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FINITUDE E MELANCOLIA EM “AGORA E NA HORA DE NOSSA MORTE”, DO POETA PORTUGUÊS JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
FELIZARDO, ALEXANDRE BONAFIM1
RESUMO
Na obra Agora e na hora de nossa morte, do poeta português José Agostinho Baptista, a poesia, de forte
apelo elegíaco, torna-se uma forma de sublinhar o espanto, a vivacidade primeva do olhar, intensificando
o estar do homem no mundo. Pela aguda consciência dos limites da vida, Baptista irá buscar um real
absoluto, transposto para a palavra, capaz de realçar e nuançar a força viva da realidade fenomênica. A
finitude torna-se via de acesso ao poético e sublimação de toda a caducidade de nossa condição humana.
Para o poeta português, a escrita abre brechas para além da precariedade de nossa condição. É a partir
desse feito que Agostinho Baptista irá sublinhar as possibilidades do devaneio poético, desbravando os
limites do tempo e do espaço e configurando a vida numa espécie de eternidade lírica, viva pela poesia. O
lirismo surge como um brado de louvor à existência e uma forma de perenizar o homem, possibilitando
não somente ao poeta, mas também ao leitor, a capacidade de empreender uma catarse de suas angústias
existenciais. Conforme Maurice Blanchot, todo ato de escrita é um desvendar da morte. Se, conforme Karl
Jaspers, morrer é uma anti-experiência, a alteridade impossível de ser transposta pelo pensamento
racional, a literatura permite-nos, pelo onirismo, sondar esse liame do indizível, essa fronteira sem limites.
Além do mito e da religião, poderíamos também incluir a arte como forma de elaboração desse silêncio,
dessa impossível realidade da morte. Em muitos autores, portanto, a poesia torna-se uma elaboração
simbólica da morte, uma forma de captar esse momento de nulidade, transformando-o em arte.
Confrontar a morte pela poesia é, assim, uma experiência fundamental para o homem, pois através da
palavra ele consegue esmiuçar a angústia da finitude, o medo da dissolução, sublimando-as pela palavra
simbólica e lírica.
Palavras-Chave: José Agostinho Baptista. Finitude. Lirismo. Melancolia.
1 Doutorando em literatura portuguesa pela USP, professor de literaturas de língua portuguesa da UEG/ Morrinhos.
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INTRODUÇÃO
Nosso objetivo é fazer uma análise da obra Agora e na hora de nossa morte de
José Agostinho Baptista. Para tanto abordaremos a questão da finitude e do tempo em
sua escritura. Nosso método será o da análise textual, pautada em leituras filosóficas e
análise estilística.
De acordo com nossa perspectiva teórica, confrontaremos, na poesia de Baptista,
a questão da melancolia e da angústia existencial. Como a obra do poeta português tem
fortes traços da corrente filosófica do existencialismo, pautaremos nossa análise pelas
leituras dos filósofos dessa corrente de pensamento.
Agora e na hora de nossa morte
Em Agora e na hora de nossa morte, décimo livro de poesia do escritor
português José Agostinho Baptista, a finitude e a caducidade da condição humana
estruturam o encadeamento dos poemas, num eixo temático a imprimir forte coesão à
obra. Com efeito, o livro torna-se, pela sequenciação estrutural temática, uma peça de
arquitetura coesa, em que cada poema dialoga com os demais, formando uma linha
narrativa de contundente expressão catártica.
Nessa obra de impactantes imagens, o eu lírico dos textos desvela-nos o drama da
perda de um ente querido, no caso, a figura paterna. A morte desse pai leva a voz
poética a escavar metáforas de grande força plástica, de precisa acuidade visual, num
estertor lírico em que o onirismo torna-se expressão de um luto que não deseja
descanso. Daí o grande desamparo desse eu perdido no caos da solidão e da saudade:
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Desamparo
Não posso olhar de frente as torres deste castelo
habitado pelas trevas.
Quando os lobos uivam e aberta já está a lua,
as flores amargas dos teus olhos
desfazem-se aos meus pés.
E o pó, as cinzas, os restos de tudo o que
respirava,
amontoam-se à beira deste mar.
(BAPTISTA, 2000, p. 568)
O espaço do castelo, de gosto medieval, desvela-nos um ambiente soturno,
penumbroso, em que as sombras correspondem ao estado anímico da voz lírica. Dessa
maneira, a noite torna-se um correlato objetivo da angústia desse eu, personagem
incapaz de fitar, de frente, o castelo enigmático e hermético. O mistério do cenário é
acentuado, por sua vez, pelo uivo sinistro dos lobos e pela tez nebulosa do luar,
verdadeiras molduras para a epifania desse ser cujos olhos são flores esboroadas. Por
conseguinte, a metáfora da flor desfeita se completa por outras imagens, todas índices
da destruição e da morte: pó, cinza, restos. Assim, a integridade do outro desfaz-se em
imagens relacionadas à morte e à destruição. De tudo o que respirava, fica-nos apenas
restolhos amontoados à beira do mar. A grande força dos três últimos versos reside
nessa antítese entre o ínfimo das cinzas e a vastidão do mar. Para lembrarmos
Drummond, de tudo resta um pouco, não muito. Todo o poema, portanto, irrompe
como expressão da estranheza, do mistério, do enigma da efemeridade da vida.
Com efeito, a morte pertence àqueles fenômenos extremos de nossa condição, em
que a tentativa de análise crítica e racional frustra-se em um limite intransponível.
Como a questão de Deus e da eternidade, a finitude desvela-se, aos olhos do homem,
como um acontecimento-limite, capaz de desafiar toda reflexão, todo questionamento,
legando ao homem um completo silêncio. O poema “Desamparo” corresponde à
frustração do intento racionalista de explicar a morte, daí os sentimentos inerentes a
todo o livro de Baptista serem justamente a perplexidade e o estranhamento.
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Conforme Maurice Blanchot (1987), o ato de escrever, em si, já é uma ação
intimamente ligada ao escoamento da vida e do tempo. Escrevemos por sermos
passageiros e contingentes, por não nos contermos no instante. Cada signo textual
desponta, aos olhos do escritor, como uma fulguração do efêmero, fulminante expressão
da própria morte. José Agostinho Baptista, portanto, em Agora e na hora de nossa
morte, leva tal consciência da precariedade humana ao seu ápice, à sua agudeza. Nesse
sentido, a expressão verbal frustra-se e o poema nasce como expressão do indizível da
morte, como eco de um silêncio sem fim. Podemos notar tal efeito no poema “Silêncio”:
Uma noite
quando o mundo já era muito triste,
veio um pássaro da chuva e entrou no teu peito,
e aí, como um queixume,
ouviu-se essa voz de dor que já era a tua voz,
como um metal fino,
uma lâmina no coração dos pássaros.
Agora,
nem o vento move as cortinas desta casa.
O silêncio é como uma pedra imensa,
encostada à garganta.
(BAPTISTA, 2000, p. 570)
O pássaro, ser estranho que irrompe da chuva, atravessa o peito desse
moribundo, numa imagem plástica da própria vinda da morte. Ao atravessar o corpo, a
dor da fatalidade, lâmina de fino metal, corta a voz do personagem lírico e evade-se pelo
mundo. Por conseguinte, numa bela hipérbole, tal vagido de sofrimento perfura também
o coração do cosmos, dos demais pássaros do mundo. Desse grito lancinante, assim,
resta, em seguida, o vazio de uma casa imóvel, sem vento. Tudo se finda, portanto, num
grande silêncio expresso, sinestesicamente, pela pedra encostada à garganta. A
expressão lírica torna-se, assim, um gesto absurdo, um urro sufocado pela pedra.
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Para lembrarmos Karl Jaspers (1973, p. 128), morrer é uma anti-experiência,
alteridade indecifrável e inaudita. Dessa maneira, a literatura, como as demais artes,
paradoxalmente, tangencia, pela expressão metafórica, esse liame intransponível,
fronteira do vazio e do nada.
Ida Ferreira Alves, em arguta análise da lírica de outro poeta português, Rui Belo,
faz-nos importantes reflexões sobre as intricadas relações entre finitude e poesia. De
acordo com a autora, em relação à morte, a linguagem verbal torna-se inoperante, “pois
enquanto falamos dela não a experimentamos. A morte seria o sentido absoluto, o
indizível. A poesia é, então, um especial discurso mortal, porque figurando e
ficcionalizando essa experiência total de ausência, consegue fazer ver sua presença em
abismo” (ALVES in DUARTE, 2008, p. 249).
Dessa maneira, pela escritura lírica, o poeta elabora simbolicamente a morte,
captando a nulidade, o vazio de tal experiência pela metáfora. A própria lógica
enigmática do jogo metafórico, signo a ocular outro signo, palavra a esconder outro
valor semântico, de cunho conotativo, serve, por sua vez, como um desdobramento
insano, absurdo da linguagem humana frente ao caos da finitude. Para lembrarmos
Blanchot, toda metáfora para a morte redunda em fracasso, pois por detrás de tal figura
há somente o nada e o absurdo, jamais outro signo, outra palavra. Daí a linguagem lírica
exprimir, paradoxalmente, o indizível, o silêncio
Com efeito, Ida situará a poesia e a morte no delicado jogo de forças entre Eros e
Tânatos. Assim, conforme a autora, a escritura lírica reside no “permanente embate
entre a pulsão de vida e a pulsão de morte”. Nesse “embate permanente que a arte
manifesta, está a razão da escrita poética que é exatamente um exercício do
irreconciliável, uma tentativa sempre malograda de se aproximar ‘por imagens’ do
indizível” (ALVES in DUARTE, 2008, p.251).
Por outro lado, a demolição de toda a criação cósmica, conforme Karl Jaspers,
constitui a essência de todo o existente. A matéria, num lento e agônico processo, sofre
inúmeras metamorfoses, em que a destruição e o surgimento do novo correspondem-se
perenemente em um ciclo infindável. Portanto, o processo de aniquilamento está no
cerne de toda matéria e o homem é apenas uma pequena e ínfima peça desse jogo:
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“Tudo chega a um fim: não apenas o que eu sou e o que os outros são, mas também a
humanidade e tudo quanto ela produz e realiza. Tudo mergulhará no esquecimento,
como se jamais tivesse existido” (JASPERS, 1973, p.129). O silêncio e o esquecimento,
assim, permeiam a lógica (ou caducidade) cósmica do homem.
A dor lírica de Agora e na hora de nossa morte reside nessa consciência
irrestrita, fatal, da finitude de todo o existente. A angústia da voz poética do livro
enraíza-se, dessa forma, num fecundo e terrível sofrimento, sem peias, nem freios, na
manifestação de uma angústia cósmica, capaz de afrontar toda esperança, todo alento.
No poema “Febre”, a perspectiva da angústia do enfermo abre-nos, sem nenhum
lenitivo, a caótica desordem biológica da morte, raiz universal da condição humana:
A febre volta, e demora-se.
Nada podes contra os desígnios da carne mortal.
Deixas inclinar a cabeça para o lado onde a
obscuridade ou a calma trazem a evocação dos
prados,
como se houvesse um regato nesta almofada de
pétalas queimadas
e o rumor dos eucaliptos distantes voltasse de
repente
e sobre as veias da tua árvore nua corresse
uma seiva transparente,
uma pura imagem de lagos tranquilos
com um cisne de vidro, resplandecendo.
Sede, sede é tudo o que me aperta e consome.
Levanta-me, meu filho,
leva-me para as montanhas, traz-me as
maçãs e a neve.
(BAPTISTA, 2000, p. 579)
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A última estrofe corresponde ao clamor do pai moribundo que, num gesto de
esperança, roga ao filho os lenitivos de sua sede, de seu sofrimento. A maçã e a neve
surgem como imagens do bem-estar, objetos capazes de serenizar as agruras físicas da
morte. Portanto, nem tudo é caos. No fundo desse excruciante sofrimento, insurgem
epifanias, como as da maçã e da neve, capazes de alentar o doente.
O embate da vida e da morte, como podemos notar em “Febre”, escrutina-se nas
malhas da escrita, como um jogo insano, pelo qual o eu lírico intenta, com volúpia,
salvar-se do completo nada da morte. Gagnebin (1994, p.61) expressa o conflito entre o
aceitar a morte e a luta contra a finitude: “A escrita descreve o trabalho do tempo e da
morte, mas ao dizê-lo, luta igualmente contra ele”. Dessa maneira, “Busca-se pela
escrita, algum sentido em meio às coisas que caem, que se perdem, em meio ao tempo
que se esfacela e tudo dispersa”. A dor, assim, “torna-se um valor afirmativo”
(FRANCISCO in: DUARTE, 2008, 125), pois é dela que se extrai a arte e a força criadora
como fontes de alento à vida, como um bálsamo ante o sofrimento da finitude. De
acordo com João Barrento, a literatura “cria espaços em que a dor é, não excluída, não
travestizada nem espectralizada, mas serenamente convocada” (BARRENTO, 2002, p.81).
As belas metáforas de José Agostinho Baptista, assim, afirmam a verdade crua do
morrer. Todavia, ao engendrar metáforas de tão bela urdidura, parece-nos que, no
obscuro domínio da morte, a poesia irrompe como uma força naturalmente alentadora e
catártica. A palavra irradia seu encanto como único conforto ao irremediável.
Isso acontece porque o homem convive com a morte e faz do indizível dessa
experiência a matéria viva para os seus sonhos e devaneios, para a elaboração estética da
própria arte. A criação artística, assim, serve como rito preparatório para a nossa própria
dissolução, pois ao encararmos a verdade crua da finitude pela beleza da poesia,
amadurecemos a humanidade de nossa existência. Conforme Dastur (2002, p. 26): “O
que há de contrário à natureza na existência humana é precisamente que ela não se
constitui uma vida absolutamente viva, mas uma vida que inclui em si a relação com o
mundo dos mortos”. Seja pelas pompas fúnebres, imprescindíveis como ritos de
passagem da vida à morte, seja pela busca do sagrado ou da religiosidade como ideários
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pelos quais amenizamos a falta dos entes queridos, o convívio com o invisível é também
de nossa natureza.
Assim, em Agora e na hora de nossa morte, Baptista intenta preencher a
nulidade da ausência paterna pela força encantatória e elegíaca da poesia. Com efeito,
tal obra é toda inteira uma verdadeira elegia, em que o canto enforma uma concretude à
pessoa amada, desfeita em pó. Como nos demonstra Jaspers (1972, p.129), “A morte do
ser que me é mais caro, a privação de sua presença física, o sofrimento infindável que
brota do ‘nunca mais’ pode, tanto quanto os momentos sublimes, transformar-se em
consciência de presença”. Essa consciência de presença, nascida da própria ausência, dá-
se pela força plástica da poesia, pela qual se presentifica aquilo que Drummond tão
sabiamente intitulou de “a falta que ama”. José Agostinho Baptista, assim, preenche o
nada da ausência com as imagens da poesia, com a concretude do signo lírico,
configurando, assim, essa “consciência de presença” apontada por Jaspers.
Entretanto, apesar de iluminar o caos da finitude pelas luzes da poesia, nascer
corresponde a uma lenta e irremediável queda, pessimismo avassalador que percorre o
livro de Baptista e faz de seus leitores cúmplices desse horror impossível de ser evitado,
daí que nascer é, paradoxalmente, dar à luz a morte:
Parto
Tudo começa com um grito.
Depois vem o sol e depois as chuvas
e depois um pântano,
onde o amor se afunda.
O tempo passa, o pólen seca, os cabelos
são brancos;
Já nada floresce como outrora, clamorosamente,
nos pátios de uma ilha,
nas cidades do mar.
Tudo acaba com um grito
entre murmúrios e cânticos de maternal
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solidão –
dar à luz é dar à morte.
(BAPTISTA, 2000, p. 582)
Aqui reside, assim, aquele mesmo pessimismo abissal do Brás Cubas machadiano,
para quem perpetuar a espécie representa o grande mal do homem. O pessimismo de
Baptista chega, assim, às funduras de uma visão de mundo agônica, em que o
desamparo do homem torna-o um ser de fragilíssima existência.
Todavia, enquanto livro complexo e de urdidura oscilante, há em Agora e na hora
de nossa morte, porém, além das epifanias já assinaladas como formas alentadoras do
existir, a presença de um sutil espírito místico, intimamente irmanado ao cristianismo.
No poema “Herança”, a imagem do Cristo imolado relaciona-se com a do pai do eu
lírico, num paralelo pelo qual a dor se sacraliza. Baptista, num clamor de grande beleza,
conclama uma leve abertura ao sagrado e à perenidade da existência, simbolizados pela
imagem do pássaro:
Vi, na cruel desolação desta cruz,
o terror que empurrou os cravos para o
centro das mãos.
Vi o sangue e as lágrimas de sangue e a
esponja de vinagre encostada à carne viva.
Rasguei os salmos e as profecias.
Abandonei a oração.
Três vezes disse:
perdoai-lhes, pai, porque não sabem o que
são.
O que fazem é incendiar os dias.
Dias incandescentes, ardendo na loucura.
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Perdoai-lhes, pai.
E vem, ressuscitado e puro, com um pássaro
de alegria, a descer do sol.
(BAPTISTA, 2000, 583)
A alegria da ressurreição faz-se, novamente, por uma imagem de grande
plasticidade e beleza: um pássaro a descer do sol. Com efeito, mais que poeta da
musicalidade, Baptista é engenheiro de visualidades, de cenários mágicos, encantados,
de acontecimentos de grande transparência e força lírica. Daí seu parentesco com
importante poeta das imagens, Walt Whitman, autor americano que Baptista tão
competentemente traduziu.
A partir dessa força imagética, os espaços ganham concretude na lírica do poeta
português. Visualizamos lugares de grande força plástica, onde as epifanias encontram
acolhida, onde os dramas e alegrias da vida expressam sua face. Em “Inquietude”, um
bosque oloroso, orvalhado, abre-se como região onde o ser tão querido ruma para uma
montanha de sol. O espaço do cemitério, dessa forma, perde seu aspecto sinistro e
ganha uma aura de beleza intensa, densamente espelhada pela linguagem lírica:
Faz-se de inquietude
a sucessão destas horas que os pêndulos ordenam
na sala onde a solidão e o pó se acumularam,
onde na jarra escura uma flor de papel
recorda a tua última vontade,
na tarde ameaçada.
À serenidade dos livros convoco um dom oculto,
uma palavra,
tudo o que me leve para as tuas alvoradas,
não aqui
mas em olvidado bosque cujo orvalho ameaça as
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claridades,
lançando o seu véu de inumeráveis gotas sobre o
coro dos anjos,
oxidando suas liras,
à espera que passes, na tua nave de mogno e
cetim,
a caminho das fronteiras que não têm fim,
não aqui
mas na inacessível montanha onde o sol se
esconde.
(BAPTISTA, 2000, p. 589)
A presença amada, com efeito, ruma para a montanha, em outra imagem de
grande beleza, espaço a nos remeter ao sagrado e ao eterno.
Para finalizarmos nossa exposição, citaremos mais um poema, no qual podemos
vislumbrar, mais uma vez, a força pictórica da escrita de Baptista:
Neste retrato
estás a olhar para diante, para sempre, para
muito além,
sabe-se lá por que saudade, por que mágoa,
mas além,
onde talvez houvesse um cofre aberto para os
sonhos que devastei,
pérolas queimadas,
pérolas negras do medo e da paixão,
metais preciosos roubados às forjas de Deus,
tudo o que neste quarto desenha,
com incandescente ferro e pincéis,
ardor, fúria, tenacidade,
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mas nunca a renúncia, nunca as marcas do
luto e da febre sobre a lua amarela.
Neste retrato eras tu – e não poderia ser eu? –
com o tempo por cima, a passar impiedosamente,
o tempo do declínio, o tempo do pó,
tudo o que hoje se comprime nessa moldura de
prata,
ao centro da mesa tristemente.
(BAPTISTA, 2000, p. 599)
O retrato, nesse poema, surge, portanto, como uma terrível epifania a lembrar, ao
eu lírico, a força de dissolução da morte.
CONCLUSÃO
José Agostinho Baptista, em Agora e na hora de nossa morte, delineou, por
fim, um livro sensível, de grande contundência temática. Raras vezes em nossa lírica de
língua portuguesa um autor chegou tão fundo na questão da morte. Apesar de tal
perspectiva fatalizante, a poesia, para além da dor, abre suas imagens em grande força e
encantamento. José Agostinho Baptista, portanto, é uma das grandes vozes da lírica de
Portugal e Agora e na hora de nossa morte apenas nos confirma tal fato.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, José Agostinho. Agora e na hora de nossa morte in: Biografia. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2000.
BARRENTO, João. A espiral vertiginosa: Ensaios sobre cultura contemporânea. Lisboa:
Cotovia, 2002.
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BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987.
DASTUR, François. A morte: Ensaio sobre a finitude. Tradução de Maria Tereza Pontes.
Rio de Janeiro: Difel, 2002.
DUARTE, Lélia Parreira. (org.). De Orfeu e de Perséfone: Morte e literatura. Cotia:
Ateliê editorial; Belo Horizonte: Puc Minas, 2008.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 1994.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. Tradução de Leônidas
Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973.