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Filosofia, Justiça e Direito

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Filosofia, Justiça e Direito

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

Chanceler D. Jayme Henrique Chemello

Reitor

Alencar Mello Proença

Pró-Reitora de Graduação Myriam Siqueira da Cunha

Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e

Extensão William Peres

Pró-Reitor Administrativo Carlos Ricardo Gass Sinnott

EDUCAT - EDITORA DA UCPel

Editor Wallney Joelmir Hammes

CONSELHO EDITORIAL

Wallney Joelmir Hammes- Presidente Lino de Jesus Soares

Luciano Vitória Barboza Luiz Roberto Bitar Real

Vilson José Leffa

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas - UCPEL

Rua Félix da Cunha, 412 Fone (53)3284.8297 - FAX (53)3225.3105 - Pelotas - RS - Brasil

Agemir Bavaresco

João Hobuss Organizadores

Filosofia, Justiça e Direito

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas

Pelotas – 2005

© 2005 Agemir Bavaresco

João Hobuss (Organizadores) Direitos desta edição reservados à

Editora da Universidade Católica de Pelotas Rua Félix da Cunha, 412 Fone (53)3284.8030 - Fax (53)3225.3105 Pelotas - RS - Brasil E-mail: [email protected] Editora filiada à ABEU

PROJETO EDITORIAL

EDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso

CAPA Valder Valeirão

F488 Filosofia, justiça e direito / [organizadores] Agemir Bavaresco, João Hobuss. – Pelotas : EDUCAT, 2005.

150p. ISBN 85-7590-056-0 1.Direito – filosofia. 2. Justiça – filosofia. I. Bavaresco, Agemir. II. Hobuss, João. CDD 340.1

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233

SUMÁRIO O DIREITO NATURAL EM ARISTÓTELES ...................... 9

João Hobuss

AGOSTINHO SOBRE JUSTIÇA E PAZ................................ 43

Roberto Hofmeister Pich

HEGEL E O DIREITO: O MODELO DE

JUSTIÇA HEGELIANO ............................................................. 89

Agemir Bavaresco

JUSTIÇA PROCESSUAL E SUBSTANTIVA NA

FILOSOFIA PRÁTICA CONTEMPORÂNEA ..................... 129

Delamar José Volpato Dutra

APRESENTAÇÃO Ao longo da história da filosofia muitos argumentos foram construídos no que concerne às concepções de justiça e direito. Pode-se constatar que existem diferentes modelos de justiça e direito, correspondendo às circunstâncias e às teorias de cada autor e época. O livro apresenta em quatro períodos da história – antiga, medieval, moderna e contemporânea -, abordagens jurídico-filosóficas destas concepções.

No que concerne à filosofia antiga, o objeto de estudo em questão é a concepção de direito natural em Aristóteles, buscando elucidar “uma das passagens mais complexas e controversas da Ethica Nicomachea, pois, nas poucas linhas dedicadas por Aristóteles ao problema do direito antural, uma variada gama de questões são expostas sem deixar de causar uma certa surpresa, e mesmo admiração, tendo em vista uma abordagem que, à primeira vista, contradiz toda uma concepção no que concerne ao direito natural, sobretudo uma de suas características fundamentais, ou seja, seu caráter imutável, não sujeito às circunstâncias particulares de um dado país ou de uma dada constituição, um direito que paira acima da inconstância das leis particulares, positivas, variáveis de uma nação a outra, de uma forma de constituição a outra”. Na filosofia do medievo, buscar-se-á “apresentar uma visão sobre a ética, a política e o direito no Agostinho maduro, visão esta centrada nos conceitos de justiça e paz. Dá-se, com isso, razões para uma centralização na análise dos conteúdos da obra De civitate Dei. Sendo o pensamento agostiniano, em tais âmbitos, desenvolvido também em outros escritos, de modo particular no assim chamado “Epistolário” de Agostinho procurar-se-á, tanto quanto possível, integrar tais pareceres, em especial quando se notam mudanças ou evoluções relevantes de abordagem”

Para o período moderno tomou-se como referência a justiça em Hegel, na medida em que “o modelo de justiça da filosofia do direito moderno se estrutura, de um lado, como

método procedimental, alicerçando-se no entendimento que separa e fixa os fatos, estabelece as leis e princípios formais; de outro, enquanto jusnatural, afirma a liberdade negocial e a igualdade formal. Esse individualismo universalista implica uma justiça formal que segue o procedimentalismo jurídico. Ora, diante desse método e formalismo moderno jurídico, qual é o modelo de justiça hegeliano”?

Por fim, estará em discussão “muito mais do que a apresentação das teorias da justiça, a questão de sua natureza substantiva, ou processual. Melhor dito, parte-se do pressuposto da natureza processual da mesma, ao menos em dois autores centrais contemporâneos, Rawls e Habermas. Como exemplo de teoria substantiva da justiça podemos apontar aquela que defende o direito natural”, levando em consideração que a “tradição de uma formulação processual da teoria da justiça remete a uma dada interpretação da teoria moral kantiana”. Com estes quatro enfoques sobre a justiça, pensamos, de um lado, mostrar as bases da filosofia do direito ao longo da história e, de outro, apontar horizontes para o debate atual sobre os modelos teórico-práticos da justiça.

Agemir Bavaresco

João Hobuss Organizadores

DIREITO PÚBLICO EM ALEXANDRE KOJÈVE

Agemir Bavaresco 1

Resumo: O Direito Público em Alexandre Kojève, apresentado no trabalho, segundo a sua obra Esboço

de uma Fenomenologia do Direito, tem no desejo antropogênico o estatuto básico para a constituição do

reconhecimento intersubjetivo que é um processo dialético, baseado na figura do senhor e do escravo da

Fenomenologia do Espírito de Hegel. Da luta pelo reconhecimento, portanto, da intersubjetividade,

resultará a relação jurídica arbitrada por um terceiro imparcial. Considerando que o modelo

metodológico hegelo-kojèviano é pertinente para compreender o fenômeno jurídico, em que medida este

método e estatuto teórico-prático contribuem para a superação do Direito moderno, centrado na garantia

subjetiva dos direitos fundamentais? Qual é o alcance e o limite do conceito de Direito Público kojèviano

na dimensão constitucional e administrativa? A posição kojèviana sobre o Direito público, no seu duplo

aspecto, constitucional e administrativo é, eminentemente, política. Considerando a distância entre o

contexto sócio-político em que Kojève escreveu seu Esboço, e o posterior debate jusfilosófico

constitucionalista do Estado Democrático de Direito, cabe reconhecer a contribuição kojèviana na

perspectiva de um Direito intersubjetivo comunitarista.

Palavras-Chave: Fenomenologia do Direito, Desejo antropogênico, Direito Público, Direito

Intersubjetivo, Filosofia do Direito.

Abstract: The Public Law in Alexander Kojève which is focused in this work, as stated in Kojève’s

Sketch of a Law Phenomenology, has in the anthropogenical desire the basic statute for the constitution of

the intersubjective recognition which is a dialectical process based in the image of master and servant in

Hegel’s Phenomenology of Spirit. From the fight for recognition, therefore from the intersubjectivity, the

juridical relation mediated by an impartial third will overcome. Taking into account that the

methodological hegelo-kojèvian model is appropriate for understanding the juridical model, in what

measure this method and theoretical and practical statutes contribute towards the overcoming of the

modern Law, moving forward to a communitarist intersubjective Law? Which are the range and the limit

of the concept of Kojève’s Public Law in the constitutional and administrative dimension? Kojève’s

position on the public Law, in its double aspect, constitutional and administrative, is prominently

political. Considering the distance between the social and political contexts in which Kojève wrote his

Sketch, and the posterior constitutionalist jusphilosophic debate of the Law Democratic State, it is worth

recognizing Kojève’s contribution in the possibility of a communitarist intersubjective Law.

Keywords: Law phenomenology, Anthropogenical desire, Public Law, Intersubjective Law, Philosophy

of Law.

O reconhecimento intersubjetivo dá-se em vários níveis de mediação sócio-

jurídico-político, implicando uma teoria da justiça, correspondente, no sistema do

Direito Público. Ocorre que, ao exame da teoria acerca da idéia de justiça, vê-se, em

Kojève, que através do Direito, se mostra uma determinada idéia de justiça, derivada

das lutas por reconhecimento travadas no seio da sociedade. Neste sentido, o domínio

do Direito Público é o domínio do político e não, do jurídico eminentemente, uma vez

que tais lutas, por reconhecimento não poderiam ser resolvidas pela intervenção de um

terceiro imparcial. Ora, qual é, então, o alcance e o limite do conceito de Direito Público

kojèviano na dimensão constitucional e administrativa?

O presente trabalho, Direito Público em Alexandre Kojève, partindo de sua obra

Esboço de uma Fenomenologia do Direito, examina as repercussões da teoria kojèviana

1 Doutor pela Universidade Paris I, Professor do PPGFilosofia PUCRS. Site: www.abavaresco.com.br

da fenomenologia do direito sobre o Direito Público e, especificamente, sobre o Direito

Constitucional e Administrativo. Depois, é feito um balanço de sua aplicação da teoria

da justiça no Direito Público, apontando o alcance e o limite de sua análise da

Constituição e da Administração Pública.

1 - MODELOS METODOLÓGICOS DE RECONHECIMENTO: DO

DIREITO SUBJETIVO AO INTERSUBJETIVO

A passagem de uma perspectiva auto-referencial de sujeito de direito para uma

perspectiva intersubjetiva veio a ser promovida, primeiramente pela noção de relação

jurídica esboçada por Fichte; mas, será em Hegel que esta intersubjetividade fichteana

precária alcançará o status de instrumentação metodológica capaz de abordar, de

maneira eficaz e conseqüente, as aporias apresentadas pela realidade social, posta à luz

pela modernidade, para as quais a ―filosofia social moderna não está em condições de

explicar (...) já que permanece presa a premissas atomísticas‖ (Honneth, 2003, 42).

Tais aporias Hegel examina nas duas primeiras partes do artigo sobre o Direito

Natural, de maneira crítica e refutadora, para depois, na terceira e quarta partes, resgatar

das teorias, ditas, empíricas e formalistas, o que de universal era pelas mesmas

aportado. Mas, sem dúvida, é na abordagem do conceito de pessoa jurídica, feita por

Hegel, que situamos o ponto de inflexão entre uma perspectiva auto-referencial e uma

perspectiva intersubjetiva (ou relacional) do Direito.

Se a todo o momento o Direito Natural afirmara, até então, a liberdade do ponto

de vista do indivíduo, na questão específica da pessoa jurídica, esta noção era

exacerbada no jusnaturalismo de corte racionalista da ilustração. Assim, Hegel,

apontando as características produtivas da concepção moderna de pessoa jurídica, a

coloca no devido lugar; mesmo constatando que o direito abstrato (jusnaturalismo da

ilustração) é formal, aproveita ainda, a concepção de pessoa jurídica aí formulada,

situando-a, porém, no direito abstrato, §§ 35, 36 e 37 da Filosofia do Direito; portanto,

numa situação de passagem para o direito da eticidade.

No entanto, duas constatações devem ser apreciadas que, conforme tem sido

apontado por Bobbio, por exemplo, também na perspectiva jusfilosófica o pensamento

da ilustração limitou-se em definir a sociedade civil, tomando-a pelo Estado; e que, em

nada obstante o alertado por Hegel, esta necessidade de superação do direito abstrato,

com sua visão exacerbada do indivíduo, não foi contemplada.

De tal maneira que, mesmo na Alemanha, toda a doutrina jurídica permaneceria

acolhendo, como pessoa jurídica, a este indivíduo livre, que não reconhece nenhuma

norma acima dele, autônomo — no sentido pobre do termo — e que concebe o

ordenamento jurídico como sendo criado a partir de acordos livremente pactuados entre

si e os demais que a ele se assemelham. Ora, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser

intersubjetiva, constitui a superação do modelo subjetivista moderno do Direito.

Pelo exposto em Hegel e Kojève, percebemos que existem modelos

metodológicos diferenciados de reconhecimento e da idéia de Direito. No que se refere

ao problema da metodologia, Hegel inclui a dialética como um dos momentos

fundamentais do método especulativo, enquanto para Kojève, a dialética é o fim de sua

metodologia. Mais ainda, seu modelo tem, como pressuposto, um dualismo originário,

enquanto que para Hegel, há uma constituição monista que se movimenta,

especulativamente, em seus diversos conteúdos e momentos do sistema.

Em nada obstando o fato de terem sido já levantadas argüições, no sentido de

apontar como abusivamente antropologizante, a leitura kojeviana da Fenomenologia do

Espírito, e, assim, inadequada, concordamos com a perspectiva de Labarrière (1996),

segundo a qual a leitura de Kojève não caracteriza um mau uso da obra de Hegel. Esta

leitura constitui íntima conexão entre a dialética idealista e [a dialética] materialista,

conforme Marcuse (1988, 409), em seu suplemento bibliográfico à Razão e Revolução.

Na Esquisse d’une phénoménologie du Droit, Kojève, repisa que a

especificidade do Direito reside, precisamente, na presença do terceiro desinteressado

(imparcial); diz ainda que a dominação e a servidão são fenômenos sociais e que,

portanto, para compreender o fenômeno jurídico é necessário centrar-se no estudo deste

terceiro (Kojève,1981, 191).

Por esta senda, é do desempenho deste terceiro imparcial que se chega ao

Direito, enquanto aplicação de uma idéia de justiça às interações sociais dadas, e mesmo

que caibam outros atores neste desempenho (tais como o legislador e o administrador

público) é, especialmente, a atividade do Juiz que a ele corresponde (Kojève1981, 192).

Mesmo que na Esquisse venha tão afirmativamente destacada figura deste

terceiro imparcial, não resta claro o lugar que é por ele ocupado metodologicamente, na

estrutura da dialética esposada por Kojève.

No entanto, se nos socorremos da Introduction à la lecture de Hegel, veremos

que se pode evidenciar uma aproximação entre o desempenho do terceiro desinteressado

e a categoria da mediação. Nesta obra, diz Kojève que:

Hegel expressa a diferença entre o Ser e o Real ―téticos‖ (Identidade) e o Ser e

o Real ―sintéticos‖ (Totalidade) dizendo que os primeiro são imediatos

(unmittelbar), enquanto que os segundos são mediatizados (vermittelt) pela

ação ―antitética‖ (Negatividade) que os nega enquanto ―imediatos‖. E pode-se

dizer que as categorias fundamentais da Imediatidade (Unmitterlbarkeit) e da

Mediação (Vermittlung) resumem toda a dialética real que Hegel tem em vista

(Kojève, 1994, 481).

Vistas, assim, as posições dos litigantes em uma relação social, como entidades

imediatas, como realidades estáticas dadas, a entidade mediatizada, que as colocará em

movimento é a ação do Juiz que as suprassume, ou seja que, pela aplicação da eqüidade,

reconhecerá, em cada uma das posições, suas especificidades, expressando, assim, na

decisão a identidade da identidade e da diferença.

A substância jurídica própria da decisão deste terceiro é imanente à ordem

concreta em que ele e os litigantes se inserem, ou seja, é a Idéia de Justiça ai posta, isto

é, o conceito jurídico concreto e nunca um direito abstrato qualquer, uma vez que,

conforme Carl Schmitt, sem o sistema de coordenadas da ordem concreta, o positivismo

jurídico não saberia distinguir entre direito e não direito, entre objetividade e

arbitrariedade subjetiva (Schmitt,1995, 92).

Em Hegel, o Direito tem seu estatuto na determinação da idéia de liberdade nos

diversos momentos que compõem a Filosofia do Direito. O reconhecimento simétrico

de direitos e deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e da

eticidade. Ora, a metodologia hegeliana implica que a pessoa garanta o reconhecimento

de seus direitos e deveres no direito abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de

agir intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou seja, participando do

Estado.

Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária pelo desejo de

reconhecimento entre o senhor e o escravo. Disto decorre uma tríplice tipologia da idéia

de Direito, configurando-se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência

burguesa e idéia de eqüidade cidadã. O Direito é, então, a determinação da idéia de

justiça.

Sabe-se que Kojève em sua análise da Fenomenologia do Espírito de Hegel

aplica, permanentemente, a metodologia dialética do senhor e do escravo. Ora, será que

Kojève mantém a mesma metodologia para analisar o fenômeno do Direito? Pode-se

defender duas hipóteses: a) Kojève manteria a mesma metodologia dialética na

determinação da idéia de justiça; b) Porém, na descrição fenomenológica da tipologia,

ele introduz um terceiro imparcial e desinteressado, ou seja, quando o autor aplica a

idéia de justiça para o Direito, haveria uma superação da dialética pela mediação do

terceiro, enquanto momento de superação do antagonismo no embate entre os litigantes.

Teríamos assim, um momento especulativo que seria o mesmo da metodologia

hegeliana. Isto fica explícito já na segunda seção (Origem e evolução do Direito) e

comprova-se na terceira (O sistema do Direito) em que Kojève faz uma aplicação das

três idéias de justiça para o Direito internacional, Direito público, Direito penal e

Direito privado.

Em que medida esses modelos metodológicos são importantes para compreender

o fenômeno jurídico? Qual é a vantagem de um e de outro, ou ainda, como podem ser

complementares para a superação do Direito moderno, centrado na garantia subjetiva

dos direitos?

A metodologia de Kojève descreve o desejo de reconhecimento, enquanto uma

idéia de justiça na sua polaridade máxima do senhor e do escravo. Essa tipologia

permite compreender o fenômeno jurídico na sua constituição sócio-histórica. Nesse

sentido, a reflexividade entre os sujeitos que buscam o reconhecimento constitui um

momento fundamental para a constituição intersubjetiva do Direito. Tem-se a posição

de sujeitos que determinam os seus desejos pela idéia de igualdade-equivalência-

eqüidade, na superação dos conflitos advindos de interesses contraditórios. O terceiro

imparcial e desinteressado que atravessa todo o Esboço de Kojève, insere o momento

intersubjetivo na constituição do Direito.

Em Hegel, o reconhecimento passa pela mediação da eticidade, enquanto

momento garantidor de um Direito intersubjetivo. Então, pode-se afirmar que os

modelos são complementares, na medida, em que Kojève acentua o momento dialético e

a idéia de justiça, e Hegel, o momento especulativo e a idéia de liberdade. Assim,

ambos os modelos são importantes, para a constituição do Direito intersubjetivo.

Um dos objetivos de nosso estudo, é encontrar referenciais teórico-práticos, para

superar o modelo subjetivista do Direito e construir uma metodologia da

intersubjetividade jusfilosófica. Assim, a teoria hegeliana do reconhecimento,

apresentada na Fenomenologia, na figura do senhor e do escravo torna-se a figura

paradigmática, que Kojève utiliza para construir sua metodologia dialética, partindo do

desejo antropogênico como fonte originante do reconhecimento. As metodologias de

Hegel e Kojève, embora tenham suas especificidades, ambas são importantes para

fundamentar um Direito intersubjetivo.

Pressupondo que a metodologia hegeliana desenvolvida na Filosofia do Direito

já é assaz conhecida, enquanto desenvolvimento da idéia de liberdade intersubjetiva,

expomos a determinação da idéia de justiça em Kojève na sua tríplice tipologia:

Igualdade, equivalência e eqüidade, constituindo-se, atualmente, num referencial

teórico-prático da intersubjetividade jusfilosófica em três níveis, aqui enunciados, e que

permanecem como abertura para futuros estudos:

1°) A idéia de justiça como igualdade determinando-se no reconhecimento do

Direito nas esferas global, nacional e local, garantindo identidades e diversificação

cultural.

2°) A idéia de justiça como equivalência de direitos e deveres na redefinição do

Estado de Direito e a organização de blocos regionais no início deste novo milênio.

3°) Enfim, a idéia de justiça como eqüidade, enquanto síntese cidadã

intersubjetiva, em nível sócio-econômico sustentável e inovação político-tecnológica.

A teoria do reconhecimento hegeliano e a fenomenologia do Direito, baseada na

determinação da idéia de justiça de Kojève, ratifica o movimento por um Direito

intersubjetivo, ou seja, ratifica a tese comunitarista jusfilosófica. Trata-se de uma

concepção pluralista da justiça fundada na idéia de igualdade complexa

(Walzer); um maior cuidado no que concerne ao problema da distribuição dos

bens culturais, bem como às questões relacionadas aos grupos vulneráveis

(Young); dos aspectos importantes da relação entre justiça e democracia

deliberativa (Habermas); por fim, da análise do princípio de imparcialidade

como base eqüitativa para o acordo entre as diferentes concepções do bem

que coexistem nas sociedades plurais e democráticas (Barry) (Rabenhorst,

2006, 494-495 In: Barreto, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do

Direito).

Assim, postos estes desafios de atualização, tanto em nível sócio-jurídico, bem

como no debate comunitarista, insere-se a teoria do reconhecimento intersubjetivo no

viés jusfilosófico de Hegel e Kojève, como uma referência incontornável na construção

de um Direito intersubjetivo.

O estudo do reconhecimento e a intersubjetividade no Esboço de uma

Fenomenologia do Direito de Kojève, demonstrou sua metodologia dialética, fundada

no desejo antropogênico da luta pelo reconhecimento na figura do senhor e do escravo,

bem como a descrição jusfenomenólogica dos modelos de Direito e sua implicação na

superação do Direito moderno subjetivo para o Direito intersubjetivo. Agora, será

apresentada a implementação deste pressuposto teórico no Direito Público em seu nível,

propriamente constitucional e administrativo.

2 – DIREITO PÚBLICO EM KOJÈVE

O Direito público, a rigor, (excluindo o Direito penal), segundo Kojève, engloba

o Direito constitucional e o administrativo, sendo que o primeiro estabelece as

estruturas do Estado, e o segundo determina as relações entre o Estado e os indivíduos.

A Constituição contém, diz o autor, o estatuto e a organização do Estado,

descrevendo o que é, e não o que deve ser. A estrutura do Estado e da Constituição não

são justas e nem injustas, mas neutras, como por exemplo, a lei que fixa as cores

nacionais do Estado ou o seu nome. O Estado autônomo e soberano interage com os

outros Estados segundo, as regras do Direito internacional público. Porém, o que

interessa aqui, é o Direito público interno, considerando o Estado em si mesmo. Ora,

entende Kojève que, onde não há interação entre duas entidades, não há justiça e nem

Direito, donde, ―a Constituição, tal como a concebe o Direito público (interno) não é

pois um Direito. A Constituição é uma Lei ou um conjunto (oral ou escrito) de Leis

políticas, na e pelas quais o Estado declara a todo mundo o que ele é e a maneira como

ele funciona. Se a Constituição é uma Lei, trata-se aí de uma Lei política e não jurídica‖

(Kojève,1981, 393). Declarando-se soberano, o Estado, não admite a intervenção de um

terceiro, mas apenas noticia aos outros suas decisões, como numa declaração unilateral

de guerra. O autor retoma a sua tese de que a relação jurídica implica a intervenção de

um terceiro imparcial. Ora, ele retira da Constituição o caráter jurídico, mantendo

apenas o político, destituindo, assim, a função do terceiro.

A Constituição institui a legalidade política, pois onde não há leis políticas o

Estado torna-se despótico e os governantes tratam os governados segundo seu bel prazer

e não, conforme as leis estabelecidas e conhecidas de todos. Porém, o Estado pode

mudar suas leis políticas, ou seja, modificar sua Constituição no seu conjunto. Kojève

afirma que a diferença entre o Estado ―legal‖ e o Estado despótico é, pois, comparável

aquela entre um homem ponderado e um caprichoso, que muda a qualquer tempo sua

opinião, sem apresentar motivos. No Estado ―legal‖ a situação é tão pouco jurídica,

quanto no Estado ―despótico‖: a lei constitucional é tão pouco ―direito‖ ou uma lei

jurídica quanto a decisão ―arbitrária‖ do ―déspota‖.

Por isso uma revolução que é por definição politicamente ilegal, não pode ser

condenada juridicamente. A ação revolucionária está em contradição com a

lei constitucional. Mas esta lei não sendo jurídica, a ação revolucionária é

juridicamente neutra, e não criminosa. Se a revolução tem êxito, isto é, se ela

troca as leis políticas que ela aboliu por outras leis políticas, não há nada a

dizer: nem política, nem juridicamente. Quando os revolucionários têm êxito,

eles se tornam o Estado. Eles encarnam o Estado ―soberano‖. Ora, este

Estado pode mudar sua Constituição como ele quer. Se a revolução teve

êxito, pode-se dizer que o Estado mudou sua Constituição, e não há nada aí a

objetar (Kojève, 1981, 393-394).

O autor afirma que não se pode condenar a nova Constituição, recordando a

antiga, pois esta tinha sua realidade na vontade do Estado. Ora, é o mesmo Estado que

aplica agora a nova Constituição modificada, sendo esta tão válida quanto a anterior.

Agora, não é possível, continua Kojève, o Estado anterior opor-se ao novo,

negando-lhe a identidade, porque não há um terceiro nesta interação entre os dois

Estados, ou seja, entre as duas formas consecutivas do mesmo Estado. A situação não

teria nada de jurídico, mas uma luta política. Para que houvesse um terceiro, seria

necessário chamar a intervenção deste para modificar a Constituição, tirando, portanto,

a soberania do próprio Estado. Nesse caso, em que uma Constituição é julgada ou torna-

se sujeito de direito, ela não é mais uma Constituição verdadeira, pois, onde há um

Direito, não há Direito público, no sentido constitucional. ―A lei constitucional que fixa

a estrutura de um Estado, propriamente dito não tem nada haver com uma lei jurídica.

Ou ainda: as relações do Estado consigo estão fora do domínio do Direito e mesmo da

Justiça‖ (id. p. 394). O autor reafirma o papel político da Constituição, no caso de uma

mudança constitucional, impedindo qualquer intervenção de um terceiro, para evitar o

retrocesso da soberania política do Estado.

Kojève continua neste tema, exemplificando a questão no caso de um Estado A

(EA) fazer guerra contra um Estado B (EB), justificando que a Constituição de B é

injusta, ou até juridicamente ilegal ou ilegítima. O EA não reconhece o EB como Estado

soberano, tratando os governantes e os governados como dois grupos privados. O EA

intervém então na qualidade de terceiro e anula a ação ilegal do grupo governante,

considerando os cidadãos do EB como seus julgados, aplicando-lhes seu Direito.

Portanto, o EA tende a absorver politicamente o EB, como um grupo infra-estatal ao

interior do EA. A estrutura deste grupo não é, pois uma Constituição, na medida em que

esta é submetida a um Direito e pode ser dita juridicamente legal ou ilegal. Então, não é

mais uma verdadeira Constituição de um Estado soberano. ―O Direito em questão não é

pois um Direito público ou constitucional‖ (id. nota n° 1, p. 395). Mesmo nas relações

internacionais interestatais, a função política da Constituição é preservada, de tal modo

que Kojève não admite uma intervenção do EA sobre o EB, com a finalidade de

instaurar a justiça, pois, em qualquer hipótese, tem-se aí uma redução ao jurídico e não

mais ao sentido político da Constituição enquanto tal.

Para o autor, a Constituição é um ato político tanto interna como externamente.

E não há um terceiro que possa nesse nível intervir, se não se retrocederia ao nível

jurídico. A revolução é, pois, um ato político oposto às leis políticas vigentes,

considerando-se um ato fundador de uma nova Constituição. Se a mudança na

Constituição se realiza através da revolução, a nova Constituição passa a ser a nova lei

política e não há o que negar.

A Constituição pode ser criticada, para que ela esteja de acordo com a realidade

política, porém, ela só pode ser melhorada, tornando-se conforme à realidade do Estado.

―Toda Constituição, toda estrutura política de um Estado é, politicamente, boa, se ela

permite ao Estado manter-se, indefinidamente, na identidade consigo, tanto exterior

quanto interiormente, e isso sem dever mudar de estrutura e, portanto, de Constituição‖

(id. p. 395).

A lei constitucional relacionada ao Estado, regula a estrutura do Estado, não

sendo, nesse sentido, um Direito, afirma Kojève, pois ela não deixa nenhum lugar para a

existência de um terceiro. Em não havendo interação entre duas entidades distintas, não

há o conceito de igualdade ou de equivalência, conforme a idéia de justiça, acima

exposto. Porém, se tomarmos a Lei constitucional, relacionada aos particulares ou aos

indivíduos, o Direito administrativo tratará das interações entre o Estado e os

indivíduos, e dos indivíduos entre eles, enquanto cidadãos. Kojève distingue três tipos

fundamentais de relações: 1) As relações entre o Estado e os cidadãos; 2) As relações

entre o Estado e os particulares; 3) As relações entre particulares. Não detalharemos

estas relações, pois em síntese Kojève expõe na relação paradoxal entre o Estado e o

Direito Público o seu pensamento sobre os tipos de relações:

Na medida em que o Estado é tomado enquanto Estado não há, pois Direito

Público, pouco importa que o Estado se relacione a si mesmo (Direito

constitucional) ou aos cidadãos ou aos particulares (Direito administrativo). De

uma maneira geral apenas há Direito lá onde se trata de relações entre

particulares. Se o Direito público é, verdadeiramente, um Direito, o Estado ele

mesmo deve aí figurar não enquanto Estado, mas enquanto ―particular‖.

Enquanto Estado não deve aí jogar um papel de Terceiro (id. p. 403).

De fato, entende-se que o Estado é o espaço estatal, político e não privado ou

particular. Porém ele não pode existir em ato senão pelos cidadãos e os particulares. O

Estado age apenas por eles, na medida em que estes agem, enquanto cidadãos, ou seja,

o Estado é o conjunto dos cidadãos agindo enquanto tais. O Estado encarna-se no grupo

político exclusivo, sendo sua vontade, a mesma do Estado. No sentido estrito, o

conceito Estado junta-se ao do coletivo dos governantes, recrutados entre o grupo

exclusivo, em que a ação deste é a do Estado. Por definição, os governantes exercem a

autoridade política, enquanto grupo político exclusivo, agindo em nome do Estado e

sendo um com este. Os governantes organizam a estrutura do Estado e o modo de seu

funcionamento. Eles determinam a Constituição, o estatuto dos cidadãos, o conjunto das

leis políticas (orais e escritas), que fixam o Direito Público, não sendo este um Direito

(cf. p. 403-404).

Kojève levanta a hipótese em que os interesses de grupos se tornam os interesses

do Estado, e os governantes podem defender esses interesses, agindo, enquanto

governantes. Por exemplo, uma família pode ser estatizada e tornar-se um Estado

monárquico, defendendo os interesses de sua família (dinastia), o rei age não enquanto

particular, mas como governante. Então, é o Estado que age em e pelo rei. Assim,

também, quando um grupo familiar, econômico ou religioso e outro, forma o Estado

aristocrático, os governantes agem em nome do Estado, defendendo os interesses da

aristocracia, ou seja, do grupo em questão. Aqui, os governantes fixam o estatuto do

Estado e dos cidadãos e não há nada de jurídico, porque não há um terceiro.

Agora, se um governante não agisse como tal, ou seja, enquanto cidadão,

representante do Estado, ou grupo exclusivo, mas em função de interesses privados,

particulares, quer seja de um grupo ou de interesses estritamente pessoais, então, esse

governo agiria como particular. Então, se o Estado ao entrar em interação com os

governados, lesar seus interesses, não haverá uma relação entre governante e

governados, mas entre particulares, pois ele estaria agindo em função de interesses

privados. São privados, porque o Estado não os pôs, nem por via legal e nem colocando

em risco sua vida numa revolução ou guerra. Os governados, neste caso, não têm

necessidade de agir politicamente, mas recorrer contra o próprio Estado. Aqui, o Estado

será um terceiro, intervindo como tal. O conjunto de regras do direito aplicado pelo

terceiro, nesse caso, forma o Direito público do Estado dado.

Ora, quando o Estado intervém na qualidade de terceiro, como no caso em

questão, constata-se o seguinte: a) O governante agiu enquanto particular; b) E o

governado foi lesado pelo governante-impostor, devendo este fixar o modo pelo qual o

ato criminoso ou juridicamente ilegal deve ser anulado. No primeiro caso, não há como

descobrir a intenção do governante, se ele agiu de boa-fé e se enganou, pensando agir

como cidadão em nome do Estado. Trata-se, aqui, de ter um critério objetivo, dado pela

Constituição, isto é, pelo conjunto de leis políticas que fixam a estrutura e o

funcionamento do Estado. Se o governante agiu em desacordo com a Constituição, em

função de interesses particulares, então, o Estado pode intervir como terceiro e anular o

ato do governante-impostor. As leis constitucionais e administrativas, em si, não têm

nada de jurídico, mas na medida em que elas permitem constatar que um governante

agiu como impostor, elas fazem parte do Direito público (id. p. 405-407).

Considerando-se as duas partes do Direito público, o constitucional e o

administrativo, no que se refere à segunda parte, Kojève enumera os casos nos quais os

governados podem considerar-se lesados por atos dos governantes-impostores e indica o

modo como estes atos, juridicamente, ilegais devem ser anulados. Neste sentido pode-se

dizer que o Direito público fixa os direitos dos governados. Porém, seria falso, afirma o

autor, dizer que os governados têm direitos face ao Estado, isto é, diante dos

governantes agindo enquanto tais, pois o Estado pode modificar o Direito público,

modificando a Constituição. Ora, quando se trata de uma modificação da Constituição,

ou seja, do Direito público, o Direito não tem nada a dizer, pois não há um possível

terceiro. A Constituição pode ser, modificada apenas pelo Estado, isto é pelos cidadãos,

agindo como cidadãos e não como particulares. Os cidadãos que modificam a

Constituição, devem agir enquanto governantes, isto é, enquanto representantes do

grupo político exclusivo, no interior do qual eles se beneficiam de uma autoridade

política. Caso contrário, eles agiriam como impostores e pessoas privadas e seriam

submetidas ao Direito público, intervindo o Estado, enquanto terceiro para anular seus

atos juridicamente ilegais. Ora, a Constituição, ou seja, o Direito público permite

constatar se a mudança constitucional é, enquanto cidadão ou não, porque apenas pode-

se modificá-la, legalmente, sendo cidadão, utilizando as vias previstas pela

Constituição. Portanto, utilizando-se destas vias, age-se, de forma política, e não

juridicamente, pois, aqui, ainda não há um terceiro. Porém, se alguém experimenta

modificar a Constituição por vias ilegais, ele age enquanto privado e particular, e então

comete um crime de Direito público, o qual será anulado pelo Estado em sua qualidade

de terceiro (id. p. 408).

Então, para Kojève, a Constituição pode ser mudada pelos cidadãos, enquanto

fazem parte do governo constituído pelo grupo político dominante e não pelas pessoas

privadas agindo segundo interesses privados. Diferente é o caso, continua o autor, de

um grupo revolucionário agir contra o Estado (ou seja, os governantes munidos da

autoridade outorgada pelo grupo político exclusivo), não haveria aqui um terceiro e o

Direito público não poderia ser aplicado, pois o revolucionário não agiria, enquanto

pessoa privada, em particular, mas politicamente, enquanto cidadão do Estado futuro,

pós-revolucionário. E as relações entre o Estado e os cidadãos agindo enquanto

cidadãos, legalmente ou por via revolucionária, até guerrilheira não têm nada de

jurídico. O fato de o revolucionário agir politicamente, ou seja, enquanto cidadão é

atestado objetivamente (pois a intenção privada aqui não conta) através do risco da luta

de vida e morte para tomar o poder. Aqui, os revolucionários constituem um grupo

exclusivo, escolhendo um coletivo de governantes munidos de autoridade política,

instalando-se no poder face aos estrangeiros, bem como diante do grupo político

excluído, internamente, do poder. Se os revolucionários fracassam, eles morrem; se eles

têm êxito, tornam-se governantes e, em ambos os casos, não há nada de jurídico, mas

um fato político. É por isso que os autores de uma revolução abortada são raramente

julgados por tribunais ordinários, porque não se pode aplicar-lhes nenhum Direito,

senão eliminá-los politicamente, por uma medida de simples polícia ou por um tribunal

político, que terá apenas o nome de tribunal jurídico. Da mesma forma, não terá nada de

jurídico o tribunal revolucionário que suprimirá os agentes do antigo regime (id. p. 408-

409).

Percebe-se que a mudança constitucional pode ocorrer através de duas formas: a)

Pela via legal do cidadão, ou seja, pela via interna do próprio grupo político instalado no

governo; b) Ou pela via revolucionária, isto é, por um grupo externo ao governo,

instalando uma nova Constituição. Em ambas as vias, dá-se um processo político e não

jurídico, por tratar-se do Direito público, portanto constitucional.

O Direito público é um Direito constitucional, por isso implica a Constituição do

Estado. Costuma-se afirmar que o Direito administrativo opõe-se ao Direito

constitucional, no entanto, os limites entre ambos são arbitrários. Pode-se dizer que o

Direito constitucional fixa o estatuto e as funções dos governantes que não são, ao

mesmo tempo, governados. Enquanto, que o Direito administrativo, relaciona-se aos

governantes que são também governados, isto é, aos funcionários em sentido estrito.

Pode-se distinguir um Direito público da estrutura do Estado e das administrações e um

Direito público da função, como se distingue a anatomia da fisiologia. Porém, o Direito

público deve regular não apenas as estruturas e as funções do Estado e das

administrações, ou seja, os governantes, mas ainda, aquelas dos cidadãos tomados

enquanto governados (id. p. 410-413).

O Direito público afirma, Kojève, não é um Direito, na medida em que se refira

às interações entre os governados e os governantes-impostores. É, apenas face a estes

últimos que o governado tem direitos e não face ao Estado, pois este pode mudar todos

os estatutos, sem que exista um possível terceiro, para se opor ou sancionar a mudança.

Isso não significa que o governado lesado só possa recorrer ao governante-impostor. O

Estado pode indenizá-lo, sendo, então, uma decisão livre do Estado, que não terá nada

de jurídico. O Direito público permite, apenas, anular o ato do governante-impostor. Se

o Estado quer além disso punir o governante culpado, ele será então parte e a punição

não teria nada de jurídico. Da mesma forma, se o Estado se solidariza com o

governante, o Direito público não poderá prescrever uma indenização ao governado

lesado, pois no momento, em que o governante agiu em nome do Estado, não há mais

Direito possível e o governado não tem nenhum direito. O Estado pode, mesmo assim,

indenizá-lo, mas o ato não terá então nada de jurídico em si mesmo. A lei sobre a

indenização permite que o governante que recusa indenizar o governado, aja como

impostor. Enfim, o Direito público pode conter tudo o que, tradicionalmente, ele

contém. Apenas, esse conteúdo deve ser interpretado do modo pelo qual eu acabo de

fazer, conclui Kojève (id. p. 414).

A tese do autor exposta, desde o início, é que o Direito nasce da intervenção de

um terceiro imparcial e desinteressado. ―O Direito processual que regula o estatuto do

terceiro e seu funcionamento em relação aos litigantes, não é um Direito verdadeiro. É

uma declaração unilateral do Terceiro, uma ―notificação‖ de seu proceder‖ (id. p. 414-

415). Ora, onde o Direito é estatizado, o terceiro é o Estado ou seu representante, pois é

ele que edita a lei processual. É, portanto, uma lei política e não jurídica, conclui

Kojève.

Ora, aqui é possível também a existência do terceiro impostor, quando ele age de

forma parcial e interessada. Nesse caso, ele não será terceiro, mas parte. O juiz-

funcionário não será representante do Estado, mas um particular-impostor, contra o qual

se pode recorrer ao Estado, que exercerá o papel de terceiro autêntico. ―Toda a questão

é, pois, saber se a pessoa que exerce o papel de terceiro é, verdadeiramente, um terceiro,

isto é, se ele age enquanto tal, de um modo imparcial e desinteressado, ou se ele,

apenas, parece ser, enganando os outros‖ (id. p. 415).

Então, a garantia que as partes têm da defesa de seus direitos é a que a lei

processual é um Direito, permitindo constatar a autenticidade do terceiro. Pois, se o

terceiro age em desacordo com esta lei, ele é um impostor, agindo enquanto particular.

―O Direito processual só é um Direito, na medida, em que ele permite constatar a

impostura do terceiro, ou seja, o fato de que este não age em nome do Estado, como

funcionário ou como cidadão, mas na qualidade de pessoa privada. Esse Direito é a

garantia da imparcialidade e do desinteresse do terceiro‖ (id. p. 416). Portanto, o

conteúdo do Direito processual é garantir a imparcialidade e o desinteresse do terceiro,

isto é sua autenticidade. É, afirma Kojève, deste ponto de vista, que se precisa

interpretar a regulamentação (estatal) da justiça.

Apresentou-se a posição kojèviana sobre o Direito público, no seu duplo

aspecto, constitucional e administrativo, em que o autor, analisa o seu aspecto político-

jurídico, porém, sendo o Direito público, para ele, eminentemente, político. Veja-se

agora, o alcance e o limite da teoria kojèviana sobre o Direito Público, confrontando-a

com as teorias contemporâneas, no seu duplo aspecto, constitucional e administrativo.

3 – ALCANCE E LIMITE DO DIREITO PÚBLICO KOJÈVIANO

Tendo apresentado o Direito Público, segundo Kojève, será exposto, em

primeiro lugar o debate sobre a dimensão política e/ou jurídica constitucional em alguns

teóricos dentro do Direito Constitucional. Em seguida, tratar-se-á do Direito

Administrativo, mostrando o papel do controle jurisdicional no Estado democrático de

Direito. Percebe-se que Kojève elabora a sua teoria constitucional num contexto bélico

e sob a influência de um modelo de Estado-Nação interventor tanto em nível externo

como interno, ou seja, tomando decisões de forma unilateral. Daí, pode-se compreender,

em parte, o alcance e o limite de sua teoria constitucional, considerando o contexto

político e o debate teórico da época.

3.1 – Dimensão política e/ou jurídica da Constituição

Tendo-se em conta a assertiva, até certo ponto desconcertante, na qual Kojève

delimita o campo do Direito Constitucional às lindes do fenômeno político, convém

agora examinar os corolários de tal enunciado à luz de algumas teorias constitucionais.

Ressalta, desde logo, o fato de que o constitucionalismo contemporâneo incorpora,

de maneira plena, a formulação de um ideal de justiça, sendo esta preocupação uma

tarefa multidisciplinar, conforme aponta Gisele Cittadino:

Afinal, parece não restar dúvidas de que o debate sobre a justiça adentra

inevitavelmente o mundo do direito. Em outras palavras, todos reconhecem

a impossibilidade de justificar e configurar um ideal de justiça distributiva

sem ao mesmo tempo enfrentar a discussão quanto ao papel da

Constituição, da efetivação do seu sistema de direitos fundamentais e da

atuação do Poder Judiciário, especialmente da jurisdição constitucional

(Cittadino, 2000, 2).

A referida autora destaca que o debate sobre o ideal de uma sociedade justa e da

sua estrutura normativa passa a ocupar lugar de destaque a partir da publicação de A

Theory of Justice, de Rawls. Cabe salientar que na Esquisse, de Kojève, escrita em

1943, esta polaridade já está tencionada, quando este afirma a natureza política e não

jurídica da Constituição.

Mas, a questão do papel essencial da Constituição e da definição de sua natureza

tem merecido foro de discussão já de longa data. Conforme se pode ver no trabalho de

Konrad Hesse, A Força Normativa da Constituição, que é tido como um dos textos

mais significativos do Direito Constitucional, e, em nenhuma outra obra de direito

constitucional, parece-nos, estar tão clara e objetivamente abordada a questão da dupla

natureza, a um só tempo política e jurídica da Constituição.

Nesse escrito, Hesse retoma a discussão desde uma posição bastante remota, ou

seja, enfocando, de início, a clássica posição expressa por Ferdinand Lassale, em 1863,

no tocante à essência da Constituição, e a ela se contrapõe, buscando demonstrar que o

desfecho do conflito entre os fatores reais de poder e a Constituição não

necessariamente implica na derrota desta. Existem pressupostos realizáveis que

permitem assegurar sua força normativa constitucional.

Lassalle, na obra referida, sua célebre O que é uma Constituição, via as questões

constitucionais como políticas e não jurídicas. Ou seja, esse documento chamado

Constituição – a Constituição jurídica – nas palavras de Lassalle, não passa de um

pedaço de papel (Hesse, 1991, 9). Hesse, apesar de reconhecer o significado dos fatores

históricos, políticos e sociais para a força normativa da Constituição, enfatiza o aspecto

da vontade de Constituição, que é, em última análise, o que vai caracterizar a sua

essência jurídica, a qual estará cindida ―pelo isolamento entre norma e realidade, como

se constata tanto no positivismo jurídico de Escola de Paul Laband e Georg Jellineck,

quanto no ―positivismo sociológico‖ de Carl Schmitt‖ (Hesse, 1991, 13). A separação

radical entre norma e realidade resulta em um constitucionalismo que não responde

corretamente à questão acerca do que é uma constituição.

Para Hesse, enfatizar-se uma ou outra das duas direções conduz

inevitavelmente aos extremos, ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento

normativo, ou de uma norma despida de qualquer elemento da realidade. O que permite

vislumbrar-se uma via de acesso ao essencial da Constituição, é a sua condição de

vigência, sua eficácia, ou seja, se ―a situação por ela regulada pretende ser concretizada

na realidade‖ (Hesse, 1991, 14). Portanto, a Constituição adquire força normativa,

conforme realiza sua pretensão de eficácia, que não pode ser separada das condições

históricas de sua realização.

A partir desta perspectiva, cotejando-se a abordagem do Direito Constitucional

em Kojève, acima exposta, vê-se que a linha desenvolvida pelo pensador russo coloca-

se em um dos extremos da dualidade essencial da Constituição, aventada por Konrad

Hesse.

Para Bruce Ackerman, tanto a democracia como a Constituição são dualistas,

porque asseguram, sob o aspecto jurídico, a autonomia privada dos indivíduos nos

momentos em que não há mobilização política da comunidade, garantindo e protegendo

os seus direitos; sob o aspecto político, garantem a autonomia pública dos cidadãos

quando eles decidem alterar e redefinir a sua própria identidade nacional.

C. Taylor e Walzer defendem o patriotismo republicano, sendo a Constituição

um projeto que traduz a vontade coletiva, em que a cidadania ativa busca a

implementação de liberdades positivas. Bruce Ackerman propõe, de seu lado, ―o

constitucionalismo patriótico ―enquanto um ato profundo de autodeterminação política‖

(apud Cittadino, 2000, 163), sendo os direitos fundamentais do cidadão procedimentais,

antes que substantivos. Ao contrário de Rawls e Dworkin que sustentam o conteúdo

substancial dos direitos fundamentais, Ackerman afirma que os indivíduos têm o direito

básico de participar do debate público, determinando, assim, o conteúdo substantivo dos

direitos fundamentais. O constitucionalismo patriótico é construído através da ação

coletiva dos cidadãos, mobilizando o povo para redefinir a identidade política nacional,

alterando ou criando a Constituição.

No entender de Cittadino, há, em Ackerman, uma conexão intrínseca entre

―revolução‖ e ―Constituição‖, sendo exemplos disto, as mudanças políticas ocorridas

nos Estados Unidos por ocasião do New Deal e os processos revolucionários no Leste

Europeu após 1989. Aqui, verifica-se um processo de mobilização política que levará a

mudanças constitucionais ou a criação de novas Constituições.

O autor, no livro We the People propõe um modelo de democracia e

Constituição dualistas, desenvolvido em dois momentos: Primeiro, as políticas

rotineiras, exercidas pelos representantes do povo, isto é, a burocracia estatal; e o

segundo, as transformações no sistema, pela ação do povo. Este modelo leva em conta

que a virtude cívica dos cidadãos não é suficiente para mantê-los, permanentemente,

comprometidos em participar na tomada de decisões públicas. Por isso, existem

momentos na história em que se pode constatar uma ―revolução‖ no sistema, tais como

os ocorridos na história constitucional norte-americana: na Convenção de Filadélfia de

1787, quando se elabora a Constituição Americana; nas Emendas Constitucionais

estatuídas após a guerra civil entre 1868-1870; e no New Deal, em 1930. Estes

momentos históricos mostram revoluções, no sentido de que houve mudanças

fundamentais nas regras da prática política. Isso mostra que o povo é capaz de discutir e

deliberar sobre temas constitucionais.

A posição de democracia e Constituição dualistas diferenciam Ackerman dos

liberais Rawls e Dworkin. Aquele entende que a Constituição é, primeiramente,

democrática, ou seja, movimento de deliberação popular, resultante da autonomia

pública e, depois, protetora de direitos; enquanto que estes invertem esta ordem, dando à

Constituição o papel, em primeiro lugar, de proteger a autonomia privada assegurada

pelos direitos fundamentais. Para Ackerman a participação popular permite que a

Constituição e os direitos fundamentais estejam sempre abertos a novas elaborações,

sem deixar que o ―espírito‖ dos mesmos seja abandonado. A cidadania pública está

inserida no seio de uma sociedade plural, em que convivem diversas concepções

individuais a cerca da vida digna, permitindo aos cidadãos dedicarem-se, ao mesmo

tempo, aos interesses privados e aos interesses públicos em organizações tais como

igrejas, sindicatos, ONGs etc.

Ackerman tem consciência de que não é possível reeditar a perfeita cidadania

pública, conforme o modelo da polis grega, porém, os cidadãos em determinados

momentos históricos, são capazes de reinterpretar o seu passado. Ou seja, quando a

comunidade altera os seus valores, cria uma nova Constituição, ou pelo menos, institui

novas hermenêuticas. Ora, o constitucionalismo patriótico é, precisamente, esta

capacidade de autodeterminação da comunidade, enquanto disposição de alterar,

legitimamente, as organizações políticas e normativas.

A concepção de democracia dualista garante que os indivíduos possam

cotidianamente buscar a realização de seus projetos pessoais de vida, mas, ao

mesmo tempo, assegura a possibilidade de que, em momentos históricos

decisivos, o conjunto dos cidadãos, alterando os significados dos valores que

compartilham, delibere acerca do seu próprio destino (Cittadino, 2004, 170).

Cabe destacar a proximidade entre o ponto de vista kojèviano da essência

política da Constituição e a concepção defendida por Bruce Ackerman que vê na

Constituição a expressão de um ato profundo de autodeterminação política. À

semelhança de Kojève, que provê a instância política como autodeterminante, para

Ackerman, há uma intrínseca conexão entre o processo de mobilização política e a

mudança constitucional; de tal sorte que se pode afirmar ser esta a essência precípua da

Constituição. No entanto é preciso frisar que, conforme Cittadino, este pensador

americano também afirma o caráter dual da Constituição, por que esta, num primeiro

momento assegura a autonomia privada dos indivíduos

Nos momentos em que não há mobilização política da comunidade em seu

conjunto, e por outro lado, a Constituição garante a plena autonomia pública

dos cidadãos quando eles decidem alterar e redefinir a sua própria identidade

política. E, sublinha a autora, neste último caso, não há limites ao processo de

autodeterminação da comunidade política (id, p. 166).

Há uma aproximação entre a teoria constitucional de Kojève e Ackerman em

dois aspectos: o papel político da Constituição e a mudança constitucional através da

revolução. Ressalte-se, porém, que existem nuances nesta relação conceitual. Kojève

entende a Constituição como um ato político, constituindo a realidade tanto interna

como externa, daí ser sua teoria constitucional una. Por isso, não há um terceiro ator

para intervir neste nível intra e interestatal. Caso isso viesse a ocorrer se caracterizaria

uma relação jurídica. Ora, a Constituição política pode ser criticada e transformada,

sendo a revolução um meio privilegiado para tal. Daí, a revolução ser compreendida

como um ato político, por excelência, pois, opondo-se ao status quo, instaurará uma

nova Constituição, sendo a nova lei política.

Ackerman entende que a Constituição tem também uma dimensão política,

porém, não desvinculada da jurídica, daí ser sua concepção constitucional dualista. O

autor prioriza a dimensão política constitucional, através de seu conceito de

constitucionalismo patriótico, sendo a participação cidadã que determina o conteúdo

substantivo dos direitos fundamentais. Ora, há entre revolução e Constituição uma

íntima relação. A revolução é compreendida como a ação dos cidadãos, em

determinados momentos da história, em que se implementam mudanças no sistema

constitucional, sendo isto demonstrado, por Ackerman em vários fatos da história norte-

americana. Enfim, o constitucionalismo patriótico defini-se pela ação coletiva dos

cidadãos, ou seja, a revolução, determinando a identidade política através de mudanças

normativas ou criando uma nova Constituição.

Após apresentarmos o debate sobre as dimensões da Constituição, percebe-se

que há em Kojève um conceito de constitucionalismo político que se aproxima do

conceito de constitucionalismo patriótico de Ackerman. No entanto, há limites no que

diz respeito à compreensão do Direito Administrativo, como foi exposto acima (item 2),

porque, atualmente, a Administração Pública englobando os três poderes submete-se ao

controle jurisdicional, como, por exemplo, no caso do Direito brasileiro, conforme o

que se verá abaixo.

3.2 – Controle jurisdicional da Administração Pública

O Estado de Direito controla a Administração Pública para que realize os

interesses públicos e particulares, impondo-lhe mecanismos e corrigindo

comportamentos indevidos praticados em vários níveis do corpo orgânico como das

pessoas jurídicas auxiliares do Estado (autarquias, empresas públicas, sociedades mistas

e fundações governamentais).

O controle da administração pública abrange os três poderes: Legislativo,

Judiciário e Executivo. A finalidade do controle é assegurar que a Administração atue a

partir dos princípios jurídicos tais como da legalidade, moralidade, publicidade,

impessoalidade e de mérito, abrangendo o que diz respeito aos aspectos discricionários

da atuação administrativa. Embora o controle seja uma atribuição estatal, cabe ao

cidadão participar defendendo seus interesses individuais e coletivos. O controle é um

poder-dever dos órgãos dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, a que a lei

atribui essa função, no sentido de fiscalização e correção dos atos ilegais (Di Pietro,

2001, 587).

Segundo Di Pietro, existem vários critérios para classificar as modalidades de

controle. Quanto ao órgão que o exerce, o controle pode ser administrativo, legislativo

ou judicial; quanto ao momento em que se efetua, pode ser prévio, concomitante ou

posterior; pode ser ainda interno ou externo, conforme decorra de órgão integrante ou

não da própria estrutura em que se insere o órgão controlado. É interno o controle que

cada um dos poderes exerce sobre seus próprios atos e agentes. É externo o controle

exercido por um dos poderes sobre o outro. Vejamos os três tipos de controle:

administrativo, legislativo e judicial.

3.2.1 – Controle administrativo

Controle administrativo é o poder de fiscalização e correção que a

Administração Pública, em sentido amplo, exerce sobre sua própria atuação em nível

legal e de mérito, por iniciativa própria ou provocada. Abrange os órgãos da

Administração direta e indireta. O controle sobre os órgãos da Administração direta é

um controle interno e decorre do poder de autotutela, permitindo rever os próprios atos

ilegais, inoportunos ou inconvenientes. A fundamentação do poder de autotutela

encontra-se no princípio da legalidade e o da predominância do interesse público. O

controle sobre as entidades da Administração indireta é o de tutela, sendo externo e

exercido nos limites da lei, sob pena de ofender a autonomia daquelas entidades (id. Di

Pietro, 588).

3.2.2 – Controle legislativo

O controle do Poder Legislativo sobre a Administração Pública encontra-se

regulado na Constituição Federal, porque isto implica a interferência de um Poder nas

atribuições dos outros dois (Executivo e Judiciário). Aqui, temos dois tipos de controle:

o político e o financeiro.

a) Controle político: Este inclui aspectos da legalidade, de mérito e de natureza

política, porque aprecia as decisões administrativas sob o aspecto da discricionariedade.

Algumas hipóteses de controle que estão na CF/88 encontram-se sobretudo nos artigos

49, 50 e 52.

b) Controle financeiro: Encontra-se na CF/88 nos artigos 70 e 75, a fiscalização

contábil, financeira e orçamentária. Partindo do art. 70, pode-se deduzir o controle

financeiro quanto à atividade (verificar os atos da contabilidade, execução de

orçamento, resultados etc); quanto aos aspectos controlados, compreende: controle de

legalidade dos atos, controle de legitimidade, controle de economicidade, controle de

fidelidade funcional, controle de resultados de cumprimento de programas de trabalho e

de metas; quanto às pessoas controladas abrange União, Estados, Municípios, Distrito

Federal e entidades da Administração direta e indireta. O controle externo foi ampliado

como se verifica no art. 71, compreendendo as funções de : fiscalização financeira, de

consulta, de informação, de julgamento, sancionatórias, corretivas e de ouvidor (id Di

Pietro, 599-602).

3.2.3 – Controle judicial

O controle judicial junto com o princípio da legalidade constituem uns dos

fundamentos do Estado de Direito. O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição

una, pelo qual o Poder Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional, podendo

apreciar com força de coisa julgada, a lesão ou ameaça a direitos individuais e coletivos.

O Brasil não adotou o sistema da dualidade de jurisdição em que ao lado do Poder

Judiciário, existem os órgãos do ―Contencioso Administrativo que exercem, como

aquele, função jurisdicional sobre lides de que a Administração Pública seja parte

interessada‖ (id Di Pietro, 603).

O sistema da jurisdição una fundamenta-se no art. 5º, inc. XXXV da CF: A lei

não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Portanto,

qualquer que seja o autor da lesão, mesmo o poder público, poderá o cidadão

prejudicado buscar a via judicial para defender seus direitos.

No Brasil, adotou-se pelo que foi dito o sistema jurisdição única, diferente do

que ocorre em inúmeros países europeus. No caso brasileiro cabe ao Poder judiciário

decidir todo conflito, aplicando o Direito para resolver controvérsias, segundo o

princípio da legalidade. A Administração submete-se à legalidade, ou seja, no Estado de

Direito, ela só pode agir sob a lei. O princípio da legalidade não se propõe a ser um

mero instrumento de organização do aparelhamento administrativo do Estado, mas

estabelecer aos administrados uma proteção e uma garantia. Isto outorga ao cidadão a

certeza de que o ato administrativo não pode impor limitação, prejuízo ou ônus a

alguém, sem a prévia autorização em lei. A legalidade tem, portanto, a finalidade de

proteção jurisdicional a quem seja agravado por ação ou omissão ilegal do Poder

público sempre que isto ocorra (Mello, 2004, 871-873).

Portanto, existe direito à proteção judicial sempre que houver: a) Ruptura da

legalidade, causando ao administrado um agravo pessoal; b) Ou subtração de uma

vantagem que o administrado acederia se não houvesse ruptura da legalidade. Ora, trata-

se aqui da proteção de um direito subjetivo e não de um mero interesse legítimo. Mello

argumenta que há no Direito italiano o instituto do interesse legítimo, para fins de

desqualificar certas pretensões, negando-lhes a qualidade de direito subjetivo. Por

exemplo, as normas que regulam as licitações ou os concursos públicos, não conferem

aos que deles desejam participar do direito subjetivo a fim de se insurgirem contra atos

ou condições consideradas ilegais para efetuar uma inscrição. Nesse caso, no sistema

jurídico italiano entende-se que os postulantes só podem propor um interesse legítimo e

não um direito subjetivo. Essa forma de condução deste caso, deve-se a dualidade de

jurisdição na Itália e em outros países europeus. Aqui, a repartição de competências

jurisdicionais entre o Poder Judiciário e a Justiça Administrativa faz-se, distinguindo,

direito subjetivo e interesse legítimo, isto é, quando se trata do primeiro a decisão

compete ao juiz ordinário, e no caso do segundo, cabe ao juiz administrativo. Tem-se

como conseqüência de tal distinção, que o direito subjetivo compreendido na visão

moderna privatista, o juiz do Poder Judiciário não pode anular o ato gravoso, mas

apenas conceder reparação patrimonial. Ao contrário, face a um interesse legítimo, o

juiz competente é o da Jurisdição Administrativa, o qual pode anular o ato, mas não é a

sede própria para conceder reparação patrimonial. Porém, no Brasil não há dualidade de

jurisdição, inexistindo uma justiça administrativa, a qual zelaria pelos interesses

legítimos (Mello, 2004, 874-877) .

Na França, que adota a dupla jurisdição, os casos acima mencionados caem na

esfera de competência da Justiça Administrativa e não, do Poder Judiciário. Naquela são

discriminados os contenciosos de plena jurisdição e de anulação. O Direito francês não

trabalha com a mesma nomenclatura do Direito italiano (distinção entre direito

subjetivo e interesse legítimo), porém, entende-se que no contencioso de plena

jurisdição trata-se de um problema individual subjetivo e que, no de anulação o

problema versa sobre a legalidade objetiva, por isso destinado a anulação do ato lesivo.

Há entre esses países também uma semelhança nas modalidades de recurso. No

Direito italiano os recursos para defender interesses legítimos são suscitados por

questões de: incompetência, violação de lei e excesso de poder. No Direito francês os

recursos para defesa da legalidade (contencioso de anulação), e não em situações

subjetivas são: incompetência, violação da lei e desvio de poder (correspondendo ao

excesso de poder dos italianos) (id. Mello, 875).

3.2.4 – Meios de controle

Ainda tendo por base o art. 5°, inciso XXXV da CF, todo o cidadão tem o direito

de ação ou de exceção contra lesão ou ameaça a direito, utilizando vários tipos de ações

previstos na legislação ordinária, para impugnar atos da Administração, tais como ações

de indenização, possessórias, reivindicatórias, de consignação em pagamento, cautelar

etc. Além destas ações a Constituição estabelece ações especiais de controle da

Administração Pública, chamadas pela doutrina de remédios constitucionais. Estes têm

a função de garantir os direitos fundamentais, provocando a intervenção de autoridades,

em geral a judiciária, para corrigir os atos da Administração lesivos de direitos

individuais e coletivos.

Os remédios constitucionais têm a dupla natureza de direitos e de garantias. São

direitos em sentido instrumental conforme o art. 5°, inc. XXXV da CF e são garantias

porque resguardam outros direitos fundamentais também previstos neste mesmo art. 5°.

Podemos classificar os remédios constitucionais, que visam provocar o controle

jurisdicional de ato da Administração, a partir de dois critérios:

a) Os que garantem os direitos individuais: 1) Mandado de segurança

individual: É a ação civil de rito sumaríssimo pela qual qualquer pessoa pode provocar

o controle jurisdicional quando sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo,

não amparado por habeas corpus nem habeas data, em decorrência de ato de

autoridade, praticado com ilegalidade ou abuso de poder. 2) Habeas data: Assegura o

conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros

ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; ou para a

retificação de dados; 3) Habeas corpus: Protege o direito de locomoção; 4) Mandado

de injunção: Tem como pressuposto a omissão de norma regulamentadora que torne

inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas

inerentes à nacionalidade, à soberania, e à cidadania (art. 5°, LXXI da CF).

b) Os que garantem os direitos coletivos ou difusos: 1) Mandado de segurança

coletivo: Conforme Di Pietro, este remédio constitucional tem como pressuposto o

mesmo que está previsto para o mandado de segurança individual, isto é, ato de

autoridade, ilegalidade ou abuso de poder e lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e

certo. Pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso

Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída

(CF, art 5°, LXX). 2) Ação popular: É a ação civil pela qual qualquer cidadão pode

pleitear a invalidação de atos praticados pelo poder público ou entidades de que

participe, lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente, à moralidade administrativa

ou ao patrimônio histórico e cultural, bem como a condenação por perdas e danos dos

responsáveis pela lesão; 3) Ação civil pública: Trata-se do dano ou ameaça de dano a

interesse difuso ou coletivo, abrangendo o dano ao patrimônio público e social, o dano

material e o dano moral. Inclui especialmente, a proteção ao meio ambiente, ao

consumidor, ao patrimônio histórico ou cultural (id. Di Pietro, 612-656).

Pelo exposto, constata-se que o controle da Administração Pública opera-se nos

três poderes: legislativo, executivo e judicial. Além, deste controle existem os meios de

controle, ou os remédios constitucionais, que permitem aos cidadãos pleitearem seus

direitos subjetivos e intersubjetivos face à Administração Pública. Ora, pelo visto, o

Estado de Direito é controlado pelos cidadãos, e pelos poderes entre si. A doutrina do

Direito Público explicita a progressiva idéia de justiça, controlando o poder estatal. O

Estado não escapa ao controle da sociedade civil, ou seja, ele não se desvincula dela,

como parece ocorrer no modelo kojèviano. Antes, a sociedade civil, através do controle

jurisdicional, tem o poder de garantir os seus direitos e fiscalizar a Administração

Pública.

O modelo kojèviano de Administração Pública é devedor de um limite, por um

lado, causado por condicionantes teórico-práticas: a) Do modelo de dupla jurisdição,

que permite a repartição de competências jurisdicionais entre o Poder Judiciário e a

Justiça Administrativa, dando à Administração Pública uma quase independência do

Executivo e do poder estatal face à sociedade civil. Como vimos acima, o poder estatal,

praticamente, está desvinculado do cidadão, sendo quase impossível a este reivindicar

seus direitos; b) Do modelo de Direito Público, ou seja, da teoria dialético dualista de

Direito, em que as duas esferas constitucional e administrativa são determinadas pelo

poder político em detrimento do poder jurídico. c) Do contexto conjuntural bélico da 2ª

Guerra Mundial e de disputa entre sistemas ideológicos, resultado de um modelo de

Estado-Nação moderno, que se impõe interna e externamente, de um modo unilateral,

sobre a sociedade civil e os outros Estados.

De outro lado, o modelo kojèviano de Administração Pública tem um alcance

que se insere no debate atual entre liberais e comunitaristas, na medida em que acentua

o lado político da Constituição, enquanto projeto revolucionário de um povo. A

perspectiva do sujeito atomizado, defendido pelos liberais (Estado Liberal de Direito)

Conduz à afirmação de um modelo de democracia, que se insere em uma

matriz centralista e adstrita à preocupação estritamente procedimental, sob a

qual a Constituição se limita à Garantia de que os cidadãos optem pelo

rodízio das elites que exercem o poder político e que este esteja limitado

pelos direitos inalienáveis (Bavaresco, Christino, Schmitt, 2005,355).

Porém, o ponto de vista dos comunitaristas (Estado Social de Direito),

compreende o

Sujeito-em-relação, isto é, para além do indivíduo interessado e portador de

uma subjetividade fundada nos limites da vontade particular‖, mas de ―uma

identidade constituída por valores e ideais comuns‖. Aqui, ―a Constituição

figura como Projeto, uma vez que não se cogita de mera garantia, mas de

vinculação ao cumprimento dos objetivos de um destino socialmente

compartilhado (id. p. 355).

É verdade, que Kojève, quando da elaboração de seu Esboço, não tem diante de

si os avanços do Estado Democrático de Direito, que implica o resgate dos ideais de

liberdade e igualdade, no quadro da eficácia para a participação política e o exercício

dos direitos. Kojève em sua teoria da justiça prioriza, no entanto, a idéia de justiça como

desejo de reconhecimento, e nesta luta intersubjetiva há sempre um contexto típico em

que se determina a justiça como igualdade, equivalência ou eqüidade. Ora, esta luta pelo

reconhecimento, fundamento da teoria da justiça kojèviana, é, política, daí, a sua

aplicação no Direito Público, priorizando esta dimensão sobre a jurídica, bem como, o

comunitário sobre o individual. Preservadas as devidas nuances no campo

comunitarista, pode-se incluir a contribuição kojèviana na perspectiva de um Direito

intersubjetivo comunitário, estando aí o seu alcance no debate atual.

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AGOSTINHO SOBRE JUSTIÇA E PAZ

Roberto Hofmeister Pich∗

Introdução Aurélio Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, Norte da

África, na província romana da Numídia. Salvo por um período de cinco anos na Itália, Agostinho passou toda a sua vida no continente africano. Quanto à formação intelectual, Agostinho pertencia de todo à cultura clássica latina. Em Cartago, estudou retórica, tida então como meio para os cargos administrativos estatais. A dedicação à retórica foi aos poucos sucedida pelo amor à filosofia, sob a influência das obras de Cícero – particularmente do diálogo Hortensius, hoje perdido. O abandono do ideal romano de vida de prazer e reconhecimento cedeu à busca pela verdade filosófica.

O caminho até a verdade foi longo. Agostinho pertenceu por dez anos à seita dos maniqueus, tipo de movimento gnóstico. Após breve simpatia pelo ceticismo, recebeu firme influência, em Milão, do neoplatonismo de Plotino e Porfírio, autores lidos em latim, nas traduções de Mário Vitorino. Por meio da sua mãe, Mônica, o pensamento cristão acompanhou Agostinho desde a infância. A visão filosófica de Deus e a abordagem da origem e natureza do mal oferecidas pelo neoplatonismo, junto com a persuasiva pregação e interpretação escriturística do Bispo Ambrósio, em Milão, antecederam a conversão ao cristianismo, na mesma cidade, no ano de 386. Agostinho descreveu detalhadamente a sua conversão na obra Confissões.1 Foi batizado e introduzido na Igreja Católica em 387, por Ambrósio de Milão. A partir de então, numa gradativa caminhada do coração e da mente para conhecer “Deus e a alma”,2 Agostinho atuou por cerca de quarenta anos como sacerdote (foi ordenado em 391, em Hipona), bispo (foi sagrado em 395, também em Hipona) e teólogo (ao todo,

∗ Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1 Confessiones VII,12. 2 Soliloquia I,2.

Roberto Hofmeister Pich 44

numa produção literária notavelmente intensa de 386 até 430,3 deixou cerca de cem livros e tratados filosóficos e teológicos, cerca de trezentas cartas e mais de quinhentas pregações).4

Em todas as fases de sua atividade, questões de fundo e doutrinas ético-políticas acompanham tanto os escritos teórico-filosóficos quanto os teológicos em geral. Vários momentos da extensa “opera omnia”, e em particular os 22 Livros de A cidade de Deus (De civitate Dei), fundaram uma nova concepção de igreja e de vida política. No estudo que segue, procura-se apresentar uma visão sobre a ética, a política e o direito no Agostinho maduro, visão esta centrada nos conceitos de justiça e paz. Dá-se, com isso, razões para uma centralização na análise dos conteúdos da obra De civitate Dei. Sendo o pensamento agostiniano, em tais âmbitos, desenvolvido também em outros escritos, de modo particular no assim chamado “Epistolário” de Agostinho,5 procurar-se-á, tanto quanto possível, integrar tais pareceres, em especial quando se notam mudanças ou evoluções relevantes de abordagem.6 O conceito de “justiça” é central tanto para a filosofia moral, dado que pode ser entendido como relativo à (talvez) mais fundamental virtude moral do indivíduo, decisiva, em teorias clássicas, para a qualificação moral das ações em geral, quanto para a filosofia política. Aqui, caso se entenda que a filosofia política tem como objeto o poder e as suas instituições nas sociedades humanas organizadas, tal que o poder é mais ou menos definido a partir da ordem racional legitimante e estruturante do direito, a justiça tanto pode aparecer como definidora do estado quanto, no mínimo, inserida na reflexão racional sobre o direito e as instituições

3 Para uma lista em ordem cronológica das obras de Agostinho, cf. Kurt FLASCH, Augustin.

Einführung in sein Denken, p. 468-73. 4 Leitura obrigatória para uma biografia estrita e intelectual de Aurélio Agostinho é BROWN, P.

Augustine of Hippo: a biography (há uma recente tradução para o português, de Vera Ribeiro, Santo Agostinho: uma biografia). Para uma biografia breve, mas muito informativa, cf. O’DONNELL, J. J. Augustine: his time and lives. In: STUMP, E. and KRETZMANN, N. (eds.). The Cambridge Companion to Augustine, p. 8-25.

5 Cf. a pesquisa de RAMOS, F. M. T. A idéia de estado na doutrina ético-política de Agostinho. Um estudo do Epistolário comparado com o “De civitate Dei”.

6 Este estudo tem caráter introdutório. Ele não tem a pretensão de oferecer uma leitura original dos elementos centrais da concepção agostiniana de justiça, mas tão somente de apresentá-los suficientemente.

Agostinho sobre justiça e paz

45

políticas a ele associadas.7 Esta dupla perspectiva, talvez justamente na fundamentação ético-racional do “estado de direito”, pode, é claro, ser contemplada numa mesma teoria. Isso se nota na estrutura e no desenvolvimento deste estudo, em termos de (1) História e realidade, (2) Paz e governo, (3) Justiça e estado e (4) Justiça, lei e direito.

História e realidade

Em De civitate Dei, obra-chave do pensamento político ocidental e fonte maior do agostinismo político medieval, marca-se a atitude definitivamente crítica de Agostinho face à cultura antiga. Que tal obra exerça aqueles papéis, porém, não se justifica sem maiores explanações acerca do conteúdo próprio das argumentações de Agostinho, que há muito têm sido objeto de constante revisão. O “agostinismo político”, por exemplo, teoria política comum à Idade Média que prima por certa aliança do temporal com o espiritual, fazendo da sociedade política um todo identificado pela Igreja, tal que o Estado (cristão) se determina a partir da Igreja e é como que interior a ela, não pode ter, senão inadvertidamente, Agostinho e o pensamento bíblico como fontes principais. Não há em Agostinho qualquer premissa para afirmar que a natureza e a função do governo temporal – exercer a autoridade para a manutenção da paz social, racionalmente ordenada – só podem ter na justiça base e meio se o governo mesmo for submisso e supervisionado pela Igreja. Como resumiu Dyson, essa forma de pensamento, segundo diversas variações em torno de temas políticos agostinianos, por parte de autores eclesiásticos dos séculos 12, 13 e 14, foi usada para mostrar que a autoridade genuína só provém da Igreja e dela depende para ser válida.8 O “agostinismo político”, como se verá,9 não é agostiniano.

7 Sobre isso, cf. BARRY, B. and MATRAVERS, M. Justice. In: CRAIG, E. (ed.). Routledge

Encyclopedia of Philosophy, Vol. 5, p. 141-4. Sobre o conceito de justiça, cf. HÖFFE, O. O que é justiça?, p. 29-37. Sobre proposições para um debate contemporâneo sobre o assunto, cf. idem, Justiça política, p. 15-33.

8 Cf. DYSON, R. W. Normative theories of society and government in five Medieval thinkers, p. 54-5; RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 267.

9 Cf. abaixo sob 2.

Roberto Hofmeister Pich 46

É possível afirmar que a ética agostiniana – também a sua concepção de justiça – tem como estrutura de fundo convicções firmes sobre a história dos povos no mundo criado e a natureza e realidade do ser humano. Em grande medida, Agostinho, cristão moldado pelo neoplatonismo, relativizara desde o início os bens do mundo como inferiores face à vontade boa e ao objeto imutável de amor na realidade divina. “Fruir” e “utilizar” (“frui” e “uti”), dando a direção e a medida na qual a vontade deve buscar a posse das coisas, surgem cedo como distinções categóricas para o cumprimento do mandamento do amor nas ordens social e cultural.10 Nos bens do mundo, não há valor intrínseco. Tampouco o há na filosofia e nas ciências antigas. Elas são um “bonum” somente enquanto propedêuticas à vida cristã, ao entendimento da Escritura e à compreensão de Deus.11 “Compreensão” significa, sim, traduzir os temas bíblicos e cristãos para uma linguagem filosófica e mostrar que a sua verdade pode ao menos significar, desde já, que são racionalmente verossímeis.12 A relativização radical dos bens do mundo pôde ser, assim, ao mesmo tempo uma moldura dentro da qual aquela mesma cultura antiga sobreviveu no universo cristão: quase sem modificação, foi feita propedêutica ao cristianismo; para o uso, pois, da formação e proclamação cristãs, ciência e educação, em si bens neutros, encontram – tal como na vida nos mosteiros – uso correto.13 O auto-entendimento do ser humano cristão no mundo tem, pois, dupla forma: ele vive uma vida ativa e uma vida contemplativa, de acordo com a concorrência dos objetos em termos de “uti” (mundo) e “frui” (Deus).14

A obra chave para o delineamento histórico e metafísico desse auto-entendimento, De civitate Dei, escrita no período de 413-427, tem como pano de fundo a conquista e o saque de Roma, em agosto de 410, pelo rei visigodo Alarico.15 Na Primeira Parte,

10 De doctrina christiana I,3-4. 11 De doctrina christiana II,29-41. 12 Cf. FLASCH, K. op. cit., p. 401-2. 13 De doctrina christiana II,41-42. 14 Cf. DUCHROW, U. Ergebnisse und offene Fragen zur “Civitas”-Lehre Augustins. In:

ANDRESEN, C. (Hrsg.), Zum Augustin-Gespräch der Gegenwart II, p. 226. 15 Sobre a queda de Roma, em 24.08.410, cf. HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e seu tempo, p.

269s. Em sentido preciso, a interpretação do acontecimento, por Agostinho, começa já em 411, por meio de sermões, cf. ibidem, p. 279s. Além disso, a Epistula 137 (411/412), a Volusiano, e a Epistula 138 (411/412), ao tribuno Marcelino, apresentam de modo explícito os motivos que

Agostinho sobre justiça e paz

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Livros I-X, Agostinho dá o tom apologético e de circunstância da obra, eximindo os cristãos de culpa na tragédia, sem garantir, contudo, que um império cristão estaria imune à queda. Ataca o culto popular pagão e o papel da religião na sociedade romana (um serviço cúltico de mérito pessoal e estatal), bem como o culto “ao estado” (teologia política tematizada por Varrão, que elaborara um triplo conceito de “teologia” ou de “domínio de compreensão do divino”, a saber, “theologia fabulosa”, “theologia naturalis” e “theologia civilis”) e, na linha de avaliação mordaz de Salústio sobre a sociedade romana, a autocompreensão da cultura romana como sociedade virtuosa e como que “salvífica” na história.16

Para refutar “os inimigos da cidade de Deus”,17 Agostinho expõe implacavelmente os vícios e os defeitos dos impérios pagãos, em especial os de Roma. Os valores de Roma, postos politicamente, não podem ser tomados como verdade religiosa. Religião e sociedade não são domínios idênticos. Rigorosamente, mesmo ali onde os seus sentidos “civis” estão em destaque, o conceito de “civitas” sempre incluíra um conteúdo religioso. O estado da antiguidade clássica não era claramente separável dos deuses que cultuava, tampouco os seus deuses claramente isoláveis do estado que oficializava o culto.18 As religiões não-cristãs majoritárias e ligadas a sociedades politicamente organizadas eram, como um todo, estatais, o que significa que o estado estava sempre significativamente identificado pela religião: toda “civitas” era estado de culto de seus deuses, e todo “populus” era povo de culto de suas deidades.19 Se o cristianismo, porém, é capaz de ligar um conceito de Deus transcendente à prática da religião, tal como o Deus cristão transcendente, encarnado, funda uma “civitas”, em certo sentido visível na igreja, que, por sua vez, representa a “civitas Dei” mais por símbolo do que por identificação, ainda assim o Deus cristão não é imanente como na religião romana, não está encarnado na

levaram Agostinho a escrever a obra De civitate Dei; cf. também Marcos Roberto Nunes Costa, Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé, p. 150-1.

16 Cf., por exemplo, De civitate Dei II,2-18 e V,13-18. Cf. também POLLMANN, K. Augustins Transformation der traditionellen römischen Staats- und Geschichtsauffassung (Buch I-V). In: HORN, C. (Hrsg.), Augustinus – De civitate Dei, p. 26-38.

17 De civitate Dei XVIII,1. 18 Cf. RATZINGER, J. Volk und Haus Gottes in Augustins Lehre von der Kirche, p. 265. 19 Cf. SEYBOLD, M. Sozialtheologische Aspekte der Sünde bei Augustinus, p. 264; RATZINGER,

J., op. cit., p. 281.

Roberto Hofmeister Pich 48

profanidade estatal, tampouco numa “cultura cristã”. E, em especial, a salvação que o Deus cristão promete, segundo as Escrituras, ultrapassa este mundo, cuja história é, ao final, apenas um julgamento. Todos os reinos deste mundo têm caráter provisório, todo ser humano pode e deve esperar por um reino celeste superior. Assim, o verdadeiro pensamento cristão precisa estar sempre esvaziado de toda forma de teologia civil.20

Interpretação central (e hoje geralmente aceita) para toda a obra De civitate Dei e demais textos ético-políticos de Agostinho é que eles não consistem, pois, formalmente em “teoria política” – nenhuma obra de Agostinho é particularmente dedicada ao que se poderia chamar de “filosofia política”21 –, nem contêm em si uma “filosofia da história”, senão talvez na medida em que Agostinho ensina a unidade e o sentido da ordem dos tempos.22 Uma filosofia da história em si, em que a história é um processo auto-suficiente e autocontido, com causa, efeitos e fins imanentes, isto é, com progresso interno e sentido imanente, Agostinho desconhece.23 Num certo aspecto mesmo, “historia” não é usada por Agostinho em sentido moderno, como seqüência ou totalidade de eventos, mas sim como “narrativa”. Ela é contada pelo mestre cristão, sobre eventos relevantes para a salvação. A partir daí, pode-se falar de “história” profana e de “história” sagrada. Há história porque Deus a fez, ela é devida a algo que está além dela mesma. Ao mesmo tempo, há uma história humana porque os seres humanos possuem vontade de decisão: a sua história não é a natureza tomando o seu curso deterministicamente. É só por isso que aquilo que se passa na história pode ser julgado. E, assim, a história humana está subordinada ao juízo de Deus. Agostinho concebe a história

20 Cf. MAIER, H. Augustin (354-430). In: MAIER, H. und DENZER, H. (Hrsg.). Klassiker des

politischen Denkens 1: Von Plato bis Hobbes, p. 72-3. 21 Cf. BROWN, P. Sozialpolitische Anschauungen Augustins, In: ANDRESEN, C. (Hrsg.), Zum

Augustin-Gespräch der Gegenwart II, p. 179s. 22 Cf. HORN, C. Augustinus, p. 126-7. Critérios para a identificação de um conceito de história em

Agostinho, tendo como material de análise De civitate Dei XII,10-XVIII, são oferecidos por HORN, C. Geschichtsdarstellung, Geschichtsphilosophie und Geschichtsbewußtsein (Buch XII,10-XVIII). In: HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate Dei, p. 171-3. 178-87. Cf. também FLASCH, K. op. cit., p. 373-4.

23 Cf. HORN, C. Augustinus, p. 126-7.

Agostinho sobre justiça e paz

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humana – sagrada e profana – basicamente em termos de como ela é julgada por Deus. A história do mundo é história da salvação.24

Na Segunda Parte de De civitate Dei, Livros XI-XXII, em que a obra se transforma em literatura como que apocalíptica, as concepções agostinianas de estado, justiça e direito ganham interpretação a partir de definições mais estreitas das duas “civitates” – claramente concebidas pela primeira vez, por Agostinho, em De catechizandis rudibus XXXI. Agostinho não tematiza o “melhor regime” de governo, tampouco o valor educacional do “estado ideal” para a virtude dos cidadãos. A “civitas Dei” é definida como a comunidade dos eleitos por Deus, tendo lugar verdadeiro no céu. Como tal, ela não tem agora referência positiva e institucional na sociedade humana. Ela está na terra como peregrina e ligada ao estado do mundo pela “vita socialis sanctorum”. No mundo, a “civitas caelestis” está misturada à “civitas terrena”, isto é, à cidade dos rejeitados por Deus, que pertence ao demônio. Na vida presente, todos estão corporalmente na cidade terrena como sociedade política do mundo, dentro da qual existem, porém, dois amores inteiramente distintos. A visão dessas sociedades é estritamente escatológica: nenhuma delas é qualquer setor visível do estado. Apenas o juízo final as separará. Por isso, o decorrer de tais sociedades conjuga história do mundo e da salvação. Mais uma vez, a divisão agostiniana da história em seis épocas,25 com início, decurso e fim – condensados na encarnação, na morte e na ressurreição de Cristo, o centro da visão histórica de Agostinho, que muda a condição da vida humana e aponta para além da história26 –, inaugurando a idéia de inteligibilidade e de linearidade da história, o fenômeno do acontecimento histórico e da responsabilidade histórica humana, tem primariamente sentido pedagógico-religioso, e não histórico-hermenêutico profano.27

24 Sobre isso, cf. BITTNER, R. Augustine’s philosophy of history. In: MATTHEWS, G. B. (ed.). The

Augustinian tradition, p. 345-51. Cf. também MARKUS, R. A. Marius Victorinus and Augustine. In: ARMSTRONG, A. H. (ed.). The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy, p. 406s.

25 A saber, (1) de Adão até Noé, (2) de Noé até Abraão, (3) de Abraão até Davi, (4) de Davi até o exílio babilônico, (5) do exílio babilônico até o nascimento de Cristo, (6) de Cristo até o fim deste mundo e, ainda, (7) o descanso sabático eterno.

26 De civitate Dei XIV,11; XXII,22. 27 Cf. MAIER, H. Augustin (354-430). In: MAIER, H. und DENZER, H. (Hrsg.), op. cit., 73-4.

Roberto Hofmeister Pich 50

Estudos de Johannes Van Oort, em particular, deram ênfase ao fato de que a primeira e mais óbvia origem conceitual das duas “cidades”, por Agostinho, está localizada no seu explícito fundo bíblico: “os dois gêneros de seres humanos” (“duo genera hominum”) e “os dois reinos” (“duo regna”) têm no pensamento e na linguagem bíblica (no confronto simbólico e escatológico entre Jerusalém e Babilônia) a fonte mais próxima da teoria agostiniana das duas “cidades”.28 O mesmo autor insistiu, porém, que as representações bíblicas estão longe der ser, para tanto, a única influência – e isso está substanciado sobretudo em De civitate Dei XI-XIV. Van Oort enfatiza que Agostinho tinha profunda familiaridade com a doutrina maniquéia dos dois reinos, ligada à divisão escatológica da história em três períodos, “initium”, “medium” e “finis”29 – o que tem sido ratificado mais e mais por descobertas arqueológicas dos últimos decênios, que, além disso, trazem à luz as próprias raízes da visão religiosa do fundador Mani, como também as de Agostinho, nos círculos judaico-cristãos primitivos.30 Na tradição cristã anterior a Agostinho, identificou-se cedo o exegeta donatista Ticônio como a fonte primária da formulação das duas diferentes uniões de seres humanos em Deus e no demônio (“civitas Dei” e “civitas diaboli”). Melhor, porém, é dizer que ausência de dúvida há apenas quanto ao fato de que o uso agostiniano dos termos “corpus” e “civitas” se assemelha à terminologia empregada por Ticônio. E, aqui, encontra-se justamente aquilo que é próprio e central no pensamento não de Ticônio, mas sim no de Agostinho: a história do mundo é a história das duas cidades, tais sociedades absolutamente antitéticas consistem, no fundo, em dois tipos de seres humanos, de anjos e dos seus príncipes.31

Por essa mesma razão, a concepção do ser humano sob o pecado original vem a ser aquela que decide o sentido teológico-metafísico das duas “civitates” – impedindo, em definitivo, a justaposição de “christianitas” e “romanitas”. Isso ajuda a entender o sentido mais próprio que, em Agostinho, a palavra “civitas”, do latim

28 Cf. VAN OORT J. Civitas dei-terrena civitas: the concept of the two antithetical cities and its

sources (Books XI-XIV). In: HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate Dei, p. 163. 29 De civitate Dei XI,1; XI,33. 30 Cf. VAN OORT, J., op. cit., p. 163-6. Cf. também HORN, C. Augustinus, p. 117. Em De civitate

Dei XI,1, passagens dos Salmos servem a Agostinho como fonte do conceito de “civitas”. 31 Cf. VAN OORT, J., op. cit., p. 166-8.

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tardio, parece assumir: o de “comunidade de cidadãos”,32 que têm em comum justamente uma forma específica daquilo que é a tensão fundante da humanidade, isto é, o objeto precípuo do seu amor.33 Neste mesmo sentido, em De civitate Dei XV,8, “civitas” nada mais é que uma multidão de pessoas ligadas por algum laço acordante, denotando o mesmo que “societas”.34 É verdade que “civitas” pode denotar, além de “comunidade de cidadãos”, a “cidade” ou a “área” onde um grupo de cidadãos reside; pode denotar o “estado” ou o “reino”, mesmo a “cidadania” ou o “estatuto de cidadão” (“civis”), e todos estes significados podem ser encontrados em De civitate Dei.35 E poder-se-ia mesmo definir, como o faz Van Oort, o sentido básico de “civitas” como o de “polis”, significando um grupo de pessoas como comunidade, uma sociedade com a sua própria política, os seus próprios padrões legais, a sua ética e economia e, não por último,36 a sua própria religião.37 De qualquer forma, seja basicamente como “comunidade de cidadãos” (C. Horn) ou como “civitas”-“polis” (J. van Oort), o que se obtém essencialmente com as duas “civitates” é que, com elas, não se opõem de modo nenhum Igreja e Estado, mas sim duas atitudes éticas fundantes, duas orientações profundas, decidindo sobre todas as ações humanas. A distinção entre “o amor a Deus” (“amor Dei”) e “o amor próprio” (“amor sui”) expõe o contraste entre a “civitas caelestis” e a “civitas terrena”.38 Na origem dos “amores”, a cada vez, não está qualquer constituição ontológica dada, seja materialidade ou finitude, mas a decisão e a responsabilidade da vontade humana.39

Metafisicamente, só se é ou só se tem um amor. Metafisicamente, só se pode pertencer a uma das duas “civitates”. Assim, Peter Brown tem razão, ao afirmar que mais importante que resumir o pensamento político de Agostinho é desenvolver o modo especial do mesmo: a investigação política deve começar com o

32 Cf. HORN, C. Augustinus, p. 112. 33 De civitate Dei XIV. Para observações terminológicas acerca da “civitas”, cf. também

RATZINGER, J., op. cit., p. 255s. 34 Cf. também De civitate Dei XIV,1. 35 Cf. VAN OORT, J., op. cit., p. 160-1. 36 Cf. acima o vínculo estabelecido entre “religião” ou “culto” e “cidade” ou “povo”. 37 Cf. VAN OORT, J., op. cit., p. 161. 38 De civitate Dei XIV,28; XV,7. 39 De civitate Dei XIV,4-16.

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Livro X das Confissões,40 em que à pergunta “Quem é o ser humano?” se obtém como resposta que somente em Deus e por Deus o ser humano conhece a si mesmo.41 Afinal, é um raciocínio simples perceber que é segundo a natureza do amor que se seguem, metafisicamente, também as virtudes fundamentais dos cidadãos e o seu modo de convivência: na cidade de Deus, as virtudes da humildade e da caridade predominam, todos, tanto cidadãos quanto governantes, glorificam a Deus, admitindo a glória pessoal só na medida em que é oriunda de Deus; na cidade de Deus, governantes verdadeiramente cuidam dos que lhes estão sujeitados, os sujeitados obedecem com contentamento às regras que regulam as suas vidas.42 A obediência passiva a Deus e a adequação à “ordem” do estado divino não são, então, custosas; antes, ao invés de reivindicar uma autodeterminação ilimitada, o ser humano, assim Peter Brown pode resumir o pensamento ético-político de Agostinho como busca de restauração de uma harmonia perdida, se “afina” a “um único tom”: “omne ordo a Deo”.43 Em nenhum momento Agostinho quer analisar o estado no mundo isoladamente, mas sim à luz da raiz das orientações profundas, por detrás das atitudes humanas. Assim, toda teoria sobre o estado e a sociedade está sob a perspectiva do juízo de realidade do fim dos tempos. Sendo o amor a motivação humana básica, a única direção que pode ser exigida do cristão é o amor a Deus e ao próximo. A sua ausência basta para rejeitar pretensões de cultura religioso-divina: a auto-suficiência estóica, a autopurificação neoplatônica e o imperialismo romano, todos os antigos ideais humanísticos.

É premissa evidente para Agostinho que não há meio pelo qual o ser humano possa, no mundo, alcançar o amor a Deus em sentido estrito. Daí, os méritos sócio-culturais, a história e a política dos estados não podem ser interpretados com otimismo racionalista. Agora, a história do mundo mesma, a ordem temporal dos povos e estados ou “saeculum”,44 recebe interpretação teológica

40 As Confessiones datam de 397-400. 41 Cf. BROWN, P. Sozialpolitische Anschauungen Augustins. In: ANDRESEN, C. (Hrsg.), op. cit., p.

182-8. De civitate Dei XV,2; XV,8. Cf. BURT, D. X. Cain’s city: Augustine’s reflections on the origins of the civil society (Book XV 1-8). In: HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate Dei, p. 198.

43 Cf. BROWN, P., op. cit., p. 182-8. 44 De civitate Dei IV,33.

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específica, na medida em que o estado, que só existe pela força e coerção, é sustentado pela vontade divina como paliativo da condição humana do pecado.45 Há, pois, um sentido importante em que o estado – e toda dimensão política secular – existe por causa do pecado e está indissoluvelmente associado ao pecado.46 O estado não torna os seres humanos bons, mas cria condições para que o pecado não impeça a paz. Ele, por um lado, está sedimentado por sobre a necessidade dos bens deste mundo, em resumo, da manutenção do amor próprio, chegando, assim Dyson, a institucionalizar parcelas da natureza humana viciada: nestes termos, o estado não é de modo algum uma comunidade moral, uma “polis” do tipo familiar a Platão e a Aristóteles.47 Por outro lado, se o estado é ocasionado (indiretamente) pelo pecado, é também meio pelo qual as conseqüências (diretas) do pecado são atenuadas, em que a justiça e a segurança da ordem são menos contribuição moral do que auxílio instrumental: o estado é permitido por Deus para impor limites às capacidades humanas autodestrutivas.48

Esta interpretação da função do estado se coaduna, enfim, com as razões paradigmáticas do princípio do senhorio na história humana e do próprio “começo” das duas cidades, ligados simbolicamente ao assassinato de Abel – pai espiritual de todos os peregrinos na terra, a caminho da morada celeste – pela mão do irmão Caim: na letra do texto bíblico,49 Caim, o fratricida que ama o mundo, é também o fundador da primeira cidade, do estado no mundo.50 De Caim o sacrifício a Deus foi, em verdade, uma forma de culto a si mesmo: o sacrifício foi rejeitado, e dessa rejeição seguiu-se o assassinato do irmão e a punição de vagar pela terra, vindo depois a firmar-se uma primeira sociedade civil, com pessoas da mesma índole de vícios “terrenos”.51 A cidade primeira, chamada pelo nome do filho de Caim, “Enoque”, foi criada por um assassino para todos os que já buscavam para si um lugar permanente neste

45 De civitate Dei XIX,19. 46 BROWN, P., op. cit., p. 193, fala de “saeculum” não como este “mundo”, mas como esta

“existência”, a totalidade da existência humana, experimentada desde a queda e que durará até o juízo final.

47 Cf. DYSON, R. W. op. cit., p. 37-8. 48 De Genesi ad litteram IX,9; Sermo 125,5. Cf. DYSON, R. W., op. cit., p. 37-8. 49 Gn 4.17. 50 De civitate Dei XV,5. 51 De civitate Dei XV,5.

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mundo, buscavam os bens do mundo por razões de amor egoísta. “Enoque”, que significa “dedicado”, assim expôs convincentemente Burt, era simbolicamente a sociedade dos que eram “dedicados” a uma morada neste mundo e tinham nele o seu lar: trata-se da sociedade dos satisfeitos com e dos dedicados à paz e à felicidade deste mundo.52 Ao mesmo tempo, não deve haver confusão quanto ao fato de que o mal presente na cidade de Enoque ganha sentido não porque era um “estado”, mas por causa do “amor” dos seus membros – do qual o estado é, portanto, conseqüência indireta. Como “Igreja” não é equivalente a “civitas divina”, “Estado” não é sinônimo de “civitas terrena”. Neste mundo, nenhuma sociedade humana, seja a Igreja ou o Estado, é ela mesma a realidade de uma inamovível inclinação em direção a qualquer uma das sociedades supratemporais, e isso também porque nenhum dos seres humanos que formam a Igreja ou o Estado são, “hic et nunc”, completa e irreversivelmente cidadãos de uma “sociedade supratemporal”.53

É nestes termos que a “civitas caelestis”, a comunidade escatológica, tem agora, inevitavelmente, deveres face à “civitas terrena”, com a qual está misturada. Estando juntas no mundo, no “saeculum”, é inevitável a existência de atividades políticas entre seres humanos que não são voltadas ao reino de Deus, mas à vida neste mundo, no qual todos, sob uma cidadania escatológica, vivem sob o pecado.54 Ambas as cidades, assim, preocupam-se em conjunto com o que podem ter em comum: justiça e paz no estado do mundo.55 Sendo absoluto o contraste entre as duas sociedades, é conveniente que ambas estejam interessadas em certa ordem de vida comum. O governo mundano apresenta, como poder de ordem e de paz, um certo valor para ambas as sociedades que vivem faticamente juntas: e este governo mesmo é, face à pergunta se pertence a uma comunidade escatológica, metafisicamente neutro, o que, para Kurt Flasch, daria margem a uma forma de

52 De civitate Dei XV,17. Cf. BURT, D. X., op. cit., p. 201-2. 53 Ibidem. 54 Cf. WEITHMAN, P. Augustine’s political philosophy. In: STUMP, E. and KRETZMANN, N. (eds.).

The Cambridge Companion to Augustine, p. 236-7. 55 No que tange os conceitos de “justiça” e “paz”, esta afirmação, cf. abaixo sob 2, 3 e 4, tem de

ser relativizada.

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“secularização” das normas da vida comum.56 Permanece sendo necessário que o amor da cidade de Deus peregrina opere na “civitas terrena” alguma forma de paz.57 O amor da cidade de Deus não pode regê-la, pois ela se define por afastar-se dele. Mas, ele atua – como uma “ponte” – sobre a cidade terrena.58 O fazer desta “ponte” é o momento em que as formas de poder, estado e direito, em que a justiça como meio e a paz como fim da vida sócio-política neste mundo, se tornam decisivamente teorizáveis para Agostinho.

Paz e governo

A corrupção anti-social do coração humano é tão profunda que não há verdadeira paz sem a graça divina. O ideal ético estóico da paz possuída pelo sábio não pode ser cumprido. Ademais, se a justiça é o fundamento da paz, vale que justiça e paz verdadeiras – um “summum bonum”, tanto fim humano quanto do cosmo – estão além do mundo, pertencem à ordem superior de Deus.59 A visão teológica básica é a de que a paz em Cristo – não a “pax romana” – é a única sem fim, a qual, no final dos tempos, será ela mesma o fim de todo pensar e de todo agir concordes com o plano divino.60 “Pax” será “beatitudo”.61 As idéias acima estão condensadas, pois, nas afirmações que resumem o “Livro da Paz” agostiniano, isto é, De civitate Dei XIX: (a) Deus criou o ser humano de tal modo que ele está naturalmente ordenado à paz – o desejo pela paz é como que uma “lei natural”; (b) a verdadeira paz impera somente na

56 Cf. FLASCH, K., op. cit., p. 384. 57 De civitate Dei XIX,13; XIX,17. 58 Cf. a importante passagem em De civitate Dei XIX,17: “[A cidade celeste] não se preocupa com

a diversidade de leis, de costumes nem de institutos, que destroem ou mantêm a paz terrena. Nada lhes suprime nem destrói, antes os conserva e aceita; esse conjunto, embora diverso nas diferentes nações, encaminha-se a um só e mesmo fim, a paz terrena, se não impede que a religião ensine deva ser adorado o Deus único, verdadeiro e sumo. Em sua viagem a cidade celeste usa também da paz terrena e das coisas necessariamente relacionadas com a condição atual dos homens. Protege e deseja o acordo de vontades entre os homens, quanto possível, deixando a salvo a piedade e a religião, e ministra a paz terrena à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional, a saber, a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus”. Faço uso, aqui, de Santo AGOSTINHO, A cidade de Deus (contra os pagãos) – Parte II, 1990, p. 409.

59 Retractationes I,19,1s. 60 Tractatus in Ioannis Evangelium 104,1. 61 Cf. DE BONI, L. A. A noção de paz de Agostinho no De civitate Dei. In: OLIVEIRA, A. da R. e

OLIVEIRA, N. A. (eds.). Fides et ratio – Festschrift em homenagem a Cláudio Neutzling, p. 190.

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“civitas Dei”, razão pela qual, no dizer de Geerlings, “paz” é um conceito “análogo”, empregado tanto para a paz celeste quanto para a terrena, sendo que a paz de agora tem como modelo de definição a paz divina e eterna.62

Porém, há ainda assim a indicação importante de que a busca pela paz aponta para certa tese agostiniana do “animal político”: o ser humano é em essência comunitário, pois tem uma tendência natural a viver em paz com todos os seres humanos;63 o seu desejo por “societas” opera como uma espécie de lembrança da paz,64 preservada após a queda, embora não mais guiada por Deus, e sim pela “libido dominandi” como forma de amor próprio.65 Ela é, sobretudo, “sinal da paz futura” verdadeira ou ainda “objeto de esperança”.66 Assim, se, a partir do Livro XIX de De civitate Dei, Agostinho busca reconhecer na sociedade humana a expressão das necessidades mais fundamentais, o denominador comum abrangente das necessidades humanas que devem ser satisfeitas na sociedade de agora, e para o qual uma “teoria política” deve ser formulada, reside no desejo do ser humano pela paz.67 O próprio Livro XIX começara com a menção às 288 divisões que Marco Varrão – que as considerou redutíveis a três tipos ou facções68 – classificara, na obra De philosophia, acerca do fim último do ser humano: a paz, entretanto, é aquilo que preenche a definição do fim último como soberano bem, em que “o fim de nosso bem é aquele objeto pelo qual se devem apetecer os demais e apetecê-lo por si mesmo”.69

O sentido filosófico decisivo da discussão sobre a “pax” e a “vera pax”70 é, então, certo entendimento do plano divino, refletido na natureza, tal que todas as coisas têm tendência para a paz e 62 De civitate Dei XIX,26-28. Cf. GEERLINGS, W. De civitate dei XIX als Buch der augustinischen

Friedenslehre. In: HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate Dei, p. 220-1. 225. Para um resumo dos temas e das seis partes do Livro XIX de De civitate Dei, cf. ibidem, p. 221-2.

63 Enarrationes in psalmos 147(146),2,20-21. 64 Cf. HORN, C. Augustinus, p. 124-5; GEERLINGS, W., op. cit., p. 225-6; De civitate Dei XIX,12-

16. 65 De civitate Dei XIX,13. 66 Cf. DE BONI, L. A., op. cit., p. 194; De civitate Dei XIX,12. 67 Cf. BROWN, P. Sozialpolitische Anschauungen Augustins, p. 197. 68 A saber, cf. De civitate Dei XIX,2, “apetecer os princípios da natureza pela virtude, a virtude

pelos princípios da natureza ou ambos, a virtude e os princípios da natureza, por si mesmos”. 69 De civitate Dei XIX,1. 70 A passagem central em questão é De civitate Dei XIX,11-13.

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devem poder alcançar este propósito: na natureza e no ser humano, na verdade em todos os níveis de realidade, a paz é essencialmente a ausência de perturbação. Conjuga-se, portanto, à “paz” a idéia de “ordem” e de “plano divino”, em que, quando o sumo desejo humano é o amor a Deus e à vontade divina ordenada, verdadeiramente “a paz de todas as coisas é a tranqüilidade da ordem” (“pax omnium rerum tranquillitas ordinis”).71 Assim, há uma descrição hierárquico-ordenada da paz, em que esta significa, a cada vez, um certo equilíbrio entre partes relacionadas: aqui, a “ordem” que leva ao e/ou mantém o “equilíbrio” é a própria “paz”: há (1) paz do corpo (complexão), (2) paz da alma irracional (calma), (3) paz da alma racional (harmonia), (4) paz do corpo e da alma (vida e saúde), (5) paz entre o ser humano e Deus (obediência), (6) paz dos seres humanos entre si (concórdia), (7) paz da casa (concórdia) e também (8) paz da “cidade” ou da “sociedade política” (concórdia). Neste oitavo item, trata-se da concórdia ordenada entre os governantes e os governados na sociedade humana, de uma “paz terrena”, que, além da mera ausência de desordem e do mero respeito ao governante, indica a vontade comum – a “comunhão de vontades” – de promover o bem da cidade. Em coerência com a definição agostiniana de “civitas” e “populus”,72 De Boni tem razão em afirmar que a paz social, portanto, não é definível só a partir da constatação da existência de uma “comunidade de interesses”, mas pressupõe uma “concórdia de vontades no desejar seguir um plano que a razão possibilita descobrir”.73

A hierarquia da paz segue com (9) a paz da cidade celeste, isto é, a “união” sumamente concorde e ordenada do ser humano com Deus para fruir de Deus perenemente. Se, até aqui, a paz era atingível por meio naturais, agora ela depende da graça divina. Isso se diz também da já citada (10) paz de todas as coisas ou da “tranqüilidade” da ordem, que exprime de forma plena a concepção agostiniana de paz. De fato, a “referência da ordem à paz é iterativa”, e a ordem da paz seria, sim, um “verus ordo”.74 Fundamentar na justiça75 e na paz, em fórmulas ideais, o propósito

71 De civitate Dei XIX,3. Cf. GEERLINGS, W., op. cit., p. 225-6. 72 Cf. abaixo sob 3. 73 Cf. DE BONI, L. A, op. cit., p. 196-7. 74 Ibidem, p. 198-9. 75 Cf. abaixo sob 3 e 4.

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de perfeição da vida do ser humano particular numa sociedade, na medida em que têm consonância na realidade ordenada do cosmo e da natureza de suas partes, já era uma idéia comum à filosofia grega. O conceito de ordem suprema – de bem supremo – permanece vigente, assim, na interpretação filosófica que Agostinho dá à revelação bíblico-cristã: mesmo que a ordem e o bem sumo tenham sido transmitidos à criação e ao ser humano e que o ser humano não disponha mais deles por causa do pecado, a mesma ordem e o mesmo bem já foram restaurados por Deus, como se vê no processo da história da salvação, pois, no final dos tempos, é verdadeiro que haverá nova “civitas”, em plenitude de espírito.76 Isso fica ainda mais explícito numa nota significativa que De Boni fez à expressão “tranqüilidade” (“tranquillitas”) como termo que manifesta todos os graus da hierarquia da paz.77 Afinal, nos oito primeiros graus, a palavra que define “pax” aparece sempre junto com o adjetivo “ordenada”; no nono item, a palavra definidora é acompanhada pelo superlativo “ordenadíssima”; no décimo e último grau, o adjetivo se transforma, finalmente, em “ordem”: a “paz se torna sinônimo de ordem ou (...) a ordem se torna sinônimo de paz; (...) a ordem que é tranqüilidade”.78

Seja como for feita a aproximação teórica entre paz e ordem, é preciso observar que, para Agostinho, a ordem divina do mundo, em termos de razão divina e de “mundus intelligibilis” das formas apreensíveis à mente, em termos de criação no tempo e regência do mundo na história, já está realizada, mas a paz, como “tranquillitas ordinis”, só tem realização escatológica no reino de Deus.79 No entanto, como argüiu Duchrow com lucidez, levando em conta esta ressalva, a idéia exposta sobre paz e ordem pode ser utilizada para afirmar a ontologia de Agostinho no âmbito ético-político, pois, se toda ordem é divina e boa, é preciso tomar por boa a realidade da “vita politica” conjugada à “pax terrena”, e isso tanto pelo sentido de natureza dado àquele vínculo social quanto, a

76 Sobre isso, cf. DIHLE, A. Gerechtigkeit. In: Reallexikon für Antike und Christentum, Band X, p.

358. 77 Cf. DE BONI, L. A., op. cit., p. 199. 78 Ibidem. Os dois sintagmas, neste contexto, são, ao final, “pax”-“ordo” e “pax”-“tranquillitas”; cf.

GEERLINGS, W., op. cit., p. 231. 79 Cf. DUCHROW, U. Ergebnisse und offene Fragen zur “Civitas”-Lehre Augustins. In:

ANDRESEN, C. (Hrsg.), op. cit., p. 213.

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partir da narrativa cristã, por causa da recomendação ao amor dos cristãos.80 Na passagem chave, em De civitate Dei XIX,11-13, a argumentação é, na verdade, teístico-filosófica, e não cristológica: a temática é a ontologia da “pax et ordo”, não a cristologia da “pax et reconciliatio”.81 Uma vinculação explícita da paz à “pax Christi” virá, sim, no final daquela mesma obra,82 coroando na restauração por Cristo os sete períodos dos povos no mundo e o fim da história, quando Deus será tudo em todos.83 Ali, é verdade, ataca-se a pretensão de realidade da paz mundana:84 por parte da “civitas caelestis” peregrina, a “pax terrena” é somente objeto de uso, não de desejo ou amor. Como resultado, se Agostinho não pensa na paz suprema que se efetiva historicamente num estado “eleito”, como a “pax romana”, recusando a realização imanente da paz do reino de Deus, preserva tanto a paz da ordem racional como possibilidade quanto a experiência proléptica do carisma, agora, segundo a sua realização futura. Dinkler viu exatamente aqui a superação do conceito cósmico-moral de estado grego e da concepção romana de sociedade pacífica por contrato de interesses.85 Além da paz como resultado do hábito moral (a alma virtuosa da ética grega), além da paz como estabelecimento da ordem sócio-política natural pela concórdia e/ou conquista (a “pax romana”), é preciso considerar a paz como dom escatológico (a virtude e a realidade da comunhão dos santos, segundo o pensamento cristão).86

Paz, sem dúvida, não é só um conceito político, mas, em sociedade, só um governo pode garanti-la. Lei e governo são instrumentos para a ordem e a coerência da sociedade, sem o que a paz entre os cidadãos não existe. Governo, pois, é exemplo de um princípio providencial imposto sobre forças desagregadoras após a queda. A ordem que ele impõe não elimina o mal, pode mesmo usar este (como no caso da escravidão e da propriedade privada)87

80 Ibidem, p. 221. 81 Ainda que passagens bíblicas, como Rm 5.1 e 6.22, poderiam trazer sentido cristológico ao

mesmo contexto. Cf. DINKLER, F. E.. Reallexikon für Antike und Christentum, Band VIII, p. 479-80. Tampouco o conceito de igreja aparece na tematização da paz segundo Agostinho.

82 De civitate Dei XX,30. 83 1 Cor 15.28. 84 De civitate Dei XV,4; XIX,17. 85 Cf. DINKLER, F. E., op. cit., p. 493. 86 Ibidem. 87 De civitate Dei XIX,15.

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para bons propósitos. Fundamental é que a paz e a boa ordem sejam mantidas, mesmo sob a regência de um imperador maldoso ou não-cristão. Com sentido teológico, Agostinho legitima, a partir de Rm 13.1-5, que, no período de peregrinação, o soberano, dado o seu “imperium”, “o ponto mais elevado do desejo humano”,88 tenha direito irrestrito de obediência.89 Tal pensamento de inspiração paulina se tornará teoricamente instigante nos debates políticos medievais, pois pode correr contra o “agostinismo político”, dado que, se toda autoridade vem irrestritamente de Deus, independente se o governante é bom ou não, autorizado pelo poder eclesiástico ou não, nada nem ninguém pode limitar um poder que vem de Deus.90 Os cristãos não podem se sentir autorizados a questionar um governante cuja autoridade é oriunda de Deus, mesmo que se trate de um tirano. Deus estabelece todos os soberanos; por isso mesmo, o cristão, face a um tirano, obedece ainda a Deus. Ademais, um mau governante pode ser não só uma desgraça, mas também um agente de punição justa.91 É perfeitamente cogitável que Deus envie governantes tirânicos e cruéis, segundo os seus desígnios.92 A obediência irrestrita é o pacto geral da sociedade humana,93 exceção única de leis ou comandos que são contrários às ordenâncias de Deus. Desobediência, de qualquer forma, não é rebelião contra a autoridade constituída, nem é resistência contra os comandos gerais do estado.94 Antevendo a teoria gelasiana das duas espadas,95 Agostinho diz, dado que o ser humano é unidade de corpo e alma, que se deve ser sujeito, no que diz respeito ao corpo, aos poderes do mundo, que têm garantida a “rerum temporalium gubernatio”; quanto à alma e à salvação eterna, o ser humano está sujeito só a Deus.96

88 Cf. DEANE, H. A. The political and social ideas of St. Augustine, 1963. 89 Expositio ad romanos 72. 90 Cf., por exemplo, os Livros III, IV e V de GUILHERME DE OCKHAM. Brevilóquio sobre o

principado tirânico, p. 93-180. Cf. também KILCULLEN, J. The political writings. In: SPADE, P. V. (ed.). The Cambridge Companion to Ockham, p. 313s.

91 Cf. DYSON, R. W., op. cit., p. 39. 44. 92 De civitate Dei V,19. 93 Confessiones III,8,15. 94 Sermo 62,5; Epistula 185,2. 95 Cf. DEANE, H. A. op. cit., 1963. 96 Expositio ad romanos 72.

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Cabe ainda anotar, como exemplificam os escritos antidonatistas, que ao menos “ad hoc” Agostinho não viu “Igreja” e “Estado” como poderes de todo independentes, ainda que tampouco tenha formulado uma teoria de Igreja e Estado.97 Afinal, nos estados do mundo, dever-se-ia buscar o apoio do imperador cristão para o favorecimento institucional e religioso da igreja e do cristianismo, sobretudo a “proteção” face aos heréticos. Concretamente, porém, Agostinho – bispo em Hipona e, por isso mesmo, como os demais, uma espécie de “personalidade de Estado” a ser oficialmente consultada e ouvida – articulou ajuda papal e imperial para a perseguição e o banimento dos donatistas, cujo movimento foi acusado de ser ofensivo a Deus e uma ameaça à paz civil.98 Se, de início, Agostinho se mostrara pacifista tolerante, na tradição da Igreja Antiga, insistindo na busca da verdade livre do medo e na escolha de comunhão livre da coerção, a Epistula 185 ou De correctione Donatistarum, de 417, mesmo contendo o reconhecimento de que a compulsão à verdade traz o risco de produzir católicos falsos, espelha a convicção de que ela traz também o benefício maior de causar na vítima a renúncia de preconceitos bloqueadores, ao menos o exame das verdades das quais queria seguir em ignorância.99 Assim, pareceria grande exagero encontrar em Agostinho um teórico da tolerância religiosa e um defensor de um “liberalismo político”,100 se este é basicamente dirigido a quem vive em sociedades de pluralismo moral, religioso ou filosófico, em que se procura diminuir, com a idêntica premissa da racionalidade, a discordância sobre o uso do poder público.101 Mais uma vez, no entanto, mesmo escrevendo

97 Cf. MARKUS, R. A. Marius Victorinus and Augustine, p. 417. 98 Sobre o conflito com os donatistas no norte da África, cf. HAMMAN, A. G. op. cit., p. 287s.;

Marcos Roberto Nunes Costa, op. cit., p. 133s. Para uma interpretação sóbria, e ao mesmo tempo crítica, do conflito de Agostinho com os donatistas, cf. KIRWAN, C. Augustine, p. 209-18. Sobre a legitimação do uso da força por parte dos governantes, cf. também RIST, J. M. Augustine, p. 226-36. 239-45.

99 Cf. também Epistula 93,5; cf. SCHÖPF, A. Augustinus, p. 88-9. 100 Cf. HÖFFE, O. Positivismus plus Moralismus: zu Augustinus’ eschatologischer Staatstheorie, in:

HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate Dei, p. 282s. Mesmo o sentido de “liberalismo agostiniano” admitido por WEITHMAN, P. J. Toward an Augustinian liberalism. In: MATTHEWS, G. B. (ed.). The Augustinian tradition, p. 317-9, é eclético e fundado na crítica da unilateralidade político-religiosa como “orgulho”.

101 Ibidem, p. 304-7.

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ainda um “Espelho dos Príncipes”,102 descrito como o primeiro e talvez o mais breve dos “specula regum”, caracterizando um quadro ideal do regente cristão – no fundo, como todos os outros, comprometido ao máximo com a ordem e a paz –, Agostinho teria reagido com espanto aos canonistas medievais que o interpretaram como idealizador da condução do império pelos bispos, com o papa como cabeça.103

Na interpretação sóbria de Dyson, o que o dito “speculum regum” de Agostinho quer afirmar, como disse o Bispo de Hipona em muitas cartas a oficiais públicos, é que os governantes cristãos, como todos os cristãos, devem ser servos obedientes de Cristo, tanto na vida pública como na vida privada; que eles, como todos os cristãos, devem ser bom exemplo aos outros seres humanos; que imperadores cristãos são tão sujeitos aos requerimentos morais da fé quanto qualquer outro cristão.104 Neste caso, é o domínio específico dos governantes que exemplifica as virtudes cristãs da piedade e da humildade. A mesma passagem em foco (De civitate Dei V,24) – bem como outras sobre as atribuições dos governantes e detentores de autoridade – não testemunha Agostinho idealizando governantes como subordinados ao poder da Igreja em questões temporais: nem cargo, nem atribuições, nem poder, nem direito de exercício – tampouco a privação disso – dependem da indicação da Igreja.105 Não há nenhuma passagem em Agostinho em que o poder secular tenha de ser legitimado pela igreja ou concedido pelo papa: a igreja não pode fundar um reino político-divino da graça, não pode ser, deste modo, igreja imperial.106

Por outro lado, pode ser entendida como exagerada a tendência a sugerir, no pensamento de Agostinho, um duplo conceito de igreja, a partir da teoria da “civitas”. A “civitas Dei” é, em princípio, a “communio sanctorum”. Porém, há um sentido relevante

102 De civitate Dei V,24. 103 Cf. CHADWICK, H. Augustine, p. 105; FLASCH, K., op. cit., p. 392s. 104 Cf. DYSON, R. W., op. cit., p. 59-60. 105 Ibidem. 106 Aqui, tem significado lembrar a crítica dura (e correta) de Joseph Ratzinger à interpretação de

Adolf Harnack acerca da eclesiologia de Agostinho, cuja “combinação” consistiria em pôr em Agostinho e tese de que o Estado, dada a sua obrigação de defender a “pax terrena”, é e deve ser subordinado à Igreja, uma vez que esta somente dispõe da justiça necessária àquela mesma paz; cf. RATZINGER, J. op. cit., p. 316.

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em que, entre a “civitas Dei” e a igreja, dá-se, sim, total identidade.107 Todos os que pertencem em realidade à “civitas Dei” estão, neste mundo, também na “civitas terrena” em termos de sinal: vivem, sob o pecado, a história do mundo; todos os que vivem no mero sinal (sacramental) da “civitas Dei”, a Igreja, mas não pertencem a ela em realidade, em realidade pertencem à “civitas terrena”. Porém, seja em sinal sacramental (ou: no corpo de Cristo) na história seja em realidade escatológica, a Igreja como “communio sanctorum” é sempre “civitas Dei”.108 Como a comunidade na qual existe a “civitas Dei”, também o “populus Dei” é idêntico à Igreja como sacramento, tratando-se, pois, do “populus peregrinans”, que se define pelo amor da “caritas”, no corpo de Cristo.109 Se, por um lado, então, o “corpus Christi” ou a “ecclesia” é uma comunidade visível de sacramentos, que não exclui, em sua visibilidade e em seu caráter concreto, os pecadores, com os mesmos conceitos Agostinho designa, por outro lado, a comunidade daqueles que estão ligados em realidade à eleição divina, pela graça de Cristo. Nem o conceito de “civitas Dei” nem o conceito de “ecclesia” (ou de “corpus Christi”) têm um conteúdo claramente delineado um do outro; antes, o conteúdo de ambos os conceitos engloba uma e a mesma realidade, que tem dois modos distintos de existência: um modo provisório e um modo definitivo. “Ecclesia invisibilis sanctorum” e “ecclesia visibilis sacramentorum”: aqui se dá uma única realização da “civitas Dei”, uma realidade única com a “ecclesia sanctorum”.110

Justiça e estado

A partir do que foi exposto, deve ser possível compreender a definição e a função do estado – logo, também a do direito, que estrutura aquele.111 Fundo da inovação agostiniana é a relação nodal, na antiguidade, entre justiça e constituição do estado. É conhecido que Agostinho é o primeiro a teorizar uma interpretação

107 Ibidem, p. 279-80; SEYBOLD, M., op. cit., p. 270s.; DYSON, R. W., op. cit., p. 67-8. 108 Cf. RATZINGER, J. op. cit., p. 288-9. 109 Ibidem, p. 293-5. 110 Cf. SEYBOLD, M., op. cit., p. 208-48. A “Igreja” como “cidade de Deus” é a comunhão dos

santos, a qual, neste tempo, é a “ecclesia catholica” como modo de existência sacramental concreta da “civitas Dei”.

111 Cf. abaixo sob 4.

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conseqüente da idéia da justiça de Deus, conforme o pensamento do apóstolo Paulo, para a qual o conceito explicativo é o de graça divina. No que concerne ao seu pensamento ético-político, face a várias tendências de apologética cristã do estado e da civilização greco-romana, Agostinho se esforça para tornar novo o antigo pensamento da justiça como o fundamento da ordem social humana e da ordem cósmica, agora interpretada também nos termos da história da salvação bíblico-cristã.

Há quem entenda, como Ernest L. Fortin, que, como a República de Platão e a De re publica, de Cícero, De civitate Dei é, sobretudo, uma obra sobre a justiça: trata-se de uma obra sobre a justiça na maneira como esta veio a ser conhecida, graças a Agostinho, no Ocidente Cristão. A obra teria, pois, um mesmo propósito sob dois aspectos: (a) encorajar a prática da justiça entre os seres humanos e (b), ao enfatizar as limitações da justiça humana, sugerir certa precaução (sic!) contra o zelo excessivo na sua busca.112 O esforço soa dialético, pois só é bem sucedido ao obter um ideal moral de exigências excessivamente elevadas à vida natural e à filosofia, e ao mostrar como esse ideal é acomodável às realidades da vida política de agora.113

Agostinho abandona a relação clássica entre estado e justiça, notadamente verificável em Cícero, bem como rejeita a idéia de que o estado é uma comunidade para o aperfeiçoamento moral dos seus cidadãos.114 Se a “res publica” ou o “estado político”, segundo Cícero (na versão de Agostinho), é a “coisa do povo” (“res populi”), e o “populus” só existe onde há “concordância sobre o que é correto [direito]” e “comunhão de interesses”,115 repousando, assim, na justiça e no benefício dos cidadãos, Agostinho logo substitui, naquela definição, “concordância sobre o que é amado”,116 dando ao “vinculum concordiae” a indeterminação característica e necessária para abarcar, na definição, qualquer tipo de povo ou de estado existente.117 Ora, o caráter de “estado” ou de “república”, segundo

112 Cf. FORTIN, E. L. Justice as the foundation of the political community: Augustine and his pagan

models. In: HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate dei, p. 41. 113 Ibidem. 114 Cf. HORN, C. Augustinus, p. 118-9. 115 De civitate Dei XIX,21. 116 De civitate Dei XIX,24. 117 Cf. abaixo nesta divisão. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 167-8.

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a definição de Cícero, é negado à “civitas terrena”, daí a toda forma de estado que administra as sociedades humanas, dado que faltam nos povos e nos estados (a) a unidade no direito e (b) a comunhão de interesses. Só há (a) unidade no direito, quando há justiça; só pode haver justiça quando o corpo está ordenado ao espírito, e o espírito está ordenado a Deus. Sendo evidente que o “servire Deo” está ausente nos estados pagãos, na verdade em todos os estados como entidades de direito, também a “iustitia” e, então, a unidade no direito estão ausentes. (b) Por sua vez, um interesse real só pode ser aquele que de fato satisfaz o desejo por felicidade, e também uma “communio utilitatis” só pode haver numa comunidade que é “communio” da verdadeira honra a Deus.118 As “ausências” de (a) e (b) no estado pagão de Roma foram constatadas com o desmascaramento dos vícios de Roma desde a sua origem: nada difícil apontar, desde a perspectiva da “vera iustitia”, para os males morais e espirituais de Roma,119 para os desastres que foram ocasionados por esses mesmos constrangimentos,120 acompanhando o Livro II da obra De re publica, de Cícero. A insaciável “libido dominandi”, por detrás de todas as supostas conquistas e a pretensa glória moral e cívica de Roma, é a força criadora das injustiças da “civitas terrena”.121

A ênfase, pois, está na idéia de que a “concordância sobre o que é direito”, ou o “vínculo de concórdia” constitutivo da “civitas” segundo Cícero,122 não pode existir sem a prerrogativa da “summa iustitia” ou “vera iustitia”, e esta Agostinho não se permite vislumbrar senão na “república” da qual Cristo é o fundador e o regente – a “civitas Dei”.123 Se o conceito que explana a concórdia sobre o que é direito, que explana a “concórdia”, pois, é a “iustitia”, Agostinho desde o início faz depender o conceito de direito (“ius”) ao de justiça, o de povo e o de república ao de direito, logo o de povo e o de república ao de justiça.124 Onde falta a justiça verdadeira – a de Deus, seja como for entendida a justiça como virtude moral –, falta

118 Cf. RATZINGER, J., op. cit., p. 287. 119 De civitate Dei II. 120 De civitate Dei III. 121 Cf. FORTIN, E. L., op. cit., p. 44-6. 122 Epistula 138; De civitate Dei XIX,21-24. 123 De civitate Dei II,21. 124 Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 155-6. 159.

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por definição uma multidão de pessoas racionais congregada em sociedade, pelo consenso no direito e pela comunidade de interesses. O rigor formal do conceito de justiça não é, a propósito, um ponto de partida teórico deslocado do pensamento filosófico. O que se faz ao igualar “justiça” com “justiça suprema” (“summa iustitia”)125 faz-se ao igualar “cidade” como tal e “civitas Dei”, a “cidade perfeitamente justa”, o que, como lembrou Fortin, se conforma ao princípio teórico geral de que um substantivo não-qualificado designa o objeto perfeito.126 Semelhantemente, Platão ligara explicitamente a justiça ou as normas da justiça à ordem eidética do ser, e não às convenções sociais da “polis” existente.127

O caráter supremo da justiça se associa, porém, como também mostrou Platão na República, à idéia decisiva de que a justiça ocupa, entre as demais virtudes morais (entre as quatro virtudes cardeais), uma posição central. Assim, a existência da virtude tanto garante a harmonia das relações políticas de superioridade e subordinação, nas instâncias sociais, quanto se remete à operação ordenada das partes ou poderes da alma no indivíduo.128 Dizendo respeito a todas as partes da alma e a todas as partes da sociedade, em igual medida, a justiça constitui a unidade de todas as virtudes – tanto em termos políticos quanto individuais, portanto.129 Afinal, enquanto temperança, fortaleza e prudência estão ordenadas a uma parte do estado ou a uma parte da alma do indivíduo, a justiça apresenta o fundamento ontológico e moral de todas elas: ela é o resumo de todas as demais virtudes porque é uma qualidade correta geral, qualidade de fazer o que o próprio a uma natureza, e não agir diferentemente do próprio e do ordenado130 – idéia assumida também por Aristóteles.131 O justo, assim, é definível como a restauração de um equilíbrio desfeito por certas ações, no âmbito das ações, isto é, as relações sociais e políticas do

125 De civitate Dei II,21,1. 126 Cf. FORTIN, E. L., op. cit., p. 51. 127 Cf. PLATON, Politeia I . 128 Cf. PLATON, Politeia IV 434d-443e. 129 Cf. PLATON, Politeia IV 433e. Sobre a justiça como virtude abrangente, havendo domínio

comum à “temperança” (“sophrosyne”) e à “justiça” (“dikaiosyne”), cf. ainda PLATON, Protagoras 323a; Phaidon 82a-b.

130 Cf. PLATON, Politeia IV 433a-e. Cf. HÖFFE, O. O que é justiça?, p. 23-4. 131 Cf. ibidem, p. 24, sobre o conceito de “justiça universal”, a virtude completa.

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ser humano particular.132 Ademais, se a justiça, nestes termos, trata daquilo que faz da alma melhor ou pior, a restauração de um estado no mundo sensível não é mais importante do que a manutenção ou a restauração do equilíbrio das virtudes conforme à razão.133 Parece justo, então, concluir com Dihle que Platão define a justiça ontologicamente, na concepção da idéia da justiça e da ordem das partes da alma, permitindo congruência entre a ordem cósmica e a social, suspendendo a contradição entre “nomos” e “physis”.134 Aristóteles tomou a justiça como abrangente, mas eminentemente “ética” ou “relativa aos outros”: ela ordena todas as relações com os os outros seres humanos. Ela é, sem dúvida, virtude específica (“justiça particular”), mas está, em princípio, vinculada antes ao âmbito jurídico135 do que ao cósmico-metafísico e ao interno à alma.136 Assim, como é conhecido, a justiça deve se voltar ao sentido comutativo e ao sentido distributivo dos méritos nas relações humanas, sempre que as trocas de bens e os contratos e, ainda, as divisões de bens numa comunidade são questionados. Nos dois casos, tem validade o princípio de igualdade, primeiro em proporção aritmética absoluta, segundo em proporção análoga geométrica. Por isso, a justiça é a virtude pela qual cada um recebe o que é o seu próprio, e assim como a lei prescreve; a injustiça, ao contrário, dá-se sempre que se recebe um bem alheio e não de acordo com a lei.137 A justiça é a virtude do cidadão diante das leis e dos costumes da “polis”, o justo é “o conforme à lei” (“nomimon”) e “o igual” (“ison”).138

O breve excurso acima pode, então, ilustrar o sentido próprio da justiça conforme Agostinho, a meu juízo inteiramente presente no contexto do seu Epistolário e fundamentalmente bem exposta por Ramos, que identifica, ali, os dois aspectos centrais da justiça na obra de Agostinho como um todo: (a) Agostinho admite a concepção transmitida por Cícero da justiça como “aquela virtude que distribui a cada qual o que é seu” (“iustitia porro ea virtus est quae

132 Cf. PLATON, Gorgias 484a; 489a; 508a. 133 Cf. DIHLE, A. Gerechtigkeit, op. cit., p. 255-6. 134 Ibidem, p. 257. 135 Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, V 1129b25s. 136 Cf. HAUSER, R. Gerechtigkeit I. In: RITTER, J. und GRÜNDER, K. (Hrsg.), Historisches

Wörterbuch der Philosophie, Band 3, p. 330. 137 Cf. ARISTOTLE, On Rhetoric, I 1366b9s. Cf. também HÖFFE, O. Aristoteles, p. 234-9. 138 Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, V 1129a33; cf. HAUSER, R., op. cit., p. 330-1.

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sua cuique distribuit”);139 (b) Agostinho discerne a “vera iustitia” a partir do significado bíblico da mesma, em que é o “amor que serve ao amado tão somente e que, por causa disso, exerce senhorio de modo reto” sobre as demais coisas que estão sujeitas ao ser humano (“iustitia amor soli amato serviens et propterea recte dominans”).140 Deste modo, a virtude filosófica da justiça é reconvertida à união para com o objeto de sumo amor (o sumo bem que deve ser amado), à união em retidão suprema a um objeto ao qual todos os seres devem incondicionalmente se submeter.141

Se a justiça, portanto, é essencialmente amar o que deve ser amado, evitando toda soberba (todo amor próprio), então escolher aquele objeto é prudência, não separar-se dele por nenhum incômodo é fortaleza, não dar vez a nenhuma sedução por parte de bens aparentes é temperança. Assim, o valor absoluto de Deus é o que dá o sentido e a justa medida de valor a todos os objetos criados. A “vera iustitia” só pode equivaler, portanto, à virtude de viver no “iustus ordo naturae”, pela qual, no ser humano, a alma é submetida a Deus e a carne à alma, por conseguinte a carne e a alma a Deus,142 e pela qual, na sociedade, atribui-se, por justiça distributiva e eqüitativa, a cada um o que é, por princípio de igualdade, o seu próprio.143 Praticar a justiça na vida social é, desta maneira, primeiro reconhecer o direito divino e cultuá-lo com “verdadeira piedade”.144 Aqui, enfim, estaria presente, segundo Ramos, o princípio fundamental da ética platônica do conhecimento (e do amor) do sumo bem consubstanciando todas as demais virtudes: em Agostinho, o amor a Deus, em oposição ao amor próprio, é a justiça que consubstancia todas as demais virtudes.145 Como se verá,146 a justiça como amor ordenado (amor 139 De civitate Dei XIX,21. 140 De moribus ecclesiae catholicae I,15,25; Epistula 158,13. 141 Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 169-71. 142 A justiça verdadeira, assim, se torna, essencialmente, certa “beleza” do ser humano interior,

pela qual se vive reta e sabiamente as demais virtudes; cf. Epistula 120,19-20; Epistula 155,13.16. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 180.

143 De civitate Dei XIX,4. Cf. HAUSER, R., op. cit., p. 332. Há uma modificação obrigatória na definição destas concepções clássicas, que Agostinho pode ter conhecido a partir de CICERO, De natura deorum III,38. A justiça distributiva, por exemplo, passa a ser uma justiça que, porque verdadeira, só existe na república cujo fundador é Cristo; cf. De civitate Dei II,21.

144 Epistula 155,2. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 187-9. 145 Epistula 118. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 171-4. Cf. também KENT, B. Augustine’s ethics.

In: STUMP, E. and KRETZMANN, N. (eds.). The Cambridge Companion to Augustine, p. 228:

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a Deus)147 acarreta a paz comum, a concórdia ordenada entre os seres humanos, que consiste em não prejudicar e em ser útil ao semelhante. A noção clássica de justiça, conforme às exigências da razão, não é, pois, rejeitada, mas inserida na reflexão sobre a possibilidade última de acesso à verdadeira justiça, coincidindo com a participação na própria justiça de Deus, a suma e verdadeira justiça.148 Tomando a lei do amor a Deus como “regra de vida” e “princípio primeiro da filosofia moral agostiniana”, a justiça verdadeira define concretamente essa lei: na caridade, na ordem, na sabedoria, na humildade, na piedade, etc.149 Onde essa justiça não existe, não pode haver um conjunto de seres racionais, reunidos em sociedade, por consenso jurídico e por comunhão de interesses. Se a definição ciceroniana fosse correta (e suficiente), então nunca teria existido uma república romana: nunca teria existido república alguma no mundo.150

Fundamentalmente, nenhuma república verdadeira poderia existir, sem a “justiça” de comunhão com Deus, e tal república somente a “civitas caelestis” poderia ser. Mais uma vez, “civitas” se evidencia como um conceito de fortes atributos religiosos.151 Dado que, neste caso, nenhuma sociedade política da história do mundo seria de fato um estado, pois o interesse próprio é mesmo fundante das ações humanas agora, tal que os seres humanos não cumprem a justiça de amizade com Deus, então a justiça como tal não pode mais estar presente na definição possível de estado no mundo. Na definição mesma daquele, a justiça não é uma característica central do estado. E, mais uma vez, na sua definição própria, a justiça não comporta mal algum; o “amor” fundante da comunidade política admite ambigüidade, pois é medido pelo seu objeto precípuo. A justiça, no entanto, é inequivocamente boa.152

“They [the ancient philosophers] are equally mistaken in believing knowledge or wisdom the foundation of all moral virtues. Virtues are not unified through wisdom; they are unified through charity”.

146 Cf. abaixo nesta divisão e abaixo sob 4. 147 De moribus ecclesiae catholicae I; Epistula 155,13. 148 Epistula 155,10; De civitate Dei XIX,21. 149 Epistula 130; Epistula 153. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 176-9. 150 De civitate Dei XIII,5. 151 Cf. acima sob 1. 152 Epistula 155,13. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 187-9.

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Se, para os paradigmas anteriores a Cícero, como Platão, na República, a justiça é derivada, como virtude, a partir de uma idéia racionalmente apreensível e coextensiva à noção de estado ou sociedade ideal, ou como Aristóteles, na Ética a Nicômaco, a virtude social da justiça está fundada no direito natural,153 sendo ela mesma realizável apenas dentro da comunidade política, para Agostinho, que vê a justiça realizada somente a partir da vontade de amor a Deus, a “vera iustitia” é impossível na história, bem como o estado que seria coextensivo a ela:154 o clássico e fundamental requisito da definição de “estado” precisa ser riscado da mesma.155 Se, no entanto, o povo e o estado são definidos como “o conjunto de seres racionais que é unido pela comunhão acordante das coisas por eles amadas”,156 efetivamente não só os romanos são um povo e uma república, mas quaisquer outros povos, inferiores ou superiores quanto pior ou melhor o objeto da sua concórdia de amor.157 Como todo o pensamento ético-político de Agostinho, a definição agostiniana de povo e de estado se orienta pelo âmbito profundo da vontade humana, dos hábitos, dos valores e dos instintos no modo como se encontram na ordem do ser humano interior. Neste mesmo “locus”, creio que a ética da justiça de Agostinho passa a ser um “eudaimonismo cristão”, pois no objeto do amor da vontade está também a finalidade que subjaz a todas as deliberações práticas e que é definível como aquele cuja posse implica a “beatitudo”: “Deus” e “si mesmo” estão para os “fines bonorum et malorum”, para o “summum bonum” e o “summum malum” do indivíduo e da coletividade.158 “Fins”, assim, estão implicitamente presentes nas definições agostinianas de “estado”.159

A amplitude da definição de estado agostiniana faz pensar sobre a maneira como ele entende a realidade política. Quase a modo de um contrato de interesses hobbesiano, com certo tom moderno-

153 Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, V 1134b18s. 154 De civitate Dei XIX,21-23. 155 Cf. DEANE, H. A. op. cit.,1963; HORN, C. Augustinus, p. 118-9. 156 De civitate Dei XIX,24. 157 Epistula 155. 158 De civitate Dei XIX,1; XIX,3. Em perspectiva escatológica, Deus é o fim supremo, o “summum

bonum, cui adhaerere in aeternum est finis nostri boni”; cf. Epistula 155,3. 159 É fundamental definir a natureza e a amplitude da concórdia dos seres humanos

respectivamente ao fim, concórdia esta necessária e suficiente para definir a “civitas”; cf. Epistula 138,2. Cf. RAMOS, F. M. T. op. cit., p. 225-6.

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positivista, a modificação agostiniana na definição de estado quase poderia ser cumprida por um “bando de ladrões”, salvo que, no estado, há punição para criminosos e, com efeito, certos crimes não são indiscriminadamente aceitos.160 De qualquer modo, visto que o estado está assentado nos bens do mundo, e para tanto exerce poder e autoridade, repúblicas e impérios chegam a ser, para esses propósitos, “grandes latrocínios” (“magna latrocinia”) autorizados, em que “latrocínios” (não “estados”) são “pequenos reinos” (“parva regna”). Assim, o estadista ou imperador Alexandre Magno fez em larga escala, com uma imensa frota, essencialmente o mesmo que faz um pirata por si mesmo, com uma única nau.161 O trecho famoso – De civitate Dei IV,4 – parece ser devedor a Cícero.162 Embora tenha se conservado em estado bastante mutilado, segundo Fortin, o contexto a que pertencia indica, com suficiente clareza, o sentido convencionalista de justiça que os estados partilham:163 ali, por força do argumento, o interlocutor Filo defende a idéia de que a justiça é apenas o direito do mais forte e, portanto, é uma questão de convenção, não primariamente de natureza.164

Naturalmente, para quem aceita a premissa convencionalista de que o “correto” é só um nome para a vontade do mais forte, concretamente do governante, não há diferença qualitativa entre o pirata e o conquistador. Se, ao lado disso, se impuser a premissa de que bom e justo é um ser humano e boa e justa é uma sociedade somente conforme a sua causa ou o seu objeto, o estado mundano, com todas as suas formas de legislação e de uso de bens, tem por fundamento a convenção, como expressa a igualmente famosa definição de De civitate Dei XIX,24:165 a forma do estado, o seu direito e a sua lei, não é deduzida do seu objeto de amor, mas é, de algum modo, e em diferentes modos possíveis, associável por convenção àquela motivação. Nada mais pertence de natureza a um estado além de (a) uma pluralidade de sujeitos e do

160 De civitate Dei IV,4. 161 De civitate Dei IV,4. 162 Cf. CICERO, De re publica III,24. 163 De civitate Dei II,21; cf. FORTIN, E. L., op. cit., p. 49. 164 Ibidem. 165 Para uma definição semelhante, cf. Epistula 155,9.

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(b) seu acordo acerca de um fim comum.166 O sentido de realidade agostiniano o levou a preferir uma definição que incluiria todas as comunidades existentes e históricas, com um mínimo de ideal político167 – no máximo, com uma justiça de cunho normativo, não definitório.168 O estado, assim, pode reivindicar qualidade moral modesta; sendo o seu fim a paz interna, condicionada por leis adequadas e em si racionalmente formuláveis, permitindo a todos direitos plenos de sociedade de bem-estar, o estado se basta. O estado, ao mesmo tempo, se torna um símbolo, uma das muitas formas pelas quais se possibilita ao ser humano tanto expressar quanto reconhecer as necessidades e as inclinações que residem em si profundamente; pelo mesmo motivo, assim Peter Brown, a qualidade de um estado, de si neutra ou moralmente inexistente, se reduz drasticamente aos valores que os cidadãos reconhecem.169

É evidente que, dadas as restrições para a concreção da justiça estrita, e a negação de que ela é definitória do estado, cabe perguntar qual seria o papel do estado para o estabelecimento daquilo que dependeria da justiça como meio, ou seja, a paz e a ordem sociais. Como se verá, a função do estado de exercer a justiça, não como fundante do estado, mas como meio externo – ainda que em nada contrário – à sua natureza, consiste no direito.170 E, como o vínculo entre justiça e paz, também aquele entre direito e paz é estreito: vive-se na sociedade não meramente para praticar a justiça, mas essencialmente para, por meio da justiça, chegar à paz. A justiça é o meio e o pressuposto; a paz é o fim.171 A perfeita “pax” seria coextensiva, é claro, à perfeita “iustitia”.172 Nos termos de justiça e de direito, há como reivindicar um conceito agostiniano de “salus temporalis” ou “salus huius vitae”, equiparável ao de “pax terrena”, “pax temporalis”, “pax humana”, “pax huius mundi” ou “terrena felicitas”,173 que vem a ser tanto o resumo quanto a condição dos

166 Cf. RAMOS, F. M. T., p. 201. 167 Cf. FIGGIS, J. N. The political aspects of St. Augustine’s ‘City of God’, p. 63. 168 Cf. HÖFFE, O. Positivismus plus Moralismus: zu Augustinus’ eschatologischer Staatstheorie. In:

HORN, C. (Hrsg.), op. cit., p. 273-4. 169 Cf. BROWN, P. Sozialpolitische Anschauungen Augustins, p. 201-2. 170 Cf. abaixo sob 4. 171 Cf. DE BONI, L. A., op. cit., p. 192. 172 Enarrationes in psalmos 147,20. 173 Epistula 137,1; Epistula 138,4; Epistula 189,6; Epistula 220,8-9; Epistula 231,6; De civitate Dei

XIX,13. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 240-1.

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“bona huius saeculi”, dos bens temporais transitórios, como a incolumidade física, a tranqüilidade e a segurança dos cidadãos.174 Cabe repetir: a paz é a aspiração última de toda a natureza e de todos os seres humanos. É o bem maior de toda “civitas”, tanto da cidade de Deus, enquanto “pax aeterna” e “vita aeterna”, quanto da “terrena civitas, quae non vivit ex fide”: só ela pode ser o bem maior de todo estado e de toda sociedade política de agora.175 Enquanto “cidade deste mundo” (“civitas mundi huius”), enquanto “sociedade de interesse ou de desejo terreno” (“societas terrenae utilitatis vel cupiditatis”) – idéia de sociedade humana que é compreensiva de todos os estados empíricos, indistintamente176 –, toda “civitas” tem ou pode racionalmente ter por fim geral o “bonum commune” de todos os cidadãos.177 Tal “bem comum”, circunscrito pela paz e pela ordem comuns, racionalmente acessíveis, não é necessariamente concebido de um único modo, podendo apresentar características múltiplas:178 a ele, porém, o estado deve se voltar como instituição política de direito, com o seu conjunto de estruturas jurídicas e de leis. Sendo paz do estado, cabe dizer que a diferença desta para com a “pax romana”, paz conseqüente da “victoria”, oferecida ao vencido com o “ordo” da virtude pagã, à qual a expansão política de Roma servia e na qual se inspirava como em um direito e um culto,179 e com a qual, desde o século 4, escritores cristãos buscaram conceber os “tempora christiana” na seqüência histórica “pax Augusti”, “pax Christi” e “pax Constantini” como cristianização da ecumene e historicização do cristianismo,180 precisa apenas ser marcada pela definição escatológica, não histórico-institucional, das “civitates”.181

A possibilidade de justiça e direito é, ao final, tão pequena quanto a convicção de que o estado, para Agostinho, não é ruim, mas repousa num mínimo de justiça “natural” e no respeito a algum

174 Epistula 155,3. 175 De civitate Dei XIX,10-13. 17. Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 228. 176 De civitate Dei XVIII,2. 177 Epistula 137,5. 178 Cf. RAMOS, F. M. T., op. cit., p. 239. 179 Cf. DINKLER, F. E., op. cit., p. 441-2. WENGST, K. Pax romana: pretensão e realidade, p. 15-

76, diferencia os aspectos militar, político, econômico, jurídico, cultural-civilizatório e religioso da “paz romana”.

180 Cf. DIHLE, A., op. cit., p. 337. 181 Ibidem, p. 340-1.

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bem comum. Ele, neste mundo, é melhor do que a sua ausência, do que a liberdade de obrigações civis evocada pelos donatistas, radicais na rejeição do estado secular – uma instituição tão profana que era praticamente diabólica.182 A “fundamentação humilde” no estado de justiça e direito para o bem comum é o máximo que uma sociedade temporal pode conseguir. Donald X. Burt foi especialmente bem-sucedido em renovar o argumento de que Agostinho não poderia, com razoabilidade e sem inconsistência, negar ao estado dose significativa de justiça e de bondade.183 Isso é sustentável com base em pelo menos quatro posições defendidas por Agostinho: (a) primeiro, toda história, também a ascensão e a queda das sociedades civis, se origina da e é mantida pela providência divina; (b) segundo, o estado consiste num desenvolvimento natural e crescentemente complexo a partir da família, e esta é naturalmente um “bonum”; (c) em terceiro lugar, até mesmo os estados pagãos, como o império romano, têm valor, se estão enraizados em virtudes “verdadeiras” e cumprem funções elementares de preservação da sociedade; (d) em quarto lugar, (além de necessário) é correto e próprio aos cristãos fazer uso da prosperidade temporal e da paz, promovidas por um estado do mundo qualquer.184

A partir disso, Burt vê três níveis possíveis de bondade na sociedade política: um estado em que governantes e governados são inspirados pela fé, pelas virtudes e pelos valores da cidade de Deus (ideal de valor, mas não realizado na história humana); um estado cujos membros são motivados a servir ao bem comum com base em virtudes mundanas (Roma no seu ápice); um estado não movido por virtude, cujos membros são ligados apenas por um desejo comum de bem-estar e paz individuais (visível primeiramente na cidade de Caim).185 Sem dúvida, a primeira forma de estado supera a segunda, mas é igualmente óbvio que a segunda forma supera a terceira em termos de cumprimento racional das aspirações humanas. Não se trata, ademais, de inferir, a partir disso, uma espécie de “tertium quid” neutro de um “estado secular” entre as 182 Cf. FIGGIS, J. N., op. cit., p. 58. 183 Cf. BURT, D. X. Cain’s city: Augustine’s reflections on the origins of the civil society (Book XV 1-

8), p. 205, nota 14. 184 Ibidem. 185 Ibidem, p. 205.

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“civitates”, visando só a garantia dos bens temporais. Agostinho, assim Burt, não concebe um bem “secular”, pois todos os bens são verdadeiros: importa, para a concepção das “civitates”, o modo como todos os bens verdadeiros são amados, importa, pois, amar todas as coisas de modo racional, idealmente Deus acima de tudo, e tudo o mais por causa de Deus. Por causa disso, o estado que garante o acesso aos bens temporais necessários acompanha a diferença específica entre os cidadãos da “terrena civitas” e os da “civitas caelestis” como aquela entre os que “fruem” e os que apenas “fazem uso” dos mesmos bens.186 Nos melhores estados, é obtido o bem comum de uma sociedade de “usuários”, não “fruidores”, ali onde os cidadãos vivem virtuosamente, na verdadeira fé, e onde os líderes, inspirados com as mesmas virtudes aperfeiçoadas pela fé, também possuem a arte do bom governo.187 Em tais sociedades, os cidadãos poderiam experimentar um reflexo pálido do que será a vida na cidade eterna de Deus,188 mas, ainda assim, seriam apenas uma realização ordenada e racional de um estado que consegue dar aos membros o melhor que uma união política tem para oferecer: os bens verdadeiros da paz, da ordem e da prosperidade temporais numa comunidade fraterna.189

Justiça, lei e direito

Despojado da honra cúltica, o estado se justifica pelo

serviço de preservação da ordem e da paz. O estado é justificado no âmbito do fim do direito, e é ao mesmo tempo limitado a tal direito.190 O direito é aplicado por meio da lei, a lei opera pelo instrumento do medo.191 O sistema legal, pois, opera com coerção, sanções e punições – mesmo a retirada de posses, da liberdade e da vida.192 Punições não contradizem o Evangelho, se buscadas sem motivo de vingança, mas sim por amor corretivo.193 Nisso, a lei não

186 Ibidem, p. 206. 187 De civitate Dei V,19. Governar e ocupar posição de “autoridade” constituem mais uma arte

aprendida pela experiência do que uma ciência. Cf. BURT, D. X., op. cit., p. 207. 188 De civitate Dei XV,3. 189 De civitate Dei V,19; XIX,26; Enarrationes in psalmos 34,1.6. Cf. BURT, D. X., op. cit., p. 207-9. 190 De civitate Dei IV,4. 191 Sermo 13,8-9. 192 De civitate Dei XV,4. 193 De sermone domini in monte I,20,63; Sermo 13,4.7-9.

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é em si capaz de mudar os desejos básicos do ser humano, mas apenas de regular a sua conduta. Obviamente, o sistema legal opera precisamente porque os amantes de bens terrestres não são transformados em amantes de bens eternos. A vida política e o estado de direito são espelho dos paradoxos da condição humana. Neste contexto, teria lugar o tema da guerra justa, sobretudo o “ius ad bellum” (“direito para a guerra”), e não tanto o “ius in bello” (“direito na guerra”). Há variedade na categorização das razões que permitem a guerra justa em Agostinho; a justiça suficientemente normativa para autorizar temporalmente a guerra é que a ação não parta de motivo mau identificável – de fato, de motivo que não seja a preservação ou a restauração da justiça e da paz sociais ameaçadas ou perdidas.194

Mais concretamente, se o direito é o fim e o limite do estado, ele o é como uma ordem imposta pela providência de Deus, face às ações volitivas más do ser humano, que tentam destruir a ordem natural.195 Atos do governo político e penalidades impostas pelo sistema legal representam exemplos de um processo em que a ordem é criada e restaurada.196 Com base no pensamento político de Cícero, o jovem Agostinho viu no direito positivo uma derivação em concordância com a lei divina.197 As leis da razão, em seguimento ao – de qualquer modo, tampouco aqui em dedução do – direito natural, punem o mal, mas não definem o que ele é.198 Isso só pode ser conhecido por meio da lei natural-divina, que revela a ordem do ser humano e que o bom e sábio dirigente busca: nestes termos, o conhecimento da estrutura do mundo e da natureza humana é inata ou no mínimo acessível a todo ser humano.199 O direito natural, ali, é lugar da presença imediata de Deus, tal que o princípio da 194 Cf. HOLMES, R. L. St. Augustine and the just war theory. In: MATTHEWS, G. B. (ed.). The

Augustinian tradition, p. 330-3. As principais fontes sobre o assunto, cf. ibidem, p. 339, nota 5, são: De libero arbitrio I,5; Contra Faustum XXII; Epistulae 138, 189, 222 e 229; Sermo 303; Quaestiones in heptatheucum IV,44 e VI,10; De civitate Dei XV,4 e XIX,7. A influência das concepções de Agostinho sobre a “teoria da guerra justa” no teórico pioneiro do direito internacional e mais influente autor moderno sobre aquele mesmo tema, Hugo Grotius (1583-1645), é apontada por MATTHEWS, G. B. Post-medieval augustinianism. in: STUMP, E. and KRETZMANN, K. (eds.). The Cambridge Companion to Augustine, p. 270-1.

195 De libero arbitrio I,5. 196 De ordine II,4,12; De libero arbitrio I,5,12. 197 De libero arbitrio I,6,14s. 198 De libero arbitrio I,3,6. 199 De vera religione XXXI,58.

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legislação estatal pode repousar na lei inscrita no coração humano mencionada pelo apóstolo Paulo,200 servindo aquela “lex temporalis” à manutenção de uma vida em comum ordenada.201 Novamente, deduz-se de uma certa concepção da natureza – da ordem adequada ao ser humano – as bases que sustentam, no direito natural, a justiça social. Aqui, pensa-se ainda na “lex naturalis” da antiguidade, em especial como foi pensada pelos estóicos, da qual essencialmente seguia a ordem jurídica romana.

Na fase madura, da qual a obra De civitate Dei é o exemplo maior, Agostinho não abandona a função do direito na sociedade, mas enfatiza a inacessibilidade e o ocultamento da vontade divina. A identificação da lei natural com a divina não desaparece, mas sim a capacidade de conhecer o seu conteúdo e realizá-lo na sociedade humana. A vontade racional divina só é conhecida por ato da graça. Assim, assegura-se ainda mais que toda legislação estatal, sobretudo a positiva, tem somente função provisória de serviço. Em De civitate Dei, como no jovem Agostinho, não há voluntarismo de comandos legais – Agostinho diz que a vontade de Deus é, sim, “lei inteligível e imutável”.202 Mas, quem a conhece como tal? Por isso, torna-se impossível dizer que, para a ordem estatal, basta um fundamento no direito natural. Na verdade, o próprio fato de que seres humanos governam sobre outros – domínio político e cidade do mundo – é contra a ordem natural da criação,203 mesmo correspondendo a uma intenção divina, como ordem punitiva após o pecado original.204 O direito está, agora, com fim e limite de uma instituição não-natural; ele mesmo é não-natural, isto é, não parece ser mais direito natural divino.205

Em De civitate Dei, pois, a teoria da lei natural – o lugar da lei em geral – é vista sob princípios teológicos. Dada a impossibilidade da auto-realização humana – o amor a Deus deve exigência e realização à graça divina –, a lei natural se insere dentro da capacidade humana limitada de bem-viver. Como a filosofia, o

200 Rm 2.15; De sermone domini in monte II,9,32. 201 De libero arbitrio I,15,32. 202 De civitate Dei X,7. 203 De civitate Dei V,21; XIX,15. 204 Cf. HORN, C. Augustinus, p. 123. 205 Sobre o direito natural-divino na perspectiva da “civitas Dei”, cf. ainda DEMMER, K. Ius caritatis

– Zur christologischen Grundlegung der augustinischen Naturrechtslehre, p. 243-60.

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direito está condicionado: ele tem valor instrumental. A lei é fundamentada, sim, divinamente para o bem-estar humano. Pelo conteúdo, abrange o que é necessário à preservação da existência e do poder de ação humano.206 Dado que o respeito à lei assegura a sobrevivência, a filosofia possui então grande função para a vida de amor a Deus. Na sua estrutura, a “lex divina” e a “lex naturalis” estavam igualadas em Cícero,207 tornando-se fundamento concreto do direito positivo.208 Em Agostinho, mesmo havendo leis imutáveis, medida e fonte para a formulação de leis temporais, pelo fato de que a determinação básica no campo normativo reza que o fim determinante, o amor a Deus, não está ao alcance, os conteúdos da lei positiva podem ser julgados filosoficamente segundo a ordem de preservação, a ordem natural e racional e, ainda, relativa. A medida estrita de justiça para a sociedade continua sendo a justiça de Cristo,209 não o grau de conformidade das leis com as regras racionais do cosmo.210 Fazendo uso da expressão de Fortin, é certo que Agostinho nunca abandonou o seu “extremismo” ético: é capaz de unir o mandamento bíblico do amor à noção estóica de lei eterna e de verdadeira ordem: se a junção dos dois elementos é a lei natural estrita, Agostinho via de regra pensa nela como um máximo moral a ser realizado.211 Daí, calcada esta na “vera iustitia”, é justo dizer que ela impõe um “pronunciamento extremo sobre a moralidade”, o dever de exercer todas as virtudes, desde a sabedoria teórica até aquelas que seriam costumeiramente denominadas “morais”: para Agostinho, como para Platão, não há tal coisa como uma virtude moral propriamente, ou melhor, uma virtude “moral” não-acompanhada das virtudes dianoéticas.212

Sob tal visão “extremista”, o conceito de “ordo naturalis” como ordem de mundo relativa se torna a base da acepção filosófica 206 De civitate Dei XIX. 207 CICERO, De legibus I,18-27. 208 CICERO, De legibus II,14. 209 Precisamente, a justiça do final dos tempos não é só a restauração do estado original, como

pensavam certas escatologias não-judaicas e não-cristãs; antes, o domínio universal da justiça final será o resultado de uma renovação do mundo e do ser humano, que supera o estado original. Cf. De civitate Dei XXII,30; DIHLE, A., op. cit., p. 357-8.

210 Confessiones III,7,13; De civitate Dei XVIII,2; Epistula 138,1. 211 Cf. FORTIN, E. L., op. cit., p. 47. 212 Ibidem. O tema da conexão e da unidade das virtudes em Platão é, obviamente, tanto em

termos de exegese quanto de coerência teórica, extremamente controverso; cf. HARE, R. M. Platon. Eine Einführung, p. 94s.

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do direito. Em De civitate Dei XIX,4.14, diante do fato de que o “summum bonum” cristão é a vida eterna, acessível à fé (âmbito teórico) e condicionado pelo “recte vivere” (âmbito prático), possível só com o auxílio divino, admite-se que o uso da razão para a reta vida, segundo o “ordo naturalis” da razão e da virtude, está no centro da práxis. “Ordem” é tanto norma fundamental segundo a qual a criação age e existe quanto, em correspondência a isso, a “harmonia interna” do ser humano segundo a estrutura e a relação de suas potências naturais213 – da potência racional, da potência volitiva e da potência apetitiva. Daí, o domínio da vontade racional do ser humano sobre os desejos inferiores – uma “regula veritatis” naturalmente acessível – mostra uma capacidade de conhecer a ordem natural de valor relativa do mundo e de agir de acordo. Especificamente, ali se tem “lei natural moral” ou “de razão”, endereçada ao ser humano racional.214 De qualquer modo, a prática do domínio da vontade racional continua sendo útil apenas em sentido relativo: conforme a ordem natural possível agora, um contexto funcional imanente, com a consciência de que não é a realização do amor de Deus.215

Se, no âmbito prático, para se obter com a “lex naturalis” normatividade estrita, precisar-se-ia do amor de Deus, então a ordem de valor relativa, acessível à razão, não é em si estritamente prescritiva. O fim de tal ordem natural, a manutenção de interesses, daí a existência e ação humanas, é condicionado, é um sentido de orientação relativo para a preservação e o vínculo de tudo à paz.216 O vínculo de tudo à paz é, deste modo, um “minimum” político que liga o direito no mundo ao direito divino, o “ordo” e a “lex naturalis” relativos à “lex aeterna”, que, cumprida, é lei da paz duradoura com o Deus imutável. Isso marca o limite da reflexão filosófica sobre o direito.217 O ser humano age para assegurar a sua existência. Virtudes são, daí, úteis: com a sua ajuda, age-se de modo apropriado e racional. Ainda assim, a lei que possibilita e se orienta

213 Cf. CHROUST, A.-H. The fundamental ideas in St. Augustine’s philosophy of law. In: The

American Journal of Jurisprudence, p. 60-1. 214 Ibidem, p. 68s. 215 De doctrina christiana I,7-8; cf. Cf. KRIEGER, G. und WINGENDORF, R. Christsein und Gesetz:

Augustinus als Theoretiker des Naturrechts (XIX). In: HORN, C. (Hrsg.). Augustinus – De civitate Dei, p. 247-52.

216 De civitate Dei XIX,14. 217 De civitate Dei XIX,4.

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positivamente na prática da virtude sempre estará inserida no erro geral dos seres humanos de localizar no mundo a sua finalidade, onde todo e qualquer bem só pode ser contingente e, em si mesmo, passageiro. Virtudes são, assim, compensações à contingência humana, em que se tenta assegurar a sua função como ser racional-volitivo no “ordo naturalis” possível. O fim da virtude, pela perfeição da vontade, sem o “malum” da “libido”, com a definitiva paz interior da vontade racional sobre os componentes irracionais, não se pode atingir.218

Segundo o conteúdo específico, Agostinho, em De civitate Dei, interpreta a lei natural acessível à razão de acordo com a “regra de ouro”, ainda num sentido de “lei verdadeira” e “racional”, justiça de expressão racional e acessível naturalmente a todos os seres humanos, como em Cícero: não fazer a ninguém o que não se deseja que se faça a si, isto é, não fazer o mal a ninguém e fazer, sempre que possível, o bem a todos como se o deseja para si.219 Essa lei verdadeira e racional está, sim, inscrita no coração humano e determina a sua consciência.220 E isso, segundo Dihle, basta para reivindicar que Agostinho aceita, indubitavelmente, o sentido filosófico da justiça distributiva,221 mesmo que a justiça orientada pela vontade de Deus vá além, pois inclui querer fazer o bem ao próximo e é resumida no mandamento do amor.222 Em contextos anteriores, Agostinho formula notadamente o princípio de justiça natural, o de dar a cada um conforme lhe é devido, como um princípio da lei natural moral.223 Aqueles dois princípios serão tomados por Tomás de Aquino como os princípios fundamentais da lei natural.224 A partir deles apenas, preceitos positivos devem ser aplicações ao menos conformes ao seu conteúdo de orientação, 218 Cf. Cf. KRIEGER, G. und WINGENDORF, R. Christsein und Gesetz: Augustinus als Theoretiker

des Naturrechts (XIX), p. 254s. 219 De civitate Dei XIX,14; Epistula 107,15; Epistula 157,3. 220 Rm 2.14-15; De sermone domini in monte II,9,32. Cf. R. W. DYSON, op. cit., p. 24s. 221 De diversis quaestionibus LXXXIII, q. 31. 222 De catechizandis rudibus XIV,1s.; De trinitate IX,14. Cf. DIHLE, A. Gerechtigkeit, op. cit., p. 353.

Há, contextos, sim, em que Agostinho concebe literalmente uma “justiça menor”, adequada às condições da vida no mundo (“iustitia minor huic vitae competens”); cf. De spiritu et littera XXXVI,65. Cf. FORTIN, E. L., op. cit., p. 57, que toma as posições referentes à “guerra justa” como exemplos principais da “justiça menor”.

223 De diversis quaestionibus LXXXIII, q. 31. Há casos em que este princípio chega a receber uma “interpretação casuística”. Cf. Epistula 153; De civitate Dei XIX,4; HAUSER, R., op. cit., p. 331.

224 Summa theologiae IaIIae q. 94, a. 2 et a. 4.

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preceitos que, pelo motivo da corrupção humana, precisam da forma escrita da lei codificada, por meio da promulgação por autoridade legítima, a qual preserva igualmente o seu valor e zela pelo seu cumprimento.225 Se, ainda, sistema legais positivos podem ser modificados, dadas as circunstâncias históricas dos povos e das sociedades, mesmo assim a unidade original da lei natural não é desaprovada, pois o seu sentido de preservação da existência, acessível à razão, é símbolo universal inequívoco da ordem relativa.226 A lei natural permanece sendo o fim e o limite dentro do qual o estado, no “saeculum”, tem ao mesmo tempo interpretação teológica e legitimação filosófica. Mais uma vez, na ordem relativa assim fundada, não há impedimento da inclusão do amor a Deus e ao próximo, que podem igualmente estar presentes sob a idéia da direção natural da vida a partir do decálogo.227 Nas formulações teóricas gerais da lei natural, ao menos deve poder haver lugar para um querer concreto de uma vontade, que, dando direção à existência humana como um todo,228 pode apresentar um ser humano agindo verdadeiramente segundo a liberdade, a bondade e o amor de Deus, e que pode também espelhar uma convivência pacífica entre seres humanos, ajudando o próximo a amar a Deus.229 Deste modo, a ordem da lei natural pode servir para um ordenamento indireto ao fim transcendente, para o qual, porém, o ser humano precisa do “magisterium” e do “auditorium divinum”. Contudo, os princípios naturais morais trazem, agora, o sentido e o fim do existir e agir humanos, em que a vida se dá, agora, conforme o “ordo naturalis” em realização relativa: aqueles princípios morais não são outra coisa que respeitar racionalmente as condições gerais de existência e ação. A forma e a normatividade de tais idéias para o existir humano em sociedade praticamente não são trabalhadas por Agostinho, mas a formulação de normas concretas, mesmo que leis positivas mutáveis, podem, a título de exemplo, justificar conformidade e promulgação de lei para a proibição da escravidão, orientando-se sempre na preservação das condições

225 Epistula 107,3; Sermo 125,2; 154,1; 155,3,3; 156,2,2; 170,1,1; Contra Faustum XIX,7. Cf.

CHROUST, A.-H., op. cit., p. 72-3. 226 De civitate Dei XIX,14.17. 227 De civitate Dei IX,14. 228 Confessiones VIII,9,21. 229 De civitate Dei XIX,14.

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universais da existência e ação humanas.230 De novo, seria um sentido teológico da lei que admitiria fundação relativa da prescritividade. Diferentemente de Cícero,231 Agostinho permanece longe de ver o estado positivo em inconfundível conformidade com a lei da natureza, pois o direito positivo só pode estar associado a um direito natural ao final relativizado pelas leis imutáveis estritas de amor a Deus e ao próximo – o “motivo (teológico) da legalidade”.232 A manutenção das condições do existir e do agir humanos é a medida geral única dos juízos de legislação positiva particular.

Para finalizar O modo como os conceitos de justiça e de paz estão ligados, no pensamento agostiniano, foi exposto com suficiente ênfase. Em seu sentido estrito, eles estão a serviço da concepção das duas “civitates”: explanam, a modo positivo ou negativo, a sua natureza, a sua forma ética e política e o seu fim. A articulação de tais conceitos ao estado, ao direito e à lei é de difícil penetração, pois essa acaba sendo uma reflexão tanto “via negativa” quanto profundamente restritiva dos ganhos da atividade filosófica sozinha. Justiça e paz são grandezas mantidas na tensão entre a perspectiva escatológica da “cidade de Deus” e da “cidade do demônio” e as reais vicissitudes da história, nos “estados do mundo”, onde, no tempo, todos vivem.

Neste último caso, a forma da justiça pode, no máximo, ser o direito natural relativo e a virtude racional relativa; a forma da paz pode, no máximo, ser a concórdia quanto ao cumprimento de metas possível na ordem racional de um estado de direito. Dificilmente caberia pensar que a suprema exigência ética da justiça, reivindicada por Agostinho, se tornaria, com isso, menor: a ordem racional (relativa) do direito natural – bem como do direito positivo –, se cumprida com o máximo de esforço, estaria ainda muito aquém do que é “bom” e “verdadeiro”. No sentido permanentemente relativo, mas racionalmente acessível, desta justiça 230 De civitate Dei XIX,15. 231 CICERO, De re publica II,30.57. 232 Cf. KRIEGER, G. und WINGENDORF, R. Christsein und Gesetz: Augustinus als Theoretiker

des Naturrechts (XIX), p. 256.

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e desta paz reside o esforço pouco confiante e o inabalável pessimismo do uso da razão prática em Agostinho.

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HEGEL E O DIREITO: O MODELO DE JUSTIÇA HEGELIANO1

Agemir Bavaresco*

Introdução

Avesso a definições categóricas e, por isso mesmo, o mais das vezes, abstratas, Hegel, no conjunto de seu sistema, não circunscreve a justiça a nenhum enunciado de maneira cabal; entretanto, coerentemente com o método especulativo por ele desenvolvido, apontará, em algumas passagens de sua obra, as determinações necessárias para o justo se efetivar.

Saliente-se que, ao final do § 139 da Enciclopédia, logo após ter dito que a Constituição é a articulação da potência do Estado, Hegel afirmará que esta, a Constituição, é a justiça existente, enquanto é a efetividade da liberdade no desenvolvimento de todas as suas determinações racionais.

Isto, por sua vez, permite a remissão ao § 4 da Filosofia do Direito pois ali Hegel afirma o direito enquanto reino da liberdade efetivada. Mas, ainda antes de se conceber uma relação direta entre justiça e efetivação da liberdade, é importante marcar que se verificará a justiça, no terreno do direito, e não no plano de uma moral abstrata, por exemplo.

Assim, a partir da compulsação contínua dos textos, se poderia intuir, primeiramente, uma concepção hegeliana de justiça em que, posto o direito como o terreno da efetivação da liberdade, nele, direito stricto sensu, se esgotaria a questão do justo. Entretanto, desde os primeiros escritos, Hegel deixa meridianamente claro que o direito, por si só, não tem este condão, visto ser aquela abstração que viabiliza a mediação entre, primeiramente, a esfera do singular e a do particular e, após, entre esta e a esfera do universal, portanto, entre a vida ética natural e a vida ética absoluta, instaurando, ou veiculando a esfera da particularidade, ao tornar reconhecido o

1 A elaboração deste artigo contou com a participação inestimável de Sérgio B. Christino,

advogado e pós-graduado em Filosofia pela UFPel. * Universidade Católica de Pelotas.

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resultado de uma luta política efetiva entre duas ou mais individualidades e, com isso, fazendo transitar, por exemplo, a mera e imediata posse à condição de propriedade, ou seja, atribuindo o status de vontade objetivada a uma vontade que era subjetiva antes do reconhecimento. Ora, assim, o direito é o instrumento de mediação que vai permitir as figurações da justiça, cujo plano de aplicação é o quadro político que se efetiva historicamente através das instituições, as quais no seu todo, configuram a Constituição de um povo organizado sob a forma de Estado. A complexa rede de interações que perpassa o conjunto das instituições vai permitir a intuição de uma realização da justiça que se dá conforme se verifique a efetivação da liberdade nestes diferentes momentos, seja na esfera da família, seja na esfera da sociedade civil, seja na do Estado; no entanto, esta articulação só pode ser bem compreendida pelo resgate da base teórica que Hegel vai suprassumindo ao longo de sua démarche que vai desaguar na Filosofia do Direito de 1821.

O modelo de justiça da filosofia do direito moderno se estrutura, de um lado, como método procedimental, alicerçando-se no entendimento que separa e fixa os fatos, estabelece as leis e princípios formais; de outro, enquanto jusnatural, afirma a liberdade negocial e a igualdade formal. Esse individualismo universalista implica uma justiça formal que segue o procedimentalismo jurídico. Ora, diante desse método e formalismo moderno jurídico, qual é o modelo de justiça hegeliano?

Tendo presente este problema, no contexto de nosso estudo, examinamos, em sua primeira parte, alguns pontos de cruzamento entre a perspectiva hegeliana e vetores da Filosofia Política Clássica que foram, de certa maneira incorporados à perspectiva do pensador do Estado no longo desenvolvimento de seu método especulativo.

Na segunda parte, estudaremos a questão da justiça a partir de dois textos iniciais de Hegel, o artigo sobre o Direito Natural e o Sistema da Vida Ética, ambos do período ienense, os quais têm sido objeto reiterado de nossa pesquisa por entendermos que tais obras concentram o gérmen da filosofia hegeliana em suas primeiras diferenciações e que, embora de referência tardia em nossos meios acadêmicos, elas viabilizam o alcance dos domínios maduros da obra madura.

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Por fim, centramos nosso escrutínio no aspecto fenomênico da justiça para, desde a sua efetivação, derivarmos sua logicidade e, portanto, a sua intrínseca conexão com a efetivação da liberdade; o pano de fundo é, especialmente, a Filosofia do Direito e a Enciclopédia.

Formação do modelo de justiça hegeliano Por ora é importante situar um início do pensamento

político de Hegel, apenas para atender nosso objetivo mais próximo, a partir dos textos do período de Iena2, nomeadamente o artigo sobre o Direito Natural, e o Sistema da Vida Ética, para neles apontar as principais contribuições recolhidas e reprocessadas na direção de um modelo propriamente hegeliano de justiça.

A primeira referência na gênese deste modelo é, certamente, Aristóteles, que tomado em consonância com a metafísica substancialista de Spinoza, permitirá uma síntese assim expressa no artigo sobre o Direito Natural: [...] o positivo é por natureza anterior ao negativo; ou, como diz Aristóteles, o povo é por natureza anterior ao [indivíduo] singular. (Hegel, 1990, p. 79) 3 e mais adiante, completa: o povo é por natureza anterior ao [indivíduo] singular; pois, se o [indivíduo] singular isoladamente não é algo de subsistente por si, então ele tem de estar, como todas as partes, em uma unidade com o todo (Hegel, 1990, p. 79). Estes primeiros vínculos são essenciais para definir o plano de aplicação de uma extração referente ao que possa ser um modelo de justiça hegeliano, pois desde aí esta questão passa a ser deslocada, tanto da perspectiva antropológica inaugurada por Maquiavel e seguida por Hobbes, quanto da perspectiva formalista kantiana, representada, ao tempo de Iena, por Fichte, e nas quais o ponto de vista do indivíduo era preponderante, promovendo-se o indivíduo (o singular) em detrimento da coletividade. Trata-se, portanto, de ver como Hegel enfrenta as posições derivadas do contratualismo (o empirismo e o formalismo) e como constrói sua proposta metodológica, dita especulativa. 2 Não obstante a conhecida observação de diferentes autores de que os escritos teológicos do

período de Frankfurt configuram, na verdade, estudos políticos. 3 A tradução das citações da obra Des manières de traiter scientifiquement du droit naturel, de sa

place dans la philosophie pratique, et de son rapport aux sciences positives du droit, foi feita pelos autores.

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Depois, Hegel estenderá uma análise mais ampla que comporta a modernidade como tal; a convivência de interesses particularizados, no isolamento das diversas organizações políticas, em que estavam atendidos os interesses privados em detrimento da totalidade do povo é o que oferecia a constatação de uma vida infeliz. A abordagem hegeliana fixa com clareza a vinculação necessária entre a efetivação da liberdade e o tempo histórico em que esta se dá na forma política. Assim, voltando ao seu tempo, ao tempo de Frankfurt e de Iena, Hegel percebe que todo o conjunto de orientações normativas dos períodos históricos anteriores passa a ser estranho à modernidade, e por esta é descartado de maneira deliberada. Surge aí, então, o que Hegel chamou de necessidade de filosofia, pois o que se tinha era um contexto no qual as alterações promovidas pela longa tradição de ruptura com o mundo antigo – no plano das ciências da Natureza, desde a Reforma e do Renascimento e, no plano da filosofia, desde o fim da Escolástica até Kant – resultara em nada mais do que um conjunto de bipartições, de dicotomias, contra as quais Hegel se levantará em toda a sua obra.

Nesta linha de consideração, aparecem como fundamentais as contribuições oferecidas pela leitura dos clássicos ingleses da Economia Política, que tematizavam questões candentes para a compreensão do mundo social da modernidade. Tais referências são estruturais nos textos deste período e, posteriormente, permanecem como pano de fundo nas obras a partir de 1806-1807.

Para a compreensão daquele mundo da modernidade, Hegel em seus primeiros escritos, recepcionará, em parte, o conceito de luta de todos contra todos desenvolvido por Hobbes; admitindo o estado de conflito permanente vigente na vida social, porém atribuindo-lhe finalidade diferente daquela questão de sobrevivência apontada no Leviathan, Hegel passa a entender o conflito como uma luta travada pelo indivíduo na vida em sociedade, erga omnis, cujo fim, no entanto é o reconhecimento.

No esboço da dinâmica desta luta pelo reconhecimento, Hegel haveria de valer-se das contribuições oferecidas por Fichte, em sua obra Fundamentos do Direito Natural, conforme veremos adiante. Logo, é a partir desta base conceitual que Hegel inaugura o que seria futuramente o seu sistema e que, como se pretende

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demonstrar, revela a pressuposição de um modelo que guarda desde sempre uma estreita relação entre a efetivação da liberdade e a realização da justiça.

Justiça especulativa e justiça do reconhecimento

a. Três modelos de justiça: justiça empírica, justiça formal

e justiça especulativa É freqüente a datação do ocaso da corrente do Direito

Natural a partir da publicação do ensaio Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, seine Stelle in der praktischen Philosophie, und sein Verhältnis zu den positiven Rechtwissenchaften, escrito por G. W. Hegel nos alvores nos anos de 1802-1803, entre nós conhecido como Das maneiras científicas de tratar o Direito Natural; isto porque, conforme registra Norberto Bobbio, do ponto de vista da eficácia metodológica, ele promoveu a um só tempo a dissolução e a realização (aufhebung) de tudo que era caro à doutrina do Direito Natural, desenvolvida de Hobbes até Fichte (Bobbio, 1991, p. 23).

No ensaio, Hegel critica a situação em que se encontra a Ciência do Direito Natural, ou seja, a de ocupar um lugar meramente científico e não filosófico; a crítica é dirigida igualmente, de maneira mais ampla, à abordagem empírica e à formal, pois quer um, quer outro, ambos os tratamentos apartaram-se da Filosofia e passaram a tomar por princípio científico os dados da experiência, renunciando, com isso, para Hegel, ao estatuto de ciência verdadeira e contentando-se em ter por referência de identidade um conjunto de noções empíricas e de servir-se de conceitos do entendimento, distanciando-se da possibilidade de afirmar algo de objetivo (Hegel, 1990, p. 11). Com isso, Hegel pretende trazer a reflexão sobre o Direito Natural novamente para o campo filosófico, restaurando, assim, o método e os conteúdos próprios da Filosofia.

A exposição que Hegel faz das teorias mencionadas as apresenta de maneira sucessiva: primeiro o empirismo, depois o formalismo e, por fim, o especulativo, como etapas de um mesmo desenvolvimento contínuo, determinado pela necessidade racional da história do pensamento moderno do Direito Natural.

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Dentre os modos inadequados de tratar cientificamente o Direito Natural, aquele que Hegel chama de maneira empírica inclui as teorias de autores como Grotius, Hobbes, Locke, Puffendorf, Rousseau e juristas ligados ao pensamento historicista.

Esses pensadores tomavam, como é de se depreender, as coisas e os fatos jurídicos observáveis como objeto de estudo, isto é, a empiria pura e aí descobriam uma multivariedade enorme de fatos: princípios jurídicos, leis, fins, deveres, direitos, etc. (Hegel, 1990, p.18) Uma vez que o critério para dotar de unidade científica este material é só a própria experiência, resulta que todos esses fatos, tão variados, têm, em si mesmos, igual valor e, portanto, uns não podem prevalecer sobre outros. Nenhum pode ser tomado como critério universal que fundamente e unifique os outros. Além desta variedade, os fatos estão submetidos também à mobilidade e, assim, uns substituem os outros e os sucedem, segundo o que se nos apresente a experiência.

Como a ciência empírica do Direito Natural aparenta resolver o problema de dotar de unidade este material jurídico variado e cambiante? Evidentemente o faz de maneira arbitrária. Como a observação empírica não pode distinguir entre o acidental e o necessário, o que faz o empirismo é eleger um fato ao azar, aquele que em cada momento se lhe aparece como mais importante, e o eleva à condição de princípio para constituir sobre este fundamento a unidade científica. Mas, segundo Hegel, é justamente esta atitude que é preciso negar (Hegel, 1990, 17), porque ela mascara, ou deixa de atentar para a totalidade orgânica. Assim, como anota Bourgeois, instaura-se uma primeira contradição, pois o empirismo, porque é guiado pelo entendimento, apresenta seu objeto de estudo como uma multivariedade segmentada, mas, porque se pretende científico, deve reunir esta diversidade para ter um princípio unificador.

Resulta daí, que o empirismo, ao tentar compreender o casamento que, segundo Hegel é uma totalidade orgânica, tende a fixar-se em apenas uma das determinidades que compõem esta totalidade. Estas determinidades são aquelas realidades parciais presentes na união conjugal, por exemplo: a criação dos filhos, a comunhão dos bens, etc. assim, o empirismo tomará uma destas determinidades, enquanto que a essencial[a determinidade], é erigida em lei (Hegel, 1990, p. 17-18) e buscará submeter a esta determinidade

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a totalidade orgânica que é o matrimônio. Da mesma maneira, o empirismo, ao tentar entender o instituto jurídico da pena, sonega-lhe a característica de totalidade orgânica que contempla determinidades como: a retratação moral do criminoso, o cunho de exemplaridade que a pena provoca sobre os outros membros de uma comunidade, bem como a representação que o criminoso tem da pena antes de perpetrar o crime etc. Também aí, uma destas determinidades é elevada a fim e essência do todo.

Em sentido oposto, o formalismo parte de uma pura abstração e não de um dado concreto da realidade. Nesta corrente se encaixam as perspectivas kantiana e fichteana. Se, por um lado, o empirismo tomava como ponto de partida, determinações finitas todas iguais e, para dar unidade à realidade jurídica, escolhia ao azar uma determinação e a colocava como fundamento racional de todo o sistema, de outro, o formalismo parte da infinitude pura (vazia de experiência) e, para dar unidade a este vazio, tem de tomar ao azar uma determinação finita qualquer, um dado empírico e pô-lo como fundamento do dito vazio. No caso, esta determinação será a noção de coerção. A ciência formalista do direito natural não parte de uma pluralidade de leis, ou seja, de coisas e de fatos jurídicos. A única lei que reconhece, que é ademais seu ponto de partida, é a vontade pura, a qual não tem determinações ou matéria, pois é pura forma.

A crítica hegeliana ao formalismo começa por mostrar como esta lei, que se sabe ser o imperativo categórico, é apenas um lado do movimento dialético que o espírito perfaz, constantemente, em sua objetivação. Trata-se, portanto, tal lei, de uma abstração inferior (Hegel, 1990, p. 29), que visa preencher aquela necessidade própria do múltiplo, já anunciada pelo empirismo: a necessidade de o finito, em sua diversidade, vir a ser superado por algo que paire acima de si, enquanto verdade absoluta, infinita. Entretanto, a abstração inferior que o formalismo apresenta não logra tal intento, pois se limita a repetir a prática do empirismo, ou seja, enquanto este se fixava na multiplicidade posta, aquele fixar-se-á no seu oposto, na abstração pura. Conforme esclarece Bourgeois, o pleno jogo dialético exigiria que o infinito, opositor da empiria, não se fixasse, mas sim, negasse a si mesmo, através de seu oposto (Bourgeois, 1986, p. 153-154), ou, como diz Hegel: A passagem do absoluto ao seu oposto que é sua essência, e o desaparecimento de cada realidade

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em seu contrário, não podendo ser freada senão [...] pela empiria (Hegel, 1990, p. 30). Isto implica que tanto um quanto outro dos dois lados da relação dialética contém já o seu oposto, como única forma de tornar-se possível o movimento que é, em Hegel, a essência do absoluto.

No tocante à sua proposta de abordagem da ciência do Direito Natural, Hegel trata de sintetizar um terceiro tipo de teoria do Direito Natural de incorporar as vantagens de ambas teorias anteriores, sem recepcionar as desvantagens de nenhuma delas.

Primeiro, passa a estabelecer o que é o princípio básico, ou formal, do Direito Natural ou da Justiça. Segundo, tem de mostrar como este princípio pode ser relacionado a um sistema objetivo de direitos e deveres. Terceiro, precisa estabelecer como são condicionados estes direitos e deveres, historicamente, pelos costumes e tradições peculiares à vida ética e particular de um povo ou nação.

Hegel, em diversas passagens do ensaio, associa este terceiro tipo de teoria do Direito Natural ao pensamento político dos gregos antigos e, especialmente, com ao pensamento político de Aristóteles (Hegel, 1990, p. 63, 79, 82). É a necessária conexão por Hegel estabelecida entre o Direito Natural e uma comunidade ética que, nos moldes do ensaio, vem espelhada na polis grega. Tal vinculação se traduz num princípio básico de natureza formal, conectado a um sistema de direitos e deveres, historicamente concreto, que constitui o conteúdo objetivo ou racional do Direito Natural. Aqui, haveria a observância da idéia da fusão entre forma e conteúdo.

A eticidade é a fusão do infinito e do finito, do ideal e do real, do conceito e sua realização, tudo isto regido pela necessidade lógica inserida na própria história dos fatos. Dessa maneira, a realidade do direito é infinita, é uma fluidez múltipla, mas que se concretiza em momentos necessários e o resultado desta concretização são as figuras éticas. A eticidade vai sendo consolidada gradualmente em cada momento histórico em figuras concretas, que são os povos. Cada povo existente é uma figura da eticidade. Em cada povo está contida aquela múltipla fluidez dos fatos jurídicos; assim, o conceito ético de povo dota todos estes fatos de sentido, de necessidade lógica e de unidade científica.

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Aqui Hegel adita a questão da Economia Política e aponta a economia como uma característica marcante de um povo. As necessidades físicas dos indivíduos que formam um sistema de dependência recíproca entre eles é o sistema das necessidades, o objeto próprio da ciência da Economia Política (Hegel, 1990 p. 56) na qual aparecem questões como a posse, a propriedade e o comércio. O desenvolvimento deste sistema não deve desconsiderar sua relação com o todo, não se deve constituir em um poder independente; não deve por si só estabelecer o que é e o que não é o direito de cada um: [...] que em um povo, o universal deve cuidar que cada cidadão tenha como subsistir e para que seja garantido a cada um a plena segurança e comodidade de desenvolver a habilidade de trabalhar (Hegel, 1990, p. 57).

Desta maneira, a esfera do jurídico é coetânea da esfera econômica. Aqui é constituída a esfera do direito. Tais reflexões levam a uma conclusão: não é possível conceber a existência de um Direito Natural em si, ou imutável, pois – diz Hegel – na medida em que é em si, está vazio ou nele não há nada de absoluto, a não ser justamente a pura abstração, o pensamento completamente privado de conteúdo da unidade (Hegel 1990, p. 60). Por outro lado, o verdadeiro caráter do direito positivo também se revela nestas reflexões. Na vida ética de um povo, que é o verdadeiro objeto de uma filosofia do direito, as leis positivas não constituem nada mais que o aspecto formal de tal vida: elas somente dão forma às mudanças materiais produzidas na vida do povo. Segundo as palavras de Hegel: a legislação não possui nenhuma verdade, senão somente o formal de uma cultura em crescimento (Hegel, 1990, p. 60).

No ensaio, Hegel não reserva, ainda, um papel propriamente ético ao direito, mas já o reconhece como uma mediação necessária à superação do caos colocado com a atividade humana social a partir da luta contra as necessidades, na direção de uma vida verdadeiramente ética, conforme expressão de Bourgeois, como vida no e para o povo politicamente organizado (Bourgeois, 1986 p. 328). Eis aqui, a primeira distinção fundamental entre a perspectiva da especulação e a do formalismo. Hegel insere o direito como um momento relativo no todo hierarquizado, enquanto o formalismo atribui a esta mesma eticidade, incipiente e relativa, a conotação de eticidade absoluta.

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b. A justiça intersubjetiva Uma outra fundamental diferença em relação às

perspectivas atomísticas, individualistas, criticadas por Hegel é que ele procura explicar o instituto da propriedade a partir do reconhecimento social. O caminho percorrido pelo indivíduo desde a condição de possuidor até a de proprietário não é aquele de uma individualidade em torno de si mesma.

A posição do direito no interior da vida ética é resumida por Hegel, no ensaio sobre o Direto Natural, de maneira brevíssima, na qual a constituição da esfera do direito permite à posse tornar-se propriedade. Naquele texto ainda não aparece conceituada a posse nem a propriedade e, quanto ao direito, dele é dito apenas da forma como este se constitui. Há, no entanto, um desvelamento da vida ética insinuada que se explicitará no texto seguinte ao do Direito Natural, a saber, o referente ao Sistema da Vida Ética. Neste, é perfeitamente possível situar-se não só a posição do direito no interior da vida ética do povo, como também acompanhar o desenvolver-se da vida ética desde o seu aspecto natural até a forma absoluta, manifestada no Estado organizado.

A luta por reconhecimento é fundamental para a compreensão da perspectiva processual da efetivação da liberdade desenvolvida por Hegel e que, como se disse, necessita ser compreendida tão-somente como se exercendo relativamente a uma ordem social e não flutuando no ar, à maneira da perspectiva formalista. E o referencial teórico articulado por Hegel, paradoxalmente, é a teoria de Fichte, a respeito da intersubjetividade necessária à interação jurídica dos indivíduos. Embora o tom crítico da abordagem referente à contribuição fichteana contido no ensaio sobre o Direito Natural, mesmo ali Hegel expressa admiração pela teoria de Fichte por não buscar fundamentos transcendentes ao explicar a relação jurídica, mas sim no próprio acontecer da vida em sociedade: A relação entre os seres racionais que se deduziu, a saber, que cada um limite sua liberdade pelo conceito da possibilidade da liberdade do outro, à condição que este limite igualmente a sua por aquela do outro, chama-se a “relação jurídica”; e a fórmula que acaba de ser enunciada é a “proposição do direito” (Fichte, 1984, p. 67 – Tradução dos autores).

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Já no Sistema da Vida Ética a concepção do intersubjetivo de Fichte será valorizada, suprassumida, constituindo ferramenta importante para a descrição da liberdade efetivada na forma da luta pelo reconhecimento. A partir dela, Hegel extrai um modelo de abordagem explicativa para a relação padrão ocorrida nas interações de reconhecimento entre os indivíduos, a qual se resume em que: [...] na medida em que se sabe reconhecido por um outro sujeito em algumas de suas capacidades e propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito sempre virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse modo, também estará contraposto ao outro novamente como um particular (Honneth, 2003, p. 47).

Este desenvolvimento dar-se-á, como já visto, na forma da efetivação da liberdade que, segundo Axel Honneth, ganha a figuração múltipla de uma luta por reconhecimento que o indivíduo trava de maneira ascendente em três esferas: na esfera da família, a que corresponde o reconhecimento afetivo; na esfera da sociedade civil, a que corresponde o reconhecimento legal (pela igualdade de direitos) e, por fim, o reconhecimento ético (pela solidariedade social).

De fato, Honneth, no primeiro capítulo de seu livro Luta por reconhecimento examina com profundidade o escrito de Hegel chamado System der Sittlichkeit (1802-03), extraindo dali a fundamentação para sua atual teoria da luta pelo reconhecimento, cujo modelo, de confessada inspiração hegeliana, comporta três esferas de reconhecimento, que asseguram as condições para os indivíduos virem a ser bem sucedidos, do ponto de vista da realização pessoal, nas sociedades modernas. A esfera do amor, que supõe a relação de reconhecimento ligada à existência de outras pessoas físicas, com as quais a pessoa realiza a experiência de um reconhecimento de natureza afetiva que lhe permitirá desenvolver uma atitude de autoconfiança, traduzida por uma segurança emocional na expressão de suas necessidades. A esfera do direito, que julga poder uma pessoa sentir-se portadora dos mesmos direitos que outras e desenvolver, assim, um sentimento de respeito social. Aqui, a relação de reconhecimento baseia-se em direitos iguais entre indivíduos e repousa sobre um saber compartilhado das normas que regulam direitos e deveres iguais. Por último, a esfera da contribuição à sociedade, a esfera da solidariedade, que

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considera a contribuição dos sujeitos para o coletivo, cujas particularidades individuais construíram-se através de uma história de vida singular, ou seja, em que cada um foi tratado sem discriminação e, por aí, pôde desenvolver um sentimento de ter sido considerado pelos demais.

Portanto, o caminho percorrido pelo indivíduo através das esferas mencionadas, já desde o Sistema da Vida Ética, deixa antever que as condições para se reconhecer a efetivação concreta da justiça é, antes de tudo, a verificabilidade das condições concretas para o indivíduo poder ser reconhecido em qualquer uma de tais esferas.

Em Frankfurt, no texto publicado sob o título Der Geist des Christentuns und sein Schicksal (1798-99/O espírito do cristianismo e seu destino), o crime, enquanto obstáculo para o reconhecimento, aparece como motivo de preocupação nos escritos teológico-políticos de Frankfurt, conforme destaca bem Bourgeois, na obra O Pensamento Político de Hegel. Entretanto, Hegel não via ainda a possibilidade de realização do justo, ou seja, da garantia de reconhecimento entre os homens pela via da lei e da pena, somente a entendia possível através da religião e do amor. Diz Bourgeois:

Jesus, que quer restabelecer o homem em sua totalidade (N, p. 266), nem por isso reclama a vitória do universal sobre o singular oposto a ele, mas sim a elevação do singular ao universal, a reunião — a supressão dos dois opostos por uma reunião — (N, p. 387); essa reunião é o amor. Enquanto a separação do universal e do particular, pressuposta pela moral dualista da lei e confirmada pelo crime, não pode ser suprimida pelo castigo, negação do particular pelo universal que ele próprio negou, o amor restaura em sua verdade a vida uma da qual o crime não suprimiu a realidade, mas apenas a aparência ( Bourgeois, 2000, p. 58).

Neste escrito teológico juvenil Hegel esposa a tese de que o

criminoso, mesmo supondo agir lesivamente sobre uma vida alheia, destruía a sua própria, pois a vida não se desgarra da vida, porque nela está o universal, apenas individualizado (ou particularizado). Esta mesma concepção do injusto que, em Frankfurt era suprassumida pelo amor, é retomada no período de Iena, assumindo, agora, a pena como a única maneira de restituição da

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objetividade do direito quando a integridade da pessoa tenha sido prejudicada.

É a partir do System der Sittlichkeit que Hegel aborda, de maneira mais sistemática, a questão do crime como rompimento da vida social e, embora esta questão apareça problematizada num capítulo intermediário, entre a vida ética natural e a vida ética absoluta, é na terceira seção do livro, que trata da eticidade, no subtítulo O segundo sistema de governo. Sistema da justiça, que a questão da conduta delituosa recebe tratamento mais acabado.

Nesta parte do Sistema da Vida Ética, Hegel estabelece a divisão entre ilícito de ordem civil e de ordem penal, divisão cujo critério será mantido até mesmo nas obras maduras, posto que regrada pela lógica especulativa. E aqui é elucidativo o recurso, por exemplo, à Enciclopédia, para se apresentar uma concepção já elaborada daquilo já contido no pensamento juvenil. Ao analisar do juízo, no § 166 e seguintes da Enciclopédia – 1830, Hegel se vale da analogia com a referida tipificação dos delitos, inclusive mencionando exemplificativamente uma e outra das ordens de delito como correspondendo a um e outro tipo de juízo.

Cotejemos rapidamente os dois textos: no Sistema da Vida Ética, conforme referido, Hegel estabelece a seguinte linha de considerações:

A negação da singularidade, que é uma negação mediante a singularidade — e não por meio do absolutamente universal — é também puramente negação da posse enquanto tal; ou a negação de uma singularidade no indivíduo; ou a negação da totalidade do indivíduo vivo; o segundo caso é um ato de violência; o terceiro é um assassínio. (...) Na jurisdição civil, só a determinidade como tal é que é absolutamente negada no litígio, e determinidade pode tornar-se a atividade viva, o trabalho, o que é pessoal. Na jurisdição penal, porém, não é a determinidade, mas a individualidade, a indiferença do todo, a vitalidade, a personalidade. Aquela negação é no direito civil uma negação puramente ideal; no direito penal, é uma negação real; com efeito, a negação que visa a uma totalidade é por isso mesmo real. Estou na posse da propriedade de um outro, não por rapina ou por roubo, mas porque a

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reivindico como minha e de um modo legal. Reconheço assim a capacidade de posse do outro; mas a violência, o roubo opõem-se a semelhante reconhecimento. São constringentes, visam ao todo; suprimem a liberdade e a realidade do ser-universal, do ser-reconhecido (Hegel, 1991, p.82-83).

E, por fim, acrescenta:

A justiça civil visa simplesmente à determinidade; a justiça penal, além da determinidade, deve também suprimir a negação da universalidade e suprimir a universalidade que se pôs no seu lugar, a oposição à oposição. Semelhante supressão é a pena, e esta é justamente determinada segundo a determinidade em que a universalidade foi suprimida (Hegel, 1991, p.84).

E na Enciclopédia 1830, nos parágrafos acima mencionados,

Hegel no exame do juízo, explica que o juízo imediato, ou do ser-aí, pode ser classificado como negativamente-infinito ou simplesmente negativo. No adendo ao § 173, Hegel dirá:

Como exemplo objetivo do juízo negativamente infinito, pode-se considerar o crime. Quem comete um crime, digamos, mais precisamente um roubo, não nega, simplesmente, como no litígio civil o direito particular de um Outro sobre tal coisa determinada, mas [nega] o seu direito em geral, e por esse motivo também não é simplesmente obrigado a restituir a coisa que roubou, mas é além disso punido porque violou o direito como tal, isto é, o direito em geral. O litígio civil, ao contrário, é um exemplo do juízo simplesmente negativo, pois nele se nega simplesmente este direito particular, e assim se reconhece o direito em geral (Hegel, 1995, v.1, p. 309).

Deste modo pode-se ver que a concepção em uma e noutra

das obras é a mesma, ou seja, a diferença de grau quanto ao reconhecimento perante o direito é que determina a esfera da lesão. A conduta humana lesiva pode constituir uma negação do direito meramente ideal (abstrato) ou real: enquanto no primeiro caso, a capacidade jurídica (pessoa) do outro é reconhecida, no segundo

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caso (esfera penal) não. Aparece assim a centralidade da pessoa no

desenvolvimento histórico da liberdade, e, portanto, do modelo de justiça em Hegel pois, se a pessoa equipara-se ao direito, todo aquele que, desde a condição de pessoa que o direito lhe atribui, ofende outra pessoa, ofende o direito e, por sua vez, a si próprio.

O direito é concebido por Hegel como um sistema social em que o reconhecimento universal da liberdade da vontade expresso na categoria da pessoa é uma relação de justiça com outras pessoas, compreendidas dentro do movimento intersubjetivo em que ocorre o reconhecimento das autoconsciências tanto no desenvolvimento fenomenológico como no lógico.

c. A fenomenologia e a lógica do reconhecimento da idéia de justiça

Apresentaremos a fenomenologia da justiça segundo a

interpretação de A. Kojève, e, em seguida, a lógica da idéia de justiça como se encontra na clássica figura da luta entre o senhor e o escravo de Hegel, na Fenomenologia do Espírito.

i) A fenomenologia da idéia de justiça

Kojève parte do princípio que o desejo, segundo Hegel,

quer o reconhecimento, sendo este a fonte última da idéia de justiça (Kojève, 1981, 250) 4. Ele expõe, fenomenologicamente, a idéia de justiça em três momentos: direito aristocrático, direito burguês e direito cidadão.

1º) A justiça aristocrática ou a justiça inter pares A justiça aristocrática defende a igualdade entre os

senhores. Logo, sob o ponto de vista político são justas as instituições que garantem a igualdade com os semelhantes, ou seja, com os outros aristocratas. Assim, os espartanos chamavam-se de “iguais” e o rei feudal era o primus inter pares. A aristocracia defende, socialmente, sua igualdade com os outros, recusando toda submissão a outra categoria, respeitando unicamente os que são, economicamente, iguais a ele.

4 A tradução das citações da obra Esquisse d’une phénoménologie du Droit foi feita pelos

autores.

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Porém, a história não pára no estágio aristocrático da posse de escravos e da amizade entre senhores, mas avança na busca do reconhecimento autêntico na luta entre inimigos. Ora, constata-se, nesta luta pelo reconhecimento, que os aristocratas, não tratando mais seus escravos como simples animais, estão prontos a reconhecer, pelo menos em princípio, sua igualdade com eles. O senhor coloca para si o ponto de vista do escravo, ou seja, sintetiza sua dominação com a escravidão, sendo, mais ou menos cidadão. Ele pode adotar o ideal burguês de justiça, que é a equivalência. Este tipo de justiça não implica igualdade. O senhor pode reconhecer a humanidade do escravo sem afirmar sua igualdade com ele. Sob esta ótica se realizaram as revoluções igualitárias, inspiradas pela justiça aristocrática: aceitam a justiça burguesa da equivalência. Tem-se uma equivalência de condições políticas, sociais e econômicas que implicam uma desigualdade fundamental, a da propriedade. No início das revoluções, a desigualdade aristocrática é considerada como injustiça, porém, depois, ao tornarem-se hegemônicas, impõem sua justiça burguesa, a da equivalência. Assim, o que era considerado injustiça, deixa sê-lo, após a revolução.

ii) A justiça burguesa ou a equivalência

Alexander Kojève constata que, na imensa maioria dos

casos, as regras do Direito moderno tratam de trocas de natureza econômica. Ainda, por tais trocas terem por base a idéia de equivalência, esta idéia se projeta sobre as normas jurídicas, sendo, pois, a própria idéia de justiça que corresponde ao mundo burguês mercantil.

E o burguês fará triunfar, sempre que possível, tal concepção de justiça fundada na equivalência. Esse homem comerciante não quer ser o igual em relação a seu cliente ou a seu concorrente; enquanto comerciante que é, satisfaz-se com o fato do lucro de seu cliente ser equivalente ao seu e a concorrência ser colocada em condições equivalentes à sua. Donde toda infração ao princípio da equivalência será considerada como uma injustiça (Kojève, 1981, 197-198). A efetivação dessa idéia do justo fundada na equivalência é um aparecimento histórico fruto da suprassunção

Hegel e o Direito 105

da idéia aristocrática baseada na igualdade. Tanto o escravo quanto o senhor sabem não haver

igualdade entre eles, porém, equivalência. Por isso, à justiça igualitária acrescenta-se a justiça equivalente. O direito burguês reconhece, desde o início, uma estrita equivalência entre os deveres e os direitos: cada dever equivale a um direito. Assim, o escravo tem o direito e o dever de trabalhar; o senhor tem o dever e o direito de fazer a guerra. O princípio fundamental do direito burguês é a equivalência dos direitos e dos deveres junto a cada pessoa jurídica (Kojève, 1981, 300).

Aplicando-se o princípio jurídico burguês ao fenômeno da propriedade, tem-se uma interpretação funcional da mesma. A propriedade não é mais somente um direito, mas também um dever, pois o fato de alguém ter a propriedade impõe deveres em relação à sociedade que o reconhece como proprietário. O direito burguês choca-se com o direito aristocrático que é contrário ao contrato e não quer interação entre proprietários. Ora, os deveres dos proprietários não podem realizar-se senão pelas trocas entre ambos. Assim, o direito, antes estático torna-se dinâmico em permanente troca, ao contrário da propriedade aristocrática que se mantinha idêntica a ela mesma. Ela permanece equivalente a ela, mudando de natureza. E pode-se dizer também, do ponto de vista do direito burguês, que a propriedade não é mais um “estatuto” eterno e imutável, mas uma simples “função” (Kojève, 1981, 301).

O princípio da equivalência é também a base do direito penal burguês, ou seja, a pena deve “compensar” o crime. Este princípio penal é diferente do caráter objetivo e coletivo do direito criminal aristocrático pois, para poder compensar o crime pela pena, é preciso considerar a intenção, o aspecto subjetivo do crime e a individualidade do criminoso.

Observando a história, afirma Kojève, constata-se, tanto no passado como atualmente, que os sistemas sociais e jurídicos fundados sob o princípio da equivalência coexistem com a desigualdade reconhecida e justificada. O ideal de justiça burguês de equivalência admite a desigualdade econômica e jurídica, por exemplo, a diferença de encargos equivale à diferença dos benefícios, ou ainda, o ideal de equivalência do imposto progressivo sobre a renda é considerado um sistema justo de imposto, porém,

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não se admite igualar as fortunas ou o imposto sobre o capital e as grandes fortunas.A justiça da equivalência não exclui a igualdade e é compatível com ela, da mesma forma que a justiça da igualdade é compatível com a equivalência. De fato, a idéia de justiça implica sempre os dois princípios ao mesmo tempo, sendo uma justiça da eqüidade, uma justiça do cidadão. E é enquanto tal que ela evolui no tempo (Kojève, 1981, 296-297).

iii) A justiça cidadã ou a eqüidade O cidadão moderno nasce pela síntese entre o senhorio e a

escravidão. Disto surge a justiça da eqüidade: é a síntese entre a justiça aristocrática da igualdade e a justiça burguesa da equivalência. Isto mostra que a evolução do direito, ou a evolução jurídica da humanidade, acompanha a evolução histórica da mesma. Assim, a evolução do direito burguês dá-se desta forma o reconhecimento da equivalência jurídica entre dois indivíduos é o da igualdade enquanto pessoas jurídicas: os dois são sujeitos do direito. Esta igualdade é puramente “formal” e “abstrata”, pois o conteúdo dos direitos dos dois sujeitos pode ser diferente. Como toda “forma” tende a determinar seu conteúdo para torná-lo semelhante, pode-se dizer que toda igualdade formal tende a se transformar em igualdade de conteúdo. Ora, esse direito absoluto, em que a equivalência dos direitos e deveres de cada um se compõe de uma igualdade de direitos e deveres de todos, não pode ser atual senão lá onde todos são iguais e equivalentes não só juridicamente, “diante da lei”, mas também política e “socialmente”, isto é, de fato (Kojève, 1981, 314).

Enfim, a análise fenomenológica feita por Kojève mostra que a idéia de justiça evolui segundo uma lógica do reconhecimento simétrico entre direitos e deveres, entre universal e particular, como veremos a seguir no movimento lógico. O universalismo do direito aristocrático e o particularismo (ou o individualismo) do direito burguês coincidirão, pois os direitos e os deveres os mais pessoais, exercidos pelo indivíduo, serão os direitos e deveres os mais universais, isto é, aqueles do cidadão tomado enquanto cidadão, ou aqueles de todos e de cada um (Kojève, 1981, 320).

iv) A lógica do reconhecimento simétrico ou justo

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Hegel situa o aparecimento mais evidente da figura da pessoa, do ponto de vista lógico, na conhecidíssima dialética que envolve a relação do senhor e do escravo, após ter afirmado que só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova], Hegel acrescenta: O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente (Hegel, 2002, p. 146). O teor desta afirmação permite pensar que a célebre dialética do senhor e do escravo aponta um modelo de relação social em que a intersubjetividade é perpassada pela assimetria, pois trata de uma relação de submissão, em nada obstante à sutileza de que nem um, nem outro dos pólos da relação possam ser tomados como figuras auto-subsistentes. Há, do ponto de vista lógico, estreita dependência entre ambos. E somente na coincidência da autodeterminação da vontade (a verdade da certeza de si sem dependência do outro) e da negação da exterioridade (pelo trabalho e fruição) num mesmo sujeito é que se poderia acolher um sentido superior de pessoa. Esta figura das pessoas envolvidas na dialética do senhor e do escravo permite ver, primeiro, que é absurdo pensar unilateralmente um conceito de pessoa, entendida esta como átomo de uma universalidade que se repatriou nos indivíduos. E, segundo, que o verdadeiro conceito de pessoa se determinará em uma relação intersubjetiva sem as precariedades da relação do senhor e do escravo, ou seja, verificar-se-á, somente quanto a relação intersubjetiva atingir o reconhecimento, porém desde uma relação simétrica.

Esta relação simétrica de reconhecimento, do ponto de vista histórico, unicamente poderá ser possível onde cada homem seja livre, e, portanto, só no mundo da modernidade isto será factível, pois, conforme observa Hegel, no comentário feito ao § 21 da FD 5: O escravo não conhece sua essência (da vontade livre verdadeira), sua infinitude, a liberdade; não se sabe como essência, portanto não se sabe, vale dizer, não se pensa.

Entretanto, a relação de reconhecimento justo pode ser conformada ao modelo hegeliano da figura do “senhor e do 5 HEGEL, G. W. F.. Principes de la philosophie du droit. Trad. de Jean-François Kervégan. Paris:

PUF, 1988. A obra Filosofia do Direito de Hegel será abreviada da seguinte maneira: FD. Quando se trata de citações dos adendos nos reportamos à tradução em espanhol feita por Juan Luis Vermal, conforme referência bibliográfica. A tradução das citações de ambas as obras foi feita dos autores.

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escravo” (Hegel, 2002, p.142ss). A figura do senhor e do escravo hegeliana conduz a um reconhecimento bipolar entre as duas autoconsciências. O movimento lógico do reconhecimento opera-se por ambas as consciências. Trata-se da bipolaridade essencial a toda consciência que, segundo a Ciência da Lógica, na Doutrina da Essência, o movimento da reflexão dá-se em três momentos: reflexão que se põe, reflexão exterior e reflexão determinante que se distinguem em momento subjetivo e objetivo. Desse modo, a ação do reconhecimento de cada uma das autoconsciências obedece à seguinte lógica: aquilo que, individualmente, como sujeito uma realiza na outra como objeto, ela o faz, ao mesmo tempo, nela mesma, de tal modo que há uma conjunção de um agir na própria autoconsciência e de um agir na outra.

Nós temos duas autoconsciências – Autoconsciência ¹ e Autoconsciência ² – e distinguimos em cada uma delas o momento da subjetividade e o da objetividade – A¹s e A¹o; A²s e A²o – conforme o esquema lógico abaixo, o qual constitui o estatuto lógico de todo o reconhecimento (Jarczyk e Labarrière, 1996, p. 75-76):

Autoconsciência ¹ [s] Autoconsciência ² [s]

Autoconsciência ¹ [o] Autoconsciência ² [o]

No entanto, tal processo de reconhecimento pode passar pelo combate de vida e morte que resulta no fracasso da unilateralidade, na qual apenas uma autoconsciência é auto-subsistente, no caso, o senhor. A relação dissimétrica entre senhor/escravo encontra-se num impasse, embora o escravo pelo medo e pelo trabalho – serviço e cultura – introduza os elementos para a conquista de sua liberdade. Porém, a superação da contradição não pode ser efetivada apenas por um lado dos pólos, no caso, o escravo. Ela precisa engajar ambas as autoconsciências, para alcançar o verdadeiro reconhecimento. Por isso, a contradição

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da figura do senhor/escravo evolui para a autoconsciência estóica e a céptica que encontram já na “consciência infeliz” uma expressão da razão. A aventura do reconhecimento continua seu caminho. Os protagonistas da figura encontrarão somente, no momento da “razão”, a resolução da experiência contraditória, que gera a dissimetria entre senhor/escravo (Jarczyk e Labarrière, 1996, p. 80-81).

O modelo de justiça estrutura-se de modo semelhante à luta do senhor/escravo de Hegel. Nela nós encontramos a superação da contradição entre a justiça do senhor/justiça do escravo no momento da efetivação da justiça. Vejamos a radiografia deste movimento de reconhecimento que ocorre pela justiça formal e efetiva.

Efetivação da justiça

i) Justiça formal

i.i) O movimento silogístico da vontade justa

O movimento silogístico da vontade opera, segundo os

momentos da vontade universal-particular-singular. É importante apresentar a lógica deste movimento para compreender a determinação da justiça formal. Os parágrafos de 5 a 7 da FD tratam, especificamente, do conceito de vontade:

a. A vontade universal ou a justiça abstrata (FD, § 5) A vontade é uma atividade com poder de dissolver todo

conteúdo dado, quer seja em nível interno ou externo. Ela é “pura indeterminidade”, daí a sua capacidade de atualização dirigindo-se da interioridade à exterioridade e vice-versa. Esse movimento é uma atividade de negação, ou seja, de fazer do mundo o produto de sua ação. A pura negatividade pode fixar-se como um poder autônomo e fechado. Aqui, neste momento, a vontade de justiça pode tornar-se um voluntarismo jacobino. Hegel refere-se a manifestações históricas da liberdade negativa, que podem realizar-se pela ação destruidora. A negação imediata, sem mediação,

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conduz ao isolamento de um lado da reflexão, tornando-se uma liberdade vazia, ou seja, formal. A ditadura jacobina é um exemplo típico desta vontade de justiça abstrata. Aqui, a pura negatividade separou-se da totalidade, e o entendimento tornou-se a fúria do livre-arbítrio, afirma Hegel. A vontade universal abstrata fixou-se como um poder autônomo e fechado que, em nível histórico, resultou em ações destruidoras de toda ordem, isto é, a negação imediata, não-refletida, própria do movimento não-mediatizado de passagem de um termo ao outro (Cf. Rosenfield, 1984, 45).

A determinação da vontade em justiça abstrata pode levar ao fanatismo. Esta é uma de suas possibilidades: “Quando [a liberdade vazia] volta-se para a efetividade, ela torna-se, no domínio político como no domínio religioso, o fanatismo da devastação de toda ordem social subsistente e a eliminação dos indivíduos” (FD, § 5, Obs.). O fanatismo pode ser identificado, hoje, com o fundamentalismo, pois quer realizar um ideal de pureza; daí ser tentado a empregar os meios mais violentos para eliminar toda resistência que impeça a implementação de tal purismo. Isso conduz à homogeneização que elimina as diferenças e a diversidade. Esse purismo voluntarista da justiça abstrata pode ser constatada em vários níveis, por exemplo, na política suprime-se a oposição; na cultura elimina-se a interculturalidade; na religião impõe-se uma fé homogênea e indiferenciada; no direito é o julgamento sem o devido processo legal.

b. A vontade particular ou a justiça realizando-se (FD, § 6)

A vontade do eu abstrato, num segundo momento torna-se real determinando-se, ou seja, querendo algo que seja definido e determinado, daí ela tornar-se uma vontade particular. Por isso, a “particularização do eu” é igualmente como o primeiro, “negatividade”, supressão – ele é com efeito a supressão da primeira negatividade abstrata (FD, § 6, Com.). O eu que entra num processo de diferenciação, isto é, que começa a agir no mundo, vai além do dualismo formal entre sujeito e objeto, a consciência fechada na sua interioridade e mundo exterior, recusando este dualismo. Quando a vontade se objetiva, produz um ato individual e, ao mesmo tempo, traduz o todo do movimento histórico do conceito. Assim, a vontade particular se

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objetiva no mundo, ou seja, há uma vontade subjetiva que realiza a justiça objetivamente. As tarefas históricas da justiça implicam diferentes determinações, por exemplo: em uma época, a implementação dos Direitos de primeira geração; depois, os direitos sociais; mais adiante, os direitos difusos. Em cada época a vontade se particulariza, interiorizando a justiça no processo histórico.

c. A vontade singular ou a justiça efetiva (FD, § 7) O terceiro momento como especulativo é a unidade da

vontade universal e da particular. A vontade como atividade mediada em si mesma é o desenvolvimento da unidade pura do pensamento em si mesmo (§ 5) e de sua passagem à finitude pela diferenciação do ser-aí (§ 6), enquanto vontade particular refletida em si, torna-se uma universalidade singular (§ 7). “O terceiro momento, o verdadeiro e o especulativo (e tudo o que é verdadeiro, enquanto é conceptualizado, só pode ser pensado especulativamente)” (FD, § 7, Com.). O conceito de singularidade expressa como os dois momentos anteriores passaram à interioridade pelo movimento de concretização. Ou seja, a vontade individual enquanto vontade natural e vontade do livre-arbítrio, é suprassumida na sua unilateralidade, e torna-se uma vontade livre. Ora, a efetivação do conceito da vontade expõe o movimento histórico da justiça efetiva: no Direito Abstrato (§§ 84 a 103) e na Eticidade (§§ 209 a 229) da Filosofia do Direito.

i.ii) A justiça civil

Corresponde à necessidade inicial de se estabelecer a distinção entre as feições da justiça, na medida que esta nada mais é do que a efetivação da liberdade concretizando-se, ou seja, realizando o movimento histórico da vontade na sua objetivação.

Assim, é de bom tom evocar a precisão terminológica que acompanha as diferentes expressões do direito na Filosofia do Direito. Conforme atenta Bobbio (1991), na perspectiva hegeliana, a expressão direito passa por uma depuração, cuja finalidade é melhor expressar a função deste no movimento da vontade objetivando-se; logo, na obra madura, a expressão direito designará

Agemir Bavaresco 112

apenas o momento da abstração, da estabilidade, o momento formal de uma relação, iniciada no momento em que o movimento da vontade, exteriorizando-se, configura a esfera da intersubjetividade, relação esta dita jurídica desde a perspectiva fichteana, conforme acima e que, com Hegel, promove o advento da pessoa. O caminho mediante o qual o sujeito entra em relação com as coisas do mundo é o movimento através do qual ele se reconhece numa relação jurídica com outrem: ele é uma “pessoa” (Rosenfield, 1983, p. 64).

A partir daí, observa Rosenfield, a imediação da liberdade é aquela onde as relações de troca estão subordinadas às relações jurídicas entre as pessoas. É pois, neste patamar que se verificará a justiça, isto é, a partir da abstração que considera reconhecidos todos os sujeitos na condição de pessoas isto equivale dizer: no uso e na fruição daquilo que a liberdade entre pessoas lhe permite. E, portanto, agora retomando a vertente etimologista traçada por Bobbio, este direito ou justiça de reconhecimento que por aí se estabelece, será designado conforme a esfera das relações interpessoais que esteja mediando formalmente. Nas relações atinentes à esfera econômica, formalizando as relações de mercado, será o direito privado (posse, contrato, propriedade); na esfera da política é o direito público que se encarregará de formalizar as estabilizações momentâneas, mediante um regramento que deflui necessariamente das acomodações históricas concretas vividas no interior de um determinado povo. Ora, pode-se, assim, identificar, do ponto de vista lógico, a precedência do direito público sobre o direito privado, eis que se trata de momentos da liberdade em que se verifica uma hierarquia na qual se transita do subjetivo ao objetivo, do particular ao universal. Na esfera do direito privado constata-se uma primeira exteriorização da vontade, imediata, correspondente ainda a uma exteriorização eivada de subjetivismo, enquanto que à esfera do direito público corresponde o momento da liberdade objetiva, que é para si e que é como um todo envolvendo os indivíduos. Posta a pessoa como idéia, como abstração que permite ao sujeito, diferenciando-se do mundo das coisas, ser tomado como um ente de liberdade, é preciso que esta liberdade se exteriorize. Este movimento tem o sentido de estender a vontade da pessoa sobre as coisas que a cercam, é a liberdade de propriedade estabelecida a partir da Revolução Francesa e referida por Hegel no

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adendo ao § 33 da FD: Este primeiro modo da liberdade é o que conhecemos como “propriedade”, é a esfera do direito formal e abstrato[...]. Esta coisa de que se apropria a pessoa passa a estar humanizada, haja vista a ligação que com ela é reconhecida por outras pessoas. Ao mesmo tempo, a ligação da pessoa com esta coisa se caracteriza por uma necessidade específica da pessoa, necessidade que, por sua vez, é preenchida pela fruição quantitativa e qualitativa da coisa a ela correspondente. Dado, primeiro, que esta coisa objeto de apropriação da pessoa tem uma utilidade específica em relação à necessidade da pessoa, este uso pode ser quantificado e, logo, comparado com outras coisas; e, segundo, dado que a necessidade a que ela atende é uma necessidade específica porém universal (comum a qualquer pessoa), coisas e necessidades são intercambiáveis, têm valor de troca, cuja medida universal é o dinheiro, conforme os termos do § 63, FD. Isto, se por um lado permite a alienação da propriedade, permite ainda ver-se uma estrita relação entre o valor substancial da coisa e seu uso como medida de justiça para o reconhecimento. É como expressa Hegel sua posição quanto à prescritibilidade do direito de propriedade em face da ausente vontade de dono, na parte inicial, bem como na parte final do § 64, FD. De início, no mencionado parágrafo, Hegel adverte para a mera circunstancialidade da posse, já que esta, mesmo assinalada com o reconhecimento, pode vir a estar esvaziada da presença subjetiva da vontade. E ao final: Um campo nu dedicado eternamente a não ser usado contém um arbítrio vazio que não se faz presente, e se lesionado, não se lesiona nada efetivamente real, pelo que o respeito a ele tampouco pode ser garantido.

Trata-se de uma concepção revolucionária de justiça agrária, ou até mesmo do uso social da propriedade. Nos §§ 67 e seguintes, a teoria hegeliana da propriedade extravasa a conotação fundiária e já se lança até mesmo sobre a possibilidade de uma até então hipotética contratação laboral. Quanto à alienação da propriedade, é esta aperfeiçoada pela forma contratual, que é o reconhecimento interpessoal e civilizado da exteriorização da vontade em relação à comunidade de bens da pessoa. No entanto, como é o contrato figura central da organização mercantil burguesa, dialeticamente ele se converte no seu contrário; se, por um lado, com ela se objetivam as vontades

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das pessoas contra estas mesmas, elas, pessoas, podem devolver ao contrato a imposição de suas subjetividades, com o que ocorre a lesão ao reconhecimento, portanto, o não-direito, a injustiça, o delito, o crime. E isto ocorre com freqüência porque, à igualdade formal se opõe a desigualdade natural, visto não ser assegurado a todos igualdade de propriedade, senão o direito a ter propriedade. E do ponto de vista lógico, a particularidade não abdica de seu livre-arbítrio e a sua imposição é sempre uma contingência, como explica Rosenfield: A “injustiça” vem a ser, para Hegel, um fato, localizável em qualquer sociedade, que lhe permite expor como o ser em si da vontade (o contrato) pode interiorizar-se na ação arbitrária e injusta de uma vontade que logra fazer com que apareça um direito que, do fundo da objetividade, reclamava a sua efetuação (Rosenfield, 1983, p. 88-89). Isto permite a conclusão, segundo Rosenfield, de que Hegel vê a “injustiça” alemã da frustração ao reconhecimento, como uma espécie de apelo negativo de verdade: forma pela qual se verá nascer o direito à liberdade subjetiva (id. p. 89). Esta é também a constatação de Honneth quando põe em exame as obras de juventude de Hegel:

Se essas formulações são concentradas e relacionadas com a antiga concepção, resulta daí a suposição de que Hegel atribui a origem de um crime ao fato de um reconhecimento ter sido incompleto: nesse caso, o motivo interno do criminoso é constituído pela experiência de não se ver reconhecido de uma maneira satisfatória na etapa estabelecida de reconhecimento mútuo (Honneth, 2003, p.p. 52-53).

No entanto, a injustiça tanto se dá na forma do ilícito civil,

quanto no forma do ilícito penal.

i.iii) A justiça penal

Conforme já dito, Hegel, na juventude, concebera o amor e a religião como meios adequados para efetuar a reconciliação, cuja necessidade se instaura com o advento da injustiça, ou seja, com a negação do direito. Na obra madura haverá de permanecer esta construção inicial, porém, retomada desde a independência do Direito enquanto Ciência.

Hegel e o Direito 115

Portanto, retornando-se ao percurso do espírito livre, conforme exposto por Hegel, este abandona a condição inicial de subjetividade para protagonizar uma gama de relações intersubjetivas que resultam na objetividade. Esta, por fundar-se no reconhecimento recíproco, promove os indivíduos à condição universalizada de pessoas. A universalidade de pessoas que se auto-reconhecem instaura a esfera do direito; a negação desta esfera – pela negação do que nela está suposto enquanto reconhecido – precisa ser reconciliada; é necessária a restituição da ordem jurídica, na mesma proporção em que tenha sido lesionada.

De fato, nos termos do § 82 da Filosofia do Direito, o contrato, enquanto figura plasmada do reconhecimento, é, ao mesmo tempo, essência e aparência, universalidade e contingência, porque é a relação da essência com o seu aparecer (Adendo ao § 82 FD). Quando desta relação passa a prevalecer uma aparência que se põe como independente da essência, a ponto de tornar-se por si, tem-se a negação da essência, ou a negação do direito em si, ou a injustiça, à qual correspondem momentos diferenciados: a injustiça civil ou de boa fé, a fraude e o delito. Os dois primeiros momentos correspondem ao visto no item anterior, ou seja, à aparência que não sonega o direito enquanto universalidade, mas apenas em sua aparência, na sua manifestação externa – neste momento as lesões são ditas como perpetradas contra a ordem civil.

Já no adendo ao § 90, dirá Hegel: A autêntica injustiça é o delito, no qual não se respeita o direito nem em si, nem em sua exterioridade, ou seja, o direito aí é lesionado tanto no lado de sua subjetividade quanto no de sua objetividade. É essencial, nesta modalidade de injustiça, o concurso da força e da violência por meio das quais é cometida. Há um movimento especulativo que permite ver como a força e a violência por meio das quais o direito é negado atinge a essência do direito, ou seja, a vontade livre. Diz Hegel, no § 92 FD, que a vontade é idéia e, para ser livre de maneira efetiva, carece de ter existência e por isto se põe em algo existente, que passa à condição de ser da liberdade. Com isso, toda a força e toda a violência que se exerça sobre esta exteriorização da vontade é injusta, e auto-destrutiva pois, conforme o § que segue (93), a violência se elimina com a violência. E, enquanto a primeira

Agemir Bavaresco 116

violência é dita injusta, a segunda violência que elimina a primeira, é dita justa.

Visto poder-se tomá-lo como um juízo negativo infinito, portanto, no qual são negados tanto o particular – ou seja, que uma coisa está subsumida à propriedade de uma pessoa determinada – , quanto o universal, o direito em si (§95 FD), é importante remarcar a diferença da forma delituosa em relação às demais formas de injustiça: a injustiça de boa fé e a fraude, no tocante à consectária restauração do direito que a elas corresponde. Se, nas duas primeiras, a lesão perpetrada afeta a existência exterior da vontade (a posse) e será eliminada pela indenização civil de natureza reparatória, a lesão provocada pelo delito afeta a vontade enquanto existente em si e será eliminada pela pena. Esta eliminação do delito restaura a universalidade do direito. E nesta relação entre delito, pena e restauração do direito está o que Hegel concebe como teoria especulativa da pena.

No extenso comentário feito ao § 99 da Filosofia do Direito, ao tecer percuciente crítica às diversas teorias da pena existentes ao seu tempo, Hegel assinala que tais abordagens incorrem no erro de colocarem no centro de suas considerações fatores que são, na verdade, contingentes, isto quando procuram fundamentar a legitimação do castigo pós-delito a partir do prejuízo desse decorrente. Enquanto a justificação hegeliana da pena se pretende unicamente restituitória do direito como tal. Nesta linha, quando se trata de entender a legitimação racional da pena, a finalidade do castigo será a superação (eliminação) do delito e a restituição plena da vigência da norma lesionada e nunca a retribuição de um prejuízo ao delinqüente pelo dano cometido.

Para Hegel, o delito está equiparado à liberdade, porque o sujeito, quando o comete, acredita estar afirmando a liberdade de sua vontade sobre uma exterioridade, embora esta exterioridade seja apenas aparente pois, como se viu, ao lesionar a pessoa de um outro é também a si que o sujeito delinqüente alcança com a lesão. No entanto, afirma Hegel no § 97 FD: A lesão ao direito enquanto direito tem por certo uma existência positiva, exterior, mas esta existência é “em si mesma” nula. Em suma, o caráter intrinsecamente nulo da ação delituosa está posto em que seu agir é essencialmente uma exteriorização da vontade que nega a exteriorização da vontade e

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que, com isso, se manifesta vão. Diz Hegel no adendo ao mesmo § 97: O nulo é haver eliminado o direito enquanto direito. O direito, enquanto absoluto não pode eliminar-se, pelo que a exteriorização do delito é em si nula e essa nulidade é a essência do agir delitivo. Mas o que é nulo deve manifestar-se como tal, ou seja, tornar-se, por sua vez, lesionável.

O que lesa o delito é, portanto, a pena e não pelo que o delito possa acarretar de prejuízo, mas por uma necessidade racional, decorrente de um ato livre por autodeterminação do sujeito que delínqüe.

É necessário, ainda, explicitar de que maneira Hegel elucida a efetiva restituição do direito através da pena. Desde o artigo sobre o Direito Natural, esta noção especulativa vem delineada:

Aplicado isto, por exemplo, à pena, nela a represália só é racional, porque, através dela, o crime é reprimido; uma determinidade +A que foi posta pelo crime, é completada pela posição de –A, e assim todas duas são aniquiladas; ou, olhando-se isso de modo positivo: com a determinidade +A está ligada pelo criminoso a determinidade oposta –A, e todas as duas são postas de maneira igual, enquanto que o crime não poria senão que uma; assim, a pena é a restauração da liberdade, e o criminoso tanto ficou livre, ou, antes, tornou-se livre, quanto aquele que pune agiu racional e livremente. Nesta determinação que é a sua, a pena é assim algo em si, [é] verdadeiramente infinita, e [é] algo de absoluto, que, por aí, tem em si mesmo isto que a faz respeitar e obedecer; ela vem da liberdade e permanece, mesmo enquanto ela reprime, na liberdade. Se, pelo contrário, a pena é representada como coerção, ela é posta simplesmente como uma determinidade e como algo de absolutamente finito, não comportando nenhuma racionalidade, e ela tomba inteiramente sob o conceito comum de uma coisa determinada, em face de uma outra coisa, ou de uma mercadoria em troca de uma qualquer outra coisa, a saber o crime, está por resgatar, [e] o Estado tem, enquanto que poder judiciário, um mercado com as determinidades que se chamam crimes e que ele põe à venda em troca de outras determinidades, e o Código [fixa] o preço corrente (Hegel, 1990, p. 53-54).

Agemir Bavaresco 118

Assim, Hegel, de maneira muito inspirada, no adendo ao § 101 da Filosofia do Direito, define represália 6 como uma conexão interna de duas determinações que aparecem como diferentes e que têm também uma existência exterior diferente. Tais determinações são o delito e a pena que, estando ambas situadas na esfera da exterioridade, uma não é senão a metade da outra, porque ao cometimento do delito está conceitualmente ligada a pena, enquanto valor da ação delituosa, posto que a valoração de uma corresponde à outra. Porque aqui se trata de distinguir a teoria da pena concebida por Hegel daquela da retribuição, que guarda em si o pressuposto da lei de talião, da vingança privada. Diz Hegel, no mesmo adendo: Em um primeiro momento a represália tem contra si a aparência de algo imoral, como vingança, e pode desta maneira valer como algo pessoal. Mas o que a represália executa não é o pessoal, senão o conceito mesmo [...]. As Eumênides dormem, mas o delito as desperta, e é, assim, o próprio fato que impõe sua conseqüência.

É na questão da proporcionalidade entre a pena e o delito que Hegel mais claramente situa o caráter contingente da lei humana. Se no § 101 FD, encontramos a asserção de que segundo sua existência, o delito tem uma extensão quantitativa e qualitativa determinada, motivo pelo qual a sua negação também tem que ter enquanto existência, já na observação a este mesmo parágrafo Hegel aduz que a constituição quantitativa e qualitativa do delito se encontra sediada na esfera da exterioridade, sendo matéria do entendimento e não da razão e, por isso mesmo, surgem dificuldades insuperáveis na estipulação das penas, bem como na aplicação do direito, conforme se pode ver no comentário feito ao § 214 FD, que é emblemático no tocante à contingência da lei e da administração da justiça:

Não se pode determinar racionalmente nem decidir pela aplicação de uma determinação proveniente do conceito se para um determinado delito o justo é uma pena corporal de quarenta golpes ou de quarenta menos um, nem se

6 Nós traduzimos Wiedervergeltung por represália, seguindo a mesma tradução feita por Bernard

Bourgeois e Jean-François Kérvegan. Este comenta, a propósito do § 101 da FD o seguinte: “Toda a argumentação deste parágrafo (e do comentário) repousa sobre a distinção entre igualdade quanto ao valor e igualdade específica ou, então, entre reparação simbolicamente conforme e identificação da punição ao crime (olho por olho...). A adoção, de encontro às teorias modernas da pena, de uma concepção de punição como represália, supõe que não se entenda esta de modo literal, mas como a exigência de uma reparação que seja ‘de valor igual’ àquela do ato criminoso” (FD, nota 4, p. 181). Tradução feita pelos autores.

Hegel e o Direito 119

corresponde a uma multa de cinco táleres ou de quatro táleres e vinte e três centavos, ou a uma pena de prisão de uma ano ou de trezentos e sessenta e quatro dias, ou de um ano e um, dois ou três dias. Não obstante isso, um golpe a mais, um táler ou um centavo, uma semana ou um dia de prisão a mais ou a menos são uma injustiça (Hegel, 1975, p. 252-253).

Porém, tratando-se de homicídio, Hegel prescreve a

observância da lex talionis; ao final do adendo ao § 101FD, diz que, para o assassinato, corresponde necessariamente a pena de morte, posto que a vida corresponde à integralidade da existência, não se pode, pois pensar em pena que lhe equivalha a não ser a privação da própria vida.

Justiça enquanto jurisdição A administração do direito na sociedade civil é a defesa dos

bens comuns, ou seja, a fortuna coletiva, a propriedade universal contra o arbítrio dos indivíduos. Ao contrário do direito privado, não se trata agora de querelas de propriedade entre particulares mas antes, de julgar a justa participação de um indivíduo à fortuna da sociedade inteira. A justiça não é mais arbitrária como no direito abstrato, porém, o direito ainda se limita a conservar a situação criada pela competição econômica livre. O direito, na sociedade civil, torna-se o protetor da propriedade privada na medida em que esta não incomoda os interesses da comunidade. Hegel elabora a idéia de justiça, baseada numa legislação universal e social, que mantenha, de um lado, a liberdade subjetiva e, de outro, evite uma economia totalmente dirigida.

O conceito do direito desenvolve-se através das novas relações sociais, assegurando determinações de igualdade e justiça e a legalidade das trocas de mercadorias. A sociedade civil põe como uma realidade o que era antecipado no “direito abstrato”. O “sistema das necessidades” aparece no desenvolvimento das contradições sócioeconômicas, que necessitam da jurisdição para não cair no caos social.

Hegel, ao analisar as contradições da sociedade civil, descreve duas determinações: de um lado, o direito privado posto

Agemir Bavaresco 120

na lei; de outro, a jurisdição enquanto momento mediador entre a vida econômica e a efetivação de suas oposições. Os conflitos privados encontram sua solução na jurisdição, e as contradições sociais são resolvidas pelo Estado (Rosenfield, 1984, 219).

A existência do direito implica em ser reconhecido, conhecido e querido através da educação e as condições histórico-culturais (§ 209). O estatuto da lei é ser ela o produto de uma intervenção do pensamento sobre os hábitos e os costumes de uma época. A lei tem validade universal na medida em que exprime o conteúdo das relações humanas.

Hegel estrutura a administração jurídica em três momentos: a) a efetividade objetiva do direito é conhecida através da tomada de consciência das leis (o direito enquanto lei: §§ 211-214); b) a existência empírica das leis sob a forma de um código (o ser-aí da lei: §§ 215-218); c) e enfim a aplicação da lei, conhecida como o universalmente válido para todos pelo tribunal (o tribunal: §§ 219-228). Vejamos como se organiza a instituição da justiça.

i) Consciência da justiça legal

A consciência das leis pelos indivíduos é a primeira

característica do direito enquanto lei, isto é, o que é o direito em si deve ser também conhecido publicamente. Para uma disposição se tornar uma ordem objetiva e válida, é indispensável que ela receba a forma de uma lei e seja proclamada publicamente. Se ela é justa, será acolhida; se ela é injusta, o público pode contestá-la publicamente (§ 212).

A positividade na aplicação do direito ao caso particular mostra a tomada de decisão e os limites da mesma. Na adição ao § 214 Hegel afirma: As leis e a administração da justiça têm, de um certo lado, um caráter contingente. Isso decorre do fato que a lei é uma determinação geral, que se deve aplicar a um caso particular.

A justiça civil tem um grau de contingência, próprio de uma justiça histórica. Este elemento de contingência, que é o puramente positivo, dá-se pelo fato de o tribunal tomar, apesar de tudo, uma decisão e assim limitar o arbitrário das relações puramente subjetivas (vingança, etc.) entre os membros da sociedade.

Hegel e o Direito 121

A razão reconhece que, no domínio da justiça civil, há sempre um elemento de contradição: É a razão que reconhece que a contingência, a contradição e a aparência tem sua esfera e seu direito, mas uma esfera e um direito limitados, a qual não descansa de reduzir tais contradições e as conduzir ao que é justo (FD, § 214, Com.).

Hegel entende que, na medida em que as pessoas têm consciência das leis, elas podem ser justas, não obstante o seu conteúdo contingente: O homem é isto: “saber” sua lei; e por isso só pode obedecer verdadeiramente a uma lei tal que é “sabida”; assim como sua lei, só enquanto é sabida, pode ser uma lei justa, embora já segundo o conteúdo essencial deva ser contingência e arbítrio; ou, ao menos, mesclada ou poluída por eles (Enc., § 528, Com. 7).

Os desafios da filosofia política de Hegel são formar o homem à prática da justiça e elevar a consciência do indivíduo à forma universal da cultura. O fato que o direito deva ser conhecido pela consciência como válido universalmente, exprime o processo no qual o direito adquire um poder de efetividade. Ou seja, a lei é a objetividade posta do direito, o produto consciente de uma cultura que se pensa na atualidade de sua história. Não se trata apenas de conhecer a justiça legal, mas de saber que ela se tornou o produto universal de um pensamento objetivado.

ii) Publicidade da lei e reconhecer o “entendimento” da justiça

A publicação das leis garante o acesso universal para a

efetivação do direito. A codificação, afirma Hegel, sob a forma de um código ordenado e determinado, trata-se de um grande “ato de justiça” (FD, § 215, Com.).

A lei é publicada sob a forma de um código – é a existência empírica da lei – e submetida à discussão pública. A forma positiva das leis, isto é, sua formulação sob a forma de um código e a sua publicação é a primeira condição de sua entrada em vigor. Porém, para o indivíduo ser moral e objetivamente submetido às leis, não é suficiente torná-las públicas, é preciso ainda que elas sejam reconhecidas – ratificadas pelo Parlamento – e entrem assim em vigor. Um código é, ao mesmo tempo, sistemático e aberto às

7 Utilizamos a abreviatura Enc. para a obra da Enciclopédia Filosófica, conforme Referência

bibliográfica.

Agemir Bavaresco 122

especificações, suscetível de evolução histórica de seu conteúdo e de progressivo aumento das determinações jurídicas.

A realização do direito privado na sociedade civil, como no caso da propriedade privada, trata do reconhecimento pela sociedade inteira de “meus” direitos de propriedade, objeto de jurisdição civil. É um ato formal, como na assinatura de um contrato, que torna esse reconhecimento eficaz. É necessário o reconhecimento legal do outro. Neste nível da sociedade, a formalidade reveste uma importância mais sutil que no direito abstrato. Ela é um ato simbólico consciente, do qual o indivíduo quer participar pela sua propriedade da riqueza social comum (FD, § 217).

Pelo contrato se define também o delito que é sua ruptura. Pelo delito não há somente uma ofensa à subjetividade infinita – um delito privado contra uma propriedade privada, mas também uma violação à coisa universal – da propriedade enquanto instituição universal. O delinqüente, ao violar a propriedade de Pedro, coloca em risco a seguridade e a ordem social, a qual existe de uma maneira sólida onde o direito de propriedade é protegido por uma legislação de ordem universal (FD, § 218).

Um código não é uma reunião aleatória de materiais jurídicos, mas é a expressão de uma intervenção consciente sobre os costumes e hábitos de justiça de uma época, de modo a elevá-los à sua universalidade imanente. Trata-se, desde já, de mostrar que o simples pensamento formal está em marcha para a formação do conceito, ou seja, a efetivação do pensamento especulativo da razão.

iii) Tribunal: a justiça na esfera dos litígios privados A administração da justiça é uma tarefa pública. O tribunal

é a realização da justiça, enquanto busca a conciliação do que o indivíduo pensa e crê que é seu direito e o que o código considera como lei obrigatória. Este conhecimento e esta efetivação do direito no caso particular, desprovido do sentimento subjetivo e do interesse particular, incumbe a um poder público, o tribunal (FD, § 219).

A justiça não é um ato gracioso da autoridade, mas um direito fundamental do homem em sociedade. O tribunal é uma

Hegel e o Direito 123

organização que defende o direito do indivíduo como cidadão. Por isso, o tribunal é um dever do poder público. Esse dever e direito não podem depender da vontade arbitrária dos indivíduos. A identidade dos direitos e deveres é confirmada como base da justiça na comunidade. O tribunal conhece e age no interesse do direito como tal, retira-lhe da existência sua contingência, e, especialmente, muda essa existência, tal qual ela é enquanto vingança, em pena (Enc., § 532).

A jurisdição transforma a vingança em castigo, superando a vontade dos indivíduos de exercer por si mesmos a justiça. Pela punição legal, a sociedade defende seus interesses e realiza as leis. Hegel trata, nos parágrafos seguintes, da proibição da vingança privada; da ordem jurídica do procedimento judicial; da disposição de um tribunal de arbitragem; da publicidade da administração da justiça; do procedimento da aplicação da lei ao caso particular; da tarefa do juiz jurista etc. Enfim, a administração da justiça tem por finalidade a publicidade dos trabalhos do tribunal para todos poderem ver como se faz a justiça. O Estado não intervém nos processos civis.

À administração jurídica cabe controlar o desejo de posse, interditar o excesso de liberdade individual e fazer respeitar a ordem existente na sociedade civil. A administração da justiça tem a determinação de ativar em necessidade somente o lado abstrato da liberdade da pessoa na sociedade civil. Mas essa ativação repousa, antes de tudo, na subjetividade particular do juiz, não estando ainda presente aqui a unidade necessária dessa mesma subjetividade com o direito-em-si (Enc. § 532). A ordem que o juiz quer fazer respeitar é o produto de sua própria subjetividade particular.

A jurisdição atinge um nível limitado de unidade entre o universal e a particularidade subjetiva, sendo seu domínio a resolução dos conflitos privados. O desafio é processo de universalização da substância ética. Cabe ao Estado concluir o movimento de mediação através do desenvolvimento das contradições sociais. Pode-se, então, dizer que os conflitos privados são, para os tribunais, o que as contradições sociais são para o Estado. O fim visado por Hegel, é, na verdade, uma unidade que possa manter unido – e dar satisfação – o conjunto dos conflitos e contradições que constituem a vida dos homens (Rosenfield, 1984, 227).

Agemir Bavaresco 124

A atividade do tribunal mostra que a sociedade civil não consegue ainda reconciliar os indivíduos no seu conjunto. Ela busca resolver suas contradições através da administração pública e das corporações. O aparelho jurídico tem a tarefa de corrigir a injustiça reinante nas relações cotidianas pois, embora a sociedade civil busque a satisfação das necessidades materiais, ela o faz de uma maneira abstrata e mecânica, deixando imperar as contingências. Esta é a dialética do liberalismo: como a sociedade civil não realiza o seu fim que é a satisfação dos indivíduos pelos seus próprios meios (o liberalismo econômico), ela suscita nela mesma uma instituição para manter a ordem exterior, pois não há uma ordem universal interior possível no plano do individualismo. A administração pública (a polícia, na terminologia hegeliana), com suas autoridades locais e as organizações profissionais são já o Estado em potência, na medida em que elas realizam a satisfação dos interesses e das necessidades dos cidadãos.

Justiça efetiva ou a idéia de justiça

Para Hegel, a idéia de justiça situa-se no nível da razão

(Vernunft), superando a do entendimento (Verstand). Como ele escreve na introdução da Filosofia do Direito:

O ponto de vista autenticamente filosófico, [que consiste] em examinar a legislação em geral e suas determinações particulares não de modo isolado e abstrato, mas como momento dependente de Uma totalidade, em conexão com todas as outras determinações que constituem o caráter de uma nação e de uma época; é nesta conexão que eles recebem sua significação verdadeira, assim como sua justificação (FD, § 3, Com.).

A atitude de permanecer no estritamente jurídico é o

domínio do entendimento. Hegel quer elevar este ao movimento da razão que conduz ao todo. Assim, a idéia de justiça se determina no próprio desenvolvimento da Filosofia do Direito: da justiça abstrata à justiça concreta, que se realiza na eticidade.

A teoria jurídico-política de Hegel é uma institucionalização da idéia de justiça: a vontade subjetiva se

Hegel e o Direito 125

objetiva como liberdade imediata natural na propriedade; depois, realiza a “segunda natureza” ética. Hegel permanece fiel ao projeto de fundação racional da ordem jurídica e política, uma vez que o modelo de justiça do entendimento implementado pelos teóricos jusnaturalistas é impotente para cumprir esse projeto.

A atividade jurídica determina os atos dos indivíduos (a “pessoa”, objeto do direito, é a universalização formal do indivíduo), na medida em que estão em relação uns com os outros como indivíduos, dominando sempre sua particularidade e singularidade, isto é, sua indefinidade empírica. Se a legislação repousa sobre o entendimento, operando em seu exercício ainda abstrato, a justiça, como veremos, mobiliza em sua formalidade um entendimento conduzido pela assunção individual de uma intuição prática (Bourgeois, 2004, p.46).

A atividade jurídica positiva cinde-se em duas atividades: legislação e justiça, cada uma mobilizando um procedimento específico que as torna irredutíveis uma à outra. Somente a afirmação totalizante da razão especulativa poderá superar esta irredutibilidade.

A verdade do direito é continuar sendo, mesmo em sua atividade final mais positiva, “direito abstrato”. Por isso, a filosofia hegeliana justifica, de um lado, a ingerência da razão especulativa no trabalho de construção de um direito então mais solidamente estabelecido, porque apoiado sobre princípios verdadeiros, e, de outro lado, a abertura dessa mesma razão ao trabalho positivo do jurista na realização desses princípios, um trabalho que Hegel soube descrever e compreender, ao mesmo tempo que fixou seus limites, em sua dialética mais própria (Bourgeois, 2004, 53).

A idéia de justiça hegeliana situa-se face à Escola Histórica,

que relativiza a natureza; ao romantismo que deprecia a racionalidade.

A diferença entre o direito natural ou racional de Hegel e o direito natural ou racional pré-hegeliano não é uma simples diferença de conteúdo – a oposição do princípio “totalitário” em princípio individualista – ela é também uma diferença de método: ao raciocínio do entendimento, dedutivo, linear, do direito natural moderno, Hegel opõe a

Agemir Bavaresco 126

razão dialética, circular, ligando de tal maneira muito mais intimamente os momentos do direito (Bourgeois, 1992, p.160).

Hegel rejeita a idéia de justiça que parte do sujeito

individual, tomada na particularidade ou diferença natural de sua existência, para fundar a realização civil-política do direito. Tal concepção é própria do direito natural empirista de Grotius, Hobbes e Rousseau, passando por Locke e Pufendorf e do direito natural racionalista, aquele de Kant e Fichte. A “Doutrina do Direito” kantiana funda-se sobre as exigências do direito privado, ou seja, o direito na esfera da existência natural da pessoa. Ora, só o direito público será capaz de garantir a realização daquela. Há uma relativização do direito natural para elevá-lo à filosofia política no Estado. Há uma reviravolta bem conhecida da relação entre o direito privado e o direito público: na política clássica, o todo é primeiro. O Estado verdadeiro construiu-se numa história que libera seu momento natural-contratual. O momento do Estado racional realizado – proposto pelos Princípios da filosofia do direito – eleva até a sua verdade o conteúdo do direito natural moderno, presente no momento da sociedade civil. No desenvolvimento desta objetiva-se o direito abstrato da “pessoa” que se atualiza no e como contrato.

A análise dialético-especulativa do direito natural moderno, no seu momento da “administração da justiça”, mostra o formalismo da determinação pelo universal abstrato da lei, da particularidade social considerada segundo a dimensão abstrata da pessoa jurídica. Uma tal realização ainda social da sociedade não pode ainda ultrapassar a exterioridade – a contradição – que constitui esta sociedade como vida ética natural; ela necessita do Estado existindo enquanto Estado político, Estado da razão e da justiça efetiva (Cf. Bourgeois, 1992, pp. 172-179).

* * *

O modelo de justiça hegeliano, conforme exposto ao longo do texto, estrutura-se a partir da idéia de justiça enquanto processo de reconhecimento que nos leva a concluir o seguinte em forma de teses:

Hegel e o Direito 127

a) A constituição da idéia de justiça encontra na matriz

lógico-fenomenológica do reconhecimento racional, a simetria do justo.

b) O modelo metodológico hegeliano opõe-se ao modelo empírico-formal da idéia de justiça, ou seja, do entendimento fragmentado dos fatos e leis, para alcançar no especulativo a unidade da razão justa.

c) Para além de idéia de justiça moderna formal, Hegel mostra a efetivação que se opera no momento da eticidade estatal, suprassumindo as contradições da justiça formal.

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Agemir Bavaresco 128

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JUSTIÇA PROCESSUAL E SUBSTANTIVA NA FILOSOFIA PRÁTICA CONTEMPORÂNEA

Delamar José Volpato Dutra*

A justiça como conceito central da filosofia prática contemporânea

A justiça é um conceito central da filosofia prática.

Aristóteles já dedicara a esse tema o livro V da Ética a Nicômaco, destacando, inclusive, uma formulação daquela estritamente igualitária, qual seja, uma justiça corretiva, a qual deveria tratar a todos igualmente, independentemente de seu mérito, ou virtude, ou seja, não interessando a qualidade moral da vítima, por exemplo, para que houvesse crime de homicídio. Dito de outro modo, Aristóteles já parecia dispor da noção do que pertence a uma pessoa e é devido a ela, independentemente de seu caráter moral.

Já que se menciona Aristóteles é conveniente destacar a separação por ele operada entre ação moral e ação justa. Melhor dito, para ele a justiça pode ser praticada por aquele de mau caráter, pois se trata de evitar a pleonexia, ou seja, adquirir alguma vantagem à custa do seu de um outro. Com isso, Aristóteles destaca o caráter propriamente político da mesma, o qual virá a ser uma das características de seu tratamento hodierno.

Muitos éticos de hoje, entre eles, p.ex., Mackie e Habermas, definem ´moral´ de forma tal que ela em termos de conteúdo se refere apenas a relações intersubjetivas, portanto a deveres para com outros1.

No que concerne ao tratamento que se pretende ofertar da

justiça no presente texto, um marco importante é aquele da perspectiva kantiana da moral, principalmente a sua recusa em dar cidadania à felicidade como conceito moral privilegiado, ao

* Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq. 1 TUGENDHAT, E. Lições sobre ética, p. 164-5.

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contrário do que acontecera na história da filosofia prática. A razão pela qual Kant trata a questão da felicidade dessa maneira, deve-se ao fato de que esta é determinada por um elemento empírico, a saber, o prazer resultante da perfeita conformidade entre os desejos do agente e os resultados da ação no mundo, de tal forma que o sujeito não encontra empecilhos à realização das suas expectativas ou fins.2 É evidente, portanto, que a felicidade é uma determinação do ser humano, tão certa como vã, pois a natureza, para Kant, raramente obedece ao nosso querer.3 O grande problema da felicidade, como princípio moral, é que, dado esse elemento empírico, ela é formalmente indeterminada e indeterminável, pois nem o próprio sujeito teria condições de delimitar, precisamente, o conjunto de condições necessárias para a sua perfeita felicidade.4 Além do mais, a felicidade é um fim que é imposto à razão, de tal forma que esta, aqui, só determinaria imperativos hipotéticos. Ela, então, seria pragmática, pois não determinaria a partir de sua própria legislação.

Kant admite que a felicidade possa ser materialmente condição determinante completa da ação de um sujeito, na medida em que ela é um móbil necessário para a ação humana em geral e suficiente sob o ponto de vista da completude do querer dessa vontade, enquanto ser sensível. Mas, embora ela seja materialmente determinante, é formalmente indeterminada, pois pertence ao domínio da imaginação5, visto que o seu conceito muda tão freqüentemente, é um conceito tão vacilante, que se uma natureza estivesse a ele submetida, não admitiria nenhuma lei universal.6 Além disso, sob o ponto de vista da própria motivação, esse elemento empírico, colado à particularidade do indivíduo, constitui

2 "A felicidade é o estado no mundo de um ser racional para o qual, na totalidade da sua

existência, tudo ocorre segundo o seu desejo e a sua vontade e funda-se, pois, na harmonia da natureza com o fim integral desse ser e igualmente com o princípio determinante essencial de sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, ordena por princípios determinantes que devem ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade de desejar (como móbeis)" (KANT, I. Crítica da razão prática, A 224).

3 "Satisfazer ao mandamento categórico da moralidade está sempre em poder de cada um; satisfazer ao preceito empiricamente condicionado da felicidade só raramente é possível, e muito menos a todos, mesmo se só em relação a um único propósito" (idem, A 64-65).

4 Cfr. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, BA 46. 5 Idem, BA 47. 6 Cfr. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo, p. 270.

Justiça Processual e Substantiva 131

uma periculosidade muito grande numa moral assim concebida, pois a possibilidade do deslocamento para a auto-satisfação e felicidade próprias estaria a um passo do egoísmo, ou do solipsismo prático, e, por isso, da impossibilidade de uma convivência moral dos homens. Grande parte dos filósofos contemporâneos filiam-se a esse tratamento kantiano da filosofia prática, principalmente no que concerne ao privilégio que a justiça adquire como conceito central. Segundo Rawls, "a prioridade do justo é um aspecto central da ética kantiana"7, na medida em que a prioridade da justiça representa o valor das pessoas que Kant diz estar além de todo preço.8

Portanto, o conceito de justiça se alicerça na possibilidade de um tratamento igual de todos dos seres humanos, os quais devem ser considerados assim em virtude de sua humanidade. Nesse sentido, a ética contemporânea abandona progressivamente uma doutrina da felicidade para se ater à determinação de regras de convivência e respeito com validade universais, onde a justiça impõe limitações sobre as concepções bem, ou sobre a felicidade.9

Da natureza substantiva, ou processual da justiça

O problema que se pretende discutir aqui, muito mais do

que a apresentação das teorias da justiça, é a questão de sua natureza substantiva, ou processual. Melhor dito, parte-se do pressuposto da natureza processual da mesma, ao menos em dois autores centrais contemporâneas, Rawls e Habermas. Como exemplo de teoria substantiva da justiça podemos apontar aquela que defende o direito natural.

A tradição de uma formulação processual da teoria da justiça remete a uma dada interpretação da teoria moral kantiana. De fato, na Fundamentação metafísica dos costume o imperativo categórico não se refere à matéria da ação, mas à sua forma. Melhor dito, trata-se da forma da universalidade.10 Na Doutrina do direito ele afirma que a faculdade da razão pura de ser prática por si mesma 7 RAWLS, John. A Theory of Justice, p. 28 nota. 8 Idem, p. 513. 9 Idem, p. 230. 10 “É em Kant que a forma pura da lei como ´vigência sem significação´ aparece pela primeira vez

na modernidade. Aquilo que na Crítica da razão prática ele chama de ´simples forma da lei´(die

Delamar José Volpato Dutra 132

não é possível senão pela submissão das máximas de cada ação à condição de serem aptas a uma lei universal. Pois como razão pura, aplicada ao arbítrio sem considerar o objeto desse, ela, enquanto faculdade dos princípios (e, aqui, de princípios práticos, portanto como faculdade legisladora), não pode, uma vez que lhe escapa a matéria da lei, fazer mais do que transformar em lei suprema e fundamento de determinação do arbítrio a própria forma que torna a máxima do arbítrio apta a ser uma lei universal11.

No mesmo texto, na definição de direito ele afirma que

este, ao tratar de relações externas, só concerne à forma desta relação:

nesta relação recíproca do arbítrio, também não é levada em consideração a matéria do arbítrio, i. e., o fim que cada um se propõe com o objeto que quer, p. ex., não se pergunta, se alguém terá vantagem ou não com a mercadoria que compra de mim para o seu próprio comércio, mas pergunta-se apenas pela forma na relação do arbítrio recíproco, na medida em que ele é considerado simplesmente como livre, e se assim a ação de um dos dois se deixa pôr de acordo com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade12.

De tal forma que, segundo a continuidade da passagem

acima, “o direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”.

Entre o caráter formal do tratamento da moral e do direito feito por Kant e a sua interpretação como processo, há uma linha tênue de separação, pois se algo é formal, então, é despido de

bloss Form des Gesetzes [...]) é, de fato, uma lei reduzida ao ponto zero de seu significado e que, todavia, vigora como tal” [AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. [H. Burigo: Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita I], p. 59].

11 Ak VI 214. Algumas citações de Kant serão feitas a partir da edição da academia, abreviada por Ak, seguida do número do volume e da página.

12 Ak VI 230.

Justiça Processual e Substantiva 133

conteúdo, da mesma forma como o processo é despido de substância, ou seja, processo é meio para algum fim e não ele próprio fim. De fato, tanto Habermas, quanto Rawls, farão uma interpretação processual da filosofia kantiana, como se o imperativo categórico fosse um processo de teste de máximas de ação.

Nesse sentido, Rawls apresenta uma classificação das teorias processuais da justiça, a qual é muito esclarecedora para essa problemática. Ele analisa sua própria teoria nos termos da classificação proposta, a fim de elucidar melhor a própria natureza processual da justiça. O próprio Habermas não apresentou a classificação de sua teoria, mas ele aponta as suas diferenças em relação a Rawls, o que permitirá que a sua própria possa ser classificada no quadro proposto por Rawls.

A justiça como eqüidade de Rawls

O papel da justiça, tal qual definido por um dos mais importantes teóricos da justiça contemporânea, Rawls, consiste em estabelecer uma inviolabilidade para a pessoa que mesmo o bem estar geral da sociedade não pode recusar, ou seja, não pode haver perda de liberdade de alguns em troca de maior bem estar para os outros. Ademais, a justiça assegura direitos, bem como regula a distribuição das vantagens conseguidas pela sociedade, entendida esta como uma ação cooperativa para a vantagem mútua. Calcada na igualdade, ela proíbe distinções arbitrárias.13 Portanto, a justiça trata da estrutura básica da sociedade, embora não exclusivamente. A estrutura básica é composta pela constituição, a economia, o sistema social - como a família - bem como a distribuição de bens e recursos. Ao que não for básico não necessariamente ela não se aplica, como aos contratos, ou ao direito internacional, à teoria da pena, à guerra, à desobediência civil, à justiça compensatória.14

No contexto da Teoria da justiça, a proposta de Rawls se assenta na racionalidade da escolha que pessoas livres e iguais fariam numa situação hipotética de liberdade igual, a chamada posição original.15 É verdade que Rawls critica em Political Liberalism o

13 Cfr. RAWLS, J. A Theory of Justice, p. 3-5. 14 Idem, p. 6-8. 15 Idem, p. 10-15.

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projeto da The Theory of Justice de derivar o que ele vai chamar naquela obra de razoável, daquilo que é racional. No entanto, isso seria uma má interpretação da posição original, como reconhecido posteriormente.16 Portanto, na The Theory of Justice, as escolhas feitas numa posição inicial simétrica, uma espécie de contrato arquetípico, portam a marca da eqüidade, ou seja, a posição original de igualdade é eqüitativa e dá origem a princípios eqüitativos.

Dessa escolha vai resultar dois princípios, aquele da igualdade na distribuição de direitos e deveres e aquele da diferença, segundo o qual, desigualdades são justas se resultarem em benefícios compensatórios para todos, e especialmente para o menos afortunados. Tais princípios portam uma marca antiutilitarista, pois este, ao buscar o maior benefício, torna-se incompatível com a igualdade e inconsistente com a reciprocidade.17

Um esclarecimento inicial a ser feito, no que concerne a Rawls, é com relação à justiça formal e processual. Cabe observar que o conceito de formal, no contexto da The Theory of Justice, tem um sentido bem diferente daquele kantiano. De fato, para Rawls, os dois pares de conceitos não são sinônimos, embora tenham semelhanças. Isso porque a justiça formalmente compreendida se aproxima a uma certa vertente do positivismo, ou seja, aquela que incorpora a justiça ao seu próprio discurso, como em Kelsen. Por outro lado, se aproxima do que Lon Fuller18 chama de uma moralidade própria ao direito, na esteira de Weber. Aquele referia a uma moralidade formal própria do direito que incluía a generalidade, a publicidade, a anterioridade, a clareza, a coerência, a possibilidade de obediência, a estabilidade e a congruência. Numa linha weberiana que ressalta como propriedades formais do direito a generalidade e a abstração, se pode destacar:

16 Cfr. RAWLS, J. Political Liberalism, p. 53. Rawls pretende que a nova formulação em Political

Liberalism possa encontrar apoio na própria A Theory of Justice. 17 Para ele, esses dois princípios atualizam a formulação kantiana do imperativo categórico

segundo a fórmula da humanidade, ou seja, aquela de tratar o homem sempre como fim, o que não significa tratar a todos segundo os mesmos princípios gerais, pois isso tornaria o seu conceito equivalente àquele da justiça formal [cfr. RAWLS, J. A Theory of Justice, p. 156 -7]. Evidentemente, o utilitarismo como princípio substantivo, não respeita o homem como fim,

18 Cfr. FULLER, L. The Morality of Law. Chicago: Chicago University Press, 1969.

Justiça Processual e Substantiva 135

- a positividade, segundo a qual o direito seria estatuído, ao contrário da moral que não portaria essa certeza;

- a legalidade, segundo a qual o direito prescinde do comportamento ético;

- e a formalidade, a qual implica em normas neutras eticamente, estabelecendo um espaço para a liberdade de arbítrio, segundo a regra "o que a lei não proíbe, ela permite".

Tal formulação pode ser resumida no epíteto "características semânticas do direito", quais sejam, abstração e generalidade.19 De fato, não que não se possa fazer uma lei para um caso, mas se esta se tornasse a prática do direito, ele se tornaria irracional. Em última análise, tal estratégia argumentativa finca pé na tradição kantiana de compreensão do direito, tornando possível falar de uma forma do direito, a qual, esculpida nas oficinas do kantismo, corresponde, mutadis mutandis, ao conceito de legalidade em Weber.

Na formulação de Rawls, quando uma certa concepção de justiça assume o papel da justiça, definindo direitos e deveres fundamentais, determinando a distribuição de recursos e oportunidades e é aplicada imparcial e consistentemente, tem-se, então, a justiça formal. A justiça formal, assim, independe de princípios substantivos. Ela é aplicada igualmente, mesmo que seus princípios substantivos possam ser injustos, como em um sistema discriminatório. Essa igualdade está implicada na própria noção de direito.20 Cabe observar que mesmo essa justiça exclui formas significantes de injustiça, pois, através da imparcialidade exigida, ela assegura a segurança. Mesmo com leis injustas é melhor que elas sejam consistentemente aplicadas, pois isto é melhor do que a arbitrariedade.

De fato, Lon Fuller defendia que a justiça substantiva e a formal caminhavam juntas, pois regras injustas dificilmente seriam aplicadas imparcial e consistentemente, pois a vagueza das leis deixaria espaço para a arbitrariedade no caso particular. Portanto, onde o Estado de direito é respeitado e há segurança jurídica,

19 Cfr. HABERMAS, J. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I], p. 135, 137. 20 Cfr. Cfr. RAWLS, J. A Theory of Justice, p. 50-1.

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igualmente se encontra justiça substantiva, ou seja, reconhecimento de direitos e liberdades dos outros e distribuição eqüitativa de bens.

A classificação rawlsiana das justiças processuais

Uma das formas de caracterizar a teoria de Rawls com relação ao tema desse estudo é utilizando a sua teoria dos procedimentos. De fato é ele próprio quem afirma que seus dois princípios de justiça expressam uma concepção processual de justiça.21 Nesse particular, podemos estabelecer o seguinte gráfico: Critério Procedimento

Justiça processual perfeita

Dispõe do critério e do procedimento

Eficiência Mercado22

J eqüidade

??maioria23 constituição/estágio 2

Utilitarismo24 ??

Justiça processual imperfeita

Tem o critério, mas não o procedimento Punir autor crime ??processo penal25

[ganhador] Aposta26

[P1 e P2 ] – estágio 1 Posição original27

Justiça processual pura Resultado sempre

correto [distribuição] mercado28

Justiça processual quase-pura

[Habermas29] Resultado nem sempre

é correto

Aplicação de P2 no estágio 3

Maioria30

21 Idem, p. 78. 22 Idem, p. 316. 23 Idem, p. 311, 316. 24 Idem, p. 77. 25 Idem, p. 75. 26 Idem, p. 75. 27 Idem, p. 75, 104. 28 Nozick. Cfr. PARIJS, P. van. Qu’est-ce qu’une société juste? Introduction à la pratique de la

philosophie politique. Paris: Seuil, 1991, p. 196.

Justiça Processual e Substantiva 137

Na justiça processual perfeita, aa] sempre há um critério independente do procedimento do que seja uma divisão eqüitativa, bb] há um procedimento do qual sempre o resultado é eqüitativamente aceitável, ou seja, uma divisão igual. Por exemplo, se o critério for dividir um bolo eqüitativamente, poder-se-ia perguntar qual o procedimento que poderia dar este resultado? Segundo Rawls, o procedimento para tal consiste na regra segundo a qual aquele que for fazer a divisão fique com o último pedaço. Isso assegurará que ele o fará por igual, pois agirá segundo o seu interesse de ter a sua parte.31 Ora, o procedimento eqüitativo transporta sua eqüidade para o resultado.

Na justiça processual imperfeita, por mais perfeito que seja o procedimento não há como garantir, por exemplo, no processo criminal, que somente resultem condenados que realmente cometeram crime. Embora haja o critério independente, condenar os que cometeram crime, não há um procedimento que o garanta.32

Na justiça processual pura, não há critério independente para o resultado justo, mas há um procedimento correto, ou eqüitativo, que dá ao resultado a mesma característica de correção ou eqüidade do próprio procedimento. Ex.: aposta.33

Na justiça processual quase-pura, quase sempre o resultado obtido por maioria é justo, por exemplo, aqueles resultados obtidos segundo o princípio da diferença.34

Evidentemente, o próprio utilitarismo não interpreta a estrutura básica como um esquema de justiça processual pura, pois há o critério independente da maior satisfação possível, sendo, portanto, um caso típico de justiça processual imperfeita.

O interessante na caracterização de Rawls de sua própria teoria é que para ele a posição original dá a qualquer acordo a

29 A teoria de Habermas seria um caso de justiça processual quase-pura, pois embora do

procedimento nem sempre resulte normas justas, no entanto, elas já trazem com isso a marca de uma legitimidade, visto não existir uma outra forma de avaliar. Parijs discorda PARIJS, P. Van, op. cit., p. 80. Segundo ele, o procedimento em Rawls permite chegar a um acordo e não descobrir uma teoria pré-existente, sendo este último o caso de Habermas. Se a situação discursiva for tomada como idealizada, então, seria uma teoria pura.

30 Cfr. RAWLS, John. A Theory of Justice, p. 318. 31 Idem, p. 74. 32 Idem, p. 75. 33 Idem. 34 Idem, p. 176, 316.

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eqüidade. A justiça como eqüidade é hábil para usar uma justiça processual pura desde o início. No entanto, ele observa que é uma situação puramente hipotética só no sentido que explicita nosso senso de justiça.

Se por um lado a justiça processual pura é a base da teoria, por outro lado é no sentido de ser um guia para a intuição. Tanto que para ele a posição original leva à unanimidade, pois as diferenças não são conhecidas e todos são igualmente racionais. Ele chega a afirmar que uma tal formulação não é estranha à teoria moral, por exemplo, àquela de Kant.35 Este de fato afirma uma moral válida para todo ser racional e direitos que ninguém poderia deixar de dar sua adesão: “todo homem tem os seus direitos inamissíveis a que não pode renunciar, mesmo se quisesse”.36 Ou seja, trata-se da “validade dos direitos inatos inalienáveis e que pertencem necessariamente à humanidade”.37

Na verdade, nos regimes constitucionais e políticos, a justiça processual perfeita é um ideal que nunca se realiza adequadamente. O máximo que se consegue é chegar a um esquema de justiça processual imperfeita.38

Justiça política e constituição: os quatro estágios de Rawls

A vertente processual da postura rawlsiana se mostra não

só no domínio da posição original, mas também na etapa constitucional. Nesse sentido, uma constituição justa deveria ser um procedimento justo para assegurar resultados justos. É numa perspectiva típica de um procedimento que ele apresenta sua tese dos quatro estágios como instrumento para aplicar os princípios de justiça:

estágio 1: na posição original são escolhidos os princípios

de justiça como critério independente, onde é exigida unanimidade;

35 Idem, p. 104, 118, 120, 233. 36 Ak VIII 304 37 Ak VIII 351. 38 Cfr. RAWLS, John. A Theory of Justice, p. 173.

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estágio 2: na convenção constitucional se aplica o princípio da igual liberdade, tendo em vista que este princípio requer poucas informações, ele exige maioria, eventualmente qualificada;

estágio 3: é o estágio da legislação ordinária, onde se aplica o princípio da diferença, visto este requerer muito mais informações e debate do que o princípio da igual liberdade, exige maioria simples;

estágio 4: trata-se da aplicação a casos particulares, aplicação esta feita pelos cidadãos, juízes e pelos membros do executivo.39

Para Rawls, portanto, a constituição é um caso de justiça

processual imperfeita. A sua função é estabelecer a justiça política, ou seja, explicitar o significado de liberdade igual para a parte política da estrutura básica. Trata-se da liberdade igual aplicada ao procedimento político, onde a participação igual de todos é o modo de se preservar a representação igual da posição original também nesse nível, onde a falta de unanimidade é devida, segundo ele, às circunstâncias da justiça.40

A mencionada igualdade política significa, concretamente, “um eleitor, um voto”. Tal liberdade será tão mais extensa quanto mais forte for a regra da maioria. Princípios como a separação de poderes, pesos e contrapesos, direitos com controle de constitucionalidade, são limitações à extensão do princípio da participação por maioria, visto ser restringida por tais mecanismos do constitucionalismo.41

Com relação aos fundamentos do liberalismo constitucional de Rawls e sua relação com a defesa de direitos sociais vale a pena mencionar o que ele sustenta. Em Political Liberalism, no § 5, da Lecture VI, Rawls defende como matéria constitucional dois domínios: aquele dos princípios que definem liberdades e direitos básicos iguais, os quais instituem antes de tudo um procedimento político justo, e aquele dos princípios que definem a justiça social e econômica. No entanto, ele afirma, não só ser mais fácil determinar aqueles, como mais urgente. Com relação aos últimos,

39 Idem, p. 174-5. 40 Idem, p. 194-6 41 Idem, p. 197, 200.

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certamente é necessário que haja algum princípio que defina oportunidades, mas, Rawls, por ser cético com relação a um possível acordo em relação a tal tema, como também por considerá-los menos urgentes, desqualifica o seu próprio princípio 2 de justiça – que inegavelmente versa sobre tal assunto – como sendo matéria constitucional, juntamente com outras formulações, como aquela que defende a igualdade de oportunidades eqüitativa. No máximo são matéria constitucional princípios como liberdade de movimento e liberdade de escolha de profissão.

A facilidade de acordar princípios da primeira espécie reside, quiçá, no caráter mais determinado deles do que os da segunda espécie, para os quais a formulação puramente principiológica é claramente insuficiente, visto o próprio Rawls ter adentrado numa formulação mais específica dos mesmos, o princípio 2 de justiça, formulação tão mais específica que leva à sua não habilidade de entrar no desenho da constituição. Ademais, os da primeira espécie definem um processo político justo, o que justifica sua maior urgência, em razão da necessidade de mecanismos de deliberação. Em suma, apesar da modéstia liberal de Rawls com relação às matérias constitucionais, sua teoria tem o mérito de qualificar questões de justiça distributiva como sendo de justiça básica e como sendo de algum modo matéria constitucional.

A constituição, primeiro [só o primeiro passo], deve estabelecer um procedimento, até aqui sem restrições a seus resultados. O segundo princípio não é incorporado à constituição, pois a história das constituições bem sucedidas sugere que princípios para regular desigualdades sociais e econômicas, e outros princípios distributivos, não são adequados como restrições constitucionais.42

Ademais, a posição de Rawls é interessante porque pode nos ajudar na resolução de um antigo problema do constitucionalismo, qual seja, aquele da distinção entre constituição em sentido formal e constituição em sentido material. Tal problemática diz respeito àquilo que deveria necessariamente, ou normativamente, fazer parte da constituição. Nesse ponto, uma das posições mais importantes é aquela defendida por Kelsen, segundo a qual o conceito legal de constituição no sentido material inclui 42 RAWLS, J. Political Liberalism, p 337.

Justiça Processual e Substantiva 141

somente "the rules that regulate the creation of general norms".43 Uma tal formulação, por um lado, se aproxima de algum modo daquela de Rawls e mesmo de Habermas. Isso ocorre porque o proposto por eles remete a regras procedimentais. Como veremos, tais regras de procedimento são aquelas que estruturam a democracia, ou seja, trata-se de um procedimento democrático. Por outro lado, ela se afasta daquela formulação, pois não se trata do direito albergar qualquer procedimento. Em outras palavras, as regras que regulam a criação de outras regras precisam elas próprias receberem a marca da legitimidade. O próprio procedimento precisa vir marcado pela legitimidade, caso contrário não se teria a mínima expectativa de que poderiam resultar conteúdos legítimos. Uma tal colocação passa muito longe daquilo que o conceito legal de constituição de Kelsen propusera. Tais teses podem ser claramente vislumbradas em Rawls e Habermas.

Exemplo de garantismo substancialista no âmbito do direito: Ferrajoli

Ferrajoli adere à tese de que o Estado legal é apenas uma

etapa, necessária, mas não suficiente, do sentido normativo do Estado de direito. A legalidade e seu efeito racionalizador tem que ser complementada por determinações conteudísticas, materiais. Esse passo é feito pela positivação dos direito naturais. Esse fator determina a obsolescência da oposição entre direito positivo e direito natural, pois os direitos naturais passaram não só a ser vínculos de legitimidade externos, mas também internos. Com a positivação desses princípios, a legitimidade passa a depender, não só da conformidade formal com procedimentos de sua produção, mas, também, da conformidade substancial com princípios superiores positivados; ou seja, a validade de uma norma não se confunde com a sua existência jurídica44. Esse, segundo Ferrajoli, é o elemento mais marcante do Estado constitucional de direito. Isso implicará a nulidade de leis, não só sob o aspecto formal, mas, principalmente, substantivo.

43 KELSEN, H. General Theory of Law and State, p. 124. 44 Cf. FERRAJOLI, L. Derecho y razón: teoría del garantismo penal, p. 355.

Delamar José Volpato Dutra 142

Ferrajoli distingue os seguintes conceitos: a. vigência-existência-eficácia: validade formal, norma

positiva; b. validade: validade substancial;

Validade e vigência confundem-se no Estado absoluto,

segundo a máxima de Ulpianus quod principi placuit legis habet vigorem. Num tal sistema, é delito o que agrada ou desagrada ao soberano. Já, no Estado de direito, há uma separação, de tal forma que a validade será, antes de tudo, uma validade substantiva referente a valores já positivados, os quais proíbem ou garantem.45 Isso determina um imbricamento entre normas inferiores inválidas e normas superiores ineficazes. Esse tipo de problemática não há nos estados absolutos.

Ao contrário de Habermas46 para quem o processo justifica determinados conteúdos, Ferrajoli mantém a posição que o procedimento de gestação de normas que ele nomina de direitos formais atendem só à vigência das leis, ao passo que os substanciais é que determinam a validade.47

A versão habermasiana da legitimidade pelo procedimento no âmbito do direito

Na história da construção do Estado de Direito, cada etapa

percorrida visa a resolver uma disfunção existente na etapas anteriores. E cada etapa engendra um efeito colateral decorrente de seu próprio funcionamento, que determina que se tenha que buscar uma nova formulação capaz de dar conta desse efeitos colaterais. Assim, na primeira etapa, o Estado surgiu para garantir o âmbito do mercado. No entanto, esse primeiro momento gerou o superdimensionamento do Estado, problemática essa que veio a ser resolvida pelas etapas seguintes, as quais geraram, por sua vez, 45 Cf. FERRAJOLI, L., op. cit., p. 363. 46 Para uma melhor compreensão da posição de Habermas ver A fundamentação discursiva do

estado de direito como imperativo categórico e como imperativo hipotético, do mesmo autor do presente escrito.

47 Cfr.FERRAJOLI, L. Derechos y garantias: la ley del más débil, p. 23.

Justiça Processual e Substantiva 143

efeitos colaterais, como o problema das minorias ou o poderio do mercado sobre os processos democráticos do Estado de direito democrático. Na etapa do Estado do bem-estar social, temos o problema do paternalismo.

A solução dessa cadeia de problemas só pode acontecer se tomarmos as etapas figurativas do Estado de direito numa perspectiva procedimental e não substancialista. Essa formulação atualiza, de alguma forma, a crítica de Weber à materialização do direito. Só que para Weber, tal materialização implicava numa perda de racionalidade, já que se perdia o caráter próprio da racionalidade do direito, qual seja, a sua formalidade. Melhor dito, para Weber, todos os conteúdos jurídicos remetiam a valores, os quais se ancoravam em formas de vida tradicionais e, portanto, numa vida ética, cuja racionalidade não podia ser apresentada. Habermas, ao acreditar uma formulação racional também para a moral, já que se apresenta como um cognitivista, vai apresentar uma cognição normativa possível para a moral. Nesse sentido, a sua tese é que Weber foi incapaz de ver uma racionalidade procedimental e, portanto, formal, para a moral. Tal decorre de sua concepção reducionista de ação racional, como voltada só para os meios e não também para os fins. Ora, concebido de modo procedimental, as conseqüências perversas da materialização do direito podem ser atenuadas por um processo autocorretivo, a partir da racionalidade comunicativa, na qual os sujeitos não só destinatários de direitos, mas seus autores.

Passando pelo processo de racionalização, a sociedade moderna desqualifica todas as legitimações substantivas, restando, portanto, como última ratio, o procedimento legal mediante o qual se chega às normas. O direito exige uma justificação pós-tradicional. Em Teoria da ação comunicativa [1981] e em Direito e moral (Tanner Lectures, 1986)48 Habermas busca mostrar como, apesar da negativa de Weber, a motivação da decisão no procedimento legal

48 O modo como Habermas concebe a relação de complementaridade entre direito e moral muda

em Direito e democracia. A mudança dá-se porque, nesta obra, Habermas determinará uma diferenciação entre as razões morais e as razões jurídicas, as quais são mais amplas do que as razões morais, não podendo ser reduzidas a essa. Essa nova formulação remete a uma compreensão do princípio do discurso neutro com relação à moral e ao direito. Inicialmente, Habermas dera uma conotação moral a tal princípio.

Delamar José Volpato Dutra 144

remete a uma questão de valor.49 Weber não teria percebido que a justificação procedimental legal remete a determinações morais. Weber não teria percebido, também, que a própria moral passou por um processo de racionalização que a retirou do solo dos valores, elevando-a para um patamar pós-tradicional, onde ela julga a partir de princípios. A noção de direitos fundamentais e de soberania popular seriam as expressão dessa moral de princípios.50

Nesse sentido, a crença na legitimidade da legalidade só pode ter por base uma justificação de tipo prático-moral.51 Por essa formulação de Habermas “a fé na legalidade de um procedimento não pode engendrar legitimidade per se, isto é, somente em virtude da correção procedimental”.52 A fé na legalidade é uma crença dependente de uma justificação moral53, a qual, em todo caso, deve ser, ela própria, entendida em termos processuais e não substantivos.

Já, em 1986, Habermas ensaiava uma insipiente diferenciação entre o procedimento jurídico e o moral de forma mais favorável ao direito, pois o mesmo podia dispor de critérios de avaliação institucionalizados, ao passo que a moral não. O procedimento é marcado pela fragilidade, pela não infalibilidade, pela não univocidade, nem prazo para chegar a um resultado. Só há procedimentos falíveis para fundamentar normas.54 A moral sublimou-se num procedimento, despojando-se de conteúdos determinados.

Assim, a Filosofia do Direito habermasiana tem no conceito de legitimidade a sua clef de voûte. É nesse sentido que Habermas busca construir um procedimento de gestação de conteúdos legítimos, dado pelo princípio da democracia. O princípio da democracia é vertido no sistema de direitos, resultante da aplicação do princípio do discurso sobre a forma jurídica e da institucionalização jurídica do princípio do discurso. O sistema de direitos forma condições possibilitadoras da gestação de conteúdos legítimos. Eles estão vertidos no código do direito, mas são ainda

49 Cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunicativen Handelns. (I), p. 194. 50 Idem, 1 338, 340. 51 Idem, p. 1 343. 52 Idem, p. 344. 53 Cf. HABERMAS, J. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II], p. 202. 54 Idem, p. 216-7.

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insaturados, tendo que ser determinados por cada sistema político que adote tais condições democráticas.

Essa forma democrática já contém algum conteúdo, traduzido nos termos que definem a própria democracia enquanto procedimento. No geral, esse sistema de direitos, o qual se constitui numa noção de soberania popular procedimentalizada, se identifica, no fundo, com o conjunto dos direitos liberais individuais e políticos. No entanto, exceto pela restrição da própria forma do procedimento democrático, o qual se traveste de um certo conteúdo, não é indicado mais nem um princípio substantivo. Desse modo, Habermas pretende evitar as críticas às teorias substantivas da justiça, seja aquelas provindas dos direitos naturais, seja dos direitos humanos. Objeções como aquela de Kelsen, segundo,o qual, como vimos, tais teorias não passam de uma forma vazia, que não dizem nada e não servem, no fundo, senão para justificar um certo conjunto de direitos historicamente constituídos.

Substância e procedimento

Ponto que merece destaque é o tratamento dado pelo próprio Rawls da correlação entre liberalismo e justiça substantiva. Segundo ele, o liberalismo tem que ser substantivo, e mesmo aquele de Habermas sê-lo-ia, embora os elementos substantivos sejam outros.55 Para ele, a diferença entre justiça processual e substantiva é aquela entre a justiça do procedimento e a justiça do resultado. Ambos exemplificam certos valores, os quais sempre dependem da justiça substantiva, como a imparcialidade. Logo, há uma conexão e não separação, entre justiça processual e do resultado.

Veja-se o debate entre democracia majoritária e democracia constitucional. Seja como for, há certos elementos que são essenciais à democracia, como o direito de votar, a regra da maioria, a liberdade política e de expressão, a cidadania. Na verdade, o debate dessas duas posições não versa sobre direitos básicos e liberdades claramente do procedimento, mas sobre liberdade religiosa, filosófica e liberdade de consciência. No fundo, a questão entre ambos é se providenciam um procedimento eqüitativo e protegem esses outros direitos e liberdades. Assim, os que 55 RAWLS, J. Political liberalism, p. 421.

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defendem a democracia majoritária acreditam que a regra da maioria é eqüitativa e constrói leis justas e resultados razoáveis.56 Os que defendem a regra da maioria não negam os direitos e liberdades básicas. Negam que restrições constitucionais sejam necessárias, pois o seu respeito depende do espírito do eleitorado.57 Os constitucionalistas dizem que isso é insuficiente.

Rawls, por seu turno, nomeia um conjunto de cinco valores substantivos que estariam na base da teoria processual, inclusive do próprio Habermas: imparcialidade, igualdade, abertura, ausência de coerção e unanimidade.58 Tanto que o próprio Habermas não nega o caráter substantivo de sua teoria, apenas diz ser menos substantiva do que a de Rawls, sendo, portanto, uma questão de grau. De fato, em Direito e democracia, Habermas defende a autonomia como um ponto dogmático.59

Uma tal posição faculta a Rawls diferenciar legitimidade de justiça, permitindo que, mesmo na ausência de um padrão estrito de justiça, seja possível a afirmação de que em um certo nível de injustiça se corrompe a legitimidade. Ou seja, a legitimidade tolera um certo grau de injustiça60, mas não um grau insuportável.61

Como mostrou Rawls, o problema da desobediência é conexo com o problema da democracia majoritária e com a distinção entre justiça e legitimidade. Ele define desobediência civil como "um ato público, não violento, consciente e, apesar disto, político, contrário à lei, geralmente praticado com o intuito de promover uma modificação na lei ou nas políticas do governo".62 É um ato político, cuja base deve residir nos princípios de justiça e não em qualquer outro fundamento. A desobediência presume um regime razoavelmente justo, pois se for injusto a reação será a resistência, ou a submissão. Ou seja, a desobediência não é armada, militar, mas, como o nome diz, civil.

56 Idem, p. 423. 57 Idem, p. 424. 58 Idem, p. 425. 59 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre faticidade e validade [v. II], p. 190. 60 RAWLS, J. Political Liberalism, p. 427s. 61 Nesse sentido a posição de Rawls avança com relação àquela de Kant que sustentava o “dever

do povo de suportar mesmo um abuso do poder supremo considerado insuportável” [Ak VI p. 320].

62 RAWLS, J. A Theory of Justice, p. 320.

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As razões da desobediência civil são restringidas por Rawls aos princípios de justiça, portanto, ao que concerne à liberdade e igualdade. Ela não deve ser usada, por exemplo, contra leis tributárias, a não ser que estas tenham como efeito ferir aqueles princípios de justiça indicados. Ela deve ser um recurso político extremo, quando os canais políticos normais estão fechados a certas demandas de justiça.

A desobediência civil tem como função, num regime democrático majoritário, se dirigir ao senso de justiça da maioria, noticiando que as condições de uma cooperação livre e igual estão sendo violadas. Nesse sentido, a desobediência civil é um mecanismo ilegal de estabilização do sistema constitucional, mantendo e fortalecendo instituições justas pelo apelo aos princípios políticos mais fundamentais de um regime democrático, de tal forma que tal protesto ilegal não fere os objetivos de uma constituição democrática, em razão dos princípios aos quais a desobediência civil apela. Rawls defende que o tribunal constitucional final seja o eleitorado como um todo.63 O desobediente apelaria a esse tribunal.

Na verdade, a regra da maioria é escolhida em razão da efetividade que ela opera, mas ela implica em risco com relação ao conhecimento e ao senso de justiça dos outros.64 Tal risco se mede pelo ter que respeitar regras injustas resultantes de tal procedimento, à condição que não ultrapassem um certo nível de injustiça, normalmente estabelecido pelos princípios de justiça. Nesse contexto é que a desobediência civil desempenha seu papel estabilizador na medida em que é mais um corretivo que acomoda as imperfeições do procedimento da constituição, por exemplo, quando esta sobrecarrega alguma minoria com uma injustiça, de tal forma que ela não seja eqüitativamente distribuída. Na verdade, mais do que um meio corretivo é o último meio de apelo ao que Rawls chamou de tribunal constitucional final. Assim, obedecidas as razões que autorizam a desobediência civil, ela encontra seu lugar num sistema baseado na justiça, recebendo o status de um verdadeiro direito de resistir ao uso ilegítimo da força.65 Pode-se

63 Idem, p. 342. 64 Idem, p. 312. 65 Idem, p. 342.

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afirmar que a desobediência civil encontra sua justificação numa concepção dinâmica do procedimento constituição que a vê como um projeto inacabado, falível e revisável.

Mesmo Kant, na Doutrina do direito66 que se opunha à revolução defende o que ele nomeia de resistência negativa. Tal resistência é característica do que ele chama de constituição limitada e deve ser exercida via parlamento, pela recusa deste em aprovar certos atos encaminhados pelo executivo. Ou, no máximo, pela liberdade de expressar publicamente sua crítica a tal injustiça, pelo princípio segundo o qual “a liberdade de escrever [...] constitui o único paládio dos direitos do povo”.67 Portanto, Kant não parece albergar a desobediência civil como um recurso da dinâmica constitucional, mesmo que seja derradeiro, mas remeter ao legislativo toda a possibilidade de "oposição" ao executivo. Ou seja, ao contrário de Rawls, Kant defende o “dever do povo de suportar mesmo um abuso do poder supremo considerado insuportável”.68

Para Rawls, a sustentação da desobediência pressupõe diretivas substantivas, como a recusa da escravidão e da servidão, a tolerância religiosa, a igualdade de gênero, a recusa da acumulação ilimitada de riqueza, a recusa da tortura, etc. São fundamentos de justiça substantiva que mostram o caráter ilusório de uma legitimidade, ou justiça, puramente processuais.69

O questionamento, portanto, reside em saber se a solução processual não adentra, no fundo, em questões substantivas. Tal parece ser, por exemplo, a posição de Dworkin. De fato ele acusa as versões processuais de serem enganosas por ocultarem decisões substantivas sob o manto do procedimento, parecendo que elas não foram tomadas, quando de fato foram.70 Segundo ele, sob o ponto de vista normativo, a distinção rígida entre substancialidade e procedimento é arbitrária71, pois o princípio da igualdade que está na base da democracia implica em elementos substantivos.72 Nesse sentido, Ely precisa de um argumento para distinguir questões de

66 Ak VI 322. 67 Ak VIII 304. 68 Ak VI 320. 69 RAWLS, John. Political Liberalism, p. 431. 70 Cfr. DWORKIN, R. A Matter of Principle, p. 34 71 Idem, p. 77. 72 Idem, p. 69.

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eqüidade do procedimento democrático do que seria justiça substancial, de tal forma que, se ele considerar a liberdade de expressão como base da democracia, então, poderia haver controle de constitucionalidade de atos contrários à liberdade de expressão. Mas, isso não poderia ser feito sem elementos substantivos73.

Portanto, é preciso determinar a imbricação entre a defesa processual que Habermas faz do controle de constitucionalidade e aspectos substantivos que parecem estar envolvidos no mesmo, visto ele próprio afirmar que "o projeto de realização do direito [Rechtsverwirklichung] [...] não pode ser meramente formal".74 Ou seja, o procedimento "não é completamente neutro normativamente. Ele é 'formal' ou neutro em um sentido que requer explicação".75 Dito de outro modo, o sentido performativo dessa prática não é neutro normativamente, pois já contém como coração doutrinário a idéia de Rousseau e Kant da autolegislação de cidadãos livres e iguais. "Essa idéia não é 'formal' no sentido de ser 'livre de valor'"76, só não se baseia em valores substantivos, mas nos valores do próprio procedimento, pois, de qualquer modo não há critério anterior ao procedimento.77 Nesse sentido, substância e forma interagem. No entanto, não há como estabelecer aquilo que opera como substância, senão no procedimento. É onde o argumento é demonstrado.

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escassez do tratamento dessa questão por Habermas no âmbito da aplicação do direito, quiçá seja produtivo estudar o assunto tendo em vista o debate entre Rosenfeld e Habermas sobre a relação entre determinações processuais e substantivas no âmbito da fundamentação de normas. Sobre isso ver a análise daquele em ROSENFELD, M. Can Rights, Democracy, and Justice Be Reconciled Through Discourse Theory? Refletions on Habermas's Proceduralist Paradigm of Law, p. 791-824 e a resposta deste em HABERMAS, J. Reply to Symposium Participants, Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 1503-13.

75 HABERMAS, J. Reply to Symposium Participants, Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 1505. 76 Idem, p. 1477-1557. p. 1505. 77 Idem, p. 1477-1557. p. 1507.

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