

vidas  para  quebrar  esse  débil  manto  das  presunções  humanas.  Contudo,  não 

mergulham cegamente na escuridão. Estão preparados; sabem que quando se lançam 

ao  desconhecido  necessitam  dispor  de  uma  bagagem  racional  bem  desenvolvida. Somente  então  poderão  explicar  e  dar  sentido  ao  que  trouxerem  de  volta  de  suas viagens ao ignoto. 

Acrescentou  que  eu  não  devia  entender  a  feitiçaria  através  da  leitura  dos filósofos,  e  sim  compreender  que  tanto  a  filosofia  como  a  feitiçaria  são  formas altamente sofisticadas de conhecimento abstrato. Tanto para o feiticeiro como para o 

filósofo a verdade de nosso ser‐no‐mundo não permanece impensada. Não obstante, o 

feiticeiro vai

 um

 passo

 além:

 atua

 à base

 de

 seus

 achados

 que

  já

 estão,

 por

 definição,

 fora de nossas possibilidades culturalmente aceitadas. Isidoro Baltazar acreditava que os  filósofos são  feiticeiros  intelectuais. Apesar 

disso,  suas  buscas  e  ensaios  ficam  sempre  em  empenhos  mentais.  Os  filósofos somente  podem  atuar  no  mundo  que  tão  bem  entendem  e  explicam  da  maneira cultural  já  concordada.  Eles  se  somam  a  um  já  existente  corpo  de  conhecimento. Interpretam  e  reinterpretam  textos  filosóficos.  Novos  pensamentos  e  idéias resultantes  deste  intenso  estudo  não  os  mudam  exceto,  talvez,  num  sentido 

psicológico. Podem chegar a converter‐se em pessoas mais compreensivas e boas, ou 

talvez  em  seu  oposto. No  entanto,  nada  do  que  façam  filosoficamente mudará  sua 

percepção sensorial

 do

 mundo,

 pois

 os

 filósofos

 trabalham

 de

 dentro

 da

 ordem

 social,

 à qual apóiam, ainda que  intelectualmente possam não estar de acordo com ela. Os filósofos são feiticeiros frustrados. 

Os  feiticeiros  também  constroem  sobre  um   já  existente  conjunto  de 

conhecimento.  Contudo,  não  o  fazem  aceitando  o  já  provado  e  estabelecido  por outros  feiticeiros. Devem  provar  de  novo  a  si mesmos  que  aquilo  que  já  se  dá  por aceitado na  verdade existe, e  se  submete  à percepção. Para  conseguir  cumprir esta 

tarefa monumental,  precisam  de  uma  extraordinária  capacidade  de  energia,  a  qual obtêm apartando‐se da ordem social sem retirar‐se do mundo. Os feiticeiros rompem 

a convenção que tem definido a realidade sem destruir‐se no processo de fazê‐lo. 

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CAPÍTULO QUINZE 

A incerteza se apoderou de mim pouco antes de cruzar a fronteira em Mexicali. Minha  justificativa  para  ir  ao  México  com  Isidoro  Baltazar,  que  a  princípio  se  me 

pareceu brilhante, agora só parecia uma pálida desculpa para  forçá‐lo a  levar‐me.  Já 

abrigava dúvidas

 sobre

 se

 poderia

 ler

 teorias

 sociológicas

 na

 casa

 das

 feiticeiras,

 tal

 

como disse que faria. Sabia que lá me dedicaria a fazer exatamente o mesmo que em 

todas  as  ocasiões  anteriores:  dormir muito,  ensonhar  ensonhos  estranhos,  e  tentar desesperadamente decifrar o que as pessoas desse mundo pretendiam que eu fizesse. 

—Algum remorso? — perguntou Isidoro Baltazar, surpreendendo e fazendo‐me 

saltar. Olhava‐me de  soslaio, e provavelmente havia me estado observando por um 

longo período. —Mas é claro que não — respondi de maneira apressada, na dúvida de se ele 

se referia a meu estado geral ou a meu silêncio. Murmurei algumas tolices acerca do 

calor, para depois dedicar‐me a olhar pela  janela. 

Não voltei

 a abrir

 a boca,

 principalmente

 porque

 sentia

 medo

 e me

 encontrava

 

triste,  e  porque  a  ansiedade me  eriçava  a  pele  como  se  um  punhado  de  formigas estivesse caminhando em mim. Isidoro Baltazar, por sua parte, se encontrava de muito 

bom humor; cantou e contou piadas bobas,  recitou poemas em  inglês, castelhano e 

português, mas  nem  isso  nem  seus  suculentos  comentários  acerca  de  pessoas  que 

ambos  conhecíamos na universidade  conseguiram dissipar minha melancolia. O  fato 

de não constituir eu um público apreciativo não influiu nele, e nem sequer meus gritos exigindo que me deixasse em paz conseguiram aplacar sua euforia. 

—Se alguém estivesse nos observando,  juraria que estamos casados há anos — 

comentou  em  meio  às  suas  gargalhadas,  enquanto  eu  pensava  que  se  fossem 

feiticeiros que

 nos

 observavam,

 diriam

 que

 algo

 não

 andava

 bem.

 Saberiam

 que

 Isidoro  Baltazar  e  eu  não  estávamos  em  plano  de  igualdade.  Eu  sou  precisa  e 

categórica a respeito de meus atos e decisões, enquanto que para ele atos e decisões são coisas fluidas, seja qual for seu resultado, e sua finalidade está medida pela plena responsabilidade que assume por eles, quer sejam triviais ou significativos. 

Viajamos  rumo  ao  sul  e  não  nos  distraímos  em  inúteis  meandros  como 

costumávamos  fazer  para  chegar  à  casa  das  feiticeiras. Quando  deixamos Guaymas para trás — nunca havíamos estado tão ao sul — perguntei‐lhe para onde me levava. 

Respondeu como ao acaso. —Estamos seguindo o caminho  longo. Não se preocupe. — A mesma resposta 

me deu

 quando

 repeti

 minha

 pergunta

 enquanto

 comíamos

 em

 Navojoa.

 Deixamos para  trás Navojoa e seguimos em direção ao sul, rumo a Mazatlán. Minha preocupação era crescente. Cerca de meia‐noite  Isidoro Baltazar abandonou a 

estrada  internacional para enfiar‐se num estreito  caminho de  terra, cujos buracos e 

pedras  fizeram  que  a  perua  se  bamboleasse  e  rangesse  sua  carroceria.  Às  nossas costas  a  estrada  principal,  visível  uns  instantes  graças  ao  débil  reflexo  das  luzes traseiras,  desapareceu  tragada  pelos  arbustos  que  a  flanqueavam.  Depois  de  uma longuíssima  e  incômoda  viagem  fizemos  uma  parada  repentina,  e  Isidoro  Baltazar apagou os faróis. 

—Onde estamos? — perguntei, olhando em torno sem distinguir nada. 

Logo 

meus 

olhos 

se 

habituaram 

à 

escuridão, 

vi 

pequenos 

pontos 

brancos 

em 

frente  a  nós  e  a  curta  distância.  Pareciam  pequenas  estrelas  caídas  do  céu.  A 

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exuberante  fragrância das matas de  jasmim, que  trepavam  ao  alto e  caíam  sobre  a 

ramada, se havia apagado a tal ponto de minha mente, que quando a reconheci senti como se  tivesse  inalado esse ar perfumado só em um sonho anterior. Comecei a rir, pois tudo me brindava uma alegria quase infantil. Estávamos na casa de Esperanza. “É 

aqui onde vim pela primeira vez com Delia Flores”, disse a mim mesma, e de imediato 

busquei a mão

 de

 Isidoro

 Baltazar

 a quem

 perguntei,

 dominada

 pela

 ansiedade:

 

—Mas, como pode ser possível…? Sua  resposta  revelava um estado de confusão e agitação, e  sua mão, sempre 

cálida, estava fria. —O que? —Esta casa estava nos arredores de Ciudad Obregón, há mais de cem milhas ao 

norte — gritei. —Eu mesma conduzi meu carro até aqui, e nunca abandonei o caminho 

asfaltado. — Olhei em torno e recordei que também havia viajado desde lá até Tucson, e  jamais havia estado perto de Navojoa em minha vida. 

Isidoro Baltazar guardou silêncio durante uns minutos: parecia estar buscando 

uma resposta.

 Eu

 sabia

 que

 nenhuma

 me

 seria

 satisfatória.

 Encolhendo

‐se

 de

 ombros

 

virou‐se  para mim,  e  com  uma  energia  semelhante  à  do  nagual Mariano Aureliano 

opinou  que  sem  dúvida  alguma  eu  ensonhava  desperta  quando,  junto  com  Delia, deixamos Hermosillo rumo à casa da curandeira. 

—Sugiro que o deixe assim —  foi seu conselho. —Sei por experiência pessoal como pode chegar a confundir‐se a mente quando busca explicar o inexplicável. 

Eu estava a ponto de protestar quando ele me cortou, assinalando uma luz que 

se aproximava, e  sorriu  como  se  soubesse de antemão  a quem pertencia a enorme 

sombra que se aproximava bamboleando‐se. —É o cuidador — murmurei surpreendida, e quando o tive ante mim lhe rodeei 

o pescoço

 com

 os

 braços

 e o beijei

 em

 ambas

 as

 bochechas.

 —Não

 esperava

 encontrar

 você aqui. Sorriu envergonhado, sem responder. Abraçou a  Isidoro Baltazar, palmeando‐

lhe  repetidas  vezes  as  costas  como  fazem  os  homens  latinos  ao  saudarem‐se, murmurando  algo que  apesar de meus esforços não  consegui entender. Depois nos conduziu até a casa. 

Encontramos  a  imponente  porta  principal  fechada,  assim  como  as   janelas entreliçadas. Nenhuma  luz, nenhum som escapava das grossas paredes. Rodeamos a 

casa até alcançar o pátio traseiro, cercado por uma alta grade, e à porta que conduzia a  um  quarto  retangular,  o  mesmo  ao  qual  me  havia  levado  Delia  Flores,  tão 

espartanamente mobiliado

 como

 então:

 cama

 estreita,

 mesa

 e várias

 cadeiras.

 Tranquilizou‐me reconhecer suas quatro portas. O cuidador colocou a lamparina sobre a mesa e me convidou a tomar assento: 

virando‐se até  Isidoro Baltazar  lhe rodeou os ombros com seu braço e o conduziu ao 

escuro corredor. A repentina partida me aturdiu, mas antes que conseguisse me repor da surpresa o cuidador reapareceu, trazendo uma manta, uma almofada, uma lanterna e um pinico (urinol). 

—Prefiro usar o toalete — anunciei. Se encolheu de ombros e empurrou o pinico sob a cama. —Para  se precisar dele durante a noite — e  com esse olhar  travesso que eu 

bem 

conhecia, 

acrescentou 

que 

lá 

fora 

montava 

guarda 

cachorrão 

negro 

de 

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Esperanza. —Ele não gosta que gente desconhecida ande por aí  de noite — e como por combinação se ouviu um forte latido. 

—Não sou uma desconhecida, conheço o cão — retruquei, ao que o cuidador por sua vez respondeu com outra pergunta. 

—E o cachorro, conhece você? 

Lancei‐lhe

 um

 de

 meus

 piores

 olhares,

 e o cuidador,

 emitindo

 um

 suspiro,

 

recolheu a lamparina e se dirigiu para a porta. —Não leve a luz — ordenei, bloqueando sua passagem. Tentei sorrir, mas meus 

lábios  ficaram grudados em meus dentes. Finalmente pude perguntar: —Onde estão 

todos? Onde estão Esperanza e Florinda? —Neste momento sou o único que se encontra aqui. —Onde está  Isidoro Baltazar? —  insisti alarmadíssima. —Prometeu  levar‐me à 

casa das feiticeiras. Tenho que trabalhar em um ensaio — e confundida quanto a meus pensamentos  e minhas  palavras,  próxima  das  lágrimas,  revelei  a  ele minhas  razões para acompanhar a Isidoro Baltazar em sua viagem ao México, e o importante que era 

para mim

 terminar

 meu

 trabalho.

 

O cuidador palmeou minhas costas e fez ruídos semelhantes aos usados para se 

acalmar a um bebê. —Isidoro Baltazar está dormindo. Você sabe como é: assim que sua cabeça toca 

o travesseiro ele está roncando — e completou —, deixarei minha porta aberta para se 

precisar  de  mim,  para  se  tiver  pesadelos  ou  algo  parecido.  Chame‐me  e  virei  de 

imediato. — e antes que eu pudesse dizer‐lhe que desde minha chegada à Sonora os pesadelos eram coisas do passado, a escuridão do corredor o engoliu. 

A  lamparina  de  azeite  sobre  a  mesa  começou  a  falhar  e  logo  se  apagou, deixando o quarto às escuras. Deitei‐me  totalmente vestida, e  fechei os olhos. Tudo 

ficou em

 silêncio,

 salvo

 um

 respirar

 suave

 e entrecortado

 que

 vinha

 de

 muito

 longe,

 e devido a esse ruído e à dureza de minha cama, logo abandonei todo intento de dormir. 

Com  a  lanterna  na  mão  me  arrastei  em  silêncio  pelo  corredor,  esperando 

encontrar o cuidador ou  Isidoro Baltazar. Com  toques  suaves bati em cada uma das portas.  Ninguém  respondeu.  Silêncio  absoluto  em  cada  um  dos  aposentos.  Essa 

mesma  quietude,  quase  opressiva,  dominava  o  resto  da  casa,  e  até  cessaram  os sussurros e gorjeios do exterior. 

Tal  como  suspeitava,  tinha  ficado  outra  vez  sozinha,  mas  em  lugar  de 

preocupar‐me  por  isso,  decidi  inspecionar  os  diferentes  quartos.  Eram  oito  os dormitórios, do mesmo tamanho e disposição: retangulares, de médio a pequenos, e 

mobiliados somente

 com

 uma

 cama

 e uma

 mesa

 de

 noite.

 As

 paredes

 e as

 duas

  janelas

 das  quais  cada  quarto  dispunha  estavam  pintadas  de  branco,  e  as  lajotas  do  piso 

ostentavam um intrincado desenho. Abri as portas corrediças dos painéis empurrando 

com suavidade sua parte  inferior esquerda com o pé, sabendo, sabe‐se  lá como, que 

um toque ou um suave chute nesse lugar liberava um mecanismo que abria as portas. Movi  umas  cobertas  empilhadas  sobre  o  piso  de  um  deles,  e  descobri  uma 

pequena porta  secreta.  Liberei  a  trava que  simulava  ser um  interruptor de  luz e,  já 

mais  além  de  toda  possibilidade  de  surpresa,  aceitei  a  existência  da  porta  secreta, conhecimento  logicamente  inadmissível  à minha  consciência. Abri  a  pequena  porta, me  deslizei  através  da  estreita  abertura,  e  me  encontrei  no  painel  do  aposento 

contíguo 

e, 

sem 

maravilhar‐

me 

por 

isso, 

descobri 

que 

me 

escorrendo 

por 

esses 

corredores secretos poderia ir de um a outro dos oito cômodos. 

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Praguejei quando a lanterna se apagou, e na esperança de reavivar as baterias, as  tirei e  logo as  recoloquei. Trabalho  inútil: estavam esgotadas. A escuridão desses quartos  era  tão  intensa  que  não  conseguia  ver  minhas  próprias  mãos,  e  então, tateando, tratei de voltar sobre meus passos, em busca do corredor. O esforço foi tal que  acabei  tremendo  e ofegando.  Recostada  contra  uma  parede,  permaneci  ali  um 

longo período,

 tratando

 de

 decidir

 a direção

 em

 que

 ficava

 meu

 quarto.

 

De longe chegavam fragmentos de vozes, e ao não poder precisar se provinham 

do  interior da casa ou do exterior, segui o som até chegar ao pátio, que eu  lembrava vivamente  como  algo  verde  e  quase  tropical,  cheio  de  brotos  e  folhagem  densa,  e 

perfumado pela fragrância de  jasmins e madressilvas. Apenas  havia  ensaiado  uns  passos  quando  vi  a  enorme  silhueta  de  um 

cachorro, recortada contra a parede. Depois vieram um grunhido e a luz queimante de 

seus olhos, para fazer que um calafrio percorresse minha coluna vertebral. Em lugar de 

sucumbir ao temor, ou talvez por causa dele, senti que acontecia algo muito estranho. Era como se sempre tivesse estado dobrada como um leque  japonês ou uma figurinha 

de cartolina,

 e de

 repente

 me

 abrisse.

 A

 sensação

 física

 era

 quase

 dolorosa.

 

O cachorro me observou, confuso. Começou a chorar como um cachorro  faz, moveu as orelhas e  se agachou no piso. Eu,  tensa em meu  lugar. Não  sentia medo; simplesmente não podia mover‐me. Depois, como se fosse o mais natural do mundo, voltei a me  juntar, dei as costas ao cão e me retirei. Desta vez não tive dificuldade em 

achar meu quarto. Despertei  com  uma  dor  de  cabeça  e  a  sensação  de  não  ter  dormido  em 

absoluto, sensação que como insone conhecia muito bem. Sentia os músculos de meu 

corpo como desconectados: soltei um gemido, e senti abrir‐se a porta do quarto e meu 

rosto ser inundado pela luz. Tentei inverter minha posição sem cair da cama. 

—Bom dia!

 —

 exclamou

 Esperanza,

 ingressando

 com

 um

 frufru

 de

 saias

 e anáguas  —  ou  melhor  dizendo,  boa  tarde  —  se  corrigiu,  assinalando  o  sol  visível 

através da porta aberta. Transbordava de alegria, e uma força deliciosa dominava sua 

voz ao dizer‐me que  foi ela quem resgatou meus  livros e papéis da perua antes que 

Isidoro Baltazar partisse com o velho nagual. Levantei‐me abruptamente, desperta de tudo. —Por que não veio saudar‐me o nagual Mariano Aureliano, e por que  Isidoro 

Baltazar  não  me  avisou  de  sua  partida?  —  e  acrescentei  que  agora  não  poderia terminar meu trabalho e ingressar num curso superior. 

Esperanza me observou com uma expressão de curiosidade, e comentou que se 

escrever meu

 ensaio

 era

 um

 ato

 tão

 mercenário,

 nunca

 chegaria

 a completá

‐lo,

 e antes

 que eu pudesse dizer‐lhe que pessoalmente não me interessava se nunca completasse meus estudos, acrescentou: 

—Você não escreve esse  trabalho para  ingressar nesse  curso  superior, e  sim 

porque te encanta fazê‐lo, porque não há nada que neste momento preferiria fazer. —Há muitas coisas que preferiria fazer. —Como o que? — desafiou‐me. Pensei, mas não pude rebater nada específico. Precisei admitir, se bem que só a 

mim mesma, que nunca um trabalho deste tipo me havia brindado tanto prazer. Uma vez na vida havia começado com as leituras e as investigações a começos do ano letivo, 

em 

lugar 

de 

esperar, 

como 

costumava 

fazer, 

que 

faltassem 

apenas 

uns 

dias 

para 

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entrega do trabalho. Mas foi só saber que representava minha passagem ao curso de 

pós‐graduação, e se arruinou o prazer. Esperanza,  como  sempre  confidente  de  meus  pensamentos,  opinou  que  eu 

deveria esquecer‐me do curso de pós‐graduação e pensar somente em fazer um bom 

trabalho. 

—Uma vez

 que

 fizer

 parte

 do

 mundo

 dos

 bruxos

 e comece

 a entender

 a 

natureza dos ensonhos,  já estará a caminho de entender o que é a feitiçaria. Além do 

mais, esse entendimento vai te liberar. Olhei‐a, intrigada. Não conseguia entender o que queria me dizer. —Isso  te  libera  de  desejar  algo —  e  Esperanza  enunciou  a  frase  com muito 

cuidado,  como  se eu  fosse  surda. Depois  emendou: —Cobiça  é  seu  segundo nome, apesar de você não precisar nem desejar nada… — e sua voz se apagou ao dedicar‐se a 

pôr  ordem  em  meus  livros,  papéis  e  pilhas  de  anotações  sobre  a  mesa.  Parecia radiante quando se virou para mostrar‐me vários lápis. —Apontei‐os com uma lâmina 

de barbear — disse —, e o farei cada vez que se gastem as pontas. — Colocou os lápis 

 junto a um

 de

 meus

 cadernos,

 e depois

 abriu

 bem

 os

 braços

 como

 para

 abarcar

 a 

totalidade  do  quarto  e  disse:  —Este  é  um  lugar  maravilhoso  para  trabalhar.  Aqui ninguém lhe incomodará. 

—Estou certa disso — concordei, e ao observar que estava a ponto de retirar‐se, perguntei‐lhe onde havia dormido Isidoro Baltazar na noite anterior. 

—Em sua cama de armar. Em onde mais? — respondeu, e entre risos recolheu 

suas saias e anáguas e saiu ao pátio. Eu a segui com o olhar até vê‐la desaparecer atrás do arco de pedra. Fiquei com os olhos doloridos por causa da intensa luz. 

Momentos depois houve uma forte batida sobre uma das portas que se abriam 

ao corredor. 

—Está decente?

 —

 perguntou

 o cuidador,

 empurrando

 a porta

 antes

 que

 eu

 tivesse oportunidade de dizer que estava. —Alimento para seu cérebro — anunciou, colocando  uma  bandeja  de bambu  sobre  a mesa. Me  serviu uma  tigela de  caldo, e 

depois recomendou comer a niachaca sonorense,  feita por ele. Essa mistura de ovos mexidos, carne picada, cebola e chilis calientes era deliciosa. 

—Quando terminar eu a levarei ao cinema. —Quando  terminar  de  comer? —  perguntei  excitada, metendo  uma  tortilha 

inteira em minha boca. —Quando terminar com seu trabalho — esclareceu. Ao terminar a comida o cuidador opinou que eu deveria  fazer amizade com o 

cachorro. —Se não o fizer, não poderá sair da casa. Nem sequer para ir ao toalete. 

Estava a ponto de  lhe confessar que  já me havia encontrado com o cão, e que 

havia  visitado o  toalete na noite anterior, quando um  ligeiro gesto de  sua  testa me 

convidou a acompanhá‐lo ao pátio. O enorme cachorro estava deitado à sombra de um 

alto cercado de varas. O cuidador foi até ele para ajoelhar‐se a seu lado, coçá‐lo atrás das orelhas e lhe sussurrar algo. 

Abruptamente  o  cuidador  ficou  de  pé.  Surpreendida,  eu  dei  um  passo  e  cai sentada. O cachorro soltou um gemido, e o cuidador, com um salto incrível, passou ao 

outro lado do cercado. Eu me levantei, disposta a correr, mas o cão esticou suas patas 

dianteiras 

as 

colocou 

sobre 

meus 

pés, 

fazendo‐

me 

sentir 

pressão 

de 

suas 

garras. 

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Olhou‐me e abriu a boca num monumental bocejo, revelando suas gengivas negras e 

língua de igual cor. —Isso é sinal de um  pedigree muito bom. Me surpreendeu essa voz às minhas costas, e me virei para ela. Ao fazê‐lo perdi 

de novo o equilíbrio e cai sobre o animal. Permaneci quieta, sem animar‐me a tentar 

um movimento,

 e depois

 afastei

 minha

 cabeça.

 Os

 olhos

 cor

 de

 âmbar

 do

 cachorro

 

estavam fixos em mim, e mostrou seus dentes, mas não para grunhir, e sim para dar‐me um amistoso sorriso canino. 

—Agora são amigos — disse o cuidador, ajudando‐me a se levantar —, e é hora de que comece a trabalhar. 

Os três dias seguintes foram  inteiramente dominados pelo desejo de terminar com minha tarefa. Trabalhei  longas horas sem notar a passagem do tempo, mas não 

devido à concentração em meu trabalho, e sim ao fato de que o tempo parecia ter se 

transformado  em  uma  questão  de  espaço.  Comecei  a  considerar  o  tempo  como 

interlúdios entre minhas visões de Esperanza. 

Todos os

 dias,

 por

 volta

 do

 meio

‐dia,

 enquanto

 eu

 desjejuava

 o que

 ela

 me

 

havia deixado na cozinha, Esperanza fazia sua aparição. Sem ruído, parecia emergir do 

permanente  fumo  azulado  que  impregnava  a  cozinha,  e  invariavelmente  penteava meus  cabelos  com um  tosco pente de madeira,  sem pronunciar uma  só palavra. Eu 

tampouco. Eu a via de novo nas horas da tarde. Tão silenciosa como quando aparecia na 

cozinha, se materializava no pátio para sentar‐se em sua cadeira de balanço, sob um 

arco  de  pedra.  Durante  horas  sua  vista  se  perdia  no  espaço,  como  se  seus  olhos transcendessem os limites da visão humana, mas fora um movimento de cabeça ou um 

sorriso, nada se passava entre nós. No entanto me sentia protegida por seu silêncio. 

Se diria

 que

 o cachorro

 obedecia

 ordens

 do

 cuidador,

 pois

  jamais

 se

 separava

 de mim. Me seguia de dia e de noite, inclusive até ao toalete. Eu aguardava impaciente nossos passeios,  feitos ao cair da  tarde, quando ambos atravessávamos correndo os campos,  em  busca  de  uma  fileira  de  árvores  que  dividia  os  lotes  de  terreno.  Ali buscávamos  uma  sombra  e  permanecíamos  horas  olhando  o  vazio,  tal  qual  fazia 

Esperanza. Às vezes dava a  impressão de que com  só um esticar de mão se poderia tocar as montanhas distantes. Escutava o rumor da brisa entre as folhas, aguardando o 

momento em que a  luz amarela do sol poente convertia essas folhas em ouro, folhas que  logo se tornavam azuis e finalmente negras. Chegado este momento, o cão e eu 

corríamos de volta à casa para escapar da débil voz do vento, que  falava da  solidão 

destas terras

 áridas.

 Ao quarto dia despertei sobressaltada. Alguém gritava: —É hora de levantar‐se, preguiçosa — era a voz do cuidador. —Por que não entra? — perguntei. —Onde esteve todo este tempo? Não recebi resposta. Permaneci  sentada  na  cama,  envolta  numa  coberta,  demasiado  tensa  e 

adormecida  para  sair  ao  pátio  e  averiguar  por  que o  cuidador  se  escondia. Depois, quando me decidi a deixar a cama, encontrei o pátio vazio, e num esforço por afastar minha sonolência  joguei em mim balde atrás de balde de água fria na cabeça. 

Nesta manhã variou meu desjejum. Esperanza não apareceu, e quando acabei 

de 

me 

sentar 

para 

trabalhar, 

notei 

desaparecimento 

do 

cachorro. 

Encarei 

minha 

tarefa com ânimo escasso. Tinha pouca energia, e ainda menos desejo de trabalhar, e 

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o resultado  foi que permaneci horas sentada, contemplando as montanhas distantes através da porta aberta. 

O silêncio transparente da tarde era quebrado de tanto em tanto pelo cacarejar das galinhas, que siscavam a terra em busca de sementes, e pelo grito penetrante das cigarras vibrando na  clara  luz azul como  se ainda  fosse meio‐dia. Estava a ponto de 

dormir quando

 escutei

 um

 barulho.

 De

 imediato

 prestei

 atenção

 e vi

 o cuidador

 e o 

cachorro estendidos sobre uma esteira à sombra do cercado. Me chamou a atenção 

sua total quietude; davam a impressão de estar mortos. Preocupada e curiosa me aproximei na ponta dos pés. O cuidador se deu conta 

de minha presença antes que o cão. Abriu bem os olhos num gesto exagerado, e com 

um rápido movimento se levantou para sentar‐se com as pernas cruzadas e perguntar: —Sentiu minha falta? Pareceu‐me uma pergunta estranha, e ri nervosa, após admitir que sim. —Por que não entrou em meu quarto esta manhã? — emendei, e ao observar a 

falta de expressão em  seu  rosto,  insisti: —Por onde  tem estado nestes últimos  três 

dias? 

Em lugar de responder me fez uma nova pergunta, desta vez em tom áspero: —Como andam seus estudos? Foi tal minha surpresa que não soube o que responder. Não sabia se  lhe dizia 

que a marcha de meus estudos não era assunto de sua incumbência, ou confessar que 

me encontrava obstruída. —Não se  incomode em tratar de pensar numa resposta — disse. —Diga‐me a 

verdade. Admita que precisa de minha opinião de expert  sobre seu trabalho. Temendo  não  poder  dominar  minha  vontade  de  rir,  me  ajoelhei   junto  ao 

cachorro para acariciar sua cabeça. 

—E então?

 —

 exigiu.

 —Não

 vai

 admitir

 que

 sem

 mim

 está

 perdida?

 Indecisa  sobre  sua  saúde  mental,  decidi  que  era  melhor  agradá‐lo  que 

contradizê‐lo, e  admiti não  ter escrito uma  só  linha em  todo o dia. Disse‐lhe que o 

havia estado esperando, pois somente ele podia salvar‐me, e lhe assegurei que a ele, e 

não a meus professores, competia decidir minha sorte como aspirante a graduar‐se. Visivelmente satisfeito, pediu meu trabalho para “dar‐lhe uma olhada”. —Está em  inglês — adverti com toda a malícia. —Não poderá entendê‐lo — e 

engoli  meu  desejo  de  agregar  que,  ainda  estando  em  castelhano,  superaria  sua 

capacidade. Insistiu em  sua  solicitação e eu cumpri. Esparramou as  folhas em  torno dele, 

algumas sobre

 a esteira,

 outras

 sobre

 o chão

 empoeirado,

 e tirou

 do

 bolso

 de

 sua

 camisa uns óculos de armação de metal, e então os colocou. —É importante parecer educado — disse em voz baixa, dirigindo‐se ao cão, que 

levantou uma orelha e grunhiu como para manifestar seu acordo. Em seguida o cão 

mudou de  lugar e o cuidador me convidou com um gesto a sentar‐me entre ele e o 

animal. Parecia  uma  coruja,  austera  e  doutoral,  olhando  as  folhas  dispersas.  Emitiu 

sons de desaprovação, estalando com a língua, coçou a cabeça e embaralhou repetidas vezes as folhas, ao parecer em busca de certa ordem que parecia escapar‐lhe. 

Ao  fim de um bom período de estar sentada nessa postura, começaram a me 

doer 

os 

músculos 

de 

meu 

pescoço 

de 

meus 

ombros. 

Suspirei, 

impaciente, 

me 

reclinei contra o cercado, fechei os olhos, e apesar de minha crescente irritação, devo 

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ter dormido, pois me sobressaltou um suave porém insistente zumbido. Abri os olhos, e sentada ante mim descobri uma mulher alta e  linda, esplendidamente vestida, que 

me disse algo que não entendi. Aumentou o zumbido em meus ouvidos. A mulher se aproximou de mim, e em voz alta e clara perguntou: —Não vai me cumprimentar? 

—Nélida! —

 gritei.

 —Quando

 chegou?

 Estou

 tentando

 me

 desfazer

 de

 um

 

zumbido em meus ouvidos. Recolheu suas longas e bem torneadas pernas sob a saia e me abraçou. —Que bom lhe ver. Entretanto o cuidador franziu o cenho, e murmurou seus comentários: —Seus garranchos não só são difíceis de entender como além do que, ainda por 

cima, não têm muito sentido. Os olhos de Nélida pareciam incitar‐me a contradizê‐lo. Eu, ansiosa por escapar 

da intensidade de seu olhar, me remexia, incomodada, até que ela cutucou meu braço 

com firmeza. 

O cuidador

 começou

 a ler

 o conteúdo

 das

 páginas

 com

 uma

 lentidão

 

exasperante, e se bem o que dizia soava familiar, eu não captava se na verdade seguia 

o texto, pois me era impossível concentrar‐me. Me irritava sua maneira caprichosa de 

mutilar as frases, e as vezes até as palavras. —Em suma — sentenciou ao terminar a última página —, trata‐se de um mau 

trabalho. — Ordenou os papéis, formando com eles uma pilha, e se recostou contra o 

cercado, adotando a mesma posição que me ensinou  Isidoro Baltazar: a perna direita cruzada  sobre  a  outra,  com  o  tornozelo  apoiado  sobre  a  coxa  esquerda  e os  olhos fechados. 

Manteve silêncio por tão longo tempo que achei que havia dormido, e portanto 

me assustou

 quando,

 com

 voz

 lenta

 e moderada,

 começou

 a falar

 de

 antropologia,

 história e  filosofia. Seus pensamentos pareciam  formar‐se à medida que  falava, e as palavras  fluíam  de maneira  clara  e  precisa,  com  uma  simplicidade  fácil  de  seguir  e 

compreender. Escutei‐o com atenção, mas ao mesmo tempo não deixava de intrigar‐me o fato 

de que  soubesse  tanto acerca das  tendências  intelectuais de Ocidente. Que grau de 

educação possuía? Quem na verdade era ele? —Poderia repetir tudo de novo? — perguntei nem bem ele havia terminado. —

Gostaria de tomar algumas notas. —Tudo  o  que  disse  está  em  seus  papéis —  assegurou‐me.  —Enterrado  sob 

excessivas citações,

 anotações

 ao

 pé

 da

 página

 e idéias

 mal

 desenvolvidas.

 —

 Aproximou‐se  até  que  nossas  cabeças  quase  se  tocaram.  —Não  basta  citar  obras alheias para dar a seu trabalho a veracidade que lhe falta. 

—Me ajudaria a refazê‐lo? — perguntei desorientada. —Não, não posso fazer isso. Precisa fazê‐lo você mesma. —Mas é que não posso — objetei. —Você mesmo acaba de assinalar o mal que 

está meu trabalho que, acredite‐me, é o melhor que pude fazer. —Não é verdade! — contradisse‐me de maneira veemente, para depois olhar‐

me com uma expressão que misturava surpresa e ternura. —Não duvido de que seus professores aceitariam  seu  trabalho, uma vez que o  tenha passado a  limpo, mas eu 

não 

faria. 

Carece 

de 

originalidade. 

única 

coisa 

que 

faz 

é 

parafrasear 

que 

 já 

leu, 

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eu exijo que você dependa mais de suas próprias opiniões, ainda que contradigam o 

que se espera de você. —Trata‐se apenas de um  trabalho de composição — disse para defender‐me. 

—Sei que pode ser melhorado, só que  também preciso agradar a meus professores, independente de se estou ou não de acordo com o expressado. Preciso ser aceita no 

curso de

 pós

‐graduação,

 e isso,

 de

 certo

 modo,

 requer

 satisfazer

 a meus

 professores.

 

Em  contestação  recebi  uma  rajada  de  críticas,  advertências  e  sugestões  da 

parte do cuidador. —Se deseja receber forças do mundo dos feiticeiros  já não pode trabalhar com 

essas premissas. Em nosso mundo mágico os motivos ulteriores não são aceitáveis. Se 

quer  graduar‐se,  deve  se  comportar  como  um  guerreiro,  não  como  uma  mulher treinada  para  agradar,  pois  você,  ainda  quando  se  põe  bestialmente  desagradável, procura agradar. Agora, no que se refere a escrever,  já que não foi treinada para isso, quando o fizer, deverá adotar uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro. 

—O que quer dizer  com  isso de  a modalidade do guerreiro? Devo  lutar  com 

meus professores?

 

—Não  com  seus  professores,  e  sim  consigo  mesma,  a  cada  centímetro  do 

caminho, e precisa fazê‐lo com tal arte e inteligência que ninguém notará sua luta. Não estava muito  segura do que queria dizer com  tudo  isso, e  tampouco me 

interessava, de modo que antes que pudesse acrescentar algo perguntei‐lhe como era que sabia tanto acerca de antropologia, história e filosofia. Sorriu e sacudiu a cabeça. 

—Não se deu conta de como o fiz? — e logo passou a responder à sua própria pergunta.  —Apanhei  os  pensamentos  no  ar.  Estendi  minhas  fibras  energéticas  e 

pesquei esses pensamentos, tal como se pesca um peixe com uma vara, num  imenso 

oceano de pensamentos e idéias que há ali — e traçou um amplo gesto com os braços, 

como para

 captar

 o ar

 que

 o rodeava.

 —Para  apanhar pensamentos  Isidoro Baltazar me disse que  a pessoa precisa saber  quais  deles  podem  ser  úteis  —argumentei  —,  de  modo  que  você  deve  ter estudado história, filosofia e antropologia. 

—Talvez o fiz alguma vez — respondeu, não muito decidido, coçando a cabeça, perplexo. —Sim, devo de tê‐lo feito. 

—Tem que tê‐lo feito! — insisti, como se tivesse feito uma grande descoberta. Suspirando  de  maneira  audível,  o  cuidador  se  recostou  contra  o  cercado  e 

fechou os olhos. —Por que insiste em ter sempre a razão? — perguntou Nélida. 

Surpreendida, olhei

 boquiaberta

 como

 os

 cantos

 de

 seus

 lábios

 se

 curvavam

 num provocante e misterioso sorriso. Em seguida, com um gesto, me ordenou fechar a 

boca. Eu havia estado tão pendente dos comentários do cuidador a respeito de meu 

trabalho que a havia esquecido, apesar de tê‐la em frente a mim. Ou talvez não fosse 

assim.  Quem  sabe  não  estivera  ali,  e  a  idéia  de  que  podia  ter  se  ausentado  e 

regressado, sem que eu o percebesse, me provocou ansiedade. —Não deixe que  isso  te preocupe — consolou‐me Nélida, como se eu  tivesse 

exteriorizado  meu  pensamento.  —Nós  estamos  habituados  a  ir  e  vir  sem  que  as pessoas o notem. 

O  tom  de  sua  voz  teve  o  efeito  de  suavizar  a  contundência  da  revelação,  e 

olhando 

um 

logo 

ao 

outro, 

me 

perguntei 

se 

de 

fato 

seriam 

capazes 

de 

desaparecer 

diante de meus olhos sem que esse ato  fosse notado. Tratei de  segurá‐los para que 

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isso não acontecesse. Me estendi sobre a esteira, e esticando‐me em atitude gatuna, avancei meu pé até a roda do vestido de Nélida, que roçava o chão, e movi a mão em 

busca do casaco do cuidador, que deve ter sentido o puxão na manga, pois se levantou 

abruptamente e me olhou. Eu  fechei os olhos, mas continuei observando‐os através das  pálpebras  entreabertas.  Não  se  moveram.  Suas  posturas  sacerdotais  não 

revelavam fadiga,

 no

 entanto

 eu

 precisei

 lutar

 para

 manter

 os

 olhos

 abertos.

 

Uma brisa fresca, com fragrância de eucaliptos, começou a soprar; pedaços de 

nuvens coloridas sulcaram o céu, e o profundo e transparente azul se fez mais difuso, dissolvendo‐se de maneira tão lânguida que se tornou impossível distinguir entre céu e 

nuvem, entre dia e noite. Adormeci  com  o  pé  na  roda  do  vestido  de  Nélida  e  aferrada  ao  casaco  do 

cuidador, como  se minha vida dependesse disso, e quando alguém  tocou meu  rosto 

tive a impressão de que havia transcorrido apenas uns momentos. —Florinda? — perguntei, sabendo instintivamente que a mulher sentada a meu 

lado  era  outra.  Murmurava  algo,  e  tive  a  sensação  de  que  levava  um  bom  tempo 

fazendo‐o,

 e eu

 acabara

 de

 acordar

 para

 escutá

‐la.

 

Quis  sentar‐me, mas  com  uma  suave  pressão  sobre meu  ombro  a mulher  o 

impediu.  Em  algum  lugar,  na  escuridão,  uma  pequena  chama  tremulava  insegura, iluminando a palidez de seu rosto, conferindo‐lhe um aspecto fantasmal. À medida que 

ela se aproximava parecia agigantar‐se, e também seus olhos se aumentaram quando 

se  fixaram  nos meus. O  arco  de  suas  sobrancelhas,  como  um  arco  traçado  por  um 

marcador negro, se via concentrado num gesto de preocupação. Suspirei aliviada quando pronunciei seu nome. —Nélida! Ela aceitou meu  reconhecimento com um  leve  sorriso e um gesto da cabeça. 

Queria fazer

‐lhe

 perguntas

 acerca

 do

 cuidador

 e meus

 escritos,

 mas

 ela

 me

 silenciou

 colocando um dedo  sobre meus  lábios, e continuou com suas murmurações, que  se 

foram fazendo mais e mais distantes até cessar por completo. Depois ficou de pé e me 

indicou fazer o mesmo. Obedeci, e notei que  já não estávamos no pátio e sim num dos dormitórios vazios sobre o corredor. 

—Onde está meu trabalho? — perguntei, alarmada ante a possibilidade de que 

o vento pudesse ter esparramado as páginas. A  idéia de ter que recomeçá‐lo do zero 

me aterrorizava. Com  um  gesto  imperioso  de  sua  testa Nélida  indicou  que  devia  segui‐la.  Era 

muito mais alta que eu,  idêntica a Florinda, e a não ser por sua especial delicadeza, 

não teria

 podido

 diferenciá

‐las.

 Nesse

 momento,

 parecia

 uma

 versão

 inacabada

 de

 Florinda,  uma  Florinda  jovem.  Havia  nela  algo  tão  delicado,  etéreo,  e  por  sua  vez atraente,  que  eu  costumava  brincar  com  Isidoro  Baltazar  dizendo  que,  se  eu  fosse 

homem, ficaria louco por ela, ao qual ele respondia que talvez fosse essa a razão pela qual ela raramente me dirigia a palavra. 

Nos dirigimos a meu quarto. Escutava passos, passos que vinham de  todas as direções, que não podiam ser obra de Nélida, pois ela caminhava com  tal delicadeza que não parecia tocar o chão. A absurda noção de que escutava meus próprios passos me fez caminhar com a suavidade de um gato, apesar do qual o ruído não cessou. Os passos  de  alguém  se moviam  em  uníssono  com  os meus,  o mesmo  ritmo  repicava 

sobre 

piso 

enlajotado. 

Várias 

vezes 

olhei 

para 

trás 

mas, 

é 

claro, 

sem 

encontrar 

ninguém. Finalmente, na esperança de poder afugentar meu temor, ri forte. 

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A maneira abrupta em que Nélida se virou me fez temer uma reprimenda, mas ao invés disso, abraçando‐me, soltou o riso, e não dei importância ao fato de que sua 

carícia não fosse quente nem suave. Eu gostava de Nélida, e o toque de suas mãos me 

reconfortava.  Rindo,  e  acompanhadas  pelo  ruído  dos  passos,  entramos  em  meu 

quarto. 

Um estranho

 brilho

 se

 aderia

 às

 paredes,

 semelhante

 a uma

 névoa

 que

 se

 

tivesse  introduzido  através  das  quatro  portas,  agora  invisíveis.  Além  disso  havia 

modificado o formato do quarto, conferindo‐lhe um aspecto quase quadrado. Apesar de minhas repetidas piscadas não podia ver outro objeto além da mesa, sobre a qual havia  trabalhado nos últimos  três dias. Me aproximei, e me aliviou ver meus papéis ordenados e,  junto a eles, meus lápis, todos apontados. 

—Nélida! — exclamei excitada, mas ela  já não estava ali. A névoa se havia feito mais espessa, se aproximava com cada inalação de meus 

pulmões e  se  infiltrou dentro de mim, enchendo‐me de uma  sensação agradável de 

lucidez e frivolidade. Guiada por alguma força  invisível me sentei à mesa, esparramei 

os papéis,

 e sob

 meus

 olhos

 vigilantes

 surgiu

 a estrutura

 total

 de

 meu

 trabalho,

 

sobrepondo‐se  ao  original,  como  a  dupla  exposição  de  uma  película.  Me  perdi admirando o hábil desdobramento dos  temas, e como se  tivessem sido manipulados por alguma mão invisível, pensante e escritora, os parágrafos se recolocaram impondo 

uma nova ordem. Tudo era tão maravilhosamente claro e simples que ri de puro gozo. —Escreve‐o. As  palavras  repercutiram  suavemente  no  aposento.  Olhei  ao  redor  sem  ver 

ninguém, e sabendo que isso que agora vivia era definitivamente mais que um sonho, lancei mão de meu caderno e a um  lápis, e comecei a escrever a toda velocidade. As idéias me chegavam com  incrível claridade e facilidade, e  inundavam minha cabeça e 

meu corpo

 como

 ondas

 de

 som.

 Simultaneamente

 via

 e escutava

 as

 palavras,

 mas

 não

 eram  meus  olhos  e  meus  ouvidos  os  que  as  percebiam,  e  sim,  melhor  dizendo, filamentos  internos que se estendiam e, como um silencioso aspirador, chupavam as palavras que brilhavam ante mim como partículas de poeira. 

Depois de um tempo, a ordem sobreposta começou a opacar‐se. Uma a uma, as linhas  empalideceram.  Com  desespero  procurei  aferrar‐me  a  esta  esplêndida estrutura,  ainda  sabendo  que  tudo  desapareceria  sem  deixar  rastro.  Só  restou  a 

memória  dessa  magnífica  lucidez,  e  depois  também  isso  se  extinguiu,  como  uma 

lâmpada  que  alguém  tivesse  apagado.  Um  resto  de  névoa,  delicada  como  um 

filamento,  permaneceu  flutuando  no  quarto  para  depois  desaparecer  em  pequenas 

ondas, e deixar

 uma

 escuridão

 opressiva

 que

 se

 fechava

 sobre

 mim.

 Senti

‐me

 tão

 extenuada que soube que ia desmaiar. —Deite‐se! Não me  incomodei em olhar. Sabia que não veria a ninguém. Com um grande 

esforço, abandonei a cadeia e me arrastei até minha cama. 

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CAPÍTULO DEZESSEIS 

Por  um  momento  permaneci  na  cama,  recordando  vagamente  meu 

assombroso  ensonho,  tão  diferente  de  qualquer  outro.  Pela  primeira  vez   tinha 

pleno conhecimento de tudo o que  havia feito. 

—Nélida? —

 perguntei,

 ao

 escutar

 um

 suave

 murmúrio

 que

 chegava

 do

 

outro extremo do quarto. Tentei  levantar‐me, mas caí  de novo  sobre a cama. O 

quarto girava. Minutos depois o tentei de novo. Fiquei de pé e ensaiei uns passos vacilantes,  que   terminaram  quando  caí   ao  chão  e  dei  com  a  cabeça  contra  a 

parede. —Merda! — gritei. —Estou desmaiando. —Não seja  tão dramática —  foi Florinda quem disse  isso, e  riu  ao ver‐me 

tão  desconcertada.  Tocou  primeiro  minha  testa,  depois  meu  pescoço,  e  ao 

comprovar  que   não  tinha  febre  pronunciou  sua  sentença:  —Não  está 

desmaiando. O que  precisa é repor sua energia. 

Perguntei por

 Nélida,

 e enquanto

 me

 ajudava

 a voltar

 para

 a cama,

 

Florinda quis saber se havia estranhado a ela. —Está fraca porque está com fome — disse. —Não  tenho  fome —  a  contradisse, mais  por  hábito  que  por  convicção, 

sem  duvidar  de que  minha  tontura  se devia  a  não  ter  comido nada o  dia  todo, salvo o desjejum. 

—Nos  perguntamos  por  que   não  comeu  —  confessou  Florinda, respondendo a meus  inexpressados pensamentos. —Havíamos  lhe  preparado um 

guisado tão  delicioso. —Quando  chegou?  —  quis  saber.  —Tenho  estado  lhe   chamando  em 

silêncio durante

 dias.

 Florinda  semicerrou  os  olhos,  e  emitindo  um  som  sussurrante,  ao  que  

parecia destinado a ajudá‐la a recordar, respondeu que acreditava estar a vários dias na casa. 

—Acredita? — perguntei  impaciente, perto de uma exteriorização de mau 

gênio  que  consegui  controlar. —Por  que   não me  fez  saber  que  estava  aqui? — 

mais que  ofendida me  intrigava não  ter notado  sua presença. —Como pude não 

me dar conta? — murmurei, mais para mim  que  para seus ouvidos. A curiosa expressão de seus olhos denotava que  a Florinda lhe  surpreendia 

meu  desconcerto,  e  sua  sagaz  resposta  foi  que,  se  tivessem  me  revelado  sua 

presença, eu

 não

 teria

 podido

 me

 concentrar

 em

 minha

 tarefa.

 —Como bem sabe, em  lugar de ocupar‐se de seu ensaio, estaria pendente 

de nossas idas e vindas. Toda sua energia estaria concentrada em averiguar o que 

nós  fazíamos,  não  é  assim?  Deliberadamente  decidimos  que   você  deveria 

trabalhar  sem  distrações  —  explicou,  para  depois  agregar  que   o  cuidador  me 

havia ajudado somente depois de ter comprovado que  o feito por mim até aquele 

momento  era  satisfatório,  e  que  em  ensonhos  ele   havia  encontrado  a  ordem 

inerente de minhas anotações. —Eu também os achei em ensonho — confessei. —Naturalmente —  concordou  Florinda. — Nós  te  fizemos  ensonhar  para 

que 

pudesse 

trabalhar. 

—Vocês me fizeram ensonhar? — repeti. 

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Sem dúvida  sua declaração era chamativamente normal, mas não deixava 

de  causar‐me apreensão. Me dominou  a misteriosa  sensação de estar por  fim a 

ponto  de  compreender  o  que   significava  o  ensonhar  desperto,  embora  sem 

conseguir captá‐lo por completo, e esforçando‐me por  ser clara, revelei a Florinda 

tudo o que  aconteceu desde o momento em que  vi ao cuidador e ao cachorro no 

pátio. 

Não  me  foi   fácil  ser  coerente,  pois  eu  mesma  não  conseguia  decidir quando  estive  desperta  e  quando  adormecida,  e  aumentava minha  confusão  o 

fato  de  poder  recordar  o  exato  contorno  de  meu  trabalho  tal  como  o  vi,  sobreposto ao texto original. 

—Minha  concentração  era  demasiado  intensa  para  pensar  que   pudesse 

estar ensonhando — resumi. —É  disso,  precisamente,  que   se  trata  o  ensonhar  desperto.  Por   isso  o 

lembra  tão  bem  —  e  o  modo  em  que  Florinda  disse  isto  me  lembrou  uma 

professora  impaciente, explicando algo simples a uma criança  retardada. —Já  te 

disse que

 o

 ensonhar

 desperto

 não

 tem

 nada

 a ver

 com

 dormir

 e sonhar.

 

—Tomei  notas  —  acrescentei,  como  se  isso  pudesse  invalidar  o  que   ela 

acabara  de  dizer,  e  ao  ver  que   concordava  com  um  movimento  de  cabeça, perguntei‐lhe  se encontraria algo sobre a matéria, escrito de meu punho e  letra, entre minhas notas. 

—Sim — me  assegurou —, mas  antes  terá que   comer. —  Ficando  de  pé, estendeu‐me a mão e me ajudou a se levantar. 

Para  ajeitar‐me  um  pouco  acomodou  a  camisa  dentro  de  meus  jeans  e 

tirou os pedaços de palha aderidos  a meu  suéter. Depois me afastou um pouco 

para  inspecionar  sua  obra.  Não   satisfeita,  encarou  o  aspecto  de  meu  cabelo, 

acomodando os

 fios

 esticados

 e rebeldes.

 —Você fica horrível com o cabelo desgrenhado. —Estou acostumada a uma ducha quente ao levantar‐me — e saí  atrás dela 

ao corredor. Ao ver que se dirigia à cozinha lhe  informei que  antes precisava ir ao 

toalete. —Te  acompanho —  ofereceu,  e  ao  notar meu  gesto  de  recusa,  explicou 

que  só desejava assegurar‐se de que eu não me desmaiaria e cairia pelo buraco. Aceitei agradecida o apoio de seu braço, e quase cai de bruços ao sair ao 

pátio,  não  tanto  por  causa  de  minha  debilidade  e  sim  pela  surpresa  que  me 

causou comprovar o tarde que  era. 

—O que

 acontece?

 —

 perguntou

 Florinda.

 —Se

 sente

 fraca?

 Apontei o céu. Apenas sobrava um resto de luz. —Não é possível que  tenha perdido um dia — disse com  voz apagada. Lutei 

por assimilar a  idéia de que haviam  transcorrido  toda uma noite e  todo um dia, mas minha mente não o aceitou. O fato de não poder calcular o tempo de acordo 

com os cânones normais me desorientava. —Os  feiticeiros  quebram  o  fluir  do  tempo  —  explicou  Florinda, 

interpretando  meus  pensamentos.  —O  tempo,  tal  como  nós  o  medimos,  não 

existe  quando  se  ensonha  como  o  fazem  os  feiticeiros.  Eles  o  estendem  ou 

condensam à  vontade, e não o consideram em  termos de horas ou minutos. Ao 

ensonhar 

despertos, 

aumentam 

suas 

faculdades 

perceptuais 

— 

prosseguiu 

em 

tom paciente e medido. —Não obstante, com o  tempo acontece algo por  intero 

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distinto.  A  percepção  do  tempo  não  aumenta,  e  sim  que  fica  totalmente 

cancelada. —  Acrescentou  que   o  tempo  é  sempre  um  fator  de  consciência,  ou 

seja, que sua percepção é um estado psicológico, automaticamente transformado 

por nós em medidas  físicas. É algo que  levamos  tão gravado que, ainda quando 

não o percebamos, um relógio soa em nosso interior, marcando subliminarmente 

o tempo.

 

—No  ensonhar  desperto  —  enfatizou  —  essa  capacidade  está  ausente. Uma  estrutura  por  completo  nova  e  nada  familiar  assume  o  controle;  uma 

estrutura que de alguma maneira não é para ser interpretada ou entendida como 

normalmente fazemos com o tempo. —Ou  seja,  que   tudo  o  que   saberei  conscientemente  acerca  do  ensonhar 

desperto  é  que,  com  relação  ao  tempo,  ele   poderá  ter  sido  estendido  ou 

comprimido — disse, procurando entender à explanação. —Compreenderá  muito  mais  que   isso  —  me  assegurou  com  ênfase.  —

Quando  for   expert   em  penetrar  na  consciência  intensificada,  como  a  chama 

Mariano Aureliano,

 terá

 consciência

 de

 tudo

 o

 que

 deseje,

 pois

 os

 feiticeiros

 não

 

estão  envolvidos  com  medir  o  tempo  e  sim  em  usá‐lo,   em  estendê‐lo  ou 

comprimi‐lo à vontade. —A  pouco  você  disse  que   todos me  ajudaram  a  ensonhar —  afirmei. —

Neste caso, alguém deve saber o quanto durou meu ensonho. Florinda respondeu que  ela e seus companheiros viviam permanentemente 

num estado de ensonhar desperto, e que  era precisamente seu esforço conjunto 

o que  me fez ensonhar, mas que   jamais levavam conta de sua duração. —Quer  inferir que  posso estar ensonhando desperta agora? — perguntei, 

sabendo de antemão o que  responderia. —Se é assim, o que  fiz  para alcançar este 

estado? Quais

 passos

 tomei?

 —Os mais  simples  imagináveis —  respondeu  Florinda. —Não  se  permitiu 

ser  seu  ser usual. Esta é a chave que  abre portas. Muitas vezes, e de diferentes maneiras, temos  lhe  dito que  a feitiçaria não é o que pensa que  é. Dizer que  não 

permitir‐se  ser  seu  ser usual é o  segredo mais  complexo da  feitiçaria;  soa bobo 

mas não o é. É a chave ao poder, e portanto o mais difícil que  faz um feiticeiro; e 

não  obstante,  não  é  algo  complexo,  impossível  de  entender.  Não  confunde  a 

mente, e por tal razão ninguém pode sequer suspeitar sua  importância ou tomá‐

lo  a  sério.  A  julgar  pelo  resultado  de  sua  última  sessão  de  ensonhar  desperta, posso dizer que  você acumulou suficiente energia mediante o ato de  impedir‐se 

ser seu

 ser

 usual.

 Deu um tapinha em meu ombro e sussurrou. —Te verei na cozinha. A  porta  da  cozinha  estava  entreaberta,  mas  nenhum  som  provinha  do 

interior. —Florinda? — perguntei em voz baixa. Me respondeu um riso suave, mas não vi ninguém. Quando meus olhos se 

acostumaram à penumbra divisei a Florinda e a Nélida sentadas a uma mesa, seus rostos  estranhamente  vívidos  nessa  tênue  luz,  assim  como  seus  olhos,  cabelos, nariz  e  bocas.  Diria‐se  que   as  iluminava  uma  luz  interior,  e  me  impressionou 

comprovar 

quanto 

eram 

exatas 

eram 

entre 

si. 

—Vocês duas são tão lindas que assusta — disse, aproximando‐me. 

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Olharam‐se  uma  à  outra  e  soltaram  um  riso,  francamente  perturbador. Senti  que   um  calafrio  percorria minha  coluna,  e  antes  que   eu  pudesse  ensaiar comentário  algum,  ambas  se  calaram, e Nélida me  convidou  a ocupar a  cadeira 

vazia  junto a ela. Respirei  fundo.  “Precisa manter a  calma”, me disse  ao ocupar o  assento. 

Havia em

 Nélida

 uma

 secura

 e um

 tensionamento

 que

 me

 enervava.

 Da

 sopeira

 

no meio da mesa me serviu um prato de espessa sopa. —Quero  que   coma  tudo  —  disse,  aproximando  de  mim  uma  cesta  com 

tortilhas quentes, e também a manteiga. Eu estava morta de  fome, e ataquei o que me deram como se não tivesse 

comido  um  só  bocado  em  muitos  dias.  Esgotei  o  conteúdo  da  sopeira,  e 

acompanhei  as  tortilhas  com  três  canecas  de  chocolate  quente.  Saciada,  me 

acomodei em minha cadeira. A porta que  conduzia ao pátio estava aberta de par em  par,  e  uma  brisa  fresca  reacomodou  as  sombras  que   invadiam  a  cozinha. O 

crepúsculo  parecia  eterno,  e  no  céu  languideciam  grossas  capas  de  cor: 

vermelhão, azul

 escuro,

 ouro

 e violeta,

 e tanto

 o

 ar,

 dotado

 de

 uma

 qualidade

 

transparente, parecia aproximar as montanhas distantes. Como impulsionada por uma força  interior a noite dava a  impressão de surgir do chão, e o ensombrecido 

movimento  das  árvores  frutíferas,  impulsionado  pelo  vento  rítmico  e  cheio  de 

graça, arrebatava a escuridão e a elevava até o céu. Esperanza  entrou  na  cozinha  portando  uma  lamparina  de  azeite  que 

colocou  sobre a mesa, olhando‐me  sem piscar,  como  se  tivesse problemas para 

enfocar a vista. Dava a impressão de continuar preocupada por algum mistério de 

outro  mundo,  mas  aos  poucos  seus  olhos  se  descongelaram,  e  sorriu,  como 

sabendo que  havia regressado de algum lugar muito distante. 

—Meu ensaio!

 —

 gritei,

 ao

 ver

 as

 folhas

 soltas

 e meu

 caderno

 sob

 seu

 braço. Com um grande sorriso os entregou a mim. Sem dissimular minha impaciência, examinei as folhas, rindo feliz ao poder 

constatar as páginas do caderno cobertas de precisas e detalhadas  instruções, a 

metade em espanhol e a outra metade em inglês, sobre como proceder com meu 

trabalho, sendo a caligrafia indiscutivelmente minha. —Está  tudo  aqui!  —  exclamei  muito  excitada.  —Assim  o  vi  em  meu 

ensonho — e de pensar que  poderia me livrar do curso de pós‐graduação sem ter que  esforçar‐me em excesso, esqueci toda minha ansiedade anterior. 

—Não  se  escrevem  bons  ensaios  recorrendo  a  atalhos  —  advertiu 

Esperanza. —Nem

 sequer

 com

 a ajuda

 da

 feitiçaria.

 Deveria

 saber

 que

 sem

 as

 leituras  prévias  e  a  coleta  de  notas,  o  fato  de  escrever  e  de  revisar  o  escrito, nunca  teria  conseguido  reconhecer  a  estrutura  e  a  ordem  de  seu  trabalho  em 

seus ensonhos. Assenti  sem  falar.  Ela  havia  dito  isso  com  autoridade  incontestável, 

deixando‐me sem palavras. —E o que  acontece com o cuidador? Foi professor em sua  juventude?  

Nélida  e  Florinda  se  viraram  na  direção  de  Esperanza,  como  se  a  ela 

coubesse responder. —Isso  não  o  saberia  dizer  —  respondeu,  de  maneira  evasiva.  —Não  te 

disse 

que 

era 

um 

feiticeiro 

enamorado 

das 

idéias? 

Manteve silêncio por um momento, para depois completar: 

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—Quando não  cuida de nosso mundo mágico,  como  cabe a um cuidador, ele lê. 

—Além de livros — ampliou Nélida — lê uma extraordinária quantidade de 

revistas culturais. Fala vários  idiomas, de modo que  está atualizado com o último 

em tudo. Delia e Clara são suas ajudantes. Ele  as ensinou a falar inglês e alemão. 

Perguntei se

 a biblioteca

 da

 casa

 pertencia

 a ele.

 

—É de todos — respondeu Nélida. —Contudo estou segura de que, tirando 

Vicente,  ele  é  o  único  que  leu  todos  os  livros  que   contêm  as  estantes —  e  ao 

observar minha expressão incrédula me advertiu que  o aspecto das pessoas desse 

mundo  não  deveria  enganar‐me.  —Para  alcançar  um  certo  nível  de 

conhecimentos  os  feiticeiros  trabalham  o  dobro  do  que  o  fazem  outros.  Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo cotidiano como ao 

mágico.  Para  conseguir  isso  devem  ser  muito  preparados  e  sofisticados,  tanto 

mental como fisicamente. —Durante  três  dias  trabalhou  em  seu  ensaio.  Trabalhou  duro,  não  é 

verdade? —

 aguardou

 a que

 eu

 me

 manifestasse

 de

 acordo,

 e depois

 acrescentou

 

que,  enquanto  ensonhava  desperta,  lhe  dediquei  ainda  maior  esforço  que 

estando desperta. —Não estou de acordo — contradisse. —Tudo foi  muito simples e carente 

de esforço — e expliquei que  a única coisa que  fiz foi ver uma nova versão de meu 

trabalho sobreposta à antiga, a qual copiei. —Fazer  isso demandou toda a força que você possuía — sustentou Nélida. 

—Enquanto  ensonhava  desperta  você  canalizou  toda  sua  energia  em  um  só 

propósito.  Toda  sua  preocupação  e  esforço  se  destinaram  a  terminar  seu 

trabalho. Nada  mais  importava.  Nenhum  outro  pensamento  interferiu  com  sua 

meta.  —O  cuidador ensonhava  desperto  quando  leu meu ensaio? Viu o  que  eu 

vi?  

Nélida  ficou de pé e caminhou  lentamente até a porta. Durante um  longo 

tempo olhou para  fora, em direção à escuridão. Depois voltou à mesa, segredou 

algo com Esperanza, e  tornou a sentar‐se. Esperanza  riu quando me disse que o 

que  o cuidador viu em meu  trabalho era diferente ao que   foi visto e escrito por mim. 

—E  é  natural  que   assim  fosse,  pois  o  conhecimento  dele  é  muito  mais vasto  que  o  seu.  Você,  guiada  por  suas  sugestões,  e  de  acordo  com  sua 

capacidade, captou

 como

 devia

 parecer

 seu

 trabalho,

 e isso

 foi

 o

 que

 você

 escreveu. Por  sua  vez Nélida  explicou  que   enquanto  ensonhamos  despertos  temos 

acesso a recursos ocultos que  de ordinário não empregamos. Disse que nem bem 

eu vi meu trabalho lembrei dos pontos‐chave que  me havia fornecido o cuidador. Ao notar que  minha expressão  incrédula persistia,  lembrou o que   foi dito 

pelo  cuidador  sobre meu  ensaio.  “Demasiadas  notas  ao  pé  da  página,  citações demais  e  idéias desenvolvidas  com  descuido.”  Seus olhos  irradiavam  simpatia e 

um  ar  divertido  ao  acrescentar  que,  dado  que   eu  ensonhava  e  não  era  tão 

estúpida como alegava ser, de imediato percebi toda sorte de enlaces e conexões 

não 

notados 

antes. 

Depois 

se 

aproximou 

sorridente 

à 

espera 

de 

minha 

reação. 

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—É hora de que  saiba o que te fez ver uma melhor versão de seu trabalho 

original.  —  Esperanza  me  piscou  um  olho  como  para  enfatizar  que  estava  por revelar‐me um segredo retumbante. 

—Quando  ensonhamos  despertas,  nós  temos  acesso  ao  conhecimento 

direto. 

Observou‐me

 um

 longo

 período,

 e havia

 desencanto

 em

 seus

 olhos.

 

—Não  seja  tão  densa!  —  Nélida  me  cutucou  impaciente.  —Ensonhar desperta deveria  ter  lhe  demonstrado que possui, como  todas as mulheres, uma 

capacidade sem igual para receber conhecimentos diretos. Com um gesto Esperanza me  indicou guardar silêncio e disse: —Sabia que  

uma  das  diferenças  básicas  entre  homens  e  mulheres  é  a  maneira  em  que 

encaram o conhecimento? 

Eu  não  tinha  idéia  do  que   queria  dizer.  De  maneira  lenta  e  deliberada 

arrancou  uma  folha  em  branco  de  meu  caderno  e  desenhou  duas  figuras humanas, uma das quais coroou com um cone e disse que  era um homem. Sobre 

a outra

 cabeça

 desenhou

 o

 mesmo

 cone,

 só

 que

 invertido,

 e o

 declarou

 ser

 a 

mulher. —Os homens constroem seu conhecimento passo a passo — explicou com 

o  lápis apontando à cabeça coroada pelo cone. —Tendem para cima,  trepam em 

direção  ao  conhecimento. Os  feiticeiros  dizem  que  os  homens  se  estiram  como 

um cone em direção ao espírito, para o conhecimento, e este procedimento limita 

até  onde  podem  chegar —  repassou  com o  lápis  as  linhas  do  cone  da  primeira 

figura.  —Como  poderá  ver,  os  homens  só  podem  alcançar  certa  altura,  e  seu 

caminho termina no ápice do cone. —Preste atenção — advertiu, apontando com  o  lápis à segunda  figura. —

Como poderá

 ver

 o

 cone

 está

 invertido,

 aberto

 como

 um

 funil.

 As

 mulheres

 possuem a faculdade de abrir‐se diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte 

lhes  chega de maneira direta, na base  larga do  cone. Os  feiticeiros dizem que  a 

conexão das mulheres com o conhecimento é expansiva, enquanto a dos homens é bastante restritiva. 

“Os homens se conectam com o concreto — prosseguiu —, e apontam ao 

abstrato.  As  mulheres  se  conectam  com  o  abstrato,  e  contudo  tratam  de 

entregar‐se ao concreto”. —Por  quê?  —  perguntei  —,  sendo  as  mulheres  tão  abertas  ao 

conhecimento ou ao abstrato, são  consideradas como inferiores? 

Esperanza me

 contemplou

 fascinada.

 Ficou

 de

 pé,

 esticou

‐se

 como

 um

 gato, fazendo estalar todas suas articulações, e recuperou seu assento. —Que  sejam  consideradas  inferiores  ou,   no  melhor  dos   casos,  que   suas 

características  femininas  sejam  consideradas  complementares  às  dos  homens, têm a ver com a maneira em que uns e outros se aproximam do conhecimento. Em  geral  à mulher  lhe   interessa mais  dominar‐se  a  si mesma  que  a outros,  um 

tipo de domínio claramente ambicionado pelo homem. —Inclusive  entre  os  feiticeiros —  acrescentou Nélida  para  satisfação  das 

mulheres. Esperanza  expressou  sua  crença  em  que   originalmente  as  mulheres  não 

consideravam 

necessário 

explorar 

essa 

facilidade 

para 

unir‐

se 

direta 

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  165

amplamente ao espírito. Não  achavam necessário  falar ou  intelectualizar acerca 

desta sua capacidade, pois lhes bastava acioná‐la para saber que  a possuíam. —A  incapacidade do homem para unir‐se diretamente ao espírito é o que  

os  impulsionou  a  falar  do  processo  de  alcançar  o  conhecimento —  explicou. —Não  pararam  mais  de  falar  disso,  e  é  precisamente  essa  insistência  em  saber 

como se

 esforçam

 por

 alcançar

 o

 espírito,

 esta

 insistência

 por

 analisar

 o

 processo,

 

o  que   lhes  deu  a  certeza  de  que   o  ser  racional  é  uma  conquista  tipicamente 

masculina. Esperanza  explicou  que  a  conceitualização  da  razão  tem  sido  obtida 

exclusivamente pelos homens, e  isto  lhes  têm permitido minimizar os dons e as conquistas  da  mulher  e,  pior  ainda,  excluir  as  características  femininas  da 

formulação dos ideais da razão. —É claro que  na atualidade a mulher acredita no que  lhe   tem sido  fixado 

—  enfatizou.  —A mulher  tem  sido  criada  para  crer  que   só  o  homem  pode  ser racional  e  coerente,  e  agora  o  homem  é  portador  de  um  capital  que   o  torna 

automaticamente superior,

 seja

 qual

 for

 sua

 preparação

 ou

 capacidade.

 

—Como  foi  que   as  mulheres  perderam  sua  conexão  direta  com  o 

conhecimento? — perguntei. —Não a perderam — corrigiu Esperanza. —Ainda têm uma conexão direta 

com o espírito, só que  esqueceram como usá‐la,  ou melhor, copiaram a condição 

masculina de não possuí ‐la. Durante milhares de anos o homem  tem se ocupado 

de que  a mulher o esqueça. Pegue a Santa  Inquisição, por exemplo: esse  foi um 

expurgo  sistemático para erradicar a  crença de que  a mulher  tem uma  conexão 

direta  com  o  espírito.  Toda  religião  organizada  não  é  outra  coisa  que  uma 

manobra muito  exitosa  para  colocar  à mulher  no  nível mais  baixo.  As  religiões 

invocam uma

 lei

 divina

 que

 mantém

 que

 as

 mulheres

 são

 inferiores.

 Olhei‐a assombrada, perguntando‐me como podia ser tão erudita. —Os  homens  necessitam  dominar  a  outros,  e  a  falta  de  interesse  das 

mulheres por expressar ou  formular o que conhecem, e como o conhecem,  tem 

constituído uma nefasta aliança — continuou Esperanza. —Tem tornado possível que   a  mulher  seja  forçada,  desde  seu  nascimento,  a  aceitar  que   a  plenitude 

encontra‐se no lar, no amor, no casamento, em parir filhos e negar‐se a si mesma. A mulher  tem  sido  excluída  das  formas  dominantes  de  pensamento  abstrato  e 

educada  para  a  dependência.  Têm  sido  tão  bem  treinadas  para  aceitar  que   os homens devem pensar por  elas que  terminaram por não pensar. 

—A mulher

 é perfeitamente

 capaz

 de

 pensar

 —

 disse.

 Esperanza me corrigiu. —A mulher é capaz de  formular o que  aprendeu, e o que   tem aprendido 

tem  sido  definido  pelo  homem.  O  homem  define  a  natureza  intrínseca  do 

conhecimento, e dele tem excluído tudo aquilo que  pertence ao feminino ou,  se o 

há incluído, é sempre de maneira negativa. E a mulher o tem aceitado. —Está atrasada em anos — objetei. —Hoje em dia a mulher pode  fazer o 

que  deseja. Em geral têm aceso a todo centro de aprendizagem, e a quase todos os trabalhos que  desempenha o homem. 

—Mas  isso não  tem sentido, a menos que possuam um sistema de apoio, 

uma 

base 

— 

argumentou 

Esperanza. 

—De 

que 

serve 

ter 

aceso 

ao 

que 

possuem 

os 

homens,  quando  ainda  se  as  consideram  seres  inferiores,  obrigadas  a  adotar 

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  166

atitudes  e  comportamentos  masculinos  para  conseguir  o  êxito?  As  que   na 

verdade conseguem alcançar o êxito são as perfeitas convertidas, e elas também 

depreciam às mulheres. —De   acordo  com os homens o  útero  limita  à mulher  tanto mental  como 

fisicamente.  Esta  é  a  razão  pela  qual  às  mulheres,  apesar  de  seu  acesso  ao 

conhecimento, não

 lhes

 tem

 sido

 permitido

 determinar

 o

 que

 é este

 

conhecimento.  Pegue,  por  exemplo,  aos  filósofos  —  propôs  Esperanza.  —Os pensadores  puros.  Alguns  deles  são  encarniçadamente  contra  a mulher. Outros são mais sutis, no sentido de que estão dispostos a admitir que  a mulher poderia 

ser  tão  capaz  como  o  homem,  se  não  fosse  porque  não  lhe  interessam  as investigações racionais, e no caso de estar  interessadas, não deveriam estar. Pois lhe   cai melhor  à mulher  ser  fiel  à  sua  natureza:  uma  companheira  nutriente  e 

dependente do macho. Esperanza expressou tudo isto com inquestionável autoridade. No entanto, 

em  poucos minutos,  a mim  já me  assaltavam  as  dúvidas. —Se  o  conhecimento 

não é outra

 coisa

 que

 um

 domínio

 masculino,

 a quê

 se

 deve

 então

 sua

 insistência

 

em que  eu vá à universidade? — perguntei. —Porque  você  é  uma  bruxa,  e  como  tal  precisa  saber  o  que   te  afeta,  e 

como te afeta — respondeu. —Antes de recusar algo deve saber por que  o recusa. “Sabe,  o  problema  é  que  o  conhecimento  em  nossos  dias  se  deriva 

simplesmente de pensar nas  coisas, mas as mulheres  têm um  caminho distinto, nunca  antes  levado  em  consideração.  Esse  caminho  pode  contribuir  ao 

conhecimento,  mas  teria  que  ser  uma  contribuição  que   nada  tem  a  ver  com 

pensar nas coisas”. —Com o que  teria que ver então? 

—Isso é para

 que

 você

 o

 decida,

 depois

 de

 ter

 dominado

 as

 ferramentas

 do

 raciocínio e da compreensão. Minha confusão era muito grande. —O  que   propõem  os  feiticeiros  —  continuou  Esperanza  —  é  que   os 

homens  não podem  possuir o  direito exclusivo  ao  raciocínio.  Parecem  possuí ‐lo 

agora porque o  terreno  sobre o  qual o  aplicam  é  um  terreno onde prevalece o 

masculino. Apliquemos então a razão a um terreno onde prevalece o feminino, e 

esse é, naturalmente, o cone invertido que  te descrevi: a conexão feminina com o 

próprio espírito. Desviou apenas a cabeça, como decidindo o que estava por dizer. 

—Essa conexão

 deve

 enfrentar

‐se

 com

 outro

 tipo

 de

 raciocínio,

 algo

 nunca

 antes empregado: o lado feminino do raciocínio. —E qual é o lado feminino do raciocínio, Esperanza? 

—Muitas  coisas;  uma  delas  é  definitivamente  ensonhar. —  olhou‐me  de 

maneira questionante, mas eu nada tinha a dizer. Sua profunda gargalhada me pegou de surpresa. —Eu sei o que  espera você dos  feiticeiros: rituais e encantamentos, cultos 

raros, misteriosos. Quer que cantemos. Quer  fundir‐se com a natureza; estar em 

comunhão  com  os  espíritos  da  água;  quer  paganismo,  uma  visão  romântica  do 

que  fazemos. Muito germânico. 

“Para 

submergir‐

se 

no 

desconhecido 

precisam 

de 

coragem 

mente. 

Somente  com  isso  poderá  explicar  a  você  mesma  e  a  outros  os  tesouros  que 

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  167

poderá encontrar.” —  Esperanza  chegou perto de mim,  ansiosa  ao que  parecia, por confiar‐me algo. Coçou a cabeça e bufou repetidas vezes, cinco vezes como o 

fazia o cuidador. —Precisa agir a partir de seu lado mágico — disse. —E isso o que  é? 

—O útero — e o disse com tanta calma, e em tom tão baixo, como se não 

lhe interessasse

 minha

 reação,

 que

 quase

 não

 lhe

 ouvi.

 Depois,

 ao

 dar

‐me

 conta

 

do absurdo de suas palavras, me endireitei e olhei para as outras mulheres. —O útero — repetiu Esperanza — é o órgão  feminino  fundamental, o que 

dá às mulheres esse poder, essa força extra para canalizar sua energia. Explicou  que  o  homem,  em  sua  busca  pela  supremacia,  tem  conseguido 

reduzir esse misterioso poder, o útero, ao nível estrito de um órgão biológico cuja 

única função é reproduzir, abrigar a semente do homem. Como se obedecesse a um chamado, Nélida  ficou de pé,  rodeou a mesa e 

veio parar‐se atrás de mim. —Conhece  a  estória  da  Anunciação? — murmurou  quase  pegado  a meu 

ouvido. 

—Não — respondi, rindo. Com esse mesmo  sussurro confidencial me disse que  na  tradição  judaico‐

cristã os homens são os únicos que  escutam a voz  de Deus. As mulheres, salvo a 

Virgem  Maria,  foram  excluídas  deste  privilégio.  Nélida  disse  que   um  anjo 

sussurrando à Maria era,  logicamente, algo natural. Não o era em troca de que  a 

Única coisa que  pôde dizer‐lhe   foi que  daria a  luz ao  filho de Deus. O útero não 

recebeu conhecimento e  sim, melhor dizendo, a promessa da  semente de Deus. Um deus masculino, que  por sua vez gerava outro deus masculino. 

Eu queria pensar,  refletir  acerca de  tudo o que   se havia dito, mas minha 

mente estava

 em

 total

 confusão.

 —E  o  que   acontece  com  os  feiticeiros  homens? —  perguntei. —Eles  não 

têm útero e, contudo, estão claramente conectados com o espírito. Esperanza me olhou com uma satisfação que  não tentou dissimular; depois 

olhou por  cima de  seu ombro  como  temerosa de que  alguém  a escutasse. Num 

murmúrio, apenas disse: —Os  feiticeiros  podem  alinhar‐se  com  o  espírito  pois  abandonam  o  que  

especificamente define sua masculinidade. Já não são homens. 

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CAPÍTULO DEZESSETE 

A  maneira  em  que  Isidoro  Baltazar  percorria  o  aposento  diferia  da  que 

usualmente empregava para cobrir o espaço de seu estúdio retangular. Antes sempre 

me  acalmava  seu  andar,  mas  desta  vez  possuía  uma  qualidade  incômoda  e 

ameaçadora, trazendo

 à minha

 mente

 a imagem

 de

 um

 tigre

 que

 espreita

 entre

 o 

mato, ainda não preparado para saltar sobre sua vítima, mas consciente de que algo 

anda mal. Deixei  de  lado  o  que  estava  lendo,  a  fim  de  averiguar  a  natureza  de  sua 

preocupação, quando ele disse: —Nós vamos ao México. O modo em que o disse me causou graça, e o  tom  sombrio e sério  justificou 

minha risonha pergunta: —Vai se casar comigo lá? Deteve‐se de imediato. 

—Este não

 é um

 gracejo

 —

 disse

 irritado.

 —Isto

 é coisa

 séria

 —

 e nem

 acabou

 

de dizê‐lo e sorriu, e com um gesto desvaído perguntou a si mesmo: —O que estou 

fazendo? Estou me  irritando com você, como se dispusesse de tempo para  isso. Que 

vergonha! O nagual  Juan Matus  já me havia advertido que  somos uma merda até o 

momento final. Abraçou‐me com força, como se voltasse de uma longa ausência. —Não creio que seja uma boa idéia que eu vá ao México. Sua resposta foi como a de um militar dando ordens. —Cancele tudo. Já não resta tempo. Eu, feliz, respondi: 

—Jawoh! Mein

 Gruppenführer!

 Distendido, ele riu. Enquanto  viajávamos pelo Arizona me  assaltou uma  estranha  sensação, uma 

sensação física parecida a um calafrio, que se estendia desde o útero a todo o corpo, eriçando  a  pele;  a  sensação  de  que  algo  andava mal, misturada  com  um  elemento 

totalmente novo: certeza absoluta. —Acabo de  ter uma  intuição. Algo está mal! — disse, e minha voz  se  tornou 

aguda contra minha vontade. Como  se  fosse  o  mais  natural  do  mundo,  e  depois  de  assentir  com  um 

movimento  de  cabeça,  Isidoro  Baltazar me  informou  que  os  feiticeiros  estavam  de 

partida do

 mundo.

 —Quando?! — perguntei, deixando escapar um grito involuntário. —Talvez  amanhã,  ou  passado  ou  dentro  de  um  mês,  mas  sua  partida  é 

iminente. Com  um  suspiro  de  alívio  me  acomodei  no  assento  e  me  relaxei 

conscientemente. —Estão dizendo que vão partir desde o dia em que os conheci,  já faz mais de 

três anos — murmurei, com a sensação de que não deveria tê‐lo dito. Isidoro  Baltazar  se  virou  para  olhar‐me,  seu  rosto  tinha  por  um  lado  uma 

expressão de desprezo, e por outro de empenho em se livrar dessa expressão. Sorriu, 

bateu 

em 

meu 

 joelho 

disse 

com 

suavidade 

que 

no 

mundo 

dos 

feiticeiros 

não 

se 

deveria tomar as coisas tão ao pé da letra. 

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  169

—Se os feiticeiros lhe repetem algo até te fartar é porque desejam preparar‐te 

para  isso — e acrescentou, com um olhar sério: —Não confunda seus procedimentos mágicos com suas bobagens. 

Suas  palavras  não  provocaram  raiva  em  mim.  Meu  medo  era  demasiado 

intenso para permitir‐me esse luxo. Aceitei‐as em silêncio. 

A viagem

 foi

 muito

 rápida,

 ou

 ao

 menos

 assim

 me

 pareceu.

 Nós

 revezamos

 na

 

direção e no descanso, e ao meio‐dia do dia seguinte chegamos à casa das bruxas. Não 

perdemos tempo. Nem bem desligou‐se o motor do carro o abandonamos para correr até a casa. 

—O que aconteceu? — perguntou o cuidador, surpreendido por nossa abrupta e ruidosa chegada. —O que fazem vocês, estão brigando ou estão se perseguindo um 

ao outro? —Quando se vão? Quando se vão? — repeti mecanicamente, incapaz de conter 

minha ansiedade e temor. Rindo, o cuidador espalmou minhas costas e pronunciou palavras de ânimo. 

—Não vou

 a nenhum

 lado.

 Não

 vai

 se

 livrar

 de

 mim

 tão

 facilmente.

 —

 Apesar

 

de soar genuínas, suas palavras não eliminaram minha ansiedade. Examinei  seu  rosto  e  seus  olhos,  procurando  descobrir  algum  indício  de 

mentira, mas só vi  sinceridade e bondade. Quando notei que  Isidoro Baltazar  já não 

estava  ao  meu  lado  me  dominou  de  novo  a  tensão.  Havia  desaparecido  veloz  e 

silencioso  como  uma  sombra. O  cuidador  percebeu  essa  agitação,  e  com  um  gesto 

assinalou a casa. Ouvi a voz de Isidoro Baltazar, ao que parecia em tom de protesto, e 

logo sua risada. —Estão todos aqui? — perguntei, tentando abrir passagem. —Estão lá dentro — respondeu o cuidador, e abriu os braços para deter‐me. —

Não podem

 receber

 você

 neste

 momento.

 Não

 te

 esperavam

 —

 incrementou,

 ao

 ver

 que eu estava por protestar. —Querem que eu te  fale antes de receber‐te. — Pegou 

minha mão e me afastou da porta. —Vamos aos fundos para recolher folhas — propôs. —Nós  as  queimaremos  e  deixaremos  as  cinzas  às  fadas  aquáticas.  Talvez  as transformem em ouro. 

Não pronunciamos uma só palavra enquanto  recolhíamos monte após monte 

de  folhas,  mas  a  atividade  física  e  o  som  do  rastelo  que  raspava  a  terra  me 

tranquilizaram.  Me  pareceu  que  leváramos  horas  recolhendo  folhas,  quando  de 

repente soube que não estávamos sozinhos no pátio, e ao dar uma volta vi a Florinda. Vestida  de  camisa  e  calças  brancas,  parecia  uma  aparição.  Um  chapéu  de  palha 

protegia seu

 rosto,

 de

 aba

 muito

 larga,

 na

 mão

 levava

 um

 leque

 de

 renda,

 e sua

 atitude era  tão  remota que parecia não  ser de  todo humana. Eu,  imóvel, observei‐a 

fascinada. Perguntando‐me se repararia em minha presença, e com passos vacilantes, me 

aproximei  a  ela,  e  ao  perceber  que,  de  nenhuma  maneira,  registrava  minha 

proximidade, me detive indecisa. Não se tratava de um intento de proteger‐me contra uma  rejeição,  nem  de  temor  em  ser  desdenhada.  Uma  indeterminada  e  contudo 

aceitada  norma  que  impediu  que  lhe  exigisse  prestar‐me  atenção.  Não  obstante, quando o cuidador  se  sentou  junto a ela no banco, peguei o  rastelo apoiado contra uma  árvore  e  aos  poucos  fui  me  aproximando.  O  cuidador,  atento  às  palavras  de 

Florinda, 

apenas 

acusou 

meu 

propósito 

com 

um 

distraído 

sorriso. 

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Falavam  um  idioma  desconhecido  para  mim,  apesar  do  qual  os  escutei fascinada, sem poder determinar se era essa língua ou o afeto de Florinda pelo velho o 

que conferia à sua voz rouca uma qualidade por sua vez terna, suave e estranha. De  repente  Florinda  ficou  de  pé,  e  como  se  a  impulsionasse  alguma  mola 

invisível, percorreu o  terreno com os movimentos  ziguezagueantes de um beija‐flor, 

fazendo uma

 parada

  junto

 a cada

 árvore,

 tocando

 aqui

 uma

 folha

 e ali

 uma

 flor.

 

Levantei minha mão para atrair sua atenção, mas me distraiu uma mariposa, que  tecia sombras azuis no ar, e que pousou depois sobre minha mão para projetar sua sombra escura sobre meus dedos. Depois esfregou a cabeça contra as patas, abriu 

e fechou várias vezes as asas, e retomou seu vôo, deixando sobre meu dedo médio um 

anel  em  forma  de mariposa  triangular.  Segura  de  que  se  tratava  de  uma  ilusão  de 

óptica, sacudi repetidas vezes minha mão. —É um truque, não é? — perguntei ao cuidador. —Uma ilusão de óptica? Negou com a cabeça,  seu  rosto  se enrugou num  radiante sorriso, e  tomando 

minha mão comentou: 

—É um

 lindo

 anel;

 um

 esplêndido

 presente.

 

Repeti suas palavras: “um presente”. Tive um breve  lampejo de  intuição, que 

desapareceu para deixar‐me desorientada. —Quem colocou esse anel em meu dedo? — perguntei, observando a  jóia. As 

antenas e o delicado corpo que dividiam o triângulo eram de filigrana de ouro branco, e eram encravados com pequenos diamantes. 

—Não havia percebido antes esse anel? — perguntou o cuidador. —Antes? — repeti desconcertada. —Antes de quê? —Tem estado usando esse anel desde que Florinda o deu de presente a você. —Mas,  quando? —  perguntei,  tapando minha  boca  com  a mão para  aplacar 

minha sensação

 de

 choque.

 —Não

 lembro

 que

 Florinda

 tenha

 me

 dado

 de

 presente

 um anel — sussurrei —, e por que não o notei antes? O cuidador deu de ombros, e ao não poder explicar‐se minha confusão, sugeriu 

que talvez eu não havia reparado no anel devido a ele se encaixar  tão bem em meu 

dedo. Pareceu a ponto de acrescentar algo, desistiu, e em troca me sugeriu continuar com o recolhimento de folhas. 

—Não posso — disse. —Preciso falar com Florinda. —Precisa  falar  com  ela?  —  perguntou,  como  se  eu  tivesse  enunciado  algo 

ridículo e insano. —Ela saiu para dar um passeio — explicou, e apontou com o dedo à 

trilha que conduzia aos montes. 

Consegui distinguir

 sua

 figura

 branca,

 que

 por

 momentos

 aparecia

 e logo

 tornava a submergir‐se no chaparral. —Eu a alcançarei — disse. —Ela  já está longe… — advertiu o cuidador. —Isso não é problema. Corri atrás de Florinda, e antes de alcançá‐la diminui meu passo para admirar a 

elegância de seu andar, seus movimentos vigorosos, atléticos, realizados sem esforço, com  as  costas  retas.  Quando  percebeu  minha  presença,  Florinda  se  deteve 

abruptamente e se virou, estendendo‐me as mãos. —Como está, querida? — perguntou, sua voz clara, alegre e muito suave. 

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  171

Em minha ansiedade por averiguar o referente ao anel, omiti saudá‐la como é 

devido, e com palavras confusas perguntei‐lhe se havia sido ela quem colocou a  jóia 

em meu dedo. —É minha agora? — perguntei. —Sim,  é  sua  por  direito  —  respondeu,  e  havia  algo  em  seu  tom,  uma 

segurança, que

 por

 sua

 vez

 me

 emocionou

 e aterrorizou.

 E no

 entanto

 nem

 me

 

ocorreu recusar esse presente, sem dúvida valioso. —Possui poderes mágicos? — perguntei, deixando que a  luz realçasse o brilho 

de cada pedra. —Não — respondeu rindo. —Não possui nenhum tipo de poder, apesar de ser 

um anel muito especial. Não por seu valor, ou porque tenha pertencido a mim, e sim 

porque a pessoa que o fez era alguém muito especial. —Era  joalheiro? A mesma pessoa que fez essas estranhas figuras que estão no 

quarto do cuidador? —A mesma, mas não era  joalheiro, e tampouco escultor, e teria rído se alguém 

o chamasse

 de

 artista.

 Sem

 dúvida,

 quem

 via

 sua

 obra

 não

 podia

 deixar

 de

 proclamá

‐lo

 

como  tal,  pois  unicamente  um  artista  podia  ter  produzido  as  maravilhas  que  ele 

produziu. Florinda se afastou uns passos e deixou vagar seu olhar pelos montes, como se 

a  distância  contivesse  memórias  que  ela  necessitava.  Depois,  devolvendo‐me  sua 

atenção, e numa voz apenas audível, revelou que tudo o que fazia esse nagual, fosse 

um anel, uma parede de tijolos, lajotas para o piso, as invenções maravilhosas ou uma simples caixa de papelão, se convertia em uma peça esquisita, não só em  termos de 

maravilhoso artesanato, e sim pela marca inefável com a qual os imbuía. Insisti que se 

o  anel  havia  sido  confeccionado  por  um  indivíduo  tão  extraordinário,  devia  possuir 

algum tipo

 de

 poder.

 —O anel em si não possui poder algum — assegurou Florinda — independente de quem o fez. O poder participou de sua gestação. O nagual estava tão intimamente compenetrado  com o que os  feiticeiros  chamam de  intento, que pôde  confeccionar este lindo anel sem ser  joalheiro. O anel representa um ato de puro intento. 

Resistindo a mostrar‐me como estúpida, não me animei a admitir que não tinha a menor  idéia  do  que  ela  queria  significar  com  intento,  de modo  que me  limitei  a 

perguntar‐lhe o que a havia movido a fazer‐me tão maravilhoso presente. —Não creio merecê‐lo — acrescentei. —Usará  o  anel  para  alinhar‐se  com  o  intento  —  foram  suas  instruções, 

acompanhadas por

 um

 sorriso

 perverso

 —,

 mas

 naturalmente

 você

  já

 sabe

 como

 fazer

 esse alinhamento. —Não  sei  nada  desse  assunto  —  respondi  defensivamente,  e  em  seguida 

confessei minha ignorância sobre o tema. —Talvez  não  conheça  o  significado  da  palavra, mas  sua  intuição  sabe  como 

fazer uma conexão com essa força. — Aproximou sua cabeça à minha, e me fez saber que eu sempre havia usado do  intento para mover‐me dos ensonhos à realidade, ou 

para fazer realidade meu ensonho,  fosse qual fosse. Olhou‐me de forma expectativa, sem  dúvida  esperando  que  eu  chegasse  a  conclusões  óbvias,  e  ao  constatar minha 

expressão desorientada, acrescentou: 

—Tanto 

as 

invenções 

que 

viu 

no 

quarto 

do 

cuidador 

como 

anel 

foram 

feitos 

em ensonhos. 

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  172

—Continuo sem compreender — lamentei‐me. —As  invenções  te  assustam,  e  o  anel  te  encanta,  e  dado  que  ambos  são 

ensonhos poderia ser o oposto… 

—Você me assusta, Florinda. O que quer dizer com isso? —Este, querida, é um mundo de ensonhos. Te estamos ensinando a consegui‐

los por

 sua

 conta

 —

 manteve

 seus

 olhos

 escuros

 e brilhantes

 fixos

 nos

 meus

 por

 uns

 

instantes,  e  depois  prosseguiu: —Neste momento  todos  os  feiticeiros  do  grupo  de 

Mariano Aureliano te ajudam a entrar neste mundo, e também a permanecer nele… — 

guardou silêncio uns momentos e depois concedeu que minha energia era agora maior que antigamente. —Energia que vem de suas economias, e do empréstimo que todos te fizemos. — Sua metáfora bancária era bem clara, mas ainda não compreendia sua 

referência ao anel e ao quarto do cuidador. —Olhe  ao  seu  redor!  —  exclamou,  estendendo  os  braços.  —Este  não  é  o 

mundo  cotidiano!  —  de  novo  observou  um  silêncio,  desta  vez  longo,  e  depois perguntou  em  voz  baixa  se  no  mundo  dos  afazeres  diários  era  factível  que  as 

mariposas se

 transformassem

 em

 anéis.

 —Um

 mundo

 —

 disse

 —

 seguro

 e 

rigorosamente estruturado pelas regras que nos foram designadas não permite esses prodígios. 

Eu carecia de resposta. Olhei em volta: as árvores, os arbustos, as montanhas distantes. Continuava me escapando  sua dedução. O que ela queria  indicar, concluí, teria que ser algo puramente subjetivo. 

—Não o é! —  insistiu Florinda,  lendo meus pensamentos. —Este é o ensonho 

de um feiticeiro. É algo real. Você entrou nele pois possui a energia necessária. Me observou resignada e disse: —Não  existem maneiras  para  ensinar  à mulher  a  ensonhar. O  único  que  se 

pode fazer

 é apoiá

‐las

 para

 que

 recebam

 o tremendo

 potencial

 de

 que

 dispõe

 seu

 organismo. “Posto  que  para  uma mulher  o  ensonhar  é  questão  de  dispor  de  energia,  o 

importante é convencê‐la da necessidade de modificar sua profunda socialização a fim 

de adquirir essa energia. O ato de fazer uso dela é automático; as mulheres ensonham 

ensonhos de feiticeiros no instante que têm à sua disposição essa energia.” Confessou  que  uma  questão  séria  acerca  dos  ensonhos  dos  feiticeiros, 

verificada em suas próprias experiências, era a dificuldade de  imbuir às mulheres de 

valor necessário para abrir novos caminhos. A maioria delas — e confessou ser uma delas — prefere suas cadeias conhecidas ao terror do novo. 

—O ensonhar

 é unicamente

 para

 mulheres

 valentes

 —

 me

 sussurrou

 ao

 ouvido.

 Depois  riu  forte e  agregou: —Ou  para  aquelas que não  têm outra opção, pois  suas circunstâncias  são  intoleráveis,  uma  categoria  à  qual  pertence  a  maioria  do  sexo 

feminino, sem sabê‐lo. O som de sua  risada  rouca  teve um  raro efeito em mim, algo assim como  se 

tivesse despertado de um longo sono e recordado algo esquecido enquanto dormia. —Isidoro Baltazar me falou da iminente partida. Quando é que partem? —Ainda não vou a parte alguma — disse com voz firme, mas tingida por uma 

infinita tristeza. —Sua mestra de ensonhos e eu ficaremos. O resto se dissipa. Não  compreendi  o  significado  de  sua  explicação,  e  visando  ocultar  minha 

confusão 

recorri 

um 

comentário 

 jocoso. 

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—Em  três anos minha mestra de ensonhos, Zuleica, não me dirigiu a palavra. Você e Esperanza são as únicas que me têm guiado e ensinado. 

As gargalhadas de Florinda reverberaram em torno de nós, um som alegre que 

por sua vez me produziu um intenso alívio e desconcerto. —Explique‐me algo, Florinda. Quando me deu este anel? Como é que passei de 

recolher folhas

 a possuir

 esta

 beleza?

 

O  rosto  de  Florinda  resplandecia  de  contentamento  ao  explicar  que  o 

recolhimento de folhas pode muito bem ser tomado como um dos acessos ao ensonho 

dos feiticeiros, sempre e quando se dispunha da suficiente energia como para cruzar o 

umbral. Tomando minha mão acrescentou: —Eu  te  dei  o  anel  enquanto  estava  cruzando,  e  no  entanto  sua mente  não 

registrou o feito. De repente, quando  já estava dentro do ensonho, o descobriu em seu 

dedo. Olhei‐a  com  curiosidade. Havia algo  incompreensível em  sua explicação, algo 

vago e confuso.

 

—Regressemos à casa —  sugeriu — e cruzemos de novo esse umbral. Talvez agora o reconheça. 

Voltamos sem pressa pelo mesmo caminho, aproximando‐nos da casa por trás. Eu  tomei  a  dianteira  para  ter  a  perfeita  noção  de  tudo,  e  com  olhos  bem  alertas, inspecionei as árvores, as lajotas e as paredes em busca de algum indício de mudança, ou algo que me permitisse  interpretar a  transição. O único ponto destacável acabou 

sendo a ausência do cuidador, e quando me virei para  informar a Florinda que nada 

havia  percebido  a  respeito  da  transição,  ela  já  não  estava  ali.  Havia  desaparecido, deixando‐me sozinha. 

Entrei na

 casa,

 e mais

 uma

 vez

 a encontrei

 vazia,

 mas

 esta

 sensação

 de

 solidão

  já  não  me  assustava.  O  temor  do  abandono  havia  perdido  sua  validade. Automaticamente me encaminhei à cozinha e comi os tamales de frango que haviam 

sobrado dentro de um cesto. Depois busquei minha rede e tentei por ordem em meus pensamentos. 

Ao  despertar  encontrei‐me  sobre  uma  cama  num  quarto  pequeno  e  escuro. Olhei  ao  redor,  desesperada,  em  busca  de  uma  explicação,  e  ao  detectar  umas sombras  grandes  que  se  agitavam  perto  da  porta,  me  levantei.  Em meu  afã  entre 

descobrir  se  a  porta estava  aberta,  e  com  as  sombras  dentro  do  quarto,  busquei o 

pinico sob a cama que, de alguma maneira, sabia que se encontrava ali, e o  joguei. O 

pinico caiu

 do

 lado

 de

 fora,

 rasgando

 o silêncio

 com

 seu

 ruído.

 As  sombras  desapareceram,  e  para  assegurar‐me  de  que  não  foram  simples produto de minha imaginação, abandonei o recinto. Desorientada, fixei a vista no alto 

cercado de algarobo, e de repente reconheci estar na parte posterior da casa pequena. Tudo  isto  ocupava minha mente  enquanto  buscava  o  pinico,  que  havia  rodado  até 

alcançar o cercado de algarobo. Quando me inclinei para recuperá‐lo, um coiote se aproveitou para escapulir, e 

num gesto automático eu o  joguei. O pinico errou o alvo e repicou numa pedra, mas o 

animal,  indiferente  ao  ruído  e  à minha  presença,  prosseguiu  seu  caminho,  e  teve  a 

audácia de virar várias vezes a cabeça para olhar‐me. Sua pele tinha o brilho prateado, 

sua 

espessa 

cauda, 

convertida 

em 

varinha 

mágica, 

despertava 

cada 

pedra 

ao 

tocá‐

la, 

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e estas, ao adquirir vida, lábios falantes e olhos que brilhavam, formulavam estranhas perguntas em vozes demasiado frágeis para ser escutadas. 

Meu  alarme  se  fez  grito,  enquanto  as  pedras  se  aproximavam  velozes.  De 

imediato soube que estava ensonhando. —Este  é  um  de  meus  costumeiros  pesadelos  —  murmurei.  —Com  seus 

monstros, seus

 medos

 e todos

 os

 demais.

 

Convencida de que uma vez reconhecido e enunciado o problema seus efeitos eram neutralizados, me resignei a viver o terror do pesadelo, quando ouvi a uma voz dizer: —Tente o caminho dos ensonhos. 

Ao virar‐me encontrei a Esperanza parada sob a ramada, cuidando de um fogo 

acendido sobre uma plataforma elevada, feita de varas e revestida de barro, e sob cuja 

luz ela se mostrava estranha e distante, separada de mim por uma distância em nada relacionada com o espaço. 

—Não  tenha  medo  —  ordenou,  e  depois  em  voz  mais  baixa  —,  todos compartilhamos nossos ensonhos, mas agora não está ensonhando — declaração que 

precisou repetir

 ao

 ver

 a dúvida

 estampada

 em

 meu

 rosto.

 

Cheguei mais perto dela. Não só sua voz havia perdido seu toque familiar, assim 

como ela mesma parecia diferente. De onde eu me encontrava era Esperanza, apesar do  qual  se  parecia  com  Zuleica. Ao me  aproximar mais  comprovei  que  era  Zuleica,  jovem,  forte  e  linda,  com  não mais  de  quarenta  anos.  Seu  rosto  ovalado  tinha  por marco  cabelos  negros  e  ondulados,  que  começavam  a  ficar  grisalhos,  com  um 

semblante pálido e coroado por olhos escuros e úmidos, bem separados um do outro, e  seu  olhar  abstraído,  enigmático  e  muito  puro.  Seu  lábio  superior,  muito  fino, insinuava  severidade,  enquanto  o  inferior,  quase  voluptuoso,  falava  de  doçura  e 

também de paixão. 

Fascinada pela

 mudança

 operada

 nela

 não

 pude

 tirar

 os

 olhos

 de

 cima

 dela,

 e concluí   que,  sem  dúvida,  ensonhava.  Seu  riso  revelou  que  havia  lido  meus 

pensamentos. Pegou minha mão e me falou com doçura: —Não está ensonhando, querida. Este é meu verdadeiro eu. Sou sua mestra de 

ensonhos, sou Zuleica. Esperanza é meu outro eu. Os  feiticeiros o chamam “o corpo 

energético ou o corpo de ensonhos”. Meu coração batia com uma violência tal que me doía o peito, e a ansiedade e 

a agitação por pouco me afogaram. Tentei retirar minha mão, que ela retinha com tal firmeza que não pude quebrar.  Fechei os olhos  com  força, pois mais que nada não 

desejava vê‐la ao abri‐los novamente mas, é claro, ali estava,  com os  lábios abertos 

num radiante

 sorriso.

 Fechei

 de

 novo

 os

 olhos

 e saltei

 socando

 o ar

 como

 se

 tivesse

 ficado  louca,  e  com minha mão  livre me  esbofeteei  repetidas  vezes  até  causar‐me 

intensa dor. De nada serviu; não conseguia despertar. Cada vez que abria os olhos foi para me ver de frente a ela. 

—Me parece que  já teve o bastante — disse rindo, quando lhe ordenei que me 

golpeasse, e apesar disso me obedeceu, administrando‐me dois fortes golpes na parte 

superior de meus braços com seu bastão. —De nada serve, querida — disse com uma voz que  soava cansada;  suspirou 

fundo  e  soltou minha mão. —Não  está  ensonhando,  e  eu  sou  Zuleica, mas  quando 

ensonho  sou Esperanza e algo mais  também, mas melhor deixarmos  isso para outra 

oportunidade. 

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Eu queria dizer algo, não  importava o que, mas não podia  falar. Minha  língua estava paralisada, e só emiti um lamento mirrado. Procurei relaxar‐me mediante certo 

modo de respirar aprendido numa aula de yoga. Meus esforços lhe causaram graça, e 

sua risada surtiu o efeito de acalmar‐me, tal era seu calor e a confiança que irradiava. Instantaneamente meu corpo se relaxou. 

—Você é uma

 espreitadora,

 e por

 direito

 pertence

 à Florinda

 —

 disse,

 e sua

 voz

 

não  admitia  discussão  ou  contradição.  —Também  é  sonâmbula  e  uma  grande 

ensonhadora natural, e em virtude disso também pertence a mim. Gostaria de ter rido e dizer‐lhe que estava completamente louca, porém outro 

aspecto meu estava em completo acordo com sua declaração. —Como quer que eu lhe chame? — perguntei. —Como  quero  que me  chame? —  repetiu,  olhando‐me  como  se  a  pergunta 

fosse  absurda.  —Eu  sou  Zuleica.  O  que  acha  que  é  isto?  Um  jogo?  Aqui  não  nos dedicamos aos  jogos. 

Surpreendida por sua veemência, apenas me ocorreu murmurar que não havia 

pensado que

 fosse

 um

  jogo.

 

—Quando  ensonho  sou  Esperanza  —  continuou.  Ela  parecia  séria,  mas  ao 

mesmo tempo radiante, a voz  incisiva e  intensa. —Quando não ensonho sou Zuleica, mas ser Esperanza, Zuleica ou qualquer outra não diz respeito a você. Sigo sendo sua 

mestra de ensonhos. Só pude assentir com um desvaído movimento de cabeça. Ainda se tivesse tido 

algo para dizer não teria podido fazê‐lo. Senti que um suor frio me escorria pelo corpo, minhas entranhas se afrouxaram e minha bexiga estava a ponto de estourar. Queria ir ao  banheiro  para  aliviar‐me  e  vomitar.  Não  pude  resistir;  era  questão  de  me 

emporcalhar ali mesmo ou correr ao toalete. Por sorte reuni a suficiente energia para 

optar pelo

 último.

 A

 risada

  juvenil

 de

 Zuleica

 me

 acompanhou

 por

 todo

 o trajeto.

 Quando voltei me convidou a sentar‐me  junto a ela em um banco de madeira. Obedeci automaticamente, sentando‐me na borda e pregando minhas mãos nervosas sobre os  joelhos. 

Em seus olhos se refletia uma dureza que, mitigada pela bondade, me  levou à 

certeza de que era, antes de tudo, um expoente de disciplina  interna. Seu  implacável autocontrole havia estampado  todo  seu  ser com um atrativo  selo ao mesmo  tempo 

fugidio e esotérico, mas não o esoterismo de comportamento oculto e furtivo, mas sim 

o do misterioso e desconhecido, e por tal razão, cada vez que a via, a seguia como um 

cachorro segue a seu dono. 

—Hoje você

 experimentou

 duas

 transições

 —

 explicou.

 —Uma,

 do

 estado

 de

 estar normalmente desperta ao de ensonhar desperta, e a outra de ensonhar desperta a estar normalmente desperta. A primeira foi suave e quase imperceptível, a segunda um pesadelo. Isso é normal, e todos a experimentamos dessa maneira. 

Consegui dar um sorriso forçado. —Mas ainda não sei o que foi que fiz. Não guardo memória de meus passos. As 

coisas  me  acontecem,  e  me  encontro  em  meio  de  um  ensonho  sem  saber  como 

cheguei ali. —O  normal  é  começar  a  ensonhar  dormindo  numa  rede  ou  algum  utensílio 

similar, pendurado em alguma viga, ou em uma árvore. Assim suspendidos não temos 

contato 

com 

chão. 

sólo 

nos 

captura, 

não 

esqueça 

disso. 

Suspendido 

assim, 

um 

ensonhador novato aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de 

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  176

ensonhar um ensonho a ensonhar desperto. Tudo  isto, como  já  lhe disse Florinda, é 

questão de energia. Assim que a tem, você voa. “Agora seu problema será se conseguirá armazenar suficiente energia por você 

mesma,  pois  os  feiticeiros   já  não  poderão  emprestá‐la  —  e  Zuleica  elevou  suas sobrancelhas exageradamente antes de agregar: —Veremos. Eu tratarei de relembrar‐

lhe isso

 na

 próxima

 vez

 em

 que

 nós

 compartilharmos

 nossos

 ensonhos

 —

 e riu

 como

 

uma criança ao observar o desconcerto que refletia meu rosto. —Como fazemos para compartilhar nossos ensonhos? — perguntei, buscando a 

resposta  nesses  olhos  incomparáveis,  escuros  e  brilhantes,  cujas  pupilas  irradiavam 

uma intensa luz. Em  lugar  de  responder  Zuleica  adicionou  um  par  de  lenhas  ao  fogo  que,  ao 

reavivar‐se,  intensificou a  luz circundante. Por um  instante permaneceu  imóvel, com 

os olhos fixos nas chamas, como recolhendo a  luz, e depois de dirigir‐me um breve e 

pungente  olhar,  sentou‐se  em  cócoras  e  envolveu  seus  joelhos  com  seus  fortes  e 

musculosos braços, e contemplando a escuridão, atenta ao crepitar do fogo, começou 

a balançar

‐se

 de

 lado

 a lado.

 

—Como compartilhamos nossos ensonhos? — repeti. Zuleica deteve seu movimento oscilante, sacudiu a cabeça, e depois levantou a 

vista, surpreendida, como se acabasse de acordar. —Por agora me é impossível explicar isso. O ensonhar é incompreensível. Tem 

que  vivê‐lo, não discuti‐lo,  assim  como no mundo diário, onde  antes de explicar ou 

analisar algo tem que tê‐lo experimentado. — disse isto de maneira lenta e deliberada, admitindo a importância de explicar os passos à medida que se davam. —Contudo, as explicações  são  às  vezes  prematuras,  e  este  é  um  desses  casos.  Algum  dia  verá  o 

sentido de tudo isto — concluiu, ao notar o desencanto que transmitia meu rosto. 

Com um

 movimento

 rápido

 ficou

 de

 pé

 e voltou

 à contemplação

 do

 fogo,

 como

 se seus olhos necessitassem nutrir‐se de sua  luz. Sua sombra projetada pelas chamas se fez enorme contra o teto e a parede da ramada, e sem sequer se despedir, recolheu 

suas amplas saias e buscou o refúgio da casa. Incapaz de mover‐me, fiquei pregada ao chão, apenas respirando à medida que 

o ressoar de suas sandálias se afastava. —Não me deixe! — gritei aterrada —, há coisas que preciso saber. Zuleica reapareceu de imediato. —O que precisa saber? — perguntou em tom distraído. —Sinto muito — me  desculpei —,  não  foi minha  intenção  gritar.  Achei  que 

havia entrado

 em

 um

 dos

 quartos

 —

 e meu

 olhar

 implorante

 esperou

 conseguir

 dela

 a almejada explicação. 

Não explicou nada,  limitando‐se a  repetir  sua pergunta. Perguntei a primeira coisa que me ocorreu: 

—Falará de novo comigo quando eu voltar a  lhe ver? —  temerosa de que  se 

não falasse ela tornaria a desaparecer. —Quando  te  ver  de  novo  não  estaremos  no  mesmo  mundo  de  antes  — 

respondeu. —Quem sabe o que faremos lá? —Mas a pouco —  insisti — você me disse que é minha mestra de ensonhos. 

Não me  deixe  no  escuro.  Explique‐me  as  coisas. Não  aguento mais  este  tormento; 

estou 

partida 

em 

dois. 

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  177

—Assim é — concordou. —Por certo está dividida — e me olhou com  infinita bondade —, mas  isso  se deve a que não abandona  seus  velhos hábitos. É uma boa 

ensonhadora. O cérebro dos sonâmbulos possui um potencial  formidável;  isso é… se 

você se decide a cultivar seu caráter. Apenas escutei o que dizia. Tentei em vão por em ordem meus pensamentos. 

Uma sucessão

 de

 imagens

 de

 acontecimentos

 não

 bem

 recordados

 desfilou

 por

 minha

 

mente com  incrível  rapidez, mas minha vontade não conseguia controlar  sua ordem 

nem  sua natureza. Depois estas  imagens  se  transformaram em  sensações,  as quais, não  obstante  sua  precisão,  recusavam  definir‐se,  recusavam  transformar‐se  em 

palavras ou nem sequer em pensamentos. Obviamente consciente de minha  incapacidade, o rosto de Zuleica se  iluminou 

com um sorriso. —Todos, e a todo o momento, temos ajudado ao nagual Mariano Aureliano a 

empurrar  você  à  segunda  atenção.  Ali  encontramos  continuidade  e  fluidez,  assim 

como na vida diária. Em ambos estados domina o prático, e atuamos eficientemente 

neles. No

 entanto,

 o que

 não

 podemos

 conseguir

 na

 segunda

 atenção

 é esmiuçar

 

nossa experiência para manejá‐la, nos sentirmos seguros e entendê‐la. Enquanto  falava  eu  pensava  comigo:  “Está  perdendo  seu  tempo  dizendo‐me 

tudo  isto…  Não  sabe  por  acaso  que  sou  por  demais  estúpida  para  entender  suas explicações?”, mas  ela  continuou  falando,  sorrindo, obviamente  sabendo  que  se  eu 

admitisse não  ser muito esperta,  isso equivaleria a  também admitir que em algo eu 

havia mudado; caso contrário, não me concederia tal fato nem a mim mesma. —Na segunda atenção — continuou — ou como eu prefiro chamá‐la, quando 

ensonhamos despertos, a pessoa deve crer que o ensonho é tão verdadeiro como no 

mundo  real.  Em  outras  palavras,  devemos  aceder .  Para  os  feiticeiros  todo  negócio 

mundano ou

 extramundano

 está

 regido

 por

 seus

 atos

 irretocáveis,

 e detrás

 de

 todo

 ato  irretocável  está  o  aceder ,  que  não  é  aceitação  passiva.  O  aceder   inclui  um 

elemento dinâmico:  inclui ação — e sua voz se  fez suave, e havia em seus olhos um 

brilho  febril  quando  terminou  dizendo:  —No  momento  em  que  começamos  a 

ensonhar desperto se nos abre um mundo de incitantes e inexploradas possibilidades, onde a última audácia se converte em realidade, onde se espera o inesperado. Esse é o 

momento em que começa a aventura definitiva do homem, e o universo se converte em um lugar de possibilidades e maravilhas ilimitadas. 

Seguiu‐se  a  isto  um  longo  silêncio,  durante  o  qual  Zuleica  pareceu  estar ponderando suas próximas palavras. 

—Com a ajuda

 do

 nagual

 Mariano

 Aureliano

 você

 chegou

 a contemplar

 o resplendor dos surem — começou, com voz suave e séria —, essas criaturas mágicas, 

que existem somente nas lendas dos índios, e que os feiticeiros podem ver unicamente quando ensonham despertos ao nível mais profundo. São seres de outro mundo, que 

brilham como seres humanos fosforescentes. Em continuação me deu um boa‐noite e entrou na casa, e após um momento 

de desconcerto corri atrás dela, mas antes de alcançar o umbral ouvi a voz de Florinda dizendo: 

—Não a siga! A presença de Florinda me foi tão  inesperada que precisei apoiar‐me contra a 

parede 

até 

que 

as 

batidas 

de 

meu 

coração 

se 

normalizassem. 

—Vem, faça‐me companhia — sugeriu. 

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Estava sentada no banco, alimentando o fogo, e a luz esquiva de seus olhos e a 

brancura  fantasmal de seus cabelos eram mais uma memória que uma visão. Deitei‐me sobre o banco como se fosse o mais natural, e coloquei minha cabeça em sua saia. 

—Nunca siga a Zuleica ou a nenhum de nós, a menos que se te peça que o faça —  advertiu  Florinda,  penteando meus  cabelos  com  seus  dedos. —Como  você  sabe 

muito bem,

 Zuleica

 não

 é o que

 parece

 ser.

 Sempre

 é mais,

 muito

 mais

 que

 isso.

 Nunca

 

trate de defini‐la, pois quando achar ter esgotado todas as possibilidades, te fará em 

pedaços ao ser mais do que você pode imaginar em suas mais delirantes fantasias. —Eu sei — respondi, acompanhando minhas palavras com um suspiro de alívio. 

Sentia  que  a  tensão  abandonava meu  rosto  e  também meu  corpo. —Zuleica  é  um 

surem das montanhas do Bacatete — disse com absoluta convicção —, faz tempo que 

conheço a existência dessas criaturas — e ao notar a surpresa no rosto de Florinda me 

encorajei. —Zuleica não nasceu como qualquer ser humano. Ela  foi estabelecida,  foi criada. É a própria encarnação da feitiçaria. 

—Não…  —  e  a  contradição  de  Florinda  foi  enfática.  —Zuleica  nasceu,  mas 

Esperanza não.

 Pense

 neste

 enigma.

 

—Creio compreender — murmurei —, mas  sou muito  insensível e não posso 

formular o que entendo. —Vai  indo  por  um  bom  caminho  —  comentou  risonha.  —Sendo  como  é, 

normalmente insensível, deve esperar a estar bem desperta, cem por cento desperta, para poder entender. Neste momento só alcança os cinquenta por cento. O segredo 

está  em  permanecer  em  estado  de  consciência  acrescentada,  onde  nada  nos  é 

impossível  compreender —  e  ao  adivinhar minha  intenção  de  interrompê‐la,  cobriu 

minha  boca  com  sua  mão.  —Não  pense  nisso  agora.  Lembre‐se  sempre  que  é 

compulsiva,  ainda  que  em  estado  de  consciência  acrescentada,  e  que  seus 

pensamentos não

 são

 profundos.

 Ouvi que algo se movia nas sombras que os arbustos projetavam, e levantando‐

me exigi que, quem quer que fosse, se identificasse. Me responderam risos femininos. —Não pode vê‐las — anunciou Florinda. —E por que se escondem de mim? —Não se escondem de ti — explicou Florinda com um sorriso. —É só que você 

não pode vê‐las sem a ajuda do nagual Mariano Aureliano. Não  soube o que dizer. Por um  lado, as palavras de Florinda  tinham sentido, 

apesar ao qual me encontrei meneando a cabeça num gesto negativo. —Pode me ajudar a vê‐las? 

—Mas seus

 olhos

 estão

 cansados

 —

 objetou

 Florinda

 —,

 cansados

 de

 ver

 em

 excesso. Precisa dormir. Deliberadamente mantive  os  olhos  bem  abertos,  temerosa  de  perder  o  que 

emergisse dos arbustos assim que eu diminuísse minha atenção, e  fiquei olhando as sombras  e  os  arbustos  sem  poder  determinar  qual  era  qual,  até  cair  num  sono 

profundo. 

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CAPÍTULO DEZOITO 

O  cuidador  se  encontrava  cochilando  sobre  seu  banco  favorito  à  sombra  do 

sapoti. Sua atividade  se havia  reduzido a  isso nos últimos dois dias.  Já não varria os pátios nem recolhia as  folhas; em  troca dedicava horas a dormitar ou contemplar os 

arredores, como

 se

 tivesse

 um

 secreto

 entendimento

 com

 algo

 que

 só

 ele

 podia

 ver.

 

Tudo havia mudado na  casa, e de maneira  incessante me perguntava  se não 

tinha  sido um erro de minha parte  ter vindo  visitá‐los. Como de costume me  sentia culpada e na defensiva, e dedicava meu tempo a dormir durante horas. Não obstante, quando estava desperta, me perturbava comprovar que  já nada era igual, e percorria a 

casa sem um propósito fixo. Mas tudo era inútil. Algo parecia ter fugido dessa casa. Um prolongado e sonoro suspiro do cuidador interrompeu minhas reflexões, e 

 já incapaz de conter durante mais tempo minha ansiedade, deixei o livro que lia, fiquei de  pé  e,  aproximando‐me,  o  convidei  a  recolher  e  queimar  folhas. Minha  pergunta pareceu sobressaltá‐lo, mas não respondeu a ela. Era impossível captar a expressão de 

seus olhos

 devido

 aos

 óculos

 escuros

 que

 usava,

 e não

 soube

 se

 permanecia

 ali

 à 

espera de sua resposta ou se me afastava, e  temendo que  tornasse a dormir,  liberei minha  impaciência  para  perguntar‐lhe  se  existia  uma  razão  para  ter  abandonado  a 

coleta e a queima das folhas. Desviou minha pergunta com uma própria. —Tem visto ou escutado cair uma folha nestes últimos dois dias? — e tirando 

as lentes escuras me perfurou com o olhar. Seu porte e a severidade com que me falou, antes que as palavras em si, que 

considerei  ridículas, me moveram  a  dar‐lhe  uma  resposta  negativa.  Convidou‐me  a 

compartilhar seu banco, e aproximando‐se me sussurrou no ouvido: 

—Estas árvores

 sabem

 exatamente

 quando

 devem

 desprender

‐se

 de

 suas

 folhas… — olhou ao redor como se temesse ser escutado, e em seguida acrescentou: —E sabem que agora não é necessário. 

—As folhas secam e caem, apesar de tudo — anunciei pomposamente. —É uma lei da natureza. 

—Estas  árvores  são  muito  caprichosas  —  manteve,  teimoso  —,  têm  mente 

própria, não respeitam as leis da natureza. —E o que é que as levou a não descartar suas folhas? —Essa  é  uma  boa  pergunta —  sussurrou,  coçando  sua  barbinha  em  atitude 

pensativa. —Lamento  ainda  não  conhecer  a  resposta;  as  árvores  não me  disseram 

pois, como

  já

 te

 falei,

 estas

 são

 árvores

 temperamentais

 —

 e antes

 que

 eu

 pudesse

 responder  me  surpreendeu  com  algo  totalmente  inesperado:  —Já  preparou  sua 

comida? A  abrupta  mudança  de  tema  me  desorientou.  Admiti  ter‐me  preparado  o 

almoço, depois do qual se apoderou de mim um humor quase desafiante, que me fez dizer: 

—Não  é  que  a  comida  me  interesse  tanto.  Estou  acostumada  a  comer  o 

mesmo,  dia  após  dia,  e  se  não  fosse  que  o  chocolate  e  as  nozes me  produzissem 

espinhas  na  cara,  viveria  sempre  disso…  —  depois  abandonei  toda  precaução,  e 

comecei a queixar‐me. Disse ao cuidador que desejava que as mulheres me falassem. 

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—Apreciaria de que me mantivessem a par do que está acontecendo, pois a 

ansiedade está me matando — e ao descarregar‐me me senti melhor, muito aliviada. —É verdade que se vão para sempre? 

—Já partiram para sempre — informou o cuidador, que ao ver minha expressão 

desconcertada, acrescentou: — Mas você  já sabia, não é? Está falando só para puxar 

conversa, não

 é verdade?

 

Antes  que  eu  conseguisse  me  refazer  do  choque,  perguntou  num  tom  de 

autêntica perplexidade: —Por que isso te afeta? — e respondeu a si mesmo após uma pausa: —Já sei! 

Já o  tenho! Está  furiosa porque  levaram a  Isidoro Baltazar com eles. — Deu‐me um 

tapa nas costas como para enfatizar cada palavra, seu olhar me dizia que pouco  lhe 

importava que eu desembocasse em lágrimas ou em um de meus ataques de raiva. Saber que carecia de público me serenou de imediato o ânimo. —Isso eu não sabia — murmurei —,  juro que não o sabia. — Senti meu rosto 

exausto, dor nos  joelhos e uma tremenda opressão no peito, e sentindo‐me próxima 

de desmaiar,

 aferrei

 ambas

 as

 mãos

 ao

 banco.

 

As  palavras  do  cuidador  me  chegaram  de  muito  longe:  —Ninguém  sabe  se 

regressará,  nem  sequer  eu.  Minha  impressão  pessoal  é  que  se  foi  com  eles temporariamente, mas voltará, se não logo, então algum dia. Essa é minha opinião. 

Tentei  descobrir  em  seus  olhos  algum  sinal  de  fingimento,  mas  seu  rosto 

irradiava bondade e  honestidade, e  seus olhos brilhavam  sinceros  como os de  uma criança. 

—Não obstante — advertiu o cuidador —, quando regressar,  já não será Isidoro 

Baltazar,  o  Isidoro Baltazar  que  você  conheceu.  Esse  se  foi,  e  sabe  o  que  é  o mais triste?  —  e  de  novo,  após  uma  pausa,  respondeu  sua  própria  pergunta.  —Você  o 

aceitou como

 algo

 tão

 natural

 que

 nem

 sequer

 lhe

 agradeceu

 por

 seus

 cuidados,

 sua

 ajuda e  seu afeto por  você. Nossa grande  tragédia é a de  ser bufões,  indiferentes a 

tudo salvo nossa bufonaria. Eu me sentia oprimida demais até para emitir palavra. Com um de seus usuais 

movimentos abruptos, o cuidador ficou de pé e caminhou em direção ao caminho que 

conduzia à outra casa. Diria‐se que era como se estivesse envergonhado demais para permanecer comigo. 

—Não pode me deixar aqui, sozinha! — gritei‐lhe. Virou‐se  para me  fazer  sinais  com  a mão, e depois  começou  a  rir,  com  uma 

risada  alegre  que  ressoava  no  chaparral.  Agitou  sua mão  pela  última  vez,  e  depois 

desapareceu como

 se

 os

 arbustos

 o

 tivessem

 tragado.

 Incapaz de  segui‐lo, aguardei  seu  regresso, ou uma de  suas  súbitas aparições para assustar‐me. Já estava me preparando para tal susto, intuído em meu corpo, mais que antecipado mentalmente. Como  já havia acontecido anteriormente, não  vi nem 

escutei  a  Esperanza  aproximar‐se,  ainda  que  tenha  percebido  sua  presença.  Eu me 

virei, e ali estava, sentada no banco sob o sapoti, e o simples fato de vê‐la me encheu 

de alegria. —Pensei que nunca te veria de novo — suspirei. —Quase me havia resignado a 

isso. Pensei que havia partido. —Santo Deus! — comentou com um toque  jocoso. 

—Você 

é 

na 

verdade 

Zuleica? 

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  181

—Nem  sonhe  isso. Sou Esperanza. E  você, o que  faz?  Está  se pondo maluca, fazendo perguntas às quais ninguém pode responder? 

Jamais  em  minha  vida  estive  tão  perto  de  um  colapso  total  como  nesse 

momento. Senti que minha mente não aguentaria tanta pressão, e que minha angústia e minha inquietação me destruiriam. 

—Força, garota

 —

 ordenou

 Esperanza

 com

 dureza

 —,

 ainda

 falta

 o pior,

 mas

 

não podemos  ter piedade contigo. Parar a pressão porque está por vir abaixo não é 

coisa de feiticeiros. Seu desafio é o de ser posta à prova hoje. Ou vive ou morre, e não 

o digo metaforicamente. —Já não verei mais a  Isidoro Baltazar? — perguntei através das  lágrimas que 

me tornavam difícil o falar. —Não  posso  mentir  para  lhe  evitar  a  dor.  Não,  nunca  regressará.  Isidoro 

Baltazar  é  só  um  momento  de  feitiçaria.  Um  ensonho  que  passou  depois  de  ser ensonhado. Isidoro Baltazar, assim como o ensonho,  já se dissipou. 

Um leve sorriso, quase nostálgico, curvou seus lábios. 

—O que

 ainda

 não

 sei

 é se

 este

 homem,

 o novo

 nagual,

 também

 se

 foi

 

definitivamente. Logicamente você entende que, mesmo se ele voltar, não será Isidoro 

Baltazar. Será outra pessoa, que você terá que conhecer de novo. —Será um desconhecido para mim? — perguntei não muito segura de querer 

sabê‐lo. —Não  o  sei,  filha  —  respondeu  com  o  desânimo  próprio  da  incerteza.  —

Sinceramente não o sei. Eu mesma sou um ensonho, como também o é o novo nagual. Ensonhos  como  nós  têm  a  marca  de  não  ser  permanentes,  pois  é  nossa impermanência o que nos permite existir. Nada nos retém exceto o ensonho. 

Cegada por minhas lágrimas me era quase impossível vê‐la. 

—Para aliviar

 sua

 pena

 afunde

‐se

 em

 si

 mesma

 —

 aconselhou.

 —Sente

‐se

 com

 os  joelhos  elevados,  tomando  seus  tornozelos  com os  braços  cruzados: o  tornozelo 

direito com a mão esquerda. Descansa sua cabeça sobre os  joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a terra te acalme, que sua força curativa venha a ti. 

Sentei‐me no chão da maneira aconselhada, e num curto tempo minha tristeza havia se dissipado, substituída por uma sensação corporal de bem‐estar. Perdi a noção 

de mim mesma, salvo em relação com o momento que estava vivendo. Desprovida de 

minha memória subjetiva a dor não existia. Com a mão, Esperanza assinalou o  lugar  junto a ela no banco, e assim que o 

ocupei,  ela  pegou  minha  mão  para  esfregá‐la  um  momento,  como  se  a  estivesse 

massageando. Depois

 comentou

 que

 por

 ser

 uma

 mão

 tão

 ossuda

 até

 que

 tinha

 bastante  carne. Virou a palma para cima e a estudou  com detenção, para  terminar, sem dizer uma palavra, fechando‐a num punho. Permanecemos um longo período em 

silêncio. Caía a tarde, e nada se escutava, além do rítmico som das folhas agitadas pelo 

vento. Observando‐a, se apoderou de mim uma estranha certeza: sabia que Esperanza e  eu  havíamos  falado  muito  a  respeito  de  minha  vinda  à  casa  e  da  partida  dos feiticeiros. 

—O que está acontecendo comigo, Esperanza? Estou ensonhando? —Bom…  —  rebateu,  e  com  olhos  chispantes  me  recomendou  submeter  o 

ensonho a uma prova. —Sente‐se no chão e comprove‐o. 

Assim 

fiz, 

mas 

única 

coisa 

que 

senti 

foi 

frio 

da 

rocha 

sobre 

qual 

me 

sentei. 

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—Não  estou  ensonhando —  assegurei —  em  tal  caso,  por  que  sinto  que  já 

falamos disso? — e estudei seu rosto a procura de algum  indício que resolvesse meu 

dilema. —Esta é a primeira vez que te vejo desde minha chegada, mas sinto que temos estado  juntas todos os dias — disse, mais para consumo próprio que para ser escutada por Esperanza. —Já são sete dias. 

—Muito mais

 que

 isso

 —

 respondeu

 —,

 mas

 é algo

 que

 precisa

 resolver

 

sozinha, com um mínimo de ajuda. Manifestei meu acordo. Era muito o quê queria perguntar, mas sabia e aceitava 

que falar seria inútil. Sabia, sem saber como o sabia, que  já havíamos tocado em todos esses  temas,  e  que  me  encontrava  saturada  de  respostas.  Esperanza me  observou 

pensativa  e  duvidosa.  Depois,  muito  lentamente,  enunciando  suas  palavras  com 

cuidado, disse: —Devo advertir‐lhe que a consciência que tenha adquirido, não  importa quão 

profunda e permanente  te possa parecer a  ti, é  só  temporária, e  logo  regressará às suas bobagens. Essa é a sina de nós, mulheres: ser singularmente difíceis. 

—Acho que

 está

 equivocada

 —

 protestei.

 —Não

 me

 conhece

 em

 absoluto.

 

—É  precisamente  porque  te  conheço  que  digo  isto  —  e  após  uma  pausa acrescentou com voz áspera e séria: —As mulheres são muito astutas. Lembre‐se que, ao ser criadas para ser serventes, elas se tornam extremamente furtivas e astutas — e 

seu riso explosivo apagou qualquer desejo meu de protestar. “O melhor que pode fazer é não dizer nada…” — disse, e tomando minha mão 

me ajudou a pôr de pé, e sugeriu entrar na casa pequena para  termos uma  longa e 

muito necessária conversa. Não  entramos  na  casa,  e  sim  nos  sentamos  em  um  banco   junto  à  porta 

principal. Ficamos ali em silêncio quase uma hora, depois do qual Esperanza virou‐se 

para mim.

 Parecia

 não

 ver

‐me,

 e cheguei

 a perguntar

‐me

 se

 não

 haveria

 esquecido

 que

 eu  tinha vindo com ela, e que me encontrava sentada ao seu  lado. Sem  reparar em 

minha existência, ficou de pé para afastar‐se uns passos, olhar a outra casa, e depois de um longo período dizer: 

—Vou te levar longe. Não  poderia  dizer  se  foi  a  esperança,  a  excitação  ou  o  temor  o  que  me 

provocou uma estranha  sensação desagradável na boca do estômago. Sabia que ela não se referia à distância em termos de milhas, e sim aludindo a outros mundos. 

—Não me importa se é longe onde vamos — disse, bravata que estava longe de 

sentir. Desesperadamente desejava saber, mas não me animava a perguntar qual seria 

o destino

 final

 de

 nossa

 viagem.

 Esperanza sorriu e abriu bem os braços, como para abraçar o sol poente que 

morria  num  declínio  em meio  a  um  incêndio. As montanhas  distantes  eram  de  um 

púrpura escuro, e uma  leve brisa se  infiltrava por entre as árvores  fazendo mexer as folhas.  Seguiu  uma  hora  silenciosa  e  depois  tudo  se  deteve  quando  o  encanto  do 

crepúsculo imobilizou o mundo ao redor. Cessaram todos os sons e cada movimento, e 

os contornos dos arbustos, das árvores e das serras se viam definidos de maneira tão 

precisa que se diria que haviam sido recortados contra o céu. Me aproximei de Esperanza a medida que as sombras nos rodeavam, e o céu se 

desvanecia. A  visão  da  outra  casa,  silenciosa,  com  suas  luzes  brilhando  como  vaga‐

lumes 

na 

escuridão, 

evocou 

em 

mim 

uma 

profunda 

emoção 

sepultada 

em 

meu 

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interior,  e  não  ligada  a  nenhuma  vivência  de momento,  e  sim  a  uma  vaga,  triste  e 

nostálgica lembrança  juvenil. Devo  ter  estado  profundamente  imersa  em  meus  pensamentos,  pois  de 

repente  me  encontrei  caminhando   junto  a  Esperanza.  Meu  cansaço  e  anterior ansiedade  haviam  desaparecido,  e  cheia  de  uma  nebulosa  sensação  de  vigor, 

marchava em

 uma

 espécie

 de

 êxtase

 e de

 felicidade

 silenciosa,

 meus

 pés

 

impulsionados por algo superior à minha vontade. Nosso  caminho  terminou  abruptamente.  O  terreno  era  uma  ladeira,  e  as 

árvores  se  estendiam  bem  alto  sobre  nossas  cabeças.  Grandes  rochas  estavam 

esparramadas  aqui  e  ali,  e  de  longe  chegava  o  som  de  águas  que  corriam,  som 

parecido  a  um  suave  e  reconfortante  canto.  Com  um  suspiro,  repentinamente fatigada, recostei‐me contra uma das rochas e desejei que este fosse o final de nossa viagem. 

—Não  chegamos  ainda  ao  nosso  destino!  —  gritou  Esperanza,  que   já, movendo‐se  com  a agilidade de uma  cabra, havia escalado a metade de um  trajeto 

rochoso. Não

 me

 esperou,

 nem

 sequer

 voltou

 seu

 olhar

 para

 constatar

 se

 eu

 a seguia.

 

Meu curto descanso me havia despojado de minha última  fortaleza, e apenas pude segui‐la com dificuldade, a respiração entrecortada, resvalando entre as pedras. Na  metade  do  caminho  a  trilha  continuava  contornando  uma  pedra  enorme,  e  a 

vegetação seca e quebradiça cedeu  lugar a plantas  frondosas, escuras na prematura luz  crepuscular.  Também  mudou  o  ar,  agora  úmido  e  para  mim  mais  respirável. Esperanza  se movia com  segurança pela estreita  trilha cheia de  sombras,  silêncios e 

sussurros. Conhecia os sons misteriosos da noite, e  identificou em voz  forte cada um 

de  seus gritos,  chamados,  coaxares e assobios. Uns degraus  cortados na  rocha, que 

conduziam a um oculto montículo de pedras, interromperam nosso caminho. 

—Recolha uma

 e guarde

‐a em

 seu

 bolso

 —

 ordenou.

 À primeira vista todas as pedras pareciam iguais, lisas como as de um córrego, porém uma inspeção mais detalhada revelava suas diferenças. Algumas eram tão lisas e brilhantes que pareciam ter sido  lustradas. Me tomou tempo escolher uma de meu 

gosto; pesada, mas que encaixava com perfeição na palma de minha mão; de uma cor marrom  claro,  forma de cunha e entrecruzada por  veias  leitosas quase  translúcidas. Um ruído me sobressaltou e quase soltei a pedra. 

—Alguém nos segue — adverti em voz baixa. —Ninguém  está  nos  seguindo!  —  respondeu  Esperanza,  entre  incrédula  e 

divertida, e riu ao ver que me refugiava atrás de uma árvore. —Possivelmente seja um 

sapo saltando

 entre

 o matagal.

 Teria querido dizer‐lhe que os sapos não saltam na escuridão, mas não estava muito certa disso, e me surpreendeu não tê‐lo dito espontaneamente, e com absoluta certeza, como era habitual em mim. 

—Algo  anda  mal  em  mim,  Esperanza  —  disse,  alarmada.  —Não  sou  a  de 

sempre. —Nada anda mal, querida — me assegurou. —Na verdade é mais você mesma 

que nunca. —Me sinto estranha… — e minha voz se perdeu. Pela primeira vez desde minha 

chegada  à  casa das  bruxas  começava  a  perceber  uma  configuração  reconhecível no 

que 

estava 

me 

acontecendo. 

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—É  muito  difícil  ensinar  algo  tão  insubstancial  como  ensonhar  —  disse 

Esperanza. —Especialmente às mulheres, que somos tão preparadas e esquivas. Além 

do mais, temos sido escravas toda a vida, e sabemos manipular muito bem as coisas quando não queremos que nada transtorne aquilo pelo qual tanto temos trabalhado: nosso status quo. 

—Quer dizer

 que

 os

 homens

 não

 fazem

 o mesmo?

 

—Eles  o  fazem,  contudo  são  mais  abertos.  As  mulheres  lutam  com 

subterfúgios.  Sua  técnica  preferida  é  a manobra  do  escravo:  desconectar  a mente. Escutam sem prestar atenção, e olham sem ver. — Acrescentou que ensinar à mulher era tarefa digna de elogios. 

—Nós  gostamos  da  franqueza  de  sua  forma  de  lutar,  e  temos  muitas esperanças em ti. O que mais tememos é à mulher agradável, que não se opõe ao novo 

e  faz  tudo  o  que  lhe  pedem,  para  depois  se  recriminar  assim  que  se  aborrece  da 

novidade. —Acho que começo a compreender — respondi, um tanto insegura. 

—Mas é claro

 que

 começou

 a compreender!

 —

 e sua

 segurança

 era

 tão

 

comicamente triunfalista que provocou risos em mim. —Inclusive começou a entender o que é o intento. 

—Quer dizer que começo a ser uma feiticeira? — perguntei, e todo meu corpo 

se sacudiu quando tratei de evitar o riso. —Desde sua chegada tem estado, por momentos, ensonhando desperta. É por 

isso que você dorme com tanta facilidade — e apesar de sorrir não havia em seu rosto 

sinal algum de ironia ou condescendência. Caminhamos um  tempo em silêncio, e depois ela disse que a diferença entre 

um feiticeiro e uma pessoa comum era que o feiticeiro podia voluntariamente entrar 

num estado

 de

 ensonhar

 desperto.

 Tocou

 meu

 braço

 repetidas

 vezes,

 como

 para

 enfatizar suas palavras, e então acrescentou num tom confidencial: —E ensonha desperta porque,  para  ajudar‐lhe  a  aguçar  sua energia,  criamos 

uma bolha em torno de ti desde a primeira noite que chegou aqui. Acrescentou que desde que me conheceram me haviam dado o sobrenome de 

 fosforita. —Você se queima rápido demais e de forma desnecessária. — Com um gesto 

me ordenou tranquilizar‐me, e opinou que eu não sabia enfocar minha energia. —Você a desdobra para proteger e apoiar a idéia de ti mesma. — de novo seu 

gesto  ordenou  silêncio,  e  disse  que  o  que  pensamos  ser  nosso  eu  pessoal  é  na 

realidade só uma  idéia, e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia 

defendendo essa

 idéia.

 As sobrancelhas de Esperanza se elevaram um pouco quando sorriu e disse: —O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma  idéia que 

pode ser mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando  se  afasta  a  idéia  de  eu,  os  feiticeiros  têm  a  energia  para  alinhar‐se  com o 

intento, e ser mais do que acreditamos constituir o normal. —As mulheres, por possuir um útero, podem enfocar sua atenção com grande 

facilidade em algo fora de seus ensonhos enquanto ensonham. Isso é precisamente o 

que você vem fazendo todo este tempo sem sabê‐lo. Esse objeto se converte em uma ponte que te conecta com o intento. 

—E 

qual 

objeto 

eu 

uso? 

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Captei um toque de  impaciência em seus olhos. Depois disse que usualmente era uma  janela, uma luz ou ainda uma cama. 

—É tão destra nisso que o consegue naturalmente — assegurou. —Por isso tem 

pesadelos.  Tudo  isso  eu  lhe  disse  estando  você  num  profundo  estado  de  ensonhar desperta,  e  você  entendeu  que,  sempre  e  quando  recuse  enfocar  sua  atenção  em 

qualquer objeto

 antes

 de

 adormecer,

 conseguirá

 evitar

 os

 pesadelos.

 Está

 curada,

 não

 

é mesmo? É  claro  que minha  reação  inicial  foi  contradizê‐la, mas  depois  de  pensar  um 

segundo não pude fazer menos que estar de acordo. Após conhecer a esta gente em 

Sonora havia ficado relativamente livre de pesadelos. —Nunca estará verdadeiramente  livre se persistir em ser a mesma de sempre 

— declarou. —É óbvio que o que deveria fazer é explorar seus talentos para ensonhar de maneira deliberada e  inteligente.  Para  isso  está  aqui, e  a primeira  lição é  que  a 

mulher  deve,  através  de  seu  útero,  enfocar  sua  atenção  sobre  um  objeto. Não  um 

objeto  de  ensonho  em  si,  e  sim  um  objeto  independente,  pertencente  ao  mundo 

anterior ao

 ensonho.

 

—Contudo —  complementou —, não é o objeto o que  importa, e  sim o  ato 

deliberado de enfocá‐lo à vontade, antes e durante o ensonho. — Advertiu‐me que 

apesar de parecer simples, tratava‐se de uma tarefa formidável, que poderia levar‐me 

anos  para  dominá‐la. —O  que  normalmente  acontece  é  que  a  pessoa  desperta  no 

instante em que enfoca sua atenção num objeto externo. —O que significa usar o útero? — perguntei. —E como se consegue? —Você é mulher, e sabe sentir com o seu. Desejava contradizê‐la, dizer‐lhe que não tinha a mais remota idéia, mas antes 

que pudesse fazê‐lo, ela explicou que na mulher o sentir emana do útero. 

—No homem

 se

 origina

 no

 cérebro

 —

 e depois

 de

 dar

‐me

 um

 suave

 golpe

 no

 estômago me recomendou pensar sobre  isto. —A mulher é desapiedada exceto com 

sua prole, pois seus sentimentos vêm do útero. Para enfocar sua atenção através do 

útero coloque um objeto sobre seu estômago, ou esfregue‐o com seu órgão oco — e 

riu  com  gosto  ao  observar  a  expressão  de  meu  rosto.  Então,  entre  risos,  me 

repreendeu: —E olha que não  fui tão má. Podia dizer‐lhe que era necessário untar o 

objeto com suas secreções, mas não o fiz. Uma vez estabelecida uma estreita afinidade com  o  objeto —  continuou,  agora  séria —,  sempre  estará  presente  para  servir‐lhe 

como ponte. Caminhamos um trecho em silêncio, ela parecendo profundamente imersa em 

seus pensamentos.

 Eu

 fervia

 por

 dizer

 algo,

 apesar

 de

 saber

 que

 nada

 tinha

 para

 dizer.

 Quando Esperanza finalmente falou, seu tom era sério. —Já não lhe sobra tempo para desperdiçar. É muito natural que devido à nossa 

estupidez  nós  fodemos  com  as  coisas,  e  isto  os  feiticeiros  o  sabem  melhor  que 

ninguém.  Mas  igualmente  sabem  que  não  existem  segundas  oportunidades.  Deve 

aprender controle e disciplina, pois  já não há margem para erros. —Você fodeu a si mesma, sabia? — disse ela. —Nem sequer sabia que Isidoro 

Baltazar havia partido. O  dique  etéreo  que  continha  a  avalanche  de  sentimentos  se  desmoronou. 

Reapareceu minha memória, e de novo me dominou a tristeza, fazendo‐se tão intensa 

que 

nem 

me 

dei 

conta 

de 

ter‐

me 

sentado 

estar 

afundando‐

me 

no 

chão 

como 

se 

este 

fosse  de  esponja.  Em  última  instância  o  sólo  me  tragou.  Não  resultou  ser  uma 

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experiência sufocante ou claustrofóbica, pois a sensação de estar sentada na superfície coexistiu com a de ser tragada pela terra, uma sensação dual que me fez gritar: “Estou 

ensonhando!”,  e  este  anúncio  em  voz  alta  desatou  algo  dentro  de mim,  uma  nova avalanche de memórias diferentes me invadiu. 

Cada noite, desde minha chegada, havia ensonhado o mesmo ensonho, o qual 

até esse

 momento

 havia

 esquecido.

 Ensonhei

 que

 todas

 as

 feiticeiras

 vinham

 ao

 meu

 

quarto  para  instruir‐me,  e me  diziam  uma  e  outra  vez  que  ensonhar  era  a  função 

secundária  do  útero,  sendo  a  primeira  a  reprodução  e  tudo  o  relativo  a  ela.  Me 

disseram que ensonhar era nas mulheres uma  função natural, um puro corolário de 

energia. Dotado de suficiente energia o corpo da mulher, por si só, desperta as funções secundárias do útero, e a mulher ensonha ensonhos inconcebíveis. 

Não  obstante,  essa  energia  necessária  se  assemelha  à  ajuda  a  países subdesenvolvidos: nunca chega. Algo na ordem geral de nossa estrutura social impede 

que  essa  energia  se  libere  para  que  as  mulheres  possam  ensonhar.  Segundo  as feiticeiras, se essa energia fosse  liberada de uma  forma clara e tangível, derrubaria a 

ordem “civilizada”

 das

 coisas.

 A

 grande

 tragédia

 da

 mulher

 é que

 sua

 consciência

 social

 

domina  por  completo  a  individual.  A  mulher  teme  ser  diferente,  e  não  gosta  de 

afastar‐se por demais da  comodidade do  conhecido. As pressões  sociais às quais  se 

vêem submetidas para não se afastar são simplesmente  fortes demais, e ao  invés de 

mudar se rendem ao estabelecido: a mulher existe para estar a serviço do homem, e 

portanto não pode ensonhar ensonhos de  feiticeiros, apesar de possuir a disposição 

orgânica para isso. O  feminismo  tem destruído as oportunidades da mulher, e quer seja por  seu 

apego  religioso  ou  científico,  marca‐as  por  igual  com  o  mesmo  selo:  sua  principal função é reproduzir, e em última análise, pouco importa se a mulher tenha alcançado 

um nível

 de

 igualdade

 política,

 social

 ou

 econômica.

 As mulheres me repetiam isto cada noite, e quanto mais recordava e entendia suas palavras, maior era minha  tristeza; não só a  título pessoal como por  todas nós, uma raça de seres esquizofrênicos aprisionada em uma ordem social que nos amarra às  nossas  próprias  incapacidades.  Se  conseguimos  nos  libertar,  é  somente  por momentos, uma claridade efêmera vivida antes de cair de novo, de forma involuntária ou deliberadamente, em um poço de obscuridade. 

Escutei  uma  voz  que  dizia  “basta  com  essa  faxina  sentimental”,  uma  voz  de 

homem que percebi ser a do cuidador, que me olhava. —Como  chegou  aqui?  —  perguntei,  perplexa  e  um  pouco  confusa.  —Você 

estava me

 seguindo?

 —

 a qual,

 mais

 que

 uma

 pergunta,

 era

 uma

 acusação.

 —Sim, eu venho seguindo a você em especial — e me presenteou com um de 

seus olhares maliciosos. Estudei seu rosto. Não acreditava nele; sabia que estava brincando, apesar do 

qual não me aborrecia ou assustava essa intensa luz que irradiavam seus olhos. —Onde está Esperanza? — perguntei ao comprovar que havia desaparecido. —

Onde…? — não pude superar o gaguejo. As palavras se recusavam a sair. —Anda por aí  — respondeu com um sorriso. —Não fique aflita. Eu também sou 

seu mestre. Está em boas mãos. Vacilante  lhe estendi uma mão, e  sem esforço algum ele me ajudou a  trepar 

numa 

rocha 

plana, 

situada 

sobre 

uma 

pequena 

lagoa 

ovalada, 

que 

era 

alimentada 

por 

um riacho de sons relaxantes, vindo de algum ponto entre as trevas. 

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—E agora tire suas roupas — ordenou. —É hora de seu banho cósmico! —Meu quê? — e certa de que se tratava de uma piada comecei a rir. Não  era  piada.  Me  deu  uma  série  de  golpezinhos  no  braço,  tal  qual  fazia 

Esperanza, e repetiu a ordem. Antes que eu me desse conta de seus atos ele  já havia 

desatado os cordões de meu calçado. 

—Não temos

 muito

 tempo

 —

 me

 admoestou,

 fixando

‐me

 com

 seu

 olhar

 frio,

 

clínico e impessoal, como se eu fosse o sapo ao qual havia aludido Esperanza. A  simples  idéia  de  introduzir‐me  nessas  águas  frias  e  escuras,  sem  dúvida 

infestadas por todo tipo de pestes viscosas, me horrorizava, e com ânimo de por fim a 

tão ridícula situação me deslizei pela pedra e meti os dedos na água. —Não sinto nada! — gritei, retrocedendo atemorizada. —O que acontece? Isto não é água! 

—Não seja infantil. Naturalmente que é água, só que você não a sente. Abri a boca para lançar um insulto, mas consegui me frear a tempo. Meu horror 

havia desaparecido. —Por que  não  sinto  a  água? —  perguntei  numa  tentativa  de  ganhar  tempo, 

apesar de

 saber

 que

 esse

 era

 um

 truque

 inútil,

 e que

 terminaria

 metendo

‐me

 nessas

 

águas, quer eu as sentisse ou não. Contudo, não era minha  intenção ceder com tanta facilidade. —É este algum tipo de fluido purificador? — perguntei. 

Após um  longo silêncio, carregado de possibilidades ameaçantes, admitiu que 

poderia chegar a dizer‐se que se tratava de um líquido purificante. —Não obstante — disse —, devo  advertir‐lhe que não  existe  ritual  capaz de 

purificar a ninguém. A purificação deve vir de dentro; é uma luta privada e solitária. —Então por que quer que me meta nesta água que é viscosa, ainda que não a 

sinta? — perguntei do modo mais irado possível. Seus  lábios  se  moveram  num  indício  de  riso,  mas  manteve  a  seriedade. 

Anunciou que

 mergulharia

 comigo,

 e sem

 mais

 trâmites

 se

 desnudou

 por

 completo.

 Parou frente a mim, a pouca distância, totalmente nu, e nessa estranha e indefinida luz pude reconhecer cada centímetro desse corpo, cuja nudez não tentou dissimular. Ao 

contrário,  parecia  orgulhoso  ao  extremo  de  sua  masculinidade,  a  qual  exibia  com 

desafiante insolência. —Apresse‐se e tire as roupas. Não temos muito tempo — insistiu. —Não farei isso. É coisa de louco! —Você fará. É uma decisão que você mesma tomará — e se bem que o disse 

com  veemência,  não  demonstrou  raiva.  —Esta  noite,  neste  mundo  estranho, entenderá que só lhe enquadra um tipo de comportamento: o dos feiticeiros. 

Com um

 sorriso

 destinado

 a trazer

‐me

 tranquilidade,

 porém

 sem

 sucesso,

 me

 disse que o mergulho me sacudiria, modificando algo dentro de mim. —Esta mudança  lhe servirá mais adiante, para entender o que somos e o que 

fazemos. Um sorriso passageiro iluminou seu rosto quando se apressou a esclarecer‐me 

que o mergulhar nessas águas não me proporcionaria energia para ensonhar desperta por minha conta. Preveniu‐me que transcorreria muito tempo até que eu acumulasse e aguçasse minha energia, e que  talvez nunca chegaria a consegui‐lo. —Não existem 

garantias no mundo dos  feiticeiros — disse, e depois concedeu que  talvez a  imersão 

desviasse minha atenção das preocupações diárias, as esperadas de uma mulher de 

minha 

idade 

de 

meu 

tempo. 

—É este um lago sagrado? — perguntei. 

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Arqueou as sobrancelhas, revelando surpresa. —É um lago de feiticeiros — explicou, olhando‐me fixo. Ele deve ter percebido 

que minha decisão  já estava tomada, pois passou a desatar meu relógio de pulso para 

então colocá‐lo no seu. —Não é sagrado e nem o oposto — disse. —Agora olhe seu 

relógio.  Tem  sido  seu  durante muitos  anos.  Sinta‐o  em meu  pulso… —  soltou  uma 

gargalhada contida,

 ameaçou

 dizer

 algo

 e preferiu

 se

 calar.

 —Bom,

 vamos,

 tire

 a 

roupa. —Acho que vou entrar com roupa — murmurei. Apesar de não ser nenhuma puritana, resistia à idéia de exibir‐me desnuda ante 

ele. Assinalou que eu precisaria de roupas secas para quando saísse da água. —Não quero que pegue uma pneumonia — disse enquanto um sorriso malvado 

assomava em seus olhos. —Isto é água de verdade, apesar a que não a sinta assim. De má vontade tirei a camisa e os  jeans. —Suas calcinhas também — ordenou. Caminhei pela borda do lago perguntando‐me o que seria melhor, se atirar‐me 

e acabar

 de

 uma

 vez

 por

 todas

 com

 a questão,

 ou

 molhar

‐me

 aos

 poucos,

 recolhendo

 

a  água  em minhas mãos  para  deixar  que  se  escorresse  por meus  braços,  pernas  e 

estômago,  e  por  último  sobre  o  coração,  tal  qual  havia  visto  fazer  as  velhas  na Venezuela antes de meter‐se ao mar. 

—Aqui vou eu! — gritei, mas antes de saltar me virei para olhar ao cuidador. Sua imobilidade me assustou. Parecia ter se convertido em pedra, tão quieto e 

ereto sobre o penhasco. Apenas seus olhos pareciam  ter vida, brilhando de maneira estranha  sem  haver  uma  luz  que  o   justificasse,  e  me  surpreendeu,  antes  que 

entristeceu,  ao  ver  lágrimas  rolarem  por  suas  bochechas.  Sem  saber  por  que,  eu 

também  comecei  a  chorar  em  silêncio.  Pensei  que  suas  lágrimas  chegavam  e  se 

introduziam em

 meu

 relógio

 colocado

 em

 seu

 pulso.

 Senti

 o atemorizante

 peso

 de

 sua

 convicção, e de repente, vencidos meu temor e minha indecisão, me  joguei na água. Não  era  espessa,  e  sim  transparente  como  a  seda. Não  senti  frio,  e  tal  qual 

aduziu o cuidador, tampouco senti a água. Na verdade não senti nada. Era como se eu 

fosse uma consciência  incorpórea, que nadava no centro de um espelho aquático ao 

qual sentia ser  líquido mas não molhado. Percebi uma  luz que emanava do  fundo, e 

me impulsionei para cima, como um peixe procurando ímpeto, para depois mergulhar em busca dessa luz. Quando ressurgi necessitada de ar, perguntei: 

—Que profundidade tem este poço? —A mesma  que  ao  centro  da  Terra —  respondeu  a  voz  clara  e  potente  de 

Esperanza, com

 tal

 segurança

 que,

 somente

 para

 ser

 fiel

 a mim

 mesma,

 a quis

 contradizer.  Contudo,  certa  inquietude  que  flutuava  no  ar me  impediu:  uma  calma artificial,  uma  tensão  de  súbito  quebrada  por  um  som  raspante,  um  sussurro  que 

advertia que algo estava errado. De pé no exato  lugar antes ocupado pelo  cuidador  se encontrava Esperanza, 

totalmente nua. —Onde está o cuidador? — perguntei alarmada. —Eu sou o cuidador — respondeu. Convencida  de  que  ambos  me  faziam  vítima  de  uma  horrenda  piada,  me 

aproximei, graças a fortes braçadas, à rocha sobre a qual se encontrava Esperanza. 

—O 

que 

está 

acontecendo? 

— 

perguntei, 

minha 

voz 

ainda 

frágil 

por 

causa 

do 

esforço realizado. 

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Tranquilizando‐me  com  um  gesto,  aproximou‐se  com  esse  andar desengonçado, tão característico nela, e depois exibiu meu relógio. 

—Sou o cuidador — repetiu. Aquiesci  automaticamente,  mas  em  seguida,  frente  a  mim,  em  lugar  de 

Esperanza surgiu o cuidador, despido como antes, assinalando meu relógio. Não olhei 

o relógio;

 minha

 atenção

 se

 centrou

 em

 seus

 órgãos

 sexuais.

 Estendi

 minha

 mão

 para

 

tocá‐los, para descobrir se era hermafrodita. Não o era. Segui tentando, e senti, mais que vi, como seu corpo se dobrou dentro de si, e que o que eu tocava era uma vagina. Separei os lábios vaginais para assegurar‐me que dentro dela não estivesse oculto um 

pênis. —Esperanza… —  consegui dizer,  e minha  voz  se  desvaneceu quando  algo  se 

prendeu à minha garganta. Tive consciência de que as águas se abriam e que algo me atraía em direção às 

profundezas da  lagoa. Senti frio, não um  frio físico, e sim algo mais como a sensação 

de falta de calor, de luz e de som, nesse mundo misterioso do lago. 

Me despertou

 um

 suave

 ronco;

 Zuleica

 dormia

 ao

 meu

 lado

 sobre

 uma

 esteira

 

desdobrada no  chão. Estava bonita  como  sempre,  jovem,  forte, e ao mesmo  tempo 

vulnerável,  apesar  da  harmonia  e  do  poder  que  exalava,  diferente  das  outras feiticeiras.  A  observei  um  momento  para  depois  levantar‐me,  quando  os acontecimentos  da  noite  me  aturdiram.  Queria  sacudi‐la,  despertá‐la  e  exigir  que 

explicasse  o  acontecido,  quando  notei  que   já  não  estávamos   junto  à  lagoa  na 

montanha, e sim no lugar exato onde estivemos sentadas anteriormente,  junto à porta 

principal  da  casa  das  bruxas.  Perguntando‐me  se  tudo  não  havia  sido mais  que  um 

sonho, sacudi com suavidade seu ombro. —Ah,  já despertou… — murmurou. 

—O que

 aconteceu?

 Tem

 que

 me

 contar

 tudo.

 —Tudo? — repetiu, com um bocejo. —Tudo o que aconteceu  junto ao lago — rebati impaciente. Bocejou de novo, riu, e estudando meu relógio (que continuava em seu pulso), 

disse que algo em mim havia mudado mais além do antecipado. —O  mundo  dos  feiticeiros  dispõe  de  uma  barreira  natural  que  dissuade  as 

almas  tímidas —  explicou. —Os  feiticeiros  necessitam  de uma  força  tremenda  para 

poder manejá‐lo. Está povoado por monstros, dragões voadores e seres demoníacos, que  naturalmente  não  são  outra  coisa  que  energia  impessoal.  Nós,  impelidos  por nosso medo, convertemos essa energia em seres infernais. 

—Mas o que

 houve

 com

 Esperanza

 e o cuidador?

 —

 interrompi.

 —Ensonhei

 que ambos eram na verdade você. —Eles são — respondeu, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. —

Acabei  de  lhe  dizer.  Você  mudou  mais  do  que  eu  antecipei,  e  entrou  no  que  os ensonhadores chamam ensonhar  em mundos que não são este. 

—Você e eu ensonhávamos em um mundo diferente, e por  isso não sentia a 

água. Aquele é o mundo onde o nagual Elías encontrou  todas suas  invenções. Nesse 

mundo  se  pode  ser  homem  ou  mulher,  e  assim  como  o  nagual  Elías  trouxe  suas invenções  a  este  mundo,  eu  trago  a  Esperanza  ou  o  cuidador,  ou  melhor,  minha energia impessoal o faz. 

Eu 

não 

conseguia 

traduzir 

meus 

sentimentos 

ou 

pensamentos 

em 

palavras: 

me 

dominava uma incrível necessidade de fugir aos gritos, que não podia transformar em 

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ação. Meu  controle motriz  já não era  voluntário, e em meu  intento de pôr de pé e 

gritar, desabei. A  Zuleica  não  lhe  comoveu  nem  preocupou minha  condição.  Seguiu  falando 

como  se meus  joelhos não  tivessem cedido,  como  se eu não estivesse esparramada pelo chão igual a uma boneca de trapo. 

—É uma

 boa

 ensonhadora.

 Afinal

 de

 contas,

 passou

 a vida

 sonhando

 com

 

monstros. Agora é chegado o momento de adquirir a energia para ensonhar como o 

fazem os feiticeiros, ensonhar com energia impessoal. Desejava  interrompê‐la,  dizer‐lhe  que  não  havia  nada  impessoal  em  meu 

ensonho de Esperanza e o cuidador, e que na verdade aquilo havia sido pior que os monstros de meus pesadelos, porém não podia falar. 

—Esta noite seu  relógio  te  trouxe de volta do ensonho mais profundo que  já 

teve — continuou Zuleica, indiferente aos sons raros que surgiam de minha garganta. —E tem a rocha para prová‐lo. 

Chegou  aonde  eu  me  encontrava  prostrada,  observando‐a  boquiaberta,  e 

procurou em

 meu

 bolso.

 Estava

 certa,

 ali

 encontrou

 a rocha

 que

 peguei

 da

 pilha

 de

 

pedras. 

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  191

CAPÍTULO DEZENOVE 

Levantei‐me  quando  um  forte  ruído  me  despertou,  e  esquadrinhando  as sombras constatei que as persianas de madeira se encontravam abaixadas. Um vento 

frio me envolveu, o mesmo que perseguia folhas no pátio, e uma tímida luz penetrou 

no aposento,

 aderindo

‐se

 às

 paredes

 desnudas

 como

 se

 fosse

 névoa.

 

—Nagual! — gritei, e como se o tivesse conjurado, ali estava  Isidoro Baltazar, de pé  junto à minha rede. 

Parecia  um  ser  real,  apesar  desse  algo  indefinido  que  fazia  que  se  lhe  visse 

como a uma  imagem submergida. Limpei a garganta para  falar, e só consegui emitir um débil coaxar. Depois se dissolveram: a imagem e em seguida a névoa. 

Tensa  demais  para  conseguir  dormir,  permaneci  sentada,  envolta  num 

cobertor,  pensando  se  havia  sido  acertada minha  decisão  de  buscar  aqui  a  Isidoro 

Baltazar. Não sabia de outro lugar. Havia esperado pacientemente durante três meses, depois do qual minha ansiedade se fez tão aguda que me vi obrigada a agir. 

Uma manhã,

 sete

 dias

 atrás,

 havia

 viajado

 sem

 paradas

 até

 a casa

 das

 

feiticeiras, e naquele momento não abrigava dúvidas  sobre  se minha decisão era ou 

não a correta: nem sequer depois de ver‐me obrigada a escalar o muro dos fundos da 

casa, e entrar por uma  janela entreaberta; mas ao fim de sete dias essa minha certeza havia começado a fraquejar. 

Saltei  da  rede  ao  piso  enlajotado,  batendo  fortemente  no  chão  com  meus calcanhares descalços. Sacudir‐me desse modo sempre me ajudou a afastar as dúvidas, mas desta vez não surtiu efeito, de modo que me deitei de novo. Se havia aprendido 

algo  nesses  três  anos  de  convivência  com  os  feiticeiros,  era  que  suas  decisões  são 

finais, e minha decisão havia sido a de viver e morrer sob seu credo. Havia chegado o 

momento de

 colocá

‐lo

 à prova.

 Um  riso nada  comum  interrompeu meus pensamentos,  retumbou  através da 

casa  e  subitamente  se  extinguiu.  Aguardei,  tensa, mas  só  me  chegava  o  ruído  das folhas no corredor, movidas pelo vento. Esse som não só me adormeceu como que me 

introduziu no ensonho que estava a sete noites ensonhando. Estou no deserto de Sonora. Meio‐dia. O sol, um disco que de tão brilhante era 

quase  indistinguível,  está  parado  no meio  do  céu. Não  se  escuta  um  só  som,  nem 

existe movimento ao redor. Os altos saguaros de braços espinhosos (cactos), elevados em direção a esse sol imóvel, são as sentinelas que guardam o silêncio e a quietude. O 

vento, como se me  tivesse seguido através do ensonho, começa a  soprar com  força 

tremenda. Assovia

 entre

 os

 galhos

 dos

 algarobeiros,

 e os

 sacode

 com

 fúria

 sistemática.

 Redemoinhos de poeira roxos surgem em torno de nós. Há um bando de corvos, que 

pareciam pontos no céu; depois caem por terra um pouco mais além, como pedaços de um véu negro. 

Tão  abruptamente  como  surgiu, o  vento  se  acalma. Dirijo‐me  em  direção  às montanhas distantes, e parecia‐me que tinha caminhado horas antes de discernir uma enorme sombra negra no chão. Levanto o olhar. Um gigantesco pássaro negro pende 

no  ar  com  as  asas  abertas,  imóvel,  como  se estivesse  cravado  ao  céu, e  só quando 

reparo em sua sombra escura sobre o chão descubro que o pássaro se move. Lenta, imperceptivelmente,  sua  sombra  se  desliza  diante  de mim.  Impelida  por  uma  força 

inexplicável, 

tento 

alcançar 

sombra, 

mas 

independente 

da 

velocidade 

em 

que 

corro, 

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  192

a sombra se afasta mais e mais. Atordoada por causa de meu esgotamento,  tropeço 

em meus próprios pés e caio ao chão. Enquanto procuro tirar a poeira de minhas roupas descubro ao pássaro parado 

sobre um penhasco próximo, sua cabeça ligeiramente desviada para mim em aparente atitude  convidativa. Me  aproximo  com  cautela.  É  enorme  e  escuro,  e  suas  plumas 

brilham como

 cobre

 polido.

 Seus

 olhos

 cor

 âmbar

 são

 duros

 e implacáveis,

 

determinantes como a própria morte. Retrocedo quando o pássaro abre bem suas asas e decola. Remonta vôo até converter‐se num ponto no céu, apesar do qual sua sombra sobre a terra é uma linha negra e reta, que se estende até o infinito, unindo o céu e a 

terra. Confiante  de  que,  se  convoco  ao  vento,  poderei  alcançar  ao  pássaro,  invoco 

uma encantação, mas que carece de  força e de poder. Minha voz se quebra em mil sussurros,  absorvidos  de  imediato  pelo  silêncio.  O  deserto  recupera  sua  estranha calma. 

Começa  a  desmoronar‐se  nas  bordas;  depois  se  desvanece  lentamente  ao 

redor… 

De maneira  gradual  adquiri  consciência  de meu  corpo  encostado  na  rede,  e 

através  da  inconstante  neblina  adivinhei  as  paredes do quarto,  revestidas de  livros. Logo despertei totalmente e me impactou, como acontecera toda a semana, a certeza de que este foi um ensonho, e que sei o que significa. 

O nagual Mariano Aureliano me havia dito certa vez que os feiticeiros, quando 

falam de  feitiçaria,  se  referem a ela como a um pássaro, e o  chamam o pássaro da 

liberdade, pássaro que só voa em linha reta e nunca faz uma segunda visita. Também 

dizem que é o nagual quem o atrai e o  induz a  lançar  sua  sombra sobre a  trilha do 

guerreiro. Sem essa sombra não existe direção. 

O significado

 de

 meu

 ensonho

 era

 que

 eu

 havia

 perdido

 ao

 pássaro

 da

 liberdade. Havia perdido ao nagual, e com ele toda esperança e sensação de propósito, e o que mais penalizava meu coração era que o pássaro da liberdade se havia afastado 

tão velozmente que nem tempo tive para expressar meu agradecimento a todos, além 

de minha infinita admiração. A  todo  momento  eu  havia  assegurado  aos  feiticeiros  que  nunca  os  havia 

tomado,  nem  a  eles  nem  a  seu  mundo,  por  dados,  mas  sim,  o  havia  feito, especialmente a  Isidoro Baltazar. Ele sem dúvida permaneceria comigo para sempre, pensei, e de repente se haviam  ido todos, como estrelas fugazes ou sopros de vento, levando a Isidoro Baltazar. 

Durante semanas

 permaneci

 sentada

 em

 meu

 quarto,

 fazendo

‐me

 a mesma

 pergunta:  “Como  era  possível  que  desaparecessem  desse  modo?”,  uma  pergunta supérflua  e  carente  de  sentido,  dado  o  que  eu  havia  visto  e  experimentado  nesse 

mundo, e que a única coisa que revelava agindo assim era minha verdadeira natureza: submissa e insegura. 

Os  feiticeiros  me  haviam  dito  durante  anos  que  sua  meta  final  era  arder, desaparecer tragados pela  força da consciência. O velho nagual e seu grupo estavam 

preparados, mas eu não sabia. Vinham se preparando quase  todas suas vidas para a 

audácia  final:  ensonhar   despertos.  A  audácia  de  burlar  a  morte  (tal  como  nós  a 

conhecemos)  para  internar‐se  no  desconhecido,  aumentando,  sem  quebrá‐la,  a 

unidade 

de 

sua 

energia 

total. 

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Meu pesar se fez mais  intenso quando recordei que minha natureza  incrédula reapareceria  no  momento  menos  pensado.  Não  era  questão  de  não  crer  em  sua estupenda meta, em seus propósitos extraterrenos, mas por sua vez práticos. Melhor preferia interpretá‐los e, de alguma maneira, integrá‐los ao mundo do sentido comum, não  sempre,  claro,  de  tudo,  mas  coexistindo  com  o  que  para  mim  era  normal  e 

familiar. 

Os  feiticeiros  intentaram  preparar‐me  para  presenciar  sua  viagem  definitiva: que num certo dia desapareceriam era algo quase aceitado por mim. Contudo, nada 

poderia  ter‐me preparado para a angústia e a desesperança  resultantes. Caí  em um 

poço de tristeza do qual sabia muito bem nunca sairia, mas esse era um problema que 

devia ser resolvido por conta própria. Temendo  aumentar  meu  desespero  se  permanecesse  estendida  na  rede, 

levantei‐me para preparar o desjejum ou, melhor dizendo, a esquentar as sobras da 

noite  anterior:  arroz,  tortilhas  e  feijões, minha  comida  típica  dos  últimos  sete  dias, exceção  feita  no  almoço  ao  qual   juntara  uma  lata  de  sardinhas  norueguesas 

compradas no

 armazém

 de

 um

 povoado

 vizinho.

 

Lavei a  louça e conferi o piso, depois do qual, armada com a escova, percorri todos os quartos em busca de novas sujeiras, ou alguma teia de aranha esquecida num 

canto. Desde minha chegada parecia não ter feito outra coisa que esfregar pisos, lavar paredes,   janelas,  e  varrer  pátios  e  corredores.  As  tarefas  de  limpeza  sempre  me 

haviam  trazido paz e me afastado de meus problemas, mas desta vez não  foi assim. Apesar do  interesse com que encarava a estes trabalhos, não conseguia acalmar com 

eles minha angústia, nem encher o doloroso e opressivo vazio. Um  barulho  de  folhas  varridas  pelo  vento  interrompeu  minha  atividade, 

obrigando‐me a sair para investigar. Um vendaval, cuja força me sobressaltou, soprava 

entre as

 árvores,

 e estava

 eu

 a ponto

 de

 fechar

 as

  janelas

 da

 casa

 quando

 abruptamente  cessou.  Uma  profunda  melancolia  descendeu  sobre  tudo,  pátio, árvores, flores e quintal, e até a  primavera que ali morava se associou ao desassossego 

geral. Acalmado o vento, caminhei até a fonte colonial no meio do pátio, me ajoelhei 

sobre a larga borda de pedra, e quase sem pensar me dediquei a tirar as folhas e flores caídas  na  água.  Depois  me  aproximei  para  buscar  minha  imagem  na  tranquila superfície, e descobri o belo e anguloso rosto de Florinda  junto ao meu. Hipnotizada por  seus  grandes  olhos  escuros,  que  contrastavam  com  sua  branca  cabeleira, contemplei seu reflexo na água, e em nossos rostos nasceu um sorriso. 

—Não te

 ouvi

 chegar

 —

 disse

 em

 voz

 baixa,

 temerosa

 de

 que

 desaparecesse

 sua imagem, de que tudo não fosse mais que um sonho. Pousou  sua mão  sobre meu ombro, e depois  se  sentou  junto  a mim  sobre a 

borda de pedra. —Estarei  contigo  apenas  um  momento  —  advertiu  —,  porém  mais  tarde 

regressarei. Não pude conter‐me e dei  vazão a  toda a angústia e desespero acumulados. 

Florinda me olhou, e seu rosto refletia uma profunda tristeza. Lágrimas assomaram a 

seus olhos, para desaparecer com a mesma celeridade com que surgiram. —Onde está Isidoro Baltazar? — perguntei. 

Sem 

olhá‐

la 

no 

rosto 

descarreguei 

minhas 

lágrimas, 

não 

provocadas 

por 

sentir 

pena de mim mesma, nem sequer pela tristeza, e sim por uma sensação de fracasso, 

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culpa e perda que me afogava.  Tempos atrás  Florinda  já me havia advertido  acerca 

destes rompantes. —Para os feiticeiros as lágrimas carecem de sentido — disse. —Quando você se 

uniu ao mundo dos feiticeiros lhe foi feito entender que os desígnios do destino, sejam 

quais forem, são meros desafios que um feiticeiro deve enfrentar, sem ressentimento 

nem pena

 de

 si

 mesmo

 —

 fez

 uma

 pausa

 para

 repetir

 que

  já

 em

 outras

 ocasiões

 me

 

havia dito que  Isidoro Baltazar  já não era um homem, e sim um nagual. —Talvez ele 

tenha  acompanhado  ao  velho  nagual,  e  neste  caso  nunca  regressará, mas  também 

pode ser que não o tenha feito. —Mas, por que…? — não cheguei a completar a pergunta. —Desta vez realmente não sei — anunciou Florinda, levantando uma mão para 

antecipar‐se ao meu protesto. —Se  trata de um desafio que precisa vencer e, como 

sabe, os desafios não são discutidos nem ressentidos, e sim enfrentados ativamente. Nisso  os  feiticeiros  podem  triunfar  ou  fracassar,  e  o  resultado  não  interessa  em 

especial, sempre e quando dominem a situação. 

—Como espera

 que

 a domine,

 quando

 a tristeza

 me

 mata?

 Isidoro

 Baltazar

 se

 

foi para sempre — e em minha queixa ficou refletido meu ressentimento e minha raiva ante a trivialidade de sua atitude. 

—Por  que  não  escuta  minhas  sugestões,  e  se  comporta  impecavelmente deixando de lado seus sentimentos? — disse em som de reprovação. Seu gênio era tão 

mutável como seu brilhante sorriso. —Como posso chegar a fazer isso? Sei que quando se ausenta o nagual o  jogo 

se acabou. —Não  necessita  do  nagual  para  ser  uma  feiticeira  impecável.  Sua 

impecabilidade deve conduzir‐lhe a ele, ainda se  já não estiver no mundo. Seu desafio 

é viver

 impecavelmente

 dentro

 de

 suas

 circunstâncias,

 e não

 mudará

 absolutamente

 nada se ver a Isidoro Baltazar o ano que vem ou ao final de sua vida. Florinda me deu as costas e manteve um longo silêncio. Quando me encarou de 

novo seu rosto mostrava‐se como uma máscara, como se estivesse fazendo um grande 

esforço para controlar suas emoções, e havia  tal  tristeza em seus olhos que esqueci minha própria angústia. 

—Deixe‐me  lhe  contar  um  conto  —  disse,  e  a  dureza  de  seu  tom  talvez estivesse  destinada  a  apagar  a  dor  refletida  em  seus  olhos. —Eu  não  viajei  com  o 

nagual Mariano Aureliano e seu grupo, e tampouco o fez Zuleica. Sabe por quê? Boquiaberta, paralisada pelo  temor,  levei um  tempo antes de poder dizer‐lhe 

que não

 o sabia.

 —Estamos  aqui  porque  não  pertencemos  a  esse  grupo  de  feiticeiros. Pertencemos, mas não pertencemos. Nossos sentimentos estão com outro nagual, o 

nagual  Julián,  nosso mestre. O  nagual Mariano Aureliano  é  nosso  igual,  e  o  nagual Isidoro  Baltazar,  nosso  aluno.  Como  a  ti,  nos  deixaram  para  trás.  A  ti,  porque  não 

estava pronta para viajar com eles. A nós, porque necessitamos de mais energia para dar um grande salto, e talvez nos unirmos a um outro grupo de guerreiros, um grupo 

mais antigo, o do nagual Julián. Podia sentir a solidão de Florinda como uma névoa fina que descia sobre mim, 

e quase não tinha coragem de respirar por temor que ela emudecesse. 

Explanou‐

se 

acerca 

de 

seu 

mestre, 

nagual 

Julián, 

homem 

de 

grande 

fama. 

Suas descrições eram breves, e ao mesmo tempo tão evocativas, que pude vê‐lo ante 

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meus  olhos,  o  homem  mais  charmoso  que   jamais  existiu.  Gracioso,  de  rápida capacidade  para  criar  e  agir,  um  piadista  incorrigível.  Narrador  e  mago,  capaz  de 

manejar  a  percepção  como  um mestre‐padeiro maneja  a massa, modelando‐a  sem 

perdê‐la de vista. Estar com o nagual Julián, assegurou Florinda, era uma experiência inesquecível. Confessou amá‐lo mais além das palavras, dos sentimentos, assim como 

também o amava

 Zuleica.

 

Florinda caiu num novo e  longo silêncio, a vista  fixa nas montanhas distantes, como se com esse ato conseguisse extrair energias dos afilados picos. Quando falou de 

novo sua voz era apenas um sussurro: —O  mundo  dos  feiticeiros  é  um  mundo  de  solidões,  porém  nele  aninha‐se 

eterno o amor. Como o meu pelo nagual Julián. Sozinhas, nos movemos neste mundo, contando  somente  com  nossos  atos  e  sentimentos,  e  com  nossa  impecabilidade — 

disse,  e  moveu  a  cabeça  como  para  enfatizar  suas  palavras.  —Eu   já  não  tenho 

sentimentos. Os que tive foram levados pelo nagual Julián. Tudo o que me resta é meu 

sentido  de  vontade,  de  propósito  e  de  dever.  Quem  sabe  você  e  eu  tenhamos  o 

mesmo problema

 —

 e disse

 isto

 com

 tal

 doçura

 que

 se

 desfez

 antes

 que

 eu

 entendesse

 

o que ela dizia. Fiquei observando‐a. Como sempre, sua esplêndida beleza chamava a atenção, 

 junto com essa mágica  juventude, que os anos deixaram intacta. —Eu não, Florinda — rebati. —Você teve ao nagual Isidoro Baltazar e a mim, e 

todos os outros discípulos dos quais me falaram. Eu não tenho nada, nem sequer meu 

antigo mundo — não me estava lamentando; falava através da certeza de que a vida, tal como a havia conhecido até agora, era hoje coisa do passado. —O nagual  Isidoro 

Baltazar é meu pelo direito que me dá meu poder. Esperarei um tempo mais, como é 

minha obrigação fazê‐lo, mas se  já não está neste mundo, tampouco o estarei eu. Sei o 

que tenho

 que

 fazer!

 —

 e minha

 voz

 foi

 se

 perdendo

 ao

 dar

‐me

 conta

 de

 que

 Florinda

  já  não me  prestava  atenção.  Encontrava‐se  absorta  com  um  pequeno  corvo  que  se 

aproximava de nós pela borda da fonte. —Esse é Dionísio — anunciei, buscando em meus bolsos os pedaços de tortilha 

que lhe guardava. Não os encontrei. Tão absorta estive em meus pesares que esqueci que, a essa hora, passado o 

meio‐dia, o pequeno animal vinha por sua comida. —Está  irritado o senhor! — observou Florinda, rindo dos furiosos reclamos do 

pássaro. —Você e o corvo se parecem bastante. Ambos se  irritam com facilidade, e o 

proclamam de maneira muito sonora. 

Consegui apenas

 conter

 meu

 desejo

 de

 dizer

‐lhe

 que

 o mesmo

 se

 podia

 dizer

 dela, e ela  riu  como  se  soubesse do esforço que eu  fazia para  não  chorar. O  corvo 

havia  pousado  sobre minha mão,  e me  olhava  de  canto  com  olhos  brilhantes,  que 

pareciam seixos. Abriu suas asas, e seu reflexo azul cintilou à luz do sol. Com  toda a calma disse à Florinda que as pressões do mundo dos  feiticeiros 

eram intoleráveis. —Bobagem! —  respondeu,  como  se  provocasse  a  uma  criança malcriada. —

Olha só, nós assustamos o Dionísio — e fascinada, observou o vôo do pássaro que se 

afastava, para depois  centrar  sua  atenção  em minha pessoa. Desviei o  rosto, e não 

saberia dizer o porquê, pois não havia hostilidade nesses olhos escuros e brilhantes 

que 

mostravam‐

se 

calmos 

indiferentes. 

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—Se não conseguir alcançar a Isidoro Baltazar, então eu e os demais feiticeiros que te servimos de mestres teremos fracassado em nosso intento de impressionar‐lhe, e também de desafiar‐lhe. Não será uma perda decisiva para nós, mas sim o será para 

você — e vendo que minhas lágrimas ameaçavam voltar a cair me desafiou de novo. —Onde está  seu propósito  impecável? O que aconteceu com  tudo o que aprendeu de 

nós? 

—O que acontecerá se eu nunca alcançar a Isidoro Baltazar? —Pode seguir vivendo no mundo dos feiticeiros se não se esforça por averiguá‐

lo? — perguntou com severidade. —Este é um momento no qual necessito bondade — murmurei,  fechando os 

olhos para evitar que se derramassem minhas  lágrimas. —Preciso da minha mãe. Oh, se pudesse estar com ela! 

Minhas  próprias  palavras  me  surpreenderam,  pronunciadas  com  inteira sinceridade, e  já incapaz de reter as lágrimas, rompi a chorar. Florinda riu. Porém não 

zombando, pois havia bondade em seus olhos. 

—Está tão

 longe

 de

 sua

 mãe

 que

 nunca

 voltará

 a encontrá

‐la

 —

 disse

 

carinhosamente, e sua voz perdeu volume quando acrescentou que a vida do feiticeiro 

constrói  barreiras  intransponíveis  ao  seu  redor. —Os  feiticeiros —  recordou —  não 

encontram consolo na simpatia de outros, nem sentindo pena de si mesmos. —Você acha que  todos meus  tormentos  se devem a que  sinto pena de mim 

mesma, não é verdade, Florinda? —Não. Não só isso, como também à morbidez — e rodeando‐me com os braços 

me abraçou como se eu  fosse uma criança. —A maioria das mulheres são mórbidas, estando você e eu entre elas. 

Não estava de acordo, mas não desejava contradizê‐la. Seu abraço me enchia 

de felicidade,

 e apesar

 de

 estar

 com

 ânimo

 decaído,

 consegui

 sorrir.

 Florinda,

 como

 todas as mulheres desse mundo, careciam da capacidade para expressar sentimentos maternais, e apesar a que eu gostava de abraçar e beijar as pessoas que amava, não 

tolerava estar nos braços de alguém por muito tempo. O abraço de Florinda não era morno e  tranquilizador como o de minha mãe, mas era o único a que podia aspirar. Desfazendo o abraço Florinda entrou na casa. 

Despertei de repente, e por um momento permaneci no chão aos pés da fonte, intentando recordar algo dito por Florinda antes que eu dormisse. Obviamente havia dormido  horas,  pois  apesar  da  claridade  do  céu  as  sombras  do  entardecer   já 

começavam a invadir o pátio. 

Estava a ponto

 de

 buscar

 a Florinda

 quando

 um

 riso

 incomum

 me

 chegou

 através do pátio, o mesmo que escutei durante a noite. Esperei e agucei o ouvido, em 

meio  a  um  silêncio  estranho:  nada  se movia,  nada  zumbia,  nenhum  pássaro  piava, apesar do qual intuía o movimento de passos silenciosos às minhas costas. Virei‐me, e 

no  extremo  do  pátio,  quase  oculta  pela  primavera  florida,  vi  alguém  sentado  num 

banco de madeira, e que reconheci apesar de dar‐me as costas. —Zuleica? — sussurrei, temendo que meus passos a afugentasse. —Que feliz me faz o fato de ver‐lhe de novo — respondeu, fazendo‐me sinais 

para que me sentasse  junto a ela. Sua voz clara, vibrante por causa do ar do deserto, parecia não provir de seu 

corpo, 

sim 

de 

muito 

longe. 

Desejei 

abraçá‐

la, 

mas 

algo 

me 

aconselhou 

não 

fazê‐

lo. 

A Zuleica não  lhe gostava que a tocassem, de modo que tomei assento  junto a ela, e 

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manifestei por minha vez minha alegria por vê‐la. Mas ela me surpreendeu, tomando 

minha mão  na  sua,  uma mão  pequena  e  delicada.  Seu  lindo  rosto  rosa  bronzeado 

carecia de expressão, e toda sua vida se concentrava nos olhos  incríveis, nem negros nem marrons, e chamativamente claros, que se fixaram nos meus num longo olhar. 

—Quando você chegou? — perguntei. 

—Neste exato

 momento

 —

 respondeu,

 curvando

 os

 lábios

 num

 sorriso

 

angelical. —Como chegou? Florinda veio contigo? —Oh, você sabe, as  feiticeiras vão e vêm sem que se o note. Ninguém se  fixa 

numa  mulher,  em  especial  se  é  velha.  Não  obstante,  uma  mulher  jovem  e  bonita chama a atenção, e é por isso que as feiticeiras, se são bonitas, precisam adotar algum 

tipo de disfarce. Se são meio feínhas não terão problemas. Um  repentino golpezinho no ombro me  sobressaltou. Zuleica pegou de novo 

minha mão, como para dissipar minhas dúvidas, e disse: —Para  viver  no  mundo  dos  feiticeiros  deve‐se  ensonhar  livremente  —  e 

desviou seu

 olhar

 para

 a lua

 quase

 cheia,

 que

 parecia

 pender

 sobre

 as

 montanhas

 

distantes.  —A  maioria  das  pessoas  não  possui  a  engenhosidade  nem  a  estatura espiritual  necessária  para  ensonhar.  Não  podem  evitar  ver  o  mundo  como  algo 

ordinário. E sabe por quê? Porque se você não luta para evitá‐lo o mundo é na verdade 

ordinário.  A  maioria  das  pessoas  vive  tão  preocupada  consigo  mesmas  que  se 

idiotizaram, e os idiotas não desejam lutar para evitar a ordinariedade. Zuleica ficou de pé e calçou suas sandálias, atou seu chale em torno da cintura 

para impedir que suas saias longas tocassem o chão, e caminhou em direção ao centro 

do  pátio.  Soube o  que  faria  antes mesmo  que  ela  começasse.  Ia  girar;  dançar  para acumular energia cósmica. As feiticeiras acreditam que movendo seus corpos obtêm a 

força necessária

 para

 ensonhar.

 Com um gesto apenas perceptível de sua testa me convidou a segui‐la e imitar seus  movimentos.  Se  deslizou  sobre  as  lajotas  e  os  tijolos  escuros  do  chão,  que 

obedeciam  a  um  velho  desenho  tolteca,  colocado  pelo  próprio  Isidoro  Baltazar; desenho  que  unia  a  gerações  de  feiticeiros  e  ensonhadores  através  das  eras  num 

emaranhado de segredos e façanhas de poder, às quais ele havia contribuído com toda sua força, sua intenção e sua entrega para torná‐los realidade. 

Zuleica se movia com a competência e a agilidade de uma bailarina  jovem, com 

movimentos  simples  que  no  entanto  requeriam  tanta  velocidade,  equilíbrio  e 

concentração  que me  deixaram  exausta.  Com  uma  notável  agilidade  e  presteza  ela 

girava, afastando

‐se

 de

 mim,

 retendo

‐se

 na

 sombra

 das

 árvores

 como

 para

 assegurar

‐se de que eu a  seguia, e depois  se dirigiu até o arco assentado  sobre a parede que 

rodeava as terras detrás da casa, e se deteve momentaneamente  junto aos dois pés‐de‐laranja  que  cresciam  do  outro  lado  do  muro,  aqueles  que  pareciam  sentinelas postadas de cada lado do caminho que levava à casa pequena além do chaparral. 

Temendo perdê‐la de vista corri pelo escuro e estreito caminho, e depois entrei na casa para segui‐la até o quarto dos fundos onde, em lugar de acender a luz, Zuleica pegou uma lamparina de azeite que estava pendurada numa das vigas. Ao acender‐se, a lamparina emitiu um fulgor vacilante que deixou os cantos do aposento em sombras. Do único móvel, uma arca sob a  janela, tirou uma esteira e um cobertor. 

—Deite‐

se 

de 

barriga 

para 

baixo 

— 

ordenou, 

estendendo 

coberta 

sobre 

as 

lajotas. 

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Suspirei  fundo  e  me  afundei  na  prazerosa  sensação  de  abandono  que  me 

oferecia o fato de estar prostrada de bruços sobre a esteira. Uma  impressão de paz e 

bem‐estar impregnou todo meu corpo, e senti suas mãos sobre minhas costas, não me 

massageando, mas sim dando ligeiros golpes. Apesar de  ter estado muitas vezes na  casa pequena, ainda não conhecia  sua 

disposição. Não

 sabia

 quantos

 cômodos

 tinha,

 nem

 como

 estava

 mobiliada.

 Em

 certa

 

oportunidade Florinda havia dito que essa casa constituía o centro de suas aventuras. Era  ali,  segundo  ela,  onde  o  velho  nagual  e  seus  companheiros  teciam  sua  trama mágica,  a  qual,  como  uma  teia  de  aranha  invisível  e  resistente,  os  unia  quando  se 

submergiam  no  desconhecido,  na  escuridão  e  na  luz,  atividade  rotineira  para  os feiticeiros. 

Também  havia  dito  que  a  casa  era  um  símbolo,  e  que  os  feiticeiros  de  seu 

grupo  não  necessitavam  estar  dentro  dela,  nem  sequer  em  suas  vizinhanças,  para submergir‐se no desconhecido graças ao ensonhar. Aonde quer que fossem levavam o 

sentido e o humor da casa em seus corações, e isso, significasse o que significasse para 

cada um

 deles,

 lhes

 dava

 a força

 para

 enfrentar

 devidamente

 o mundo

 cotidiano.

 

Outro golpe em meu ombro por parte de Zuleica me sobressaltou: —Deite‐se de costas — ordenou. Obedeci. Seu rosto, ao aproximar‐se ao meu, irradiava energia e resolução. —Os mitos  são  ensonhos  de  grandes  ensonhadores —  disse. —É  necessário 

muito valor e concentração para mantê‐los e, acima de tudo, muita imaginação. Você é 

um mito vivente, um mito que lhe foi encomendado para salvaguardar, para preservar. Falava num tom quase reverente: —Não pode receber esse mito a menos que seja irretocável. Se não o é, o mito 

verdadeiramente se afastará de você. 

Abri a boca

 para

 responder,

 para

 dizer

‐lhe

 que

 havia

 compreendido

 tudo,

 mas

 a dureza  de  seu  olhar  me  deteve.  Era  evidente  que  não  tinha  intenção  de  dialogar 

comigo. O ruído de galhos raspando a parede exterior da casa parou, e  foi substituído 

por um  tipo de pulsação no ar, sentida antes que escutada. Estava por cair dormida quando  Zuleica  disse  que  eu  devia  seguir  as  ordens  recebidas  em  meu  ensonho 

repetitivo. —Como sabe que  tenho  tido esse ensonho? — perguntei alarmada,  tentando 

levantar‐me. —Você  se  esqueceu  que  compartilhamos  nossos  ensonhos?  —  respondeu, 

obrigando‐me

 a recostar

 de

 novo.

 —Eu

 sou

 a que

 traz

 os

 ensonhos.

 —Não  foi  mais  que  um  ensonho  sem  importância,  Zuleica  —  e  minha  voz tremeu, pois me assaltou um tremendo desejo de chorar. Sabia que não se tratava de 

um mero ensonho, mas queria que ela me mentisse. Zuleica sacudiu sua cabeça. —Não, não era um simples ensonho, era um poderoso ensonho de feiticeiros, 

uma visão. —O que devo fazer? —Não  te o  disse o  ensonho? —  perguntou  em  tom  desafiante. —Não  lhe o 

disse Florinda? — observou‐me sem que sua expressão revelasse  indício algum. Logo 

sorriu, um sorriso tímido e  infantil. —Precisa entender que não pode correr atrás de 

Isidoro 

Baltazar. 

Ele 

 já 

não 

está 

no 

mundo. 

Já 

não 

há 

nada 

que 

possa 

dar‐

lhe 

nem 

fazer 

por ele. Não pode estar  ligada ao nagual como pessoa, somente como um ser mítico. 

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— Com voz suave mais autoritária, repetiu que eu estava vivendo um mito. —O mundo 

dos  feiticeiros  é  um  mundo  mítico  separado  do  mundo  diário  por  uma  barreira misteriosa feita de ensonhos e obrigações. 

“Somente se o nagual é apoiado por seus companheiros de ensonhos pode ele 

conduzi‐los a outros mundos viáveis nos quais pode atrair ao pássaro da liberdade — e 

suas palavras

 se

 fundiram

 com

 as

 sombras

 do

 quarto

 quando

 acrescentou

 que

 o apoio

 

que  Isidoro Baltazar necessitava era energia para ensonhar, não sentimentos e ações mundanas.” 

Após um longo silêncio falou de novo. —Você  viu  como  o  velho  nagual,  assim  como  também  Isidoro  Baltazar, 

mediante  sua  mera  presença,  afetam  a  tudo  o  que  os  rodeia,  sejam  estes  seus companheiros feiticeiros ou gente comum e normal, deixando‐lhes claro que o mundo 

é um mistério onde nada, sob nenhuma circunstância, pode ser dado como acabado 

ou final. Concordei com um movimento de cabeça. 

Durante um

 longo

 tempo

 me

 foi

 difícil

 compreender

 como

 os

 naguais,

 por

 obra

 

de  sua  simples  presença,  influíam  de  maneira  tão  poderosa,  e  após  observar cuidadosamente, trocar opiniões com outros e questionar‐me sem tréguas, cheguei à 

conclusão  de  que  sua  influência  era  o  resultado  de  sua  renúncia  às  inquietações humanas. 

Em nosso mundo ordinário  também  temos exemplos de semelhante renúncia por  parte  de  homens  e  mulheres  aos  quais  damos  o  nome  de  santos,  místicos  e 

religiosos, mas os naguais não são santos, e por certo não são religiosos. Os naguais são homens do mundo, sem sinais de preocupação mundana. 

Num  nível  subconsciente  esta  contradição  tem  enorme  efeito  sobre  aqueles 

que o rodeiam.

 A

 mente

 daqueles

 que

 rodeiam

 a um

 nagual

 não

 pode

 compreender

 o que  os  está  afetando,  apesar  do  qual  seus  corpos  sentem  o  impacto  como  uma 

estranha ansiedade, uma urgência por libertar‐se, ou um sentido de imperfeição, como 

se algo  transcendental estivesse acontecendo em alguma parte, e do qual eles estão 

excluídos.  Mas  a  capacidade  intrínseca  de  um  nagual  para  afetar  a  terceiros  não 

depende, de maneira exclusiva, de  sua  ausência de preocupações mundanas, ou na 

força  de  suas  personalidades,  e  sim  na  força  de  seu  comportamento  impecável. Os naguais são irretocáveis em seus atos e sentimentos, independente das emboscadas — 

mundanas  ou  não  —  que  encontrem  em  sua  senda  interminável.  E  tampouco  é 

questão de que os naguais  sigam um determinado  conjunto de  leis e  regulamentos 

para alcançar

 esse

 comportamento

 irrepreensível,

 pois

 estes

 não

 existem.

 Melhor

 dizendo, usam sua imaginação para adotar ou adaptar‐se ao que seja necessário para 

fazer que seus atos sejam fluidos. Os  naguais,  contrariamente  ao  comum  dos mortais,  não  buscam  aprovação, 

respeito, elogio ou qualquer outro tipo de reconhecimento de ninguém, e isto inclui a 

seus  semelhantes. O  único  que  ambicionam  é  seu  próprio  sentido  de  integridade e 

inocência. É  isto o que  torna viciante a companhia de um nagual. A pessoa chega a 

depender da  liberdade de um nagual como o  faria de uma droga. Para um nagual o 

mundo é sempre  inteiramente novo, e em sua companhia a pessoa começa a olhar o 

mundo como se antes não houvesse existido. 

—Isso 

é 

porque 

os 

naguais 

quebram 

espelho 

da 

auto‐

reflexão 

— 

informou 

Zuleica, como se tivesse seguido o curso de meus pensamentos. —Os naguais podem 

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ver‐se num espelho de névoa que reflete só o desconhecido, um espelho que  já não 

reflete nossa humanidade normal — expressada pela repetição — e sim que revela a 

face do infinito. —Os feiticeiros acreditam que quando a face da auto‐reflexão se funde com a 

face do  infinito, um nagual está  totalmente preparado para  romper as  fronteiras da 

realidade e desaparecer

 como

 se

 não

 estivesse

 constituído

 por

 matéria

 sólida.

 Isidoro

 

Baltazar  já está há muito tempo preparado. —Não pode me deixar para trás! — gritei. —Isso seria injusto demais. —É  bobo  pensar  em  termos  de  justiça  e  injustiça —  replicou  Zuleica.  —No 

mundo dos feiticeiros só existe o poder. Por acaso cada uma de nós não lhe ensinamos isso? 

—Aprendi muitas  coisas —  admiti  com pesar, e  após uns minutos murmurei entre os dentes —, mas nestes momentos nada disso tem valor. 

—Agora valem mais do que nunca — me contradisse. —Se há algo que você 

aprendeu é que nos piores momentos os guerreiros  revivem  suas  forças para  seguir 

adiante. Um

 guerreiro

 não

 sucumbe

 ao

 desespero.

 

—Nada  do  que  foi  aprendido  e  experimentado  pode  aliviar minha  tristeza  e 

desespero. Cheguei a tentar até os cânticos espirituais que aprendi de minha ama‐de‐

leite. Florinda se ri de mim. Acha que sou uma idiota. —Florinda tem razão. Nosso mundo mágico não tem nada a ver com cânticos e 

conjuros, com rituais e comportamentos estranhos. Nosso mundo mágico, que é um 

ensonho, é  feito  realidade mediante o desejo concentrado daqueles que participam 

dele. A  todo momento o mantêm  intacto a vontade  tenaz dos  feiticeiros, do mesmo 

modo como o é o mundo diário pela vontade de todos. Se deteve abruptamente. Parecia ter surpreendido a si mesma em meio de um 

pensamento que

 não

 desejava

 expressar.

 Depois

 sorriu,

 e com

 um

 cômico

 gesto

 de

 impotência completou: —Para ensonhar nosso ensonho você tem que estar morta. —Quer  dizer  com  isso  que  me  tenho  que  cair  morta  aqui  mesmo,  e  neste 

instante? — perguntei numa voz que começava a enrouquecer. —Sabe que para  isso 

estou completamente pronta. O rosto de Zuleica se iluminou, e riu como se eu tivesse contado a melhor das 

piadas, mas ao notar que eu falava muito a sério se apressou a esclarecer. —Não,  não.  Morrer  significa  que  cortamos  todas  as  amarras,  abandonamos 

tudo o que temos, tudo o que somos. 

—Isso não

 tem

 nada

 de

 novo

 —

 respondi.

 —Eu

 o fiz

 no

 momento

 mesmo

 em

 que me incorporei ao mundo de vocês. —Obviamente não o fez, pois de ser certo não estaria no estado em que está. 

Se tivesse morrido como o exige a feitiçaria agora não sentiria angústia. —O que sentiria, então? —Dever! Propósito! —Minha angustia nada tem a ver com meu sentido de propósito — gritei. —É 

algo separado,  independente. Estou viva e sinto tristeza e amor. Como posso  impedi‐los? 

—Não se espera que os evite — explicou Zuleica —, e sim que se sobreponha a 

eles. 

Se 

os 

guerreiros 

não 

possuem 

nada, 

nada 

sentem. 

—E que tipo de mundo vazio é esse? — perguntei desafiante. 

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  201

—Vazio é o mundo dos que se entregam ao vício do amor por si mesmos — e 

me olhou de maneira ansiosa, como esperando que eu manifestasse meu acordo. —De 

modo  que  temos  um mundo  desleixado,  enfadonho,  repetido.  Para  os  feiticeiros  o 

antídoto é a morte, e não só pensam nela, e sim que morrem. Um  calafrio percorreu minhas  costas.  Engoli  a  seco e permaneci em  silêncio, 

admirando a esplêndida

 lua

 que

 brilhava

 através

 da

  janela.

 

—Na realidade não entendo o que me diz, Zuleica. —Me  entende  perfeitamente  bem.  Seu  ensonho  começou  quando  me 

conheceu. Agora chegou o momento de outro ensonho, mas desta vez ensonhe morta. Seu erro foi ensonhar viva. 

—O  que  significa  isso?  —  perguntei  incômoda.  —Não  me  atormente  com 

adivinhações. Você mesma me disse que somente os  feiticeiros  se atormentam com 

adivinhações, e que as feiticeiras não, e agora está fazendo isso a mim. A  risada  de  Zuleica  rebateu  de  uma  parede  a outra,  soando  como  as  folhas 

secas impulsionadas pelo vento. 

—Ensonhar viva

 significa

 ter

 esperanças,

 que

 se

 aferra

 a seu

 ensonho

 para

 

manter‐se  viva.  Ensonhar  morta  significa  que  abandonou  a  esperança,  que  não  se 

agarra a seu ensonho. Temendo  não  poder  controlar minha  voz  ao  responder, me  limitei  a mover 

afirmativamente a cabeça. Florinda me havia dito que a liberdade é uma total ausência de  preocupação por  si mesmo,  algo obtido quando  a massa de  energia  aprisionada dentro de nós é liberada. Havia dito que esta energia somente podia liberar‐se quando 

podemos  reprimir  o  exaltado  conceito  que  temos  de  nós  mesmos,  de  nossa importância, essa importância que consideramos inviolável e livre de enganos. 

A voz de Zuleica era clara, mas parecia vir de muito longe. 

—O preço

 da

 liberdade

 é muito

 alto

 —

 disse.

 —A

 liberdade

 unicamente

 se

 consegue  ensonhando  sem  esperança,  estando  dispostos  a  perder  tudo,  inclusive  o 

próprio ensonho. Para  alguns de nós ensonhar  sem esperança,  lutar  sem meta, é  a 

única maneira de não ficar para trás do pássaro da liberdade. 

FIM 

Este livro foi digitalizado para distribuição livre e gratuita através da rede. Revisão e Edição Eletrônica de Hernán. / Rosário  – Argentina. / 05 de Março de 2003 

 – 02:54 

Tradução direta do espanhol, mantendo‐se ao mais próximo do texto original. 

(Outubro/2008) 

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  202

 

NOTAS SOBRE A TRADUÇÃO 

‐A

 palavra

 “cuidador”

 foi

 mantida,

 ao

 invés

 de

 zelador

 (ou

 vigilante,

 sentinela,

 guardião,  tutor), por ser de  fácil entendimento, e por diferenciação, como um nome 

em si, sem contudo se utilizar letra maiúscula, por também designar sua função. 

‐ Ponto de encaixe = ponto de aglutinação. 

‐ Consciência acrescentada = consciência intensificada = ensonhar desperto. 

‐ Irreprochable: impecável, irretocável, imaculável, irrepreensível. 

‐ Buganvilla: conhecida também como  primavera, um tipo de trepadeira florida. 

‐ Azahar:  tipo de  laranjeira  (Citrus Auratium):  laranja‐amarga,  laranja‐azeda,  laranja‐

cavalo, morgote.

 

‐ Arvejilla: Sweet Pea (Lathyrus Odoratus): Ervilha‐de‐cheiro, Ervilha‐doce. 

‐ Mezquite: mesquite (do Nahuatl: mizquitl), gênero Prosopis. Algarobeira. 

‐ Zapote: Sapoti, árvore frutífera, de cuja seiva se pode tirar o chiclé. 

‐ Furgoneta (furgão, perua, van, camionete). 

*  Existem  algumas  referências  no  livro  sobre  o  conceito  de  aceder .  Os  principais sinônimos ou contrapartes da palavra são: aceitar, concordar,  (ter acesso), consentir, 

acatar, submeter

‐se,

 condescender,

 aderir,

 anuir,

 aquiescer,

 assentir,

 compactuar.

 Neste caso, as condições sobre aceder referem‐se a aceitar um fato ou circunstância, por concordância, e não por simples aceitação. É como se referir ao fato de que o fogo 

queima. Não se trata de aceitar ou não esse fato, e sim de saber por si próprio sobre 

esse fato, e se alguém se refere a ele, a nós só nos cabe aceder, concordar com o fato 

por saber que é assim que funciona. 

Anexo de reflexões informais sobre o livro, obtidas ao longo da tradução 

“Conseguir ler

 os

 sinais

 do

 espírito

 é conseguir

 ler

 o funcionamento

 do

 próprio

 enredo.

 

É habilitar a capacidade de ver  as engrenagens, e ver onde ela está atuando, e o que 

ela  está  fazendo.  E  receber  como  eco  nossa  própria  função  no  momento.  O 

funcionamento de  todo o sistema não é velado, basta  ter a atenção necessária para 

afastar a névoa, e ele aparece sozinho.” 

“A  referência  ao  mundo  dos  feiticeiros  não  é  metafórica,  já  que  ele  existe  numa posição do ponto de encaixe. Ele existe  junto ao mundo das pessoas, no mesmo lugar onde  todos  estão  e  vivem,  e  só  difere  com  relação  às  possibilidades  de  ação  e 

percepção. No

 mundo

 comum,

 a única

 referência

 a esse

 mundo

 está

 nas

 histórias

 em

 quadrinhos, e  se  fosse  levado em  consideração estaria,  ao  invés disso, em  livros de 

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  203

estudo. Quando  se  diz  que  um  feiticeiro  vive  neste mundo  sem  fazer  parte  dele  é 

porque  seu  ponto  de  encaixe  está  alinhado  ao mundo  dos  feiticeiros,  e  não  ao  do 

mundo  comum. Nessa  posição de  alinhamento, ele  pode  agir  como  um  bruxo, mas também  lhe  é  exigido  comportar‐se  de  acordo,  além  de  ser  capaz  de  lidar  com  os componentes próprios dessa posição,  como a  interação com  seres  inorgânicos, uma 

percepção diferente

 de

 tempo

 e espaço,

 e suportar

 pressões

 diferentes

 das

 do

 mundo

 

comum. As pressões do mundo cotidiano são relativas a empregos, a relacionamentos pessoais, e a auto‐imagem. Para se aproximar de um desses mundos, a pessoa precisa se afastar do outro, e é por isso que precisa escolher. Se está apegada aos elementos de  um,  não  vai  conseguir  se  afastar  para  alcançar  e  viver  no  outro. O mundo  dos feiticeiros  é  uma  posição  de  ensonho,  e  para  se  viver  nele  se  precisa  viver  numa 

posição permanente de consciência intensificada, de ensonho desperto.” 

“Todos os medos em se  fazer qualquer coisa se  resumem no medo de perder nossa importância,  seja ela qual  for. Seja aos nossos próprios olhos, ou a  importância que 

pensamos ter

 para

 os

 outros,

 e até

 mesmo

 para

 o mundo,

 achando

 que

 se

 morrermos,

 

tudo vai parar, e ninguém mais vai fazer nada só porque não estamos mais ali. Talvez tenhamos medo de perceber que não é nada assim, que não temos importância, e não 

queremos  fazer  nada  para  não  correr  o  risco  de  perceber  o  que  no  fundo  nós  já 

sabemos. O medo que  temos é o de encarar esse  fato. Achamos que  se de  alguma forma não formos importantes, então nossa existência também não será importante, e 

que  por  isso  poderemos  ser  descartados.  Se não  somos  importantes,  então  porque 

continuaríamos existindo? Temos medo de ser descartados pela própria vida, e então 

passamos a vida inteira tentando enganar a vida, buscando e acumulando valores que 

nos  tornem  tão  importantes  a  ponto  da  vida  não  poder  abrir mão  de  nós.  E  neste 

ponto caímos

 no

 medo

 de

 morrer,

 de

 não

 ser

 nada,

 e por

 isso

 ser

  jogado

 no

 nada,

 em

 dissolver‐se  no  nada.  Precisamos  urgente  e  terrivelmente  sermos  importantes  de 

alguma maneira. Esse é o medo  infundido em nós, que nos  leva a  ter essa  linha de 

raciocínio e de ação. E o medo vem  justamente por sabermos que não somos nada, não importa o que a gente faça ou pense. Somos nada, mas queremos fechar os olhos para  isso, pois constatar é confirmar, e o que  se busca é enganar  tanto a  si mesmo 

como à vida. E no entanto, a  liberdade está aqui, neste ponto, quando constatamos que não somos nada, e ainda assim podemos fazer tanto.” 

“A energia que se consegue é sentida como poder. Pode‐se conseguir  poder   fazendo 

coisas no

 mundo

 ou

 nos

 ensonhos.

 Quando

 se

 faz

 algo,

 e o fato

 de

 ter

 feito

 esse

 algo

 nos  dá  confiança  ou  ímpeto  para  fazer  outras  coisas,  então  isso  significa  que 

conseguimos poder pelo  simples  fato de  ter  feito esse algo. O  simples  fato de  viver certas experiências nos confere poder.” 

“Só  somos  Superman  quando  estamos  completamente  limpos,  livres de desejos, de 

ganas,  limpos de consciência, quando nossa energia não está  fugindo, se projetando 

em busca de ‘quereres’, e quando temos apenas a alegria de um menino, que é capaz de  fazer  uma  travessura  admirável  e  completamente  inesperada  pelos  outros,  sem 

esperar nada por  fazer  isso, a não ser a alegria de ser  livre e de poder estar  fazendo 

isso.” 

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  204

“Por que é que nós temos que querer sempre as coisas do nosso  jeito? Por que é que 

não nos contentamos simplesmente com as coisas do  jeito que elas se apresentarem, ou conforme aconteçam? Por que é que nos permitimos ser tão mimados, a ponto de 

se  irritar  e  não  querer  viver  ou  desfrutar  de  momentos,  quando  eles  não  são 

exatamente do  jeito que imaginamos que deveriam ser? 

“Existem muitos

 conceitos

 a serem

 assimilados,

 e muitos

 levam

 anos

 até

 serem

 

processados e chegar a nos fazer sentido, na forma de uma sensação direta que  já não 

precisa de ser acompanhada de uma explicação para que possamos entendê‐lo e senti‐lo de forma clara em nós mesmos, em todo o nosso ser.” “Quantos bombons precisamos comer até chegar a realmente reconhecer seu sabor? Teríamos que não só saber, mas sentir que a vida é rara, que é curta, e que cada coisa que  fazemos nela  também  é  rara,  para  que  bastasse um único bombom? Ou  antes teríamos  que  comer  muitos,  de  muitos  tipos,  para  poder  comparar,  ou  também 

teríamos  que  passar  um  tempo  sem  sequer poder  sentir o  cheiro  de  um,  para  que 

quando se voltasse a provar um, saber o quanto é raro tanto a sua própria existência 

como um

 ser,

 como

 a existência

 do

 bombom,

 e o fato

 de

 que

 os

 dois

 pudessem

 existir

 

 juntos num mesmo  lugar e tempo, a ponto de poderem entrar em contato? Uma vez que se saiba de tudo isso, bastará um bombom, e não dez, para se conseguir apreciar o 

bombom e se sentir saciado em seu desejo de querer mais, e satisfeito com o próprio 

fato,  por  saber  quantas  coisas  precisaram  estar  envolvidas  para  que  esse  fato 

acontecesse.” 

‐ No filme Indiana Jones e a Última Cruzada, no final do filme, todos estão num templo, e uma  fenda se abre no chão, formando um abismo. O cálice  (Graal) cai no buraco e 

fica numa beirada. Uma mulher tenta pegá‐lo, cai, e  Indiana a segura pela mão, mas 

ela, na

 ambição

 de

 tentar

 alcançar

 o cálice,

 se

 solta

 e cai

 no

 abismo.

 O

 mesmo

 acontece com  Indiana, que então é seguro por seu pai. Ele também tenta alcançar o 

cálice. No ápice da situação, quando sua mão também está por se soltar, seu pai, que 

dedicou  sua  vida  inteira  na  busca  desse  cálice,  olha  para  ele  e  diz  calmamente: “Deixa”. Mesmo um cálice mágico e único não valia tanta ganância. ‐ Toda a gana de possuir um objeto sagrado, com poderes mágicos, e o medo de se 

deixar perder para sempre um objeto tão importante, precisa ser deixada de lado num 

instante de desapego. Para a mulher que caiu, a aflição e  loucura em se ter algo tão 

valioso foi maior até que seu instinto de sobrevivência. E não é o mesmo que acontece conosco? Algumas coisas brilham mais que o ouro aos nossos olhos, e nos agarramos 

com tanta

 força

 à idéia

 de

 possuir

 tal

 coisa

 de

 deixamos

 todo

 o resto

 de

 lado.

 Deixamos de  lado o bom senso, a sobriedade, passando por cima de tudo e de todos para tentar conseguir nosso objeto sagrado. Quase nunca ouvimos, ou damos atenção, à voz interior que nos diz: “Deixa”. ‐ É característica do ego possuir uma insatisfação sem fim. Ele é como um rei que, não 

importa o que ou o  tanto  se  faça por ele, ou quais presentes  se possa  lhe dar, ele 

nunca se dará por satisfeito. O universo inteiro não seria suficiente. Ele é personificado 

no mito dos vilões, que querem conquistar primeiro seu país, depois o mundo, ou até 

como Darth Vaider, todo o Universo. ‐ Quando nos referimos ao espírito, sempre parece ser algo externo, mas o espírito é 

uma 

coisa 

só. 

Ele 

é 

soma 

total 

das 

energias. 

porção 

de 

energia 

que 

está 

em 

nós, 

concentrada em nosso ser, que nós chamamos de nosso espírito ou alma, não deixa de 

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  205

ser parte do espírito  total. Ouvir o espírito não é necessariamente ouvi‐lo de  fora. A 

porção de espírito que está em nós é o que nos permite estar em contato com todo o 

resto. Os anseios do espírito, diferentes dos do ego, se dão por satisfeitos quando são 

alcançados.  Quando  se  fala  sobre  as  exigências  ou  requisitos  do  espírito,  fica parecendo que temos que fazer coisas para agradar algo fora de nós, a uma entidade 

que só

 nos

 permite

 continuar

 quando

 cumprimos

 suas

 solicitações.

 Mas

 essas

 

necessidades  brotam  diretamente  em  nós.  É  o  que  chamamos  de  consciência.  São 

aquelas necessidades de espírito que precisamos  fazer ou cumprir para estarmos em 

paz e satisfeitos conosco mesmos. E esta é a única satisfação real e possível. Trechos Compilados 

(15)  ‐ “Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm. O ensonho sempre 

tem um propósito prático, e serve ao ensonhador de maneira simples ou  intrincada. Ele  serviu  a  você  para  superar  seus  pesadelos,  serviu  às  bruxas  que  lhe  fizeram  a 

comida para conhecer sua essência, e serviu a mim para  fazer com que o guarda da 

fronteira, que

 lhe

 pediu

 seu

 visto

 de

 turista,

 não

 estivesse

 consciente

 de

 mim.

 Você

 

mesma, com pouco esforço, pode entrar no que você chama de um estado hipnótico. Nós o chamamos ensonhar um sonho que não é um sonho, mas um ensonho no qual podemos fazer quase tudo o que alguém deseje.” ‐ “Não é  uma mulher alta, mas  tampouco é  tão pequena  como  você  a  viu.  Em  seu 

ensonho  curativo,  ela  projetou  sua  pequenez  para  benefício  seu  e,  ao  fazê‐lo, apareceu pequena. Essa é a natureza da magia. Deve ser aquilo cuja impressão deseja dar.” 

(18)  ‐ “Para mim, entender a  filosofia dos  feiticeiros  (que a  liberdade não significava 

ser o eu

 que

 era

 meu

 ser)

 foi

 quase

 a morte.

 Ser

 eu

 mesma

 significava

 afirmar

 minha

 feminilidade,  e  consegui‐lo  consumia  todo  meu  tempo,  esforço  e  energia.  Ao 

contrário,  os  feiticeiros  entendem  a  liberdade  como  a  capacidade  para  fazer  o 

impossível, o inesperado; ensonhar um ensonho que carece de base e de realidade na 

vida cotidiana. O excitante e novo é o conhecimento dos feiticeiros, e imaginação é o 

que a mulher necessita para mudar seu ser e converter‐se numa ensonhadora.” 

(23)  ‐ “Os ensonhadores se ocupam de ensonhos. Obtêm seu poder e sua sabedoria dos  ensonhos.  Os  espreitadores,  por  sua  parte,  tratam  com  gente,  com  o  mundo 

cotidiano,  e  obtêm  sua  sabedoria  e  seu  poder  através  do  comércio  com  seus 

semelhantes.” 

(29)  ‐ “Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o fez porque não o sabia. Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença 

que não é  força, entidade nem presença. Os  feiticeiros chamam‐no o espírito, nosso 

observador pessoal, nossa testemunha permanente. Essa força não é Deus, nem tem 

nada a ver com a religião ou a moral, e sim é uma força impessoal, um poder à nossa disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos nos reduzir a nada.” 

(38)  ‐ “Seja você mesma, mas você mesma sob controle. O que não  se deve  fazer é 

fazer 

algo 

depois 

se 

arrepender.” 

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(43) ‐ “Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos muita prática nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco. Precisamos lutar  muito  para  recuperá‐los,  simplesmente  porque  o  corpo  os  armazena  em 

diferentes  lugares.  Com mulheres  que  não  possuem  seu  cérebro  de  sonâmbula,  as instruções para ensonhar  começam por  fazer com que desenhem um mapa de  seus 

corpos, um

 trabalho

 cuidadoso

 que

 revela

 onde

 as

 visões

 dos

 ensonhos

 são

 

armazenadas.  Esse  mapa  é  traçado  percorrendo  e  investigando  cada  polegada  do 

corpo.  Recomenda‐se  um  martelinho  de  madeira  para  golpear  o  corpo  e  tatear somente  as  pernas  e  os  quadris,  pois  muito  raramente  o  corpo  armazena  estas memórias no peito ou no  ventre. O que  se guarda no peito,  costas e  ventre  são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A única coisa que diz respeito a 

você  agora é  que  recordar ensonhos  tem  a  ver  com  a pressão  física  sobre o ponto 

específico onde está armazenada essa visão.” 

(52) ‐ “Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não pode 

voltar à sua

 antiga

 vida.

 Regressará

 ao

 mundo,

 mas

 não

 ao

 seu

 mundo,

 à sua

 antiga

 

vida. É muito excitante  fazer algo sem saber o porquê, e ainda o é mais, se você  se 

decide a fazer algo sem saber qual será o resultado.” ‐ “A liberdade causa muito temor. A liberdade requer atos espontâneos. Não tem idéia do que significa o abandonar‐se espontaneamente... seus atos de espontaneidade se 

devem  mais  à  sua  falta  de  avaliação  que  a  um  ato  de  abandono.  Um  ato 

verdadeiramente espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas só depois de uma profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram 

devidamente  levados  em  conta  e  descartados,  pois  nem  se  espera  nada  nem  se 

lamenta nada. Com atos dessa natureza os bruxos convocam a liberdade.” 

(59)  ‐ “Não é a mim a quem precisa convencer, e sim ao espírito. Deve fechar a porta atrás de você, a que você mantém aberta, a que te permitirá escapar se as coisas não 

são de seu agrado, ou não se encaixam em suas expectativas. Deserdar desse mundo 

fica  entre  o  espírito  e  você.  Entrou  neste mundo  da mesma maneira  que  todos  os outros. Ninguém  teve nada a  ver  com  isso, e  tampouco o  terá  se  você ou qualquer outro decide se retirar.” ‐ “Sua decisão carecerá de poder se precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou 

duvidar. Um guerreiro não é um escravo, e sim um servidor do espírito. Os escravos não tomam decisões, os servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente. Esta é a 

premissa básica

 desse

 mundo:

 nada

 se

 faz

 que

 possa

 ser

 catalogado

 como

 útil.

 Só

 se

 permitem atos estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como 

vivo. O  feiticeiro pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas. Quando chegar a compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você.” 

(61) ‐ “Uma mudança verdadeira não envolve mudança de ânimo, atitude ou ponto de 

vista, e sim uma transformação total do ser. O tipo de mudança ao qual aludo não se 

consegue  em  três  meses,  um  ano  ou  dez.  Toma  toda  a  vida.  É  sumamente  difícil converter‐se em algo diferente ao que alguém havia  sido destinado a ser. O mundo 

dos feiticeiros é um ensonho, um mito, e no entanto tão real como o mundo de todos 

os 

dias.” 

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‐ “Para  perceber  e  funcionar  nesse  mundo  devemos  nos  despojarmos  da  máscara cotidiana  que  levamos  aderida  aos  nossos  rostos  desde  o  dia  em  que  nascemos,  e 

colocarmos a  segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso entorno 

como  realmente  são:  acontecimentos  extraordinários  que  florescem  só  uma  vez, adquirem existência  transitória e nunca  se  repetem. Essa máscara  você mesma  terá 

que fazê

‐la.

 Isso

 se

 faz

 ensonhando

 seu

 outro

 ser.”

 

‐ “A liberdade não se obtém gratuitamente; ela lhe custará a máscara que leva posta: essa  tão  cômoda e difícil de descartar, não por  ser  cômoda, mas  sim porque  a  tem 

estado  usando  tanto  tempo.  Sabe  o  que  é  a  liberdade?  É  a  total  ausência  de 

preocupação acerca de si mesma, e a melhor maneira de deixar de preocupar‐se com 

sua pessoa é preocupando‐se por outros.” ‐ “Já é hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém 

mais que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em 

você, e haverá momentos em que a sentirá muito ajustada, muito solta, muito quente, muito fria…” 

‐ “Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que  já o fêz: deve agir nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar. Se não está ensonhando, então ainda não 

se decidiu. Não está  talhando  sua máscara. Não está ensonhando  seu outro  ser. Os feiticeiros  estão  comprometidos  com  seu  mundo  somente  através  de  sua 

impecabilidade. Os feiticeiros não têm interesse em converter a outros às suas idéias. Entre eles não há gurus nem sábios, só naguais. Eles são os líderes, não por saber mais, ou  ser  melhores  feiticeiros  que  os  outros,  e  sim  por  simplesmente  possuir  mais energia, e não me refiro necessariamente a força física, e sim a certa configuração de 

seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os parâmetros da percepção.” 

(62)  ‐ “Não espere que tudo seja soletrado com precisão para seu benefício. Nada no 

mundo dos  feiticeiros era  tão claro e preciso. As coisas se desenvolviam de maneira vaga e lenta. Nesse mundo não existem regras nem regulamentos. Lembre‐se sempre 

que só existem improvisações.” 

‐ “Nunca perca Isidoro Baltazar de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que 

nem sequer se dará conta disso. Ele é um guerreiro  impecável e  incomparável. Se o 

observar  cuidadosamente  verá  que  ele  não  busca  amor  nem  aprovação.  Verá  que 

permanece  impávido sob qualquer situação. Não pede nada, mas está disposto a dar 

tudo de

 si

 mesmo.

 Aguarda

 permanentemente

 um

 sinal

 do

 espírito,

 na

 forma

 de

 uma

 palavra  amável  ou  um  gesto  apropriado,  e  quando  o  recebe,  expressa  seu 

agradecimento redobrando seus esforços. Ele não  julga. Se reduziu ele mesmo à nada 

para escutar e observar, para assim poder conquistar e ser humilhado na conquista, ou 

ser  derrotado  e  enaltecido  na  derrota.  Se  observar  com  cuidado  verá  que  Isidoro 

Baltazar não se rende. Podem vencê‐lo, mas não se renderá e, acima de tudo, Isidoro 

Baltazar é livre.” 

(69)  ‐ “O  nagual  Isidoro  Baltazar  havia  me  advertido  acerca  da  falácia  das  metas definidas e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que careciam de valor, 

pois 

verdadeiro 

cenário 

de 

um 

feiticeiro 

é 

vida 

cotidiana, 

ali 

as 

motivações 

conscientes superficiais não aguentam as pressões.” 

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  208

 

(70)  ‐ “Quando  tentava pedir‐lhes  ajuda  recusavam  fazê‐lo.  Seu  argumento era que 

sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir‐se, e não dispunham 

de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois  de  um  tempo  abandonei  toda  tentativa  de  indagá‐las,  e  me  dediquei  a 

desfrutar de

 sua

 presença

 e de

 sua

 companhia.

 Cheguei

 assim

 a aceitar

 sua

 razão

 para

 

não  querer  jogar  nosso  jogo  intelectual  predileto,  esse  de  pretextar  interesse  nas assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela 

verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela.” 

‐ “As ensonhadoras, ao tratar‐me num nível mundano, me estavam proporcionando o 

modelo  necessário  para  recanalizar  minhas  energias.  Desejavam  que  eu  mudasse 

minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais como cozinhar, limpar, estudar ou 

ganhar a vida. Disseram‐me que essas tarefas deviam fazer‐se com distintos auspícios, 

não como

 tarefas

 mundanas,

 e sim

 como

 esforços

 artísticos,

 todos

 de

 igual

 

importância.  Na  presença  e  companhia  de  qualquer  destas  feiticeiras  eu 

experimentava a rara sensação de estar em  férias permanentes, só que  isso era uma miragem, pois elas viviam em permanente estado de guerra, sendo o  inimigo a  idéia do eu.” 

(72)  ‐ “Isidoro Baltazar acreditava que os  filósofos são  feiticeiros  intelectuais. Apesar disso,  suas  buscas  e  ensaios  ficam  sempre  em  empenhos  mentais.  Os  filósofos somente  podem  atuar  no  mundo  que  tão  bem  entendem  e  explicam  da  maneira cultural  já  concordada.  Eles  se  somam  a  um  já  existente  corpo  de  conhecimento. 

Interpretam e reinterpretam

 textos

 filosóficos.

 Novos

 pensamentos

 e idéias

 resultantes  deste  intenso  estudo  não  os  mudam  exceto,  talvez,  num  sentido 

psicológico. Podem chegar a converter‐se em pessoas mais compreensivas e boas, ou 

talvez  em  seu  oposto. No  entanto,  nada  do  que  façam  filosoficamente mudará  sua percepção sensorial do mundo, pois os filósofos trabalham de dentro da ordem social, à qual apoiam, ainda que  intelectualmente possam não estar de acordo com ela. Os filósofos são feiticeiros frustrados.” 

‐ “Os feiticeiros também constroem sobre um  já existente conjunto de conhecimento. Contudo, não o  fazem  aceitando o  já provado e estabelecido por outros  feiticeiros. 

Devem provar

 de

 novo

 a si

 mesmos

 que

 aquilo

 que

  já

 se

 dá

 por

 aceitado

 na

 verdade

 existe,  e  se  submete  à  percepção.  Para  conseguir  cumprir  esta  tarefa monumental, precisam de uma extraordinária capacidade de energia, a qual obtêm apartando‐se da 

ordem  social  sem  retirar‐se do mundo. Os  feiticeiros  rompem a convenção que  tem 

definido a realidade sem destruir‐se no processo de fazê‐lo.” 

(76)  ‐ “Se deseja  receber  forças do mundo dos  feiticeiros  já não pode  trabalhar com 

essas premissas. Em nosso mundo mágico os motivos ulteriores não são aceitáveis. Se 

quer  graduar‐se,  deve  se  comportar  como  um  guerreiro,  não  como  uma  mulher treinada  para  agradar,  pois  você,  ainda  quando  se  põe  bestialmente  desagradável, 

procura 

agradar. 

Agora, 

no 

que 

se 

refere 

escrever, 

 já 

que 

não 

foi 

treinada 

para 

isso, 

quando o fizer, deverá adotar uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro. Deve 

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lutar consigo mesma, a cada centímetro do caminho, e precisa  fazê‐lo com tal arte e 

inteligência que ninguém notará sua luta.” 

(79) ‐ “Para alcançar certo nível de conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do 

que o fazem outros. Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo 

cotidiano como

 ao

 mágico.

 Para

 conseguir

 isso

 devem

 ser

 muito

 preparados

 e 

sofisticados, tanto mental como fisicamente.” ‐ “Enquanto ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só propósito. Toda  sua  preocupação e  esforço  se destinaram  a  terminar  seu  trabalho. Nada mais importava. Nenhum outro pensamento interferiu com sua meta.” (80)  ‐ “Os homens  constroem  seu  conhecimento passo  a passo.  Tendem para  cima, trepam em direção ao conhecimento. Os  feiticeiros dizem que os homens se estiram 

como  um  cone  em  direção  ao  espírito,  para  o  conhecimento,  e  este  procedimento 

limita até onde podem chegar. Como poderá ver, os homens só podem alcançar certa altura, e  seu caminho  termina no ápice do cone. No caso das mulheres o cone está 

invertido, aberto

 como

 um

 funil.

 As

 mulheres

 possuem

 a faculdade

 de

 abrir

‐se

 

diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte lhes chega de maneira direta, na base 

larga do cone. Os feiticeiros dizem que a conexão das mulheres com o conhecimento é 

expansiva, enquanto a dos homens é bastante  restritiva”.  “Os homens  se  conectam 

com o concreto, e apontam ao abstrato. As mulheres se conectam com o abstrato, e 

contudo tratam de entregar‐se ao concreto” 

(82) ‐ “Por você ser uma bruxa, precisa saber o que te afeta, e como te afeta. Antes de 

recusar algo deve saber por que o recusa.” 

(85)  ‐

“Você experimentou

 duas

 transições:

 uma,

 do

 estado

 de

 estar

 normalmente

 desperta  ao  de  ensonhar  desperta,  e  a  outra  de  ensonhar  desperta  a  estar normalmente  desperta.  A  primeira  foi  suave  e  quase  imperceptível,  a  segunda  um 

pesadelo. Isso é normal, e todos a experimentamos dessa maneira.” ‐ “O normal é começar a ensonhar dormindo numa  rede ou algum utensílio  similar, pendurado em alguma viga, ou em uma árvore. Assim suspendidos não temos contato 

com o chão. O sólo nos captura, não esqueça disso. Suspendido assim, um ensonhador novato aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de ensonhar um ensonho a ensonhar desperto. Tudo isto, como  já lhe disse Florinda, é questão de 

energia. Assim que a tem, você voa.” 

(86)  ‐ “Na segunda atenção encontramos continuidade e  fluidez, assim como na vida 

diária.  Em  ambos  estados  domina  o  prático,  e  atuamos  eficientemente  neles.  No 

entanto,  o  que  não  podemos  conseguir  na  segunda  atenção  é  esmiuçar  nossa experiência  para  manejá‐la,  e  com  isso  nos  sentirmos  seguros  para  então  tentar entendê‐la.” 

‐ “Na segunda atenção, ou como eu prefiro chamá‐la, quando ensonhamos despertos, a pessoa deve crer que o ensonho é tão verdadeiro como no mundo real. Em outras palavras,  devemos  aquiescer .  Para  os  feiticeiros  todo  negócio  mundano  ou  extra‐

mundano 

está 

regido 

por 

seus 

atos 

irretocáveis, 

detrás 

de 

todo 

ato 

irretocável 

está 

aceder , que não é aceitação. O assentir   inclui um elemento dinâmico:  inclui ação. No 

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momento  em  que  começamos  a  ensonhar  desperto  se  nos  abre  um  mundo  de 

incitantes  e  inexploradas  possibilidades,  onde  a  última  audácia  se  converte  em 

realidade, onde se espera o inesperado. Esse é o momento em que começa a aventura definitiva  do  homem,  e  o  universo  se  converte  em  um  lugar  de  possibilidades  e 

maravilhas  ilimitadas.”  (aceder :  aceitar,  aderir,  anuir,  aquiescer,  assentir,  concordar, 

acatar, consentir,

 condescender,

 compactuar).

 

(88)  ‐ “Nossa  grande  tragédia  é  a  de  ser  bufões,  indiferentes  a  tudo  salvo  nossa 

bufonaria.” ‐ “Para  aliviar  sua pena afunde‐se em  si mesma.  Sente‐se  com os  joelhos  elevados, tomando  seus  tornozelos  com  os  braços  cruzados:  o  tornozelo  direito  com  a  mão 

esquerda. Descansa sua cabeça sobre os  joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a 

terra te acalme, que sua força curativa venha a ti.” 

(90)  ‐ “Você  se queima  rápido demais e de  forma desnecessária”. Disse que eu não 

sabia enfocar

 minha

 energia.

 “Você

 a desdobra

 para

 proteger

 e apoiar

 a idéia

 de

 ti

 

mesma”. “Disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na realidade só uma idéia, e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia defendendo essa idéia.” ‐ “O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que pode ser mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando 

se afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar‐se com o intento, e ser mais do que acreditamos constituir o normal.” 

(96)  ‐ “Para viver no mundo dos  feiticeiros deve‐se ensonhar amplamente. A maioria das  pessoas  não  possui  a  engenhosidade  nem  a  estatura  espiritual  necessária  para 

ensonhar. Não

 podem

 evitar

 ver

 o mundo

 como

 algo

 ordinário.

 E sabe

 por

 quê?

 Porque se você não luta para evitá‐lo o mundo é na verdade ordinário. A maioria das pessoas  vive  tão  preocupada  consigo mesmas  que  se  idiotizaram,  e  os  idiotas  não 

desejam lutar para evitar a ordinariedade.” 

(97‐98) ‐ “É bobo pensar em termos de  justiça e injustiça. No mundo dos feiticeiros só 

existe o poder. Nos piores momentos os  guerreiros  revivem  suas  forças para  seguir adiante. Um guerreiro não sucumbe ao desespero.” ‐ “Nosso  mundo  mágico,  que  é  um  ensonho,  é  feito  realidade  mediante  o  desejo 

concentrado  daqueles  que  participam  dele.  A  todo  momento  o  mantêm  intacto  a 

vontade tenaz

 dos

 feiticeiros,

 do

 mesmo

 modo

 como

 o é o mundo

 diário

 pela

 vontade

 de todos. Para ensonhar nosso ensonho você tem que estar morta. ‐ “Morrer significa que cortamos todas as amarras, abandonamos tudo o que  temos, tudo  o  que  somos.  Se  tivesse morrido  como  o  exige  a  feitiçaria  agora  não  sentiria angústia. Sentiria dever, propósito! Não se espera que se evite a tristeza ou o amor, e 

sim que se sobreponha a eles. Se os guerreiros não possuem nada, nada sentem. Vazio 

é o mundo dos que se entregam ao vício do amor por si mesmos. De modo que temos um mundo esfarrapado, surrado, aborrecido, repetido. Para os feiticeiros o antídoto é 

a morte, e não só pensam nela, e sim que morrem.” ‐ “Ensonhar viva significa ter esperanças, que se aferra a seu ensonho para manter‐se 

viva. 

Ensonhar 

morta 

significa 

que 

abandonou 

esperança, 

que 

não 

se 

agarra 

seu 

ensonho. Florinda havia dito que a liberdade é uma total ausência de preocupação por 

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si  mesmo,  algo  obtido  quando  a  massa  de  energia  aprisionada  dentro  de  nós  é 

liberada.  Havia  dito  que  esta  energia  somente  podia  liberar‐se  quando  podemos reprimir o exaltado conceito que  temos de nós mesmos, de nossa  importância, essa 

importância que consideramos inviolável e livre de enganos.” 

“O preço

 da

 liberdade

 é muito

 alto.

 A

 liberdade

 unicamente

 se

 consegue

 ensonhando

 

sem  esperança, estando  dispostos  a perder  tudo,  inclusive o  próprio  ensonho.  Para alguns de nós ensonhar sem esperança, lutar sem meta, é a única maneira de não ficar para trás do pássaro da liberdade.” DICIONÁRIO (ESP‐PORT) EM ORDEM ALFABÉTICA 

Abrumar: atordoar, enevoar, obscurecer Acertijo: charada, enigma, adivinhação 

Acceder:  concordar,  aceder  (ter  acesso), aceitar,  consentir,  acatar,  submeter‐se, 

condescender 

Además: além 

Adictiva: viciante 

Afición: afeição 

Agazapada: escondida, encoberta, oculta Agujero: buraco, rombo, perfuração, vazar, fenda Ahorrar: conservar, conter, manter. Ahorro: poupança, economia Alacena: armário, buffet 

Alfombra: tapete,

 carpete

 

Alimañas:  animália,  feras,  pragas,  pestes, pequenos predadores Almendra: amêndoa (almendrado) Amago:  demonstrar  a  intenção  de  (sinal), indício, ameaçar fazer Amanerado: cortês, boas maneiras, fresco 

Ancha: longa, ampla, larga, extensa Anhelante: ávido, ansioso, interessadíssimo 

Anhelos:  anseios,  desejos,  vontades, 

pretensão Añadir: (add, anex, increment) completar 

Añicos: fragmentos, pedacinhos Anidaba: aconchegava, aninhar, acomodar Antojó: sentir o gosto, agradar, parecer Apantallar: impressionar, surpreender Aplastar:  comprimir,  abrir,  esmagar, pressionar, apertar Apuesto: charmoso 

Arpillera: estopa, aniagem, tecido rústico 

Arreglar: 

remediar, 

reparar, 

arranjar, 

dispor,  organizar,  arrumar;  saldar,  ajustar 

Comisuras: cantos Contestó: respondeu 

Contrarrestado:  balanceado, neutralizado,  compensado, 

contrabalançado, agir

 contra

 

Conque: então (so then) Cornisa: beira, borda Crobizo: avermelhado, acobreado 

Crujir: ranger, estalar Cuchara: colher Cuchillo: faca 

Cuello: garganta 

Defraudar:  decepcionar,  desapontar, 

fraudar 

Dejo: toque, dica, pitada Derriban:  derrubam,  demolem, destrõem. Derrotero:  curso,  caminho,  direção, plano de ação 

Desayunaba:  pequeno  almoço, desjejum 

Desconchinflar: desmontar, descompor Desenfado:  naturalidade,  simplicidade, 

singeleza, 

despreocupação, impulsividade, desebinição, desprezo 

Desgano:  tédio,  falta  de  gana,  de 

vontade, repúdio 

Desmandarme:  ir  longe  demais, exagero, descontrolar‐se 

Desmenuzar:  esmiuçar,  especificar, esmigalhar Desparpajo: atrevimento, dispersão 

Desplegar:  dispersar,  empregar 

(esforços), 

desdobrar 

Despliegue:  revelação,  demonstração, 

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contas; acalmar. Arrojar:  jogar, lançar, atirar Asidero:  pretexto  (para  fazer  algo),  ponto 

de  apoio,  suporte,  aderência,  maçaneta, aperto  de  mão,  sacada  (entender), 

anteparo 

Asignado: atribuído, designado 

Asomo: aparecer, mostras, sinal (marcas) Atañe: concerne, diz respeito, ter relação 

Atemperado:  moderado  (ânimo), aclimatado 

Atrapar: prender, apanhar, capturar Atrapada: pêga, capturada, aprisionada Aunar:   juntar,  unir,  ligar,  atar,  prender; acrescentar; combinar, concordar 

Aunque: embora

 

Basura: varredura, limpeza, rápido, faxina Borrar: apagar, desvanecer Brindó: trouxe, ofereceu 

Broma: piada, gracejo, anedota Burla:  iludir,  fingir,  simular,  enganar, trapacear, tapear Burlona:   jocosa,  irônica,  pilhéria, espirituosa,  mordaz,  satírica,  picante, 

irreverente, cáustica,

 sarcástica,

 pungente,

 

cínica, ferina. 

Cacerola: caçarola, panela grande 

Calidez:  entusiasmo,  cordialidade,  quente, calor humano, ternura Calzones: calcinha Cantarín: melodioso,  suave e agradável de 

ouvir Cargoso:  chato,  aborrecido  /  teimoso, 

persistente Celos: ciúmes 

Chaqueta: casaco, blusa, paletó, camisa Chillona: chorosa Chisme:  boato,  fofoca,  intriga,  rumor; invento, engenhoca, artefato 

Cholos: mestiços Codicia:  cobiça,  avareza,  mesquinharia, voracidade, desejo, ansiar Colgar: pendurar, trepar, pender, suspenso 

Colmado: 

coberto, 

forrado, 

cheio, 

oprimido 

amostra, exibição 

Desplomaba:  desmoronava, despencava Destartalado:  esfarrapado,  decrépito, deselegante,  surrado,  desleixado, 

desmantelado 

Desvaído:  esvaído,  desbotado, desanimado, apagado 

Echar:  jogar,  atirar,  expulsar,  rejeitar, lançar Eludir: evitar, escapar, evadir Encomio:  elogio,  aplauso,  louvor, parabenizar Empiece:  começar,  iniciar,  principiar, 

lançar 

Empecinada: obstinada, persistente Emplear:  empregar,  ativar,  utilizar, empenhar Empotrado:  encaixado,  integrado, alojado, assentado 

Enano: anão 

Enfado:  tédio,  raiva,  zanga,  irritação, aborrecimento, indignação, importuno. Enfurruñada: furiosa, raivosa 

Enojo: raiva,

 irritação

 

Ensanchar:  alargar,  ampliar,  dilatar, expandir Ensayé: testar, tentar, experimentar Enrejado: grade, treliça Escenas: cenas, visões Estancia: estada 

Estallido: explosão, estouro, rompante 

Escurrir: deslizar, passar entre 

Espeté: espetar, mencionar, cutucar 

Esquizoide: dividido,

 esquizofrênico

 Estallé, estallido: explodir, rompante 

Exangüe:  débil,  exausto,  esgotado, pálido 

Exhumé: desenterrei 

Factótum: faz‐tudo 

Falda: saia 

Flanquar: ladear Frazada: cobertor, manta 

Hallar:  encontrar,  achar,  buscar, 

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averiguar, localizar Hallazgos:  achados,  descobertas. Serendipity:  capacidade  de  fazer descobertas  importantes  por  acaso, sorte. 

Halagó: lisonjeou, agradar, adular Haragán: preguiçoso, pessoa suja (slob) Hecho: evento, fato, feito, realização 

Helecho: samambaia Hembra: (relativo ao sexo) feminino 

Honda: profunda, intensa Huella:  pegada,  pista,  marca  deixada, rastro 

Huidizo: fugidio (huir), ou breve, fugaz 

Hundir: afundar

 algo,

 cravar,

 desabar,

 

submergir Hurtadillas: furtivamente, secretamente 

Infructuosamente: sem efeito, em vão 

Ingenio:  brilhantismo,  engenhosidade, capacidade Ingle: virilha 

Involucra: envolve, implica, inclui Irreprochable: irrepreensível 

Jadear:  ofegar,  arquejar,  engasgar, inspirar fundo 

Jarras: xícaras, canecas Jerigonza:  linguajar  complicado,  confuso 

(galimatías) Joder:  foder,  ferrar,  irritar. No me  jodas! (Está  de  sacanagem?).  Hay  que  joderse 

(Tem que ter saco). Juguetón: divertido 

Lacio: em linha reta, retilíneo 

Ladrillo: tijolo 

Lampiño: careca; audacioso, cara‐de‐pau, descarado 

Lechuga: alface, salada, folhas Lechuza:  coruja,  pessoa  não  sociável, heremita Liviana: leviano, superficial, leve, ligeiro 

Lóbregas: obscuras, sombrias 

Lucir: parecer,

 exibir

‐se,

 mostrar

‐se

 

Peatonal: de pedestres Percatar: estar ciente 

Pícaro:  atrevido,  imoral,  travesso, debochado,  provocante,  malicioso, maldoso 

Picardia:  malandragem,  baixaria, desonestidade, travessura Plañidera: trêmula Plegadiza: dobradiço, dobrável 

Pómulos: maçãs

 do

 rosto,

 pômulos

 

Por lo bajo: em segredo, silenciosamente Posadera: nádegas 

Reanudar:  recomeçar,  renovar,  retomar, reiniciar Recelosa:  desconfiada,  receosa (distrustful) Rechazo: rejeição, recusa, repúdio 

Regaño: repreender, censurar 

Remilgué, 

remilgado: 

esmerado, 

dengoso,  melindroso,  delicado  em 

excesso, recatado. Reñir:  brigar,  argumentar,  alegar, defender Resultó: era Rezagada: retardado, retardatário,  lerdo, atrasado, preguiçoso 

Rienda suelta: livre fluxo, vazão, liberar Roto: quebrado 

Quedar: restar, sobra, fica, cair, manter 

Sencillamente:  verdadeiramente, sinceramente Sendero: caminho, trilha, pista Sienes: têmporas Sin alento: sem fôlego, ofegante 

Sin  tacha:  impecável,  completo,  sem 

defeito (flawless) 

Sortija: anel

 (mais

 os

 com

 algum

 adorno

 ou pedra preciosa) 

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Majadería:  estupidez,  bobagem,  idiotice, tolice, burrice 

Manchón: manto, capa 

Manojo: feixe, punhado, porção 

Marchitar:  degenerar,  murchar, 

desaparecer, desvanecer,

 esvair,

 dissipar

se,  fenecer,  esmorecer,  desfazer‐se, definhar,  enfraquecer,  debilitar; encolher‐se; prejudicar Me  echaste  de  menos?  ‐ Sentiu  minha 

falta? Menudo:  ligeiro,  breve,  ágil,  destreza, leve, portátil (a  menudo:  constantemente, frequentemente) 

Mitigar: abrandar,

 serenar,

 suavizar,

 

aplacar, aliviar, saciar Mofar:  zombar,   judiar,  brincar,  gracejo, escarnecer Mojigata: puritana (ou modos femininos) Mohín: careta, trejeito 

Muchacha: garota, menina Musitó: sussurrou, cochichou 

Muslo: coxa 

Nalgas: nádegas,

 bunda

 

Necedades: tolices, burrices Nudillos: nós dos dedos,  juntas 

Ocaso: declínio 

Ominoso: agourento, mau presságio 

Oquedad: buraco, cavidade, oco, vazio 

Paladeándola  (paladear):  saborear, aprecisar, desfrutar, gozar 

Parejo: uniforme,

 paralelo,

 alinhado

 Parroquianos: clientes, fregueses Pasillo: corredor Patada: chute, pontapé 

Patraña:  estórias  (manjadas,  pra  boi dormir), contos Patane:  grosseria,  deselegante,  rústico, desajeitado 

Sostuvo: manteve, sustentou, conservou 

Suministrado:  fornecido,  suprido,  fonte, supply Sueles: acostumado a 

Suspicaz: desconfiado, duvidoso, receoso 

Tacón: salto (de sapatos) Taladró: perfurou, broca; ferir, magoar Tararear: cantarolar Taza: cálice, taça, copo, tigela, xícara Temprana: cedo 

Teñida: tingida, pintada Terminante:  categórico,  preciso, definitivo, inquestionável Testarudo: tenaz, perseverante, teimoso 

Tetera: bule

 de

 chá,

 chaleira

 

Tibio: morno 

Tirón: puxão súbito, tranco 

Tobillo: tornozelo 

Todavía: ainda 

Trampa:  armadilha;  alçapão;  engano, trapaça, subterfúgio 

Trasfondo:  conotação,  matiz,  base, formação, antecedentes Trinchante: faca de carne, cinzel 

Trizas: pedaços,

 cacos

 

Trozos: peças, pedaços, partes 

Ubicada: localizada, situada Uno: pessoa, aquele que 

Valedero:  válido,  legitimado,  executável, forçado 

Viandas: comidas, iguarias, petiscos Vindicada:  justiçada, vingada, desforra 

Zambullir: mergulhar Zanjó: escavou 

Consultas para a Tradução e Guias de Referência 

“Así  

habla 

el 

mexicano: 

Dicionário 

Básico 

de 

Mexicanismos” ‐

Jorge 

Mejía 

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  215

http://www.babylon.com/definition http://www.diccionarioweb.org/p/ES/desco http://www.wordreference.com 

http://www.woxikon.com.br/espanhol/ http://pt.wiktionary.org/wiki/ 

http://www.plantamed.com.br/glossario/index.html (Plantas medicinais, descrição de doenças e usos de cada planta para tratamento) http://www.jardineiro.net 

Al fin y al cabo: (quando tudo é dito e pronto) afinal; no fim das contas. A la par de:  junto com, assim como, ao mesmo tempo que. Tirando a: tendendo a, viés (tirando a pequeños ‐ de médio a pequenos). Fade: desbotar,  fazer desaparecer a cor e o brilho; esvair‐se; murchar; encarquilhar; 

desaparecer; amortecer;

 perder

 a força.

 

Sanseacabó: ponto final, fim de papo, assunto encerrado (expressão coloquial). Brinco: salto, pirueta, pulo. 

A  sus  anchas  (locução  adverbial  ‐ coloquial).  (Pág.  24)  Me  puso  tan  a mis  anchas: deixou‐me tão à vontade, tão cheia de si. ‐ Con  entera  liberdad.  Se usa  com:  estar, quedarse,  sentirse  y  vivir.  “Cuando  ao  fin 

todos se fueron, ella se quedó a sus anchas.” ‐ Orgulloso, ufano. Se usa mais com: estar, ponerse y quedarse. “Le insultó y se quedó 

tan ancho.” 

Antojar: desejo intenso e passageiro (mulher grávida), capricho; suposição, “a mim me 

parece”. ‐Fazer‐se objeto de veemente desejo, ainda mais se só por capricho. “No hace mas que 

lo que se le antoja”. ‐Fazer uma consideração como algo provável. “Se me antoja que va a  llover”. “Se me 

antoja que aquí  sucede algo raro”. 

Santurronería  (nome  feminino)  despectivo.  Atitude  ou  comportamento  que  se 

caracteriza  por  dar  grandes  mostras  de  devoção  religiosa,  geralmente  de  maneira 

exagerada e hipócrita.

 Fanatismo,

 extremismo,

 intransigência,

 religiosismo,

 beato.

 (pág. 5) 

Panocha (nome feminino) ‐ pág. 38 

1. Espiga grande, formada por grãos grossos e apertados, assim como o milho. 2. Palavrão (xulo) Méx. ‐ Parte externa do aparelho genital feminino (boceta, perereca). 3. Colomb ‐ Tipo de pan grande, hecho con maíz tierno: crió a sus dos hijos con la venta 

de  panochas y  tamales. 4. Méx ‐ Raspadura de azúcar que se prepara sólida en trozos (rapadura). 

Arvejilla, Sweet Pea (Lathyrus Odoratus): Ervilha‐de‐cheiro, Ervilha‐doce. 

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É uma  trepadeira anual de  inverno.  Apresenta caule herbáceo, áspero e ascendente por meio  de  gavinhas  que  se  desenvolvem  nas  pontas  das  folhas  compostas.  Suas flores  são  muito  vistosas,  perfumadas,  solitárias  e  podem  ser  de  cores  e  matizes variados, com degradés e combinações entre o azul, branco, amarelo,  laranja, rosa e 

vermelho. Após a polinização formam‐se vagens curtas, com sementes semelhantes a 

ervilhas, porém

 venenosas.

 A

 ervilha

‐de

‐cheiro

 é uma

 excelente

 trepadeira

 para

 

pequenos  suportes,  como  treliças e até mesmo cercas. Sua altura não ultrapassa os dois metros. A floração ocorre na primavera e verão.