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VIVER DE RIR

Depende do ponto de vista: nada mais sério do que um escritor, principalmente se ele for consagrado. Ao mesmo tempo, eles são os primeiros a nos ensinar que o melhor remédio para os males da vida é... o riso. Mais do que uma terapia ou uma filosofia-de-livro, o humor é uma sabedoria popular, uma filosofia de vida. A crise está braba? A tragédia sombria se abate sobre nossas cabeças? Génios como Machado de Assis, Kafka, Gogol e outros veriam tudo de um outro ângulo: aquele ponto de vista que nos leva ao riso. É saudável e "não tem contra-indicação", como escreve Flávio Moreira da Costa, organizador desta antologia, na introdução de Viver de Rir.

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Flávio Moreira da Costa

VIVER DE RIR

2ª EDIÇÃO

EDITORA RECORD

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CIP-Brasil. Catalogação-na fonte Sindicato Nacional dos Editores de livros, RJ. Viver de rir / seleção, tradução e organização de Flávio Moreira da Costa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. V842

Conteúdo parcial: O riso da ficção e a ficção do riso / Flávio Moreira da Costa.

1. Antologias (Contos). I. Costa, Flávio Moreira da, 1942-. O riso da ficção e a ficção do riso. II. Título: O riso da ficção e a ficção do riso.

CDD — 808.83 94-0339 CDU — 82-34(082) Copyright © 1994 da seleção, tradução e introdução by Flávio Moreira da Costa. Os textos em inglês e francês foram traduzidos diretamente da língua original. Os escritos em alemão e russo foram traduzidos de edições em inglês ou francês e cotejados com o original.

EDITOBA AFILIADA Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — 20921-380 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-04142-4 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922-970

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SUMÁRIO O RISO DA FICÇÃO E A FICÇÃO DO RISO Flávio Moreira da Costa 7 VLAS DOROCHEVITCH Assim Falava Tchi-San 15 MACHADO DE ASSIS O Dicionário 27 Um Apólogo 31 Teoria do Medalhão 34 JEROME K. JEROME O Homem Distraído 45 ANTON TCHECOV A Obra de Arte 55 No Escuro 60 A Linguaruda 65 ARTUR AZEVEDO O Velho Lima 71 Plebiscito 75 NICOLAI GOGOL O Nariz 81 UMA BARRETO Nova Califórnia 111 O Homem que Sabia Javanês 121 ARKADI AVERCHENKO Odisséia de Uma Vaca 133 J. SIMÕES LOPES NETO O Papagaio 145 O Tatu-Rosqueira 148 FRANZ KAFKA Possêidon 155 O Novo Advogado 157 Pequena Fábula 159 O. HENRY Permita-me Tomar Seu Pulso 163 ANTÓNIO DE ALCÂNTARA MACHADO As Cinco Panelas de Ouro 179

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O Riso da Ficção e a Ficção do Riso

Flávio Moreira da Costa

"Fizeram bem os deuses em determinar que o pobre também soubesse dar grandes risadas. Nos casebres não se ouve apenas lamento e choro, mas também muita gargalhada,

vinda do coração. Até os pobres, cumpre dizê-lo, até os pobres riem muitas vezes, quando teriam antes motivo para chorar."

MóriczZsigmond, "Sete Krajkar", in Antologia do Conto Húngaro,

Paulo Rónai (org).

Muito engraçado. No entanto é verdade: o peixe morre pela boca. Já o homem — o homem lobo do homem; o homem único animal que ri — nem sempre, pois na realidade ele vive pela boca. Não, não precisa morrer de rir, caro leitor. Muito pelo contrário, uma vez que tudo tem lá o seu vice-versa: o riso faz parte da vida de cada um de nós, que rimos ou não em ocasiões e por razões diferentes. O riso faz parte da história da humanidade — assim como o sorriso, o choro, o amor, o ódio, a morte. Assim, morrer de rir é só uma maneira de dizer. Viver de rir, outra. Se não existia, que seja inaugurada agora. Ambas falam a mesma coisa. Ou será que não? Existem tanto (bons) humores quanto (maus) humores. Rimos de tudo e de nada. Ou será que rimos do inesperado de uma situação, de 7

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uma observação ou da (devido à) insustentável leveza do ser, da insustentável leveza do ter ou não ter, eis a questão? Pode haver quem diga que filosofia não tenha graça, mas não é bem assim. Da minha parte, aprendi a rir com Carlitos, Cantinflas e Oscarito, para só mais tarde, bem mais tarde, ficar sabendo que um grego chamado Sócrates "emplacou" a ironia na cultura do Ocidente. Foram necessários mais de vinte séculos para um outro filósofo, o irreverente Kierkegaard, estabelecer as regiões limítrofes entre Ironia e Humor. (Quem quiser conferir: O Conceito de Ironia—Constantemente Referido a Sócrates, Ed. Vozes, 1992.) Ainda na velha Grécia, nem o sisudo Aristóteles se esqueceu de colocar a comédia junto com a tragédia e a epopeia. Mas se o leitor for folhear seu exemplar, verá que nada consta sobre a comédia, já que se perdeu na poeira dos tempos o livro II da Poética. Seria o mesmo dizer: o humor (a comédia) deixou de ser sistematizado. Ainda bem.

Ou o assunto será pessoal? Afinal, cada qual (não) sabe de si e do que (não) ri. Muito riso, pouco siso, diz um velho e discutível ditado. Não me faça rir que eu sou um homem sério — me disse um dia o humorista Barão de Itararé, não sem razão embora com contradição. Rir é a melhor vingança? Riso franco, riso frouxo, riso solto, riso amarelo, e as carrancas do São Francisco, as rabugices do cotidiano, os arrastões da crise, a casmurrice de Dom Casmurro? O momento exige seriedade, é grave... Ora, por isso mesmo. "Aliás, divertimento não exclui de maneira nenhuma a seriedade", observou Milan Kunde-ra, em A Valsa do Adeus. E o nosso Guimarães Rosa chegou a defender a anedota, no primeiro dos vários prefácios de Tutaméia. E cita Bergson (que aliás escreveu Le Riré): "O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo..." "Piada?", pergunta Rosa. E responde: "Não, argumento de Bergson contra a ideia do 'nada absoluto'." Filosofia e humor, pois, de mãos dadas.

Ora, portanto, digamos que... Mas dizer o quê? Nada. Esta é apenas e tão-somente (o que a nosso juízo já é muito) uma antologia, um livro enfim que não dói, não faz sofrer e nem apresenta contra-in-dicações. Porém—ah, porém!—se alguém, algum dia, ousar escrever a genealogia, ou a arqueologia, ou a patologia (vide Freud e o chiste) do humor, humores, pessoais e nacionais, deverá chegar à conclusão quase acaciana de que cada um e cada povo ri como pode e do que 8

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pode: ri do outro, ri de si mesmo, ri de si mesmo no outro e do outro em si mesmo. A boca é uma peça fundamental no ato de rir—e nosso riso é a nossa cara. Cara de um focinho do outro? Não, não ri melhor quem ri por último ou por penúltimo: ri melhor quem melhor consegue rir.

Fácil, não? Talvez. O humor despe as pessoas, tira fora as personas (máscaras). Mais do que leve, é às vezes incomodo, pois está sempre nos dizendo que não somos o que fingimos ou pretendemos ser. É natural pois que o homem tenha medo do ridículo, de se sentir ridículo, de que o outro o veja como ridículo — portanto, risível. É mais fácil e mais confortável rir do outro: o ridículo é sempre o outro, nunca nós. "Ri da cicatriz quem nunca foi ferido", exclamou (salvo erro) o Romeu de Shakespeare. Traduzindo: o humor põe o dedo na ferida. E mesmo assim o homem continua rindo e chorando pela vida afora.

Mas uma antologia, dizia. As boas antologias são ecléticas, escreveu ou me falou Guilhermino César quando, bem jovem, eu estreava em livro como organizador de uma Antologia do Conto Gaúcho. Continua valendo a observação do ensaísta e poeta, considerando que a presente coletânea seja, se não "boa", com certeza eclética. As antologias não se propõem a outra coisa: oferecer uma amostragem que é também um panorama. Panorama significa a soma ou conjunção de coisas, detalhes vários e diversos: diferentes. Diferentes e diversos são os contos de Viver de Rir. Há o humor-sátira de Averchenko; o humor-parábola de Vias Dorochevitch e de Machado de Assis ("Um Apólogo"); o humor-crítica-de-costumes de O. Henry, Tchecov e ainda Machado ("Teoria do Medalhão"); o humour inglês de Jerome K. Jerome e, mais uma vez, de Machado de Assis; o humor regional e quase naïf de J. Simões Lopes Neto; o humor cultural e "cerebral" de Kaflca; o humor social-histórico-político de Antônio de Alcântara Machado (um modernista a ser reavaliado!), e assim por diante, com todas as variações possíveis. Ao mesmo tempo, não deixa de ser curioso que, embora diferentes até mesmo no tipo de humor, "Medalhão", "O Homem que Sabia Javanês" e "Nova Califórnia" são contos que tocam a mesma tecla, ao registrarem certa tipologia do brasileiro que hoje se traduziria pela "lei de Gerson". São três versões de um mal nacional que nos aflige até hoje: a esperteza como embuste. 9

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Tudo enfim, leitor, é riso — ou nem tudo, afinal, é riso. Porque, a rigor, não há nem motivo para se rir—embora só existam razões para se rir. Como o "viver" de mestre Rosa, rir é muito perigoso. Ou ao contrário: muito prazeroso. Experimente só, leitor: dizem até que faz bem à saúde.

Bairro Peixoto (Rio) — abril, 92/novembro, 93.

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VLAS DOROCHEVITCH

Desconhecido no Brasil, "publicista e panfletário", como

se dizia, Dorochevitch foi uma das personalidades mais pitorescas e ricas da Rússia czarista. (Ele morreria em 1920.) Fez

muitas viagens pela Europa — com estadas obrigatórias em Paris — e Extremo Oriente, cujos costumes narrou em várias

de suas obras. Seu humorismo saudável (crítico porém não cáustico) e brilhante tem em "Assim Falava Tchi-San"

uma boa mostra*

___________________________________________________ *Flávio Alves ajudou na tradução, cotejando com o original russo

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Assim Falava TchiSan

Como tudo que nos vem da China, este conto é maravilhosamente sábio, profundo e do mais alto grau de cultura. As pessoas são como fuzis: costumam ser carregadas por trás. Apesar de os educadores afirmarem que é pela cabeça que devemos incutir às pessoas ideias sadias, os governos continuam, em todos os lugares, a incuti-las pela parte de trás, das costas e mesmo um pouco mais embaixo. Os chineses, como se sabe, levaram ao ápice a aplicação deste sistema. Costumam eles sugerir a seus compatriotas boas ideias por meio da aplicação de golpes de bambu nos calcanhares. Por que nos calcanhares? Sem dúvida, porque a alma, do ponto de vista do castigo, desce para os pés. Ora, uma vez abrigada nos calcanhares, recebe o chinês a lição no local adequado. O filho do sol, irmão da lua, pai de todas as estrelas do céu, vencedor de todos os povos da terra, senhor de todos os reis, imperadores, czares, sultões e outros príncipes, o grande, glorioso, poderoso e muito sábio Bogdykhan Tching-Tchang presidia o Conselho do Império, em meio à elite de seus mandarins. Era mais gordo do que todos, sua pele era a mais fina. Bogdykhan refletiu e falou:

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(Sua voz ressoou pelo salão, como uma campainha.) — Em nossa grande sabedoria, revelamos a vontade de conhecer o que se

passa na China. Entre vós, gloriosos mandarins da elite, vemos nosso glorioso Toun-Li. Mais do que qualquer outro, ele está em contato com o povo. Como chefe de polícia, alimenta-o com arroz e bambu, já que inspeciona o abastecimento e os costumes. Glorioso e sábio Toun-Li, levantai-vos e, sem nenhum receio para com vossos calcanhares, contai-nos como vive o povo da China.

Todos os presentes ergueram o dedo, em sinal de respeito para com Bogdykhan. Toun-Li levantou-se, por sua vez; depois de fazer as 472 reverências de praxe,

falou: — Filho do Céu! O cão ladra para a lua. Eis por que me animo a falar em vossa

presença. O verme dirá a verdade. É necessário inventar a mentira. Ora, onde iria um verme buscar espírito para tanto? As pessoas de espírito têm o hábito de mentir para os imbecis, todavia a própria verdade nos serve... Pequim luta contra Nanquim, Nanquim contra Cantão, Cantão contra Shangai. Apesar disso, a China prospera. A prosperidade de nossa grande China é tal que leva os diabos estrangeiros a murchar de tanta inveja. Um exemplo, grande sábio Bogdykhan: a prosperidade de nossa terra é tal que as galinhas, na China, põem ovos de ouro.

— Como? Ovos de ouro? — exclamou Bogdykhan, e sua voz ressoou como uma campainha de prata.—Mas... isso é o tipo de coisa que só acontece nos contos de fada!

Toun-Li, depois de fazer, segundo o cerimonial, 472 reverências, respondeu: — Acontece também no país da prosperidade legendária: a China. Se vós não

fôsseis Bogdykhan, eu vos diria: "Ide em pessoa ao mercado, sem esmagar, de passagem, este vosso pobre servidor. Quanto custa uma dezena de ovos? Dez ducados! Um ducado por cada ovo! Em outros países, para ganhar um ducado um homem é obrigado a trabalhar de manhã à noite. E aqui? A galinha canta... um ducado. Có-có-ró-có... um ducado.

Em sinal de surpresa, todos levantaram os dedos. Apenas o sábio Tchi-San observou: 16

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— Em terra onde a vida das galinhas é por demais agradável, em geral as pessoas morrem de fome. Bogdykhan, com benevolência, fez-lhe um sinal para que se calasse e comentou: — Nosso grande mestre Tchi-San é muito sábio, de fato; Toun-Li, não lhe presteis atenção... A sabedoria existe na terra para perturbar a alegria. Como existem nuvens no céu para obscurecer o sol. Como foi mesmo que dissestes? Có-có-ró-có... um ducado? Có-có-ró-có... um ducado! Có-có-ró-có... um ducado! E todo o conselho, entusiasmado, fez-se de coro: Có-có-ró-có... um ducado! Nunca houvera no Congresso sessão tão divertida como aquela. Bogdykhan ordenou que se tocassem os tambores e declarou: — Declaro encerrada a Sessão do Conselho do Império! O Conselho do Império sempre foi sede da chateação, da preocupação e da tristeza. Ora, sinto-me hoje suficientemente alegre para ficar sentado num lugar tão aborrecido! Ordeno-vos que durante três dias festas populares se celebrem em Pequim, em comemoração a tão feliz acontecimento! O Conselho do Império dispersou-se aos gritos: — Có-có-ró-có... um ducado! De excelente humor, Bogdykhan resolveu passear pelo jardim do palácio. Promoveu a ama de seu filho mais velho que passava pela redondeza a marechal-de-campo. Promoveu à primeira classe o primeiro mandarim de quarta classe que encontrou em seu caminho, e prosseguiu pródigo em condecorações do Dragão, vestidos floridos e chapéus ornados de botões, como quem vai semeando estrelas pela Via Láctea. Chegou assim a um quiosque onde vivia, por entre flores, o sábio Tchi-San. — Gosto muito de sábios, mas a distância — proferiu Bogdykhan. — Quando me aproximo deles, fico sem saber o que dizer! Não se pode conceder a um sábio a Ordem do Dragão, seja de terceira classe, de segunda ou mesmo de primeira. Os vestidos amarelos ou 17

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azuis não lhe dão nenhum prazer. Não se interessam nem mesmo pelos botões! — Oh! grande e poderoso Bogdykhan!—respondeu o sábio. — Se vós me

désseis uma dezena de ovos, não encontraria em nossa chinesa língua palavras com que pudesse vos agradecer!

— Como? Vós, o sábio — exclamou, surpreso, Bogdykhan —, apreciaríeis tão ínfima dádiva?

— Por acaso apenas os imbecis necessitam comer? — perguntou Tchi-San. — Já tive a oportunidade de vos dizer que, onde as galinhas levam vida mui agradável, as pessoas costumam morrer de fome. Muito bonita esta história de có-có-ró-có... um ducado! O resultado, no entanto, é que as pessoas estão morrendo de fome.

— Que este maldito Tbun-Li seja levado pelos dragões! — exclamou, desesperado, Bogdykhan. — Conseguiu me transformar, o Filho do Céu, numa espécie de galo de terreiro. Eu, que governo quatrocentos milhões de chineses, regozijei-me como um galo em seu galinheiro! Có-có-ró-có... um ducado!

Bogdykhan ficou tão aborrecido que se esqueceu de dar ao sábio Tchi-San a dezena de ovos pedida. Voltou ao palácio precipitadamente, ordenou que todas as festas fossem interrompidas, os fogos de artifício e os jogos de luz, e convocou o Conselho do Império para um assunto urgente e de extrema relevância.

O Conselho do Império reuniu-se. O grande Bogdykhan estava sorumbático, e sua voz vibrava como um tambor.

— O velho Toun-Li — disse ele — hoje de manhã pintou-me a situação real da China; ora, ao que parece, o país vai de mal a pior. Em nosso país as galinhas põem ovos a um ducado cada um, e um sábio como Tchi-San, ornamento e orgulho de nosso reino, encontra-se a ponto de morrer de fome! O que dirá a posteridade, que dirão os anais da História? "Tchi-San, durante o reinado de Bogdykhan, o sábio, o célebre, o grande Tchi-San, orgulho e ornamento do Celeste Império, morreu de fome." Perguntarão a um aluno de oito anos: "Que fato assinalou o reinado de Bogdykhan Tching-Tchang?" O menino responderá: "Sob seu governo os sábios morriam de fome! Assim aconteceu ao eminente filósofo Tchi-San!" E o mestre, em vez de castigá-lo, dirá: "Muito bem!" Meus descendentes 18

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irão riscar meu nome da lista dos antepassados! Meu nome se tornará motivo de chacota, um opróbrio para as gerações futuras! Eis aí aonde vós me conduzistes com a vossa tolice, vil Toun-Li: có-có-ró-có... um ducado!

Toun-Li, ao querer proteger seus calcanhares, ergueu-se de pronto e, depois de fazer as 472 reverências prescritas pelo cerimonial, declarou:

— Se o estúpido filho de meu pai tiver permissão para abrir a boca, grande Bogdykhan, desejo dizer alguma coisa.

— Com a nossa mansuetude inefável, nós vos concedemos permissão: podeis mais uma vez manchar o ar com vosso hálito. Falai! Ouviremos o que irá pronunciar a mais ínfima criatura deste reino!

— FilhodoCéu! — disse Toun-Li, caindo aos pés de Bogdykhan. — O crime não poderia ser mais evidente. Os ovos custam um ducado cada um. Resta apenas descobrir quais os calcanhares responsáveis por tal crime.

E todos os mandarins concordaram que as palavras de Toun-Li estavam em perfeita concordância com as leis e os costumes do Celeste Império.

— Trata-se apenas de descobrir precisamente os calcanhares responsáveis! — disse o sábio Tchi-San.

— Isso mesmo — confirmou Toun-Li, se entusiasmando. — É a própria sabedoria que fala por vossa boca, eminente Tchi-San! Precisamente, os calcanhares convenientes! Quais são os calcanhares responsáveis pelo alto preço dos ovos? Quem vende os ovos nas aldeias? Quem os revende nas cidades? Os camponeses?... São, pois, os calcanhares dos camponeses os responsáveis por este mal. Que se lhes açoite os calcanhares com bambu e o preço dos ovos baixará!

— Vosso conselho me parece ditado pela sabedoria — disse Bogdykhan. — Toun-Li, tomai as providências necessárias! E Toun-Li tomou as providências necessárias. Sete florestas de bambu foram postas abaixo para ensinar os camponeses da China a cobrar um preço acessível pelos ovos.

Ora, o resultado de tal operação foi que o preço dos ovos aumentou 19

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ainda mais. Eram vendidos a dois ducados cada nos mercados. Os camponeses explicavam o fenômeno da seguinte maneira:

— Um ducado pelo ovo, um pelos bambus. Os calcanhares também têm seu preço...

O sábio Tchi-San, estirado em sua habitação, morria de fome entre as flores... Bogdykhan procurou por ele.

— Já mandei açoitar os camponeses com bambu, sem nenhum resultado — disse ele, desesperado.

O sábio, recolhendo as últimas forças, murmurou: — Os calcanhares estão trocados, Filho do Céu! Bogdykhan mandou convocar imediatamente o Conselho do Império.

Suas ordens foram logo cumpridas. — Quero falar-vos com toda a franqueza, mandarins — declarou Bogdykhan.

Suas palavras se assemelhavam ao chá frio. — Detesto os sábios. É uma raça que só serve para criar embaraços. As pessoas simples têm a vantagem de, pelo menos, não serem sábias... Vivem o tempo que lhes é determinado e, quando a morte chega, expiram suavemente; a alma se rejubila! Deus nos livre, no entanto, de ter a nosso cargo uma celebridade. Somos responsáveis por ela perante a posteridade. Quando um sábio morre, todo mundo quer logo saber como, por quê, de que modo ele morreu. O grande Tchi-San está de novo numa situação muito precária. Os ovos estão cada vez mais caros, e nunca o nosso sábio se aproximou tanto da posteridade como agora. Todos os vossos esforços foram em vão, Toun-Ii.

— Filho do Céu, poupai vosso divino fígado. Ele é mais do que necessário à pátria! — exclamou Toun-Li, depois de fazer as 472 reverências prescritas pela etiqueta. — Conhecemos o grande mal: trata-se do encarecimento dos ovos. Encontramos o remédio: os bambus. O que houve foi apenas um ligeiro engano quanto à aplicação: os açoites não foram aplicados nos calcanhares que os mereciam.

— É isso mesmo, é isso mesmo — disse Bogdykhan. — Foi o que me disse o sábio Tchi-San: "Os calcanhares estão trocados."

— E eu, o estúpido filho de meu pai, sinto-me contente por saber 20

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que o grande sábio concorda comigo. Agora precisamos apenas aplicar os golpes de bambu nos calcanhares competentes. Já aplicamos o bambu salvador nos calcanhares dos camponeses. Ocorre porém que entre a compra e a venda existem sempre dois culpados, o que vende caro e o que compra caro. Os habitantes de Pequim têm a liberdade de comprar um ovo por dois ducados. Ora, desta maneira, estão encorajando a carestia, provocando a cobiça e corrompendo os camponeses. Que seus calcanhares passem a conhecer os bambus. Não podemos permitir a propalação do vício. É preciso reprimir a cobiça, embora não seja menos necessário reprimir o gasto excessivo.

— Toun-Ii — exclamou Bogdykhan —, teu raciocínio tem como inspiração as normas da lógica e da justiça. Toun-Ii, tomai as providências necessárias!

— Desta vez vamos precisar de um grande número de bambus — observou o mandarim, cujo cargo era a direção do Tesouro.

— Será que algum dia conseguirei economizar bambus para castigar os meus súditos? — exclamou Bogdykhan, cheio de boas intenções.

E teve início a luta contra a prodigalidade em todos os mercados de Pequim. Durou três dias inteiros. No quarto dia os ovos custavam quatro ducados cada um. Ninguém ousava comprá-los ostensivamente, nos mercados. Eram vendidos às

escondidas, de modo que o preço duplicou. O sábio Tchi-San, sem coragem de ir pessoalmente ao mercado, mandou a

cozinheira. A empregada demorou muito e voltou na ponta dos pés, como uma bailarina. Em

vez de quatro ovos, no entanto, trazia apenas um. Bogdykhan, infinitamente solícito em relação à sabedoria, veio em pessoa

saber notícias de Tchi-San. Encontrou-o quase agonizante. O sábio limitou-se a apontar-lhe os calcanhares e a murmurar: — Estão trocados... Bogdykhan começou a soluçar. — Tchi-San! Sábio! Grande! Mestre! Tente ficar bom! Aguarde um dia, pelo

menos, para morrer! Juro por todos os dragões que 21

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tudo será resolvido amanhã. Coitada da cabeça daquele incapaz do Toun-Li! E Bogdykhan convocou imediatamente o Conselho do Império. O Filho do Céu estava indignado. Saíam-lhe chispas dos olhos. A voz retumbava

como um trovão. Exclamou: — Toun-Li, vós sois um infame! Preparai-vos para pôr no cutelo a cebola podre

que ousais chamar de cabeça! O grande Tchi-San encontra-se à beira da morte, e a História se prepara para nos cobrir de opróbrios!

Toun-Li empertigou-se diante de Bogdykhan, exclamando: — Filho do Céu! Não é a mesma coisa uma cabeça inútil como esta minha ser

cortada hoje ou amanhã? Dai-me um dia a mais de vida, Senhor do Universo! Juro-vos que os verdadeiros calcanhares serão descobertos. Examinamos todos os calcanhares da China, faltam apenas os que já deveríamos ter examinado. Acabo de encontrá-los! Quem pôs os ovos? As galinhas! É preciso castigá-las com golpes de bambu nos calcanhares, para que não continuem pondo ovos tão caros!

Todo o Conselho do Império pareceu radiante, ao ouvir aquela decisão tão simples, clara e justa.

— Toun-Li, tomai as providências necessárias — ordenou Bogdykhan. Suas ordens foram cumpridas. Ao longo de um dia inteiro, em toda a China, era preciso que as pessoas

gritassem para se fazer escutar, tal o escarcéu feito pelas galinhas. Por toda parte eram elas apanhadas, viradas de cabeça para baixo e golpeadas nos calcanhares.

Ora, no dia seguinte as galinhas pararam de pôr ovos. Tomado de mortal inquietação, Bogdykhan foi visitar o sábio Tchi-San, em sua

habitação cercada de flores. Tchi-San agonizava. Reunindo suas últimas forças, e com um sorriso doce de sábio para Bogdykhan, que

soluçava a seus pés, disse o velho: — Vós vos preocupais, Filho do Céu, com o que sobre vós dirá a História? Nada

de preocupações, nada de especialmente desagradável registrarão os anais. Dirão apenas: "Tching-Tchang foi um bom Bogdykhan. Tinha as melhores intenções. Uma infelicidade sempre o 22

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perseguiu, no entanto: enganava-se com os calcanhares." Não vos preocupeis, pois, Filho do Céu. Este é o destino de muitos Bogdykhan no mundo. Errar eternamente de calcanhares.

Assim falava Tchi-San. E expirou.

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MACHADO DE ASSIS

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 1839. Considerado um dos melhores escritores

brasileiros de todos os tempos, marcou sua presença em todos os gêneros, com destaque para o romance e o conto. Herdeiro

do tão proclamado humour inglês — na linhagem de um Sterne, principalmente no seu romance maior, Memórias

Póstumas de Brás Cubas —, Machado, no início, foi contemporâneo dos últimos românticos (Helena, Contos

Fluminenses, Iaiá Garcia), mas amadureceu com o realismo, sem se enquadrar em nenhuma "escola" literária.

Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires são outros romances marcantes. Enorme

contista, de seus vários livros do gênero leitores e críticos podem destacar cerca de dez ou mais relatos curtos como

(apesar do desgaste da expressão entre nós) verdadeiras obras-primas: "A Noite do Almirante", "Missa do Galo", "Uns Braços", "O Alienista" -e as três histórias incluídas

nesta antologia. Machado de Assis, respeitado por seus contemporâneos, faleceu em 1908, no Rio de janeiro.

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O Dicionário

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.

— Em mim — bradou ele — podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das 27

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cabeças. Outro ato em que revelou igual sabedoria foi o que ordenou que todos os sapatos de pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal — comparação que o lisonjeou muito —, o segundo ministro, ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenava com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.

Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si; tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.

Concorreram ao certame, que foi anónimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquia-velismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer. Não venceu ainda assim, porque o poeta amado leu à pressa o que 28

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pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado. Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre: — Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa ideia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocaoulário novo que lhe dará a vitória. Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos. — Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito. Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atónita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pelas novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou?—Pflerrgpxx, rough, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros, e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu. Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando 29

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ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:

O raro Apeles,

Rubens e Rafael, inimitáveis

Não se fizeram pela cor das tintas;

A mistura elegante os fez eternos.

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Um Apólogo

Era uma vez uma agulha que disse a um novelo de linha: — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que

vale alguma cousa neste mundo? — Deixe-me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe por quê? Porque lhe digo que está com um ar

insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem

cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os

cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose

sou eu, e muito eu? — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou

feição aos babados... — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você,

que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando. — Também os batedores vão adiante do imperador. — Você imperador?

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— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que oplic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte: continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora diga-me quem é que vai ao baile no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e é ela que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. 32

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Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

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Teoria do Medalhão

Diálogo

— Estás com sono? — Não, senhor. — Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são? — Onze. — Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com quê, meu peralta, chegaste

aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

— Papai... — Não te ponhas com denguices, e falemos como dous amigos sérios. Fecha

aquela porta; vou dizer-te cousas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas, qualquer que seja a 34

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profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prémios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as cousas integralmente, com seus ónus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

— Sim, senhor. — Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice,

assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá? — Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o

sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os imprevistos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possam entrar francamente no regímen do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo" definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos...

— É verdade, por que quarenta e cinco anos? — Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a

data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio dos gênios.

— Entendo. 35

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— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria aos exercícios da vida.

— Mas quem lhe diz que eu... — Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental,

conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não: refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender franca mente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível. — Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de

retórica, ouvir certos discursos etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada de circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituir-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.

— Como assim, se também é um exercício corporal? — Não digo que não, mas há cousas em que a observação

desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque 36

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as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham das opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo? — Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, ou por causa

da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; setenta e cinco por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois anos —, reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato de vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando... — Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel de Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-las contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant, cônsules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi de Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não 37

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passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!—E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.

— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos. — Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas: no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De oitiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acontece que no dia em que viesses a assenhorear-se do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira — esperta e afreguesada — que, segundo um poeta clássico, 38

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Quanto mais pano tem, mais roupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos;

e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico. — Upa! que a profissão é difícil. — E ainda não chegamos ao cabo. — Vamos a ele. — Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona

loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heróicas ou custosas é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado Científico da Criação dos Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz a outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?

— Percebi. — Essa é a publicidade constante, barata, fácil de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras de mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão 39

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inaugural da União dos Cabeleireiros reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a "alavanca do progresso" e "o suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal, ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.

— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil. — Mas eu te digo outra cousa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos,

paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desajetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.

— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os déficits da vida?

— Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade. — Nem política? — Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações

capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de 40

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não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico.

— Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna? — Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública.

Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: — ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; — é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uru- guaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da Guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo o caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.

— Farei o que puder. Nenhuma imaginação? — Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo. — Nenhuma filosofia? — Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da

história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade etc. etc.

— Também ao riso? — Como ao riso? — Ficar sério, muito sério... — Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem

eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente — e este ponto é medindroso...

— Diga. Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio

de mistérios, inventado por algum grego da

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decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isso?

— Meia-noite. — Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás

definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.

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Jerome K. Jerome

Jerome Klapka Jerome nasceu (1859) e morreu (1927) na velha Inglaterra. Dele pode-se dizer que foi o humorista

favorito daquele país, no século passado. Teatrólogo, escreveu peças sentimentais e declamatórias. Jornalista, sua participação

na revista The Idler (O Vadio) deu-lhe popularidade. Contista, como se nota neste "O Homem Distraído", é um

excelente criador de tipos. Mas foi como romancista que ele se tornou conhecido mundialmente - e com um romance de

humor: "Três Homens num Bote", "Sem Falar no Cachorro", traduzido e publicado em vários países, no Brasil inclusive.

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O Homem Distraído

Ele é seu convidado para jantar na quinta-feira a fim de encontrar algumas pessoas que muito querem conhecê-lo.

— Mas vê se não vai criar nenhuma confusão — adverte-o, com a lembrança de desacertos anteriores —, e não vá aparecer na quarta.

Ele ri, bonachão, enquanto revira o quarto de cabeça para baixo procurando sua agenda.

— Na quarta não poderei ir — responde. — Preciso estar na Prefeitura para desenhar uns trajes, e na sexta embarco para a Escócia, onde vou marcar presença na Exposição no sábado. Desta vez vai dar certo. Diabo, onde foi se esconder a minha agenda? Pode deixar: anoto aqui mesmo, pode conferir.

Você se inclina sobre ele enquanto ele anota o jantar combinado numa folha de papel almaço e o vê prendê-la acima da escrivaninha. Depois, tranqtiilo, você se retira.

— Espero que ele apareça — diz você à sua esposa, ao se vestir, na noite de quarta-feira.

— Tem certeza de que explicou tudo direitinho para ele? — pergunta ela, desconfiada.

Instintivamente, você percebe que, aconteça o que acontecer, ela irá pôr a culpa em você.

Oito horas: chegam os outros convidados. Às oito e meia a dona da casa é misteriosamente convocada para fora da sala, onde a empregada lhe comunica que a cozinheira revelou a firme determinação de 45

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lavar as mãos, em sentido figurado, quanto ao que venha a acontecer, caso o atraso se prolongue.

Retornando à sala, sua esposa sugere aos convivas, se desejassem mesmo jantar, que começassem imediatamente. Com certeza ela pensa que, com a pretensão de esperar o amigo, você estivesse apenas representando seu papel, e que teria sido bem mais decente e mais correto confessar logo de uma vez que se esquecera de convidá-lo.

Enquanto se ocupam com a sopa e o peixe, você conta anedotas sobre a impontualidade do seu amigo. Quando servem a entrée, a cadeira vazia já espalhava um ar de melancolia por toda a sala, e a conversa, por associação de idéias, desvia-se para um bate-papo sobre parentes mortos.

Na sexta-feira, às oito e quinze, ei-lo chegando à porta, tocando a campainha com insistência. Ao ouvir-lhe a voz no patamar, você segue ao seu encontro.

— Desculpe o atraso — grita ele alegremente. — O idiota do cocheiro do coche de aluguel me levou até a Alfred Place em vez de...

— Ótimo, mas agora quais são suas intenções? — corta você, sentindo tudo em relação a ele, menos simpatia.

Por ser uma velha amizade, podia dar-se o luxo de tratá-lo com um tom de dureza.

Ele ri e lhe dá um tapinha nas costas: — Ora, minha intenção é jantar, meu caro; estou mortinho de fome. — Ah! — responde você, com um grunhido. — Pois vai ter de procurar comida

num outro lugar. Aqui é que você não haverá de comer... — Que diabo está querendo dizer, hein? Não foi você mesmo que me convidou

para jantar? — Garanto que não fiz nada disso—reage você.—Convidei-o, isso sim, para

jantar na minha casa na quinta-feira, não na sexta. O olhar que ele lança para você é de incredulidade. — Como é que eu fui guardar na cabeça que era sexta-feira? — pergunta,

confuso. — Porque sua cabecinha é do tipo que guarda fixamente sexta-feira quando o dia

certo é quinta — explica você, e acrescenta: — Pensei que você tivesse ido para Edimburgo hoje à noite. 46

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— Droga! Não é que é isso mesmo! E assim, sem uma palavra a mais, o amigo vira-lhe as costas e você ainda o escuta,

correndo pela rua e gritando pelo coche que acabara de dispensar. Ao voltar para o escritório, você se dá conta de que ele terá de viajar até a

Escócia em traje a rigor e, depois, mandar o empregado do hotel comprar um terno. Acha graça da ideia.

A coisa tem um destino ainda mais desolador quando o anfitrião é ele. Lembro-me de estar com ele um dia em seu barco. Era pouco depois do meio-dia, e nos sentamos na borda do barco, balançando os pés no rio. O lugar era solitário, a meio caminho entre Wallingford e Day's Lock. De uma hora para outra, apareceram dois outros barcos na curva do rio, cada um com seis pessoas muito bem-vestidas. Assim que nos avistaram, começaram a agitar lenços e sombrinhas.

— Opa! — disse eu. — Aquele pessoal está cumprimentando você. — Ora, por aqui, isso é comum—respondeu ele, sem olhar para cima. — Devem

estar vindo de algum jantar de fim de ano, lá de Abingdon, com toda a certeza. Os barcos se aproximaram. Quando estavam a uma distância razoável, um senhor

de idade levantou-se na proa do primeiro barco e gritou para nós. Foi só escutá-lo, McQuae deu um pulo que quase o jogou dentro d'água.

— Meu Deus! — exclamou. — Me esqueci completamente... — De quê? — perguntei. — Ora, são os Palmers, e os Grahams e os Hendersons. Não é que convidei

todos eles para lanchar! E não tenho agora a bordo nada para comer a não ser duas costeletas de carneiro e algumas batatas! E ainda por cima dei férias ao empregado!

Em outra oportunidade almoçava com ele no Júnior Hogarth quando um tal de Hallyard, amigo dele, veio juntar-se a nós.

— O que é que vocês dois vão fazer esta tarde? — perguntou, sentando-se à nossa frente.

— Pretendo ficar aqui escrevendo cartas — respondi. — Se por acaso você estiver procurando o que fazer, venha comigo — disse McQuae. — Vou levar Leena a Richmond. (Leena era a moça de quem às vezes ele se lembrava de ser noivo. Depois, correu 47

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à boca pequena que ele era noivo de três garotas ao mesmo tempo, mas havia se esquecido por completo das outras duas.) No banco de trás tem bastante lugar.

— Tudo bem — disse Hallyard. E, juntos, desapareceram num cabriole com a boleia traseira. Hora e meia mais tarde, Hallyard retornava ao salão com o aspecto cansado e deprimido — e jogou-se numa poltrona.

— Pensei que você fosse a Richmond com McQuae — disse-lhe. — Eu também — respondeu ele. — Aconteceu alguma coisa? — perguntei. — Sim — respondeu, ainda mais lacónico. — Algum problema com a carruagem? — Com eu mesmo.

A sintaxe e os nervos dele pareciam afetados para valer. Aguardei uma explicação que só obtive depois de uma pequena pausa.

— Chegamos a Putney — contou ele —, depois de passarmos apenas por uma pequena colisão com um bonde, e íamos subir o morro quando de repente ele deu uma virada. Você conhece o jeito dele virar por cima do meio-fio, através da rua e de encontro ao lampião da frente. Claro que eu já esperava por aquilo; só nunca teria imaginado que ele fosse virar naquele lugar. A primeira coisa de que me lembro é do fato de me ver sentado no meio da rua com uma dúzia de débeis mentais rindo de mim.

"Numa situação como essa, a gente leva alguns minutos para perceber onde a gente está, e foi o que aconteceu; quando me levantei, já os dois se encontravam a certa distância. Corri atrás deles durante um bom tempo, berrando o mais alto que podia, e acompanhado por um bando de moleques que, por sua vez, urravam a mais não poder. Era como gritar para acordar os mortos. Resumindo, peguei o ônibus e voltei.

"Será que eles não poderiam ter adivinhado, devido ao desgoverno da carruagem, o que me havia acontecido, se tivessem um tiquinho de desconfiômetro? Não sou nenhum peso-leve.

Reclamou do cansaço e disse que iria para casa. Sugeri que pegasse um carro, mas ele disse que preferia ir a pé.

Estive com McQuae na mesma noite no Teatro Saint James. Era 48

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uma première, e ele estava desenhando para The Graphic. Assim que me viu, correu em minha direção. — Você é a pessoa certa que eu queria encontrar — disse. Será que levei Hallyard comigo para ir a Richmond de carro hoje à tarde?

— Sim, levou. — É o que Leena me garantiu — falou, no auge da confusão — , mas posso jurar que ele não estava lá quando chegamos no Queen's Hotel.

— Está certo — respondi. — Você deixou-o cair em Putney. — Deixei-o cair? — perguntou. — Não me lembro de ter feito uma coisa dessa. — Mas garanto que ele se lembra muito bem — disse eu. — Pergunte para ele:

não fala de outra coisa... Todo mundo achava que ele não se casaria nunca. Seria absurdo supor que, numa

só manhã, ele conseguisse se lembrar do dia, da igreja e da noiva. Se conseguisse chegar ao pé do altar, esqueceria o que viera ali fazer e cederia a noiva ao padrinho de casamento. Hallyard defendia a ideia de que eleja era casado, embora tivesse se esquecido desse fato. Eu mesmo achava que, se casando, no dia seguinte acabaria se esquecendo...

No entanto estávamos todos errados. Por milagre, a cerimônia veio a se realizar, fato que, se a memória de Hallyard não falhava (o que era bem possível), iria resultar em confusões. Em relação as minhas apreensões, coloquei-as de lado assim que vi a moça. Era uma pequena mulher alegre e simpática, e não parecia ser do tipo que alguém possa esquecer.

Não vi McQuae desde o casamento, que ocorrera na primavera. Na volta da Escócia, numa rápida viagem, fiquei alguns dias em Scarborough. Depois da table d 'hôte, vesti a capa e fui dar umas voltas. Chovia bastante, mas depois de um mês na Escócia nem se nota mais o clima da Inglaterra, e eu sentia necessidade de ar. Caminhando pela baía escura e com o vento agredindo minha cabeça, tropecei num sujeito de cócoras que tentava se proteger da tempestade colando-se à parede da estação de águas.

— Desculpe — disse eu —, não vi o senhor. Foi ouvir a minha voz e o sujeito levantou-se: — É você, meu amigo velho?

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— McQuae! — gritei. — Por Deus do céu — disse —, em toda a minha vida nunca senti tanto prazer

em encontrar uma pessoa. E quase me desprendeu a mão de tanto sacudi-la. — Mas que diabo você está fazendo aqui? — perguntei. — Totalmente

encharcado... Ele usava uma roupa de flanela e uma capa de ténis. — Pois é — respondeu. — Não imaginava que fosse chover. De manhã o

tempo estava ótimo. Suspeitei que estivesse com o cérebro alterado devido à estafa. — Por que não volta para casa? — perguntei. — Não posso — respondeu — Não sei onde estou morando: me esqueci do

endereço. — E acrescentou: — Pelo amor de Deus, me leve para algum lugar e me dê alguma coisa para comer. Estou morrendo de fome.

— Você está sem dinheiro? — perguntei, já na volta para o hotel. — Nem um tostão — respondeu. — Chegamos a York, eu e minha esposa,

próximo das onze horas. Deixamos as inalas na estação e saímos para procurar um lugar onde ficar. Depois de encontrá-lo, mudei de roupa e saí para dar uma caminhada. Disse a Maud que voltaria à uma, para almoçar. Idiota que sou, deixei de anotar o endereço, tampouco prestei atenção nas ruas por onde passava. É uma tremenda trapalhada — continuou. — Não tenho idéia de como irei encontrá-la. À tarde, esperava que ela fosse sair, fazer um passeio até o campo, e estou eu zanzando pela estrada desde as seis. Não tinha nem os três pence para entrar no parque.

— Mas você não tem nem uma ideia do tipo de rua ou do aspecto da casa? — A mínima. Deixei que Maud cuidasse de tudo, não prestei atenção a nada. — Você tentou saber em algumas pensões? — E como! — exclamou amargamente.—Não fiz outra coisa do que bater em

tudo o que é pensão e perguntar, em todos os lugares, se a sra. McQuae estava hospedada ali. Na maior parte das casas fecharam a porta no meu nariz, sem sequer me responder. Fui falar com um guarda, achando que ele poderia me dar alguma sugestão. Mas o imbecil riu na minha cara, o que me deixou furioso, a tal ponto que 50

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lhe dei um soco no olho, e fui obrigado a desaparecer. A esta altura eles devem estar à minha procura. Entrei num restaurante continuou, sombrio — e tentei conseguir um bife fiado. Mas a dona respondeu que já conhecia esta história e ordenou, na frente de todos os fregueses, que me enxotassem do restaurante. Talvez tivesse dado fim à vida sê você não aparecesse.

Depois de mudar de roupa e comer alguma coisa, ele se pôs a conversar sobre o caso comigo, mais tranqüilo. O caso, porém, era de fato sério. Sua casa fora fechada, e os parentes da mulher estavam viajando. Não havia ninguém a quem se mandasse uma carta ou com quem se comunicar. A probabilidade de reencontrar a mulher neste mundo parecia das mais remotas.

Tampouco acredito que ele esperasse tal reencontro, se é que haveria de acontecer, com uma expectativa muito alegre, por mais que se sentisse apaixonado e ansioso por reencontrá-la.

— É natural que ela ache esta situação muito estranha — disse, meditativo, enquanto, mergulhado em reflexões, tirava as meias. — Com certeza vai achar tudo isso muito estranho.

No dia seguinte, quarta-feira, ele foi atrás de um advogado e expôs-lhe o problema. O advogado procedeu a uma investigação em todas as pensões de Scarborough, graças à qual foi meu amigo restituído — como o personagem dos Adelfos no último ato — ao seio do lar e da esposa.

Depois desta história toda, na primeira vez em que nos encontramos, perguntei-lhe o que dissera sua esposa:

— Ah, exatamente aquilo que eu esperava. Porém nunca me disse o que esperava ele que ela dissesse.

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ANTON TCHECOV

Anton Pavlovitch Tchecov (ou Checov, como às vezes é grafado entre nós) nasceu no ano de 1860 na cidade de

Taganrog, na então Rússia czarista. Aos 14 anos, sua família mudava-se para Moscou. Trabalhou como jornalista e formou-se em medicina. Desde sua estreia - História

Melancólica, em 1899 -, despertou o interesse da crítica. E dos leitores: já como profissional, Tchecov tornou-se "o mais

amado dos escritores de seu tempo". Como teatróbgo, tem suas peças encenadas até hoje no mundo todo: Tio Vânia, O

Jardim das Cerejeiras, por exemplo. E como contista – bem, é considerado um dos dois ou três melhores de toda a

história da literatura. Escreveu sua obra "com a meia-tinta da melancolia", sempre sobre o homem comum, em situações

também comuns. Seu humor às vezes se confunde com sua simpatia/empatia pela miséria humana. Nos três contos desta antologia, Tchecov mostra-se mais explicitamente

humorista. (Ele faleceu em 1904. Depois da Guerra de 14, foi notável a divulgação e influência de sua literatura por todos

os países civilizados. Um clássico.)*

____________________________________________

*Flávio Alves ajudou na tradução, cotejando com o original russo.

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A Obra de Arte

Carregando sob o braço um objeto embrulhado no número 223 do Mensageiro da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma expressão de tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.

— Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há de novo?

Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou: — Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaievitch, e me encarregou de

lhe agradecer... Mamãe só tem a mim no mundo, e o senhor me salvou a vida... curando-me de grave enfermidade e... não sabemos como lhe agradecer.

— Ora! O que é isso, meu jovem! — atalhou o médico, realizado. — Não fiz mais do que qualquer um no meu lugar teria feito...

Depois de observar o presente, o médico coçou lentamente a orelha, bufou e suspirou, confuso.

— Sim — murmurou —, é algo realmente magnífico... como diria?... um tanto ou quanto ousado... Não é apenas decotada; é... sei lá, que diabos!

— Mas... por que diz isso? — Nem a serpente em pessoa poderia inventar alguma coisa de mais indecente.

Se eu colocase esta fantasiazinha na mesa, iria contaminar a casa toda. 55

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— Que modo mais excêntrico tem o senhor de interpretar a arte! — disse Sacha, ofendido. — É um objeto artístico!... Olhe! Que beleza! Que elegância! É de se ficar com a alma inundada de piedade, e com lágrimas a subir aos olhos! Contemplando-se tamanha beleza, nos esquecemos de tudo o que seja da Terra... Veja bem... Que movimentos! Que harmonia! Que expressão!...

— Compreendo muito bem tudo isso, meu caro — interrompeu o médico —, mas acontece que eu sou pai de família. Meus filhos costumam vir aqui. Recebo senhoras...

— É evidente — disse Sacha — que se a gente adotar o ponto de vista do povo, este objeto, altamente artístico, causará uma impressão diferente... Sou o filho único de mamãe... somos pobres, e por isso não podemos lhe recompensar os seus cuidados; e não sabemos o que fazer, embora, apesar de tudo, mamãe e eu... seu filho único... lhe suplicamos de todo o coração que aceite, como penhor de gratidão... esta ninharia que... É um bronze antigo... uma obra rara... de arte.

— Mas não havia necessidade — disse o médico, franzindo as sobrancelhas. — Por que razão?

— Não, eu imploro ao senhor, não recuse! — continuou a murmurar Sacha, desembrulhando de todo o pacote. — Seria uma ofensa, a mamãe e a mim... Trata-se de um objeto belíssimo... em bronze antigo. Foi herança de papai, guardada como uma querida lembrança... Papai comprava bronzes antigos e revendia-os aos colecionadores... Já mamãe e eu não nos ocupamos disso...

Sacha acabou de desembrulhar o objeto e colocou-o solenemente em cima da mesa. Era um pequeno candelabro de bronze antigo, de fina feitura. Representava duas figuras femininas em trajes de Eva e em atitudes que não ousaria — nem tenho temperamento para isso — descrever.

As figuras sorriam ostensivamente, dando a impressão de que, não fossem elas retidas pela obrigação de suster o castiçal, teriam imediatamente rugido do pedestal e dançado tal cancã que, amigo leitor, nem é bom imaginar. — O doutor, claro, está acima destas coisas todas e portanto sua recusa nos daria, a mamãe e a mim, uma enorme frustração. Sou o filho único de mamãe; o senhor me salvou a vida... Damos-lhe de presente 56

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o que de mais precioso possuímos, e... só tenho a tristeza de não nos pertencer o par do candelabro!

— Muito agradecido, meu jovem amigo. Fico-lhe muito grato... Minhas recomendações à sua mãe, mas rogo-lhe, o senhor mesmo considere a questão! Meus garotos costumam vir aqui... Aparecem muitas senhoras... Mas deixo-o aqui, já que me parece impossível convencê-lo!

— Ora, não há de que me convencer! — disse Sacha, com habilidade.—Coloque o candelabro do lado desta jarra. Que infelicidade não possuir o par!... Bem, vou indo, adeus, doutor.

Depois da saída de Sacha, o doutor observou bastante o candelabro, coçou a orelha e concluiu:

"Não se pode negar que é magnífico. É uma pena abrir mão dele. Ao mesmo tempo é impossível deixá-lo aqui... Hum... Está criado o problema... Poderia dá-lo de presente a quem?"

Depois desta reflexão, lembrou-se do advogado Ukhoff, seu amigo íntimo, que gostaria de ter o objeto.

"Às mil maravilhas!", decidiu. "Ukof Ukhoff não aceita receber dinheiro de mim, mas ficará contente com esta lembrança... E assim me livrarei deste incômodo. Além do mais, ele é solteiro e maroto..."

Rápido, o médico se vestiu, pegou o candelabro e foi até a casa do advogado. — Bom dia, amigo — disse, ao encontrar Ukhoff em sua morada... — Venho lhe

trazer uma recompensa pela amolação... Já que não quer aceitar dinheiro meu, aceitará um pequeno presente... Ei-lo, meu amigo! É um objeto magnífico!

Ao ver o candelabro, o advogado viu-se tomado de inefável encantamento. — Isso sim é que é obra de arte — disse, rindo às gargalhadas. — Que o diabo

carregue os meliantes capazes de sequer imaginar alguma coisa de parecido... É maravilhoso! Onde foi que você encontrou tal preciosidade?

Assim que o entusiasmo se esgotou, o advogado lançou temerosos olhares para o lado da porta e disse:

— No entanto, meu velho amigo, é melhor levar de volta o seu presente. Não posso aceitá-lo...

— Por quê? — quis saber, espantado, o médico. 57

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— Porque... Mamãe vem aqui, meus clientes... e além do mais é constrangedor em relação aos criados...

— Ora, essa é boa!... Você não terá a ousadia de recusá-lo. (E o médico agitou as mãos.) Eu ficaria ofendido!... Trata-se de um objeto de arte... Que movimentos! Que expressão!... Não quero ouvir seus argumentos! Você me deixaria melindrado!

— Se pelo menos tivesse alguma sutileza, ou se estivesse coberta... O médico, porém, ainda a agitar as mãos e contente por conseguir se desfazer do

presente, voltou para o seu consultório. Sozinho em casa, o advogado pôs-se a examinar o candelabro, apalpou-lhe todas

as partes e, da mesma forma que o médico, viu-se tentado a refletir sobre o que deveria fazer com ele.

"É um objeto belíssimo", pensou. "Seria uma pena se desfazer dele; ao mesmo tempo, é inconveniente tê-lo em casa... Melhor seria oferecê-lo a alguém... Já sei, vou levá-lo hoje à noite ao cômico Chachkine. O sacana adora as coisas desse gênero, e hoje é justamente o dia de sua estreia..."

Foi o que fez, tão rápido quanto pensou. À noite o candelabro, lindamente embrulhado, era oferecido ao cômico Chachkine.

A noite toda o camarim do artista foi invadido pelos homens que queriam admirar o presente; a noite toda foi de murmúrios de aprovação e de risadas que mais pareciam relinchos... Quando uma artista se aproximava do camarim e perguntava: "Pode-se entrar?", logo a voz rouca do cômico retumbava:

— Não, não, cara amiga! Estou sem roupa! Terminado o espetáculo, Chachkine dizia, dando de ombros e abrindo os braços: — Onde vou colocar tamanha indecência? Moro em casa de família e recebo

muitos artistas! E isso não é como fotografia, que a gente pode esconder dentro da gaveta...

— Ora, por que não o vende, senhor? — aconselhou o cabeleireiro, que o ajudava a trocar de roupa. — Tem uma velha aqui no bairro que compra bronze antigo. Vá lá e pergunte pela senhora Smirnoff... Todo mundo a conhece.

O cômico resolveu seguir o conselho... Dois dias depois, o doutor Kochelkoff meditava sobre os ácidos

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biliosos, de dedo na testa. Subitamente a porta se abriu e Sacha Smirnoff jogou-se a seu encontro. Sorria exultante, e todo o seu ser transpirava felicidade... Trazia alguma coisa embrulhada em jornal.

— Doutor — disse, ofegante —, imagine só nossa alegria!... Para nossa felicidade, encontramos o par do seu candelabro!... Mamãe está se sentindo tão feliz!... E o senhor me salvou a vida...

E então, tremendo de gratidão, Sacha colocou o candelabro diante dos olhos de Ivan Nicolaievitch. O médico quis dizer alguma coisa mas não conseguiu. Perdera o uso da palavra. 59

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No Escuro Uma mosca meteu-se pelo nariz de Gáguin, promotor-assistente e conselheiro da Corte. Levada pela curiosidade, pela imprudência ou simplesmente perdida na escuridão, o fato é que o nariz não agiientou a presença daquele corpo estranho — e anunciou que ia espirrar.Gáguin espirrou com convicção: um trinado ruidoso e tão forte que a cama estremeceu e uma de suas molas gemeu, reclamando. A esposa de Gáguin, loira enorme e gorda, igualmente estremeceu, e acordou. Abriu os olhos na escuridão, suspirou e virou-se para o outro lado da cama. Cinco minutos mais tarde, virou-se novamente, em vão fechou com mais força as pálpebras — o sono não voltava. Depois de vários suspiros, virando-se na cama de um lado para o outro, ela ergueu-se, passou por cima do corpo do marido, calçou os chinelos e andou até a janela. Reinava a escuridão lá fora. Vislumbrava-se apenas o vulto das árvores e o negro contorno dos telhados das cocheiras. Do lado do nascente havia uma leve palidez que as nuvens iriam logo recobrir. O silêncio dominava a atmosfera sonolenta e enevoada. Mesmo o guar-da-notumo, que ganhava para quebrar o silêncio, não se fazia ouvir. Calava-se também a codorniz, única ave silvestre que não se amedronta com a vizinhança dos veranistas da capital. Foi a própria Maria Mikháilovna que rompeu o silêncio. Contemplando o pátio, de pé junto à janela, ela de repente soltou um grito. Teve a impressão de ver saindo, por entre os álamos mirrados e podados, um vulto andando em direção 60

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à casa. Pensou, a princípio, que se tratava de alguma vaca ou cavalo, mas, depois de bem esfregar os olhos, percebeu-lhe nítidos contornos humanos.

Em seguida teve a sensação de que o vulto se aproximara da janela da cozinha e ali se detivera por um instante, como que indeciso, passando então uma das pernas pelo espaldar, e... desaparecera na escuridão.

"Um ladrão!", o pensamento rápido como um relâmpago cruzou-lhe a mente ao mesmo tempo em que uma palidez mortal lhe cobria o rosto.

Em segundos sua imaginação esboçou o quadro tão temido pelos veranistas: o ladrão penetra na cozinha... passa à sala de jantar... a prataria está no armário... entra no quarto de dormir... um machado... um rosto de bandido... jóias... os joelhos se dobram, e um arrepio percorre-lhe a espinha.

— Vassil! — sacudiu o corpo do marido. — Vassil! Vassil Prokofiévitch! Oh, meu Deus, parece morto! Acorde, Vassil! Por favor!

— O que foi? — mugiu o promotor-assistente, aspirando profundamente e cerrando os maxilares com o barulho de quem mastiga.

— Pelo amor de Deus, acorde! Tem um ladrão na cozinha! Eu estava na janela e vi alguém entrar na cozinha. Da cozinha ele irá para a sala... os talheres estão no armário! Vassil! Foi assim mesmo que entraram na casa de Maria Iegorovna no ano passado.

— Casa de quem?... Mas o que você está querendo? — Meu Deus do céu! Você não está me ouvindo? Entenda, criatura: acabo de

ver um homem entrar na cozinha. Pelaguéia vai levar um susto daqueles e... os talheres de prata estão no armário.

— Bobagem. — Vassil, mas que coisa mais insuportável! Estou te dizendo do perigo e você

fica dormindo e zombando de mim. Você quer ser roubado e assaltado? É isso que você quer?

O promotor-assistente levantou-se com lentidão, sentou-se na cama, enchendo o quarto com seus bocejos.

— Só o diabo é que consegue compreender vocês, mulheres! — resmungou. Será que nem durante a noite se pode ter sossego? Por qualquer coisinha acordam a gente.

— Vassil, juro que vi um homem pulando a janela! 61

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— E o que tem isso demais? Deixe-o em paz... Com certeza é o bombeiro que veio visitar Pelaguéia.

— O quê? O que é que você disse? — Disse que o bombeiro veio ver Pelaguéia. — Pois pior ainda! — exclamou Maria Mikháilovna. — Muito pior do que um

ladrão! Não irei tolerar um cinismo desses na minha casa. — Ora, ora, vejam só quanta virtude!... Não irei tolerar um cinismo desses na

minha casa. E por acaso isso é cinismo? Para que ficar gastando palavras estrangeiras à toa? Isto, minha filha, é coisa que sempre existiu, consagrada pela tradição humana. Bombeiro foi feito para procurar cozinheira.

— Não, Vassil! Se é assim, estou vendo que você não me conhece. Não posso admitir a ideia de que em minha casa... uma coisa dessas... Faça-me o favor de ir já à cozinha e ordene que ele se retire imediatamente! Amanhã vou ter uma conversa com Pelaguéia para que não se atreva mais a ter semelhante conduta. Quando eu estiver morta vocês poderão admitir o cinismo nesta casa, mas, até lá, não se atrevam! Faça-me o favor de ir.

— Diabos!... — resmungou Gáguin, chateado. — Raciocine um pouco, mulher, com os teus miolos microscópicos: o que é que eu vou fazer lá?

— Vassil, vou desmaiar! Gáguin cuspiu uma vez, calçou os chinelos, cuspiu outra vez e seguiu o rumo da

cozinha. Estava escuro como dentro de um barril fechado, e o promotor-assistente viu-se forçado a ir tateando seu caminho. Por fim encontrou a porta do quarto das crianças e acordou a babá.

— Vassilisa — disse. — Você levou meu roupão para limpar, onde você o escondeu?

— Entreguei-o a Pelaguéia, patrão. — Que bagunça! Apanhar a roupa todos apanham, mas colocai de novo no lugar

ninguém coloca. E fico eu zanzando pela casa sem meu roupão! Ao pisar na cozinha, dirigiu-se diretamente ao lugar onde dormia a cozinheira, um

catre debaixo da prateleira cheia de panelas. — Pelaguéia! — chamou, tateando-lhe o ombro e empurrando-a. 62

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— Ei, Pelaguéia! Deixa de fingir, eu sei que você não está dormindo. Quem foi que entrou pela janela para se encontrar com você?

— Hum... Bom dia! Entrar pela janela? Mas... quem seria? — Deixa de querer jogar areia nos meus olhos. É melhor você dizer logo ao teu

malandro para dar o fora sem barulho, está me ouvindo? Ele não perdeu nada aqui — O patrão perdeu o juízo? Bom dia... Tudo porque encontrou uma bobalhona:

passar o dia inteiro trabalhando como uma escrava, correndo para lá e para cá sem parar um instante e de noite ainda ter de ouvir coisas assim. É a vida que tenho de levar por quatro rublos por mês... e ainda precisando comprar açúcar e chá com o próprio dinheiro: essa é a gratidão que se recebe de volta. Nem nas casas dos comerciantes em que trabalhei passei tanta vergonha.

— Pára de se lamuriar! Teu soldadão que trate de sumir daqui agora mesmo, está ouvindo?

— É um pecado, patrão! — havia lágrimas na voz de Pelaguéia. — Senhores letrados, distintos, não se apiedam da miséria da gente e ainda nos ofendem — chorava. — Não temos ninguém que nos defenda.

— Na, na... Por mim, não! Foi a patroa que me mandou até aqui. Por mim você pode deixar o próprio diabo entrar pela janela que eu estou pouco me incomodando.

O promotor-assistente reconhecia que aquele interrogatório era fora de propósito, e só lhe restava voltar para junto de sua mulher.

— Escuta, Pelaguéia — disse. — Você apanhou o meu roupão para limpar. Onde foi que o colocou?

— Ai, patrão, desculpe, esqueci de pendurá-lo na sua cadeira. Ele está ali no prego perto do fogão.

Gáguin tateou em torno do fogão, encontrou e vestiu o roupão, voltando a passos lentos para o quarto de dormir.

Depois que o marido saiu, Maria Mikháilovna ficou a esperá-lo na cama. Durante os três primeiros minutos manteve-se calma, mas em seguida começou a se inquietar.

"Como está demorando!", pensou. "Ainda bem que é aquele cínico... Mas, e se for um ladrão?" Sua imaginação mais uma vez pôs-se a desenhar-lhe uma cena: o 63

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marido entra na cozinha escura... um golpe... ele cai sem um gemido... uma poça de sangue...

Cinco minutos... cinco e meio... finalmente seis. Suor frio cobria-lhe a fronte. — Vassil! — guincha. — Vassil! — Está gritando por quê? Estou aqui — ela ouve a voz e os passos do marido. —

Estão te matando, por acaso? O promotor-assistente aproxima-se da cama, senta-se na ponta do colchão. — Não tem ninguém lá — diz. — Tudo coisa da tua cabecinha brincalhona...

Pode ficar tranquila, sua boba. Pelaguéia é tão cheia de virtude quanto sua patroa. Como você é medrosa! Como é...

O promotor pôs-se a zombar da esposa. E tanto zombou que acabou perdendo o sono.

— Medrosa! — riu. — Amanhã mesmo deves procurar um médico que te trate dessas alucinações. Sofres de doença mental!

— Que cheiro de alcatrão! — disse a esposa. — De alcatrão ou de... de uma outra coisa... parece cebola... ou sopa de legumes.

— Sim, também sinto qualquer coisa... Perdi o sono. É melhor acender uma vela. Onde estão os fósforos? Por falar nisso, me lembrei: vou te mostrar o retrato do procurador do Tribunal. Ontem, ao se despedir, ele deu um retrato a cada um de nós. Com autógrafo...

Gáguin riscou um fósforo na parede e acendeu a vela, mas, antes de dar o primeiro passo para apanhar o retrato, um grito cortante, desses que despedaçam a alma, ouviu-se às suas costas. Virando-se, enxergou dois olhos grandes de mulher a fitá-lo cheios de espanto, horror e raiva.

— Você apanhou o roupão na cozinha? — perguntou-lhe a esposa, pálida. — Porquê? — Olha só.

O promotor-assistente voltou-se para o espelho e soltou um gemido. Em vez do seu roupão, tinha nos ombros o capote do bombeiro. Como havia ele parado ali? Enquanto tentava resolver este problema, uma nova cena surgia na imaginação de sua esposa. Uma cena horrível, impossível: escuridão... silêncio... murmúrios... etc... etc. 64

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A Linguaruda Natália Mikháilovna, senhora bem bonitona e muito jovem, recém-chegara, via trem de Ialta, onde passara o verão; e, enquanto faz a refeição, fala pelos cotovelos, contando os encantos da região. Alegre e satisfeito pelo regresso da esposa, o marido acompanha os brilhos de sua fisionomia com olhos de ternura, intercalando de vez em quando essa ou aquela pergunta. — Mas dizem que lá a vida é muito cara... — foi uma, entre outras, de suas observações. — Cara? Como é que eu posso te dizer? Acredito que não seja tão cara quanto se diz. Eu dividia um apartamento com a Júlia Petrovna, bastante confortável, por vinte rublos a diária. Tudo depende de as pessoas saberem se auto-administrar. Claro, lá se costuma fazer excursões as montanhas, ao monte Al-Patri, por exemplo... a cavalo... tem o guia... isso tudo acaba ficando bastante caro... caríssimo... Mas, meu bem, que montes! Imagine você que são altíssimos... mil vezes mais altos do que a igreja... Lá em cima, neve... nada mais senão neve... E lá embaixo, rochas... nada mais senão rochas... Ah, quantas lembranças! — Por falar nisso, durante a sua ausência, li, e muito mais de uma vez, a respeito das atrocidades praticadas por esses guias... É verdade que eles são malvados? Natália Mikháilovna fez uma careta e balançou a cabeça negativamente. 65

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— Ora, são tártaros, como todo e qualquer tártaro — respondeu. — Além do mais, eu só os vi de longe, uma ou duas vezes... Alguém apontou para eles, me mostrando, mas não dei a mínima importância... Sempre senti aversão a todo tipo de circassianos, gregos, mouros...

— Parece que são uns velhacos... — Pode ser... Mas há algumas mulheres descaradas que...

Natália Mikháilovna pulou da cadeira e, olhos dilatados como se tivesse visto algo terrível, disse para o marido, enfatizando as frases:

— Vasitchka! O mundo está cheio de mulheres levianas. Que imorais!... E não de origem baixa ou da classe média, não; aristocratas, do melhor dos mundos! Eu via e não queria acreditar. Nunca vou conseguir esquecer! É preciso não ter princípio nenhum para se chegar a tal ponto... Nem me atrevo a contar para você... Vou tomar como exemplo a minha companheira Júlia Petrovna...Tem um marido simpaticíssimo, dois filhos, pertence à melhor sociedade... Gosta de passar por santa, mas sabe o que ela fazia? Garanto que você nem consegue imaginar... Mas que isso fique só entre nós... me dá a tua palavra de que não irá contar nada a ninguém?

— Ora, que ideia! E para quem é que eu iria contar? — Palavra de honra?... Bem... confio em você. Colocou o guardanapo na mesa e, com ar de suspense, começou: — Imagine o seguinte... Júlia Petrovna, certo dia, foi fazer um passeio a cavalo até

os montes. O tempo estava um esplendor. À frente ia ela, com seu guia. Atrás, eu. Distantes dois ou três quilómetros do povoado, ela soltou um grito e levou as mãos ao peito. O tártaro segurou-a; teria tombado da sela não fosse ele... Aproximei-me de Júlia, com o meu guia. "Que foi? O que aconteceu?" "Sinto-me mal, estou morrendo, não posso seguir em frente!" Pois imagine você o meu susto! "Vamos voltar!", eu disse. "Não, não posso voltar", respondeu ela. "Se eu der mais um passo, caio morta. Sinto vertigens." E me pediu, a mim e a Suleiman, que fôssemos até o hotel buscar um vidro de gotas que haveriam de a restabelecer.

— Espera aí, não estou entendendo — balbuciou o marido. — Há pouco você me dizia que só tinha visto tártaros de longe, e agora me fala desse tal de Suleiman.

— Pronto, já começa você com suas burrices — interrompeu a 66

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senhora, sem se mostrar perturbada — Tenho horror desse tipo de suspeita! Não consigo suportá-la! É idiota e absurdo!

— Não sou de alimentar suspeitas, mas... de que adianta mentir? Você passeava com tártaros... Para que esconder isso?

— Você é mesmo impossível! — protestou, indignada, a senhora. — Está com ciúme de Suleiman! Queria ver como você iria ao monte sem um guia! Ora, se queria ver! Já que você não conhece nem entende aquele tipo de vida, faria melhor se se calasse. Escute e fique calado. Lá não se pode dar nem um único passo sem guia.

— Naturalmente! — Faça-me o favor de acabar com esses sorrisinhos bobos. Não sou uma Júlia

qualquer para aguentá-los. Eu, embora não pretenda passar por santa, não permitia certas coisas... Não percebe?... Mametkul, esse, passava o tempo todo com Júlia Petrovna, e eu não... Quando soavam as onze, chega... "Suleiman, olha a hora!" E lá se ia o meu tartarozinho... Ele era tratado por mim com muita severidade... Bastava se chegar com alguma pretensão, dinheiro ou outra coisa qualquer, que eu logo: "Como? O que isso quer dizer?" Ah! ah! ah!... Não lhe chegava a camisa ao corpo. Sabe, Vasitchka? Ele tinha os olhos negros como carvão... uma carinha morena, uma cara de tártaro que era uma graça... Ah, eu? Eu o tratava com muita severidade.

— Imagino... — murmurou o esposo enquanto fazia bolinhas de pão. — Você está ficando louco, Vasitchka, completamente louco! Já sei o que você

está imaginando... Conheço tua cabeça... Mas posso te garantir que, durante o passeio, ele nunca conversava. íamos, para dar um exemplo, até os montes ou a cascata de Ucha-Su. Eu sempre dava ordens: "Suleiman, atrás! Ouviu?" E o pobrezinho tinha que ir atrás. Mesmo nos momentos patéticos, eu dizia: "Apesar de tudo não esqueças de que não passas de um tártaro, e eu sou a esposa de um conselheiro de Estado!" Ah! ah! ah!...

Soltou uma gargalhada, embora tenha feito uma cara assustadíssima, exclamando: — Mas esta Júlia!... esta Júlia!... A gente pode fazer travessura, se distrair... Por que

não? É preciso descansar um pouco da frivolidade da vida mundana... Eu penso assim. Divertirmo-nos sem que ninguém nos jogue isso na cara; mas levar a sério, provocar escândalos, isso é 67

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que não! Imagine você que ela estava com ciúmes de mim! Que bobabem! Uma vez chegou Mametkul... era o seu galã... e ela não estava... Chamei-o para o meu quarto... conversamos... um pedaço de tempo passamos assim... São bem interessantes, os tártaros... A tarde se passou sem que percebêssemos... E súbito Júlia chega como um temporal... Deu de cara comigo e Mametkul e armou uma cena... Que horror!... Isto, Vasitchka, eu não consigo compreender.

Vasitchka soltou um "hum!" bem significativo, franziu as sobrancelhas e pôs-se a caminhar com grandes passos.

— Pelo que eu vejo, você se distraiu bastante! — disse, sorrindo. — Que estupidez! — respondeu a senhora. — Já sei o que você está imaginando!

Sempre com suas ideias maldosas. Da próxima vez, já sei; não vou te contar nada! Nada mesmo!

E calou-se, com uma cara compungida. 68

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ARTUR AZEVEDO

Irmão do principal autor do nosso Naturalismo — Aluísio Azevedo, de “O Cortiço” e “Casa de Pensão” —,

Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão, em 1855. No Rio de janeiro do Império e da

Primeira República, ficou conhecido como jornalista, poeta, contista e "comediógrafo" de enorme sucesso, com peças como

O Mambembe, A Capital Federal, O Tribofe. Como contista, foi incansável escrevendo diretamente para a

imprensa (às vezes seus contos saíam na primeira página), e só depois reunidos em livros: Contos Fora de Moda (1894),

Contos Efêmeros (1897), Contos Possíveis (1908). Em 1953, R. Magalhães Jr. publicou a biografia “Artur

Azevedo e Sua Época”. Foi funcionário público, colega e amigo de Machado de Assis. Faleceu no Rio de Janeiro em

1908. A mais recente antologia de Artur Azevedo — editada pela Revan em 1993 — é Plebiscito e Outros Contos de Humor.

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O Velho Lima

O velho Lima, que era empregado — empregado antigo — numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil. O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias. O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República. No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do Comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras: — Bom dia, cidadão. O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder — Bom dia, comendador. — Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores! — Ora essa! Então por quê? 71

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— A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se! O velho Lima encarou o comendador e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.

Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro: — Como vai você com o Aristides? — Que Aristides? — O Silveira Lobo. — Eu!... Onde?... Como?... — Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de

uma repartição do Ministério do Interior?... Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o

comendador houvesse enlouquecido. — Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? — perguntou Vidal, passados

alguns momentos. — Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo! "Ora vejam", refletiu o velho Lima, "ora vejam o que é perder a razão: este

homem, quando estava no seu juízo, era tão monarquista, tão amigo do imperador!" Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia,

sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.

— Uma autoridade policial! — murmurou o velho Lima. E o comendador acrescentou: — Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele

deve lá chegar no princípio do mês. O velho Lima comovia-se: — Não diz coisa com coisa, coitado! — E a bandeira? Que me diz você da bandeira? — Ah, sim... a bandeira... sim... — repetiu o velho lima para o não contrariar. — Como a prefere: com ou sem lema? — Sem lema - respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema. — Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro. Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:

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— Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II! — Qual Pedro II! — bradou o comendador. — Isto já não é de Pedro II! Ele

que se contente com os cinco mil contos! — E vá para a casa do diabo! — acrescentou o subdelegado. O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se. Chegado à Praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.

Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do Parque da Aclamação.

Ao entrar na secretaria, um servente preto e maltrajado não o cumprimentou com a costumeira humildade: limitou-se a dizer-lhe:

— Cidadão! "Deram hoje para me chamar cidadão!", pensou o velho Lima. Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.

— Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado! O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente. "Querem ver que já é alguém" refletiu o velho Lima.

— Amanhã parto para a Paraíba — disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos. — Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou a seu dispor.

E desceu. — Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!... Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os

reposteiros. "Muito bem!", disse consigo. "Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros

pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa." Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando

D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe: — Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade? 73

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O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso: — Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana? — Pedro Banana! — repetiu raivoso o velho Lima. E, sentando-se, pensou com tristeza:

"Não dou três anos para que isto seja república!" 74

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Plebiscito A cena passa-se em 1890. A família está toda reunida na sala de jantar. O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário-belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. Silêncio.

* * *

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: — Papai, que é plebiscito? O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: — Papai? Pausa: — Papai? Dona Bernardina intervém: 75

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— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. — Que é? Que desejam vocês? — Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito. — Ora, essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é

plebiscito? — Se soubesse não perguntava. O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada

com a gaiola: — Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!. — Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. — Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? — Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. — Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! — A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é

plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... — A senhora o que quer é enfezar-me! — Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é

nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber!

— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal-remunerado.

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças! — Oh! ridículo é você mesmo que se faz. Seria tão simples dizer Não sei, Manduca, não sei o

que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: — Mas se eu sei! — Pois, se sabe, diga!

Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não 76

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dou o braço a torcer! Quero conservar a moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

* * *

A menina toma a palavra: — Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso! — Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que

não sabia o que é plebiscito! — Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador

involuntário de toda aquela discussão; — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha e vai bater à porta do quarto: — Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco. O negociante esperava a deixa. Aporta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a

casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.

* * *

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; — é muito boa! Eu! Eu ignorar o significado da palavra plebiscito! Eu!

A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmático: — Plebiscito...

E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição. 77

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— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecida em comícios. — Ah! — suspiraram todos, aliviados.

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!... 78

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NICOLAI GOGOL

Nicolai Vassilievitch Gogol, de uma família cossaca, nasceu na Ucrânia, na cidade de Sorotchintsi, em 1809. Em

São Petersburgo, para onde se mudou na adolescência, estreou aos vinte anos com Hans Küchelgarten (1829). Três

anos depois, reuniu os contos de Serões numa Aldeia perto de Dikanka, estimulado por Pushkin. O romance

Tarass Bulba saiu em 1834. Gogol só encontrou decepções na então capital russa, depois de tentar ser ator, preceptor de

História e funcionário público. Em 1836, escreve uma comédia para teatro, peça que é remontada até hoje: O Inspetor

Geral. Adormentado e com crescentes problemas psicológicos, Gogol perambubu pela Europa, sem dinheiro e sem esperanças.

Mesmo assim, continuou escrevendo e, de volta à Rússia, publicou, em 1842, o clássico romance Almas Mortas. De

seus contos, pelo menos três são considerados patrimônio da literatura universal: "O Capote", "Diário de um Louco" e

"O Nariz". Do primeiro desses contos, Dostoievski disse que dele "saiu toda a nova literatura russa" — o que não era

pouca coisa, já que isso incluía, além do próprio autor de Crime e Castigo, Tolstoi e Turguenief.

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O Nariz

Em Petersburgo, no dia 25 de março, aconteceu um caso espantoso e estranho. O barbeiro Ivan Iacovlievitch, morador da rua Voskressienskaia (seu sobrenome, por isso mesmo, se perdera na tabuleta, em que se via um homem de rosto ensaboado, com o letreiro "Também fazemos sangria" — e mais nada), acordou bem cedo e sentiu cheiro de pão quentinho. Ao levantar-se da cama, viu a mulher, senhora mui respeitável e grande apreciadora de café, tirando naquele momento o pão do forno.

— Prascóvia Ossipovna, hoje não quero tomar café — afirmou Ivan Iacovlievitch. — Em vez disso, sinto vontade de comer pão quente com cebola.

(Se bem que Ivan Iacovlievitch apreciasse saborear ambos, sabia muito bem que não poderia exigir tudo ao mesmo tempo, pois Prascóvia Ossipovna não gostava dessas manias.) "Que o idiota coma pão! Melhor assim!", pensou ela. "Sobrará mais café para mim." E jogou um pão em cima da mesa.

Para se dar mais respeito, Ivan Iacovlievitch vestiu o fraque por cima da camisola, sentou-se à mesa, apanhou sal, duas cabeças de cebola, e, ao apanhar a faca com pose de grave imponência, pôs-se a cortar o pão. Depois de dividi-lo em dois, olhou dentro dos pedaços e, para sua enorme surpresa, avistou alguma coisa esbranquiçada. Cui-dadosamente, sondou a parte com a faca, depois apalpou-a: "Sólido!", disse para si mesmo. "Que será?" 81

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Meteu o dedo no miolo, puxou: era um nariz!... Ivan Iacovlievitch deixou os braços caírem; esfregou os olhos e depois apalpou a coisa: um nariz, um nariz de verdade, nariz mesmo! E, para grande pavor seu, tudo indicava pertencer a alguém conhecido. O pânico estampou-se em seu rosto. Pânico, no entanto, que não era nada diante da ira que tomou conta de sua esposa.

— Onde foi que você cortou fora este nariz, animal! — esbravejou a mulher, indignada. — Velhaco! Bêbado! Vou contar tudo para a polícia, seu bandido! Três pessoas bem que já me haviam avisado que quando você faz a barba de alguém chega a puxar tanto o nariz que por pouco não o arranca...

Ivan Iacovlievitch, por outro lado, estava mais morto do que vivo. Logo percebera que aquele nariz pertencia, nada mais, nada menos, que ao inspetor-geral Kovaliov, cuja barba costumava fazer todas as quartas e domingos.

— Espere um pouco, Prascóvia Ossipovna! Embrulho o nariz num pano e o coloco ali no canto; deixe que ele fique lá um pouquinho, depois o levarei para a rua.

— Nem me fale numa coisa dessas! Eu, permitir que esse nariz cortado fique dentro da minha casa?... Velho imprestável! Você só sabe afiar a navalha na correia, mas é incapaz de cumprir com o seu dever, malandro, vagabundo! Quer que eu vá depor a seu favor na polícia?... Nojento, toupeira! Já para fora com isso, saia daqui. Leva essa coisa para onde bem entender! Mas não quero ver nem a sombra desse nariz dentro de casa!

Ivan Iacovlievitch ficou paralisado; parecia morto. Pensava, pensava — e não havia jeito de resolver o problema.

— Só o diabo sabe como tudo aconteceu — disse ele, por fim, coçando o lado de trás da orelha. — Não me lembro de ter voltado bêbado ontem para casa. Tudo indica que o caso deve ser mesmo fora do comum: ora, o pão é cozido, enquanto um nariz é alguma coisa de muito diferente. Não consigo entender bulhufas!

Ivan Iacovlievitch parou de falar. A mera lembrança de que os guardas poderiam encontrar o nariz em sua casa e viessem a incriminá-lo deixara-o transtornado. Avistou diante dos olhos da fantasia uma gola vermelha bordada artisticamente com fios de prata, uma espada... seu corpo todo começou a tremer. Finalmente pegou a roupa miserável 82

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e as botas, vestiu os farrapos e, acompanhado dos pesados xingamentos de Prascóvia Ossipovna, enrolou o nariz num pano velho e foi para a rua.

Sua intenção era a de enfiar o nariz em qualquer lugar; ou abandoná-lo, escondido, atrás de um portão qualquer, ou então, como quem não quer nada, deixá-lo cair no chão, desaparecendo ele em seguida por um beco. Mas tanto era o seu azar que sempre dava de cara com pessoas conhecidas, que logo vinham perguntando: "Aonde é que você vai?", ou: "Onde você vai fazer a barba, assim tão cedo?"—por isso Ivan Iacovlievitch não encontrou nenhuma oportunidade que fosse propícia para se livrar do tal nariz. Teve uma hora em que chegou até a deixar cair o embrulho, mas no mesmo instante o guarda, apontando de longe com o chicote, falou: "Apanhe aquilo lá! Parece que você perdeu alguma coisa." Ivan Iacovlievitch foi obrigado a erguer o nariz e colocá-lo no bolso. E, à medida que as lojas se abriam e as pessoas afluíam às ruas, mais ele se desesperava.

Decidiu continuar até a ponte de Isaías; quem sabe se, de lá, não conseguiria dar um jeito de atirar o nariz no rio Nieva?... Ocorre, no entanto, que me sinto em falta com os leitores, posto que nada lhes disse até o momento a respeito do barbeiro Ivan Iacovlievitch, homem respeitável, sob todos os pontos de vista.

Como todo trabalhador russo que se preze, Ivan Iacovlievitch era um beberrão de marca maior. Embora barbeasse tantas faces alheias, a sua, por outro lado, mostrava-se sempre por fazer. Seu fraque (nunca usava sobrecasaca) era cheio de pintas, isto é, preto mas enfeitado de manchas acinzentadas e de um marrom amarelecido; o colarinho puído, e no lugar de três botões pendiam apenas uns fios de linha. Por ser muito cínico, o inspetor-geral costumava lhe dizer na hora de se barbear "Tuas mãos, Ivan Iacovlievitch, sempre cheiram mal." Ele então respondia perguntando: "Por que motivo minhas mãos cheiram mal?" "Não sei o motivo, meu filho, mas que cheiram mal, lá isso cheiram", retrucava o inspetor, ao mesmo tempo em que Ivan Iacovlievitch, depois de uma pitada de tabaco, ensaboava-lhe por vingança bochechas, nariz, atrás da orelha, embaixo do queixo — tudo enfim a que tinha direito. Nosso respeitável cidadão já se encontrava na ponte de Isaías. Antes de mais nada, cuidou de inspecionar o local; em seguida, 83

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debruçou-se no parapeito, fingindo observar a ponte e ver se havia muitos peixes saltando no rio — e disfarçadamente jogou o pequeno embrulho dentro d'água. Aliviado, como se tirasse das costas um peso de dez toneladas, conseguiu até sorrir. Em vez de ir fazer a barba de alguns funcionários, seguiu na direção de uma taverna que anunciava na tabuleta "Refeições e Chá", com a intenção de beber um copo de ponche. E eis que, de repente, vislumbrou no lado de lá da ponte o guarda do quarteirão, imponente figura, largas suíças, chapéu de três bicos e uma espada. Ficou apavorado; ao mesmo tempo, fazendo-lhe um sinal com o dedo, o policial lhe dizia:

— Pode se aproximar, distintíssimo! Tão logo reconheceu o uniforme, Ivan Iacovlievitch, ainda afastado, foi tirando o

boné e, mais próximo, disse, afobado: — Saúdo-o, Excelência! — Não, não, meu filho, nada de excelência; me diga antes de mais nada o que o

senhor estava fazendo parado lá na ponte? — Meu Deus, Excelência, eu estava a caminho para fazer a barba de um freguês e,

ali passando, senti vontade de olhar a correnteza. — Mentira, mentira! Com essa conversa o senhor não se verá livre de mim.

Faça-me o favor de responder à minha pergunta! — Disponho-me a lhe fazer a barba duas ou três vezes por semana, com o

máximo prazer — respondeu Ivan Iacovlievitch. — Não, meu amigo, não diga bobabem! Para isso tenho três barbeiros que

consideram muita honra ter tal oportunidade. Mas você me fará o favor de contar direitinho o que fazia naquela ponte?

Ivan Iacovlievitch ficou pálido... E naquele momento, o que quer que estivesse acontecendo foi inteiramente encoberto pela neblina, e o que ocorreu depois ninguém jamais ficou sabendo.

II O inspetor-geral Kovaliov acordou relativamente cedo, murmurando "brr...", hábito seu ao despertar cuja razão nem ele mesmo saberia. Espreguiçou-se e mandou que lhe trouxessem um pequeno espelho que estava na mesa. Sua intenção era a de examinar uma espinhazinha que na noite anterior lhe surgira no nariz; no entanto, para 84

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grande surpresa sua, notou que onde deveria estar o nariz nada havia. Bastante assustado, mandou que lhe trouxessem água e depois esfregou os olhos na toalha: e, era mesmo, o nariz havia desaparecido! Pôs-se a apalpar-se todo para ter certeza de que não continuava dormindo: seria um sonho? Parece que não. Pulou da cama e balançou o corpo todo: o nariz desaparecera de verdade!... Ligeiro, mandou buscar a roupa, vestiu-se e saiu voando, diretamente à cata do delegado de Polícia.

É indispensável, no entanto, que se diga alguma coisa a respeito de Kovaliov, para que o leitor possa compreender que tipo de homem era esse inspetor-geral. Tais funcionários receberam seus títulos graças a atestados de conclusão de um curso. De nenhuma maneira podemos compará-los aos que surgiram no Cáucaso. Trata-se de categorias de funcionários completamente diferentes. Os inspetores-gerais são ho-mens instruídos... No entanto, a Rússia é uma terra tão fantástica que se uma pessoa se refere a um inspetor-geral, todos os demais, de Riga ao Kamtchatka, irão imaginar se enquadrarem também eles nessa categoria. É o que dá a gente querer se meter a entender de títulos e cargos. Assim mesmo, Kovaliov era inspetor caucasiano. Fora promovido ao cargo há apenas dois anos, razão pela qual lhe era impossível esquecer disso um minuto que fosse; daí, a fim de se impor e se dar maior respeito, sempre se referia a si próprio como major, e não inspetor. "Escuta, minha querida", dizia sempre ao se encontrar na rua com a mulher que vendia coletes, "vá à minha casa; moro na rua Sadovaia; basta perguntar: é aqui que mora o major Kovaliov?, qualquer pessoa lhe dirá." E, se cruzava com uma outra belezoca na rua, ao lhe cochichar algum segredo, concluía: "Meu bem, pergunta onde mora o major Kovaliov." Por essas razões todas, daqui para a frente, passaremos também a tratá-lo de major.

O nosso major Kovaliov se habituara a passear todos os dias pela avenida Niévski. Sempre com o colarinho limpo e engomado. Usava suíças tal como, ainda hoje, os governadores e agrimensores provincianos, os arquitetos e os médicos militares, todos os funcionários da polícia e, em geral, todos os demais bons cidadãos de rosadas bochechas que sabem jogar cartas (boston) — tipo de suíça que vinha da metade do rosto até o nariz. O major Kovaliov carregava uma infinidade de medalhas com estampas ou não, com diversos emblemas, 85

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assim como outras em que se viam gravados simplesmente os dias da semana: terça, quarta, quinta, segunda-feira. Mudara-se para Petersburgo por necessidade, exatamente à procura de um cargo mais condizente com seu distintíssimo título: com sorte, o posto seria de vice-governador, caso contrário, aceitaria o de chefe de uma repartição importante qualquer. O major Kovaliov tampouco tinha alguma coisa contra o casamento, mas só se a noiva possuísse um dote de, pelo menos, 200 mil rublos. Por aí pode imaginar o leitor qual não fora o desespero do major ao descobrir, no lugar do nariz bem regular, um espaço liso, plano, inútil.

E como desgraça pouca é bobagem, não aparecia na rua nenhum cocheiro, daí ter ele de seguir a pé, protegendo-se com a capa e tapando o rosto com o lenço, fingindo que lhe escorria sangue do nariz. "Vai ver tudo isso não passa de ilusão: não é possível alguém perder o nariz assim tão bestamente", pensava, ao entrar numa confeitaria com o único objetivo de olhar-se no espelho. Felizmente a confeitaria estava vazia; rapazes varriam os salões e arrumavam as cadeiras; alguns, ainda bocejando, carregavam bandejas com pastéis quentinhos; jornais da véspera espalhavam-se pelas mesas, com manchas de café. "Graças a Deus, nenhum freguês", murmurou. "Posso me olhar no espelho." Com passos tímidos, aproximou-se de um e se olhou.

— Diabo que te carregue! que tragédia! — exclamou, cuspindo ao mesmo tempo. — Se pelo menos tivesse ficado alguma coisa no lugar do nariz, mas não, não há absolutamente nada!... Chateadíssimo e mordendo os lábios, saiu da confeitaria decidido, contrariando seus princípios, a não olhar nem sorrir para ninguém. De repente viu-se como que pregado diante da porta de uma casa; frente a seus olhos aconteceu um fato comum: uma carruagem parou no portão de entrada; a portinhola abriu-se e dela saltou, abaixando-se de leve, um cavalheiro uniformizado que subiu as escadas correndo. Qual não foi o susto e espanto de Kovaliov ao reconhecer no cavalheiro seu próprio nariz! Ao assistir a tão inédito espetáculo, o mundo começou a girar ante seus olhos; percebeu que ia cair, mesmo assim, no entanto, e tremendo da cabeça aos pés, decidiu aguardar, custasse o que custasse, que o cavalheiro saísse de volta. Dois minutos depois, de fato o nariz reapareceu. Trajava um uniforme bordado com fios de ouro, com um colarinho alto e enorme; usava culote de camurça; uma espada 86

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pendia da cintura. Pelo chapéu de plumas, podia-se deduzir que ele se enquadrava na categoria dos conselheiros de Estado. Tudo indicava que iria visitar alguém. Olhou para os lados e gritou para o cocheiro: "Vamos embora!", sentou-se e desapareceu.

O pobre Kovaliov sentiu-se a ponto de enlouquecer. Não conseguia explicar tão fantástico acontecimento. Realmente, como seria possível a um nariz, que ainda ontem estava no seu rosto, que não sabia nem andar, nem viajar, aparecer de repente metido num uniforme! Kovaliov saiu em disparada atrás da carruagem, que, felizmente, parou em frente à Catedral de Kazan.

Apressado, abriu caminho por entre as fileiras das velhas mendigas de rostos amarrados e que davam lugar apenas a dois buracos para os olhos, fato de que se ria tanto antigamente — e por fim entrou na igreja. Pouca gente rezando; quase todos junto à porta de entrada. Kovaliov encontrava-se em tal estado de confusão que nem se sentiu com ânimo para orações e por isso tratou de procurar o tal cavalheiro por todos os cantos. Finalmente reconheceu-o, de longe. O nariz escondia o rosto na parte interna da grande gola do dólmã, e ele rezava com uma expressão muito devota!

"Como conseguirei me aproximar dele?", calculava Kovaliov. "Devido ao uniforme e ao chapéu, percebe-se logo que se trata de um conselheiro de Estado. Que se dane tudo, não sei que jeito posso dar!..."

Chegou-se mais um pouco e começou a tossir; no entanto, o nariz não abdicava da atitude de devoção e prosseguia rezando.

— Excelência... — balbuciou Kovaliov, fazendo força, por dentro, para se mostrar mais desembaraçado. — Excelência...

— O que é que o senhor deseja? — perguntou-lhe o nariz, voltando-se. — Sinto que é estranho, Excelência... parece-me... que o senhor deveria saber o

seu lugar. Mas eis que, subitamente, encontro-o, sim, mas onde? Na igreja. Haverá de concordar...

— Queira me perdoar, mas não consigo compreender do que o senhor está falando... Faça-me o favor de se explicar.

"Mas vou me explicar como?", pensava Kovaliov; readquiriu coragem, porém, e continuou:

— Naturalmente eu... Todavia sou o major. O senhor haverá de 87

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concordar que não cai bem andar por aí sem o meu nariz. Se se tratasse de um vendedor de laranjas descascadas da ponte Voskressienski, vá lá que ficasse sem seu nariz; mas tratando-se de um sujeito como eu... que possui um vasto círculo de relacionamentos, como as senhoras Tchiechtariova, conselheira de Estado, e tantas outras... chegue o senhor à sua própria conclusão... não sei, não, Excelência... (o major Kovaliov ergue os ombros ao dizer isso)... Peço-lhe desculpas... todavia, pensando bem, de acordo com todos os princípios do dever e da honra... o senhor mesmo deve compreender...

— Não compreendo nada em absoluto — reagiu o nariz. — Poderia se explicar com mais clareza?

— Excelência — murmurou Kovaliov, ar de grande importância —, não vejo como aceitar suas palavras... Tudo parece muito evidente... Ou o senhor quer... Mas o senhor é o meu próprio nariz!

O nariz contemplava o major, e suas sobrancelhas franziram-se ligeiramente. — Vossa Excelência comete um equívoco. Eu sou eu mesmo. E, além do mais, não

pode haver entre nós qualquer tipo de relação íntima. Deduzindo pelos botões de seu uniforme, o senhor deve servir em outro Departamento.

Concluídas suas palavras, o nariz virou-lhe as costas e voltou a rezar. Kovaliov, totalmente bestificado, não sabia o que fazer nem o que pensar.

Enquanto isso, ouviu-se um agradável frufru de saias: aproximava-se uma senhora de idade, toda coberta de rendas. Uma jovem a acompanhava, de vestidinho branco mui graciosamente colado ao corpo, chapeuzinho cor de palha, leve como um bombom. Mais atrás, parando para abrir a cigarreira, vinha um lacaio alto, de suíças grandes e com uma dúzia de colarinhos. Kovaliov deu alguns passos, aproximou-se mais um pouco, exibindo o colarinho de cambraia sobre o colete; ajeitou as medalhas penduradas na corrente de ouro, sorriu para todos os lados e fixou-se na moça elegante que, como pequena flor da primavera, levemente curva, encostara na testa a alva mãozinha de dedos quase transparentes. O sorriso de Kovaliov cresceu ao ver, sob o chapeuzinho, aquele queixinho redondinho e de resplandecente alvura — e parte do rosto sombreado pelo colorido da primeira flor da primavera. De repente 88

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porém, deu um pulo para trás, como se tivesse se queimado. Havia se lembrado num estalo que, onde deveria estar o nariz, nada existia, e as lágrimas rolaram-lhe dos olhos. Sem preâmbulos e de uma forma direta, voltou-se com a intenção de dizer ao cavalheiro de uniforme que aquela farda de conselheiro de Estado era pura farsa, que o cavalheiro era um patife e um mentiroso, pois não era, nem mais nem menos, apenas o seu, dele, próprio nariz... Mas ele já havia desaparecido: com certeza iria fazer outra visita.

Isso foi o suficiente para levar Kovaliov ao desespero. Deu meia-volta e, parando um pouco ao lado de uma coluna, olhou com atenção para todos os lados, na esperança de descobrir o nariz escondido em algum lugar. Lembrava-se bem de que o chapéu era de plumas, o uniforme bordado com fios de ouro; no entanto, não prestara atenção no capote nem na cor da carruagem ou dos cavalos. Não tinha a mínima ideia se havia um lacaio na parte de trás da carruagem, nem qual seria seu tipo de libré. Para maior desespero, carruagens passavam rapidíssimas, tantas e em todas as direções, o que lhe dificultava até mesmo identificá-las; mesmo assim, se o fizesse, não conseguiria deter nenhuma delas.

Era um dia lindo e cheio de sol. A avenida Niévski cheia de gente, e as senhoras espalhavam-se pelas calçadas, da Delegacia até Anitchkov, como cascatas de flores. E eis que se lhe aparece um conhecido, um conselheiro da corte a quem, especialmente na presença de estranhos, costumava chamar tenente-coronel. E também Iaríguin, chefe da secretaria de Estado do Senado, grande amigo seu, de quem sempre perdia no jogo de cartas. E ainda outro, um major, que conseguira o título de inspetor no Cáucaso, e que agora lhe fazia sinal para que se aproximasse...

— Que vá tudo para o inferno! — exclamou Kovaliov. — Ei, cocheiro, vamos diretamente ao delegado de polícia!

Kovaliov sentou-se no coche e gritou: — Depressa, siga por todo o Ivanovski! ............................................................................................................... — O senhor delegado está? — foi perguntando ao entrar. — Não, senhor — respondeu o empregado. — Acabou de sair. — Puxa, que azar!

— Sim, senhor — repetiu o empregado. — Não faz muito, acabou 89

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de sair. Se o senhor tivesse chegado um minuto antes talvez o encontrasse. Kovaliov, sem tirar o lenço do rosto, voltou ao carro e berrou desesperado: — Vamos depressa! — Sim, mas para onde? — perguntou o cocheiro. — Em frente! — Em frente como? Existe uma curva logo ali: para a direita ou para a esquerda? A pergunta confundiu Kovaliov, que se viu obrigado a pensar. Naquela situação,

seria mais prudente ir logo para a Delegacia de Costumes, não porque tivesse relações próximas com a polícia, mas apenas porque as ordens dali emanadas seriam realizadas com maior rapidez; por outro lado, parecia insensatez procurar explicações numa delegacia da qual o nariz deu a entender ser funcionário, pois, devido às próprias palavras dele, percebia-se logo tratar-se de um homem não-confiável, e tudo talvez não passasse de uma farsa como aquela que pretendia convencer Kovaliov de que o nariz jamais havia pertencido a ele, Kovaliov. Por isso mesmo, Kovaliov decidira seguir direto para a Delegacia de Costumes quando, de repente, lembrou que o farsante miserável, que se comportara como um inconsciente naquele primeiro encontro, ganhando tempo, poderia até fugir da cidade, caso em que todas as providências tornar-se-iam inúteis ou, o que é pior, prolongar-se-iam por um mês, escondido sabe Deus onde. Mas parece que finalmente o próprio céu trouxe-o de volta à razão, melhor compreendendo as coisas. Resolveu procurar a redação de um jornal a fim de providenciar um apelo ou anúncio, com todos os pormenores e sinais do nariz para que aqueles que o encontrassem pudessem detê-lo ou, pelo menos, informar-lhe onde residia. Ao chegar a tal resolução, e durante todo o trajeto, cutucava o cocheiro e gritava: "Mais depressa, miserável! Rápido, anda, farsante!"

— Oh, patrão! — exclamou o cocheiro sacudindo a cabeça e fustigando o cavalo com as rédeas, cavalo com pêlo que mais parecia de carneiro. Finalmente o coche parou e Kovaliov, afobado, quase sem fôlego, entrou correndo numa saleta onde, sentado à mesa, de roupa ensebada 90

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e óculos, um empregado grisalho mordia a caneta e contava moedas de cobre. — Quem é a pessoa encarregada dos anúncios? — gritou Kovaliov. — Bem...

boa tarde! — Meus respeitos — respondeu o empregado, erguendo rápido o olhar e

baixando-se em seguida para as moedas em pilhas. — Gostaria de publicar... — Tenha a bondade de aguardar um instante — interrompeu o empregado,

com a mão direita sobre o papel das contas; com a esquerda, segurava uma lente e movia duas peças de um ábaco.

Um lacaio cheio de galões, parecendo estar a serviço de uma casa aristocrática, em pé junto à mesa e segurando um papel, dizia para o empregado:

— Acredite, Excelência, o cachorrinho não vale nem oito tostões, isto é, eu não daria por ele nem oito copeques, mas a condessa adora o animalzinho, juro como adora ele, e, devido a isso, oferece cem rublos a quem o encontrar. Para ser sincero, como nós nesse momento, a gente percebe que nem todos têm o mesmo gosto, se quer mesmo criar um cachorrinho que seja um cão de caça ou um pequinês; pague quinhentos ou mil rublos por ele, que seja, mas terá um bom animal. O respeitável empregado escutava essa história toda enquanto calculava de quantas letras se compunha o tal anúncio. Afastados, algumas velhas, vendedores ambulantes e outros serviçais segurando seus anúncios: num, um pacato cocheiro de bom comportamento oferecia seus préstimos; noutro, vendia-se uma charrete em bom estado de conservação, embora se lhe faltasse uma roda; outro, uma carruagem que havia estado na Exposição de Paris de 1814; uma jovenzinha de dezenove anos que perdera o emprego como lavadeira oferecia seus serviços; cavalo novo e veloz, com manchas cinzentas, de dezessete anos; sementes de nabos e rabanetes recém-chegadas de Londres; casa de campo com o máximo conforto e mais duas cavalariças e muito terreno baldio onde se poderia plantar um magnífico jardim de bétulas e pinheiros; outro anúncio pretendia-se à compra de solas de sapatos velhos, podendo os interessados apresentarem-se das oito da manhã às três da tarde. Por ser pequena a sala com toda essa gente, o ar era sufocante; mas o inspetor-geral Kovaliov não podia 91

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sentir nenhum cheiro, posto que tinha um lenço no rosto, já que seu nariz estava sabe Deus onde.

— Respeitável senhor, permita-me que lhe pergunte... Tenho muitíssima urgência — exclamou, impaciente.

— Já atendo o senhor! Dois rublos e quarenta e três copeques! Um momentinho! Um rublo e sessenta e quatro copeques! — dizia o empregado grisalho, atirando os anúncios na cara do lacaio e de uma velha .— E o senhor, o que deseja? — afinal perguntou ele a Kovaliov.

— Desejo muito... Estou sendo vítima de uma farsa, uma canalhice, e até agora não consegui atinar qual a razão disso tudo. Quero que o senhor me publique um anúncio dizendo que a pessoa que encontrar esse maroto será bem recompensada!

— Faça o obséquio de me dar o seu nome. — Nome? Mas para que nomes? O nome não faz falta, de maneira alguma. Sou

muito bem-relacionado: Tchechtariova, conselheira de Estado, Pelaguéia Grigorievna Podtochina, esposa do capitão de Estado-Maior. Vão acabar sabendo desta história, não, Deus me livre. Basta que o senhor escreva simplesmente: inspetor-geral, ou, melhor ainda, pode começar com o título de major.

— E o fugitivo era um de seus criados? — Como, criado, ele? Meu criado? Ora, isso não seria nenhuma desgraça. O que

fugiu foi o... nariz... — Hum, que nome mais esquisito! Será que esse tal senhor Nóssov* lhe

roubou muito dinheiro? — Nariz, quer dizer... não se trata do que o senhor está pensando. Não vai

acreditar: o nariz, meu próprio nariz é que desapareceu não se sabe para onde. O diabo em pessoa está querendo me pregar uma peça!

— Desapareceu... mas como? Não estou entendendo muito bem, é melhor o senhor explicar direitinho. — Nem eu mesmo sou capaz de lhe explicar como aconteceu; o fato é que ele anda agora pela cidade e se diz conselheiro de Estado. É por isso que lhe peço encarecidamente: publique o anúncio dizendo da necessidade de prendê-lo imediatamente, compreende o senhor? Como é que eu vou ficar sem essa parte tão fundamental do meu corpo? o senhor entende, com certeza, a minha situação... Se fosse o dedo

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_______________ * De nós, nariz 92 mindinho do pé, que a gente enfia na bota e pronto, ninguém fica sabendo porque não se pode vê-lo. Costumo visitar às quintas-feiras a conselheira de Estado Tchechtariova; Podtochina, Pelaguéia Grigorievna, esposa do capitão do Estado-Maior, que tem uma filha muito graciosinha, são todos muito amigos meus, avalie o senhor agora a minha situação... Não poderei mais visitá-los.

Notava-se pela cara do empregado, lábios estendidos, que ele refletia seriamente sobre o caso.

— Não, senhor, não poderei publicar um anúncio desses no jornal — exclamou depois de longo silêncio.

— Mas como não? Por que razão? — Porque não é possível. Pela simples razão de que poderá prejudicar o jornal.

Se todos vierem até aqui anunciando que perderam seus narizes, ah, sei lá... Em todo caso, dizem por aí que se publica muita mentira, muito absurdo.

— Mas por que o senhor acha que esse caso é absurdo? Não me parece nem um pouco.

— É o que o senhor diz, entendendo que não há nada de irreal nisso. Aqui mesmo, na semana passada, aconteceu uma coisa parecida. Chegou um funcionário, mais ou menos como o senhor hoje, trazendo um anúncio que, pelos meus cálculos, deveria custar-lhe uns dois rublos e setenta e três copeques, e onde se lia sobre a fuga de um cachorro de pêlo preto. Assim, à primeira vista, parece não haverá nada demais, não é mesmo? Pois bem, saiu o anúncio e o cachorro era, na verdade, o tesoureiro de uma instituição cujo nome não me lembro agora.

— Mas eu quero anunciar a respeito do meu próprio nariz e não a respeito de nenhum cachorro, quero dizer, é um caso em que o interessado sou eu mesmo.

— Não, senhor! Anúncio assim não posso publicar. — Mas se de mim fugiu meu próprio nariz! — Nesse caso, o problema deve ser resolvido por um médico. Dizem que

existem médicos que são capazes de recolocar um nariz muito bem. Alias, pelo que eu estou vendo, o senhor parece ser um homem alegre e que gosta de se divertir em

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sociedade. — Juro perante Deus que estou falando a verdade. Mas, se essa é a sua opinião,

vou lhe mostrar o que aconteceu... 93

— Não se incomode — prosseguiu o empregado, enquanto tomava uma pitada de rapé. — Mas, se não for do seu desagrado — acrescentou, com curiosidade —, gostaria até de dar uma olhada.

O inspetor-geral retirou o lenço do nariz. — Realmente é bastante extraordinário! — exclamou o empregado. — O lugar

está completamente liso, como se tivesse sido pressionado. Sim, senhor, uma inacreditável planície!

— E agora, o senhor vai continuar argumentando? Acabou de ver por que sou obrigado a publicar esse anúncio. Muito lhe agradeceria, e além disso me sinto reconfortado, pois, graças a esse acontecimento, tive o prazer de conhecê-lo.

Como se pode ver, o major, desta vez, resolvera ser mais condescendente. — Naturalmente, publicar o anúncio não apresenta nenhuma dificuldade —

falou o empregado —, mas não vejo nisso qualquer tipo de vantagem para o senhor. Se necessita mesmo de tal publicação, procure então alguém que seja dotado de intelecto, um artista da pena, que poderá descrever isso tudo como um raro fenômeno da natureza e publicá-lo no jornal Abelha Siberiana — e tomou uma pitada de rapé —, para a curiosidade de todos.

Kovaliov sentiu-se totalmente desorientado. Fixou os olhos no jornal, na parte dos anúncios de espetáculos, logo quase sorrindo ao perceber o nome de uma bela atriz, e chegou a meter a mão no bolso: certificava-se de haver trazido dinheiro suficiente, pois, na sua opinião, os oficiais do Estado-Maior deviam ocupar as poltronas — mais eis que a lembrança da ausência do nariz terminou com a sua alegria.

Parecia que o próprio empregado do jornal sentia-se penalizado com a situação de Kovaliov. Para amenizá-la, passou a expressar-se com palavras mais amáveis:

— Lamento muito o que lhe aconteceu, parece até piada. O senhor aceitaria uma pitada de rapé? Alivia dores de cabeça e melhora o estado de espírito; até mesmo para as hemorróidas ele é ótimo.

E, ao falar, o funcionário estendeu a bolsinha de rapé a Kovaliov, colocando com rapidez a tampa com o retrato de uma senhora de chapéu para baixo.

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Gesto fora de propósito, que muito chateou Kovaliov. — Não consigo compreender como o senhor queira me gozar, 94 ainda por cima — exclamou, cheio de raiva. — Por acaso não percebe o senhor que não tenho os meios necessários para cheirar o seu rapé? Vão para o inferno, o senhor e o seu rapé! Não consigo nem olhar para isso, não apenas o seu ordinário tabaco nem mesmo meu próprio rapé.

E, assim falando, profundamente irritado, retirou-se do jornal e saiu às pressas para a casa do delegado do distrito (grande amante de açúcar, em cuja residência o vestíbulo, servindo também de sala de jantar, ficava entulhado de pacotes de açúcar que lhe ofereciam os comerciantes abastados). Talvez a hora fosse inoportuna: a cozinheira ajudava o delegado a tirar o uniforme, a espada e demais apetrechos. O filho de três anos já brincava com o temido chapéu de três pontas, e o próprio delegado preparava-se para os prazeres da vida, depois de um dia de lutas e chateações. Sim, Kovaliov chegou precisamente na hora em que o delegado se espreguiçava, rosnando: "Ah! que coisa boa dormir umas duas horas no maior sossego!" Por isso seria de se supor que Kovaliov chegara num momento inapropriado; e eu não saberia dizer-lhes se ao menos, mesmo que houvesse trazido alguns gramas de chá ou cortes da melhor fazenda, teria ele acolhida mais cordial. Em parte, era um homem que amava todas as artes e manufa-turas em geral; mas preferia, acima de tudo, as apólices do Estado. "Quando têm valor", dizia quase sempre, "são superiores a qualquer coisa: nada pedem de comer, não ocupam muito espaço, sempre cabem no bolso e, quando caem, não correm o risco de se quebrar."

O delegado recebeu e escutou Kovaliov secamente; disse-lhe depois que, após o almoço, não era hora para investigações, que a própria natureza exige repouso para a digestão (de tais palavras deduziu Kovaliov que o delegado estava familiarizado com as prescrições dos antigos sábios). Além disso, não parecia possível ao delegado, que não se tirava fora assim o nariz de um homem respeitável (já que existem muitos majores neste mundo que, não tendo nem roupa íntima decente, acabam se imiscuindo por lugares inconvenientes e inapropriados).

Palavras estas que acertaram na mosca. É preciso explicar, aliás, que Kovaliov era homem muito desconfiado. Perdoaria tudo que se dissesse sobre ele, mas não admitia de forma alguma que lhe ofendessem o título e a hierarquia. Acreditava mesmo que deveriam ser cortadas das peças de teatro todas as críticas a oficiais

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95 superiores, especialmente aos do Estado-Maior, os quais nem de leve poderiam ser afetados. Ressentira-se tanto da recepção que o delegado lhe proporcionara que, balançando a cabeça com um grave ar de dignidade e gesticulando muito, esbravejou: "Depois dessas observações injuriosas de sua parte, nada mais tenho a acrescentar..." — e saiu.

Quase sem sentir seus próprios passos, retomou à sua casa. Anoitecia. Sua morada pareceu-lhe tristonha e desagradável, depois de todas aquelas inúteis investigações. Já na ante-sala, viu no sujo divã de couro seu lacaio Ivan, que, de costas, cuspia no teto, acertando com muita pontaria a mira escolhida. Aquela displicência irritou-o demais: bateu com o chapéu na testa do rapaz e gritou: — Seu porco, sempre se distraindo com brincadeiras estúpidas! O criado deu um pulo do divã e correu para tirar o capote do patrão. Exausto e acabrunhado, já no quarto, Kovaliov jogou-se na poltrona; suspirando, balbuciou:

— Meu Deus! Meu Deus! Por que tanta desgraça? Se me faltasse um braço ou uma perna, qualquer coisa seria melhor; se não tivesse orelhas... seria horrível, mas ainda assim tolerável; mas um homem sem nariz é qualquer coisa de insuportável: pássaro não é, muito menos cidadão, não passo de uma coisa inútil que se pode jogar fora pela janela! Se ao menos ele tivesse sido cortado numa guerra, ou num duelo, ou se eu mesmo fosse o culpado; mas não, à toa, sem mais nem menos, sem nenhuma causa, desaparecera-lhe o nariz!... Não, não podia ser, balbuciava e pensava. É inacreditável que justamente seu nariz pudesse ter desaparecido assim; de forma nenhuma, não é verdade. Com toda a certeza eu estou sonhando, ou um pesadelo ou uma bebedeira; quem sabe se por engano, em vez de água eu bebi o álcool de passar no rosto depois de me barbear. O imbecil do Ivan não guardou o álcool direito e eu acabei bebendo-o.

Para se convencer de que não estava bêbado, deu um beliscão em si mesmo, com tamanha força que acabou berrando. A dor convenceu-o de que não se tratava de um sonho, que estava vivendo aquilo tudo de verdade. Lentamente aproximou-se do espelho e apertou bem os olhos, na esperança de que o nariz estivesse em seu devido lugar; na mesma hora, porém, recuou, exclamando:

— Mas que coisa mais insuportável! De fato, era inacreditável. Se tivesse perdido um botão, uma colher

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96 de prata, um relógio ou outra coisa qualquer... mas logo o nariz, justamente algo de tão precioso; como? e, o cúmulo, na sua própria casa!... O major Kovaliov esforçou-se ao máximo para chegar à verdade e acabou concluindo que a culpada, no fim das contas, não seria ninguém mais do que ela própria, Podtochina, que alimentava planos de casá-lo com a filha. Não que fosse desinteressante fazer-lhe a corte, mas daí ao matrimónio... No entanto, quando a esposa do capitão do Estado-Maior disse abertamente que o aceitaria como marido da filha, como quem não quer nada ele tratou de desconversar, ao mesmo tempo em que elogiava a garota, e que ainda se sentia muito jovem, precisava trabalhar mais uns cinco aninhos, quando completasse quarenta e dois... Com certeza, devido a isso, a esposa do capitão do Estado-Maior havia se vingado, proporcionando-lhe aquele terrível defeito, com a ajuda de feiticeiras. Por outro lado, não conseguia admitir que lhe tivessem cortado o nariz; ninguém entrara em seu quarto; na quarta-feira o barbeiro Ivan Iacovlievitch lhe fizera a barba, durante o dia todo da quinta-feira o nariz permanecera são e salvo no seu apropriado lugar — tinha certeza absoluta. Além do mais, teria sentido dor e, fora de qualquer dúvida, a ferida não iria cicatrizar com tanta rapidez e ficar assim tão polida e lisa de uma hora para a outra. Dava tratos à bola: fazia planos de processar a esposa do capitão do Estado-Maior, ou seria melhor ele mesmo procurá-la para esclarecer tudo. Suas elucubrações foram interrompidas por fiapos de luz que passavam pelas frestas, sinal de que Ivan acendera uma vela no corredor. Em seguida apareceu o lacaio em pessoa carregando a luz, que iluminou o quarto todo. O primeiro impulso de Kovaliov foi apanhar um lenço e esconder o espaço até ontem ocupado pelo nariz, para que o imbecil do lacaio não ficasse apavorado ao ver o patrão em tão estranho estado.

Mal desaparecera de volta o criado, ouviu-se na ante-sala uma voz desconhecida perguntando:

— É aqui que mora o inspetor-geral Kovaliov? — Entre. O major Kovaliov está em casa — respondeu o próprio inspetor, que,

de um pulo, abriu a porta. Entrou um policial de aparência até simpática, com umas suíças nem muito claras nem muito escuras, bochechas gordas: enfim aquele 97

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mesmo policial que, no início desta história, estava parado na ponte de Isaías. — Por acaso foi o senhor que perdeu o nariz? — Sim senhor, eu mesmo. — Ele já foi encontrado. — Não me diga, verdade mesmo? — exclamou o major. Tanta felicidade

provocou-lhe a perda da voz. Olhava ansiosamente para o guarda de quarteirão, cujos lábios e bochechas tremeluziam à luz da vela.

— Mas como foi que o encontraram? — De um modo bem estranho: foi achado em plena rua. Já estava sentado na

diligência para ir até Riga. Tinha até passaporte, com o nome de um funcionário qualquer. E o mais curioso foi que eu mesmo quase que o ia tomando por um cidadão. Felizmente trazia meus óculos, e na mesma hora pude verificar que se tratava de fato de um nariz. Acontece que eu sou míope, se o senhor se colocar à minha frente conseguirei apenas vislumbrar seu vulto, o restante, os detalhes, nariz, queixo, não consigo distinguir. Minha sogra, quer dizer, a mãe da minha mulher, também não enxerga coisa nenhuma.

Kovaliov não conseguia se controlar. — Mas me diga lá, onde está o nariz? Vamos já já buscá-lo! — Calma, não precisa ficar nervoso. Como sabia que o senhor tinha necessidade

dele, eu o trouxe comigo. Pois fique sabendo, o mais estranho em tudo isso é que o principal responsável por esta história, o barbeiro espertinho da rua Voskressienskaia, encontra-se neste momento detido na delegacia. Vinha suspeitando dele há muito tempo, um bêbado e ladrão que roubou uma dúzia de botões de uma loja, há três dias. Seu nariz está como sempre foi, não sofreu nenhuma escoriação.

O guarda então meteu a mão no bolso e de lá tirou o nariz embrulhado num papel.

— Mas é ele, é ele mesmo! — exclamou Kovaliov. — É realmente o meu nariz! Hoje o senhor está convidado a tomar uma chávena de chá em minha companhia.

— Teria muito prazer, mas de forma alguma posso aceitar daqui sigo para o hospício... Está tudo pela hora da morte. Tenho lá em casa a sogra, quer dizer, a mãe da minha mulher, e os filhos; o mais velho 98

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promete: um garotinho muito inteligente, só não tenho condições de proporcionar a ele uma educação...

(Kovaliov, percebendo aonde o subalterno queria chegar, apanhou na mesa uma nota de dinheiro e colocou-a em sua mão; ele despediu-se com bons modos, desaparecendo; pouco depois ouviu-se-lhe a voz a berrar para um camponês ignorante que, descuidado, entrara com a carroça calçada acima.)

Saído o guarda, Kovaliov permaneceu alguns minutos em perplexidade, e só tempos depois readquriu controle sobre suas reações; sentiu-se então tomado de uma felicidade inesperada. Com extremo cuidado, segurou por entre as mãos bem fechadas o tão procurado nariz e uma vez mais contemplou-o com a maior atenção.

— Veja só! Ele mesmo, o meu nariz! — exclamava Kovaliov. — Olha, até aquela espinha que me apareceu ontem do lado esquerdo.

Tal a sua alegria que quase deu uma boa gargalhada. Mas nada é eterno neste mundo de Deus, razão pela qual, passado o primeiro

momento, sua felicidade já não era tão esfuziante assim; no terceiro, enfraqueceu-se mais ainda, e por fim confundiu-se ela com outros estados de espírito, como os círculos que se criam na água quando se joga uma pedra. Pensando de novo, Kovaliov se deu conta de que o caso ainda não chegara ao fim: era verdade, o nariz fora encontrado, fazia-se no entanto necessário recolocá-lo em seu respectivo lugar.

— E se o danado não se adaptar e não ficar bem grudado? Empalideceu diante da pergunta feita a si mesmo. Cheio desse inexplicável sentimento de horror, sentou-se à mesa e aproximou-se

do espelho; não queria, por mero descuido, colocar o nariz numa posição torta. Suas mãos tremiam. Com o máximo de atenção e cuidado, repôs o nariz em seu respectivo lugar. Que horror! O nariz não grudava!... Enfiou-o na boca para aquecê-lo um pouco com o hálito. Recolocou-o no espaço liso que via no rosto; mas tudo inútil, de maneira nenhuma o nariz ficava preso. — Vamos! Sobe, idiota! — gritava para o nariz. Mas ele, parecendo de madeira, caía na mesa, provocando um som esquisito como o de uma rolha. O rosto de Kovaliov se contorcia em caretas. — Será que não cola mesmo? — falou sozinho, assustado. Todos os seus 99

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esforços se revelaram inúteis: tantas vezes repunha-o no respectivo lugar, tantas caía o nariz.

Chamou Ivan e mandou que saísse à procura de um médico que, naquele mesmo prédio, ocupava o melhor apartamento do andar térreo. Era pessoa de respeito, com suíças escuras, tinha uma jovem esposa cheia de saúde e que comia logo cedo maçãs frescas e mantinha a boca numa excepcional higiene, gargarejando todos os dias por três quartos de hora, e lavando os dentes com cinco escovas diferentes. O médico chegou logo. Perguntou ao inspetor-geral como lhe acontecera aquela desgraça; levantou o queixo do major Kovaliov e deu um piparote para valer no espaço antes ocupado pelo nariz, com tanta força que Kovaliov bateu com a cabeça na parede. O médico disse que aquilo não era nada de importante, e pediu-lhe que se afastasse um pouco da parede; mandou que virasse a cabeça primeiro para o lado direito, apalpou o espaço ocupado antes pelo nariz e observou: "Hum!"; finalmente deu mais um piparote, com tal cuidado que o major Kovaliov ergueu a cabeça de sopetão, como se fosse um cavalo a que se examinasse os dentes. Depois de tantos exames, o doutor sacudiu a cabeça e falou:

— Não, não pode ser. É melhor que o senhor continue assim para não piorar ainda mais a sua situação. Claro que o nariz poderia ser recolocado, eu mesmo o faria imediatamente; asseguro-lhe porém que seria pior para o senhor.

— Ótimo, e como é que vou ficar sem o nariz? — perguntou Kovaliov. — Pior do que está, impossível. Francamente, isso é obra do diabo. Como vou me apresentar na sociedade com este rosto deformado? Sou homem muito bem-relacionado. Hoje mesmo deveria comparecer a duas recepções à noite. Meu círculo de amizades é grande: a conselheira de Estado Tchechtariova, Podtochina, esposa do capitão do Estado-Maior, se bem que, depois do que ela me fez, só poderia me relacionar com ela através da polícia. Faça-me o favor — e a voz de Kovaliov era suplicante: — será que não haveria mesmo um jeito... de grudar este nariz?... mesmo que ele apenas fique no seu lugar e eu precise levantá-lo levemente com a mão? Além do mais, não costumo dançar, quer dizer, não vou prejudicá-lo com um movimento inesperado. Quanto a seus honorários, pode ficar tranquilo que aquilo que estiver ao meu alcance... 100

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— Pode acreditar — disse o médico a meia voz, embora suficientemente empostada e segura: — eu não atendo paciente por interesse. É contra os meus princípios e a minha profissão. Claro, cobro minhas visitas, mas somente para não ofender os clientes me recusando a tal. É bem verdade que colocaria seu nariz no lugar, mas asseguro-lhe pela minha honra, já que não parece acreditar no que digo, seria muito pior para o senhor. Deixe como está que a própria natureza se encarregará do resto. Pode lavá-lo com água fria quantas vezes quiser, posso garantir que mesmo sem nariz haverá o senhor de sentir-se tão bem, gozando de tanta saúde, como se ele não lhe fizesse falta. O nariz, deve o senhor colocá-lo num vidro com álcool, ou melhor, acrescentando a ele duas colheres de sopa de vodca forte misturada a vinagre quente, e assim poderá até lucrar alguns trocados com ele. Eu mesmo poderia comprá-lo, se o senhor não exagerar no preço.

— Não, não, não o venderia por preço nenhum neste mundo! — bradou Kovaliov, desesperado. — Prefiro mesmo que ele apodreça na minha frente!

— Desculpe — exclamou o médico, despedindo-se. — Quis apenas ser de alguma utilidade ao senhor... Nada a fazer! Tenho certeza de que o senhor haverá de reconhecer meus esforços para ajudá-lo.

Dizendo isso saiu o médico, com seu porte nobre e garboso. Kovaliov nem sequer reparou na sua fisionomia, e com profunda apatia só conseguiu ver-lhe os punhos da camisa de cambraia branca como neve, a se fazerem notar sob as mangas do fraque escuro.

Antes de levar a questão à polícia, no dia seguinte resolveu escrever à esposa do capitão do Estado-Maior, para ver se ela se dispunha a restabelecer a situação anterior, sem relutância. Eis a carta:

"Excelentíssima Senhora

Alexandra Grigorievna Não consigo compreender essa estranhíssima iniciativa de sua parte. Fique certa de que nada lucrará com isso, e nem poderá de nenhuma forma me obrigar a casar com sua filha. A história do meu nariz já está perfeitamente 101

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esclarecida, e sei que a senhora e mais ninguém é a principal autora desta farsa. O desaparecimento instantâneo do meu nariz, a fuga e o disfarce na figura de um funcionário não significam outra coisa que o resultado de bruxaria produzida pela senhora ou por aquelas que, sob sua instigação, cometem tais atos. Da minha parte, sinto-me na obrigação de preveni-la: se meu nariz, do qual tratei nas linhas acima, não estiver hoje mesmo localizado no lugar que lhe é devido, ver-me-ei obrigado a apelar para a defesa e proteção das leis.

Sem mais, tenho a honra de subscrever-me seu humilde servo

Platon Kovaliov."

..................................................................................................................................................

"Excelentíssimo Senhor

Platon Kovaliov

Estou deveras espantada com sua carta. Francamente, confesso-lhe que jamais poderia esperar de sua parte tão injustas advertências. Necessito esclarecer-lhe que jamais recebi em minha casa o empregado* a que se refere, nem disfarçado nem ao natural. É verdade que Felipe Ivanovitch Potachikov costuma frequentar minha casa. E, embora aspirasse o senhor à mão de minha filha, tendo primorosa educação e vasta cultura para tanto, jamais alimentei esperanças nesse sentido. Fala o senhor também a respeito do nariz. Se o senhor entende que pretendo deixá-lo sem nariz, isto é, dar-lhe uma resposta formalmente negativa, estará então bastante enganado, pois o senhor mesmo deve saber que sou de opinião contrária, e se nesta hora mesmo resolver pedir-me minha filha em

_________________________________ * Confusão com Nóssov, nariz, e nome próprio. 102

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casamento de um modo honrado e leal, estarei pronta a satisfazê-lo incontinenti, posto que esta sempre foi a minha maior aspiração, na esperança da qual, sempre às suas ordens, reitero-me sua

Servidora atenta

Alexandra Podtochina."

.....................................................................................................................................................

— Não! — disse Kovaliov, terminada a leitura. — Ela não é a culpada. Impossível! Uma carta tão ingénua jamais poderia ter sido escrita por alguém culpado de um crime. (O inspetor era experiente em relação a casos desse tipo, pois, ainda na região do Cáucaso, fora obrigado várias vezes a fazer investigações semelhantes.) Como então acontecera tudo aquilo com ele? — Nem o diabo em pessoa conseguiria decifrar a charada! — murmurou afinal, deixando cair os braços. Enquanto isso, um zunzum a respeito do estranhíssimo acontecimento espalhava-se pela cidade, e, como sói acontecer, com dados adicionais. Na época, o espírito das pessoas estava preparado para todo tipo de exagero: havia pouco o povo se intrigara com experiências de magnetismo. Na memória coletiva pairava ainda a história das cadeiras dançantes da rua Koniuchniai, razão por que ninguém se perturbou quando surgiu o boato de que o nariz do inspetor-geral Kovaliov passeava todos os dias por volta das três horas pela avenida Niévski. Os curiosos afluíam em massa. Alguém afirmava que o nariz havia entrado na loja do Iunker: uma multidão aglomerou-se diante da loja — foi preciso chamar a polícia. Um camelo de aparência respeitável, de suíças, e vendendo pastéis duros na porta dos teatros, construiu especialmente para a ocasião sólidos banquinhos e os alugava por oitenta copeques. Um coronel aposentado saiu de casa mais cedo e, com muita dificuldade, conseguiu um lugar no meio da multidão, embora tenha ficado furioso ao ver na vitrine da loja, não o nariz, mas uma simples camiseta de lã e uma litografia representando uma jovem cerzindo meias, vendo-se por trás de uma árvore um almofadinha de barba e colete com lapelas viradas a fitá-la — quadro pendurado naquele mesmo lugar há mais de dez anos. Indignado, retirou-se, 103

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murmurando: "Como é que pode ficar enganando o povo com estas conversas absurdas e bobas?"

Correu em seguida o boato de que o nariz do inspetor Kovaliov passeara pelos jardins de Tavrich e não mais pela avenida Niévski, e isso há muito tempo; que o próprio Kozrev Mirzat* se assustara com aquela estranha brincadeira da natureza. Alguns estudantes de medicina correram para lá. Uma aristocrata, muito conhecida e distinta, pediu, através de carta ao vigia do jardim, que mostrasse aquele raro fenômeno a seus filhos, se possível acompanhado de explicações educativas e edificantes, como apropriado aos jovens.

Os mundanos de sempre ficaram muito satisfeitos com tais ocorrências — os infalíveis frequentadores da aristocracia, que se ocupavam em distrair as senhoras mas cujas reservas de assunto há muito haviam se esgotado. Um grupo pequeno de notáveis e respeitáveis se aborrecia com a história toda. Zangado, dizia um senhor que não conseguia compreender como era possível, num século civilizado, propagarem-se invencionices tão absurdas, razão pela qual, na sua opinião, deveria o governo tomar sérias providências a esse respeito. Era o tipo de cavalheiro, com certeza, que até nas brigas com a esposa pretendia envolver o governo. Em seguida... mas uma espessa neblina encobria tudo o mais, e por isso o que aconteceu depois jaz na mais completa obscuridade.

III Despropósitos acontecem neste mundo. Às vezes sem mesmo qualquer tipo de verossimilhança: pois não é que de repente o famoso nariz que passeara disfarçado de conselheiro de Estado e que causara tanto transtorno na cidade reapareceu sem mais nem menos no seu verdadeiro lugar, ou seja, exatamente entre as duas bochechas do major Kovaliov?! Foi no dia 7 de abril. Ao acordar, Kovaliov mirou-se distraidamente no espelho e o que viu ele? O nariz! Apalpou-o — era o nariz mesmo! "Ué!", exclamou Kovaliov, que, de tão alegre, começou a pular descalço no meio do quarto; mas justamente nesse momento, _____________________________________________ *Príncipe persa de um conto então famoso de Griboiedov. 104

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Ivan, ao entrar no aposento, conseguiu perturbar seu justificado contentamento. Na mesma hora Kovaliov mandou que buscasse água e, lavando-se, olhou-se mais uma vez no espelho: o nariz! Enxugou-se, contemplou-se novamente: o nariz!

— Veja só, Ivan, parece que durante a noite nasceu uma espinha no meu nariz —disse, ao mesmo tempo em que pensava: "Que horror, meu Deus, se Ivan me responder: Não, senhor, não estou vendo nem espinha nem o próprio nariz!"

Ivan, no entanto, observou: — Não, senhor, não há nenhuma espinha: seu nariz está totalmente limpo. — Ótimo, que vá tudo para o diabo que o carregue! — murmurou para si mesmo,

e estalou os dedos. Naquele momento, apareceu porta adentro o barbeiro Ivan Iacovlievitch,

assustado como um gato surpreendido ao roubar presunto. — Pode me responder antes de mais nada: tuas mãos estão limpas? — gritou

Kovaliov de longe. — Limpas, sim, senhor. — Está mentindo! — Juro por Deus que estão limpas, Excelência. — Está bem, mas veja lá, hein! Kovaliov sentou-se. Ivan Iacovlievitch colocou a toalha em volta do queixo do

major e, com o auxílio de um pincel de barba, num instante transformou-lhe o queixo e parte da bochecha naquele tipo de creme que só se serve em aniversário de ricos comerciantes.

— Quem diria! — falou sozinho Ivan Iacovlievitch ao contemplar o nariz de Kovaliov. Logo virou-lhe a cabeça e olhou as laterais do nariz. "Puxa, está aí mesmo! Só de me lembrar...", prosseguiu em seu diálogo interior, fixando demoradamente aquele nariz. Até que, bem de leve, com extrema cautela, levantou dois dedos para segurar a pontinha do nariz. Sempre fora esse o seu método de trabalho.

— Epa, cuidado! — gritou Kovaliov. Ivan Iacovlievitch deixou cair as mãos, intimidado e confuso como nunca. Depois, cuidadosamente, começou a acariciar o queixo com a navalha; e, mesmo tendo dificuldade em barbeá-lo sem segurar a pontinha do nariz, pelo menos de leve, a parte olfativa do 105

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corpo, apoiando seu dedo grosso e áspero na face e lábios do major, conseguiu por fim ultrapassar todos os obstáculos e deu a barba por feita.

Trabalho concluído, Kovaliov apressou-se a se vestir, chamou uma carruagem e partiu para a confeitaria. Mal entrou, disse em voz alta: — Ó garçom, me traga uma xícara de chocolate! — e disparou para o espelho: o nariz continuava firme no lugar certo. Voltou-se repleto de alegria e com ar brincalhão, piscando um olho, encarou dois oficiais, tendo um deles um nariz do tamanho de um botão de colete. Partiu em seguida para a repartição, onde estava cavando sua promoção a vice-governador. Ao atravessar a ante-sala, contemplou-se mais uma vez no espelho: lá continuava o nariz no lugar! Em frente, visitou um colega, inspetor ou major, que sempre fora muito gozador e a quem Kovaliov dizia sempre: "Pois sim, já te conheço muito bem: és um boa-vida." Antes, pensara: "Se o próprio major não morrer de rir, significa que eu posso ficar tranquilo, quer dizer que tudo está em seus respectivos lugares." Mas o inspetor não deu a menor bola para o caso. "Está muito bem, o diabo que te carregue!", pensou Kovaliov. Pelo caminho, cruzou com Podtochina, a esposa do oficial do Estado-Maior, que vinha em companhia da filha. Saudou-as, e ambas responderam com exclamações de alegria: portanto, não havia qualquer defeito físico nele. Conversou com elas por um bom tempo, tirando propositadamente a caixinha de rapé e enchendo ambas as narinas, e pensou, como sempre: "Como as mulheres são tolas! De qualquer modo, não me casarei com a filha. Assim, apenas par amour — ora!" E a partir daquele dia Kovaliov passou a flanar com tranqüilidade pela avenida Niévski, a freqüentar teatros e a aparecer em tudo que era lugar. O nariz também o acompanhava, bem-acomodado no respectivo lugar, nem de longe demonstrando que dali se afastara por alguns dias. E, seguindo-se a tantas coisas esquisitas, o major Kovaliov mostrava-se sempre de bom humor, a sorrir e paquerando as moças bonitas. Uma vez chegou até a parar em frente a uma loja da Praça Gostinal, para comprar uma fita comemorativa, sabe-se lá de quê, pois jamais fora condecorado por qualquer merecimento.

* * *

106

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Eis uma história que aconteceu em uma capital do norte do nosso vasto império! Só agora, depois de muito refletir, percebemos que há nela muita inverossimilhança. Sem mencionar a estranha e impressionante fuga do nariz, que aparecia em diversos lugares disfarçado de conselheiro de Estado, não se compreende como possível o fato de Kovaliov não ter percebido a extrema improbabilidade de se publicar um anúncio a respeito da fuga do seu próprio nariz. Não falo da questão do ponto de vista monetário: seria absurdo, pois não pertenço a esse tipo de gente atrasada. Mas seria indigno, desagradável e mesmo inapropriado. Mais ainda: como conseguiu o nariz surgir assim dentro do pão quentinho e como o próprio Ivan Iacovlievitch... Não, não, não entendo, não consigo compreender em absoluto um caso deste tipo! E o que é ainda mais estranho e incompreensível — como é possível que os autores possam escolher semelhantes assuntos? Confesso que isso me parece um enigma, quer dizer... não, não, me recuso a compreender. Em primeiro lugar, não se trata do bem da pátria; em segundo... mas em segundo, tampouco dele a gente tira qualquer proveito. Com toda a simplicidade, afirmo não saber a que atribuir isso...

No entanto, pensando bem, ainda que admitamos a primeira, a segunda e a terceira hipótese, nem por isso poderemos... mas onde não acontecem coisas absurdas? Em todo caso, refletindo melhor, haveremos de concordar que alguma coisa existe nisso tudo. Pensem lá o que lhes parecer conveniente, mas saibam todos que tais fatos acontecem neste mundo — sim, é verdade que raramente, mas acontece cada coisa... 107/108

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LIMA BARRETO

O carioca Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881. Escritor urbano, com ênfase nos tipos populares e

suburbanos, nos humildes e ofendidos, deixou alguns romances hoje clássicos da literatura brasileira: Recordações do

Escrivão Isaías Caminha, Triste Fim de Policarpo Quaresma e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá,

entre outros. Foi jornalista atuante e um satírico irreverente do "país de Bruzundangas", como ele chamava o Brasil. Em

1922 — ano de sua morte e ano também do nosso Modernismo, do qual ele foi um precursor —, publicou o livro de contos

Histórias e Sonhos. E em 1923, as sátiras póstumas de Os Bruzundangas. Toda sua obra, no entanto —

com muitos inéditos —, só foi lançada décadas depois, sob os cuidados de Francisco de Assis Barbosa, autor também de

uma biografia do escritor. O conto "Nova Califórnia" serviu de argumento do filme Osso, Amor e Papagaio, de César

Mêmolo e Carbs Alberto, nos anos 50 — e da novela Fera Ferida, da TV Globo, em 1993. Neste mesmo ano, a Editora

Revan publicou a antologia de contos e sátiras Nova Califórnia e Outras Histórias.

109/110

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Nova Califórnia

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas atravessadas, livros, pacotes...

Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda lhe perguntaram que trabalho lhe tinha sido determinado.

— Vou fazer um forno — disse o preto — na sala de jantar. Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão

extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia — um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.

O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.

Chico da Tirana, o carteiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" 111

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em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a fantasia de toda uma população.

Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.

Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico, também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico que viera habitar a cidade.

De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do crepúsculo, todos se descobriam*, e não era raro que às "boas-noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrerem e morrerem.

Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.

Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gastado toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...

Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e, não o era, unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.

Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão de ver", dizia ele, "quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."

______________ * Tiravam o chapéu. 112

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A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto

despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e, mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de resto'..." E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa amarga.

Toda a vila de Tubiacanga se acostumou a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...

Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro", dizia o agente do Correio, "que..." Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evan-gélica: "Não diga 'asseguro', senhor Bernardes; em português é 'garanto'."

E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro de seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se, agora, para combater aquele rival, que surgia tão inopina-damente.

Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia suas contas, como era generoso — pai da pobreza —, e o farmacêutico vira seu nome citado como químico de valor. 113

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II

Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí a visitar fosse quem fosse, e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e o atendeu.

Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:

— Doutor, seja bem-vindo! O sábio pareceu não se surpreender, nem com a demonstração de respeito do

farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docentemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:

— Desejava falar-lhe em particular, senhor Bastos. O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem cujo

nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz, que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral*, onde macerava uma tisana qualquer.

Por fim, achou aos fundos, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se, e Flamel não tardou a expor:

— Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...

— Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.

— Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária... __________________________________________________ *Almofariz; recipiente para triturar e homogeneizar substâncias sólidas. 114

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Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou: — Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio,

compreende? — Perfeitamente. — Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de

uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...

— Certamente! Não há dúvida! — Imagine o senhor que se trata de fazer ouro... — Como? O quê? — fez Bastos, arregalando os olhos. — O senhor saberá — disse o químico secamente. — A questão do momento são

as pessoas que devem assistir à experiência, não acha? — Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto... — Uma delas — interrompeu o sábio — é o senhor; as outras duas o senhor

Bastos fará o favor de indicar-me. O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus

conhecimentos, e, ao fim de uns três minutos, perguntou: — O Coronel Bentes lhe serve? Conhece? — Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui. — Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto. — É religioso? Faço-lhe esta pergunta — acrescentou Flamel logo — porque

temos que lidar com ossos de defunto, e só estes servem... — Qual! É quase ateu... — Bem! Aceito. E o outro? Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a

sua memória... Por fim falou: — Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece? — Como já lhe disse... — É verdade. É homem de confiança, sério, mas... — Que é que tem? — É maçom. — Melhor.

E quando é? 115

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— Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência, e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticarem a minha descoberta.

— Está tratado. Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga

foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.

III

Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.

O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato* por ocasião das eleições municipais; mas, entendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.

Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo-santo!

Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou

_____________________________________________________________ * "Assassinato", na época, era considerado um galicismo (de assassinat). O correto seria, ou era, assassínio. 116

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demônio? O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.

A indignação em Tubiacanga tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar — os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensor Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro-residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la — a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura, o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?

Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de quem ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí, Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem-feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...

O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na história do crime", dizia ele, "já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do Sossego." E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, 117

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gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança... O saque, porém, continuava. Toda a noite eram duas, três sepulturas abertas e

esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. A população inteira resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.

Organizaram, então, uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.

Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação até aí sopitadas no ânimo deles não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões que os deixaram estendidos como mortos.

A notícia correu logo de casa em casa, e quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro, e o companheiro que fugira era o farmacêutico.

Houve espanto e houve esperança. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade?

Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!

O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que o ano passado conseguiu comprar uma casa, mas que ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado 118

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para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde da Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...

Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.

A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça à espera do homem, que tinha o segredo de todo um Potosí.* Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro, que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo", gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.

Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.

O sucesso chegou à casa do engenheiro-residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra coisa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, coisa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma coisa outra era "besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a coisa era possível.

À noite, porém, o doutor, percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emflia, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, as criadas — toda a

____________________________________________________________ * Histórica cidade boliviana, rica em prata nos séculos passados e, por isso, famosa no mundo todo. 119

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população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico encontro no Sossego. E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie* das sepulturas, arrancava as carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia, e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...

A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazerem a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur, e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou o pai: "Papai, vamos aonde está fulana; ela era tão gorda..."

De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência: Uma única pessoa lá não estivera nem profanara sepultura: fora o bêbado Belmiro. Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, ao que viam, mesmo à fuga do farmacêutico, com seu Potosí e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas. _______________________ * Podridão. Literalmente, pus. 120

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O Homem que Sabia javanês

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado a certas convicções e respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blás* vivido, até que, em uma pausa de conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: — Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo! — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado! — Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil pitoresco. — Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas da vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês! — Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado? _______________________________________________________________ * As Aventuras de Gil Blás, de Alain René Lesage, obra-prima do romance de aventura de sua época. (O livro é de 1715.) 121

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— Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso. — Conta lá como foi. Bebes mais cerveja? — Bebo. Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei: — Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia

fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Commercio o anúncio seguinte:

"PRECISA-SE DE UM PROFESSOR DE LÍNGUA JAVANESA. CARTAS ETC."

Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse* quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres"**. Insensivelmente, dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colónia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A enciclopédia dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia, e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras.

Na minha cabeça, dançavam hieróglifos; de quando em quando, consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.

___________________________________________________

* Aqui, com humor, o autor aportuguesa um verbo italiano — compreender. **Gíria da época: suas "vítimas". 122

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À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu abecê malaio, e com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

— Senhor Castelo, quando salda a sua conta? Respondi-lhe, então, com a mais encantadora esperança: — Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de

javanês, e... Pois aí o homem interrompeu-me: — Que diabo vem a ser isso, senhor Castelo? Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem: — É uma língua que se fala lá pelas bandas de Timor. Sabe onde é? Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com

aquele falar forte dos portugueses: — Eu cá por mim não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá

para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, senhor Castelo? Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio.

Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, na rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder — "como está o senhor?" — e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico. 123

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Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil — podes ficar certo — aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam, e os beirais do telhado daquelas telhas vidradas de outros tempos estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou malcuidadas.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos a balão; mas daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza de louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos... Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte* de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona __________________ * Fumo — no caso, rapé. 124

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do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei. — Eu sou — avancei — o professor de javanês, que o senhor disse precisar. — Sente-se — respondeu-me o velho. — O senhor é daqui, do Rio? — Não, sou de Canavieiras. — Como? — fez ele. — Fale um pouco alto, que sou surdo. — Sou de Canavieiras, na Bahia — insisti eu. — Onde fez os seus estudos? — Em São Salvador. — E onde aprendeu o javanês? — indagou ele, com aquela teimosia peculiar

aos velhos. Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira.

Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara, e fora com ele que aprendi javanês.

— E ele acreditou? E o físico? — perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.

— Não sou — objetei — lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, curtos e grossos, e a minha pele basanée* podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaxes, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

— Bem — fez o meu amigo —, continua. — O velho — emendei eu — ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:

— Então, está disposto a ensinar-me javanês? A resposta saiu-me sem querer: — Pois não. — O senhor há de ficar admirado — aduziu o Barão de Jacuecanga—que eu,

nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas... ____________________________ * Do francês, basaner, amorenar. 125

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— Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... — O que eu quero, meu caro senhor...? — Castelo — adiantei eu. — O que eu quero, meu caro senhor Castelo, é cumprir um juramento de

família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidade para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai — continuou o velho barão—não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, e não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou-os discretamente e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha de rosto, e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito. 126

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Logo informei disso o velho barão, que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até afinal contratarmos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguiu aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês, e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.

Mas com que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah!, onde estava!"

O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão) era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim, outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do cronicon*. Como ele ouvia aquelas bobagens!...

Ficava extático, como se estivesse a escutar palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!

Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Eu passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança _____________________ * Antigos livros genealógicos.

127

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de um seu parente esquecido, que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo*. "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui.. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um êxito.

O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!"

Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses, e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então, sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!"

O tal amanuense, que me olhou, com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.

A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pincenê no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem", disse o ministro, "o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério, e quero que, para o ano, parta para Bali, onde nos vai representar no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!"

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o País em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente, e fez-me uma deixa no testamento.

_______ * Filipino. 128

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Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não havia meio! Bem-jantado, bem-vestido, bem-dormido, não tinha energia necessária para fazer

entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês!" Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber, e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commercio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

— Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro. — Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de

dicionários e umas poucas de geografia, e depois citei a mais não poder. — E nunca duvidaram? — perguntou-me ainda o meu amigo. — Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um

marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — ui!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na secção de tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bali o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por ter-me dado aquela secção; não conhecia os meus trabalhos e julgava que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a secção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi. 129

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Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bali em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Não perdi meu tempo, nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória pública e, ao saltar no cais Pharoux*, recebi uma ovação de todas as classes sociais, e o presidente, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia, no palácio.

Dentro de seis meses, fui despachado cônsul em Havana, onde estive anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.

— É fantástico — observou Castro, agarrando o copo de cerveja. — Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser? — Quê? — Bacteriologista eminente. Vamos? — Vamos.

______________________________ * Nome, na época, do cais do Rio de Janeiro. 130

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ARKADI AVERCHENKO

Filho de negociantes, Arkadi Averchenko nasceu em Sebastopol, na Rússia, em 1881. Aos 15 anos, já publicava

seus primeiros contos humorísticos. Pouco antes da Grande Guerra de 1914, tornou-se uma celebridade nacional, graças

à revista Satiricon, por ele fundada. Foi considerado "o rei do humor russo". Em 1918, com a ascensão comunista, sua revista foi fechada, e ele, obrigado a emigrar, mudou-se para Praga. São muitos os contos e novelas que produziu até sua

morte, em 1924.* ____________________________________ * Tradução cotejada com o original por Flávio Alves. 131/132

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Odisséia de uma Vaca

O que mais me revolta é pensar que algum leitor mal-humorado, depois de ler o que aqui conto, possa fazer uma careta e dizer, em tom que não admite réplica:

— Na vida real, tudo isso é impossível. Ora, pois afirmo que é possível, sim. O leitor, lógico, poderá replicar: — Poderia nos apresentar alguma prova? Prova? Como provar uma coisa destas? Meu Deus, é muito simples: o fato é

possível porque aconteceu. Espero que não me exijam outras provas. Olho o leitor nos olhos e afirmo com toda a convicção: o fato deu-se no mês de

agosto, numa cidadezinha do sul. Mas, enfim, o que há de tão extraordinário nesta história? Não se organizam sorteios nas festas populares, nos jardins públicos? Sim,

organizam-se. E não oferecem como prêmio máximo uma vaca viva? Sim, oferecem. Qualquer pessoa que tenha comprado um bilhete não pode ganhar a vaca em questão? Sim, pode.

Muito bem, é isso aí. Essa vaca é comparável à clave de um trecho de música. É óbvio: convencionou-se que toda música deve ser tocada de acordo com a clave. Ou então nem eu nem o leitor entendemos patavina de música.

* * * 133

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No parque que contorna o rio, organizaram um grande baile popular por ocasião de uma festa religiosa. Havia duas orquestras, uma gincana com corrida de sacos e corrida de ovos. Chamava-se ainda a atenção para a loteria com muitos e valiosos prêmios, entre os quais uma vaca viva, um gramofone e um samovar de imitação de prata.

O baile foi um sucesso, e a loteria teve grande aceitação. O caixeiro de uma fábrica de amido, Pétia Smirnov, foi para o parque em

companhia de Nástia, da encantadora Nástia que embelezava sua insípida existência. Quando chegaram, a festa estava no auge. Muitos jovens já havia corrido, com as pernas dentro de sacos de farinha presos acima da cintura, o que, por sinal, representava o empacotamento do nobre esporte das "corridas de sacos". Outro grupo de jovens esportistas já desfilara diante do público, com os olhos vendados, levando com o braço estendido uma colher com um ovo. A metade dos bilhetes já fora vendida...

Nástia, de repente, apertou o braço do companheiro e sugeriu: — Que acha, Pétia, de tentarmos a sorte... Pode ser que ganhemos alguma coisa! Pétia, como um cavalheiro, não se opôs. — Nástia — disse —, sua vontade é uma ordem para mim. E precipitou-se para a roda da loteria. Com um gesto digno de um Rothschild, lançou seu penúltimo rublo e,

mostrando à companheira dois pequenos bilhetes enrolados, propôs: — Pode escolher! Um é seu, o outro é meu. Nástia, depois de muito hesitar, escolheu o seu, desenrolou-o e, proferindo um

"zero!" desanimado, atirou-o no chão. Pétia, ao contrário, emitiu um grito de triunfo: "Ganhei!"

E acrescentou, contemplando Nástia amorosamente: — Se for espelho ou algum perfume, é seu. Dirigiu-se em seguida para a barraquinha e perguntou: — Senhorita! O número quatorze... Qual é o prêmio do número quatorze? — Do quatorze? Um momentinho... Mas é a vaca! O senhor ganhou a vaca! Todos queriam felicitar o felizardo, e Pétia compreendeu que na

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vida há momentos inesquecíveis cuja glória perdura por muito tempo, clareando, como faróis luminosos, o triste caminho da rotina cotidiana. E — tal o tremendo efeito da riqueza e da glória — a própria Nástia perdeu o encanto aos olhos de Pétia. Veio-lhe logo a idéia de que outra garota, muito mais atraente, poderia embelezar-lhe a vida totalmente.

— Mas me diga — interrogou Pétia, depois de serenarem o entusiasmo e a inveja dos espectadores.— Será que posso levar minha vaca?

— Com certeza. Ou será que o senhor não prefere vendê-la? Por 25 rublos ficamos com ela.

Pétia soltou uma risadinha. — Ha ha! Quer dizer que vocês anunciam que "o valor da vaca ultrapassa 150

rublos" e agora oferecem 25? Ha, não! Tinha graça. Pode me dar a minha vaca e estamos conversados.

Com uma das mãos agarrou a corda amarrada nos chifres da vaca, com a outra segurou o braço de Nástia e, alegre, exultante de felicidade, disse:

— Vamos para casa, minha querida, não temos mais nada a fazer aqui. Nástia estava um tanto ou quanto chocada com a companhia daquele ruminante

de olhar meditabundo. Timidamente, objetou: — Mas... você mesmo vai levá-la?... Eu à esquerda, ela à direita? — E por que não? É uma vaca como outra qualquer, ora. Além disso, a quem eu

poderia confiá-la, aqui? Pétia Smirnov era inteiramente destituído de senso de humor. Foi por isso que

não se deu conta um momento sequer no que havia de grotesco naquele pequeno grupo saindo do parque: ele, Nástia e a vaca.

Ao contrário, perspectivas fantasiosas de riqueza delineavam-se à sua frente, e a imagem de Nástia começava já a perder pouco a pouco o seu encanto...

Nástia, franzindo a testa, perscrutou Pétia com o olhar, e seu lábio inferior pôs-se a tremer...

— Escute, Pétia...Você não vai me acompanhar até em casa? — Sim, por que não iria? — Mas... e a vaca? — Mas em que está ela nos atrapalhando?

Então você pensa que eu iria atravessar a cidade na companhia 135

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desse animal ridículo? Minhas amigas dariam boas gargalhadas, e os moleques de rua iriam me gozar!

— Bem... — disse Pétia, depois de pensar —, vamos pegar um carro. Ainda me sobraram 30 copeques.

— E... a vaca? — Ela vai atrás, amarrada. Nástia ficou rubra de indignação. — Quem você acha que eu sou? Só falta me propor que eu vá montada na sua

vaca! — Você se acha engraçada? — perguntou Pétia em tom de desprezo. — Aliás,

não estou te compreendendo. Seu pai é dono de quatro vacas. Como pode você ter medo de uma, apenas? Minha vaca não tem nada de diabólica!

— Não podia tê-la deixado no parque até amanhã? Será que iriam roubá-la? Um tesouro desses!... Meu Deus!

— Como você quiser — e Pétia levantou os ombros; estava irritado. — Se minha vaca não lhe agrada...

— Quer dizer que você não vai me levar...? — E a vaca, onde é que eu vou pôr a vaca? No meu bolso é que não pode ser... — Muito bem! Pois seja! Volto para casa sozinha! E não cometa a burrice de

aparecer lá amanhã! — Como você quiser! — Pétia fez um gesto de cumprimento; estava ofendido.

— Tampouco aparecerei depois de amanhã; posso mesmo nunca mais aparecer, se esta for a sua vontade... — Lógico. Você encontrou agora a companhia que lhe convém! Ofendendo-o com seu sarcasmo, Nástia apressou-se em afastar-se de cabeça curvada, sentindo que o coração se partia para sempre. Por instantes, Pétia olhou Nástia se afastando. Logo voltou a si...

— Eia! vaca!... Vamos em frente, amiga. Enquanto Pétia e a vaca seguiam pela rua escura que margeia o parque, tudo foi muito bem,

mas, assim que desembarcaram na Rua da Nobreza, movimentada e iluminada, Pétia sentiu-se meio atrapalhado. Os passantes olhavam para ele espantados, e um menino ficou tão excitado que soltou um grito agudo e pôs-se a berrar — Olha o novilho levando sua mãe para dormir! 136

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— Vou te dar um tapa para você aprender a ficar quieto! — disse Pétia, em tom de ameaça.

— Pois dê! Te pago com a mesma moeda! Pura bravata. O menino não corria nenhum risco; Pétia não podia soltar a corda.

A vaca, aliás, apenas caminhava, com vagar. Ao chegar no meio da Rua da Nobreza, Pétia não conseguiu mais suportar a

expressão irônica dos transeuntes. Procurou uma saída: soltou a corda e, dando pontapés na vaca, obrigou-a a andar sozinha. Ele próprio, simulando distração, prosseguia seu caminho a certa distância, como um transeunte qualquer que nada tivesse a ver com aquele animal. Quando a vaca diminuía o passo, detendo-se bovinamente debaixo de alguma janela, Pétia reiterava discretamente os pontapés, e o bicho voltava a trotar...

Chegaram assim à rua onde morava Pétia. Era uma pequena casa na qual ele alugava um quarto — residência de um moleiro. De uma hora para outra, como um relâmpago, uma idéia subiu-lhe à cabeça:

— Mas onde irei guardar esta vaca? Claro, não havia estábulo na casa. Prendê-la no pátio seria arriscar-se a ser

roubado, tanto mais que a portela não fechava. — Tenho uma ideia — decidiu-se Pétia, após laboriosa meditação. — Vou

introduzi-la com cuidado no meu quarto e amanhã tudo se arrumará.Afinal de contas, não há nada demais no fato de uma vaca passar uma noite dentro de um quarto...

Devagar, o feliz proprietário da vaca abriu a porta de entrada, puxando atrás de si, com mil cuidados, o melancólico animal:

— Vamos, por aqui... Psiu! Os donos da casa estão dormindo... Não bate tanto com os cascos!... Na pontinha dos pés, animal!

É bem possível que o comportamento de Pétia, nesta situação, seja considerado por todos estranho, absurdo, incrível. A única pessoa que não pensava desta forma era o próprio Pétia. E talvez a vaca. Ora, o próprio Pétia não via outra solução para o problema. E, quanto à vaca, parecia-lhe a mesma coisa dormir num quarto como num estábulo.

No quarto, a vaca parou, indiferente, próxima à cama de Pétia— e começou a mastigar a ponta do travesseiro.

— Psiu!... bicho ruim. Pastando meu travesseiro! Será que está com fome? Ou com sede? Pétia encheu uma bacia d’água e colocou-a sob o focinho do 137

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animal. Depois, pé ante pé, saiu da casa, quebrou alguns ramos de árvore e, de volta, colocou-os cuidadosamente na bacia.

— Aí está... Hum... Como é o teu nome? Nieta? Coma! Vamos, coma! A vaca mergulhou a cabeça na bacia, passou a língua nas folhas e, de repente,

erguendo a cabeça, pôs-se a mugir ruidosamente. — Psiu, bicho ruim!... — gemeu Pétia, perdendo a calma. — Silêncio! — e

praguejou. Atrás de Pétia a porta rangeu de mansinho. Um homem nu, envolto num cobertor,

olhava o quarto e, depois de verificar o que se passava, recuou com uma exclamação de medo.

— É você, Ivan? — sussurrou Pétia. — Pode entrar, não tenha medo... Estou com uma vaca no meu quarto.

— Você enlouqueceu, Pétia? Onde foi arranjar esta vaca? — Ganhei-a na loteria. Come, Nieta, come. Cuidado!... Huê! Assim... — Mas... não se pode dormir com uma vaca dentro do quarto — objetou o outro,

sublocatário, aborrecido, sentando-se na cama. — Se os donos da casa souberem, vão jogar você porta afora!

— Ora, é só até amanhã. Ela passará a noite aqui e depois dá-se um jeito. — Mu... u... Mu... — mugiu a vaca, como se concordasse com o dono. — Idiota! Já calada! Me dá este cobertor aqui, Ivan, vou enrolá-lo na cabeça dela.

Um momento! O que fazer? Eis o bicho, agora come o cobertor. Diabos! Pétia jogou a coberta na cabeça da vaca e deu um soco com força na cabeça do

animal, bem entre os olhos. — Mu-u... Mu-u!... — Você vai ver — disse o sublocatário. — O senhorio vai acabar aparecendo e

vai jogá-lo na rua, você e a vaca. — Mas o que eu posso fazer? — gemeu Pétia, desesperado. — O que é que você

me aconselha? — Aconselhá-lo?... E se a vaca passar a noite toda mugindo? Sabe o que você deve

fazer? Matá-la. — Como matá-la?

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— É muito simples. Matá-la. E amanhã você vende a carne para os açougueiros. Os dotes intelectuais da visita não eram, de fato, superiores aos do dono do quarto. Pétia contemplou o sublocatário com ar estúpido e, depois de instantes de

hesitação, observou: — Que lucro teria com isso? — Como assim? Esta vaca deve pesar uns trezentos quilos... Poderá vendê-la a

uns cinco rublos por arroba, o que já representará uns cem rublos de lucro. Sem contar o couro e o resto. Não lhe darão mais do que isto por ela viva.

— Você acha mesmo? Mas como iria matá-la? Tenho uma faquinha de sobremesa, sem fio. Tenho ainda uma tesoura.

— Isso aí, e se lhe enfiássemos a tesoura pelos olhos até atingir o cérebro?... — Mas e se o bicho resolver se defender? E gritar?... — É verdade. Não poderíamos envenená-la? — Uma boa idéia: poderíamos dar um narcótico para ela dormir. Mas onde

arrumar um narcótico? — Mu... Mu... u... u—mugiu a vaca, olhando o teto com olhos redondos e néscios. Ouviram alguém se mexer atrás do tapume e da porta. Alguém que chiava, limpava

a garganta e soltava palavrões. Depois ouviu-se um rumor de pés descalços a se aproximar; a porta abriu-se com um estrondo e, diante de Pétia, confuso, surgiu o senhorio, desgrenhado e sonolento.

Olhou para a vaca, depois para Pétia, rangeu os dentes e, sem fazer perguntas inúteis, emitiu duas palavras curtas porém enérgicas:

— Fora daqui! — Deixa eu explicar, Alexandre Fomitch... — Fora daqui! Que eu não te veja nunca mais! Vou te ensinar a não fazer

escândalo! — Bem que eu avisei — observou calmamente o sublocatário, como se tudo

tivesse se resolvido às mil maravilhas. E enrolou-se num cobertor pronto a meter-se na cama. Era noite alta quando Pétia se viu na rua com a vaca, sobre a qual colocara sua maleta, seu travesseiro e sua coberta. 139

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— Ande, caminhe, seu camelo! — disse Pétia com voz sonolenta. — Não podemos ficar aqui parados.

Aos poucos dirigiram-se para a saída da cidade. Depois de passar pelas casinhas suburbanas, entraram numa estepe deserta, fechada de um lado por uma cerca. Pétia quase desmaiava de cansaço. — Estou com vontade de cochilar um pouco ao lado desta cerca —murmurou. — E a vaca, amarro no meu braço.

Foi assim que Pétia, joguete de um destino caprichoso, adormeceu profundamente.

* * *

— Bom dia, senhor! — disse uma voz ao seu lado. Era uma manhã clara e alegre.

Pétia abriu os olhos e se espreguiçou. — Senhor! — disse o camponês, tocando-o com a ponta do tamanco. — O

senhor amarrou o braço na árvore. Que idéia mais esquisita! Pétia estremeceu como que picado por uma vespa, e soltou um profundo

gemido: a outra extremidade da corda estava fortemente amarrada a um raquítico arbusto.

Alguém supersticioso teria imaginado que, durante o sono, uma força misteriosa metamorfoseara a vaca em arbusto; mas Pétia era apenas um rapaz essencialmente prático.

Soluçou e começou a berrar: — Roubaram!... Roubaram a minha vaca!

* * *

— Devagar — disse o comissário. — O senhor fica repetindo "roubado" e "vaca". Afinal, do que é que se trata? Que espécie de vaca exatamente?

— Como, que espécie de vaca? Ora, uma vaca igual às outras vacas. — De que cor? — Ora, o senhor sabe... castanha... com manchas brancas. — Onde eram as manchas?

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— O focinho, se não me engano, o focinho era branco. Não, espere aí... A cabeça é que era branca... E as costas... E também a cauda... Resumindo: era igualzinha a todas as outras vacas.

— Não — exclamou categoricamente o funcionário, empurrando uma folha de papel. — Não posso sair à procura de sua vaca baseado em informações tão confusas. Existem milhares de vacas no mundo!

E o pobre Pétia dirigiu-se, muito desapontado, para sua fábrica de amido... Doía-lhe o corpo todo por ter dormido encolhido devido ao frio. O chefe o aguardava, com a censura engatilhada, pois já passava do meio-dia...

O pobre Pétia começou a meditar sobre a vaidade de todas as coisas; na véspera, possuía tudo: uma vaca, um teto, uma namorada; hoje, tudo perdera: a vaca, o teto, a namorada.

Estranhos são os caprichos da sorte, e todos nós, enquanto existimos, não passamos de escravos resignados e cegos do Destino. 141/142

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J. SIMÕES LOPES NETO

Um dos mais importantes, e um dos mais populares escritores regionalistas brasileiros. João Simões Lopes Neto

nasceu (9/3/1865) e morreu (14/6/1916) em Pelotas, Rio Grande do Sul. Freqüentou o Colégio Abílio, no Rio de

Janeiro, onde começou a estudar medicina. Por razões de doença, voltou para sua cidade aos 22 anos. Foi "industrialista",

comerciante, notário, jornalista, funcionário público, conferencista, dramaturgo, professor e sobretudo contista.

Publicou Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913). Seu “Casos do

Romualdo” — de onde escolhemos os dois contos da presente antologia — foi descoberto na imprensa do interior por Carlos

Reverbel e publicado em livro pela antiga Editora Globo, em 1952. O autor avisa que seu humor não se destina "aos

frívolos", mas às "mais elevadas das criaturas: a criança" — também, claro, à criança que existe em nós.

143/144

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O Papagaio

O reverendo Padre Bento de S. Bento — que o senhor talvez conhecesse, não? — era um santo homem paciente — paciente! paciente! — como naquela época outro não houve.

Nos circos de burlantins muita cousa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios, cabras que fazem provas, cavalos dançarinos e burros que a dente pegam o palhaço pelo... atrás das pantalonas; mas a paciência para esse ensino não pode comparar-se, não se pode, com a do reverendíssimo.

O Padre Bento, farto de aturar sacristães e não querendo estragar a sua paciência, que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.

Preparava as galhetas, o missal etc.; depois pachorrentamente paramentava-se e pachorrentamente esperava a hora de oficiar ; chegada, encaminhava-se para o altar, e começava e concluía, parte por parte, tudo muito em ordem.

Mas o filé, o bem-bom era quando entrava a ladainha: ele cantava o nome do soneto e uma vozinha esquisita, porém muito clara, respondia logo:

— O-o-a por nob-s! E os fiéis, em seguida, pela pequena nave afora, acudiam ao estribilho: — Ora pro nobis!

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Dessas ladainhas assisti eu a muitas, na capelinha de S. Romualdo, que era próxima à nossa casa, na Vila de...

Agora sabem quem cantava as ladainhas do Padre Bento? Era o Lorota, um papagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante... Com ele diverti-me muitas vezes: — Lorota, dá cá o pé! E ele, ensinado pelo padre, respondia, amável! Coitado!... O padre morreu e o Lorota, não tendo mais a quem dar contas, fugiu. Passaram-se os anos. Uma vez, estava eu na Serra, numa espera de onça, quando senti — confesso, não

medo, mas um arrepio de... frio — quando ouvi, nas profundezas do mato virgem, uma ladainha religiosa!...

E pausada, afinada, bem puxada em suma! Seria um sonho?... Estaria eu errado na tocada das onças, e, em vez de estar na

floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança de algum convento, de alguma capela, de alguma romaria?...

E a ladainha, compassada e cheia, vinha se aproximando: — Bento S. Bento! — Ora pro nobis! — Santo Atanásio! — Ora pro nobis! — S. Romualdo! — Ora pro nobis! Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas a ver se

bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente; nada! Nisto, a ladainha pousou nas árvores, por cima de mim. Pousou, sim, é o termo

próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o papagaio do Padre Bento, era o Lorota!

A paciência do bicho!... Ensinar, direitinho, aos outros, a cantoria toda!... Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real, e perguntei para

cima: — Lorota? Dá cá o pé!...

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Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou-me com a antiga resposta que ele sempre dava:

— Romualdo é bonito! Bonito!... E como para obsequiar-me fez um — crr! — como aviso de comando e

recomeçou a ladainha: — Bento S. Bento! — Ora pro nobis! — Santo... Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso... o Lorota e seu bando bateu

asas... e eu olhei em frente: a sete passos de distância estava agachada, de bocarra aberta, pronta para o salto, uma onça dourada, uma onça ruiva, uma onça de braça e meia de comprido!...

E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante. — Or...a pro no...bis! S... Ro... mual... do! Ora... pro... nobis!...

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O Tatu-Rosqueira

Já em rapaz eu ouvira falar numa raça de tatus-rosqueira, porém punha minhas dúvidas nessas histórias.

Passaram-se os anos; caminhei muito, muito, aconteceu-me muito, mas de tatu-rosqueira, nada!

Pois dessa feita, no Rincão das Tunas, vi; do outro lado do rio Camaquã, com estes que a terra há de comer, vi... e se me fosse contado não acreditaria.

Periga a verdade, mas lá vai, e, demais, estavam presentes o capitão Felizardo, já falecido, o licenciado Silvinha (que perdi de vista), além dos peões, sem falar nos cachorros, por sinal bons tatuzei-ros.

É sabido que as jararacas andam sempre em casal e que se alguém mata uma pode também matar a outra, no mesmo lugar, porque a viúva vem pelo rastro da companheira; se se carrega a primeira, por exemplo, para perto de casa, é contar que a outra aí vem dar; quer dizer, o bicho acompanha o seu defunto, ou seja pelo faro, ou pela dor da saudade, com os olhos da alma...

Sabe-se também — isso eu vi, vezes e vezes! — que o lagarto conduzido pela cauda, semimorto ou semivivo (há diferença entre estes estados de saúde), quando menos se espera, quebra o rabo e escapa-se.

A perdiz finge de morta: fecha os olhos, afrouxa o pescoço, relaxa as asas e... zuct!... de repente apruma-se e desfere o vôo. 148

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O zorrilho... Esta pequena divagação, que pode parecer maçante, é necessária e vem apenas

provar que todo animal tem um instinto muito particular para certas aflições em que se encontra.

Era por uma bonita noite de luar. Estávamos mateando e pitando*; conversa vai, conversa vem, quando o major Felizardo lembrou que podia divertir-nos proporcionando-nos uma caçadita aos tatus.

— E tatu-rosqueira, então, que é praga!... — concluiu o major. A este dito, saltei. — Pois há?... — inquiri. — Xi! Assim!... E o major juntou em molho os dedos das duas mãos, e assobiou comprido. Aprestamo-nos e saímos rumo do rincão. De chegada soltamos os cachorros, e daí a um quase-nada já lhes ouvíamos o

ganiçado. Começamos a bater as tocas. Aquilo foi rápido. Havia mesmo muito tatu! Cachorro farejava, cavava na entrada da toca, e nós já rente, de enxada, dá-le que

dá-le! Eu é que tive a sorte de descobrir o primeiro tatu; o primeiro tatu, não, o primeiro

rabo de tatu. E no que o descobri, agarrei-o. Tironeei, tironeei e nada, o bicho não vinha; já ia meter o dedo... sabem, hein?... quando o licenciado Silvinha gritou-me:

— Não faça isso, Romualdo... Destorça a rosca do rabo!... — Quê? — Sim, e para a esquerda, a modo de parafuso inglês! Sem ter consciência do que fazia, às mãos ambas dei umas quantas voltas para a

esquerda, e qual não foi o meu espanto quando senti que efetivamente aquilo cedia, afrouxava, desatarraxava-se!... E fiquei com o rabo na mão... sem o tatu!

Pelos outros lados os companheiros andavam na mesma faina. Algo desapontado, indaguei do licenciado:

— E agora?... — Passe a outro. Guarde esse rabo aí no saco; daqui a pouco você verá o resto!

_______________________ * Tomando chimarrão e fumando 149

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Aquilo era curioso, passei a outra cova, a mesma manobra: outro rabo no saco; outra e outra, e assim porção delas.

A certa altura o tenente-coronel deu ordem de parar, pois não poderíamos transportar toda a caçada; o saco estava cheio a mais de meio.

Eu estava desconfiado e furioso, mas disfarçando, achava esquisito vir ao mato caçar tatus e só levar-lhes as caudas...

Mas o coronel Felizardo fez um sinal e logo nos arrolhamos em volta do saco; fez-se silêncio e daí a pouco começou a tatuzada a sair das tocas — desrabados todos —, e vieram se chegando para o saco, focinhavam nele e ficavam quietos, como viúva velha chorando na cova de marido novo...

Aí então é que era pegar e sangrar tatu!... Foi uma senhora matança! Fizemos umas quantas enfiadas e voltamos para casa vergando ao peso da caçada. Eu, por mim, confesso, estava atônito!

Em caminho é que o brigadeiro Felizardo me foi contando a cousa pelo miúdo. — Romualdo, você conhece o tatu-peludo ou o de-rabo-mole, o bola, o guaçu e

outros; mas parece que este nunca viu... — De ouvido, sim! — Ora! Ouvir falar é uma cousa, ver é outra... Este tatu tem o rabo como uma

rosca, por isso se chama rosqueira; caçá-lo é facílimo: descoberta a toca, basta poder agarrá-lo pela cauda e em vez de puxar destorcê-la e depois levá-la para um pouco distante, naturalmente o rosqueira sente falta do peso do rabo e pelo faro vai em busca, acha-o e começa logo a cavar no chão um buraco estreito e fundo, entra então com o focinho a dar voltas e mais voltas à cauda solta, e tanto trabalha que fá-la cair de ponta para baixo no buraco que preparou: então, chega-lhe terra e vai enchendo, de forma que a cauda pode ficar fincada como uma estaca, e quando ele sente que está firme, senta-se-lhe em cima e...

— E... parece incrível!... — E começa a andar à roda, à roda, sempre para a direita, até atarraxar-se de

novo ao rabo. No que está pronto vai-se embora! No dia seguinte fui ao mato sozinho, para verificar o caso. Descobri logo umas sete covas, portanto sete tatus; destorci sete rabos, pu-los no chão; trepei a uma árvore copada e esperei; vieram os 150

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tatus: vieram os tatus, fizeram os tais buracos, fincaram as caudas, sentaram-se em cima delas e começaram a rodar, a rodar, a rodar. Dentro em pouco um primeiro cessou o movimento e atirou-se para a frente, na sua posição natural, de quatro patas; e logo outro, enfim todos os sete, perfeitamente bons, enrabados, completos. Sem querer fiz um movimento, e os bichos fugiram rápidos como setas. Era a pino do meio-dia.

Para comer é que não são bons: têm a carne mui dura.

151/152

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FRANZ KAFKA

De família judia, mas de formação cultural alemã — a elite da Checoslováquia da época falava e escrevia a língua alemã —, Franz Kafka nasceu em Praga, em 1883. Depois

de sua morte nas proximidades de Viena, em 1924, passou a ser um dos escritores mais discutidos e "interpretados" do

século, a ponto de seu nome originar um adjetivo (kafkiano) de uso corrente e popular. Deixou grandes romances como

O Processo (1925), O Castelo (1926) e América (1927), o primeiro que escreveu. Em 1926, teve publicada a novela

(exemplar) A Metamorfose. A maior parte de sua obra saiu postumamente, caso de Carta ao Pai e de seu longo

Diário. Kafka escreveu muitas narrativas curtas, médias e longas, parábolas e fragmentos. O humor de Kafka talvez

nos pareça "frio", cerebral, exigindo um sutil senso de percepção. Sabe-se, por exemplo, que ele lia trechos do "sisudo"

romance O Castelo em voz alta para os amigos, e interrompia a leitura com acessos de riso. O humor tem dessas coisas.

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Possêidon

Possêidon sentou-se em seu escritório, revisando as contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho insano. Ele poderia ter quantos assistentes desejasse, e de fato tinha um grande número deles, mas, como levava seu trabalho muito a sério, teimava repassar os olhos por todas as contas, e assim seus assistentes de pouco lhe valiam. Não se pode dizer que se divertisse com a função; ele a levava adiante simplesmente porque era o que lhe haviam atribuído; em verdade, com freqüência, havia requisitado o que chamava de um trabalho mais alegre, mas sempre que várias sugestões lhe foram mostradas o resultado era que nenhuma delas lhe era adequada como o era sua presente ocupação. Desnecessário dizer, era muito difícil arrumar para ele uma outra profissão. Afinal, ele não poderia ser o responsável por um oceano em particular. Independentemente do fato de que num caso como este o volume de trabalho envolvido não seria menor, apenas mais aprazível, o grande Possêidon só poderia ocupar uma posição superior. E quando lhe foi oferecido um posto não relacionado com as águas, esta mera possibilidade fez com que ele se sentisse doente, sua divina respiração tornou-se escassa e seu peito de aço começou a arfar. Para falar a verdade, ninguém levou sua reação a sério; quando um homem poderoso se queixa espera-se que ele grite, por mais desesperante que seja o caso. Ninguém jamais, de fato, considerou a possibilidade de retirar Possêidon de sua posição; ele 155

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estava destinado a ser o Deus dos Mares desde os tempos imemoriais, e assim era que deveria prosseguir.

O que mais o entediava — e esta era a causa principal de seu desconforto com seu trabalho — era saber dos boatos que circulavam a seu respeito; por exemplo, que ele estava constantemente cruzando as ondas com seu tridente. E no entanto lá estava ele sentado nas profundezas do oceano do mundo revisando contas sem fim; uma viagem ocasional a Júpiter era a única interrupção desta monotonia, uma viagem no entanto da qual retornava invariavelmente furioso. Conseqüentemente, ele pouco viu dos oceanos, salvo a esquadra que o acompanhava à ascensão ao Olimpo, e na verdade nunca chegou a embarcar nela. Costumava dizer que estava adiando isso tudo até o fim do mundo, pois então deveria surgir um momento tranquilo quando, pouco antes do fim e tendo repassado a última conta, ele poderia ainda fazer uma rápida expedição pelos mares. 156

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O Novo Advogado

Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Há muito pouco em seu aspecto que nos lembre ter sido ele certa vez o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia. Claro, se você conhece sua história, você é pessoa bem-informada. No entanto, mesmo um simples meirinho, a quem eu vi outro dia nas escadas de entrada do Palácio da Justiça, um homem com a consideração profissional de um pequeno apostador das corridas, lançava seus olhos estupefatos para o advogado na medida em que ele subia os degraus de mármore levantando bem as pernas e fazendo ressoar suas pisadas. De um modo geral, a Ordem dos Advogados aprovou a admissão de Bucéfalo. Com admirável compreensão, diziam que, sendo a moderna sociedade o que é, Bucéfalo está em situação difícil, e portanto, considerando também sua importância na história do mundo, ele merecia, pelo menos, uma recepção amistosa. Atualmente — não se pode negar — não existe mais Alexandre o Grande. Há um grande número de homens que sabe matar pessoas; a destreza de atingir com a lança um amigo do outro lado da mesa de um banquete é coisa que não falta; e para muitos a Macedônia é demasiadamente estreita, tanto que estas pessoas amaldiçoam Felipe, o pai — mas ninguém, ninguém de fato conhece o caminho para as Índias. Mesmo na época de Alexandre as portas da Índia estavam fora de alcance, embora a espada do Rei apontasse o caminho para eles. Hoje as portas foram removidas para bem mais longe e para bem mais alto; ninguém mostra o caminho; 157

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muita gente usa espadas mas apenas para brandi-las, e o olhar que tenta segui-los se confunde. Portanto, talvez, o melhor é fazer o que fez Bucéfalo, e mergulhar nos livros de Direito. Sob a lâmpada tranqüila, os flancos libertos das esporas dos cavaleiros, livre e distante do clamor da batalha, ele lê e vira as páginas dos nossos antigos volumes. 158

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Pequena Fábula

— Ai de mim — disse o rato —, o mundo vai ficando cada vez mais estreito. Antigamente, tão grande era que fiquei com medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver que apareciam muros de ambos os lados do horizonte; mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no final do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair. — Mas o que tens de fazer é mudar de direção — disse o gato, e devorou-o. 159/160

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O. HENRY

William Sidney Porter nasceu na Carolina do Norte, EUA, em 1862. Teve uma vida atribulada e aventureira;

tentou várias profissões, entre elas - para aumentar o orçamento familiar - a de jornalista: começou a escrever

sketchs e contos para a imprensa, com o pseudônimo de O. Henry. Bancário no Texas, foi acusado de desfalque. Fugiu

para Nova Orleans e de lá partiu para a América Central. Voltou quando soube que sua mulher estava à morte.

Cumpriu cinco anos de prisão - um "bom" lugar para continuar escrevendo. Libertado antes de cumprir toda a pena, mudou-se

para Nova York, cidade que ele conquistaria (e por ela seria conquistado) já com seu livro de estréia The Four Millions

- alusão ao fato de a cidade ter chegado a este então incrível número de habitantes. A partir daí, publicou outras obras e obteve o conceito quase unânime de melhor contista norte-

americano da época. O. Henry morreu em Nova York em 1919. Por ironia, seu último conto é este "Permita-me Tomar

Seu Pulso", em que ele faz humor com sua própria doença, e com os tratamentos médicos.

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Permita-me Tomar Seu Pulso

Àquela altura fui consultar um médico. — Quanto tempo faz que o senhor introduziu alguma bebida alcoólica em seu

organismo? — perguntou o médico. Virando a cabeça para o lado, respondi: — Ah, faz tempo! Era um médico jovem, entre os vinte e os quarenta anos. Usava meias, mas se

parecia com Napoleão. Gostei muito dele. — Agora — me garantiu — vou lhe mostrar os efeitos do álcool na sua circulação. Creio que disse "circulação", embora também poderia ter sido "publicação". Desnudou meu braço esquerdo até a altura do ombro, agarrou uma garrafa de

uísque e me deu um gole. Começou a se parecer muito mais com Napoleão. Começou a me agradar muitíssimo mais.

Ato contínuo, colocou uma compressa apertada na parte superior do meu braço, segurou meu pulso com os dedos e introduziu um tubo de elástico conectado a um aparato similar a um termômetro apoiado em um suporte. O mercúrio deu um pulo para cima e para baixo sem dar sinais de se deter em parte nenhuma, mas o doutor afirmou que registrava 237 ou 165 ou qualquer outro número que fosse.

— Agora — disse — o senhor pode comprovar como o álcool afeta a pressão sanguínea. — Maravilhoso! — respondi. — Mas o senhor acredita que esta única averiguação 163

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seja suficiente? Dê-me mais um gole e vamos fazer um teste com o outro braço. Não concordou. Depois agarrou minha mão. Pensei que estivesse condenado e que se despedia de

mim. Mas só queria tirar com uma agulha o sangue de um dos meus dedos e comparar a gota vermelha com um monte de fichas de pôquer valendo meio dólar que amarrara a um cartão. — Esta é a prova da hemoglobina - explicou. - A cor do seu sangue não está boa.

— Bem — arrisquei —, sei que deveria ser azul, mas neste país as pessoas estão muito misturadas. Alguns dos meus antepassados foram distintos integrantes da sociedade inglesa, mas na ilha de Nantucket mantiveram relações com certas pessoas, de maneira que...

— Quero dizer -interrompeu- que o matiz vermelho mostra-se demasiado claro. — Ah — foi o meu comentário. A continuação me proporcionou fortes golpes na zona peitoral. Ao assim

proceder, não tinha certeza de quem ele me lembrava mais, se Napoleão, Battling ou Nelson. Logo adaptou-se a um ar grave e mencionou uma lista de doenças herdadas pela condição humana; a maioria terminava em ite. Em seguida paguei-lhe uma conta de quinze dólares.

— É, ou são algumas, ou qualquer uma delas, necessariamente fatais? — perguntei. Pensei que minha ligação com o assunto justificava o fato de demonstrar algum grau de interesse.

— Todas o são — respondeu animadamente. — Porém o avanço de cada uma delas pode ser contido. Com perseverança e um tratamento constante e apropriado, o senhor pode viver até os oitenta e cinco ou noventa anos.

Comecei a pensar nos honorários do doutor. — Oitenta e cinco anos serão mais do que suficientes, tenho certeza — foi

meu comentário. Paguei-lhe dez dólares a mais da conta. — A primeira coisa a fazer — afirmou, com renovada animação — é encontrar

um sanatório onde o senhor desfrute de repouso absoluto durante algum tempo, a fim de que melhore o estado de seus nervos. Eu mesmo o acompanharei e escolherei um local bem adequado.

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E então me levou a um manicômio na região de Catskill. Erguia-se em meio a uma montanha pelada, freqüentada apenas por infreqüentes freqüentadores. Nada mais se via do que cantos e penhascos, algumas manchas de neve e pinheiros desfolhados. O jovem médico que dirigia o estabelecimento era bastante agradável. Deu-me um estimulante sem colocar-me uma compressa no braço. Era a hora do almoço, e ele nos convidou a acompanhá-lo. No refeitório havia uns vinte residentes sentados às mesas pequenas. O jovem médico-diretor aproximou-se da nossa mesa e disse:

— Os hóspedes têm por costume não se considerarem pacientes, mas sim simples damas e cavalheiros fatigados e que se ocupam de descansar. Quaisquer que sejam as leves enfermidades de que porventura padecem, jamais fazem menção a elas durante as conversas.

Meu médico chamou a atendente e pediu-lhe em voz alta que me trouxesse para almoçar fosfoglicerato de cálcio moído, galhos secos, panquecas de bromo-seltzer e chá de noz-vômica.

Produziu-se então um som semelhante ao de um vento de tormenta quando subitamente se desloca por entre os pinheiros. Deveu-se isso a todos e a cada um dos hóspedes instalados no refeitório sussurrarem de um modo bastante audível "Neurastenia!", com exceção de um indivíduo que segurava um nariz ao qual com suma clareza ouvi-o dizer: "Alcoolismo crônico!" Espero encontrá-lo de novo. O médico-diretor deu meia-volta e se afastou.

Cerca de uma hora depois do almoço, ele nos acompanhou até a oficina, que ficava a uns cinqüenta metros da casa. Os hóspedes foram conduzidos ali pelo enfermeiro e pelo lugar-tenente do médico-diretor, um indivíduo que tinha pés e um suéter azul. Era tão alto que não tenho certeza que tivesse rosto, mas qualquer empresa de embalagens se sentiria deleitada com suas mãos.

— Aqui — disse o médico-diretor — nossos hóspedes descansam de suas angústias mentais do passado consagrando-se ao trabalho físico, ao entretenimento, na verdade.

Havia tornos giratórios, ferramentas de carpintaria, formas para modelar argila, teares, moinhos, aparelhos para ampliar retratos a lápis, instrumentos de ferreiros e, aparentemente, tudo quanto pudesse suscitar o interesse dos lunáticos hóspedes pagos de um sanatório de primeira categoria. 165

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— Essa dama que está fazendo pastéis de barro — sussurrou o médico-diretor — é nada mais nada menos que... Lulu Lullington... a autora do romance Por que o Amor Ama. Agora simplesmente descansa depois de tanto esforço.

Eu conhecia o livro. — Por que não consegue descansar escrevendo outro livro semelhante? —

perguntei. Conforme eles perceberam, eu não estava tão distraído quanto acreditavam. — O cavalheiro que está apanhando água com um coador — prosseguiu o

médico-diretor — é um poderoso agente da bolsa de Wall Street que se deixou abater por excesso de trabalho.

Abotoei o sobretudo. Outros residentes a quem ele assinalou eram arquitetos brincando com arcas de

Noé, religiosos lendo a Teoria da Evolução de Darwin, advogados serrando madeiras, fatigadas damas da sociedade falando sobre Ibsen com o empregado de suéter azul, um milionário neurótico que dormia no chão e um célebre artista que arrastava um pequeno carrinho vermelho pelo salão.

— O senhor tem um aspecto bastante vigoroso — me disse o médico-diretor. — Creio que, no seu caso, o descanso mental mais eficaz seria jogar pequenas pedras redondas ladeira abaixo e logo apanhá-las de novo no alto da montanha.

Falava comigo de uns cem metros de distância quando meu médico conseguiu me alcançar.

— Qual é o problema? — perguntou. — O problema —respondi— é que não há aviõezinhos à mão. Em conseqüência,

me disponho, feliz e pressurosamente, a recorrer à estradinha até a estação e tomar o primeiro trem expresso que me leve de volta à cidade.

— Bem — replicou ele —, talvez tenha razão. Dir-se-ia que este não é o lugar mais adequado para o senhor. No entanto, o que necessita é repouso, repouso absoluto e exercícios intensivos.

Naquela noite fui para um hotel no centro da cidade e disse ao recepcionista: — O que necessito é repouso absoluto e exercícios intensivos. Pode dar-me um quarto com uma dessas camas altas e dependuradas 166

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e um grupo de empregados que se alternem fazendo-a subir e descer enquanto eu descanso?

O sujeito da recepção tirou uma sujeira das unhas e olhou enviesado para um cara alto com um chapéu branco sentado na sala de espera. Aproximou-se e me perguntou gentilmente se eu vira o conjunto de arbustos junto à entrada lateral. Respondi-lhe que não; ele apontou para os arbustos e depois me olhou de cima a baixo.

— Pensei que estivesse me gozando — disse, com certa afetação —, mas percebo que o senhor é um tipo honesto. Não seria melhor que fosse consultar um médico, meu velho?

Uma semana depois meu médico voltou a verificar minha pressão sanguínea, abrindo mão porém do estimulante preliminar. Achei que se parecia um pouco menos com Napoleão. E usava meias de um tom neutro que não despertaram em mim qualquer reação.

— O que o senhor necessita — decidiu — é de ar marítimo e de companhia. — Talvez uma sereia... — comecei, mas ele prosseguiu imperturbável, com sua

entonação professoral: — Eu mesmo — garantiu — acompanhá-lo-ei ao Hotel Bonair, próximo da costa

de Long Island, e me encarregarei da sua recuperação. É um balneário aprazível e confortável, onde se recuperará rapidamente.

O Hotel Bonair acabou se revelando um estabelecimento de moda, equipado com novecentos quartos, situado em uma ilha nas cercanias da praia principal. Todos os que não se vestiam com etiqueta para jantar eram recolhidos à força para um restaurante lateral, e se lhes servia apenas tartaruga e champanhe em uma mesa comum. A baía era um enorme picadeiro freqüentado pelos iates de abastados proprietários. O Corsário ancorou ali no dia em que chegamos. Vi o sr. Morgan* de pé na coberta comendo um sanduíche de queijo e contemplando o hotel com ar de tédio. Apesar de tudo, era um lugar muito barato. Ninguém poderia se dar o luxo de reclamar dos preços. Quando alguém ia embora, simplesmente abandonava seu equipamento, se apoderava de um pequeno bote e pela noite ia remando até chegar em terra firme. Com um dia ali hospedado, procurei na recepção uma boa quantidade ________________________________ * Capitalista famoso, como Rockefeller e outros. 167

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de papéis com o emblema do hotel e comecei a escrever a todos os meus amigos, pedindo-lhes dinheiro para resgatar minha retirada. Meu médico e eu descobrimos uma partida de crocket nos campos de golfe e depois fomos dormir sob as árvores.

De volta à cidade, uma idéia ocorreu-lhe de súbito: — Por ora, como está se sentindo? — perguntou. — Aliviado de muitas coisas — respondi. Pois bem, um clínico é um profissional que tem características específicas. Não

se sente muito seguro de que irá ser pago ou não, e tal insegurança nos assegura ou a mais impecável ou a mais negligente das atitudes. Meu acompanhante me levou a um clínico. Ele deu um diagnóstico bastante vago e se esmerou muito em me oferecer os seus préstimos. Agradou-me bastante. Pediu-me que fizesse alguns exercícios de coordenação.

— Sente uma dor na parte posterior da cabeça? — perguntou. Respondi-lhe que não. — Feche os olhos — ordenou —, coloque os pés juntos e dê um pulo para trás o

mais longe que puder. Sempre fui um craque em dar saltos para trás com os olhos fechados, de

maneira que obedeci. Bati com a cabeça contra o canto da porta do banheiro, que ficara aberta a apenas um metro de distância. O médico disse que sentia muito. Não reparara que a porta estava aberta. Fechou-a.

— Agora toque o nariz com o dedo indicador da mão direita — disse. — Onde está...? — perguntei. — Na sua cara — me respondeu. — Refiro-me ao meu dedo indicador direito — expliquei. — Ah, perdão — disse. Voltou a abrir a porta do banheiro e tirei o dedo que

estava preso. Depois de cumprida a portentosa façanha digitonasal, esclareci: — Não é minha intenção enganá-lo no que diz respeito a sintomas, doutor. Sinto

realmente uma espécie de mal-estar na parte posterior da cabeça. Passou por cima do sintoma e me auscultou cuidadosamente o coração com um

estetoscópio cujos audífonos se pareciam aos das 168

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maquininhas-engole-moeda-que-a-preço-ínfimo-proporcionam-melodias-de-sucesso. Senti-me como uma canção popular.

— Agora — indicou — galope como um cavalo ao redor do consultório durante uns cinco minutos.

Imitei da melhor maneira que pude um percherão desqualificado da exibição, no momento em que o retiram do Madison Square Garden. Em seguida, sem que houvesse gastado uma só moeda, voltou a prestar atenção ao meu peito.

— Em nossa família não há tuberculoso, doutor — informei. O clínico susteve seu dedo indicador a dez centímetros do meu nariz. — Olhe meu dedo — ordenou. — Já tentou usar alguma vez o sabonete Pears...? — comecei, mas ele prosseguiu

rapidamente com seu exame. — Agora, olhe através da baía. Para meu dedo. Através da baía. Através da baía.

Para meu dedo. Através da baía... — e assim continuou por cerca de três minutos. Explicou que aquela era uma prova destinada a verificar a atividade do cérebro.

Pareceu-me fácil. Nem uma única vez confundi seu dedo com a baía. Aposto que se tivesse dito: "Olhe, por assim dizer despreocupado, em direção ao lado de fora... ou melhor, de soslaio... em direção ao horizonte, fixando-se, por assim dizer, naquela distante enseada"— e: "Agora retornando, ou melhor, até certo ponto, retraindo sua atenção, concentre-se no meu dedo indicador levantado", apostaria, repito, que até mesmo Henry James haveria de aprovar o exame.

Depois de me perguntar se por acaso alguma vez tive um tio-avô com irregularidades na coluna vertebral ou um primo com o pâncreas inchado, ambos os médicos se confinaram no banheiro e, para prosseguir a consulta, sentaram-se na borda da banheira. Comi uma maçã, e olhei primeiro meu dedo e depois através da baía. Quando abandonaram o recinto, a expressão dos dois era séria. Mais ainda, pareciam lápides sepulcrais ou jornaizinhos de paróquia distribuídos gratuitamente. Anotaram uma dieta alimentícia que eu deveria seguir estritamente. Poderia comer qualquer coisa que alguma vez ouvira falar, com exceção de caracóis. Nunca como caracol, a menos que ele me ataque e me morda primeiro. 169

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— Precisa seguir esta dieta rigidamente — garantiram os dois. — Eu a seguiria por um quilômetro se pudesse conseguir uma décima parte do

que ela contém — expliquei. — Em segundo lugar, o mais importante é o ar livre e exercícios intensos. Aqui o

senhor tem a receita de um medicamento que lhe fará muito bem. Ato contínuo, cada um de nós tomou alguma coisa. Eles dois tomaram seu chapéu e eu tomei o caminho de Villadiego. Fui procurar um farmacêutico e mostrei-lhe a receita.

— Vai lhe custar dois dólares e setenta e cinco a garrafa. — Será que poderia me dar um pedaço de barbante que usa para amarrar os

embrulhos? — solicitei. Fiz uns furos no papel, passei o fio por eles, pendurei-o no pescoço e coloquei a

receita debaixo da camisa. Temos todos nossas pequenas superstições, e a minha consiste em confiar nos amuletos.

De maneira que nada havia comigo, mas estava muito doente. Não me era possível trabalhar, dormir, comer ou jogar boliche. O único modo com o qual eu poderia conquistar alguma simpatia era andar circulando por ali depois de deixar passar quatro dias sem me cuidar externamente. Neste caso não faltava quem dissesse:

— Meu velho, tens um aspecto tão vigoroso quanto um pinheiro. Andaste passando férias nos bosques do Maine, não é mesmo?

Então, de repente, lembrei que precisava desfrutar do ar livre e fazer intensos exercícios. Por isso fui para o Sul, visitar John. John é um parente próximo, graças à lembrança de um pregador que estava com um livrinho na mão debaixo de alguns crisântemos enquanto cem mil pessoas contemplavam o espetáculo. John tem uma casa de campo a doze quilômetros de Pineville. Reside nos altos dos Montes Azuis, em um estado digno de ser arrastado pelas minhas controvérsias. John é malacacheta pura, que é mais valiosa e límpida do que ouro.

Encontramo-nos em Pineville e tomamos o funicular para chegarmos à sua residência. É uma casa ampla e sem vizinhos; ergue-se em uma colina rodeada de centenas de montanhas. Descemos até a pequena estação privada, onde a família de John e Amarílis nos aguardava para as boas-vindas. Amarílis me observou com certa ansiedade.

Um coelho se aproximou brincando através da colina e por entre o espaço que nos separava da casa. Deixei cair a maleta e me joguei a 170

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toda velocidade atrás do coelho. Corri uns vinte metros e o vi desaparecer; sentei-me num tronco e comecei a chorar desconsoladamente.

— Não consigo pegar nem um coelho sequer — solucei. Não sirvo para nada. Dava no mesmo se eu estivesse morto.

— O que está acontecendo, irmão John? — escutei Amarílis perguntar. — Está com os nervos ligeiramente abalados — respondeu John, com seu

habitual tom aprazível. — Não se preocupe. Para cima, caçador de coelhos!, e vamos entrando antes que os biscoitos esfriem.

Aproximava-se a hora do crepúsculo, e as montanhas se adaptavam nobremente à descrição da senhorita Murfree.

Pouco depois da comida anunciei que, segundo minhas conjecturas, acreditava que seria capaz de dormir um ou dois anos, incluindo os feriados. Conduziram-me a um quarto tão grande e tão frio como um jardim, e que contava com uma cama tão grande quanto uma pradaria. Pouco depois, os demais moradores também se retiraram para descansar, e sobre a comarca desceu um silêncio.

Havia muitos anos que eu não escutava um silêncio. Era absoluto. Tomei corpo, me apoiei num dos cotovelos e prestei atenção. Dormir! Pensei que se apenas chegasse a ouvir o titilar de uma estrela ou o ruído que faz uma brisa ao esticar alguma erva poderia acalmar-me e descansar. Num certo momento, julguei perceber um som parecido ao que produz ao agitar-se a vela de uma embarcação pequena quando roça uma brisa. Mas concluí que era apenas um fiozinho do travesseiro. Imóvel, continuei prestando atenção.

De repente algum passarinho transnoitado pousou no parapeito da janela e emitiu, no que sem dúvida julgava uma tonalidade sonolenta, este som que em geral se transcreve assim: chip!

Dei um pulo no ar. — Ei, o que está acontecendo lá embaixo? — perguntou John, do seu quarto em

cima do meu. — Nada — respondi —, a não ser que por acidente dei com a cabeça no teto.

Na manhã seguinte saí para contemplar as montanhas. Ao alcance da vista, havia quarenta e sete. Tremi nas bases, entrei na imensa sala de estar, escolhi num almanaque a "Prática Familiar da Medicina", de Pancoast, e comecei a lê-lo. John chegou, me tirou o livro das mãos e 171

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me puxou para fora. Possuía uma granja de três mil acres provida do habitual complemento de gado, mulas, camponesas e trilhos com os três dentes da frente estragados. Na minha infância vira coisas semelhantes, e o desalento me invadiu.

John então falou de alfafa, e logo recuperei o ânimo. — Sim — disse —, ela não estava no coro de...? Deixe eu ver se me lembro... — É verde, como você sabe — interrompeu John —, e macia, e é colhida depois

da primavera. — Já sei — respondi —,e o pasto cresce em cima dela. — Isso mesmo — aprovou John. — Depois de tudo, você ainda sabe alguma

coisa sobre o trabalho de uma granja. — Conheço alguma coisa sobre donos de granja, e um dia eles serão castigados.

Quando regressávamos a casa, uma bela e inexplicável criatura atravessou nosso caminho. Parei, irresistivelmente fascinado, a contemplá-la. John esperou com paciência, fumando seu cigarro. É um fazendeiro moderno. Ao fim de dez minutos, disse:

— Pretende ficar aqui o dia todo olhando essa galinha? A comida deve estar na mesa.

— Uma galinha? — repeti. — Uma galinha Orpington branca, se quiser saber pormenores.

— Uma galinha Orpington branca? — repeti, com crescente interesse. A ave se afastou lentamente, com graça e dignidade, e eu a segui como um

menino ao flautista de Hamelin. John me concedeu mais cinco minutos; depois me pegou pela manga e me levou para o café da manhã.

Transcorrida uma semana, solidificou-se em mim uma sensação de alarme. Comia e dormia bem, e comecei a desfrutar realmente da vida. No entanto, um homem com a minha desesperante condição jamais poderia admiti-lo. Conseqüentemente, escapuli até a estação, tomei o funicular que ia até Pineville e fui visitar um dos melhores médicos da cidade. Naquela época, sabia direitinho o que tinha de fazer quando necessitava de tratamento médico. Pendurei o chapéu no espaldar de uma cadeira e disparei a toda velocidade:

— Doutor, sofro de cirrose no coração, artérias endurecidas, 172

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neurastenia, neurite, indigestão aguda e convalescença. Proponho restringir-me a uma dieta restrita. Além disso, tomarei um banho morno à noite e um frio pela manhã. Esforçar-me-ei para ficar alegre e concentrar a cabeça em assuntos prazerosos. No que diz respeito a medicamentos, tomarei uma pílula de fósforo três vezes por dia, de preferência depois das refeições, e um tônico composto de tinturas de genciana, cinchona e cardamomo. Em cada colherada de chá deste medicamento acrescentarei tintura de noz-vômica, começando com uma gota e acrescentando uma por dia até atingir a dose máxima. Para isso me utilizarei de um conta-gotas medicinal que se pode adquirir por um preço irrisório em qualquer farmácia. Bom dia.

Peguei o chapéu e saí. Depois de fechar a porta, percebi que havia esquecido alguma coisa. Abri-a de novo. O médico não se movera de onde estava sentado, mas sobressaltou-se levemente, nervoso, quando me viu mais uma vez.

— Esqueci-me de esclarecer — expliquei — que além do mais farei repouso absoluto e intensos exercícios.

Depois desta consulta me senti muito melhor. Ela me proporcionou tanta satisfação que voltei a ter a plena certeza de que eu estava desesperadamente doente; quase recaí de novo em depressão. Para um neurastênico, não existe nada de mais alarmante do que se sentir melhor e mais alegre.

John demonstrava uma autêntica preocupação comigo. Depois de ter revelado tanto interesse por sua galinha Orpington branca, fez tudo o que podia para distrair minha cabeça, e à noite fechava escrupulosamente o galinheiro. Pouco a pouco, o tonificante ar de montanha, a alimentação substanciosa e as caminhadas diárias pelas colinas aliviaram de tal maneira minha enfermidade que cheguei a me sentir bastante desalentado e mísero. Tive notícia de que próximo dali, em meio às montanhas, residia um médico rural. Fui visitá-lo, e contei a ele toda a minha história. Era um homem de barbas brancas, claros olhos azuis rodeados de múltiplas e pequenas rugas, vestido com roupas de confecção caseira e calças cinza.

Com o propósito de ganhar tempo, diagnostiquei meu próprio caso, apalpei meu nariz com o indicador da mão direita, dei uma pancada debaixo do joelho para que o pé se projetasse para cima, 173

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auscultei-me o peito, pus a língua para fora e perguntei a ele quanto custavam as prestações de uma vala no cemitério de Pineville.

Ele acendeu o cachimbo e me observou durante uns três minutos. — Irmão — disse por fim —, seu estado é tremendamente grave. Existe uma

possibilidade de que se recupere, mas é extremamente reduzida. — Como seria possível? — perguntei, com ansiedade. — Ingeri arsênico e ouro,

fósforo, fiz exercícios intensivos, tomei noz-vômica, banhos hidroterápicos, e, além do mais, repouso, excitação, codeína e extrato aromático de amoníaco. Resta alguma coisa na farmacopeia?

— Em algum lugar destas montanhas — retomou ele — cresce uma planta que tem formosas flores; é praticamente a única coisa que poderá curá-lo. Pertence a uma espécie tão velha quanto o mundo, mas nos últimos tempos tomou-se muito rara e difícil de se encontrar. Você e eu nos dedicaremos a encontrá-la. Atualmente abandonei a prática ativa da medicina, pois estou velho demais, mas me encarregarei do seu caso. Terá de vir aqui todos os dias à tarde e colaborar comigo nesta busca até que encontremos a planta. É provável que lá na cidade os médicos estejam muito a par dos novíssimos acontecimentos científicos, mas ignoram quase tudo que diz respeito às medicinas que a Natureza transporta nas costas de seus montes.

Conseqüência: todos os dias, o ancião e eu rastreávamos a planta cura-tudo nas elevações e nos vales dos Montes Azuis. Perdíamos ambos o fôlego subindo empinadas ladeiras que as caídas folhas outonais tornavam tão escorregadias que, para não cairmos barranco abaixo, precisávamos nos segurar em cada galho ou ramo que estivesse ao nosso alcance. Com dificuldade, abríamos caminho por quebradas e abismos povoados de arbustos e árvores que nos chegavam à altura do peito; seguíamos quilômetros e quilômetros as margens dos riachos montanheses; avançávamos fazendo círculos e rodas à maneira dos índios, através do pequeno bosque de pinheiros... a pista do caminho, as ladeiras das colinas e montanhas, as margens do rio, a tudo explorávamos em busca da planta milagrosa. Como afirmava o ancião doutor, sem dúvida ela se tornara rara e difícil de se encontrar. Mas nós prosseguíamos a grande busca. Dia após dia sondávamos os vales, escalávamos as alturas e recorríamos às mesetas à procura da planta milagrosa. Como fora criado nessas 174

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montanhas, meu acompanhante nunca dava sinais de cansaço. Quanto a mim, em geral voltava para casa fatigado demais para fazer outra coisa do que cair duro na cama e dormir até a manhã seguinte. Esta situação se prolongou, sem variações, durante um mês.

Um entardecer, depois de regressar de uma caminhada de seis quilômetros em companhia do velho médico, Amarais e eu fomos dar um curto passeio por sob as árvores que sombreavam o caminho. Contemplamos as montanhas que se exibiam em suas régias investiduras púrpuras antes de se entregar ao repouso noturno.

— Fico muito satisfeita que você esteja bem de novo — disse ela. — Quando chegou, fiquei muito assustada. Pensei que você se encontrava realmente doente.

— Que eu estou bem de novo! — quase estive a ponto de ter um chilique. — Sabe que só tenho uma possibilidade em mil de viver?

Amarílis me olhou, surpresa. — Mas o que está acontecendo? Você me parece tão forte como as mulas que

arrastam o arado, dorme entre dez e doze horas todas as noites e come tanto que parece a ponto de nos devorar a casa e arredores. O que é que você quer mais?

— Garanto a você — repliquei — que, a menos que encontremos a tempo o elemento mágico, quer dizer, a planta que estamos procurando, nada poderá me salvar. Foi o médico quem me disse...

— Que médico? — O doutor Tatum, o velho médico que vive na metade do caminho antes de

se chegar ao Monte Negro. Conhece-o? — Conheço-o desde que comecei a falar. E é lá que você vai todo dia? É ele quem

o leva a fazer essas longas caminhadas e escaladas que lhe devolveram a saúde e a força? Bendito seja ele!

Nesse precioso momento, o velho em pessoa apareceu lentamente pelo caminho, guiando seu decrépito e desmantelado coche. Saudei-o agitando a mão e gritei-lhe que no dia seguinte estaria à sua disposição, na hora de sempre. Deteve o cavalo e pediu a Amarílis que se aproximasse. Falaram durante cinco minutos enquanto eu me mantinha à espera. Em seguida, o velho médico retomou seu itinerário.

Quando chegamos em casa, Amarílis apanhou uma enciclopédia e procurou por uma palavra. — O doutor disse — informou-me ela — que não é mais preciso 175

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você continuar visitando-o como paciente, mas que se alegrará muito de o receber como amigo em qualquer hora que julgar oportuna. Depois me pediu que eu procurasse meu nome na enciclopédia e que lhe explicasse o seu significado. Ao que parece, é a denominação que se aplica a uma espécie de plantas e a suas respectivas flores. Além disso, é o nome de uma garota do campo que figura nas obras de Teócrito e Virgílio. O que será que o doutor queria dizer? — Sei o que ele queria dizer. Agora sei.

Um conselho a qualquer pessoa que por acaso tenha caído sob o feitiço da desassossegada senhora Neurastenia. A receita era eficaz. Mesmo quando às vezes procedem de um modo exploratório, os médicos das cidades amuralhadas descobriram o medicamento apropriado.

Mas para tal objetivo, no que diz respeito ao exercício intensificado, o melhor é procurar o doutor Tatum, lá no Monte Negro. Tome o caminho que sai à sua direita, bem onde fica a igrejinha metodista, no pequeno bosque de pinheiros.

Repouso absoluto e exercícios intensos! Que repouso pode ser mais saudável que se sentar com Amarílis na sombra e, com um sexto sentido, ler o idílio de Teócrito sem palavras que registrem as montanhas azuis engalanadas de ouro ao ingressar ordenadamente nos aposentos da noite? 176

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ANTÔNIO DE ALCÂNTARA MACHADO

Paulista de família tradicional, Antônio de Alcântara Machado nasceu em 1901, na capital do estado. Aos vinte

anos, iniciou-se como crítico, primeiro literário, depois teatral. De uma viagem à Europa, em 1925, surgiu seu livro de

estréia, Pathé Baby (1926), observações bem-humoradas de um viajante pelo mundo da "modernidade", já sugerido no

título (nome de uma máquina fotográfica). Sempre trabalhando na imprensa, onde antes publicava suas histórias, em

1927 é editada sua obra mais conhecida: os contos de Braz, Bexiga e Barrafunda. No ano seguinte, Laranja da China.

Da geração que fez a Semana de Arte Moderna de 22, Alcântara Machado era dos mais bem-dotados intelectualmente

entre eles, e mesmo como ficcionista. O fato de ter morrido ao 34 anos (além, por outro lado, de certo lobby

universitário pró Oswald de Andrade ou pró Mário de Andrade) impediu que este grande humorista deixasse uma

obra maior e mais abrangente. Mesmo assim, talvez seja a hora de reavaliá-lo.

177/178

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As Cinco Panelas de Ouro

Dona Esmeralda Foz era filha de dona Gertrudes Lemos, que em Jataí-Estação muito fez pelo espiritismo. Tidoca Lemos morreu desprevenido, dona Gertrudes ficou nervosa com a incerteza do destino que tivera a alma do marido. Daí o ter entrado para sócia contribuinte do Centro Espírita Amigos de Jesus. Logo na primeira reunião, Tidoca apareceu pigarreando seco (velho cacoete dele), disse que estava bem, mandou lembranças para os amigos, recomendou insistentemente à mulher que não deixasse de pagar os vinte mil-réis que ele morreu devendo ao tenente Euclides (orador oficial do Centro), falou nos deveres de amor e caridade para com o próximo e se despediu pigarreando seco. Dona Gertrudes virou espiritista fanática. Porém não pagou os vinte mil-réis ao tenente Euclides. O que foi um dos motivos de cisma havido nos Amigos de Jesus e imediata fundação do Companheiros de Cristo, com dona Gertrudes no cargo de primeira secretária.

Por essa época dona Esmeralda tinha seus dezesseis-dezessete anos e já por qualquer coisa ria demais ou chorava demais. Ou ria depois chorava, chorava depois ria. Diziam para ela: — O Ignacinho do Arreão caiu do cavalo. Ela ria e ria que era um despropósito. Acrescentavam: — Bateu com a cabeça numa pedra, morreu. Ela ia e desandava a chorar, soluçando de cortar o coração. Dá uma boa médium, pensou dona Gertrudes. E levou a filha ao Centro.

Até então a médium preferida do Companheiros de Cristo era a filha do presidente maestro Angiolini. Chamada Celeste Aída. Logo 179

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se estabeleceu uma rivalidade tremenda. Porque Angiolini achava ruinzinhas as comunicações feitas por intermédio de Esmeralda. Espiritismo é como música. Precisa coração. O coração é que comanda. E a Esmeralda só tinha cabeça. Por seu lado, dona Gertrudes atrapalhava com apartes caçoístas os discursos que os espíritos ditavam para Celeste Aída. A diretoria aí resolveu consultar Pai Jacó, protetor do Centro. Um médium de pincenê veio especialmente de São Paulo. Pai Jacó entrou nele e decidiu a questão a favor da filha do presidente. Dona Gertrudes protestou inflamada, dizendo que a coisa lhe cheirava a tribofe. Esmeralda principiou a chorar. Dona Gertrudes agarrou na mão dela, antes de sair deu uma gargalhada satânica, gritou para Salvini: — Você, seu carcamano, quando nasceu te jogaram duas vezes na parede: uma vez grudou, outra não! Esmeralda compreendeu, largou de chorar e riu até a mãe dizer chega com dois beliscões.

Meses depois dona Gertrudes se mudou para Jataí-Vila e casou a filha com um moço muito bom, Nicolau Foz, empregado da Luz e Força e oposicionista vermelho. Dias depois morreu de susto. Tarde da noite, explodiu perto da casa dela uma fábrica de fogos. Dona Gertrudes foi encontrada já fria, apertando contra o peito O Triunfo na Vida Terrena pelo Magnetismo Pessoal, do professor E. Bedlamite, de Columbus, Ohio, USA. Morreu de susto.

A filha sofreu muito. Gostava da mãe. E morta a mãe passou a gostar do único bem do espólio: uma cachorrinha peluda. Muito vagabunda mas muito célebre. Tinha sido presente de uma comadre da de cujus. Dona Gertrudes a recebeu novinha com dias apenas. E já batizada Goiabada. Nome horrível que dona Gertrudes resolveu mudar. Consultou a filha, a filha pediu um dia para pensar, pensou e sugeriu dois a escolher. Florzinha e Violeta. Dona Gertrudes recusou, passou em revista outros e afinal se decidiu por Dorotéa Cabral. Daí a celebridade. Toda gente fez questão de conhecer Dorotéa Cabral. E dona Gertrudes explicava: — Os animais não são nossos irmãos inferiores? Pois então, ué! Devem ter nome de gente! Por isso o genro se animou um dia a observar. — Se a cachorrinha tem direito a nome de gente, tem direito a apelido. Dorotéa Cabral é muito comprido: fica sendo Tetéa. Dona Gertrudes não discordou. Fez porém uma restrição: — Não há dúvida. Tetéa está bem. Mas só na intimidade.

Enquanto crescia o amor de dona Esmeralda (que não tinha filhos) 180

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pela Tetéa, grandes sucessos modificavam a vida do país. E Jataí-Vila (cidade, cabeça de comarca, mas sempre Jataí-Vila para distinguir de Jataí-Estação onde passavam os trilhos da Boigiana) foi teatro de muitos e variados acontecimentos. Com seus quatro mil e setecentos vizinhos há muitos anos vivia empenhada em furiosa luta política: de um lado os partidários de Zequinha Silva, desde cinco lustros chefe do situacionismo, de outro os do major Mourão (alentejano de nascimento) e seu braço direito Nicolau Foz. Aqueles eram os perrepistas. Estes os oposicionistas. Luta local só. Os antiperrepistas também pertenciam incondicionalmente ao PRP. Mas ao PRP estadual, ao governo. Nunca ao de Zequinha Silva. A ambição deles era construir um dia com sua gente o PRP de Jataí-Vila. Obedeciam à orientação de um deputado que em Jataí-Estação era situacionista, em Jataí-Vila oposicionista. E tecia seus pauzinhos na Capital junto aos chefões para derrubar o tiranete de Jataí-Vila, que a oposição não se cansava de apontar como indigno dos nossos foros de civilização e cultura.

A coisa porém continuava no mesmo pé sem dar esperanças de modificação próxima. Até que veio o movimento revolucionário de outubro de 1930. Então principiou uma emulação desesperada. Todas as provas ineludíveis de dedicação à causa da legalidade (o que equivalia dizer à causa sagrada do Brasil unido) foram dadas pelos dois partidos. Zequinha Silva telegrafava solidariedade aos presidentes da República e do Estado, o major Mourão imediatamente fazia o mesmo. Fazia mais: estendia essa solidariedade inabalável ao ministro da Guerra, ao ministro da Marinha, ao presidente da CD do PRP, ao secretário de Justiça e ao chefe de polícia do Estado. E quando Zequinha resolveu organizar um batalhão patriótico a oposição anunciou a formação de dois: infantaria e cavalaria. Porém Zequinha Silva contava com maior número de elementos. Trinta e dois sujeitos pegados à força pelo subdelegado Tolentino foram convenientemente calçados e seguiram logo sob o comando do cabo de destacamento. Este levava uma carta do diretório para o secretário de Justiça pedindo que os voluntários de Jataí-Vila fossem aproveitados na faxina dos quartéis da Capital "para sossego de suas respeitáveis famílias, cujo patriotismo honra sobremaneira as nossas gloriosas tradições bandeirantes". Passados uns dias a viúva Mané Bindão (inventora e fabricante única de um doce chamado "beija-me devagar") recebeu carta do filho 181

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dizendo que a coisa em Itararé estava bem preta. A viúva Mané Bindão foi na casa do Zequinha e amaldiçoou a família Silva até a última geração. A oposição pulou na rua de contentamento. Pulou um dia só entretanto: o governo mandou perguntar para o major Mourão se os homens dele seguiam ou como era. O major respondeu que estavam de partida. Foi uma vergonha. O Afonso Henriques, filho do major, afundou no mato com dois primos. Antônio Vicente de Carvalho Júnior, um dos chefes oposicionistas, declarou que não criara filhos para carne de canhão. E assim todos. Até que Nicolau teve uma idéia. Três léguas para o norte em São Benedito do Alecrim, nas divisas de Minas, havia dois batalhões em pé de guerra: um paulista aquartelado no Grupo Escolar Marechal Deodoro, outro, mineiro, no Grupo Escolar Marechal Floriano. Os dois prédios ficavam na mesma rua. Mas seus ocupantes trocavam gentilezas. Cada batalhão só esperava a hora de aderir ao adversário. Pois então: era comunicar para o governo que o pessoal oposicionista de Jataí-Vila iria reforçar a tropa de São Benedito do Alecrim. E estava tudo arranjado.

Não estava. O governo mandou ordem para os homens partirem sem demora para a Capital. Aí seria resolvido o destino deles. Que remédio? O major Mourão recrutou três matadores profissionais, dois ladrões de cavalo, um preto maluco que pensava que era relógio e vivia no largo da Matriz movendo os braços que nem ponteiros, um surdo-mudo de nascença e um tal Chico Rosa, mais conhecido por Chico Perna-de-Pau. Os matadores e os ladrões custaram cem mil-réis por cabeça: quinhentos mil-réis que o major desembolsou sem a mulher saber. A Filarmônica Doutor Quirino tocou o Hino Nacional, Antônio Vicente fez um discurso patriótico, os homens subiram num caminhão, o Laudelino Pinto do Centro Cultural gritou: "Que cada um traga uma orelha do Bernardes, são os meus votos sinceros!", e toca para Jataí-Estação pegar o trem. A Filarmônica em outro caminhão e os chefes oposicionistas num torpedo foram escoltando.

— Assim a gente tem a certeza de que os maganos embarcam — disse o major. — Que não desertem antes de chegar na estação — corroborou Nicolau. — Eu sapeco outro discurso neles quando o trem chegar — prometeu

Antônio Vicente. 182

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Seguiram e já a noite vinha descendo. Daí a vinte minutos estavam chegados. Estação pequenita, encheram a plataforma. A Filarmônica iniciou a Canção do Soldado Paulista. E o major dava suas últimas instruções aos bravos de Jataí-Vila quando o chefe da estação chegou todo transtormado.

— Seu major! Seu major suspendeu as instruções, ficou esperando. — Seu major! Deu-se! — O quê? — A coisa! — Hein? — A coisa! O Washington! — Não percebo, homem! — A REVOLUÇÃO VENCEU! — Estás doido! O chefe da estação ficou possesso: — Eu, doido? O senhor é que está maluco! Se não é analfabeto, leia isto! Tirou do bolso um papel, encostou na cara do major. O major pegou no papel,

deu para Nicolau ler. Nicolau leu: — 5-0-9.7-1-3. Centenas invertidas pelos cinco... O chefe deu um pulo. — Não é esse! Arrancou o joguinho das mãos do Nicolau, meteu no bolso, puxou outro papel, leu,

deu para Nicolau ler. Nicolau leu três vezes. Ia ler outra vez com os olhos cada vez mais esbugalhados, mas o major não deixou.

— Dize lá do que se trata, vamos! Nicolau devolveu a cópia do telegrama para o chefe, o chefe saiu correndo para

avisar outros. Nicolau puxou o major e Antônio Vicente de lado e falou: — A revolução venceu no Rio! O Washington fugiu! O major rugiu: — Lérias! Aquilo é um homem, homem! Não sabe o que é fugir! — Telegrama oficial, seu major! — Pois se é oficial, a revolução não venceu! Telegrama oficial só pode ser do governo! O

governo está de pé! 183

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Antônio Vicente procurou chamar o major à razão. O major teimou. Começaram a discutir. O sino da estação anunciou a saída do trem de Engenheiro Abrunhosa: daí a minutos estava em Jataí. Um vivório se ouviu longe. Cousa indistinta. Os três abriram bem os ouvidos.

— Júlio! — disse o major. — Que é que lhe dizia eu? — Getúlio! — disse Nicolau. — Ouvi perfeitamente. — Escutem! — suplicou Antônio Vicente. O vivório foi se chegando. Começou o foguetório também. — Júlio! — disse o major. — Não tem discussão! — Getúlio! — disse Nicolau. — Getúlio Vargas! — Esperem! — pediu Antônio Vicente. Esperaram. O foguetório não deixava os três perceberem bem o vivório. Mas de

repente juntinho deles explodiu com tanta violência um "Viva o doutor Getúlio Vargas" que os três até recuaram de susto. E Chico Perna-de-Pau repetiu o viva. O major indignado ia gritar com o Chico mas os matadores profissionais e os ladrões de cavalo sacaram das garruchas e deram de atirar para todos os lados. O major se agachou atrás de um banco gritando:

— Não me matem que eu sou português! Chico Perna-de-Pau perguntou: — Quem é que é português? Antônio Vicente subiu no banco e gritou desvairado: — Abaixo a plutocracia! Os voluntários de Jataí-Vila, esgotadas as munições, corresponderam: — Viva-a-a! Antônio Vicente tornou a gritar — Abaixo os opressores do povo! E os voluntários de Jataí-Vila delirantes: — Viva-a-a! A estação já estava cheia de revolucionários. O trem chegou. Vivórios e mais

vivórios. O trem partiu. O major no meio do povo bradava: — Que eu sabia que vinha lá isso sabia! Mas, caramba, rapazes, nunca pensei que

viesse já! Viva Jataí-Vila! 184

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— Morra! — berrou um mulato no ouvido do major. Isto aqui não é Jataí- Vila! O major pediu muitas desculpas, mas o mulato não queria desculpas. Queria dez

pilas para beber à saúde do Isidoro. E exigia um viva a Isidoro. — Viva! — disse o major. — Toma lá cinco mil-réis, que dez não tenho. O Nicolau conferenciava na sala do telegrafista com o doutor Querido, que

desde a monarquia era oposicionista na zona. — Está feito! Disse e saiu à procura dos companheiros. Arrancou o major das mãos de um

italiano recém-chegado da Penitenciária que já obrigara o major a dar três morras (Morra Mussolini, Morra Mattarazzo e Morra D'Annunzio), interrompeu um discurso de Antônio Vicente sobre a revolução francesa, arrebanhou com promessas os músicos e os voluntários, saiu com eles da estação. Em dois tempos conseguiu con-vencer todos a voltar imediatamente para Jataí-Vila tomar conta do governo.

Com uma provisão de foguetes e bombas de parede, chisparam na estrada. E entraram em Jataí-Vila de escapamento aberto. No caminhão da frente os voluntários soltavam foguetes e jogavam bombas. A seguir, no torpedo de capota descida, os chefes da oposição vivavam a democracia brasileira e gritavam para os que abriam bocas de espanto nas calçadas e janelas: — Vencemos! Por último os músicos tocavam o Hino a João Pessoa. Foram direito para o largo da Matriz.

Fez-se um ajuntamento de uns trinta sujeitos. Antônio Vicente arengou. Enquanto ele arengava, o coronel chamou um negrinho:

— Corre lá em casa e dize a Emília que vencemos! O negrinho voltou logo com a Emília. E a Emília louca de alegria: — Já telegrafaste ao senhor doutor Washington com as nossas felicitações? O major explicou. E ela rebentou: — Tu mandas dizer-me que vencemos, eu penso que venceram os legalistas!

Agora, se é para perder de uma vez a vergonha, viva esse tal de Getúlio e mais a cambada toda!

Deu meia-volta e se retirou muito digna. Deixando o major frio. Mas daí a pouco chegou fardado o coronel Cerqueira, veterano do 185

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Paraguai, com o peito cheio de medalhas, imensamente comovido, derrubando lágrimas. Abraçou o major dizendo:

— Um abraço, meu bravo! Conte comigo! Quando é que chega o Imperador? O major ficou sem saber o que responder, a filha do coronel Cerqueira fez uns

sinais desesperados, o major compreendeu, respondeu: — O Imperador? Ah, sim! Sua Majestade não demora. Está aí para nossa

felicidade! Eu aviso o dia exato da chegada! E agora vá para casa que a noite está fria! O coronel se retirou pelo braço da filha. Antônio Vicente, alheio ao que se passava

em torno, continuava arengando. Nicolau mandava recados. E ia chegando gente, iam chegando moleques, todos os moleques de Jataí-Vila. Nicolau contou por alto os presentes. Cassou a palavra de Antônio Vicente (Me deixa ao menos meter a ronca na Bastilha! Eu ainda não falei da Bastilha!) e gritou:

— Quem for brasileiro que me acompanhe! Houve uma indecisão. Porém o Lázaro Turco da Verdadeira Loja Síria falou: — Como é, pessoal!? Patriotismo! E o pessoal acompanhou. Menos o Janjão, porteiro do Grupo: — Enquanto eu não ler isso no Correio Paulistano, eu não acredito mesmo! Ocupada a cadeia (o delegado desaparecera vestido de mulher, disseram muitos

que o julgaram ter visto), os revolucionários soltaram dois negros desordeiros, um leproso e a Mariazinha Louca, que encontraram acorrentada anunciando para breve o Juízo Final. Nicolau não queria libertar Mariazinha antes de tirar uma fotografia para mostrar os métodos inquisitoriais dos déspotas vencidos. Mas Antônio Vicente propôs coisa melhor:

— A gente solta a peste e no lugar dela acorrenta o Zequinha para ele ver se é bom. A casa do Zequinha Silva estava com a porta e as janelas de pau cerradas quando

o grupo parou em frente dando morras. Vai ver que já abriu o chambre, pensou Nicolau. Bateram, ninguém veio abrir. Mas logo depois os gritos de Arromba! Arromba! fizeram com que uma das 186

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janelas se abrisse e espiasse uma pretinha de olho assustado. Antônio Vicente mandou:

— Vá chamar seu patrão! — Sim senhor! Demorou um instante, voltou:

— Dona Trindade manda dizer que o patrão não pode vir não senhor porque a filha dele dona Isolina está tendo filho.

— Mentira! — berrou Nicolau. — Diga pra ele que venha se não nós arrombamos a porta e fazemos uma gravata nele!

A negrinha foi dizer. E Nicolau não tinha acabado de explicar para o major o que era uma gravata gaúcha quando a parteira dona Gegé apareceu na janela.

— Vão embora, seus vagabundos, seus covardes! A criança nem bem nasceu e vocês já querem estragar a vida dela! Seus assassinos!

Houve um silêncio. E no silêncio se levantou a voz amável do major: — Ah! Nasceu mesmo? Pensamos que fosse broma! É homem ou mulher? — Não é de sua conta! — disse dona Gegé, e bateu a janela na cara dos patriotas. Antônio Vicente falou: — E agora? O entusiasmo tinha esfriado. O major arriscou: — Vamos todos para as nossas casas que o dia já foi muito bem ganho.

— Vão vocês — falou Nicolau. — Eu não durmo esta noite. Não dormiu. Com três ou quatro mais dedicados, passou a noite inteira tomando providências. E o major acordou no outro dia presidente da junta provisória de Jataí-Vila. O que reconciliou dona Emília com a revolução: — Assim está conforme! Os valores pra frente, é o que se quer! A junta Mourão-Nicolau-Vicente tomou conta de Jataí-Vila dois dias com poderes discricionários. Na manhã do terceiro chegou o delegado mandado de São Paulo: doutor Santos Dumont Salomão. A junta foi destituída e nomeado prefeito o agente da Ford, Idílio Madeira. Despeitadíssimo, o pessoal da ex-junta organizou o Bloco dos Destemidos ou Os 18 de Copacabana. O doutor Salomão se viu meio 187

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fraco, procurou se chegar ao Zequinha. Mandou dizer para ele que quando precisasse de garantias de vida era só dar um telefonema. Preparando terreno para uma aliança no momento oportuno. Nicolau ficou fulo com tais manobras. Telegrafou para São Paulo protestando, mas São Paulo não deu resposta. Recorreu ao mimeógrafo da Papelaria Humaitá. Todos os dias, Jataí-Vila se enchia de manifestos xingando os usurpadores adventícios: o doutor Santos Dumont Salomão ("filho de mascate sírio com mulata sem-vergonha") e Idílio Madeira ("brasileiro, sim, mas natural da terra de Calabar"). O doutor Salomão reagiu conservando 24 horas no xadrez o Afonso Henriques Mourão, acusado de ter desencaminhado uma menor três anos antes. E organizou o Bloco dos Animosos ou os Mártires da Clevelândia. Os mártires se reuniram à noitinha no largo da Matriz e quando se sentiam de fato Animosos marchavam para a casa do prefeito berrando: "Nós queremos Madeira!" E merecem, escreveu Nicolau num dos seus manifestos.

Então vendo as coisas assim malparadas, o vigário resolveu pacificar os espíritos. A matriz estava sendo reformada. Engrandecida até com um altar dedicado a Santa Joana d'Arc.

A primeira quermesse tinha rendido pouco, apesar dos esforços da comissão presidida por Zequinha Silva. Padre Zoroastro pensava realizar outra com umas dez barraquinhas pelo menos. Bonito pretexto para a paz. Padre Zoroastro foi falar com o doutor Salomão. Provou para ele a vantagem de uma concórdia e a oportunidade que para ela oferecia uma obra de religião e caridade. Aparentemente ninguém cedia, ninguém dava parte de fraco. Sobrevindo um motivo de ordem superior, o acordo se fazia para garantir à quermesse o êxito que não podia ter se realizada em ambiente de ódios. Padre Zoroastro sabia convencer. E tinha um modo de falar irresistível: falava baixinho, devagarzinho, perguntava: "não é?" Se encontrava resistência ele mesmo respondia: "é", não ligava às objeções nem escutava o que os outros diziam, continuava falando, caceteando, embalando de mansinho, os outros concordavam cochilando já. Doutor Salomão não fez exceção e disse: — Pois sim.

Padre Zoroastro saiu da delegacia, foi para o escritório da Luz e Força. Mas não contou para o Nicolau que já tinha estado com o doutor 188

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Salomão. Repetiu só o que havia falado pouco antes. Naquele tonzinho sumido de confessionário. Sempre igual, sempre igual.

— Escute, padre Zoroastro! — exclamava de vez em quando Nicolau. Sem acrescentar palavra, padre Zoroastro tinha ido lá falar, não tinha ido ouvir.

Isto é: tinha ido ouvir o sim, só o sim. Enquanto esperava a hora do sim, falava para impedir o não.

Nicolau disse o sim quando — depois do último não é? é — padre Zoroastro deu licença para ele dar um pio.

E o acordo se fez. O doutor Salomão continuava na delegacia e o Idílio na prefeitura, prestigiados daí em diante pelos 18 de Copacabana.

Sob duas únicas condições: a prefeitura não dava andamento aos executivos por impostos atrasados que tinha em juízo contra Nicolau e a delegacia deixava sossegado o Chalé Felizardo, de que era proprietário um irmão do major.

Acordo que não agradou nada alguns dos 18 de Copacabana. No Bar Ideal, um descontente chegou a falar em traição na cara de Nicolau.

Nicolau ficou vermelho. E tratou de mudar de assunto. O descontente (cuja brutalidade como centro-médio do Águia de Haia FC era famosa) percebeu a fraqueza do chefe, tornou a falar em traição e de mau começou a acariciar o gargalo da garrafa de cerveja Tip-Top. Nicolau empalideceu, balbuciou uma desculpa boba, caiu na rua. Então ouviu uma risada irritante.

Irritou-se. Seguiu para a delegacia e lá exigiu a remessa de um bilhete azul para o descontente, que era fiscal do serviço contra a broca do café. O doutor Salomão porém não concordou.

E Nicolau foi para casa se remoendo de raiva. De tanta assobiou uma hora inteirinha o Miserere do Trovador. Não assobiou mais porque dona Esmeralda veio chamar para dormir.

— Vá você. Eu vou depois. — Logo hoje que eu estou tão nervosa, Nicolau! Você sabe que eu não durmo

sozinha quando estou nervosa! — Então não durma nunca. Nervosa por quê? — Tetéa está passando muito mal. — Que é que tem a excelentíssima? — Não sei: uns tremores, uns vômitos, umas coisas esquisitas.

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Foram ver a Dorotéa Cabral. Nicolau olhou bem para ela, depois disse: — Está agonizando.

Dona Esmeralda pôs as mãos na cabeça e se encostou no marido chorando. — Ora, Esmeralda! Que é que significa isso? Não se pode mais brincar então?

Você não conhece a anedota do português? Pensei que você conhecia. Por isso é que falei assim.

Esmeralda, com a cabeça no peito de Nicolau, engoliu umas lágrimas e perguntou entre dois soluços horríveis: — Que anedota, heein?

Nicolau contou fazendo cafuné na mulher: — Eu acho que já contei pra você. Não se lembra? Aquele português que

estava muito doente e com um medo danado de morrer. Então para levantar o ânimo dele chamaram um grande amigo que ele tinha. O amigo veio, chegou perto da cama, sorriu para o doente e disse com jeito de carinho: "Agonizantezinho, hein?"

Esmeralda se desprendeu do marido. — Essa é formidável! E rompeu numa gargalhada nervosa. — Não ria tanto, Esmeralda! Faz mal para você! Ela queria dizer que não fazia, mas não podia, se sacudia toda de riso. Nicolau

então pegou na Dorotéia Cabral com muito nojo e levou para a cozinha. Deitada de lado perto do fogão, Dorotéa Cabral sacudiu as patas, vomitou, jogou a cabeça para trás, morreu. Nicolau voltou para o quarto.

— Morreu, coitada. Esmeralda pranteou a morte de Dorotéa Cabral (Ah, minha mãe, minha mãe.

dizia) até cair de cansaço nos braços de Nicolau. — Vamos dormir para esquecer este dia. Dia mais desgraçado! Foram dormir. — Acenda a vela que no escuro não durmo. Nicolau acendeu a vela, se deitou encolhido, cobriu a cabeça com o lençol. — Não cubra a cabeça assim que eu fico com medo. — Feche os olhos. — Não posso.

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Nicolau deu um suspiro, puxou o lençol para baixo, enterrou a cara no travesseiro. Dona Esmeralda virava para a direita, dava com a chama da vela, virava à esquerda, não achava jeito, se impacientava.

— Nicolau! Passa a vela pro seu lado, faz favor! Nicolau pegou no castiçal, pôs no criado-mudo dele. Sem dizer palavra. Tornou a

meter a cara no travesseiro. Fechou os olhos. Aí viu a chama da vela. Apertou bem os olhos. A chama foi diminuindo,

diminuindo, morreu. O relógio da matriz bateu horas. Dona Esmeralda contou: um, dois. E acrescentou: feijão com arroz. Continuou: três, quatro—feijão no prato. Está errado. Devia ser: uma, duas. Hora é feminino. O professor da Escola 15 de Novembro, seu Mesquita, que sujeito engraçado. Que horas são? Meio-dia e meio. Ó ignorância quadrupedal. Meio-dia e meio quer dizer seis horas da tarde: meio-dia mais meio dia. Meio-dia e meia é que você quer dizer, seu idiota. Quando o bispo de Samburá foi visitar a escola, seu Mesquita se atrapalhou, gritou: — Viva o senhor doutor bispo! E a meninada jogou pétalas de rosa. Padre Dito quase estourou de rir. Que homem bom. Não quis ser bispo. Dava tudo para os órfãos. Morreu a cavalo. Vinha do sítio. Teve uma síncope, caiu pra frente mas não caiu do cavalo. Entrou na cidade assim. Abraçando o pescoço do cavalo. E o cavalo andava devagarzinho para não derrubar padre Dito. Milagre verdadeiro. Aquele sim: era um santo. Está enterrado — onde é que está enterrado mesmo? — está enterrado aqui mesmo. E Dorotéa pobrezinha? A gente enterra no quintal. Depois planta umas flores. Não precisa cruz. Padre Dito parece que chegou a conhecer Tetéa? Chegou. Ele morreu quando a torre da matriz caiu. Era um santo mesmo. Gostava muito de jardinar. E que jardim bonito. Tem jasmim, tem perpétua, tem cravo-de-defunto, tem camélia. Camélia é flor de muita estimação mas só no pé. No vaso perde muito. Amarelece. Fica bom um pé de camélia na sepultura de Tetéa. Que diabo. A modo que vem gente. E olhe que vem mesmo. Bom dia, minha filha. A bênção, padre Dito. Que é que você está fazendo no meu jadim, Esmeralda? Estou colhendo uma planta bonita para plantar na sepultura de Dorotéa Cabral. Morreu? Morreu hoje. Mas isso é pecado, minha filha. Não sabia. Deus não fez as flores para enfeitarem sepulturas de animais. Não sabia: desculpe. Deus fez as flores para enfeitarem os altares das igrejas. Eu vou enfeitar um, então. Diga antes como vão as obras da 191

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matriz. Vão bem, muito obrigado, muito obrigado. Não tenha medo de mim, Esmeralda. Tal seria, padre Dito. Senta aqui neste banco que eu vou contar um segredo pra você. Às ordens, padre Dito. Você conhece meu túmulo? Conheço, sim senhor. No meu túmulo tem cinco panelas cheias de ouro. Sim senhor, padre Dito. Você vá lá, desenterre as panelas e dê para a comissão das obras que o ouro é para acabar com a reforma da matriz que já está demorando muito. Eu vou hoje mesmo, padre Dito. Vá com Deus, minha filha. E a Virgem Maria, padre Dito. Deixa eu te dar um beijo, minha filha. O senhor disse um beijo, padre Dito. Eu não sou padre Dito. Me larga que eu grito. Eu sou o anticristo. Eu grito, eu grito. Gritou. Nicolau acordou.

— Que é isso, minha filha? — Não me chame de minha filha! Onde é que eu estou? Ai, eu morro com esta

aflição! Não se encoste em mim! Não se encoste em mim! Ah, minha mãe, minha mãe!

A aflição só passou com água de flor de laranja tomada à força. Então dona Esmeralda sorriu, beijou muito o marido e contou o sonho.

— Ele disse cinco panelas só? Você tem certeza? — Cinco: me lembro perfeitamente. — Sei. Ele não disse que espécie de moedas eram? Libras esterlinas, por exemplo?

Ou dólares? Tem dólares de ouro se não me engano... — Isso ele não disse. Nicolau desistiu de dormir o resto da madrugada. Preparou café forte, bebeu

duas xícaras, foi para a sala da frente, se estendeu no canapé, deu de fumar. Pensando.

— Esmeralda! Você ainda está acordada? — Que é? — Você acredita em sonhos? — Acredito sim. — Está bem. Veja se dorme.

De barriga para o ar, imaginava tão depressa, tão grandiosamente, que lutava contra a imaginação. Deus existe. Se existe. A justiça divina não falha. E vem mais depressa do que se pensa. Dormiu triste e humilhado e acordou rico. Primeiro pagava os impostos. Não precisava 192

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mais de esmolas. Depois São Paulo. Aplicava o cobre bem aplicado. Depois Rio. Depois Europa. Não. Estados Unidos. Conhecer aquele colosso. Pára, imaginação. O dinheiro é para as obras da matriz. Olhe o castigo do céu. Mas não é justo isso. Quem tem o segredo do tesouro é dono do tesouro. Depois não havia perigo. Ia de noite no cemitério e desenterrava a dinheirama. Pára, imaginação. O Crispim zelador já queimou uma madrugada os dois polacos da Colônia Sobieski que queriam avançar nos florões de bronze dos túmulos. Do padre Dito mesmo. Subornar também não adianta. Quer dizer é impossível. Melhor é revelar o segredo. Falar com padre Zoroastro e revelar não: vender o segredo. Pára, imaginação. Padre Zoroastro não acredita nessas coisas. Homem, arranjava um capanga, matava o Crispim e pronto. Pára, excomungado. Bobagem. Aquele retrato ali no Diário é de Greta Garbo. Ó boa. Onde será que ela mora? Pára, sem-vergonha, cachorro, desgraçado. E o Zequinha Silva, presidente da comissão? Desaforo. É preciso arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Aí está. Regime novo: gente nova. E o cobre com o tesoureiro.

— Você já está acordada, Esmeralda? — Eu não dormi. — Que maçada! Vamos enterrar a excelentíssima? — Enterre você sozinho. Você sabe que eu não gosto de ver enterro. Dorotéa Cabral foi sepultada dentro de uma lata de gasolina e perto de um

mamoeiro. Nicolau tomou mais duas xícaras de café, se arranjou e saiu. Foi para o escritório da Luz e Força. Não parava sentado. Também não parava em pé. O gerente estranhou tanto nervosismo. Perguntou:

— Que é que há? — Osvaldo Aranha. Isto é, desculpe, nada. Dormi mal esta noite. A Dorotéa

Cabral morreu. — Não diga! Dona Esmeralda deve ter ficado bem triste? — Ficou. Está doente até. Se me der licença, eu vou ver como é que ela vai indo. Padre Zoroastro não estava em casa. Nicolau ficou indeciso, sem saber se devia

ou não procurá-lo na matriz. Talvez fosse melhor conversar num lugar mais discreto. Porém a coisa era urgente. Era. Ia. 193

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Não ia. Começou a andar. Foi andando. Foi. De repente apressou o passo e tomou o caminho do cemitério.

Encontrou Crispim chupando num pito de barro perto do portão, ouvindo as queixas de um coveiro despedido por não ter mentalidade revolucionária. — Que é que vem fazer aqui, seu Nicolau? Morte em casa, ainda que mal pergunte?

— É, morreu a Dorotéa Cabral. Mas não é isso não. — Morreu? De quê? — Não sei. Doença de cachorro. O túmulo do padre Dito era logo na entrada. Olhou enviesado para ele. — Estou pensando em mandar fazer um túmulo para a minha sogra. Foi ver a sepultura da sogra. Era lá no fundo. Estavam abrindo uma cova perto. — Quem é que vai ser enterrado? — O Bastião. — O Bastião da Filarmônica? — Não. O pegador de cachorro. — É o mesmo. — Terceiro cachaceiro que a gente enterra este mês. Deu uns passos em torno da sepultura da sogra para fingir que tomava a

medida. E veio voltando. Bem devagarzinho. Olhando os túmulos. Aqui jaz o doutor Manuel Bacalhau. Esse também morreu de cabeça. À memória de dona Iracema Vaz de Castro Soares. Pra que "dona" agora? Passou a vida toda na cozinha. Viandante, pára! Aqui repousam os restos mortais do monsenhor Benedito Moura...

Então, Crispim, não vieram mais roubar os bronzes do túmulo, não? — Que esperança! Eu tenho sono leve e pontaria certeira! — Sei... De cada lado do túmulo tinha um canteirinho de cravos. O anjo de mármore

jogava flores sobre a lousa. Já tinha jogado cinco. Faltava ainda jogar três. — O caixão está debaixo da terra?

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— O senhor não esteve no enterro, seu Nicolau? Está no gavetão. Debaixo da terra está nhá Belarmina. Faz uns vinte anos. O túmulo foi feito por padre Dito quando muito uns dois meses antes de morrer.

— Tem razão. Não me lembrava. Túmulo sólido, pesado. Gavetão duro de abrir. Tampa bem encaixada. Nem se

perceberia que era tampa se não fosse o argolão de bronze. — Monsenhor Benedito de Moura. Homem bom. Um santo. — Que dúvida! Cada vez que vinha aqui arranjar o jardinzinho... — Que jardinzinho? — Ué! O jardinzinho que tinha! Antes do túmulo só tinha um jardinzinho e uma

cruz no meio. Desse jardinzinho é que padre Dito cuidava todas as semanas que Deus dava. Quando podia ajudava ele. E ele, já sabe: me...

Nicolau disse de repente: — Até outro dia, Crispim! Não podia mais. Se ficava mais um minuto se traía, contava tudo. Mas meu

Deus do céu, como é difícil a gente guardar segredo assim dentro da gente. Hoje mesmo precisava resolver tudo. Senão não aguentava: morria de aflição. Agora é ir almoçar que já são horas. Nem se discute: padre Dito com a desculpa de arranjar a sepultura da velha o que fazia era enterrar ouro e mais ouro, o filho da m...

— Está falando sozinho, rapaz? — Hein? Ah sim! Estava fazendo uns cálculos. Estou com muita pressa.

Lembranças em casa. Passar bem, Abílio. Apareça. Depois do almoço mandou dona Esmeralda dizer para o major e o Antônio

Vicente que estava doente sem poder sair de casa mas que queria muito conversar com eles. Eles que viessem logo. E na reunião convenceu os companheiros políticos de que era uma infâmia a permanência de perrepistas na comissão das obras da matriz. Era preciso organizar outra com o major na presidência e ele Nicolau feito tesoureiro. Assentado isso, dona Esmeralda foi buscar padre Zoroastro. Padre Zoroastro foi dizendo que sim com a cabeça mas na hora de resolver a coisa falou:

— Está tudo muito certo. Porém não pode ser. 195

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— Por que não pode ser? — Não pode ser porque Zequinha Silva é pessoa — não é? — de muita

confiança do bispo. É. E não permitiu mais que Nicolau abrisse a boca. Não é? é, os amigos bem

compreendiam a situação, não é? é, apertou a mão dos três, foi-se. Botando Nicolau no auge da indignação. Começou a injuriar padre Zoroastro, a falar o diabo do bispo, a dizer coisas de Zequinha Silva, da filha de Zequinha Silva. Insinuou mesmo que entre dona Isolina e padre Zoroastro havia grossa patifaria. Então o major saiu de seu silêncio espantado:

— Mas afinal de contas, Nicolauzito dos meus pecados, o caso não tem assim tanta importância. Não se trata de cargos políticos. São cargos — como direi? — são cargos... técnicos!

— Olha a grande besteira! De seu lado Antônio Vicente não percebia também a causa de tanto ódio. Está

claro que seria melhor arranjar outra comissão, mas o bispo não querendo não valia a pena brigar com o bispo por tão pouco.

— Eu acho assim. Com saias a gente não briga que sai perdendo na certa. Nicolau ia e vinha na sala, bufando. Tapava os ouvidos quando os outros falavam,

dava murros na parede, dizia palavrões. E por fim estourou: — Vocês querem saber o que há, não é verdade? Vocês estão cheirando qualquer

segredo, não é isso? Pois têm toda a razão: há um segredo! Eu conto! Não tenham medo não!

Contou à moda dele. E porque os outros assumiram uns ares incrédulos, até caçoístas, contou, gritou duas, três, quatro vezes o sonho da mulher.

— Carambas, carambolas! — disse o major. — É muito capaz de ser verdade mesmo! Olhem que as ervas são muitas!

— Mas quatro quintas partes são pro Nicolau — disse Antônio Vicente com um jeitinho malandro. — Quase tudo é pro Nicolau! E o resto pra matriz!

— Naturalmente! — disse Nicolau. O major coçou a nuca, fechou os olhos, pensou, depois falou: — Mas o nosso Nicolau tem que ser cordato, tem que ser camarada.

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Que diabo. A gente pode entrar aí num entendimentozinho... Hein? Que é que diz a isso o nosso amigo?

Nicolau não disse nada. E começou a andar de novo pisando duro. Houve um silêncio cacete. Antônio Vicente acabou com ele:

— Talvez... Eu também penso assim... A bolada é grande, dá para satisfazer todos...Você não acha, Nicolau?

Nicolau parou na frente dos dois e falou: — Digam com franqueza! Vamos! Desembuchem! O que vocês querem é ganhar

no negócio, levar sua vantagenzinha, não é? Os dois tentaram protestar, mas Nicolau cortou a palavra deles: — Pois muito bem! Eu já esperava isso! Quanto é que vocês querem? Mas

fiquem desde já sabendo que da minha parte eu não cedo um tusta, ouviram bem? Agora, na que é pras obras da matriz, podem avançar à vontade!

O acordo custou. Mais de uma vez Antônio Vicente pegou no chapéu e ofendido ameaçou se retirar. O major porém não deixava.

— Senta-te aí, homem! Não saias que te arrependes logo! E foi ele que, disposto a não perder o negócio, forçou Nicolau a se contentar

com sessenta por cento. Ele e Antônino Vicente se comprometiam a auxiliar o amigo em qualquer terreno, recebendo cada um quinze. Os dez restantes seriam para as obras da matriz.

— Está bem. Mas não está de acordo com a vontade de padre Dito. — Deixa-te de bobagens, homem! Tu modificas o sonho e acabou-se. Quem é

que vai provar que o padre disse coisa diversa à tua patroa? Olhe que até me acode um trocadilho bem feliz: fica o dito do padre Dito por não dito e pronto! Otimíssimo, hein? Não há nada como um bom negócio para pôr a gente alegre! Eu até sou capaz de pagar uma cervejinha.

Nicolau recusou. E despediu os amigos. Precisava de sossego para estabelecer um plano seguro a ser executado sem perda de tempo. Pensou o resto do dia, pensou parte da noite e na manhã seguinte combinou a coisa com os sócios.

Os 18 de Copacabana foram convocados para as 19 horas em casa do major. Compareceram dez. Nicolau arranjou mais uns malandros e marcharam todos incorporados para a casa de Zequinha Silva. A fim de exigir a renúncia coletiva da comissão. Ou ao menos a do presidente e 197

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tesoureiro, que era o genro do presidente. Mas Zequinha Silva mandou dizer que não recebia ninguém. E quando a coisa já estava quente chegaram padre Zoroastro, o doutor Salomão e o prefeito Idílio. Discutiram na rua mais de meia hora. Afinal os 18 de Copacabana concordaram em que no dia seguinte haveria uma reunião na Câmara Municipal a fim de se resolver com calma e definitivamente o assunto, presentes as autoridades, interessados e pessoas conspícuas de Jataí-Vila. Concordaram a muque (Paulista não tem ânimo bélico!, costuma afirmar o prefeito Idílio) porque o doutor Salomão mandou chamar o destacamento.

Nicolau pensou a noite toda, gastou a manhã limpando o revólver, encheu o tambor, pôs outras balas no bolso, beijou a mulher aflita, respondeu carrancudo ao sorriso da vizinha sua comadre, tomou a rua Siqueira Campos (antiga Júlio Prestes), atravessou o largo Juarez Távora (antigo de São Paulo), deu um esbarrão distraído no solicitador Raimundo Matos, não pediu desculpa, também não ouviu o palavrão do solicitador, passou pelo correio sem perguntar se havia carta, entrou na Câmara Municipal com a braguilha da calça aberta.

— Abotoa aí! — disse o major. A sala das sessões já estava apinhada. Padre Zoroastro na presidência explicou os

fins da reunião e deu a palavra para Antônio Vicente. Este falou: — Os que como nós costumam buscar no passado os ensinamentos para o

presente sabem que na Idade Média várias expedições armadas chamadas cruzadas deixaram a Europa para arrancar Jerusalém das garras sacrílegas dos muçulmanos!

— Que é que nós temos com isso? — perguntou o genro de Zequinha Silva. — Muita coisa! Vossa Excelência não me deixou terminar o paralelo que

pretendo esboçar! Com efeito, meus senhores, ao grito de Deus o quer!, os cristãos do Ocidente mais de uma vez se levantaram de armas nas mãos para expulsar da Cidade Santa os infiéis do Oriente! Pois bem! Nós, os fundadores da República Nova, também nos levantamos ao grito de A Revolução o quer! para exigir que os membros da atual comissão das obras da matriz, infiéis de 24 de outubro, sejam destituídos e imediatamente substituídos pelos fiéis de Copacabana, pelos heróis... 198

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Padre Zoroastro interrompeu: — Eu acho que a discussão deve ser curta, não é? — e se cingir aos fatos. É.

Devemos economizar nosso tempo. — Também acho, excelentíssimo senhor presidente desta augusta assembleia! E é

por isso... — O que o senhor Antônio Vicente pede é a substituição da comissão atual.

Não é? E funda seu pedido no fato de o senhor José Silva e demais membros da referida comissão não serem revolucionários. Pois então. Já estamos cientes. E eu vou dar a palavra ao senhor José Silva para dizer o que julgar conveniente a respeito. Fica bem assim. Não é? Tem a palavra o senhor José Silva.

Zequinha Silva principiou dizendo que desconhecia revolucionários em Jataí-Vila a não ser alguns da última hora. Colocava pois a questão em outro terreno. Achava que se devia somente indagar se a atual comissão era ou não composta de gente trabalhadeira e honesta. Porque ser revolucionário só não adianta.

— Eu sou produto do meu trabalho honrado! — gritou o major. — Como é mesmo? — perguntaram. — Ficam proibidos os apartes — falou padre Zoroastro. — Não é melhor?

Continue, seu Zequinha. Zequinha provou documentalmente que a comissão presidida por ele sempre se

houve com diligência e probidade. Em todo caso desistia, por si e pelo genro, de continuar nela se a maioria dos presentes quisesse. Mesmo porque confiança não se impõe.

Padre Zoroastro disse que era melhor recolher logo o voto dos presentes. Os presentes (com exceção do major, Antônio Vicente e Nicolau, que queria a palavra para uma explicação pessoal) concordaram. E padre Zoroastro falou que antes de proceder à votação desejava ler para governo de todos uma carta do bispo de Samburá. Na carta do bispo dizia que, caso fosse destituída a comissão atual, que lhe merecia a mais absoluta confiança, não autorizaria outra que se formasse a dirigir as obras da matriz e suspenderia estas até melhores tempos.

— Ah! É assim? — berrou Nicolau. — O senhor, padre Zoroastro, quer fazer pressão? O senhor se engana! Não estamos mais sob o domínio do perrepismo! 199

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E a confusão se fez com injúrias pesadas. Mas padre Zoroastro ameaçou se retirar e conseguiu assim restabelecer a calma. Então disse:

— Senhor Nicolau Foz, saiba que eu não fiz mais do que cumprir o meu dever de pároco lendo a carta do excelentíssimo senhor bispo desta diocese. Não é?

— Perfeitamente! — apoiaram. — Mas, se o senhor tem algum esclarecimento importante a dar e promete não se

exaltar, eu lhe concedo a palavra por cinco minutos. Nicolau, de olhos fechados, fungava forte entre o major e Antônio Vicente.

— Não tem nada a dizer? — perguntou padre Zoroastro. Nicolau abriu os olhos, viu o sorriso vitorioso de Zequinha Silva, pulou da

cadeira, afirmou: — Tenho! Tenho uma coisa a dizer! — Não diga! — disse Antônio Vicente baixinho. Nicolau se virou para o companheiro e falou: — Digo! — Diga de uma vez! — gritaram. — Pois digo! Se a comissão atual não for destituída... — Ela tem a seu favor a honestidade com que tem agido! — berrou o prefeito.

— Em face da revolução não há direitos adquiridos? — berrou Antônio Vicente. — Que asneira é essa? — falou o doutor Salomão. — Quê que o senhor está dizendo? Asneira? São palavras textuais do ministro da Justiça.

— Está com a palavra o senhor Nicolau Foz! — advertiu padre Zoroastro. — Se não destituírem a comissão do PRP, eu não revelarei um segredo... — Não revelaremos! — secundou o major excitadíssimo.

— ...o qual segredo foi contado pelo falecido padre Dito à minha senhora! E a confusão se fez de novo. E padre Zoroastro de novo conseguiu restabelecer a

ordem. — Temos o direito de saber, não é?

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Então aos berros Nicolau soltou tudo, menos o lugar onde se achava escondido o tesouro. E padre Zoroastro desistiu de restabelecer mais uma vez a calma. Impossível. O genro de Zequinha Silva subiu na cadeira e começou a arengar sem ser ouvido. Antônio Vicente só sabia dizer: Conheceram, papudos? Entre os que achavam que aquilo era uma mistificação ignóbil e os que pensavam que por via das dúvidas convinha verificar a coisa direito houve ameaças de tiros. O turumbamba estava armado. Puxaram o genro de Zequinha Silva por uma perna, deram uns tabefes nele, ele rolou no chão gritando: Basta, assassinos! Padre Zoroastro com muito gosto salvou o coitado e se retirou com ele e Zequinha abanando a cabeça.

— Sempre a maldita história do espiritismo estragando tudo! Não é? A mãe, a sogra, a mãe de Esmeralda, a sogra do Nicolau já eram assim!

Aos poucos os mais chegados a Zequinha foram também saindo. Disposto a aclarar o negócio do tesouro, o doutor Salomão, em pé na cadeira da

presidência, perguntou se estavam numa terra de bugres. O silêncio respondeu não. E o doutor Salomão se declarou pronto a servir de intermediário entre os grupos adversos e fez um acordo honroso.

— Não há acordo! — disse Nicolau. Para o doutor Salomão era chegada a hora de todos usarem da máxima

franqueza. O senhor Nicolau Foz não queria fazer acordo. Prescindia assim da colaboração alheia. Mas que essa colaboração era indispensável para ele estava patente no fato de o senhor Nicolau Foz, embora conhecendo o lugar onde se encontrava o tesouro, não haver até então se apossado dele.

— Porque fui educado na escola da honestidade! Sou brasileiro legítimo! De raça! O doutor Salomão insistiu em que a hora só admitia cartas na mesa. A honestidade do senhor Nicolau Foz estava acima de toda e qualquer suspeita. Mas ele era de carne e osso como os outros. Se tivesse jeito de se apossar sozinho do tesouro, já o teria feito. Achava pois conveniente que antes de mais nada fosse revelado o lugar onde as cinco panelas de ouro estavam escondidas. O que foi aprovado com calor. As considerações do doutor Salomão tinham abalado a assembléia. Nicolau sentiu sobre ele e através dele sobre 201

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o tesouro o olhar ávido dos dois irmãos Tarantelli, do tenente Messias Jesus Conrado, de Alcebíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, doZizi, do doutor Teotônio, de todos os presentes, de todos os ausentes.Canalhada.Felizmenteestava armado.Matava.Morria.Masnãodizia.

O doutor Salomão sentara-se fixando Nicolau. A assembléia sentou-se fixando Nicolau. O major se levantou:

— Somos todos pessoas de respeito e que se prezam, não é verdade? Pois muitíssimo bem. O que há a fazer é entrar num entendimento cordial com o nosso simpático amigo Nicolau a fim de que ele, certo de que não será prejudicado, possa revelar o lugar em questão. Pois não lhes parece assim?

— Compreendo—disse o doutor Salomão.—O senhor Nicolau impõe condições. — Condições não! — falou o major. — Ou melhor: existem condições, mas

quem as impõe é o próprio padre Dito, que Deus tenha. — Que condições? — perguntou o doutor Salomão. — Razoáveis, muito razoáveis — disse o major. — Justíssimas até. E é preciso

que sejam respeitadas. Está claro. — Mas quais são elas? — insistiu o doutor Salomão. — O saudoso padre Dito faz absoluta questão de que noventa por cento do

dinheiro fiquem pertencendo ao nosso prestante amigo Nicolau, empregando-se os dez por cento restantes nas obras da matriz... Então? São ou não...

— O quê? — Está brincando! — Bandalheira! — Quanto leva no negócio? — Que piratas!

A assembleia gritava de pé. O doutor Salomão tornou a subir na cadeira, ameaçou dissolver a reunião com o destacamento, pediu calma, obteve relativa. E falou:

— O senhor Nicolau sustenta o que disse o major Mourão? Nicolau disse: — Sustento até morrer!

O major suspirou aliviado. O doutor Teotônio disse: 202

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— Eu proponho para harmonizar as coisas que o dinheiro seja todo entregue ao benemérito governo provisório para ajudar o resgate da dívida nacional!

Houve uma salva de palmas. Mas não unânime. — Nunca! — berrou Nicolau. — Ao menos cinqüenta por cento eu exijo pra mim

porque foi pra minha mulher que padre Dito apareceu em sonho! O major falou sincopado: — Como? Cinqüenta por cento? Mas... Ora essa! Cinqüenta por cento? Não pode

ser! Há aí engano! Não... não é... não está certo! Antônio Vicente se ergueu com altivez, foi até a porta, virou-se antes de sair e

disse: — Com traidor eu não discuto! O prefeito Idílio disse: — Eu proponho que cinqüenta por cento sejam para as obras da matriz mesmo

e cinqüenta por cento entregues à prefeitura para serviços de utilidade pública! — Nunca! — berrou Nicolau. — Cinqüenta por cento pra mim!

O resto pode ficar pro que quiserem! Zizi disse: — Eu proponho que o dinheiro inteirinho... — Nunca! — berrou Nicolau. — A metade tem que ser pra mim! O tenente Messias disse, engrossando a voz: — Eu proponho que se obrigue o Nicolau a dizer já, mas já, imediatamente,

nem que seja à força, onde é que está o cobre! Nicolau quis falar mas não pôde. E os dois irmãos Tarantelli, o tenente Messias

Jesus Conrado, o Alcebíades Valentim vulgo Ali-Babá, o Bibi, o Dadau, o Zizi, o doutor Teotônio, os outros, todos, até o doutor Salomão, até o prefeito Idílio, até o major Mourão, que já não sabia direito o que fazia, com os punhos erguidos cercaram Nicolau. Aí Nicolau puxou o revólver.

— Cachorros! Ca... chorros! Foi andando de costas até a porta, saiu correndo. Na rua o Afonso Henriques

esperava o pai de baratinha. Nicolau, brandindo o revólver, entrou no auto. Mandou: — Toca pro cemitério! Afonso Henriques começou a chorar.

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— Toca senão te mato! O Ford pulava na rua da Expiação. Afonso Henriques suplicava: — Vamos... vamos voltar, seu Nicolau! Por favor! O senhor está... está tão nervoso! Nicolau dizia: — Toca, seu covarde! Não esperou o Ford parar. Saltou, tropeçou, quase caiu, entrou no cemitério de

revólver na mão. Deu poucos passos, parou. Estava tonto. Olhava de um lado para outro. Pensava: Que é que vim fazer, meu Deus?

Com um enxadão. Crispim surgiu por detrás da capela. Longe ainda. Nicolau deu com ele, correu para o túmulo do padre Dito, e sem largar o revólver começou a desmanchar um canteirinho. Crispim correu também gritando:

— Que é isso, seu Nicolau? Não faça isso! Nicolau viu Crispim já perto, pulou na frente do túmulo, apontou para o gavetão,

atirou. — Largue esse revólver, seu Nicolau! Nicolau enfrentou Crispim, disse com voz sumida: — Me dá essa enxada! — Eu dou se o senhor largar o revólver. — Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!

— Não se chegue, seu Nicolau! — Me dá essa enxada! Me dá essa enxada! Nicolau ia avançando. Crispim recuando. — Pra quê que o senhor quer? — Me dá essa enxada! A voz sumia cada vez mais, o revólver tremia, os olhos se enchiam de lágrimas. — Eu mato! Me dá essa enxada! Mal podia suster o revólver, segurou com as duas mãos. Crispim recuou até o

túmulo do padre. Com o enxadão erguido. — No túmulo do padre Dito o senhor não toca, seu Nicolau! — Eu te mostro! Mas, antes de apertar o gatilho, levou com o enxadão no alto da cabeça, caiu com os miolos

de fora. — Acuda! Acuda! — deu de gritar Crispim. 204

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Foi quando no portão do cemitério pararam vários automóveis e, seguida dos dois irmãos Tarantelli, do tenente Messias Jesus Conrado, do Alcebíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do doutor Teotônio, todos, até o prefeito Idílio, até o doutor Salomão, até o major Mourão com o chapéu de Nicolau na mão (O doido esqueceu a cabeça!), dona Esmeralda entrou na carreira. Deu um grito, se jogou sobre o cadáver. Mas não chamava pelo marido não. Dizia só:

— Ah, minha mãe, minha mãe! Fim

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