filosofia do direito

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D) FILOSOFIA DO DIREITO 1. O conceito de Justiça. Sentido lato de Justiça, como valor universal. Sentido estrito de Justiça, como valor jurídico- político. Divergências sobre o conteúdo do conceito. 2. O conceito de Direito. Equidade. Direito e Moral. 3. A interpretação do Direito. A superação dos métodos de interpretação mediante puro raciocínio lógico-dedutivo. O método de interpretação pela lógica do razoável. 1. Nomes 1.1. Antiguidade 1.1.1. Pré-Socráticos Os pré-socráticos não deixaram muita herança no estudo acerca da justiça. Poucos são os seus escritos encontrados; eles eram extremamente religiosos, acreditando que os deuses determinavam o destino de cada homem e como se esse fosse quase um mero coadjuvante desempenhando o papel que lhe era predestinado. Assim, nessa fase, com a mitologia grega, somente pelas histórias deixadas se chega ao conhecimento de um certo saber e noção de justiça, com as criações literárias de Homero (Odisséia, Ilíada) e de Hesíodo. 1.1.2. Sócrates Ao contrário dos sofistas, ele acreditava que era possível chegar ao conceito verdadeiro das coisas, ao pleno conhecimento. Justiça não seria algo relativo, mas sim algo fundamental, cujo conhecimento poderia ser alcançado através do diálogo. Seu método, então, era, por intermédio da retórica, fazer perguntas ao interlocutor e questionar as respostas, ao que se deu o nome de MAIÊUTICA. Para Sócrates, ética significava conhecimento. Só poderia ser ético quem tinha conhecimento, já que assim poderia discernir o bem do mal. E só poderia ter conhecimento quem fosse educado (paideia). A maior das virtudes, para Sócrates, é saber que nada se sabe. Ensina obediência irrestrita às leis, apesar de poderem ser justas ou injustas, pois é instrumento de coesão social, que visa a realização do Bem Comum.

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Page 1: Filosofia Do Direito

D) FILOSOFIA DO DIREITO1. O conceito de Justiça. Sentido lato de Justiça, como valor universal. Sentido estrito de Justiça, como valor jurídico-político. Divergências sobre o conteúdo do conceito.2. O conceito de Direito. Equidade. Direito e Moral.3. A interpretação do Direito. A superação dos métodos de interpretação mediante puro raciocínio lógico-dedutivo. O método de interpretação pela lógica do razoável.

1. Nomes1.1. Antiguidade1.1.1. Pré-SocráticosOs pré-socráticos não deixaram muita herança no estudo acerca da justiça. Poucos são os seus escritos encontrados; eles eram extremamente religiosos, acreditando que os deuses determinavam o destino de cada homem e como se esse fosse quase um mero coadjuvante desempenhando o papel que lhe era predestinado.

Assim, nessa fase, com a mitologia grega, somente pelas histórias deixadas se chega ao conhecimento de um certo saber e noção de justiça, com as criações literárias de Homero (Odisséia, Ilíada) e de Hesíodo.

1.1.2. SócratesAo contrário dos sofistas, ele acreditava que era possível chegar ao conceito verdadeiro das coisas, ao pleno conhecimento. Justiça não seria algo relativo, mas sim algo fundamental, cujo conhecimento poderia ser alcançado através do diálogo.

Seu método, então, era, por intermédio da retórica, fazer perguntas ao interlocutor e questionar as respostas, ao que se deu o nome de MAIÊUTICA.

Para Sócrates, ética significava conhecimento. Só poderia ser ético quem tinha conhecimento, já que assim poderia discernir o bem do mal. E só poderia ter conhecimento quem fosse educado (paideia).

A maior das virtudes, para Sócrates, é saber que nada se sabe. Ensina obediência irrestrita às leis, apesar de poderem ser justas ou injustas, pois é instrumento de coesão social, que visa a realização do Bem Comum.

Porém, essa era a concepção individual de ética. Na concepção coletiva, Sócrates tinha como ético o agir conforme as leis da Pólis. E essa ética, para ele, estava acima da individual. Provou isso com sua morte.

1.1.3. PlatãoDiscípulo de Sócrates, escreveu aquelas historinhas bobas do mito da caverna.

Fora isso, acreditava e defendia que a sociedade justa seria uma idealizada, à qual se chegaria despindo-se o homem do véu da ignorância.

Platão defendia que cada pessoa tinha uma aptidão. Que haveria justiça quando cada um exercesse a sua na sociedade, de acordo com sua natural designação. Assim, o papel do homem já era pré-determinado.

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Segundo ele, a sociedade ideal seria a comandada pelos filósofos, os sábios, seguidos pelos guerreiros e, por fim, na base da pirâmide social, pelos trabalhadores. Vê-se desde aquela época que o corporativismo era descarado.

Ele era tão radical nesse pensamento que entendia ser legítima a intervenção do Estado para “adequar” o homem ao seu papel. Ou seja, se um trabalhador tentasse ser filósofo, poderia vir a ser coativamente “reabilitado” pelo Estado.

Bom, Platão quebrou a cara com o caso “Dionísio de Siracusa”. Ele foi chamado para ensinar a esse guri as virtudes de um governante, como ser um filósofo. Após anos de ensinamentos, o rapaz cresceu e virou um dos mais vis e cruéis governantes da idade antiga. Tragicômico.

Ética: ser ético é ter racionalidade despida de interesse próprio.

1.1.4. AristótelesAristóteles foi um grande sujeito. Trouxe alguma luz ao mundo naquela época.

Aspectos sociológicos

No que se refere à sociologia, ele fez um amplo estudo em mais de 150 pólis da Grécia antiga para ter uma base empírica dos fenômenos jurídico-sociais normalmente observados em todas. Tais estudos foram consolidados na obra “Política”.

Nesse livro ele traçou a teoria das formas de governo, ao descrever possíveis formas de governo:

FORMAS PURAS FORMAS IMPURAS (DEGENERAÇÕES DAS PURAS)Monarquia TiraniaAristocracia OligarquiaDemocracia Demagogia

Aristóteles entendia que as formas de organização da sociedade não eram ideais, mas fáticas, e que os modelos bons poderiam se degenerar para os ruins. Vê-se, pois, que ele tinha um pensamento mais zetético, voltado à realidade.

Trouxe ele também claramente a ideia de que o homem é um “animal” político, que precisa se relacionar para sobreviver.

Aspectos filosóficos

Ética: para Aristóteles, ética é a ciência prática, o agir humano que diferencia o bom e o mau, o justo do injusto. A ética não pode ser vista como uma ciência exata, dogmática, visto que seu estudo está marcado pela preocupação de definir, mas sem constranger, conceitos, dando margem de variabilidade de acordo com as características próprias de cada indivíduo. Ser ético é ser virtuoso, alcançar a virtude através da razão.

Justiça: Aristóteles defendia que o homem deveria ser virtuoso. E o que é virtude? Virtude é o agir com moderação, atuar no meio termo dos extremos. Pois bem, e o que era justiça para ele? Justiça é o agir com cooperação interpessoal. Não se trata de algo individual, mas algo

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essencialmente social, que se manifesta nas relações entre os homens. Como se concretiza a justiça? Pelo alcance da igualdade. Ele via a justiça em duas acepções, justiça particular (justiça na relação entre as partes) e justiça universal (justiça que envolve o todo, ou seja, a legislação e toda comunidade por ela protegida). A justiça particular podia ser:

a) Justiça particular comutativa ou corretiva : trata-se da justiça entre particulares, entre pessoas que atuam com coordenação, sem diferenciações hierárquicas, a qual deve ser concretizada de forma simples ou aritmética. Os ganhos e perdas das partes devem ser iguais, não importando o mérito individual. Esse justo conduz à noção de reciprocidade proporcional das forças dentro da malha social.

b) Justiça particular distributiva : trata-se da justiça entre sociedade e particulares, não devendo ser implementada de forma direta, e sim proporcional. Nela se insere a importância do mérito (avaliação subjetiva do merecimento ou não de benefícios) para se fixar a justiça na distribuição dos bens. Aristóteles reconhecia que o mérito era um valor variável, conforme o sistema político adotado.

Para se completar a teoria da justiça em Aristóteles, ele agregou o elemento da equidade em sua concepção. Equidade significaria avaliar o justo no caso concreto, visto que a lei possui um caráter geral e abstrato. Assim, equidade é a correção dos rigores da lei; a falta de equidade pode levar à injustiça por meio do próprio justo legal. Não se trata, pois, de um problema de erro legislativo, mas simplesmente de uma impossibilidade fática de se minudenciar exaustivamente a legislação.

a) Justiça em sentido amplo ou universal (justo total) : refere-se ao cumprimento das leis do Estado. Significa a observância do que é regra social de caráter vinculante. Realiza-se a justiça com a conformação do ato humano à lei. Assim, nessa acepção, justiça e direito, e legalidade, se confundiriam. Os antigos não concebiam a existência de uma lei injusta. Se era legal, era justa.

b) Justiça em sentido estrito ou particular : aquela que permite distribuir de modo justo os bens da sociedade (corresponde à justiça comutativa + justiça distributiva).

Ligando justiça, ética e equidade: para Aristóteles, ser ético é agir com virtude; ser virtuoso é ser moderado; ser justo é praticar reiteradamente (com ética, habitualmente) atos virtuosos, atos voluntários de justiça. Não basta, pois, o conhecimento teórico do que seja justo.

Por fim, trazendo para o presente as ideias do filósofo, uma grande colaboração que ele deu foi fornecer os fundamentos filosóficos para as AÇÕES AFIRMATIVAS, visto que elas se assentam na distributividade de bens sociais.

1.1.5. SofistasOs sofistas representaram a ruptura com o pensamento mitológico dos pré-socráticos, voltando o pensamento dos deuses para os homens. Famosa frase: “o homem é a medida de todas as coisas”.

Os sofistas romperam com a herança cultural pré-socrática ao voltar a filosofia para o estudo do homem, como ser individual e social, colocando-se como radicais opositores da tradição,

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sobre definições absolutas, conceitos fixos e eternos, sobre tradições inabaláveis, com isso relativizando o conceito de justiça que é igualado ao conceito de lei, de legalidade.

Os sofistas, tais como Protágoras e Górgias, relativizaram a possibilidade de conhecimento, afirmando, no que se refere ao direito, que o senso de justiça não advém de deuses, mas sim do fruto das convenções humanas, variando com o tempo e com o imperativo das circunstâncias. Ademais, eles apontavam a identidade entre a legalidade e a justiça, de modo a favorecer o desenvolvimento de ideias que associavam à inconstância da lei a inconstância do justo.

Por passarem o foco ao homem, os sofistas foram tidos como os precursores da sociologia. Por intermédio do relativismo, eles inauguraram a crítica social, já que lançaram dúvidas sobre a capacidade de justiça da polis grega.

1.1.6. EstóicosTem como seu principal expoente Marcus Tullius Cicero (romano).

Ética: a ética estoicista é o agir humano que respeita o universo e suas leis cósmicas, além do respeito a si mesmo. Ela determina o cumprimento de mandamentos éticos pelo simples dever, não com vistas a um fim outro qualquer. É a ética do dever, não pelo temor reverencial, mas a vontade de praticar justiça (já sabemos de quem Kant copiou...).

1.2. Idade Média1.2.1. AgostinhoUm dos precursores do movimento chamado PATRÍSTICA, aqueles que desenvolveram os fundamentos da igreja católica romana.

Agostinho defendia uma concepção de justiça na qual tudo estava baseado na dicotomia bem/mal, alma/corpo, divino/humano, absoluto/relativo etc. Assim, se a lei humana se encontrasse desenraizada de sua origem, seu destino só pode ser o erro e o mau governo das coisas humanas. Se o homem, por outro lado, se deixar inspirar divinamente, seus atos e instituições prosperarão.

No entanto, apesar de imperfeitas, as leis humanas são a garantia da ordem social e, para serem chamadas em seu conjunto de Direito, devem estar minimamente aproximadas da justiça.

A justiça terrena é, na verdade, reflexo da cidade dos homens; essa concepção deverá imperar até o advento da Cidade de Deus, quando então haverá a ruptura com a presente ordem social.

Apesar de católico, Agostinho teve evidente influência do cristianismo verdadeiro.

1.2.2. Tomás de AquinoDeu grande contribuição para o desenvolvimento do direito e da sociologia.

Para ele, o papel do Estado é realizar o bem comum. Se não promover esse objetivo, não pode ser considerado como uma forma justa de organização do poder político.

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Aquino é um neoaristotélico, valeu-se de muitas das ideias daquele filósofo para justificar seus pensamentos. Ele foi o grande expoente da ESCOLÁSTICA, um movimento de racionalização do cristianismo com forte ênfase na dialética como método de conhecimento.

Em sua obra magna, a Suma Teológica, São Tomás partiu do pensamento Aristotélico, admitindo uma ordem natural do mundo, abaixo da ordem divina. Foi um teórico da igreja católica responsável por reabilitar a razão e a ciência como preocupações fundamentais.

O pensamento causal de Aristóteles serve para reenviar a Deus a origem do mundo, mas também para conferir certa autonomia à ordem natural.

Daí a distinção entre causas primeiras e causas segundas.

Na sua classificação das leis, São Tomás colocou no cume de todo o sistema legislativo a lex aeterna tomada de Santo Agostinho: razão de Deus ordenando o cosmos.

Porém o mundo possui uma ordem e uma natureza dadas por Deus. Cabe aos homens investigá-las e agir conforme os seus princípios. Essa é a base do direito natural tomista, a lei natural (lex naturalis).

A lei positiva (lex positiva) seria a forma humana de imitar a lei natural, codificando-a em normas de condutas e serem seguidas pelos cidadãos. Tanto mais justa será, quando mais próxima estiver da natureza humana.

“Assim, o direito é a um só tempo fruto da razão e da vontade: da razão, na medida em que deriva da ciência da natureza; da vontade humana, na medida em que o poder legislativo lhe acrescentou fixidez, forma escrita rígida, precisão”.

Dado o caráter errático da conduta humana, inclusive dos julgadores, não se poderia pressupor a existência de um julgamento sempre de acordo com a lei natural. Por isso a questão da lei e do julgamento injustos é trazida para evidenciar a precariedade da condição humana frente à ordem divina, mas, ao mesmo tempo, para demonstrar que isso não apaga ou exclui a necessidade dessa ordem dos homens, cujo sentido primordial seria a busca da virtude, o seu exercício cotidiano, e não mais uma predisposição inata apenas revelada aos "eleitos".

Justiça: em Aquino, a justiça consiste na disposição constante da vontade de dar a cada um o que é seu, segundo uma igualdade. Não respondeu, entretanto, o que era devido a quem. Ele é jusnaturalista, admite a existência de uma lei natural, a qual, entretanto, seria mutável.

Ética: ser ético é agir de acordo com os padrões divinos (ética teocêntrica).

A Teoria do duplo efeito é uma tese da filosofia moral, normalmente atribuída a São Tomás de Aquino. Ela visa explicar em que circunstâncias é permitido tomar uma ação tendo ao mesmo tempo consequências positivas e negativas (ou seja, um duplo efeito). Ela enuncia diversas condições necessárias para que uma ação possa ser moralmente justificada mesmo quando comporte um efeito ruim:

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A ação deve ser ela mesmo boa ou moralmente neutra; O efeito positivo deve resultar do ato e não do efeito negativo; O efeito negativo não deve ter sido diretamente desejado, mas deve ter sido previsto

e tolerado; O efeito positivo deve ser mais forte que o negativo, ou ainda, ambos devem ser

iguais.

Em suma, esta tese sustenta que existem situações onde é justificado produzir uma consequência ruim se ela é apenas um efeito colateral da ação e não intecionalmente buscado.

Um submarino é torpedeado em uma guerra. Um dos compartimentos começa a encher-se de água. O comandante imediatamente manda que fechem a escotilha, a fim de que a água não invada o restante da embarcação. Ao fazer isso, porém, dez tripulantes que estavam no compartimento torpedeado morrem afogados.

A ação de fechar a escotilha não é má em si, e nem sequer é praticada com má intenção. No entanto, ela terá como efeito inevitável a morte de dez tripulantes daquele compartimento, que serão afogados. A morte desses inocentes, causada indiretamente, não é um “meio” de salvar a embarcação. O meio é o fechamento da escotilha. Se, absurdamente, o comandante mantivesse a escotilha aberta, mas mandasse matar os dez tripulantes, não salvaria o submarino. Nesse exemplo, jamais se pode dizer que a salvação do submarino se deu por meio da morte de dez inocentes. A distinção entre meio e efeito é fundamental para que se resolvam certas questões cruciais da Bioética e do Biodireito. Muitos de nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados, mas inevitáveis. Ao tomarmos uma aspirina para curar uma dor de cabeça, podemos causar dano ao estômago. Ao corrigirmos o próximo, às vezes ele se sente humilhado ou envergonhado.

A questão do duplo efeito foi, inclusive, expressamente invocada no julgamento sobre o direito de greve dos servidores públicos:

EMENTA: RECLAMAÇÃO. SERVIDOR PÚBLICO. POLICIAIS CIVIS. DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. SERVIÇOS OU ATIVIDADES PÚBLICAS ESSENCIAIS. COMPETÊNCIA PARA CONHECER E JULGAR O DISSÍDIO. ARTIGO 114, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIREITO DE GREVE. ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEI N. 7.783/89. INAPLICABILIDADE AOS SERVIDORES PÚBLICOS. DIREITO NÃO ABSOLUTO. RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE GREVE EM RAZÃO DA ÍNDOLE DE DETERMINADAS ATIVIDADES PÚBLICAS. AMPLITUDE DA DECISÃO PROFERIDA NO JULGAMENTO DO MANDADO DE INJUNÇÃO N. 712. ART. 142, § 3º, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. AFRONTA AO DECIDIDO NA ADI 3.395. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA DIRIMIR CONFLITOS ENTRE SERVIDORES PÚBLICOS E ENTES DA ADMINISTRAÇÃO ÀS QUAIS ESTÃO VINCULADOS. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MI n. 712, afirmou entendimento no sentido de que a Lei n. 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, é ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis, mas ao Poder Judiciário dar concreção ao artigo 37, inciso VII, da Constituição do Brasil, suprindo omissões do Poder Legislativo. 2. Servidores públicos que exercem

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atividades relacionadas à manutenção da ordem pública e à segurança pública, à administração da Justiça --- aí os integrados nas chamadas carreiras de Estado, que exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária --- e à saúde pública. A conservação do bem comum exige que certas categorias de servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve. Defesa dessa conservação e efetiva proteção de outros direitos igualmente salvaguardados pela Constituição do Brasil. 3. Doutrina do duplo efeito, segundo Tomás de Aquino, na Suma Teológica (II Seção da II Parte, Questão 64, Artigo 7). Não há dúvida quanto a serem, os servidores públicos, titulares do direito de greve. Porém, tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum. Não há mesmo dúvida quanto a serem eles titulares do direito de greve. A Constituição é, contudo, uma totalidade. Não um conjunto de enunciados que se possa ler palavra por palavra, em experiência de leitura bem comportada ou esteticamente ordenada. Dela são extraídos, pelo intérprete, sentidos normativos, outras coisas que não somente textos. A força normativa da Constituição é desprendida da totalidade, totalidade normativa, que a Constituição é. Os servidores públicos são, seguramente, titulares do direito de greve. Essa é a regra. Ocorre, contudo, que entre os serviços públicos há alguns que a coesão social impõe sejam prestados plenamente, em sua totalidade. Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça --- onde as carreiras de Estado, cujos membros exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária --- e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito. Serviços públicos desenvolvidos por grupos armados: as atividades desenvolvidas pela polícia civil são análogas, para esse efeito, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve [art. 142, § 3º, IV]. 4. No julgamento da ADI 3.395, o Supremo Tribunal Federal, dando interpretação conforme ao artigo 114, inciso I, da Constituição do Brasil, na redação a ele conferida pela EC 45/04, afastou a competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos decorrentes das relações travadas entre servidores públicos e entes da Administração à qual estão vinculados. Pedido julgado procedente.

(Rcl 6568, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT VOL-02375-02 PP-00736)

1.3. Modernidade

1.3.1. Augusto Comte

Aspectos sociológicos

Considerado o pai da sociologia, Comte teorizou e dividiu a evolução da sociedade em três estágios (famosa Lei dos Três Estágios):

a) Religioso : sociedades primitivas, com organização social voltada à religião e à fé.

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b) Metafísico : sociedades que iniciam a racionalização do pensamento, mas ainda conservando grande parte de suas ideias espirituais, como na Grécia antiga.

c) Científico : racionalismo puro, que traria a “iluminação” para o homem.

No modelo do estágio científico europeu, a ciência seria uma visão empírica, concreta e experimental da sociedade. A sociologia seria o estudo objetivo do comportamento humano e das instituições sociais.

De acordo com a teoria Comtiana, o desenvolvimento da sociologia possibilitaria ao homem planejar de forma racional a vida social e trazer o conforto material e espiritual necessários. O estudo sociológico seria a solução de tudo, da fome, da pobreza etc.

Comte, entretanto, teve muita fé na sociologia, com base num cientificismo que, posteriormente, se mostrou irreal e em constantes ataques pelos céticos e pelos relativistas. Ele quis explicar a sociedade como se ela fosse uma máquina, sujeita a obviedades lógicas como teoremas matemáticos.

Sua proposta frutificou e ganhou grande espaço no Direito, com o positivismo jurídico, que durou, numa concepção pura, até o fim da 2ª GM, quando então declinou fortemente.

Os grandes opositores do positivismo (cientificistas) são os racionalistas (argumentativistas).

Aspectos jurídicos

Comte não deu atenção para o Direito. Por quê? Pois ele considerava que, com o desenvolvimento da sociologia, não seriam mais necessários direito, religião, moral ou qualquer tipo de conhecimento de base axiológica. A sociologia supriria tudo.

Assim, ele dedicou seu tempo a desenvolver aquilo que achava ser a solução de todos os problemas do mundo. Vê-se, pois, que foi muito tempo perdido.

1.3.2. Émile Durkheim

Aspectos sociológicos

Emílio centrou seus estudos nos fatos sociais.

O que é fato social?

Para Émile Durkheim, fatos sociais são "coisas". São maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo. Não podem ser confundidos com os fenômenos orgânicos nem com os psíquicos, constituem uma espécie nova de fatos. São fatos sociais: regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, maneiras de agir, costumes, etc.

“É um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior.”; ou ainda, “que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”. Ou ainda: todas as maneiras de ser, fazer, pensar, agir e sentir desde que compartilhadas coletivamente. Variam de cultura para cultura e tem como

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base a moral social, estabelecendo um conjunto de regras e determinando o que é certo ou errado, permitido ou proibido.

Para ele, o Direito seria apenas um fato social, o resultado do atuar da sociedade. Entretanto, seria distinto dos demais ante a maior força coercitiva que lhe é conferida. Todos os fatos sociais são coercitivos, já que condicionam e constrangem os indivíduos, psiquicamente, a atuar de tal ou qual modo. Por ter dado destaque ao direito, Durkheim é considerado o pai da sociologia do direito.

Assim, o direito é fato social acima dos demais por ter fundamento social capaz de impor sanções, perda de patrimônio e privação da liberdade, mais contundentes do que as sanções dos outros fatos sociais.

Emílio era um empirista, pregava o dever de neutralidade e afastamento axiológico do sociólogo.

Durkheim, para fundamentar sua teoria, fez a seguinte distinção:

a) Solidariedade mecânica : sociedades em que o indivíduo, considerado isoladamente, têm pouca importância, ele é apenas uma engrenagem social. O agir é mais coletivo, sendo as pessoas praticamente fungíveis entre si.

b) Solidariedade orgânica : fruto de sociedades mais desenvolvidas, nas quais a pessoa tem mais importância e uma maior influência social.

Qual a importância dessa bobagem? A evolução social levou o direito a ser bem mais restitutivo do que repressivo. Na sociedade mecânica, o indivíduo é mais fácil de ser cambiado por outro em suas funções. O Direito, especialmente o penal, teria, pois, a função de retirar da sociedade a engrenagem defeituosa. Já nas sociedades orgânicas, como o indivíduo possui mais valor, a sua retirada do meio social afetaria de forma mais contundente o todo orgânico. Assim, muito mais importante é a reparação do dano (fortalecimento da esfera cível) do que a pena pessoal. A preservação do indivíduo com suas funções preserva a sociedade. Logo, com a evolução da sociedade, o Direito passa a ser muito mais restitutivo do que repressivo.

1.3.3. Max Weber

Max Weber, contemporâneo de Durkheim, rompeu um pouco com a visão empirista do positivismo, defendendo que o sociólogo não poderia ter uma visão neutra e distante de seu objeto de estudo, antes deveria mergulhar no universo, adotando o método compreensivo para aprender.

Em Weber, o fato social perde importância em detrimento do AGIR SOCIAL, que seria o fato social culturalmente valorado. A ação social weberiana é o agir ordenado para o outro. Diferentemente do fato social de Durkheim, na ação social o sujeito é ativo e reativo ao próximo.

Para ele, existiam quatro tipos ideais de ações sociais:

a) Racional com relação a fins : quando o homem pensa racionalmente para decidir em vista da obtenção de determinado resultado;

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b) Racional com relação a valores : quando o homem não age orientado pelo resultado, mas por um valor relevante a si, como, v.g., o sentimento de justiça;

c) Social afetiva : condutas humanas movidas pelo sentimento.

d) Social tradicional : condutas humanas realizadas em decorrência de costumes ou hábitos.

Weber destacou a forte INFLUÊNCIA DA LEGALIDADE PARA A CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA, por ter proporcionado maior segurança e estabilidade, formando uma conjuntura propensa à burguesia.

No que se refere ao Estado, ele traz três espécies de legitimidades dos governantes:

a) Legitimidade carismática : baseada em qualidades pessoais do governante;

b) Legitimidade tradicional : ligada a valores históricos e tradição de um povo, como a hereditariedade;

c) Legitimidade legal-burocrática : referente à escolha dos governantes pelo povo e os procedimentos de escolha.

Weber também escreveu uma importante obra chamada “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, na qual tentou explicar como o surgimento do protestantismo e rompimento com o catolicismo permitiu também o cenário para o desenvolvimento econômico.

1.3.4. Maquiavel

Em sua obra “O Príncipe”, descreveu como o governante deveria fazer para chegar ao poder e mantê-lo. Ele fez um estudo realista sobre a virtude do governante, não uma virtude do “dever-ser”, dogmática, mas sim uma virtude como ela é, zetética.

Interessado no momento histórico pelo qual passava a Itália (que não era ainda unificada), utilizou-se de uma metodologia indutiva e empírica para explicar os diversos modos de manutenção e exercício do poder político.

A virtude, para ele, é exatamente isso, reunir as condições necessárias para ficar no poder. Elas poderiam ser várias, o carisma, a inteligência, a força; no entanto, se houvesse de ser feita uma escolha, sempre seria preferível ser odiado, mas ter força, do que ser amado, mas perder o poder.

Classicamente diz-se que Maquiavel defendia que o bem deveria ser administrado a conta-gotas, enquanto o mal, como um jato.

O colega era um pouquinho radical, como se pode ver. Suas ideias foram utilizadas, ainda que não de forma aberta, como base para fundamentar regimes tirânicos e despóticos; grande exemplo se pode citar com Stálin, que a pretexto de manter em funcionamento a sociedade soviética, eliminou mais de 50 milhões de pessoas.

Seria uma espécie de utilitarismo levado a extremo.

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1.3.5. Contratualistas

Os contratualistas deram importantes contribuições para a sociologia, para a política e para o Direito. Isso porque buscaram explicações teóricas sobre quais seriam os fundamentos da organização político-social do Estado, sobre como se daria o processo de legitimação da subordinação da maioria dos homens em detrimento de outros.

1.3.5.1. Thomas Hobbes

Hobbes, filósofo inglês do século XVII, imaginou que os homens, antes da criação do Estado, viviam no que ele chamava de “Estado da Natureza”. O Estado da Natureza, para ele, era um Estado de liberdade pura, absoluta, em que cada homem poderia fazer o que quisesse.

Assim, sempre prevaleceria a lei do mais forte, sendo clássica a frase de que o homem é o lobo do homem.

Ao escrever a obra “O Leviatã” (1641), ele afirmou que o Estado da Natureza é um Estado que conduziria à destruição humana, porque em um local em que cada um pode fazer tudo, em que a liberdade é absoluta, não há necessidade de se respeitar o outro. Ninguém pode ter um direito subjetivo contra a liberdade absoluta e o uso da força, porque aquele que tem a força simplesmente não respeita o direito.

O Estado de Natureza é aquele que leva ao caos e à destruição do próprio ser humano. Quando os homens despertam para isso, eles passam a exercer o seu extinto de preservação.

E como o homem se preserva? Com a criação do contrato social que origina o Estado.

Para ele o Estado é criado por um contrato social em que cada ser humano entrega a sua liberdade em troca de paz e segurança. Para Hobbes, então, o Estado é o somatório das liberdades individuais que foram entregues quando o homem quis sair do Estado caótico da Natureza.

O problema é que o Estado que nasce desse contrato social, na ideia do Thomas Hobbes, é um Estado de Sujeição, em que o Estado sujeita o indivíduo a partir do momento em que ele passa a existir.

É por isso que vários regimes de força encontram apoio na ideia de Thomas Hobbes, quando ele afirma que depois que o homem entrega a sua liberdade, cabe ao Estado garantir a paz e a ordem. E as ações do Estado são irresistíveis ao homem, porque o homem já não tem mais a liberdade, se ele entregou essa liberdade para o Estado.

Direitos fundamentais e contratualismo em Hobbes: em Hobbes, como o objetivo do Estado é a sobrevivência da raça humana, praticamente não existem direitos fundamentais. O homem cede quase toda sua liberdade para viver em paz. No “Leviatã”, há uma mínima passagem que reconhece um direito ao homem oponível contra o Estado, que seria o direito de resistência para preservar sua vida.

Como se pode facilmente perceber, o camarada não era muito fã da democracia. O Estado, após criado, virava um monstro.

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1.3.5.2. John Locke

Locke é um autor mais moderado do que Thomas Hobbes. Ele baseia sua obra também no contrato social, mas afirma que antes do Estado, o homem não vivia no caos. O homem se organiza naturalmente. Para Locke, jamais houve o Estado de Natureza na concepção hobbesiana.

Em Locke já era possível, por exemplo, exercer a propriedade no Estado da Natureza, só que nesse Estado havia algumas questões que não eram resolvidas. Por exemplo, quem poderia resolver as questões dos conflitos de interesse? Quem estaria legitimado para exercer o poder de polícia? Eram questões não resolvidas, motivos pelos quais o homem sentiu necessidade de criar o Estado.

Então, na principal obra do John Locke, “II Tratado sobre o Governo Civil” o Estado da Natureza não é um Estado de caos e já existem direitos que podem ser exercidos; além disso, o Estado não é um Estado Sujeição, mas um Estado de Cooperação.

Locke afirma o seguinte: o homem para criar o Estado não entrega a sua liberdade toda, mas parte dela. Isso faz toda a diferença, até para a teoria dos Direitos Fundamentais.

Como o homem entregou parte de sua liberdade para a criação do Estado, a parte não entregue corresponde exatamente aos direitos não passíveis de serem renunciados, os direitos da personalidade, os direitos fundamentais. Nisso vê-se que em Locke, ainda que não tenha ele afirmado expressamente, o rol de Direitos Fundamentais é um rol declaratório, de algo que já existe antes do Estado.

Então, o que justifica que o homem exerça o direito em face do Estado (que é a própria concepção de direitos fundamentais, pelo menos de primeira geração, que são direitos que são exercidos em face do Estado – pois ele que é o opressor dos direitos de primeira geração) é a compreensão de que o homem não entregou toda a sua liberdade para a criação do Estado, mas parte dela.

Locke também traz nessa obra a ideia de separação de poderes. Em geral, quando se estuda separação de poderes, todo mundo começa falando em Montesquieu. Só que o Locke, que escreveu 50 anos antes de Montesquieu, já começa a falar em separação de poderes.

Suas ideias, entretanto, não foram consagradas porque sua tripartição se baseia nos podres Executivo, Legislativo e Federativo. Como o que acabou prevalecendo na teoria da separação de poderes foi a ideia de Montesquieu, quando se começa a falar em separação de poderes, todo mundo começa a falar em Montesquieu.

Interessante também notar que o homem, por ceder parcela de suas liberdades ao Estado tão somente para que este administre o que é coletivo, possui plenamente a legitimidade para engatilhar processos revolucionários quando os governantes não agem de acordo com o motivo do contrato social.

1.3.5.3. Jean-Jacques Rousseau

Rousseau, diferentemente de Hobbes, afirmava que o homem, antes do contrato social, vivia no Estado da Natureza feliz, alegre e saltitante, desfrutando de liberdade e igualdade. Sem

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comandos políticos, o homem vivia no livre exercício de seus direitos naturais, em uma Idade de Ouro, onde não havia propriedade privada nem corrupção.

A desarmonia teria surgido quando alguns homens, prevalecendo de sua força, impuseram o domínio. De acordo com ele, a sociedade civil surgiu quando o primeiro indivíduo fez um cercadinho, bateu uma laje e bradou: “isso me pertence”.

Em sua obra “O Contrato Social” (1.762), o homem, visando recuperar seu bem estar primitivo, teria transferido seus direitos naturais ao Estado em troca de direitos civis (vê-se aqui a dualidade rousseauniana entres direitos naturais e direitos civis, sendo que estes somente seriam justos e legítimos se fundados naqueles). Direitos naturais, então, seriam os direitos civis sob a tutela do Estado. Não haveria renúncia à liberdade, pois tal ato seria incompatível com a natureza humana. Toda a noção de contrato social deste filósofo está baseada no bem comum, na união de forças destinada à utilidade geral, que não se limita ao somatório das vontades particulares.

Importante entender que Rousseau não buscava explicar o contrato social como um fato histórico, mas sim como algo hipotético, filosófico.

Direito: como claramente se percebe, Rousseau era um jusnaturalista, tendo sua filosofia um aspecto imanentista de justiça, não advinda de Deus, mas dos próprios homens. E a justiça, em Rousseau, é a observância das leis justas que foram elaboradas com base nos direitos naturais pela vontade geral de preservar direitos e liberdades inatos ao homem.

Veja bem, Rousseau escreveu e concebeu essas ideias, evidentemente, sabendo que a realidade não era assim. Ele fez, de fato, uma grande crítica aos desmandos da política e da sociedade, especialmente no cenário miserável que se encontrava a França pré-revolução.

1.3.5.4. Montesquieu

Charles Louis de Secondat, conhecido como o Barão de Montesquieu, rejeitava o método racionalista de conhecimento, pautando-se no empirismo histórico para desenvolver suas teorias.

Jurídica e politicamente, teve ele grande importância ao escrever o livro “O Espírito das Leis”, que forneceu as bases definitivas para a consagração da atual e majoritariamente adotada teoria da separação das atribuições do poder, conhecida como teoria dos freios e contrapesos.

Montesquieu foi um nobre Francês que escreveu sobre as instituições inglesas entre os séculos XVII e XVIII. A Inglaterra já possuía uma monarquia constitucional na época. A Revolução Inglesa acontece 140 anos antes da Revolução Francesa e ela é muito menos aguda do que a Francesa, pois aquela foi se fazendo com o passar do tempo. Durante um período a Inglaterra foi uma República, logo depois houve o retorno de uma monarquia limitada, constitucional.

Então, os ingleses passam de uma monarquia absoluta para uma República que dura 40 ou 50 anos e que depois volta a ser uma monarquia constitucional, só que com limitações de poder.

Então, Montesquieu quando escreve sobre as separações de poderes, ele escreve sobre as instituições inglesas, e não sobre a França, pois essa estava num Absolutismo monárquico ainda.

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A doutrina do Barão não era de caráter positivista. Pelo contrário, ele era um jusnaturalista teológico, que afirmava existirem leis naturais que teriam sido criadas por Deus ao formar o universo.

TEORIAS DA SEPARAÇÃO DAS FUNÇÕES (PODERES)

Aristóteles

Deliberativo Assembleia que deliberaria sobre os negócios do Estado

Executivo Teria prerrogativas e atribuições determináveis em cada caso

Judiciário Administrador da Justiça

John Locke

Legislativo Elaborar as leis que disciplinariam o uso da força na comunidade civil

ExecutivoAplica as leis aos membros da comunidade, tanto na esfera judicial quanto na administrativa

Federativo Função de relacionamento com outros Estados

MontesquieuLegislativo Legislar

Executivo Exercer atividades executivasJudiciário Exercício da jurisdição

1.3.6. David Hume

Hume é responsável por uma verdadeira revolução filosófica em seu tempo (séc. XVIII), já que rompe com a supremacia da razão e com os métodos racionais de se alcançar a verdade ao estilo cartesiano e conduz sua reflexão para reconstruir o conhecimento humano a partir de bases sensoriais. Mais claramente, Hume foi um cético e um empirista, alicerçando toda a fonte de conhecimento humano sobre a experiência.

Ao repudiar o racionalismo, ele entendia que não tinha o homem capacidade cognitiva suficiente, de per si, pelo simples esforço do pensamento, de atingir a essência das coisas. Por isso ele tanto prezava pelos sentidos corpóreos, como a observação.

Em Hume, a moral somente existe por sua própria utilidade, pela necessidade de adoção de determinados comportamentos para não levar o homem à autodestruição. É a experiência humana que determina o que é bom, o que é ruim, o que é justo e injusto.

A utilidade geral é o verdadeiro critério estável de justiça, que se baseia numa moralidade social, naquilo que os homens, de forma convencionada (não convenção no sentido formal, mas uma convenção forjada com o tempo), julgam necessário para a sociedade.

Logo, a justiça não se define por critérios subjetivos, pelo que um indivíduo considera justo, mas sim pelo que objetivamente se tem como justo na coletividade.

Essas convenções podem mudar com o tempo.

Hume não se preocupa muito em analisar o homem como indivíduo, ele tem uma postura mais sociológica, sua base filosófica é a coletividade.

Para o filósofo, há regras naturais que regem a sociedade, não naturais no sentido jusfilosófico, mas no sentido da convencionalidade humana, de que os homens aprendem com a vivência pelo fato de estarem insertos na sociedade. Por exemplo, não existe um direito natural (ordem

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superior) de não limpar o nariz em público, mas o homem aprende que isso não deve ser feito pois está fora da utilidade social.

Qual é o espaço do direito positivo aqui? Para Hume, se as regras da razão natural por algum motivo não forem suficientes, deve-se promulgar leis positivas para ocupar seu lugar e dirigir a sociedade. Se estas falharem, por sua vez, entram os precedentes judiciais.

1.3.7. Georg Hegel

Sofreu forte influência de Kant, apesar de ter sido um pouco mais radical no que se refere às possibilidades do racionalismo.

A obra hegeliana possui um viés essencialmente racionalista. Dizer que há um racionalismo, de caráter idealista, no pensamento hegeliano significa dizer que toda a teoria do conhecimento vem marcada pela idea de que a realidade mora na racionalidade; o sujeito é o construtor da realidade das coisas, nada existindo fora do pensamento. Tudo o que é conhecido já é pensamento.

Hegel acreditava piamente que o racionalismo humano era absoluto, um idealismo absoluto em sentido objetivo. Ele negava qualquer limite ao conhecimento: o próprio absoluto é cognoscível. Isso não tornava incompatível, para ele, a necessidade da razão se valer de dados empíricos.

Dialética hegeliana

Quando se afirma algo (tese), o contrário está pressuposto no que vem afirmado (antítese), e do confronto entre a afirmação e a contraposição surge a síntese. Para Hegel, tudo poderia ser explicado com base na dialética, inclusive as mudanças históricas e movimentos sociais, que são frutos de diversas forças contraditórias que levam a um resultado específico.

Doutrina hegeliana

Hegel se preocupou muito com questões epistemológicas e com a ontognoseologia. O ponto central é o idealismo. Para ele, toda a realidade mora na racionalidade. Todo real só é real porque é conhecido por um sujeito que lhe identifica como real, e, nessa medida, aquilo que já foi conhecido, já se tornou real. Isso quer dizer que somente se torna conhecido aquilo que é refletido, idealizado pelo espírito, internalizado na mente da pessoa. Ao mesmo tempo, somente a razão pode ordenar o real, de modo que este se torne racional. Isso não quer dizer que tudo o que é real é racional. Dito de outra forma, nem tudo o que é real é racional, tendo-se em vista aquilo que pode ser identificado como o caos, como o desordenado, pois nisso não há razão.

Justiça e Direito

Como todo o sistema de Hegel é baseado no idealismo racional, somente pelo exercício da lógica se pode fazer a construção racional do Direito, na medida em que direito e justiça haverão de ser identificados com o que há de racional e não com o que há de irracional.

Surgirá a justiça não somente como um mero dado axiológico da sociedade, mas como a ideia que norteia a formação do próprio direito. O direito consubstancia-se por meio da legislação,

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e, com base na legislação, os indivíduos agem para a defesa e construção de seus direitos. O direito representa nada mais nada menos que uma manifestação do espírito objetivo, uma manifestação que consiste na liberdade em grau máximo da capacidade volitiva humana.

1.3.8. Karl Marx

1.3.9. Antônio Gramsci

Pensador do século XX simpático a Marx, aperfeiçoou a dialética marxista pois reconheceu que não é só o fator econômico que influencia na política, mas que essa também forja o fator econômico.

Ele trouxe a discussão sobre a hegemonia, que se trata de uma posição ideológica dominante. O direito seria um sistema normativo que retrata o modelo dominante. Assim, se o Direito reflete a hegemonia, o papel do Judiciário na defesa dos direitos fundamentais, especialmente das minorias, seria contra-hegemônico.

Importante entender que, para Gramsci, o poder da classe dominante não reside apenas no controle dos aparatos repressivos do Estado (se fosse, seria mais fácil modificar a ordem das forças, pois a força pura e simples sempre pode ser desafiada). O principal aspecto de consolidação do poder é a HEGEMONIA CULTURAL, exercida por intermédio do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação, o que inibe a potencialidade revolucionária.

Como exemplo pode-se citar o argumento da “reserva do possível”, que, sob o manto da falta de recursos, esconde um ideal liberal e de estado mínimo.

Gramsci traz também o conceito de intelectual orgânico, pessoa que não só pensa, mas também participa da construção e formação da hegemonia, seja do lado dos conservadores, seja do lado dos grupos de transformação.

Nesse sentido, o juiz muitas vezes atua como esse intelectual orgânico, seja confirmando a hegemonia em decisões que atendam os anseios do poder dominante, seja confrontando-a, pelo exercício do controle de constitucionalidade e do ativismo judicial, por exemplo.

1.3.10. Emannuel Kant

Filósofo alemão nascido no ano de 1724, na cidade de Konigsberg. Faleceu em 1804. Escreveu importantíssimas ideias que até hoje fundamentam inúmeras práticas do dia a dia, tendo se destacado, no que se refere ao Direito, ao falar sobre a moral e a liberdade.

Kant com sua concepção de autonomia refuta, principalmente, o deísmo, o utilitarismo, o naturalismo, o voluntarismo, portanto, nesse sentido, se opõe também aos iluministas. Esses, não deixam espaço para a dimensão moral e, dessa forma, para a liberdade, pois a liberdade precisa de uma dimensão moral. Para Kant, a moralidade não deve ser definida segundo qualquer resultado, mas sim segundo o motivo que é a conformidade da ação com a lei moral.

Isso é liberdade, porque agir moralmente é agir de acordo com o que realmente somos, agentes morais/racionais. A lei da moralidade, em outras palavras, não é imposta de fora. É ditada pela própria natureza da razão. Ser um agente racional é agir por razões. Por sua

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própria natureza, as razões são de aplicação geral. Uma coisa não pode ser uma razão para mim agora sem ser uma razão para todos os agentes numa situação relevantemente semelhante. Assim, o agente de fato racional age com base em princípios, razões que são entendidas como gerais em sua aplicação. É isso que Kant quer dizer por agir de acordo com a lei. (TAYLOR, 1997, p. 465).

A lei moral não deve ser definida de acordo com resultados específicos. Dessa forma a decisão de agir moralmente é a decisão de agir com o propósito de conformar a minha ação com a lei universal. Isso corresponde a agir segundo minha verdadeira natureza raciona, e agir de acordo com as exigências de minha razão é ser livre. Para Kant, a vontade dos seres racionais é capaz de promulgar a legislação universal a que se submetem, e esse é o princípio da autonomia. Seguir apenas os ditames do desejo é cair na heteronomia. Kant discorda da noção do humanismo iluminista segundo a qual os desejos emanam de nós e a vivência deles representaria uma espécie de autonomia. "A visão kantiana encontra sua segunda dimensão na ideia de uma autonomia radical dos agentes racionais. A vida da mera satisfação dos desejos não é apenas rasa, mas também heterônoma. A vida plenamente significativa é aquela escolhida pelo próprio sujeito" (idem, p. 491). Segundo Vincenti (1994, p. 8), existir como sujeito significa não precisar referir-se a outro ser ou existência para definir, compreender ou justificar o que se é, sujeito é aquele que se sustenta ele mesmo na existência, por isso a ideia de sujeito está ligada à autonomia. Para Kant, o que realmente "emana de mim" é produzido pela razão, e ela exige que se viva de acordo com princípios. Essa perspectiva se rebela contra as que afirmam que a ação é determinada pelo fato dado, pelos fatos da natureza, em favor da própria atividade como formuladora da lei racional.

A partir do pensamento de Kant podemos afirmar que tudo que há na natureza se conforma com suas leis, exceto o homem. Isso porque o homem, na condição de ser racional, conforma-se às leis universais que ele próprio formula. Por isso os seres racionais são autônomos e têm uma dignidade particular22, se destacam da natureza por serem livres e autodeterminantes. (cf. TAYLOR, 1997, p. 467). Esse status racional nos impõe a obrigação de viver como agente racional. A natureza racional é a única coisa que existe como um fim em si mesma. Esse caráter racional confere ao homem dignidade, todas as outras coisas têm um preço, mas o homem possui dignidade. O homem, como ser racional, possui valor absoluto e não pode jamais ser tratado como meio, o que podemos ver em uma das formulações de Kant ao imperativo categórico: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio" (KANT, 1974a, 229). Por isso, na visão kantiana, a pretensão do naturalismo iluminista em submeter também o homem às leis da natureza nada mais é que heteronomia.

"O sentido da revolução copernicana23 consiste em ter ele acabado com o predomínio absoluto do pensamento físico e da filosofia naturalista [...]". (MESSER, 1946, p. 342). A libertação do naturalismo iluminista que impunha uma necessidade natural onipotente e não deixava lugar genuíno para a liberdade, consiste na descoberta de que o objeto considerado pela física, a natureza, não é a realidade absoluta. Assim, a natureza não é mais considerada coisa em si, mas sim o sistema regular daquilo que o eu se representa. O eu se torna o Sol em torno do qual os objetos giram. Ainda segundo Messer (idem, p. 343), Kant não teria realizado tal revolução se seu pensamento não se achasse tão profundamente enraizado na sua consciência

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moral, se não tivesse levado em conta a vontade que se determina a si própria e a lei que a vontade impõe a si própria, ou seja, se não estivesse enraizado em sua concepção de autonomia moral.

O conhecimento das ciências deve ser estimulado dentro de seus limites, não pode ser a última instância para a nossa concepção de mundo e da vida. Kant está certo de que o imperativo categórico da consciência é regulativo e que a vontade tem que ser independente das leis da natureza. Ainda, com isso Kant pensa o homem como cidadão de dois mundos, o mundo sensível do conhecimento natural e o mundo supra-sensível da liberdade; assunto que retomaremos em seguida e é central para entendermos a concepção de autonomia desse autor.

"Kant segue Rousseau em sua condenação do utilitarismo. O controle instrumental-racional do mundo a serviço de nossos desejos e necessidades só pode degenerar num egoísmo organizado [...]" (TAYLOR, 1997, p. 466). Kant parte das fontes morais da internalização ou subjetivação, inauguradas por Rousseau, mas fornece uma nova base. Para ambos, a lei moral vem de dentro e não pode ser definida por qualquer ordem externa. No entanto, para Kant, ela não pode ser definida pelo impulso da natureza "em mim", mas apenas pela razão prática que exige uma ação de acordo com princípios gerais. Qualquer concepção moral que derive seus propósitos normativos de uma ordem cósmica ou de uma ordem dos fins da natureza humana acarreta a abdicação da responsabilidade de gerar a lei por nós mesmos e cai na heteronomia. Assim, a exaltação da natureza como fonte é, para Kant, tão heterônoma quanto o utilitarismo.

A concepção de autonomia de Kant também se alia aos antivoluntaristas. Ele reprovava fortemente o pensamento de dependência de um ser racional às ordens e aos desejos de outro, mesmo que este seja Deus, considerando essa concepção, de certa maneira, oposta à nossa ação livre essencial. "A moralidade da autonomia kantiana é decisivamente oposta ao voluntarismo, porque a racionalidade da lei moral que guia Deus e nós é tão evidente para nós quanto para ele" (SCHNEEWIND, 2001, p. 556).

Kant não condena a razão instrumental voltada para o controle racional. Considera que o desenvolvimento da razão instrumental, necessário para o homem superar obstáculos da natureza e sobreviver, pode levá-lo à racionalidade em sentido mais amplo (cf. TAYLOR, 1997, p. 468). Ele manteve-se um homem do Iluminismo, herda da filosofia de sua época a problemática da maioridade e autonomia, mas se opôs em aspectos essenciais. Preservou a centralidade da razão, mas a pensou em sentido mais amplo que a razão instrumental. A diferença fundamental é que a questão crucial quanto à autonomia para Kant é o crescimento em racionalidade, moralidade e liberdade, não em felicidade.

O erro do naturalismo iluminista é ter interpretado mal o espírito com o qual a vida deve ser vivida, o fim básico que deve presidir tudo. Não é a felicidade, mas a racionalidade, a moralidade e a liberdade. O homem pode, de fato, atingir um alto grau de civilização sem se tornar realmente moral. (idem).

Enfim, Kant manteve a leitura empírica e matemática da natureza que os iluministas haviam recebido de Galileu e Descartes, no entanto a restringiu à natureza, não a aplicando ao

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homem, como haviam feito os iluministas. Quanto ao homem, Kant o pensou como dotado de alma espiritual com o poder de pensar o universal, vinculando a isso, sua liberdade e dignidade, sua autonomia.

Na Crítica da Razão Pura, Kant demonstrou a possibilidade das ciências matemáticas e naturais e acabou chegando à negação de uma metafísica que se apóia na mesma objetividade e universalidade dessas ciências. A razão teórica ficaria limitada ao âmbito da experiência. Só podemos conhecer os fenômenos que nos são acessíveis pelos sentidos; liberdade, imortalidade da alma e Deus, temas da metafísica, não são objetos de conhecimento. Rousseau já havia condenado a pretensão da filosofia iluminista de buscar o bem no acréscimo de conhecimento. O progresso humano no campo especulativo não significa o progresso moral do homem. A partir da impossibilidade da metafísica enquanto conhecimento, Kant precisa construir uma crítica para conhecer as possibilidades que a razão dispõe para elaborar uma metafísica. Na Crítica da Razão Prática, Kant demonstra que a razão pura é prática por si mesma, ou seja, ela dá a lei que alicerça a moralidade, a razão fornece as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas são princípios práticos objetivos, regras válidas para todo ser racional. Elas se diferenciam das máximas que são princípios práticos subjetivos, regras que o sujeito considera como válidas apenas para sua própria vontade. "Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas" (KANT, sd, p. 31).

Para Kant, se os desejos, os impulsos, impressões, ou qualquer objeto da faculdade de desejar forem condições para o princípio da regra prática, então o princípio será empírico, não será lei prática, não haverá unidade nem incondicionalidade do agir, e assim, não garantirá a autonomia. A lei moral deve independer da experiência. Uma vontade boa determina-se a si mesma, independentemente de qualquer causalidade empírica, sem preocupar-se com prazer ou dor que a ação possa provocar. Uma moral que se determina por causas empíricas cai no egoísmo. "Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si mesmo, ou seja, à felicidade própria" (idem, p. 33). Para Kant a busca da felicidade própria concerne à faculdade inferior de desejar, ela se relaciona às inclinações da sensibilidade e não à razão. O princípio do amor por si ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prática, tendo em vista sua validade que é apenas subjetiva. Cada um coloca o bem estar e a felicidade em uma coisa ou outra, de acordo com sua própria opinião a respeito do prazer ou da dor. Se formulássemos uma lei subjetivamente necessária como lei natural, seu princípio prático seria contingente e não garantiria a autonomia.

Somente a razão, determinando por si mesma a vontade, é uma verdadeira faculdade superior de desejar. "Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não segundo a matéria, mas sim pela forma" (ibid, p.37). Um ser racional não pode conceber seus princípios subjetivos práticos, suas máximas, como leis universais. A vontade para ser moral não deve determinar-se pelo objeto, deverá abstrair a matéria da lei para reter-lhe apenas a forma, a universalidade.

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Em suma: ou um ser racional não pode conceber os seus princípios subjetivamente práticos, isto é, as suas máximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou, de forma inversa, deve admitir que a simples forma dos mesmos, segundo a qual se capacitam eles para uma legislação universal, reveste esta de característico conveniente e apropriado. (ibid).

Para o filósofo de Königsberg, a vontade só pode ser determinada pela simples forma legislativa das máximas. A mera forma da lei só pode ser representada pela razão e não pelas leis naturais que regem os fenômenos. A vontade deve ser independente da lei natural dos fenômenos, e essa independência se denomina liberdade. Então, a vontade que tem como lei a mera forma legisladora das máximas é uma vontade livre. "A razão pura é por si mesma prática, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral" (ibid, p. 41). A força da lei moral está em sua absoluta necessidade e em sua universalidade. Ora, a universalidade da lei moral, para Kant, significa que ela tem de valer não só para os homens, mas para todos os seres racionais em geral (cf. KANT, 1974a, p. 214). Em Kant, universalidade significa racionalidade, se o dever ordena universalmente é porque é racional. Já a absoluta necessidade denota uma necessidade que não seja condicionada a nenhum outro fim, mas que seja necessária por si mesma. Por isso a lei moral deve ser um mandamento, um imperativo, que seja categórico e não hipotético. Em virtude de ser incondicional e universal, o imperativo categórico possui apenas conteúdo formal, sendo, portanto, uma fórmula. A lei moral deve ser assim formulada, em termos de imperativo categórico24: "Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal" (KANT, sd, p. 40). Segundo Kant, nós temos consciência imediata dessa lei, ela se impõe como um fato, um fato da razão. Mas não é um fato empírico, é o único fato da razão pura que se manifesta como originariamente legisladora, impõe-se a nós de forma a priori.

Todavia, no homem, a lei possui [...] a forma de um imperativo, porque, na qualidade de ser racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado, sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensíveis, não se pode supor nele uma vontade santa, isto é, tal que não lhe fosse possível esboçar qualquer máxima em contraposição à lei moral. Para aqueles seres a lei moral, portanto, é um imperativo que manda categoricamente, porque a lei é incondicionada. (idem, p. 42).

A lei moral é para nós um dever. É a consciência do dever que nos mostra que a razão é legisladora em matéria moral, que a razão é prática em si mesma e que o homem é livre. A partir disso, Kant na Crítica da razão prática formula o seguinte teorema: "A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes às mesmas" (ibid, p.43). O princípio da moralidade é a independência da vontade em relação a todo objeto desejado, ou seja, de toda matéria da lei e, ao mesmo tempo, a possibilidade da mesma vontade determinar-se pela simples forma da lei. Assim, a liberdade possui o aspecto negativo e o positivo, os quais convergem na ideia de autonomia. A lei moral apenas exprime a autonomia da razão pura prática, ou seja, a liberdade.

Fica demonstrada assim a possibilidade e a centralidade da razão prática e da autonomia na teoria kantiana:

Revela esta analítica que a razão pura pode ser prática, isto é, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de todo elemento empírico; - e demonstra-o na verdade

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mediante um fato, no qual a razão pura se manifesta em nós como realmente prática, ou seja, a autonomia, no princípio da moralidade, por meio do que determina a mesma a vontade do ato. - Por sua vez, a Analítica mostra que este fato está inseparavelmente ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso, com ela. (ibid, p. 49).

A lei moral implica que a vontade possa ser livre na medida em que se determina por um motivo puramente racional. Mas o homem está sujeito às leis da causalidade enquanto pertencente ao mundo sensível, e por outro lado tem consciência que é livre enquanto participante da ordem inteligível.

Pelo dever, o homem sabe, pois, que não é somente o que aparenta a si mesmo, isto é, uma parte do mundo sensível, um fragmento do determinismo universal, mas é também uma coisa em si, a fonte de suas próprias determinações. A razão prática justifica assim o que a razão teórica tinha concebido como possível no terceiro conflito da antinomia: a conciliação da liberdade que possuímos como noúmenos, com a necessidade de nossas ações como objetos da experiência no fenômeno25. (BRÉHIER, sd, p.205).

Dessa forma, Kant confere ao homem dois mundos, o mundo da causalidade, no qual não é possível prever grau de liberdade para um fenômeno físico e, o mundo da liberdade26, que é o âmbito da razão prática no qual é possível autonomia. O homem é considerado como fenômeno, sujeito à necessidade natural, e como coisa em si27, ou livre. A liberdade só é possível porque a coisa em si não está determinada e, portanto, não é cognoscível. A razão teórica não atinge o "ser noumênico", já a razão prática se refere ao "ser noumênico". Assim, os conhecimentos devem limitar-se à síntese entre a sensibilidade e categorias do entendimento, ou seja, aos fenômenos. Já no domínio prático, "a razão se aplica a motivos determinantes da vontade, enquanto faculdade de produzir objetos correspondentes, podendo determinar-se a si mesma, engendrando sua própria causalidade, na sua atuação em relação a si mesma" (MARTINI, 1993, p. 114). Assim, como participantes do mundo noumênico, somos livres, e como participante do mundo fenomênico, somos determinados. No entanto, segundo Bréhier (sd, p. 199), o determinismo é uma lei do nosso conhecimento, não uma lei do ser, se aplica à realidade tal como a conhecemos, e não tal como ela é. A distinção kantiana entre dois mundos abre um espaço legítimo para o livre-arbítrio, já que o mundo noumênico não é determinado pelas leis da causalidade que determinam o mundo fenomênico. Se o livre-arbítrio não deixar fundamentar-se pelo dever, que é dado na razão prática, ou fundamentar-se em algo que é contrário a esse dever, a ação será heterônoma. Em resumo, ação autônoma é aquela que se guia pela própria lei, que é lei da razão prática, e ação heterônoma é aquela que se guia por algo que é externo ou contrário à lei da razão prática.

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos objetos, o resultado é então sempre heteronomia. (KANT, 1974a, p. 239).

Para Kant, a liberdade prática é, então, a independência da vontade em relação a toda lei que não seja a lei moral. O homem não é determinado pela natureza, e, pelo livre-arbítrio, pode escolher agir por dever, e nisso consiste sua autonomia. Ainda, a distinção kantiana entre o caráter inteligível e o sensível, além de negar o determinismo do homem pela natureza, nega o

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determinismo teológico. O homem assume a reinvidicação de responsabilidade total. No entanto, penso que a concepção de autonomia de Kant mantém a questão estética subjugada ao dever, seu formalismo restringe demasiadamente o sentido empírico, existencial da autonomia. Dessa forma, podemos dizer que Kant também promove um reducionismo28 da autonomia, no entanto, no sentido inverso ao que os iluministas haviam feito. E, é importante destacarmos que a dimensão estética deve estar bem presente numa educação ou pensamento que vise formar para a autonomia, por ser de caráter diretamente individuante, é instância que necessariamente integra o ser autônomo do homem.

Na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática, Kant enfatiza a distinção entre razão teórica e razão prática, na Crítica da faculdade do juízo ele aponta a faculdade de julgar como possibilitadora da passagem de um domínio para outro, propõe a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos. Assim o entendimento é a fonte dos conhecimentos, a razão o princípio de nossas ações e o juízo tem a função de pensar o mundo sensível em referência ao mundo inteligível (cf. PASCAL, 1999, p. 177). É na faculdade do juízo29 que Kant encontra o intermediário procurado. Dessa forma, Kant procura na terceira crítica resgatar a dimensão estética da autonomia que fica subjugada ao formalismo da lei moral na segunda crítica. No entanto, mesmo na terceira crítica, a ideia de felicidade permanece submetida à ideia de dever e à universalidade, e, portanto, em Kant, a dimensão estética da autonomia não é devidamente acionada. Segundo Suzuki (1989, p. 12), Schiller vai procurar acabar a tarefa iniciada por Kant na Crítica da faculdade do juízo, conseguindo dar maior ênfase à dimensão estética da autonomia.

A morte para Kant

Fortunately, there is more. In Immanuel Kant's "Critique of Pure Reason," the great philosopher explained how space and time are forms of human intuition. Indeed, everything you see and experience is information in your mind. If space and time are tools of the mind, then we shouldn't be surprised that at death there's a break in the connection of time and place. Without consciousness, space and time are meaningless; in reality we can take any time -- or any spatial plane -- and estimate everything against this new frame of reference.

1.3.11. Hans Kelsen

1.3.12. Giorgio Del Vecchio

1.3. Contemporaneidade

1.3.1. Robert Alexy

Vide item 2.15.4. Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy.

1.3.2. Ronald Dworkin

Introdução: antipositivismo e anti-utilitarismo dworkiano

Ronald Dworkin foi um célebre jusfilósofo que buscou elaborar uma teoria do direito de forma totalmente crítica ao positivismo jurídico e ao utilitarismo.

Em relação ao positivismo jurídico, o filósofo defendia que não se poderia conceber o direito como um legalismo estrito a ser realizado pelo juiz. Não concordava ele com a ideia de que direito era simplesmente um processo subsuntivo das normas positivadas aos fatos

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apresentados, nascendo daí a lei do caso concreto. Antes, ele outorgava uma imensa importância à interpretação, já que o direito seria fato interpretativo dependente das necessidades da prática social, comunitária e institucional dos agentes de justiça.

Acerca do utilitarismo, sabe-se que tradicionalmente os utilitaristas opuseram-se à noção de direitos humanos, sendo que Jeremy Bentham chegou mesmo a considerá-los algo fictício. O princípio fundamental do utilitarismo é que o bem-estar de qualquer indivíduo não pode contar mais do que o bem-estar geral, e, portanto, a ideia de que um indivíduo possua direitos que podem se sobrepor ao bem comum é rechaçada por alguns utilitaristas que primam pela maximização da felicidade geral. Esta é geralmente entendida em termos de prazer, no utilitarismo clássico, ou de satisfação de interesses, desejos ou preferências, nas versões contemporâneas do utilitarismo.

Dworkin sustenta que essas teorias utilitárias possuem uma deficiência no seu modo de justificação. A defesa do bem-estar geral é comumente feita no utilitarismo a partir da noção de que, por exemplo, o prazer é um bem em si. Todavia, ele considera essa ideia absurda para justificar políticas públicas. Assim, se o bem-estar é uma noção fundamental da política, então temos que encontrar uma razão melhor para adotá-la. Para ele, esta justificação é dada pela ideia de igualdade.

A interpretação como meio de alcançar a justiça

O direito deve ser visto como instrumento que realiza valores e expectativas de justiça que lhe são anteriores. Isso não pode ser feito no modelo positivista propugnado por Kelsen. Para Dworkin, a interpretação no direito é essencial, especialmente mediante sua posição de que o juízo jurídico não pode ser feito sem o juízo moral.

Porém, ele não quer, com isso, ir de encontro ao sistema jurídico vigente para afirmar a inexistência de parâmetros judiciais de decisão ou conceder uma carta branca aos juízes para julgar.

Para Dworkin, a atividade interpretativa, inerente ao Direito, é essencialmente evolutiva, na medida em que as concepções jurídicas do “ontem” são remanejadas, a cada case, para ser o melhor possível hoje. A forma pela qual se interpretava “ontem” recebe constantemente ajustes, adequações e acomodações para caber no hoje1.

No marco teórico dele, duas regras presidem a ideia de interpretação:

a) Conveniência : levantamento dos precedentes e argumentos cabíveis perante o caso analisado;

b) Valor : escolha do valor de justiça que se acolhe para orientar a seleção dos argumentos, de acordo com a ideia de que a justiça exige a igualdade para se manifestar.

1 Nessa perspectiva, o Direito é fruto de uma concepção histórica de justiça de um conjunto de participantes. Veja-se, aqui, presente a ideia Gadameriana de espiral hermenêutica.

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Dworkin trabalhou muito com a ideia de “moral política”. Para ele, moral política é a norma fundamental que rege sua teoria. E qual seria ela? Igual respeito e igual atenção. Importante entender que o filósofo se taxava de liberal. Assim, numa primeira fase de sua produção literária, ele adotava o entendimento kantiano de que a autonomia individual deveria ser observada, não podendo o Estado interferir exceto para proteger as próprias liberdades individuais.

Porém, avançando em suas obras, percebe-se que ele passa a entender que a satisfação do bem particular privado não pode ser conquistada sem que alguns elementos de justiça (públicos) intervenham para a sua realização. A justiça é entendida como condição de bem estar para a realização dos indivíduos.

A filosofia política de Dworkin parece ser algum tipo de liberalismo idealizado. Isso quer dizer o seguinte: teoricamente, parece não haver realmente conflito entre liberdade e igualdade, mas nas práticas das economias capitalistas, nas quais o seu igualitarismo liberal encontra seu lugar natural, há certamente um antagonismo entre esses ideais políticos. Por isso, autores como Rawls, ao darem prioridade para as liberdades e imediatamente reconhecerem que elas produzem desigualdades sociais, parecem ser mais realistas. Portanto, ao colocar a igualdade como fundamento do liberalismo, Dworkin é levado a aceitar, em primeiro lugar, um conceito meramente formal de igualdade (igual respeito e consideração) e, em segundo, tipos de igualdade mais substantivos (de recursos, de oportunidades etc.), mas que ainda estão longe de satisfazerem uma versão mais radical de igualitarismo.

Hermenêutica, razoabilidade e coerência do direito

Como visto, a interpretação é um aspecto crucial para o desenvolvimento do próprio Direito, pois permite entender que ele não se exaure num conjunto de normas2, já que pressupõe, além das regras positivadas, princípios igualmente vinculantes da atividade judicial3.

Para Dworkin as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios.4 Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade.

Os princípios, para Dworkin, geralmente serão invocados nos casos difíceis (hard cases), quando há lacunas, antinomias ou ambiguidades insuperáveis, ou quando inexistir precedente

2 Dworkin entende que norma é sinônimo de regra, diferentemente de outros doutrinadores que entendem que normas são regras e princípios.3 Lembrar que para o positivismo jurídico clássico, os princípios não tinham força normativa, eram meras diretrizes.4 Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, 6* tir., p. 26, e "Is law a system of rules?", in The Philosophy ofLaw, p. 45.

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apto a amparar o que é analisado (lembrar que Dworkin trabalha num contexto de commom law, apesar de sua teoria ser perfeitamente consentânea com a civil Law).

Ademais, os princípios sempre serão tidos como instrumentos de auxílio à decisão judicial.

Nessa direção, a distinção elaborada por Dworkin não consiste numa distinção de grau, mas numa diferenciação quanto à estrutura lógica, baseada em critérios classificatórios, em vez de comparativos, como afirma Robert Alexy. A distinção por ele proposta difere das anteriores porque se baseia, mais intensamente, no modo de aplicação e no relacionamento normativo, estremando as duas espécies normativas (regras e princípios).

Pois bem.

Em Dworkin, quando se passa a pensar a coerência do Direito como uma grande mecânica que reúne regras e princípios, a razoabilidade (fairness) do Direito deixa de depender apenas da lógica intrassistêmica (ou seja, de uma análise do direito positivo) e passa a depender da lógica intersistêmica (aquilo que as instituições humanas reconhecem como práticas socialmente legítimas), em face da recorribilidade à história e à prática (práxis) em torno da justiça. Se a aplicação do direito sempre depende de uma releitura do passado, de forma a se chegar a um ponto melhor, história e interpretação andam juntas na definição da ideia de ‘coerência’ do Direito.

O fato de o juiz basear sua interpretação num fundamento histórico não o autoriza a agir com arbitrariedade, mas sim o vincula também a dados constantes no ordenamento jurídico, mas não necessariamente positivados: os princípios. Isso elimina do juiz a possibilidade de recorrer ao direito alternativo, o completo atropelo das normas positivadas para aplicar o solipsista ideal pessoal de Justiça.

Liberdade X Igualdade

Dworkin é um liberal igualitário. Na colisão existente entre liberdade e igualdade, ambos os princípios se fazem imprescindíveis. Assim, Dworkin constrói seu sistema de forma a responsabilizar os indivíduos pelas escolhas que fazem (liberdade), mas desde que haja a responsabilidade da sociedade em criar as oportunidades para que as escolhas individuais sejam efetivas (liberdade).

Dworkin se diferencia, com esse modelo, dos igualitários antigos, os quais embora afirmem que a comunidade possui o dever coletivo de tratar igualmente a todos, ignoram a responsabilidade dos indivíduos por suas escolhas pessoais. Diferencia-se também dos libertários, os quais enfatizam a responsabilidade pessoal e deixam de reconhecer a responsabilidade coletiva.

Ele se vale, para promover essa coerência entre os dois princípios, da “estratégia da ponte”, pela qual um dos princípios não tem convivência autônoma sem o outro.

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1.3.3. Herbert Hart5

1.3.3.1. Introdução

Este artigo tratará sobre uma particular concepção positivista do Direito. As páginas que seguem estarão dedicadas a analisar as principais contribuições teóricas de Herbert L. A. Hart. Explica-se esta escolha com base nas seguintes justificativas: 1) porque tanto Kelsen como Ross deixaram evidente em suas teorias que o Direito tem a peculiaridade de ser, ao mesmo tempo, um sistema normativo e um fato social, tal como pensa Hart. Um dos problemas que ambos os autores enfrentaram, e ao qual não conseguiram dar uma resposta adequada, reside na elaboração de uma teoria da validez capaz de abranger esta natureza dual do Direito. A este vazio teórico soma-se a obra jurídica de Hart, que é uma significativa conciliação das teses de Kelsen e Ross.

2) Hart era um liberal. Escreveu contra a pena de morte, contra a perseguição das pessoas pela sua preferência sexual, a favor do direito ao aborto. Era, também, um convicto defensor da democracia e, assim como Kelsen, sua concepção de Direito está vinculada à defesa do Estado democrático e, sobretudo, dos valores de tolerância e liberdade. Hart se propõe a elaborar uma teoria do Direito que ele define como “sociologia descritiva”.

O que Hart procura descrever é o modo como os juristas e as pessoas comuns usam a linguagem do Direito. Para fundamentar sua teoria, Hart emprega os instrumentos elaborados pela filosofia analítica que ele entende como um método que permite não só sopesar o significado das expressões, mas também entender melhor o funcionamento das instituições sociais e, em particular, o Direito. Ele considera que é necessário diferenciar no Direito – como em certa medida o fez Ross – um aspecto interno e outro externo, distinção que permite examinar o fenômeno jurídico sob dois pontos de vista: o interno e o externo.

1.3.3.2. Hart e a Defesa do Positivismo Jurídico Metodológico

1.3.3.2.1. A Estrutura Do Ordenamento Jurídico

“O que é o Direito?” Segundo sua opinião, para encarar este questionamento é necessário saber: (1.º) em que se diferencia o Direito das ordens respaldadas por ameaças; (2.º) em que se distingue a obrigação jurídica da obrigação moral; (3.º) que são as normas jurídicas e, em que medida, o Direito é uma questão de normas. Alguns dos problemas fundamentais da teoria jurídica encontram-se no âmbito das relações entre o Direito e a coerção, o direito e a moral e o Direito e as normas. Ao buscar dar uma resposta a estas questões, Hart desenvolve uma teoria do Direito com duas características fundamentais: (a) é geral, no sentido que busca explicar qualquer sistema jurídico vigente nas complexas sociedade contemporâneas. e (b) é descritiva, posto que pretende elucidar a estrutura do Direito e o seu funcionamento sem considerar, deste modo, a justificação moral das práticas jurídicas analisadas.

Com base nestes alicerces, Hart critica a teoria positivista elaborada por John Austin (cujas raízes se remontam a Jeramy Bentham) que delimitou os pilares do positivismo inglês na separação categórica entre o Direito que é e o Direito que deve ser e na insistência de que os fundamentos de um sistema jurídico não devem ser buscados em nenhuma teoria moral ou

5 Tópico elaborado com base no artigo “UM MODELO DE POSITIVISMO JURÍDICO: O PENSAMENTO DE HERBERT HART”, de Sheila Stolz, professora da FUFRG.

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justificativa. Dentro desta tradição positivista, Austin formula sua teoria imperativa do Direito afirmando que este é um conjunto de ordens respaldadas por ameaças ditadas pelo soberano no exercício de seu poder soberano e legislativo ilimitado.

Hart comparte parcialmente as duas afirmações centrais do positivismo clássico, mas refuta a conclusão de Austin conforme a qual o critério de identificação das regras jurídicas se encontra no hábito dos cidadãos de obedecer a um soberano, uma vez que o Direito, em uma sociedade organizada, não pode ser identificado satisfatoriamente respondendo as perguntas: (1) quem é o soberano? e (2) quais são as suas ordens? Este critério é adequado para identificar mandados como as ordens dadas por um assaltante a sua vítima, mas inadequado para explicar a percepção que os cidadãos têm de uma vida social institucionalizada, como a dos sistemas jurídicos contemporâneos. Ao juízo de Hart, um dos erros de Austin foi não construir a noção de regra sem a qual é impossível explicar a estrutura e o funcionamento do Direito – que deve ser entendido como um conjunto de regras que formam parte de um sistema jurídico. Para Hart, o ordenamento jurídico é formado por um conjunto de regras que ele denomina de regras primárias e por três tipos de regras secundárias: regras de reconhecimento, regras de alteração/modificação e regras de adjudicação.

Com a intenção de manter a distinção de Hart entre regras primárias e secundárias, Hacker e MacCormick propuseram algumas reformulações a esta distinção, reforçando a essencialidade da tipologia das normas apresentada por Hart e o fato de tal tipologia ser, na opinião do próprio autor, ambígua e imprecisa, o que a converte, irremediavelmente, em banco de muitas críticas. Uma destas críticas aponta para a rigidez de tal distinção e ao fato de que, em determinadas situações, pode ser difícil delimitar quando uma norma é uma regra eminentemente primária ou secundária. Outra repreensão relevante é a de que esta tipologia não incorpora em sua estrutura as normas permissivas. Mas certamente a crítica mais importante advém do já mencionado debate entre Dworkin e Hart, em que o primeiro acusa o autor em tela de preocupar-se excessivamente com as normas, ignorando os princípios.

A fim de complementar a estrutura fundacional da sua teoria, Hart cria a noção de rule of recognition que pretende ser um remédio para a falta de certeza do regime de regras primárias, bem como o instrumento adequado para a identificação de todo o material jurídico, de modo que o status de uma norma como membro do sistema dependa de que ela satisfaça certos critérios de validez estabelecidos na regra de reconhecimento. Dita regra, ademais, é uma norma última que subministra um critério jurídico de validez supremo. Neste sentido, todas as normas identificadas com referência a este critério são reconhecidas como normas válidas do ordenamento jurídico. Não obstante, é mister enfatizar que uma norma subordinada pode ser válida ainda que não seja geralmente obedecida, mas uma regra de reconhecimento não pode ser válida e rotineiramente desobedecida, pois ela somente existe como uma prática social eficaz e complexa. Então, uma regra de reconhecimento existirá como questão de fato se, e somente se, é eficaz. Para a verificação do grau de eficácia da regra de reconhecimento se exige do cumprimento, a aceitação da mesma por seus destinatários.

É a presença da regra de reconhecimento que articula a ideia de sistema jurídico, é ela que distingue o Direito de outros sistemas normativos, como a moral, as regras de trato social e as regras de jogo – dado que estes sistemas não dispõem, em seu interior, de uma regra última

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que identifique toda e cada uma das normas existentes estabelecendo a sua pertinência e validez. A regra de reconhecimento última é reconhecida/aceita pela maioria dos cidadãos. Esta asseveração induz a muitas perguntas: 1) Além dos cidadãos como categoria genérica, existe outro sujeito que necessariamente deve aceitar a regra de reconhecimento?; 2) Podem existir zonas de penumbra nos critérios últimos de validez jurídica contidos na regra de reconhecimento?; 3) A aceitação da regra de reconhecimento exige, necessariamente, uma justificação moral? Estas perguntas são importantes para compreender o pensamento de Hart.

1.3.3.2.2 Os Conceitos De Existência, Validez E Eficácia Jurídica

Articular uma concepção do Direito como sistema é um requerimento teórico que possibilita estabelecer critérios para identificar e definir quais são as normas jurídicas que compõem um determinado conjunto normativo ao que normalmente se denomina “ordenamento jurídico”. Na construção hartiana, uma norma somente pertencerá a um ordenamento jurídico se a regra de reconhecimento identificá-la como tal, outorgando-lhe validez. Este é o denominado critério de filiação. Para Hart, uma norma existe de fato, quando a conduta por ela estabelecida é geralmente obedecida. Hart adverte que se deve distinguir entre a ineficácia de uma norma que pode ou não afetar a sua validez e uma inobservância geral das normas do ordenamento jurídico. A obediência dos sujeitos – sejam destinatários ou operadores jurídicos – é, em última instância, a única dimensão da qual se predica a existência de um sistema jurídico. Neste sentido, estará descartada a possibilidade de incluir como outra condição para a validez de toda e qualquer norma jurídica a correção moral do seu conteúdo. A fim de que os destinatários e os operadores jurídicos possam obedecer às normas jurídicas, com independência de que em um segundo momento mostrem-se em desacordo ou não com o seu conteúdo e queiram atuar de forma distinta a prevista na norma, é imprescindível que estas sejam formuladas de modo que “possam” ser obedecidas, isto é, que cumpram com determinados requisitos, por exemplo, a claridade e a publicidade, pois somente desta forma poderão servir como pautas de conduta e, consequentemente, serão capazes de produzir certeza jurídica. Traçar as características específicas da regra de reconhecimento ajuda não somente a distingui-la das demais normas, mas também a ter uma imagem mais adequada do ordenamento jurídico como sistema normativo.

1.3.3.2.3. A Distinção entre Ponto de Vista Interno e Ponto de Vista Externo Perante as Regras Jurídicas e os Respectivos Enunciados Internos e Externos

Centrada em um normativismo moderado, a teoria do dever jurídico pretende ser um modelo capaz de separar a obrigação jurídica do dever moral. Para alcançar seus objetivos, parte Hart de um conceito normativo do dever: só e exclusivamente a existência de uma norma jurídica distingue a situação em que um sujeito tem uma obrigação da situação na qual está obrigado. Desta forma, pretende justificar a sanção que impõe a obrigação e, para tanto, leva em consideração o fato de que vivemos em sociedades complexas onde existem, quando menos, dois tipos de atitudes distintas perante o Direito: aquela em que o sujeito se vê obrigado e aquela situação perante a qual o sujeito obra de um modo determinado porque tem uma obrigação. Assim, propõe o autor a distinção entre os pontos de vista externo e interno.

Distinção que pode ser aplicada a qualquer tipo de regra social e é muito importante para conhecer não apenas o Direito, mas a estrutura normativa de qualquer sociedade. Tratando-se

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do Direito, o ponto de vista externo possibilita a sua compreensão como fenômeno social e o ponto de vista interno, a sua explicação como sistema normativo. Como o ponto de vista interno é explicado por Hart de forma descritiva, ele se atém às atitudes externas que manifestam os aceitantes do Direito e que se caracterizam por apresentar três momentos: o momento de adequação, o momento linguístico e o momento crítico, os quais, necessariamente, devem exteriorizar-se para adquirir relevância jurídica, caso contrário, terão simplesmente relevância moral. A adequação do comportamento de um indivíduo a uma norma é explicada mediante o conceito de aceitação.

O ponto de vista interno define a conduta daqueles que aceitam as normas jurídicas e, em particular, define a conduta dos juízes, promotores, funcionários e profissionais jurídicos inseridos em um determinado contexto jurídico. Adota este ponto de vista quem assume o caráter obrigatório das normas, ou seja, as aceita como critério e guia da conduta própria e dos demais e cuja infração justifica, segundo o aceitante, a respectiva imposição de sanções. Logo, aqueles que ocupam o ponto de vista interno, pronunciam enunciados internos – os únicos enunciados aptos a justificar a coerção jurídica.

O ponto de vista externo é aquele próprio do observador que se limita a explicar o Direito em termos psicológicos e/ou sociológicos, portanto cabe ao mesmo constatar a existência de um comportamento uniforme e regular praticado por razões prudenciais por parte daqueles que não aceitam, eles mesmos, as normas como guias e/ou critérios de valoração da conduta pessoal ou alheia e que só as seguem por medo de sofrer algum tipo de sanção ou punição. Aqueles que ocupam o ponto de vista externo pronunciam, por conseguinte, enunciados externos.

A constatação de que existem dois pontos de vista de aproximação ao Direito é fundamental para o método descritivo empírico de Hart. Primeiro, no que diz respeito à noção de ordenamento jurídico concebido como um conjunto de normas, pois a admissão de um discurso descritivo externo possibilita que as normas sejam contempladas como causas de comportamento e, em consequência, em termos de eficácia. Não obstante, para descrever o Direito em termos de eficácia, é necessário considerar o ponto de vista interno já que somente ele é capaz de delimitar quais comportamentos se amoldam ao seguimento das normas jurídicas, normas que têm o seu fundamento nas práticas sociais.

Assim que dito ponto de vista é definido a partir de certos fatos empíricos que podem ser efetivamente verificados por um observador de uma perspectiva descritiva externa. Segundo, porque também a regra de reconhecimento pode ser compreendida com base nos enunciados emitidos conforme aos pontos de vista de participantes e observadores.

1.3.3.2.4. A Relação Entre O Direito E A Moral

Para compreender seu ponto de vista nada melhor que partir do núcleo de seu modelo positivista e das três teses básicas que defende:

a) A tese das fontes sociais do Direito;

b) A tese da separação conceitual do Direito e da moralidade;

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c) A tese da discricionariedade judicial.

(a) a primeira tese mantém que a existência do Direito é definida pelas práticas sociais complexas que estipulam quais são as fontes últimas de identificação das normas jurídicas que configuram o Direito; (b) a segunda tese argui que as conexões entre o Direito e a moral são contingentes, ou seja, não são necessárias nem lógica, nem conceitualmente; (c) a terceira tese, esta fundada na concepção hartiana acerca da textura aberta da linguagem e, em particular, da linguagem jurídica que, em algumas ocasiões, estabelece normas jurídicas que contêm termos genéricos, vagos, controvertidos. Esta asserção leva a outra importante afirmação: a de que o Direito é parcialmente indeterminado ou incompleto e que, portanto, quando um juiz se depara com uma norma que contenha termos potencialmente imprecisos, atuará discricionariamente.

Para poder compreender o alcance da tese da separação conceitual do Direito e da moralidade é necessário entender o pensamento de Hart acerca da tese da discricionariedade judicial. De acordo com Hart, a indeterminação é uma característica de todo intento de guiar a conduta humana mediante normas gerais formuladas linguisticamente e a ela não escapa o Direito. Consequentemente, a teoria do Direito não pode ser contemplada como se estivesse imersa entre duas concepções igualmente inaceitáveis do Direito: entre o realismo e o ceticismo.

Na obra “O conceito de direito”, Hart destaca que alguns ordenamentos jurídicos incorporam – como critérios últimos de validez jurídica – princípios e valores morais. Nestes casos a fim de que a regra de reconhecimento cumpra o seu papel de ser remédio para a incerteza, ela deve tolerar apenas certo grau limitado de indeterminação, pois serão os juízes e tribunais quem definirão, em última instância, o alcance e o significado de ditos termos. Esta última afirmação custou a Hart a acusação de ser um jurista antidemocrático.

Nenhum jurista pode negar que nas democracias contemporâneas as faculdades normativas não são exercidas exclusivamente pelo Poder Legislativo. Ademais, afirma que é menos custoso para a coesão social e a democracia permitir a resolução de um caso particular com base na discricionariedade judicial – e na leitura que os juízes e tribunais façam de um determinado princípio/valor – que não outorgar nenhuma solução concreta ao mesmo. Das arguições de Hart se deduz que o que ele não aceita é a “legalização da moral”. As sociedades contemporâneas são caracterizadas pelas constantes mudanças sociais e pela pluralidade de tradições, convicções e pautas morais vigentes simultaneamente. Resulta difícil, consequentemente, falar em um consenso moral em torno a uma moral concreta. Além do mais, ressalta Hart, que pode ter vigência em uma determinada sociedade uma moral positiva aberrante e, justamente por esta característica, dita moral não pode ser considerada valiosa ou razoável de ser assimilada pelo Direito. Definitivamente, conclui o jurista que a introdução de conteúdos morais no Direito deve ser sempre tomada com muita cautela. Seja por meio da introdução de conteúdos morais no Direito, seja pela admissão de que os juízes em suas decisões podem recorrer a princípios e valores morais.

Estas “aberturas” do Direito à moralidade terão consequências não somente para a reflexão legal, mas também para a tese hartiana da Separação conceitual entre o direito e a moral. Temas que induzem Hart a repensar alguns de seus pressupostos teóricos (incluirá, por exemplo, na sua estrutura de regras os chamados princípios jurídicos) e a defender sua adesão

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a um soft positivism – modelo teórico que contradiz a tese positivista forte segundo a qual existe uma regra de reconhecimento isenta de conteúdos valorativos e que possibilita uma separação categórica entre o Direto e a moral. Além do mais, certas características do funcionamento adequado do Direito, tais como a generalidade, a claridade, a inteligibilidade, a perdurabilidade e a publicidade das normas jurídicas, bem como o princípio geral de irretroatividade das mesmas e a congruência em sua aplicação (que deve ser imparcial), implicam, em si mesmos, a realização de um mínimo de justiça – ainda que seja justiça formal –, por parte do Direito.

Portanto, para Hart, é inegável que existem conexões entre o Direito e a moral, mas esta vinculação deve situar-se no âmbito da justificação e da legitimidade do Direito. E é justamente neste ponto que reside a grande virtualidade da tese da separação que não estriba, apenas ou principalmente, na duvidosa possibilidade de construir uma Ciência do Direito meramente descritiva e livre de valorações, mas na possibilidade de manter um ponto de vista moral frente ao Direito positivo livre de determinações fáticas.

1.3.3.3. Conclusão

Para o positivismo jurídico a separação conceitual entre o Direito e a moral é essencial. A existência e o conteúdo do Direito estão determinados por fatores que fazem com que o Direito esteja sujeito à apreciação moral, mas isto, por si mesmo, não garante o seu valor moral. A relação entre o Direito e os valores e princípios morais não é necessária, mas sim contingente e, neste sentido, o Direito é moralmente neutral. Mas, sobretudo, é preciso entender que a separação entre o Direito e a moral apregoada pelo positivismo hartiano tem raízes em um ato moral, em um ato político, qual seja preservar a autonomia e a liberdade individuais da interferência estatal exorbitada (paternalismo jurídico) e de terceiros (seja do domínio das maiorias ou da tirania das minorias). Como já havia destacado Von Wright, “a moralidade transcende a legalidade no sentido de que censura as leis e as decisões dos tribunais de justiça. Por esta razão, nunca pode ser incorporada no tipo de ordem coativo que constituem as leis do Estado”. Enfim, é a moral que deve separar o Direito da moral e são estas motivações e as suas consequências, que parecem possuir relevância no debate atual acerca do Direito.

1.3.4. John Rawls

John Rawls foi um importante jusfilósofo norteamericano do século XX. Escreveu a obra chamada “A Theory of Justice”, que condensou uma série de artigos antes publicados que expunham suas ideias.

Rawls era um ferrenho crítico do utilitarismo, acreditando na máxima Kantiana de que o homem é um fim em si mesmo, pois defendia que não era a única via existente para promover o bem de todos o sacrifício dos direitos das minorias.

Em Rawls, a teoria da justiça parte de duas ponderações:

a) A equidade rege todas as reflexões sobre a questão da justiça (equidade aqui em nada coincidindo com a concepção aristotélica). Equidade para ele dá-se quando do momento inicial em que se definem as premissas com as quais se construirão as estruturas institucionais da sociedade; mais claramente, quando se fala em equidade

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em Rawls, fala-se de um momento inicial em que os atores do contrato social discutiram em pé de absoluta igualdade os princípios da justiça;

b) Rawls é contratualista (neocontratualista). Como ele cria uma teoria, ele a assenta numa base hipotética, não histórica, para poder desenvolver todo o seu raciocínio.

Outro ponto nevrálgico em Rawls é o fato de que a justiça não é estudada com base na ação humana individualmente tomada, mas sim com base nas instituições sociais. É a justiça das instituições humanas (interesses comuns a todos) que beneficia ou prejudica a comunidade que a ela se encontra vinculada.

O que são essas “instituições” em Rawls? São as leis fundamentais, regras e preceitos de uma sociedade, não devendo ser compreendidas no sentido organizacional, isto é, de Estado, Igreja etc.

Assim, o modelo de Rawls BUSCA, ALÉM DE DETERMINAR O QUE É SOCIALMENTE JUSTO, MOSTRAR QUAIS SÃO OS MODAIS DEÔNTICOS (DEVERES) DAS INSTITUIÇÕES NAS ESTRUTURAS BÁSICAS DE UMA SOCIEDADE.

Para apontar o que é justiça, Rawls confere um importante papel às questões relativas à distribuição de direitos e deveres e das oportunidades econômicas e condições sociais, assim como às relativas à participação nessa distribuição.

A Posição Original

Na hipótese teórica de Rawls, como visto na primeira ponderação acima, todos os homens estavam submetidos ao “véu da ignorância”. Esse véu da ignorância não é o não saber6, mas sim o impedimento de que os interesses mais imediatos dos indivíduos, decorrentes de suas condições reais de vida, interfiram na integridade do procedimento deliberativo. Isso permitiria a tomada da “decisão prudente”, deliberando em um contexto em que a liberdade e a igualdade seriam idealmente garantidas.

É nesse contexto e nessa exata situação de equidade originária que os cidadãos escolheriam os princípios de justiça e toda a estrutura fundamental da sociedade, seus alicerces, estabelecendo o pacto ou contrato social. Suas escolhas recairiam sobre as opções cujos piores resultados melhores do que os resultados possivelmente decorrentes das demais opções.

O pacto social possui dois princípios basilares de seu sistema acerca da justiça:

a) Princípio da igualdade : cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais para que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Logo, isso torna evidente que a liberdade em Rawls não é absoluta.

b) Princípio da diferença : as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: 1) tragam o maior benefício possível para os menos

6 Embora as partes estejam sob o véu da ignorância sobre fatos específicos, é-lhes dado conhecimento de toda sorte de fatos gerais que afetam a escolha da estrutura básica, em particular aqueles que a psicologia e as ciências sociais põem à sua disposição.

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favorecidos; 2) Sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.

Veja que o primeiro princípio tem carga axiológica baseada na liberdade, sobretudo, e na igualdade, em segundo lugar. Já o segundo princípio tem carga axiológica forte na fraternidade, e, também, na igualdade.

O segundo princípio regula a aplicação do primeiro, corrigindo as desigualdades.

O primeiro princípio fixa as liberdades individuais, políticas, de expressão, de reunião etc. Porém, abdicam-se alguns direitos, até mesmo fundamentais, em função do pacto. Para que haja essa abdicação, é preciso que aqueles que aderem ao pacto recebam em troca benefícios ainda maiores que aqueles que teriam se mantivessem sua posição original.

Já no segundo princípio, a expressão “funções às quais todos têm acesso” deve ser interpretada de acordo com a igualdade democrática. Por exemplo, se o primeiro princípio determina que todos devem ter acesso à previdência social, o segundo cuida para que concreta e efetivamente isso aconteça.

Além dos princípios acima, os contratantes originários estabeleceram, para Rawls, as seguintes regras de prioridades:

a) A liberdade sempre tem prioridade. Somente se aceita a redução da liberdade se isso resultar no aumento do total de liberdades de todos (isso legitima, por exemplo, a prisão de alguns indivíduos ameaçadores para que os outros tenham liberdade plena);

b) A justiça (social) tem prioridade sobre a eficiência e sobre o bem estar (por exemplo, deve-se dar preferência a políticas que financiem a compra de apartamentos populares àquelas que financiam a compra de apartamentos de luxo).

Veja bem: Rawls teorizou uma ideia voltada à justiça NA DEMOCRACIA. E, na democracia, o primeiro preceito que se consagra é a liberdade (liberdade, igualdade, fraternidade). Liberdade é o pilar de tudo. Tanto que é o primeiro princípio de Rawls.

Pois bem. Continuemos.

O “após” a Posição Original

O pacto social não se faz de uma só vez. Ele é gradativo, em uma série de etapas. Após a posição original, os pactuantes passam a deliberar concretamente sobre as diretrizes da sua própria sociedade, isso por meio de UMA VOTAÇÃO DE UMA CONSTITUIÇÃO. Finda essa etapa, as discussões passam a deitar sobre as políticas de bem estar da sociedade, mediante a economia e outras fontes de justiça social.

Fases:

a) Posição original: princípios de justiça;

b) Definição da Constituição;

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c) Definição de políticas de bem estar social.

Pergunta: se os pactuantes originários estavam numa posição de equidade, por que, então, há diferenças entre os homens? Rawls responde isso com base nas naturais diferenças existentes entre as pessoas. Ainda que, no que se refere à formação, informação e conhecimento, eles estivessem no mesmo nível, após definir os princípios de justiça e começar o “processo de desnudação do véu da ignorância”, as qualidades e defeitos pessoais vão aparecendo, motivos pelos quais surgem as desigualdades.

Mas não só por isso. O princípio da diferença legitima ao homem a realização pessoal, desde que se melhore a condição do outro e se respeitem as condições impostas pelo pacto para a preservação de todos.

Daí que entra a necessidade de que as instituições sejam promotoras da melhor participação do homem na estrutura social possível.

Síntese: para Rawls, igualdade para todos significa igualdade de oportunidades, e não igualdade absoluta, a qual é impossível de se alcançar pelo simples fato de serem desiguais as pessoas. No contratualismo de Rawls, necessário é igualar a oportunidade entre as pessoas; a liberdade não ocorre num sentido material, e sim num sentido de respeito às pessoas e valorização das possibilidades, igualdade de oportunidades.

Os principais pontos sobre os quais se assenta a teoria da justiça de Rawls, para Dworkin, são o equilíbrio reflexivo, o contrato e a posição original. O equilíbrio reflexivo revela-se como procedimento de ajuste iterativo entre as intuições morais e uma estrutura teórica moral, mais racionalizada, edificada segundo um modelo construtivo, onde os indivíduos vão, aos poucos, sedimentando os valores comuns, para além de simplesmente descobri-los em uma estrutura preexistente.

A ideia de contrato social, em Rawls, é retomada das teorias políticas clássicas, com a inovação profunda da posição original, na qual os participantes se vêem colocados. Entretanto, o contrato não é premissa ou postulado fundamental da teoria de Rawls, sendo apenas, segundo Dworkin, um argumento destinado a reforçar a legitimidade dos seus dois princípios de justiça.

A posição original, na qual os indivíduos são colocados para acertarem os princípios de justiça sobre os quais edificarão as instituições, é a grande inovação em termos de teoria política contratualista. Sua peculiaridade determina o afastamento de interesses meramente pessoais, destinados a privilegiar caracteres particulares dos participantes do grupo original.

Ao permitir apenas o atendimento a interesses antecedentes e, portanto, impessoais, a posição original absorve o formalismo kantiano, no sentido de que o acordo não pode tratar, primariamente, de estabelecer um conjunto substantivo de valores a serem perseguidos pelos indivíduos, ou estabelecer qualquer noção particular de virtude. Deixa tais metas, tal como Kant, ao arbítrio do indivíduo, apenas garantindo as regras que os permitirão atingi-las.

O artifício da posição original, também, tem o efeito de privilegiar a noção de igualdade, que, como já se viu, é central na teoria de Rawls. Assim, muito embora as críticas que são feitas à

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sua teoria da justiça equitativa, trata-se de um dos mais importantes constructos teóricos do século XX, dotado de um conteúdo igualitarista imprescindível às instituições políticas atuais.

1.3.4.1. Consenso Constitucional, Neutralidade e Razão Pública: Elementos de Teoria da Constituição em Rawls7

A Justificação dos Princípios de Justiça

A posição original

O tema da posição original já foi tratado acima.

O equilíbrio reflexivo

O equilíbrio reflexivo, para Rawls, é etapa que se segue à posição original, na qual se submete os princípios de justiça às convicções mais ponderadas das pessoas, permitindo-se ajustes e revisões necessárias.

Uma de suas funções precípuas é justamente solucionar a eventual colisão entre os princípios, permitindo a elaboração de um modelo coerente e exercendo papel subsidiário em relação à posição original.

Construtivismo

Os princípios de justiça funcionam precisamente como critérios abstratos para guiar a construção das instituições político-sociais básicas. Eles não são justificados, por sua vez, a partir de uma racionalidade que lhes seja imanente (Rawls não é jusnaturalista), e nem, tampouco, em função de sua correspondência com valores históricos, mas através de um processo de construção cuja racionalidade é garantida pelas normas procedimentais que o balizam.

Eles não são dados objetivos simplesmente apreendidos pelos filósofos, mas criações humanas racionais, resultados de um processo discursivo.

Pluralismo, Imparcialidade e Consenso Sobreposto

Num momento posterior de sua construção filosófica, Ralws passa a adotar uma outra estratégia e justificação dos princípios, denominada de consenso sobreposto. Isso acontece porque Rawls antes não havia atribuído importância decisiva para o fato do pluralismo razoável, ou seja, como que seria possível a existência de uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. A essas diferentes ideias parciais e incompatíveis, que não podem ser adotadas como razão pública, o filósofo dá o nome de doutrinas abrangentes. Segundo ele, qualquer forma de se organizar a vida política que opte por uma doutrina abrangente, em detrimento das demais, não pode realizar as expectativas de justiça e estabilidade que incidem sobre as relações sociais.

7 Resumo de artigo homônimo escrito por Cláudio Pereira de Souza Neto, professor da UFF e membro da Banca do TRF2.

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O consenso sobreposto seria, então, exatamente a aprovação generalizada das doutrinas abrangentes razoáveis que convivem nas sociedades democráticas da atualidade, aprovação essa que recai e sustenta os princípios de justiça. Em outras palavras, os princípios de justiça seriam o ponto de convergência das diferenças, sendo por elas sustentadas.

A Razão Pública, Diretrizes de Indagação e Princípios de Justiça

Razão pública e neutralidade política

Para Rawls, os princípios de justiça englobados pelo consenso sobreposto dão conteúdo ao que denomina “razão pública”. Para ele, há as razões públicas e as não públicas. Estas seriam cultivadas por associações tais como organizações religiosas, sociedades científicas e grupos profissionais, que defendem interesses não generalizados. Elas são interiormente públicas, mas não públicas para o restante da sociedade.

A razão pública deve prevalecer quando os cidadãos atuam na argumentação política no fórum público, e quando votam em eleições nas quais elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica estão em jogo. Tais matérias, as mais relevantes para a democracia, são aquelas que devem ser resolvidas exclusivamente pela razão pública. Assim, a razão pública se limita a uma concepção política de justiça, aquela que independe de doutrinas abrangentes (ou seja, que não se limita a certo grupo humano), não obstante possa ser chancelada por aquelas que sejam razoáveis.

Isso não quer dizer, para Rawls, que os cidadãos e os legisladores não possam votar de acordo com suas visões abrangentes; podem sim, desde que não estejam em jogo as citadas relevantes questões da democracia e que as doutrinas abrangentes adotadas não sejam com ela incompatíveis.

Razão pública, razoabilidade e reciprocidade

Para Rawls, a razão pública engloba as chamadas diretrizes de indagação, cujo escopo é garantir que a argumentação política seja não somente persuasiva, mas também racional, especialmente quando em jogo questões constitucionais básicas.

A razão pública prescreve que a argumentação política apele unicamente para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos. Não se aceita o recurso às doutrinas religiosas e filosóficas abrangentes (salvo, repita-se, se razoáveis e não for elemento essencial da democracia o objeto em discussão).

De acordo com o filósofo, os cidadãos das democracias constitucionais contemporâneas são considerados pessoas morais, os quais possuem, fundamentalmente, dois atributos: a racionalidade e a razoabilidade. Esta está ligada ao senso de justiça, aquela se refere à capacidade de se ter uma concepção particular acerca do bem e de selecionar os meios para realizá-la. É com a racionalidade que o indivíduo busca realizar o seu projeto pessoal de vida, enquanto com a razoabilidade se verifica a realidade pela perspectiva do outro.

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A razoabilidade, nessa visão rawlsiana, é que permite a cooperação social, pois os cidadãos possuiriam um senso de justiça que os orienta no processo de estabelecimento dos princípios que informam a estrutura básica da sociedade, que permite que as diversas doutrinas abrangentes possam concordar no tocante a questões políticas básicas, dando espaço ao assentimento generalizado denominado de consenso sobreposto.

A dimensão intersubjetiva da razão pública é analisada em Rawls pela noção de reciprocidade, segundo a qual nosso exercício de poder político é adequado apenas quando acreditamos sinceramente que as razões que ofereceríamos para as nossas ações políticas são suficientes, e pensamos razoavelmente que outros cidadãos também poderiam aceitar razoavelmente essas razões. É a reciprocidade que leva à conformação da relação política no âmbito de uma democracia constitucional como uma relação de amizade cívica, implicando em um diálogo sobre as questões políticas fundamentais tendo em vista o bem comum e não a mera agregação de interesses privados.

Daí se deriva a impossibilidade de se recorrer, na deliberação pública, a doutrinas abrangentes. Argumentos particularistas não exibem o potencial de serem aceitos pelos que professam outras doutrinas.

Questões Constitucionais Essenciais, Consenso Constitucional e Limites da Deliberação Pública

Rawls considera que a razão pública deve ser uma das características, sobretudo, da deliberação que tem lugar nos fóruns oficiais. Tanto os parlamentares, durante seus debates, quanto o Executivo, ao justificar suas políticas públicas, devem se guiar pelo ideal de razão pública, salvo nos casos em que estariam legitimamente autorizados a decidir conforme certa doutrina abrangente.

A jurisdição constitucional, entretanto, não comporta essa abertura das exceções. Para que a jurisdição constitucional seja exercida sem comprometer a cooperação social, os juízes não podem invocar sua própria moralidade particular; não podem recorrer, ao justificarem suas decisões, a visões religiosas ou filosóficas. O fundamento das decisões judiciais deve se limitar aos valores políticos que os magistrados julgam fazer parte do entendimento mais razoável da concepção pública e de seus valores políticos de justiça e razão pública. Tais valores são aqueles que os magistrados podem esperar que todos os cidadãos razoáveis e racionais endossem. Essa restrição faz do Judiciário um caso exemplar de razão pública. Ao aplicar a razão pública, o tribunal evita que a lei seja corroída pela legislação de maiorias transitórias ou, mais provavelmente, por interesses estreitos, organizados e bem posicionados8.

Porém, Rawls não permite que qualquer violação aos princípios de justiça leve à declaração de nulidade de uma lei ou ato com eles em desacordo, por parte da jurisdição constitucional. Isso porque somente quando em jogo as liberdades básicas (protegidas pelo primeiro princípio de justiça da posição original), as quais devem ser concretizadas em nível constitucional (o que demonstra o viés liberal de Rawls), é que se deve acionar a jurisdição constitucional; já o segundo princípio (da diferença) deve ser concretizado apenas no plano legislativo, devendo

8 Interessante essa parte, pois em muito se aproxima da questão da legitimidade democrática do judiciário em sua atuação contramajoritária justificada pelo discurso.

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sua garantia ocorrer argumentativamente, através do uso da razão pública. Por que dessa diferença? Pois enquanto o primeiro princípio, da liberdade, é resultado de um consenso mais direto, é algo mais lógico para todos, o segundo princípio, o da diferença, requer um processo gradual de adesão e aceitação por parte dos cidadãos, que inicialmente tende a confrontar com uma série de doutrina abrangentes, mas que aos poucos vai sendo assimilado em prol de uma maior igualdade social.

1.3.5. Theodor Viehweg

Jusfilósofo alemão do pós segunda guerra mundial que buscou pragmatizar o Direito.

Viehweg: topoi (lugares-comum, argumentos razoáveis) são pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda a parte que se empregam a favor ou contra, e que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. As decisões judiciais são assim. O ministro relator vai enfrentar o problema, propondo um argumento para a sua solução.

Tópica é a arte do pensamento problemático, métodos de superação das aporias9. Pensar por problemas. Zetética é pensar por problemas. Tércio Ferraz usa muito essa expressão, já que ele é “topicista”.

Tópica é arte do pensamento problemático. Não é techne, não é episteme, não é ciência. O argumento deve ser livre sob pena de impedir o alcance da melhor verdade. Daí, a súmula vinculante poder ser criticada, porque perturba a possibilidade de alcance de uma melhor verdade.

Problema é uma questão que, aparentemente, permite mais de uma solução, e que vai requerer, tem vários aspectos devendo-se dizer qual aspecto importante dele que será enfrentado, o que será respondido. Problemas vão encontrar respostas. O discurso deve ser um ambiente onde as respostas podem ser propostas. O RACIOCÍNIO TÓPICO DÁ ÊNFASE AO PROBLEMA. NÃO HÁ SOLUÇÕES PREDETERMINADAS; O SISTEMA JURÍDICO, PELA TÓPICA, NÃO PODERIA OFERECER RESPOSTA A TODOS OS PROBLEMAS, NÃO SERIA FECHADO. Se você dá ênfase ao sistema, não se consegue dar respostas a todas as questões, de tal forma que seriam excluídos tais problemas. Quem dá ênfase aos problemas, escolhe o sistema. Quem dá ênfase ao sistema, escolhe os problemas, eliminando os inconvenientes.

A tópica não é uma forma de pensar sistemática. A tópica se preocupa com a aceitabilidade de uma questão. As respostas não são verdadeiras ou falsas, mas simplesmente aceitas como verdadeiras por certas pessoas em certo tempo. Isto não é um método, mas apenas um estilo de pensamento, uma técnica de pensamento problemático. O método é um procedimento de lógica inequivocamente verificável. Não há um plexo único de pensamentos, na tópica. ASSIM, A TÓPICA NÃO E UM MÉTODO CIENTÍFICO.

Todo argumento, todo princípio jurídico, toda norma jurídica para a tópica, será apenas uma tentativa de solução. Até mesmo normas constitucionais poderiam não ser aplicadas diante de princípios ou normas extrajurídicas, por não ser a resposta ideal para um dado problema.

9 De acordo com Viehweg, o termo aporia designa precisamente uma questão que é estimulante e iniludível, designa a falta de um caminho, a situação problemática que não é possível eliminar. A TÓPICA PRETENDE FORNECER INDICAÇÕES DE COMO COMPORTAR-SE EM TAIS SITUAÇÕES, A FIM DE NÃO FICAR PRESO, SEM SAÍDA. É,PORTANTO, UMA TÉCNICA DO PENSAMENTO PROBLEMÁTICO.

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Tudo é topos, até as normas constitucionais, não é axioma fundamental. A tópica tem sido criticada, porque traz uma insegurança, uma subjetividade incompatível com o que se espera da ciência do direito, porque tudo é relativizado, dando-se um campo aberto para o intérprete.

José Leite: a tópica reside em não se poder dar um peso lógico em um sistema a qualquer topos; o problema da aplicação da tópica no campo constitucional reside no fato da não vinculação da interpretação das normas constitucionais, podendo descambar em uma verdadeira arma a favor da arbitrariedade, o que não é consentâneo com as garantias fundamentais.

Todo o direito medieval era tópico, como as obras de São Tomás de Aquino. Estudava-se máximas, sem sistematização, sem definições finais, porque qualquer definição, em direito, seria perigosa. Então, ninguém nem positivava as normas. Os glosadores estudavam as máximas. Mas isso tudo virou poeira com a Idade Moderna e as ciências naturais.

Essa postura aporética em tópica é fundamental. Essa noção de que não há respostas a priori para o problema da justiça, que deverá ser buscada em cada caso.

Durante muito tempo, a retórica jurídica se prendeu ao modelo semântico, sintático. E aí a tópica diz que isso é muito pouco, porque deve-se ir além, buscando-se a pragmática, forma de estudo da linguagem direta, objetiva. Veja que a tópica, não sendo sistema, promoveu uma agregação no estudo jurídico: ela buscou superar a hermenêutica tradicional (exegese, silogismos puros) para dar lugar a um direito mais pragmático. O importante são os argumentos para resolver os casos concretos.

Em detrimento do pensamento sistemático, que busca ser um pensamento dedutivo, que parte do apriorístico (norma) para o problema, a tópica é um pensamento a posteriori, casuístico, que inclusive permite a adaptação da norma ao caso concreto.

1.3.6. Niklas Luhmann

1.3.7. Chaïm Perelman

Vide item 2.15.5. Teoria da Argumentação Jurídica de Chaïm Perelman: A Nova Retórica.

1.3.8. Jürgen Habermas

1.3.8.1. O Fundamento da Legitimidade Política dos Grupos de Pressão à Luz da Teoria da Ação Comunicativa

Os princípios iluministas (liberdade, igualdade e fraternidade) são repensados, por Habermas, à luz de uma teoria crítica.

O autor afirma a necessidade de reinvenção do projeto da modernidade, para tanto se valendo de uma visão dinâmica do processo de concretização desses direitos e dessas liberdades.

Parte da constatação de que a estrutura tradicional das instâncias de exercício do poder numa democracia invariavelmente estabelece relações de dominação (seja do poder político, seja do mercado, seja de costumes, comportamento).

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Para tanto, confere importância fundamental ao espaço público, como espaço necessário no diálogo crítico com o sistema estabilizado de expectativas, através do que denomina ação comunicativa.

Admitir uma ação política fundada no diálogo entre o espaço público e o sistema estabilizado garantiria que a força inercial deste não suprimisse a existência de formas de vida capazes de forjar relações de emancipação do homem-pessoa e reinventar continuamente práticas capazes de concretizar os ideais iluministas.

Dito isso, pode-se afirmar que, em Habermas, A LEGITIMIDADE DOS GRUPOS DE PRESSÃO (ATORES DO ESPAÇO PÚBLICO) PRESSUPÕE O RECONHECIMENTO DESSE ESPAÇO COMO ELEMENTO ESSENCIAL DA DEMOCRACIA.

A atuação desses grupos nem sempre assimila as reivindicações surgidas no mundo da vida, ou as toma como suas. Assim ocorre quando atua menos para fortalecer o processo plural de discussão que antecede a ação, e mais como mandatário de interesses pré-definidos.

Na democracia fundada numa ação comunicativa, a legitimidade dos grupos de pressão não ocorreria de dentro para fora (a partir do seu reconhecimento pelo Estado, como condição para o exercício de poder político), mas de fora para dentro (a partir da sociedade civil, como pólo de ação política válida).

E em razão disso, “o modelo de uma justiça processual para as sociedades democráticas atuais necessitará de gerenciamentos institucionais que, sem questionar o modelo institucional da modernidade (separação do Estado da sociedade civil, separação dos três poderes), vão de qualquer forma colocá-lo em maior conformidade com a ideia da autoconstituição de uma comunidade de pessoas livres e iguais”. (Jean-Cassien Billier. História da Filosofia do Direito, São Paulo: Manoel, 2005).

O seguinte trecho do seu Direito e Democracia entre facticidade e validade II (2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2003) bem exemplifica como Habermas concebe a relação entre grupos de pressão e legitimidade democrática:

“A liberdade de opinião e reunião, bem como o direito de fundar sociedades e associações, definem o espaço para associações livres que interferem na formação da opinião pública, tratam de temas de interesse geral, representam interesses e grupos de difícil organização, perseguem fins culturais, religiosos, humanitários, formam comunidades confessionais, etc. A liberdade da imprensa, do rádio e da televisão, bem como o direito de exercer atividades publicitárias, garantem a infra-estrutura medial da comunicação pública, a qual deve permanecer aberta a opiniões concorrentes e representativas. O sistema político, que deve continuar sensível a influências da opinião pública, conecta-se com a esfera pública e com a sociedade civil, através da atividade dos partidos políticos e através da atividade eleitoral dos cidadãos. Esse entrelaçamento é garantido através do direito dos partidos de contribuir na formação da vontade política do povo e através do direito de voto ativo e passivo dos sujeitos privados (complementado por outros direitos de participação). Finalmente, as associações só podem afirmar sua autonomia e conservar sua

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espontaneidade na medida em que puderem apoiar-se num pluralismo de formas de vida, subculturas e credos religiosos. A proteção da ‘privacidade’ através de direitos fundamentais serve à incolumidade de domínios vitais privados; direitos da personalidade, liberdades de crença e de consciência, liberalidade, sigilo da correspondência e do telefone, inviolabilidade da residência, bem como a proteção da família, caracterizam uma zona inviolável da integridade pessoal e da formação do juízo e da consciência autônoma”. (p. 101)

No entanto, as garantias dos direitos fundamentais não conseguem proteger por si mesmas a esfera pública e a sociedade civil contra deformações. Por isso, as estruturas comunicacionais da esfera pública têm que ser mantidas intactas por uma sociedade de sujeitos privados, viva e atuante. Isso equivale a afirmar que a esfera pública política tem que se estabilizar, num certo sentido, por si mesma: isso é confirmado pelo peculiar caráter autorreferencial da prática comunicacional da sociedade civil.

1.3.8.2. A Concepção Comunicativa do Direito e da Democracia em Habermas10

Após o fortalecimento da crise do positivismo, ganhou grande força o movimento de retomada do racionalismo, postura anti-empirista de se atingir o saber, na filosofia ocidental.

O racionalismo se baseava, fundamentalmente, numa posta interpretativa essencialmente subjetiva. Habermas, no entanto, deslocou a racionalidade do âmbito individual para o âmbito intersubjetivo/comunicativo.

Em Habermas, a racionalidade ocorre quando dois ou mais sujeitos agem comunicativamente de forma argumentativa em busca de um acordo consensual. É nessa ideia básica que se fundamenta a teoria do direito e da democracia habermasiana: ela toma como ponto de partida a força social integradora de processos de integração não-violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base de manutenção de uma comunhão de convicções.

Ou seja, O CONSENSO É O CONSENSO NÃO VIOLENTO A QUE CHEGAM OS SUJEITOS DA DEMOCRACIA, EM CONDIÇÕES DE IGUALDADE, APÓS O DISCURSO.

Na ideia do jusfilósofo, a razão deixa de ser o fim do racionalismo (racionalismo teleológico), tornando-se, antes, um instrumento dos processos comunicativos. Isso é, em certa medida, a superação com a metafísica kantiana e com a dialética hegeliana.

Essa guinada linguística aponta também para uma distinção entre representações particulares e pensamentos universais conduzindo a uma dialética da intersubjetividade que busca estados sintéticos no acordo consensual entre sujeitos racionais comunicativos livres e iguais

A legitimidade de uma regra independe do fato de ela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social como a obediência fáctica variam de acordo com a fé de seus membros na comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez apóia-se na suposição da legitimidade, isto é, da fundamentabilidade das respectivas normas.

10 Extraído do artigo “A Democracia Comunicativa: uma exposição da ideia de democracia em Jürgen Habermas a partir da análise dos volumes da obra “Direito e Democracia, entre facticidade e a validade”, escrito por Paulo Roberto de Azevedo.

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A complexificação das relações sociais na modernidade, o acréscimo de poder atribuído ao setor econômico e de mercado e o crescimento do poder administrativo ampliam cada vez

mais a já PROBLEMÁTICA RELAÇÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE11. A estabilidade desta relação faz-se necessária para a articulação entre sistemas político-jurídicos. Da defasagem entre esses sistemas pode originar-se uma crise entre direito constitucional e ordem jurídica: “a tensão entre o idealismo da ordem constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica, especialmente de um direito econômico, que simplesmente reflete a distribuição desigual do poder social, encontra seu eco no desencontro entre as abordagens filosóficas e empíricas do direito”. A RESPOSTA HABERMASIANA PARA ESSA CRISE SEGUE A GUINADA LINGUÍSTICA, CENTRANDO A ORDEM JURÍDICA NOS PROCESSOS INTERCOMUNICATIVOS. O DIREITO passa a ser mais que uma estrutura abstrata reguladora, constituindo-se, então, como uma força dinâmica e ativa. Mais que um sistema de saber, é um sistema de ação, que faz parte do “mundo da vida”. Para compreender melhor essa perspectiva é necessário considerar que, na teoria habermasiana, a ideia de “mundo da vida” recebe um sentido muito específico: difere da ideia de sociedade civil, como vista na perspectiva liberal, por não se resumir ao somatório das vontades livres iguais; também difere da perspectiva marxista, não sendo vista como aprisionada por forças históricas movimentadas pela luta entre classes antagônicas. A perspectiva habermasiana segue o viés linguístico passando a entender o mundo da vida como:

“... uma rede ramificada de ações comunicativas12 que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; e as ações comunicativas não somente se alimentam das fontes das tradições culturais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades dos indivíduos socializados. Por isso, o mundo da vida não pode ser tido como uma organização superdimensionada, a qual os membros se filiam, nem como uma associação ou liga, na qual os indivíduos se inscrevem, nem como uma coletividade que se compõe de membros. Os indivíduos socializados não conseguiram afirmar-se na qualidade de sujeitos, se não encontrassem

11 Habermas diz que o direito só pode ser compreendido a partir da noção de uma "tensão entre facticidade e validade". "Facticidade" seria o plano dos fatos, das coisas como elas são e funcionam, a dimensão do êxito real, cega para questões de certo/errado. "Validade" seria o plano dos ideais, das normas que se reconhecem como corretas e que justificam as ações, dos valores que se reconhecem como importantes e que justificam as escolhas, das utopias que se reconhecem como inspiradoras e justificam as instituições existentes e das esperanças que se reconhecem como necessárias e que justificam seguir em frente apesar de todos os desapontamentos. Pois bem, concebido apenas em termos de facticidade (como teriam feito o positivismo jurídico e o realismo jurídico), o direito não consegue justificar sua obrigatoriedade e, por conseguinte, explicar sua legitimidade ao longo do tempo. Concebido apenas em termos de validade (como teria feito a escola do direito natural), o direito perde seu contato e seu engajamento com o mundo concreto dos fatos, das ações e dos interesses e se torna uma retórica vazia sobre bem e justiça, que não é capaz de coordenar realística e eficazmente as relações em sociedade. Dessa forma, o verdadeiro lugar do direito é entre os planos da facticidade e da validade, como um "médium" (elo, canal, ponte) entre os dois, tornando a facticidade válida o bastante para ser obrigatória e aceitável, e a validade factual o bastante para ser viável e concretizável ao longo do tempo.12 O agir comunicativo proposto por Habermas está fundamentado na linguagem dirigida ao entendimento cooperado e compartilhado intersubjetivamente através da argumentação. Este conceito pressupõe a linguagem como principal meio dentro do qual é possível colocar em evidência todas as questões humanas passíveis de argumentações e as integrações sociais através dos processos de entendimento.

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apoio nas condições de reconhecimento recíproco, articuladas nas tradições culturais e estabilizadas em ordens legítimas e vice-versa. A prática comunicativa cotidiana, na qual o mundo da vida certamente está centrado, resulta, com a mesma originariedade, do jogo entre reprodução cultural, integração social e socialização.

A proposta habermasiana é de ordem democratizadora, pois desloca a construção da normatividade jurídica do idealismo teleológico para a materialidade das ações comunicativas: veja bem, Habermas entendia que democracia não é simples representação com leis que, em tese, representam a vontade do povo. Antes é imprescindível a manifestação dialógica daqueles que agem comunicativamente acerca das normas e valores que promovem a integração social.

Habermas opera um deslocamento de enfoque, buscando o nexo interno entre autodeterminação moral e autorrealização ética, não na formulação de leis gerais, mas na formação discursiva da opinião e da vontade. A GUINADA LINGUÍSTICA DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA TRANSFERE A PRODUÇÃO DA TEORIA JURÍDICA DA POSITIVIDADE RACIONALISTA PARA A INTERAÇÃO COMUNICATIVA. Nesse modelo tanto as regras de aceitabilidade como a simples aceitação particular se estabelecem na ação discursiva em busca de consenso.

A democracia habermasiana não pode ser analisada pela simples verificação da existência de leis gerais. Essas pouco valem se não legitimadas pelo discurso, visto que os destinatários das normas são, simultaneamente, os autores de seus direitos.

Todo esse processo é acompanhado da progressiva racionalização do mundo da vida. A FORÇA MORAL (QUE SERVIA COMO GARANTIA INTERNA DE COESÃO SOCIAL) DÁ LUGAR AO CÓDIGO JURÍDICO QUE PROCURA MANTER, POR MEIO DE GARANTIAS EXTERNAS, A MANUTENÇÃO DAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE NECESSÁRIAS PARA QUE PROLIFEREM FORMAS DIALÓGICAS OPERANTES EM CONDIÇÕES EQUÂNIMES DE COMUNICABILIDADE. São necessários, então, mecanismos externos (uma vez que mecanismos morais internos perderam sua capacidade de interferência) que garantam essas condições de argumentação. Neste ponto, no entanto, deve-se evitar o retorno a uma metafísica jurídica que, justamente, é o alvo crítico da guinada linguística habermasiana. É preciso manter a perspectiva da formação das regras de comunicabilidade nos próprios processos intercomunicativos.

Com a complexificação da sociedade (desníveis sociais, administrativos etc.), ocorre uma maior dificuldade de manutenção da equidade argumentativa. Os agentes do discurso se tornam muito díspares, o que interfere negativamente no processo democrático sob o prisma da teoria do discurso.

Por tal motivo, ele estabelece princípios que garantem a equidade dialógica:

a) Direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas;

b) Direito ao status de membro de uma associação voluntária de parceiros do direito;

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c) Possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual;

d) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e por meio dos quais eles criam o direito legítimo;

e) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas de forma social técnica e ecológica.

Tais princípios são também orientações democratizantes. A democracia identifica-se com a formação argumentativa da opinião e da vontade, bem como é responsável pelas garantias externas da continuidade desse processo. Para Habermas, O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA REFERE-SE AO NÍVEL DA INSTITUCIONALIZAÇÃO EXTERNA E EFICAZ DA PARTICIPAÇÃO SIMÉTRICA NUMA FORMAÇÃO DISCURSIVA DA OPINIÃO E DA VONTADE, A QUAL SE REALIZA EM FORMAS DE COMUNICAÇÃO GARANTIDAS PELO DIREITO. Vide que o Direito tem importante papel de garantia, tem um caráter procedimentalista, garantidor de instrumentos que abram espaço à confirmação democrática discursiva.

Desta concepção emerge também a ideia habermasiana de Estado, mais precisamente de

Estado de direito. ESTADO representa um corpo jurídico encarregado de fornecer garantias externas à equidade argumentativa de todos os membros de uma livre associação de parceiros

de direito; DE DIREITO por originar-se do mesmo princípio democrático argumentativo fundamental que dá origem ao sistema jurídico. Este aparece, então, como sistema de poder e sistema de saber. O sistema jurídico gera e controla o sistema político, ao mesmo tempo em que o sistema político gera e controla o sistema jurídico: “A ideia do Estado de direito pode ser interpretada então como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo estatuidor do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da implantação fáctica de interesses privilegiados.

As características deste novo modelo institucional fundamentar-se-iam na “interligação conceitual entre direito e poder político”. A partir daí, emanariam alguns princípios fundamentais norteadores do aparelho institucional. Tais princípios seriam necessários em função de riscos apontados pelo próprio autor:

“O direito constitui poder político e vice-versa; isso cria entre ambos um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de uma instrumentalização do direito para o emprego estratégico do poder. A ideia do Estado de direito exige em contrapartida uma organização do poder público que obriga o poder político, constituído conforme o direito, a se legitimar, por seu turno, pelo direito legitimamente instituído.”

O que ficaria resguardado por essa instituição seria a formação democrática da vontade. Isso significa dizer que a primeira questão a ser apontada como princípio de democracia seria a ampla e livre participação de todos os membros de uma sociedade nos processos comunicativos norteadores dos acordos normativos nos quais se dá a formação democrática

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da vontade. Assim, um primeiro princípio a ser resguardado é o de que: a) todo poder deve emanar do “poder comunicativo dos cidadãos”. Na prática esse princípio remete a poderes parlamentares representativos e deliberativos. Uma segunda questão importante, imediatamente ligada à primeira, é o resguardo legal dos direitos do indivíduo à equanimidade argumentativa. Para tanto faz-SE NECESSÁRIO QUE A INSTÂNCIA JURÍDICA RESGUARDE-SE DA INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA. TAL ASPECTO É GARANTIDO POR MEIO DE UMA: B) JUSTIÇA INDEPENDENTE. É fundamental a garantia contra a instrumentalização do sistema jurídico. Em contrapartida, deve-se evitar a interferência do sistema nos processos comunicativos de formação da vontade. Ou seja, o poder normativo/administrativo não pode interferir nos princípios que fundamentam a orientação de sua formação. Esse princípio traduz-se pela: c) legalidade da administração, bem como controle judicial e parlamentar da administração.

Por fim, faz-se necessário um controle dos processos argumentativos, buscando lhes resguardar de interferências sociais não constantes no acordo comunicativo realizado entre os membros da sociedade de direito. A sociedade civil precisa amortecer e neutralizar a divisão desigual de posições sociais de poder.

1.3.9. Franz Kafka

1.3.10. Michel Foucault

1.3.11. Alf Ross

1.3.12. Heidegger

1.3.12. Hans-Georg Gadamer

A hermenêutica filosófica de Hans-Geörg Gadamer (surgida em meados do século XX) representa uma das instâncias críticas do pensamento epistemológico.

O seu livro mais conhecido, “Verdade e Método”, propõe uma reflexão acerca do caráter situacional dos processos de construção dos saberes, submetendo-os, portanto, a um necessário filtro histórico, com a indispensável mediação da linguagem como elemento constitutivo de todo e qualquer discurso.

No referido livro o filósofo recorre ao pensamento de Martin Heidegger para estabelecer a linguagem como ponto de partida de qualquer processo interpretativo, assimilando a noção existencial de Dasein, conceito que acompanha todo o desenvolvimento da obra.

O autor e a obra são importantes numa prova sobre as matérias humanísticas, pois o processo judicial é tomado por Gadamer como um exemplo típico do modo pelo qual se estabelece o processo interpretativo.

O modelo clássico da teoria do conhecimento (epistemologia) sujeito-objeto é substituído por Gadamer pelo diálogo SUJEITO-SUJEITO.

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Em outras palavras, Gadamer afirma que, para construir qualquer ciência ou discurso, não é a análise do objeto pelo sujeito que garante isenção e verdade.

Pelo contrário, somente compreendendo os processos históricos de interpretação de conceitos é que se poderia atingir minimamente um resultado seguro acerca do conhecimento, sobretudo nas ciências humanas.

Por isso, para o jurista, “ouvir a tradição” e com ela dialogar constituem tarefas irrenunciáveis quando em jogo a compreensão de normas e fatos.

A própria raiz etimológica da palavra “hermenêutica” está atrelada a uma visão dinâmica, baseada no ato de transportar mensagem, traduzir, “falar sobre” a tradição.

A pré-compreensão em Gadamer representa o conjunto das referências de um povo, de um grupo humano, que já é passado para cada indivíduo desde o seu nascimento e ao longo de sua vida. É a tradição.

Esses conceitos herdados da tradição, na medida em que se tornam controvertidos, são objeto de uma reflexão crítica (como ocorre, por exemplo, num processo judicial).

Mas a reflexão somente surge a partir do conteúdo herdado.

Para Gadamer é impossível uma relação sujeito-objeto, simplesmente porque todo objeto só é conhecido a partir da história que cada indivíduo aprendeu sobre ele desde o seu nascimento.

Os objetos não existem enquanto tais, diria Gadamer. Somente existem porque a eles nos referimos. E o próprio “referir-se” a eles já é um fenômeno de linguagem (o Dasein heideggeriano).

Transpondo para o direito, as normas e os fatos não existiriam como objetos estanques, sobre os quais fazemos incidir apenas uma análise a partir de um método desprovido de qualquer subjetividade.

As normas e os fatos nos são apresentados através de narrativas tradicionais. E toda narrativa é uma tradução, é uma transmissão de mensagem (hermenêutica).

Partindo da pré-compreensão das normas e dos fatos, por exemplo, o jurista os submeteria a um juízo crítico a partir da controvérsia sobre eles instaurada.

E num diálogo circular entre a tradição e a crítica, estabeleceria um “método” em espiral (o círculo hermenêutico), produziria o enriquecimento da tradição, assimilando novas perspectivas atuais não consideradas por ela.

Embora Gadamer não tenha em momento algum tratado de um método jurídico, a sua referência constante ao processo judicial em seus textos fez com que a teoria do direito se apropriasse de seus conceitos, propondo inclusive modelos metódicos.

É o que se nota, por exemplo, quando falamos em hermenêutica constitucional, cujos pontos de partida são inegavelmente aplicação, no direito, do pensamento de Gadamer.

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Em “Verdade e Método” Gadamer faz referências ao método interpretativo compilado por Savigny, que consiste na análise dos textos legais a partir de quatro parâmetros: literal, lógico-sistemático, histórico e teleológico.

Sobre tal método, o autor faz incidir a crítica que dirige à epistemologia em geral, pois também Savigny considerou que a tarefa do intérprete seria analisar o objeto e dele extrair conclusões.

É certo que Gadamer valoriza aspectos do pensamento de Savigny, pela ênfase que este conferiu à necessidade de reconstrução histórica dos conceitos.

Contudo, propõe o autor que tal “reconstrução” não seria apenas um momento da interpretação, mas seu ponto de partida e chegada.

13.12.1. Círculo Hermenêutico X Espiral Hemenêutica: Schleiermacher X Gadamer

No âmbito jurídico não pode ser considerada verdadeira a ideia de Schleiermacher sobre a existência de um momento no qual ocorre a compreensão total. Compatibiliza-se mais o pensamento de que:

O círculo da compreensão não é cumulativo, não é um círculo que se fecha sobre si mesmo, não tem a forma de uma circunferência, mas de uma espiral. Por isso, “não é correto falar em compreender melhor”, como se a verdade fosse um objeto a ser alcançado ao final do processo de elaboração da compreensão e de uma vez para sempre (...) explicita a prévia estrutura da compreensão e concebe a verdade como o sentido possível de ser manifestado e jamais esgotável (ALMEIDA, 2002, p. 275-276).

A percepção de Gadamer acerca do círculo hermenêutico é mais coerente com a seara jurídica, pois rechaça o ponto final no qual surge a verdade.

Ao contrário, as interpretações são inesgotáveis possibilidades. Este filósofo detalha seu pensamento da seguinte maneira:

“o círculo, portanto, não é de natureza formal. Não é objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão como o jogo no qual se dá o intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento do intérprete. A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão de um texto, não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que nos une com a tradição. Mas em nossa relação com a tradição essa comunhão é concebida como um processo em contínua formação” (GADAMER, 2005, p. 388).

Dessa forma,

“compreender não é compreender melhor, nem sequer no sentido de possuir um melhor conhecimento sobre a coisa em virtude de conceitos mais claros, nem no sentido da superioridade básica que o consciente possui com relação ao caráter inconsciente da produção. Basta dizer que, quando se logra compreender, compreende-se de um modo diferente” (GADAMER, 2005, p. 392).

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Há dois fatos que devem ser especialmente frisados: primeiramente, que a tradição influencia no processo de compreensão, isso significa que Gadamer considera o caldo cultural no qual o intérprete está imerso; e, secundariamente, para este filósofo inexiste a compreensão, como uma única possibilidade verdadeira, mas sim posições, interpretações. Neste ínterim, solução divergente entre juízes ou tribunais é apenas uma questão de interpretação adotada, não havendo certo/errado.

Isso remete a uma explicação de Hegel para a filosofia de Heráclito, expressa pelo pensamento de que “tudo o que é ao mesmo tempo não é, [o qual salienta] o fato de ele esclarecer que a certeza sensível não possui verdade alguma” (Os Pré-Socráticos, 1973, p. 106). Ora, se a certeza sensível não é verdadeira poder-se-ia falar em verdade única advinda de um texto? Palavras são mais confiáveis que os sentidos?

A posição de que “o que é, ao mesmo tempo já novamente não é” (Os Pré-Socráticos, 1973, p. 98-99) é plenamente verossímil quando pensamos no Direito, pois não há como, antecipadamente, ter plena certeza da decisão que será dada pelo julgador e a mudança de entendimento é algo comum no mundo jurídico. Inclusive poder-se-ia afirmar que é esta mutabilidade que dá vida ao Direito e impulsiona-o a um progresso.

Retomando a ideia gademeriana acerca da inexistência de uma interpretação correta, faz-se importante mencionar as palavras de Kelsen:

“A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vistas da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente” (KELSEN, 1998, p. 396).

Nota-se que Kelsen trata a univocidade das normas como uma ficção e assim ratifica a existência de interpretações, de possibilidades. Sendo o texto normativo dotado de vários significados, a segurança jurídica fica prejudicada pois depende da interpretação dada pelo órgão aplicador do direito.

Quanto à estrutura do círculo hermenêutico, interessante a representação como um espiral. Esta pode ser empregada para explicar o processo evolutivo do campo jurídico: o julgador parte do sistema jurídico (cuja hipotética e simplista composição foi anteriormente explanada) e de elementos da tradição, para assim interpretar os fatos expostos pelas partes e decidir; ocorre que essa decisão também passa a integrar o sistema jurídico e, portanto, modifica-o. Dessa forma, em uma demanda posterior tem-se novas partes, um sistema jurídico diferente, um julgador cujas idiossincrasias já não são exatamente as mesmas e pode-se cogitar que até mesmo a tradição já fora levemente alterada.

Em suma, a jurisprudência assume papel central no espiral jurídico-hermenêutico, pois além de ser o resultado da tutela jurisdicional é fonte do Direito. Através dessa mutabilidade há correção do direito abstrato, possibilitando que no âmbito discricionário haja uma constante atualização com vistas aos ideais sociais. A imagem do espiral salienta que o sistema jurídico não está completo, tampouco é fechado; ao contrário, está em permanente formação.

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1.3.13. Peter Habërle

Para um estudo aprofundado, ver o resumo de direito constitucional.

Professor alemão que escreveu A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: uma contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição, traduzido por Gilmar Mendes.

Existe, hoje, no mundo, uma ideia de uma prática no sentido de que a Constituição tem uma interpretação feita por uma sociedade fechada de intérprete, porque quem interpreta são os juízes. São intérpretes vinculados por corporações.

A interpretação da Constituição, então, tem sido assim. E Haberle diz que tem que se estabelecer algo diferente. Ele propõe uma sociedade aberta de intérpretes. A interpretação deve ser feita em uma sociedade aberta, plural. Não pode a interpretação ser restrita, porque não deve ser feita só pelo Tribunal, mas também pelo cidadão comum, quando pratica atos e se coloca da forma como a Constituição estabelece. Os atores sociais praticam a Constituição diariamente. As normas são estabelecidas para qualquer um. Existem forças interpretativas da Constituição que abrangem toda a sociedade. São sujeitos de interpretação da Constituição, não objetos da Constituição.

O processo de solução de conflitos, enquanto parte de interpretação da Constituição, é que vem sendo realizado por uma sociedade fechada, a sociedade das corporações, dos juízes. Como a interpretação é plural, em geral, deve ser plural, também, na concretização da solução do conflito. Haberle, então, prevê formas gradativas de participação dos atores sociais na solução do conflito. Isso bate com a idéia de Alexy de que se o ambiente discursivo é fechado, o discurso é piorado, porque há menos argumentos. Garante-se, assim, a participação democrática nas decisões.

A solução é estabelecer meios onde os argumentos possam ser escutados e praticados dentro do processo discursivo de decisão. Ex: audiências públicas em processo em julgamento, intervenção de terceiros, amicus curiae. Isso tudo aprimora o discurso que possa haver dentro do Tribunal. É feita, assim, uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição.

A Constituição não é norma positiva, mas é o que se faz, o que se compreenda como norma a ser aplicada. Não há Constituição, senão Constituição norma jurídica interpretada. A decisão se dá a cada momento, não há decisão prévia, permanente.

A garantia da independência dos juizes só é tolerável porque outras funções estatais pluralistas fornecem materiais para a lei. E se tornaria mais tolerável ainda na medida em que fosse aberto o processo decisório para a participação facultativa.

O desenvolvimento posterior deve ser pluralista.

A interpretação deve se mostrar apta a fornecer justificativas diversas e variadas.

Em face das questões mais polêmicas, o processo decisório deverá consultar a sociedade plural. Deve-se dar voz a todos os argumentos que possam haver. Uma questão tão grave não pode ser resolvida com ambiente restrito. O processo deve ser procedimentalmente plural. Deve-se analisar a opinião pública. O juiz não pode desconsiderar que o Congresso acabou de

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aprovar emenda sobre aborto; aquilo é um elemento argumentativo forte, porque é decisão democrática do povo; aquilo não pode ser ignorado, num processo onde todos os argumentos são expostos. Os juízes podem contrariar a opinião pública (porque nem sempre a maioria deve ganhar, cumpre ao Judiciário defender as minorias, principalmente aquelas que foram sub-representadas no processo democrático ou judicial), mas não se pode deixar de considerá-la.

A Constituição é o consenso que se produza sobre o que deve ser, a partir dos conflitos, dos compromissos. O Direito Constitucional é um direito de conflitos. A hermenêutica constitucional significa decidir conflitos e reconhecer compromissos.

Alguns autores não têm capacidade jurídica para atuar. Deve-se permitir que o auditório tenha elementos livres para participar do discurso, como lançar argumentos... Na medida em que se tenha ignorantes no auditório, o debate é piorado. Se a pessoa não entende, não consegue expor argumentos. OS IGNORANTES DO AUDITÓRIO DEVEM SER REPRESENTADOS POR QUEM POSSUA CAPACIDADE DE ENTENDIMENTO. É A INTERPRETAÇÃO PLURALISTA INSTITUCIONAL. Ex: defensoria pública como porta-voz dos ignorantes; ONG’s podem atuar em nome deles... são institucionalizações da razão, onde se procura determinar mecanismos jurídicos suficientes para dar vazão a todos os argumentos possíveis.

2. Correntes de Pensamento

2.1. Utilitarismo

2.1.1. Jeremy Bentham

2.1.2. John Stuart Mill

2.2. FenomenologiaSomente com HUSSERL, através da fenomenologia jurídica, é que se vai superar a ruptura kantiana, tentando relacionar os dois mundos separados, permitindo uma correspondência entre o ´ser´ e o ´dever ser´, ou mais precisamente, entre o ser e o pensar. O Ego, agora com HUSSERL, volta-se intencionalmente para os objetos individuais, colocando-os em parênteses e, podendo desta forma captar o eidos, a essência ideal do objeto. Esta tentativa de superação da dicotomia kantiana, através da fenomenologia de Husserl, repercute no pensamento jurídico, sobremaneira nos trabalhos do jurista alemão ADOLF REINACH (13), que publicou um livro no qual o Direito era tomado através de uma ótica fenomenológica. Resta, inconteste, que o pensamento kantiano além de originalmente ter contribuído para o desenvolvimento da filosofia do Direito, despertou entre juristas da época e posteriores efervescentes discussões jusfilosóficas tanto no sentido de depurar as suas teorias, quanto no intuito de superá-las.

2.2.1 Husserl

"Fenomenologia" escreve HUSSERL, "quer dizer, por conseguinte, a teoria das vivências em geral, e, encerrados nelas, de todos os dados, não só reais, mas também intencionais, que

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possam nelas se mostrar com evidência. A fenomenologia pura é, desse modo, a teoria dos fenômenos puros, dos fenômenos da consciência pura, de um eu puro, não se situando no terreno da natureza física e animal ou psicofísica.

Se quisermos, por exemplo, saber qual a consistência de um objeto como esta mesa, a fim de poder penetrar-lhe a essência, devemos considerá-la apenas como conteúdo da consciência, pondo entre parêntesis o fato de sua existência extramental, para uma descrição pura e imediata. Verificamos, por exemplo, que se trata de mesa envernizada, dotada de certa forma. Podemos, de maneira evidente, reconhecer, num ato espiritual, que a circunstância de ser ou não envernizada, de ser de mármore ou de bronze, são qualidades acessórias, que não dizem respeito à consistência daquilo que procuramos determinar como sendo o objeto "mesa" como tal.

Através desta análise em progressão, podemos e devemos atingir uma ou várias notas que não poderemos mais colocar entre parêntesis, porque, se o fizermos, o próprio objeto acabará entre parêntesis. . . Quando atingimos esse ponto, esse dado não abstraível, temos o que se denomina o eidos, a essência da coisa (redução eidética).

Note-se, desde logo, que o método fenomenológico implica uma mudança de atitude com referência ao objeto que se quer descrever, atitude esta que brota de uma exigência critica de rigor e de evidência. Não se deve confundir, pois, com a mera descrição empírica que pressupõe a "existência" de um fato ou de um ser fora do processo cognoscitivo. Ao contrário, para o fenomenólogo a existência autônoma ou não do objeto não é pressuposta pelo sujeito, pois tudo se situa no interior do processo intuitivo mesmo, na correlação sujeito-objeto, com abstração de tudo o mais, inclusive das noções comuns ou científicas sobre a ordem da natureza.

Ora, este processo de descrição e redução de essência completa-se, na doutrina de Husserl, com uma terceira fase, que é a da reflexão da consciência intencional sobre si mesma (reflexão fenomenológica), que marca sua orientação idealista, porquanto, depois de ter levado a termo a descrição do objeto de maneira perfeitamente neutra, e de efetuar a redução eidética, ele pretende volver à subjetividade transcendental, para descobrir o objeto como intencionalidade pura, como "conteúdo intencional da consciência".

É preciso, porém, não olvidar que, tendo Husserl concebido a consciência como "referência a algo" (intencionalidade da consciência), disto resultou um conceito de "subjetividade transcendental" que — longe de se reduzir ao "eu puro", universal e formal próprio da Filosofia de Kant — se refere a um "eu puro" cujo fundamento, observa Ferrater Mora, se acha constituído pela temporalidade e historicidade ³. Sem se levar em conta essa alteração substancial, não se compreende, em todo o seu alcance, a lição de Husserl sobre o "a priori material", não dependente do sujeito cognoscente, mas inerente às "coisas mesmas".

Somente atingimos a essência do Direito em virtude de uma intuição intelectual pura, ou seja, purificada de elementos empíricos, que são apenas condições da análise eidética. Não se trata, pois, de indução, mas sim de intuição puramente intelectual, como tal irredutível às regras comuns da abstração e da generalização empíricas.

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2.3. Realismo JurídicoOs realistas e os da corrente do direito livre afirmam que o Juiz é um criador, sofrendo a influência de múltiplos e variados fatores incidentes sobre o psiquismo humano no momento da decisão, desde as condições pessoais e internas, até as sociais e externas que de algum modo possam interferir no processo decisório. Sendo livre, não tem limites normativos, pois esta posição não reconhece valia no direito abstrato nem à razão como participantes da atividade interpretativa. Os mais extremados substituem as leis e regras de interpretação por sentimentos judiciais, aí incluindo instintos, emoções, sentidos.

Conforme os realistas, o Juiz é um criador, sofre influência de fatores de ordem orgânica, afetiva e circunstancial como qualquer pessoa, e em função disso age. A lei é um dado, entre outros, algumas vezes nem considerado para sua atividade. Só os fatos interessam ao Direito, que se limita ao mundo da experiência, onde se localizam os homens e a sentença que sobre eles dispõe. A decisão dada nessas condições não decorre da lei, não cabendo ao jurista, antes da sentença, senão formular simples profecias ou predições sobre o que possivelmente será decidido. A sentença é essencialmente um ato de vontade.

A grande contribuição dessa escola foi chamar a atenção para o fato muito simples de que o Direito existe no mundo real, onde ocorrem as relações humanas e a sentença, descortinando aí o contingenciamento do intérprete a essa realidade. Desvendou, como ninguém antes o fizera, o misticismo que entranha nossas ideias sobre o Direito. Apontou para o mito que realiza cada um dos grandes princípios jurídicos, que satisfazem exigências de segurança e de tratamento igualitário. Identificou na sentença seu componente de vontade, verificação que leva conseqüentemente a admitir a existência de elementos influentes na decisão que não estão absolutamente presentes na norma que o Juiz, numa posição ingênua, diz unicamente aplicar.

2.3.1 Oliver Holmes

O Realismo Americano, diferentemente, diz que o fundamento não está só nos tribunais, mas também em estudar a estrutura psicológica do juiz; um assim chamado “psicologismo jurídico”.

2.3.2. Jerome Frank

2.3.3. Olivercrona

2.3.4. Alf Ross

Para o Realismo Escandinavo o que interessa é a aplicação do direito nos tribunais. O direito só nasce a partir de sua aplicação e quanto mais ele é aplicado mais norma se retira da lei. Não se enclausurar em busca de teses. A díade fundamental do direito é a análise da lei pelos tribunais.

Para esse realismo a validade do direito se submete a sua eficácia. Descreve um direito real e não uma norma jurídica hipotética como a de Kelsen. A norma jurídica é o que os tribunais

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dizem da norma jurídica. Nesse sentido, Francesco Ferrara diz que os tribunais são os órgãos respiratórios do sistema jurídico.

Portanto, Alf Ross pretende descrever um direito real, e não um direito hipotético como o da norma fundamental de Kelsen. Norma jurídica para ele é o que os tribunais têm dito como norma jurídica, pois a norma por si não diz nada. Enfim, fazer Ciência do Direito para Ross é observar as práticas.

2.4. Direito Alternativo

2.5. Existencialismo

2.6. Ceticismo

2.7. Tridimensionalismo JurídicoO Direito, como qualquer ciência, constitui-se, em último grau, em UMA RESULTANTE FINAL DA PERCEPÇÃO INTERPRETATIVA (DE ÍNDOLE SUBJETIVA, INERENTE AO SEU CORRESPONDENTE JUÍZO DE VALOR, RELATIVO AO DENOMINADO MUNDO DO DEVER-SER, DOTADO DE SIGNIFICAÇÃO CULTURAL) DE UM DADO FATO SOCIAL, TRADUZINDO NECESSARIAMENTE UMA CONCEPÇÃO NORMATIVA (CULTURAL) DE PROJEÇÃO COMPORTAMENTAL E DE NATUREZA HERMENÊUTICA.

Por efeito consequente, a caracterização do Direito, como inconteste realidade científica, em sua vertente tridimensional, apenas reflete, em linhas gerais, o caráter comum da equação que sempre se constrói por intermédio da percepção interpretativa de um fato (valoração factual) concebendo uma norma resultante; sendo certo, sob este prisma, que as diferentes ciências e suas respectivas classificações se operam a partir, sobretudo, das duas diferentes possibilidades de percepções interpretativas de um dado fato produzindo normas finalísticas: de caráter objetivo (juízo de realidade inerente ao mundo do ser sobre fatos naturais, traduzindo normas (reais) explicativas) ou de caráter subjetivo (juízo de valor inerente ao mundo do dever-ser sobre fatos sociais, traduzindo normas (culturais) de projeção comportamental (hermenêutica) ou não comportamental).

Estrutura Tridimensional do Direito

O tridimensionalismo, essencialmente, constitui-se, portanto, em uma característica estrutural inerente a todas as ciências, - e não, como podem supor os menos avisados, a uma particularidade da Ciência do Direito -, ainda que sejamos obrigados a reconhecer que a denominada visão tridimensional de Miguel Reale, neste aspecto, transcenda à concepção básica da tríade Fato-Valor-Norma, comum a toda construção científica, para também abranger aspectos associados, próprios e específicos, da Ciência Jurídica, tais como aqueles integrantes da interação do fato com a validade social (sociologismo jurídico), do valor com a validade ética (moralismo jurídico) e da norma com a validade técnico-jurídica (normativismo abstrato), além de elementos de domínio que traduzem uma tridimensionalidade concreta ou

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específica: fato/eficácia (aspecto do ser), valor/fundamento (aspecto do poder-ser) e norma/vigência (aspecto do dever-ser).

Ciência Axiológica

Da mesma forma que o Direito se caracteriza, sob o prisma hermenêutico, como uma ciência de “duplo processo interpretativo” (ou “sobreinterpretação”), igualmente se processa como uma ciência de valoração factual ampliada, ou mesmo de “sobrevaloração”.

Isto significa, em linguagem objetiva, que, no âmbito da Ciência do Direito, o processo de valoração intrínseca de um fato, concebendo uma dada norma, não se restringe a um espectro valorativo (de cunho científico) nitidamente objetivo (ou exclusivamente interpretativo), mas, ao contrário, necessita da imposição de valores sociais (derivados da ética, da moral etc. e que, necessariamente, são mutáveis no tempo e no espaço) e de valores intrínsecos (tais como segurança, justiça, ordem etc.).

Como os valores axiológicos do Direito podem, inclusive (em dadas circunstâncias), ser antagônicos (segurança versus justiça, por exemplo), incumbe ao processo valorativo (de feição axiológica) particular do Direito a busca permanente de uma solução conciliadora, representada, em última análise, pela caracterização dicotômica dos diferentes ramos científicos do Direito (direito penal, civil, tributário etc.) que ponderam, de maneira propositadamente desigual, os diferentes valores intrínsecos a cada dada situação efetiva.

A norma é a reação do valor ao fato. Os fatos, a realidade viva, ao contradizerem os valores, idealidade abstrata, reclamam destes uma reação decidida: os valores se agigantam, então, ao construirem as normas como seus instrumentos.

A norma, assim e já em Miguel Reale, representa “uma solução temporária (momentânea ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos e valores, solução essa estatuída e objetivada pela interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social.

Especificidades da Ciência Jurídica

A percepção do Direito como inexorável ramo científico, todavia, não é, por si só, suficiente para a plena compreensão do fenômeno jurídico à luz das necessidades de superação das múltiplas questões que se apresentam. Muito pelo contrário, resta fundamental que o estudioso da matéria seja capaz de entender, de forma amplamente satisfatória, as três características basilares do Direito como ciência: projeção comportamental, axiologia e hermenêutica. A PRIMEIRA – PROJEÇÃO COMPORTAMENTAL – alude ao fato de que a preocupação vital do Direito resume-se, acima de tudo, em moldar comportamentos individuais e grupais, a partir de um quadro de ideias e valores (mutáveis no tempo e no espaço), idealizado pelo conjunto da sociedade, representada pelos seus legisladores.

Assim é que o Direito está, de modo constante e permanente, a orientar as condutas humanas em sociedade, a partir de suas normas jurídicas que são produzidas pelo conjunto da sociedade (ainda que através de seus representantes eleitos para tanto) e aplicadas (interpretadas) por um corpo técnico de julgadores, quando da eventualidade da existência do

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conflito (derivado da não-compreensão dos exatos termos da norma e/ou do efetivo e intencional descumprimento da mesma).

A SEGUNDA – A AXIOLOGIA – corresponde à inconteste existência de uma infinidade de valores intrínsecos ao Direito, donde se destacam, preponderantemente, os valores da justiça e da segurança.

Como ambos os valores são igualmente importantes, tratou o Direito (originalmente, uma inconteste realidade unitária) de se ramificar, permitindo o estabelecimento a priori de eventuais possibilidades de prevalência de um valor sobre o outro, quando preexiste a hipótese de conflito valorativo.

Desta maneira, prevalece, em última instância, a verdade real (em nome do valor da justiça) nas questões instrumentalizadas pelo Direito Processual Penal, ao passo que prepondera, em última análise, a verdade ficta, formal ou presumida (em nome do valor da segurança) nas questões (sobretudo patrimoniais) instrumentalizadas pelo Direito Processual Civil.

A TERCEIRA – HERMENÊUTICA – indica, sobremaneira, a existente interação funcional entre a apriorística parcela legislativa do Direito e a subsequente parcela judiciária, responsável última pela interpretação (e aplicação, nos eventuais conflitos) das normas jurídicas produzidas pelos representantes do povo (na qualidade de titular do Poder Político). Muito embora o conhecimento dessas três características basilares do Direito como ciência seja absolutamente fundamental para o entendimento e a compreensão última do fenômeno jurídico, é exatamente esta última característica (a hermenêutica jurídica) – e sua indispensável e plena compreensão – o fator primordial para o completo êxito deste objetivo, posto que tal característica atinge o âmago da concepção estrutural do Direito.

Aliás, neste particular, cumpre assinalar, de modo veemente, que o objeto específico (em seu sentido mais restritivo) do conteúdo dos cursos jurídicos cinge-se, preponderantemente (se não exclusivamente) à interpretação (e aplicação) da norma jurídica, produzida pelo legislador, e não propriamente à caracterização originária da lei (em seu sentido amplo) ou do próprio Direito, devendo, neste aspecto, serem afastadas, com sinérgica repulsa, quaisquer teses (ou posições) excêntricas (e altamente controvertidas), como a do propalado Direito Alternativo ou Direito Insurgente.

2.8. Jusnaturalismorepresenta a ideia que existe a uma ordem sobreposta à ordem doDireito Positivo, esta ordem dá fundamento e legitima o direito. É uma propostadualista para a compreensão dos fenômenos jurídicos, que aponta para umafundamentação metajurídica para compreender o próprio direito.Uma questão terminológica essencial é distinção entre Jusnaturalismo e Direito Natural.Eles não se confundem, o Jusnaturalismo é especificamente uma dentre as diversas

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Escolas do Direito Natural, ou melhor, o Jusnaturalismo é o chamado Direito NaturalContratualista. Entretanto, é permitido falar que jusnaturalismo seria todo essemovimento desde a Grécia antiga até a idade moderna que busca fundamentar elegitimar o direito a partir de uma ordem natural.Primórdios do Direito Natural:Sófocles, um dos maiores escritores trágicos, em Grécia no séc. V a.C., escreveAntígona1. Nesta obra encontramos o primeiro registro escrito quanto ao DireitoNatural.

As Escolas do Direitos Natural e a Declaração de Direitos Humanos: como apositivação dos direitos naturais.Momentos do Direito Natural: três momentos1) Antigo: Ideonômico; a ideia da justiça está fora do sujeito, o justo está na ordemuniversal. Filosofia do Objeto (Grécia até Kant). Essa fundamentação clássicaencontra-se principalmente na obra de Platão e Aristóteles.2) Medieval: Teonômico; está na vontade divina. Há um voluntarismo nessemomento, o livre arbítrio, como uma concepção básica do cristianismo, fundamenta aresponsabilidade do homem na escolha entre o bem e o mal. A fundamentação divinatudo ordena no universo. Toda essa abordagem pode ser encontrada na obra de SãoTomás de Aquino. Haveria nesta concepção quatro ordens legais:i) Lex Aeterna: é a própria lei de Deus. Ela não é conhecida pelo ser humano. Éa própria potência primeira, como pensava Aristóteles.ii) Lex Naturalis: ordenação de Deus sobre todo o universo. Todas as coisastêm uma ordem.iii) Lex Divina: é a ordem revelada por Deus através da bíblia, é o único acessodo homem à Lex Aeterna.iv) Lex Humana: seria o próprio Direito Positivo. Este deve se pautar na lexnaturalis e respeitar as formas da lex divina. Condicionamento direto do diretoà igreja. O Direito Canônico surge como a única forma de direito universaldurante 1000 anos.

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3) Moderno: Autonômico (própria lei), ou Contratualismo Naturalista, ou ainda,Escola do Direito Natural ou das Gentes.Grotius2 a Rousseau: Tanto Rousseau quanto Hobbes fundamentam oestado no Contrato Social.(1) Hobbes: o direito positivo decorre de um pacto social, saindo do estadonatural e entrando no Estado Civil.(a) Estado de Natureza: dor, desordem. O homem é o lobo do própriohomem (Homo homini lupus).(b) Contrato Social: possibilita o Estado Civil. O indivíduo se submete aoEstado (Leviatã).(2) Rousseau: o homem no Estado de Natureza é um “bom selvagem”. Ohomem tem liberdade incondicionada no Estado de Natureza, massubstitui essa liberdade, abdicando-se dela, para entrar no Estado. Ohomem contrata porque tem vontade livre e racional. Aqui o homemsubmete o Estado a sua vontade.ii) Kant: nos dizeres de Edgar Godói da Mata-Machado Kant não estaria nojusnaturalismo, mas sim em um jusracionalismo. Kant é de certo modolegatário de Rousseau. Surge no filósofo de Königsberg a distinção entre oConhecer e o Agir (Razão prática). Esta Razão Prática é o fundamento detodo o Direito, onde se encontram os imperativos categóricos.(1) Agir: forma infinita do homem de agir de acordo com sua liberdade, sejade pensar e de manifestar.Do movimento do Direito Natural à positivação dos direitos:Tércio Sampaio diz que dicotomia entre direito naturais e direito positivos foi mitigadacom a positivação dos direitos naturais na forma de direitos humanos, estes são osdireitos naturais positivados.Os direitos humanos são historicamente construídos.

2.9. JuspositivismoO positivismo é um movimento de interpretação e aplicação do direito, de estudo do direito que nasce no século XIX e tem a sua maior projeção na primeira metade do século XX. Existem várias vertentes no Positivismo.

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Uma, chamada vertente do Positivismo Normativista, cujo principal autor é Hans Kelsen, que praticamente iguala o conceito de Estado ao conceito de Direito. Para Kelsen não há Direito fora do Estado e esse Estado para ele é norma. Estado não é uma instituição, mas um conjunto de normas. Só é Direito aquilo que oficialmente emana do Estado, pelo devido processo legislativo.

Existem outras vertentes, uma das quais a mais importante é do Positivismo Sociológico, um dos principais autores é o Norberto Bobbio, que vê o Estado como um movimento social que, no entanto, só toma relevância a partir das normas que são positivadas pelo Estado.

Outra, a inicial, é o Positivismo Exegético, forte na escola da exegese pós-revolução francesa, que defendia que o juiz deveria ser simplesmente le bouche de loi, sem lhe ser permitido interpretar. Assim, sempre que dúvida houvesse, deveria ele buscar a solução no próprio Direito posto, pois buscava-se uma codificação plena e perfeita de todas as possíveis situações.

Então, a marca mais importante do Positivismo é dar um realce exacerbado à norma produzida pelo Estado sempre e isso é o que é o mais importante na visão positivista.

2.10. Pós-positivismoPós-positivismo é toda proposta de repensar o direito após o movimento positivista, que ideologicamente faliu, pois se acreditava que toda a realidade poderia ser posta em códigos. Portanto é uma maneira de repensar o direito além do positivismo jurídico. O pós-positivismo possibilitará o neo-constitucionalismo.

2.11. Moralismo Jurídico

2.12. Libertarismo

2.13. ComunitarismoDurante a década de 80, a teoria política anglo-americana foi dominada pelo aparecimento do comunitarismo que, tendo-se desenvolvido em aberta polêmica com o liberalismo em geral e o liberalismo rawlsiano em particular, pode ser entendido como uma corrente de pensamento que essencialmente contesta a insuficiência da teoria e prática liberal. Esta contestação e as respostas a que deu lugar animaram o debate ético-político sobretudo do continente americano onde, até então, num quadro geral de crise do socialismo, se antevia uma incontestada hegemonia do liberalismo, na teoria e prática tanto econômica como política. O desafio comunitarista a alguns dos axiomas liberais daria, assim, uma nova vida ao debate dentro do liberalismo.

Ao contrário do que a designação ‘comunitarismo’ possa indicar, não é tanto a questão da comunidade que está em causa no centro da controvérsia, mas a forma de entendimento do sujeito liberal e da justiça ligada à distribuição de recursos sociais. Embora seja clara a importância da comunidade como depositária de valores coletivos que hão de conduzir a vida humana, como dizem Cohen e Arato (1992), o que mobiliza o debate é então, por um lado, uma questão epistemológica – a questão de saber se é possível defender uma concepção universalista (deontológica) de justiça sem pressupor um conceito substantivo (histórica e

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culturalmente situado) de bem – e, por outro, uma questão política, que é a de saber se o ponto de partida para a liberdade devem ser os direitos individuais ou as normas partilhadas da comunidade.

Esta disputa entre comunitários e liberais pode ser vista como um novo capítulo de um confronto filosófico de longa data, dado que a discussão pertence, naturalmente, à grande tradição filosófica da oposição entre universalismo e contextualismo, à oposição entre comunidade e sociedade, ou ao problema dos termos da autonomia moral.

2.14. Lógica do Razoável

2.14.1. Noções Preliminares acerca da Lógica do Razoável

Com o advento da lei francesa 16, de 24 de agosto de 1790, que impunha ao juiz o dever de motivar a sentença, surgiu o interesse pela interpretação jurídica.

A Revolução Francesa, marcada pela vitória da burguesia, trouxe uma nova tendência que tomou conta do pensamento jurídico, qual seja, a preservação dos direitos individuais, limitados apenas pela norma, expressão dos ideais coletivos.

Se de um vértice verificou-se um extremado apego ao texto legal, no que se referia à interpretação e aplicação do Direito (positivismo exegético), de outro, foi imposta ao Judiciário a proibição de participar na criação jurídica, por ser atividade exclusiva do Legislativo, como órgão representante da vontade popular.

Decorrente deste pensamento, surge a concepção mecânica da função jurisdicional, de sorte que a sentença era considerada um ato meramente mecânico; um simples exercício de lógica dedutiva, destituída de qualquer elemento valorativo e alheia à realidade dos fatos.

Nesta esteira, a decisão proferida ou prolatada pelo julgador, seria então assemelhada à construção de um mero silogismo, em que a lei seria a premissa maior; a premissa menor, o caso concreto apresentado à apreciação; e, a conclusão, o “decisum”.

Das transformações verificadas no seio da sociedade, motivadas sobretudo pela Revolução Industrial e que alteraram sensivelmente as relações, surgiram ferrenhas críticas contra essa concepção, reclamando uma melhor adequação da lei à existência concreta, fazendo surgir novas posturas interpretativas.

Multiplicaram-se então as escolas e os métodos de interpretação, de sorte que em 1926 Recaséns Siches, professor da Universidade Nacional Autônoma do México, frequentou um curso na Universidade de Viena, onde o professor era Fritz Schreir, discípulo de Kelsen e Husserl. Neste curso, foi-lhe apresentada uma análise de todos os métodos de interpretação de que se tinha conhecimento. O objetivo básico era encontrar os critérios de eleição dos referidos métodos, mas o que restou foi uma decepção, pois não havia nenhuma razão justificada, em termos gerais, para preferir-se um método em detrimento dos outros.

É pertinente, a esta altura, ressaltar que Luís Recaséns Siches nasceu na Espanha em 1903, onde fez os seus estudos universitários no período compreendido entre 1918 a 1925. Não destoando daqueles jovens acadêmicos que pretendem alçar vôos maiores, avançou além do

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programa curricular, começando a desvendar, sozinho, os primeiros horizontes do pensamento jurídico, apaixonando-se pela Filosofia do Direito.

Nos seus estudos de pós-graduação, foi discípulo de renomados mestres, como Giorgio Del Vechio, em Roma, Rudolf Stanmmler, Rudolf Smend e Hermann Heller em Berlim, Hans Kelsen, Felix Kaufmann e Fritz Schrgirer em Viena, que inegavelmente eram os maiores expoentes do pensamento jurídico da época.

Inegavelmente ainda hoje, direta ou indiretamente, continuam orientando as linhas mestras da Filosofia do Direito.

Durante o tempo em que foi professor da “Graduate Faculty” da “New School for Social Research”, em Nova York, no período de 1949 a 1954, e da escola de Direito da “New York University”, entre 1953 e 1954, bem como de outras universidades norte-americanas, influenciado diretamente com o pensamento jurídico anglo-saxão, desenvolveu algumas ideias sobre a interpretação do Direito, a dupla dimensão circunstancial de todo Direito positivo, a lógica do humano e o caráter criador da função judicial.

Alguns anos antes, Benjamin Cardoso, ao analisar suas experiências jurídicas, já procurava saber quais eram os métodos que se empregava na interpretação do Direito positivo vigente. Basicamente concluiu que primeiro se buscava a solução mais justa e depois se preocupava encontrar, dentre os métodos de interpretação, o que melhor serviria para justificar esta decisão.

Para superar este dilema, Recaséns Siches, então retornando às cátedras da Universidade Nacional Autônoma do México, apresentou suas ideias em livro, defendendo o emprego de um só método, o da LÓGICA DO RAZOÁVEL, DEFINIDA COMO UMA RAZÃO IMPREGNADA DE PONTOS DE VISTA ESTIMATIVOS, DE CRITÉRIOS DE VALORIZAÇÃO, DE PAUTAS AXIOLÓGICAS, QUE ALÉM DE TUDO TRAZ CONSIGO OS ENSINAMENTOS COLHIDOS DA EXPERIÊNCIA PRÓPRIA E TAMBÉM DO PRÓXIMO ATRAVÉS DA HISTÓRIA.

Recaséns Siches defendia então que, assim como a Ciência Jurídica, a Filosofia do Direito não tinha condições de escolher um método ou uma tábua de prioridades entre os vários métodos de interpretação.

Decorre daí, que a única regra que se poderia formular, com universal validade, era a de que o juiz sempre deveria interpretar a lei de modo e segundo o método que o levasse à solução mais justa dentre todas as possíveis.

Defendia ele que esta atitude não se consubstanciaria em desrespeito à lei, porque segundo seu pensamento, ao legislador cabe emitir mandamentos, proibições, permissões, mas não lhe compete o pronunciamento sobre matéria estranha à legislação e referente apenas à função jurisdicional. Quando o legislador ordena um método de interpretação, quando invade o campo hermenêutico, esses ensaios científicos colocam-se no mesmo plano das opiniões de qualquer teórico e não têm força de mando.

É bem verdade que Alessandro Gropalli defende posição contrária, por entender que “as normas de interpretação da lei, mais do que simples critérios dirigidos ao prudente arbítrio dos

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magistrados, representam verdadeiras normas jurídicas, que, por isso, vinculam a sua atividade lógica e vontade, indicandolhes os meios de adotar e os fins a conseguir”.

PARA SICHES, AO CONTRÁRIO DO QUE OCORRE COM A LÓGICA DA INFERÊNCIA, DE CARÁTER NEUTRO E EXPLICATIVO, A LÓGICA DO RAZOÁVEL PROCURA ENTENDER OS SENTIDOS E NEXOS ENTRE AS SIGNIFICAÇÕES DOS PROBLEMAS HUMANOS, E PORTANTO, DOS POLÍTICOS E JURÍDICOS, ASSIM COMO REALIZA OPERAÇÕES DE VALORAÇÃO E ESTABELECE FINALIDADES OU PROPÓSITOS.

Destarte, não interessaria ao juiz e mesmo ao legislador, a realidade pura, mas sim decidir sobre o que fazer diante de certos aspectos de determinadas realidades, de sorte que este método seria o correto para a função jurisdicional.

Segundo o mesmo autor, o legislador opera com valorações sobre situações reais ou hipotéticas, em termos gerais e abstratos, de forma que o essencial em sua obra não reside no texto da lei, mas nos juízos de valor adotados como inspiradores da regra de Direito.

No que tange à atividade do magistrado, especialmente a sentença, é essa também fruto de estimativa, pois o juiz para chegar à intuição sobre a justiça do caso concreto, não separa sua opinião sobre os fatos das dimensões jurídicas desses mesmos fatos. Pois “a intuição é um complexo integral e unitário, que engloba os dois aspectos: ‘fatos’ e ‘Direito’.”

A este particular, o referido autor formula as seguintes observações: primeiramente entende que a intuição do juiz acha-se embasada na lógica do razoável e que, quando se fala que o juiz procura uma justificativa para o que pressentiu intuitivamente, isto não significa que deva recorrer àquelas pseudomotivações lógico-dedutivas, de que se serviram os juristas no século XIX, bastando oferecer uma justificação objetivamente válida, com embasamento na lógica do humano.

Isto faz com que a função do juiz, embora mantendo-se dentro da observância do Direito formalmente válido, SEJA SEMPRE CRIADORA, por alimentar-se de um amplo complexo de valorações particulares sobre o caso concreto.

NÃO SE TRATA, CONTUDO, DE DIREITO ALTERNATIVO, MUITO MENOS DO USO ALTERNATIVO DO DIREITO, PORQUANTO AQUI, TRATA-SE DE QUE O JULGADOR SE VALHA, AO INTUIR A SOLUÇÃO MAIS JUSTA APLICÁVEL AO CASO CONCRETO, DOS MÉTODOS TRADICIONAIS DE INTERPRETAÇÃO PARA JUSTIFICAR A SUA TOMADA DE DECISÃO.

Recaséns Siches explica ainda que a estimativa jurídica informa ao intérprete sobre quais são os valores cujo cumprimento deve ou não ser perseguido pelo Direito, tais como justiça, dignidade da pessoa humana, liberdades fundamentais do homem, segurança, ordem, bem-estar geral e paz. Mas há outros que podem ser englobados no conceito do que tradicionalmente se denomina prudência: sensatez, equilíbrio, possibilidade de prever as conseqüências da aplicação da norma e de sopesar entre vários interesses contrapostos, legitimidade dos meios empregados para atingir fins justos, etc.

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Resta claro, então, que Luís Recaséns Siches é o catalisador, na ciência jurídica latino-americana, das novas teorias em matéria de hermenêutica do Direito. Ao se referir ao festejado autor, Luis Fernando Coelho assim se expressou: “estas teorias que se afastam da silogística e da concepção subsuntiva da decisão judicial, fundamentam-se na prudência, na equidade e no sentimento do justo, ubicados no equilíbrio da dimensão humana, que o autor denomina o razonable, em oposição ao racional. As decisões jurídicas, antes de serem racionais, segundo a perspectiva lógico-subsuntiva, são razoáveis. A este novo pensamento, vinculado à dimensão humana, é que se denomina o logos do razoável.”

A lógica do razoável está exposta em três obras principais: “Tratado Geral de Filosofia do Direito”, “Nova Filosofia da Interpretação do Direito” e “Experiência Jurídica, Natureza das Coisas e Lógica do Razoável, já mencionadas em título original nas citações anteriores.

Siches observa que em todos os casos em que os métodos de lógica tradicional se revelam incapazes de oferecer a solução correta de um problema jurídico ou conduzem a um resultado inadmissível, a tais métodos não se deve opor um ato de arbitrariedade, mas uma razão de tipo diferente, que aliás, ORTEGA Y GASSET explica que: “razão no verdadeiro sentido, é toda ação intelectual que nos põe em contato com a realidade, por meio da qual, deparamo-nos com o transcendente.”(sem destaque no original) Na lição de Luís Fernando Coelho, Recaséns Siches parte das teorias de Scheller e Hartmam, de sorte que a principal preocupação é a conciliação da objetividade dos valores jurídicos, com a historicidade dos ideais jurídicos, a qual decorre de cinco fatores:

“- a mutabilidade da realidade social;

- a diversidade de obstáculos para materializar um valor em determinada situação;

- a experiência quanto à adequação de meios para materializar um valor;

- as prioridades emergentes das necessidades sociais, em função dos acontecimentos históricos; e,

- a multiplicidade dos valores.“

Fica bastante claro que o ponto de partida para a teoria do comportamento humano e a hermenêutica de Recaséns Siches é o seguinte fato: os homens discutem, argumentam, pesam suas razões, ponderam, deliberam sobre os problemas de seu comportamento prático, em debates que se travam à luz de determinados critérios estimativos. Isto ocorre, pois os homens querem solução para seus problemas de existência; as soluções que os homens encontraram para o seu comportamento prático não trazem em regra, a marca da verdade, da mentira ou da falsidade, do notoriamente errado ou certo, do absolutamente bom ou do mau, mas que basicamente estes consideram as mais justas, convenientes, adequadas, apropriadas, sensatas, eficazes, viáveis, prudentes, embora possam ser opostas à verdade e ao bem.

A SOLUÇÃO, ENTÃO, É RAZOÁVEL, “NÃO IMPORTANDO SE É RACIONAL OU NÃO, ISTO É SECUNDÁRIO; A SOLUÇÃO RAZOÁVEL É A SOLUÇÃO HUMANA, EMBORA NEM SEMPRE RACIONAL”, COMO LUCIDAMENTE AFIRMA LUIS FERNANDO COELHO.

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Aliás, prossegue afirmando que “a lógica do racional não é a lógica toda, somente uma parte dela, pois existe outra, a do logos do razoável”. Impende ressaltar aqui a justeza da medida derivada desta “intuição” do julgador em cada caso concreto submetido à sua apreciação.

Isto se explica na medida em que o que se sucede é que as leis não se aplicam sozinhas, por si mesmas, decorrente de um mecanismo intrínseco que elas tivessem, pois nem remotamente existe tal mecanismo.

As leis têm seu âmbito de império, dentro do qual figura um aspecto material, relativo ao conteúdo, ou seja, cada norma jurídico-positiva se refere a uns determinados tipos de situações, de assuntos, de fatos ou de negócios jurídicos, sobre os quais trata de produzir especiais efeitos; efeitos que o legislador, portanto, autor da norma, considerou justo, adequado e pertinente. Deve haver alguém que declare qual é a norma aplicável ao caso concreto, como é aplicável esta norma e com qual alcance. Este alguém é o juiz, na sua função interpretativa e agora privilegiado com as cláusulas gerais, com os conceitos legais indeterminados e conceitos legais indeterminados pela função.

Desta forma e além disto, na sua atividade jurisdicional, o julgador, indagando-se qual a norma aplicável, não se deve guiar somente por critérios formais, mas também, materiais. Portanto, para saber se uma determinada norma jurídica é aplicável ou não a certo caso concreto e em que medida, deve antecipar mentalmente os efeitos que esta aplicação haverá de produzir, como magistralmente defende Recaséns Siches.

Isto significa dizer que tal atividade conduz à interpretação da lei, precisamente do modo que leve a uma conclusão mais justa para resolver o problema no caso em análise. Ao fazer isto, não significa dizer que o julgador se distancie de seu dever de obediência ao ordenamento jurídico positivo, mas dá a este mister um mais perfeito cumprimento, dado que o legislador, em seu labor, o faz, de regra, com a melhor maneira possível de atender as exigências da justiça e os anseios dos jurisdicionados.

Destarte, se o juiz ou julgador trata de interpretar tais regramentos de modo que o resultado traga ao caso apresentado o maior grau de justiça, não faz nada além do que se propôs o legislador. Servindo ao mesmo fim, interpretar, reconstruir intuitivamente na sua imaginação, qual é a autêntica vontade do legislador e se os métodos aplicáveis produzem ou não uma solução justa.

Diante de tal argumentação, atribui-se crédito a tal teoria, não somente porque é da lavra de renomado autor, mas também porque o Direito não é algo estático, estanque, de sorte que o seu funcionamento não pode consistir apenas numa operação de lógica dedutiva.

É evidente que as atuais normas jurídicas, reformadoras de velhas instituições, bem como criadoras de outras, não podem e não devem ser entendidas como resultantes de um processo dedutivo, pois existe algo além, que é a consciência valoradora.

Destarte, o “logos” do razoável constitui a lógica que serve ao homem. Não está destinada a explicar, mas sim, compreender e penetrar o sentido dos objetos humanos. Está voltada para a adequação das soluções aos casos reais, ainda que de forma irracional, pois assim como o próprio Direito, é fruto da concepção humana, que tem por fim a realização de certos valores.

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Embora originando-se indiretamente de fatos, transcende às fronteiras fáticas, devendo ser visto numa noção de conjunto. Ademais, tem por objetivo a compreensão do sentido e nexos entre as significações, a fim de realizar operações valorativas, fixando finalidades e propósitos, pois o fato humano não se restringe apenas à causa e efeito, eis que tem um algo a mais, um sentido.

Este sentido se explica na multiplicidade de fatores que intervêm na vida humana, obrigando especialmente o julgador, que trata os conflitos humanos, a interpretar os sentidos e significações legais, pois, efetivamente, verifica-se que a atividade do legislador estava muito apartada da realidade.

Com o advento deste novo Código, a despeito de algumas fundadas críticas, outras desprovidas de suporte, podemos perceber a intenção do legislador, certamente influenciado pelo culturalismo de Miguel Reale, de tentar aproximar mais a sua função legislativa e a jurisdicional, dos anseios dos jurisdicionados.

Nem se discute da possibilidade, como defendem alguns autores, de que o legislador somente labora para o futuro, como norte ou referencial para a sociedade, pois em muitos casos encontramos injustificáveis equívocos.

Evidentemente, ainda que a regra ditada no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil15

esteja a serviço da segurança das relações, em muitos casos isto não coaduna com a realidade e com o caso concreto pendente de julgamento, em que a aplicação do texto da lei poderia conduzir a uma injustiça, não sendo destarte “razoável”.

Nesta esteira, isto comportaria uma hipótese: suponhamos um indivíduo que sempre viveu em uma região da selva amazônica, com parcos recursos e raros contatos com aquelas comunidades ribeirinhas, onde precariamente aprendeu a “desenhar” seu próprio nome. Este indivíduo é preso em flagrante ao derrubar determinada espécie de árvore para fazer uma canoa, imitando o que sempre viu seu avô e seu pai fazerem. Em um país de dimensões continentais como este, composto em grande parte de sua população, de analfabetos ou semi-analfabetos, seria “justa” sua reclusão, dado o fato típico praticado? O mesmo não poderia acontecer com um indivíduo no sertão nordestino? Será que todos os profissionais do Direito, seus operadores, têm pleno conhecimento de todas as disposições editadas em sede de Medidas Provisórias?

Ao que parece, o legislador pátrio, quando da elaboração da regra constante no artigo 14, inciso I da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, teve tal preocupação, ao “intuir” que no caso concreto poder-se-ia verificar tal situação. Tanto é verdade, que a regra está assim disposta:

“Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena:

I – baixo grau de instrução ou escolaridade do agente.”

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Aliás, tal medida somente vem a roborar o que já estava consagrado na âmbito do Direito Penal, no tocante à figura do Erro sobre a ilicitude do fato, explicitada no artigo 21 do Código Penal vigente:

“Art. 21 O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.

Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”

Ora, da mesma forma já abordada no tocante ao comentário do artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, o agente não pode pretender se livrar da responsabilidade penal, alegando simplesmente que ignorava a lei, pois para a segurança do sistema jurídico-penal, quando a lei entra em vigor, pressupõe-se ser conhecida por todos. Daí o período destinado à sua divulgação. Entretanto, é inegável que o legislador penal não se colocou em posição de cometer possíveis injustiças, porque dentro de sua atividade, ao que se nos parece, não desconheceu ou desconsiderou a nossa realidade social, reafirmando o objeto de sua “intuição”, na regra do artigo 65 do mesmo diploma legal:

“Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

I - .....

II – o desconhecimento da lei.“

Evidentemente que a segurança das relações não pode coadunar com a simples alegação de desconhecimento, mas em casos especiais, pode-se conduzir a verdadeira injustiça. Muito certamente, o legislador mexicano debruçou-se sobre sua realidade, sobre seus problemas sociais, reconheceu as deficiências e deu margem ao julgador, de que em certos casos, poderia consultar o Ministério Público e aplicar à situação, a medida justa e razoável.

2.14.2. A Lógica do Razoável e a Interpretação

A interpretação das normas jurídicas incluem a referência a princípios axiológicos e a critérios valorativos, os quais muitas vezes não estão expressos no texto da lei, o que resulta dizer, que um ordenamento jurídico positivo não tem como funcionar, atendendo-se única e exclusivamente ao que nele está formulado.

Destarte, torna-se mister recorrer a princípios ou critérios, que embora não formulados explicitamente, são necessários, na medida em que o texto legal deva ser interpretado em função do propósito para o qual fora emitido, sempre com relação ao sentido e o alcance dos fatos particulares em relação à norma.

Desta forma, a interpretação apenas literal, além de absurda, torna-se sem sentido, pois se está buscando uma interpretação, esta nunca poderá ser literal, ainda que realcemos a importância do caráter semântico como elemento facilitador de acesso à correta via de interpretação.

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Não fosse somente por este particular, temos ainda que o sentido das palavras empregadas pode ser delimitado, de sorte que por mais que o legislador se esforce, na qualidade de transmissor, o receptor jamais conseguirá fixar de modo preciso, o sentido claro e inequívoco das palavras empregadas, o que se deve basicamente à plurisignificação das palavras e também à mudança de sentido que estas sofrem através dos tempos.

Assim, Recaséns Siches aponta que o sentido de uma palavra ou frase, sobretudo nas normas jurídicas, nunca está terminantemente definido nem completo. Muito pelo contrário, seu significado existe somente em relação com a singular realidade do problema humano prático sobre o qual deva operar.

Como o legislador ou o órgão jurisdicional, ao usar palavras e frases, dá o sentido atual que elas têm na cultura de seu país, deve o julgador usar da atividade criativa do espírito para julgar com propriedade.

2.14.3. A Lógica do Razoável e a Função Legislativa

Como já mencionado alhures, na atividade de elaboração da norma, o legislador tem diante de si um enorme leque de opções e, por certo, deve escolher a que melhor se ajuste aos propósitos eleitos, no sentido de melhor adequação ao fato social gerado no seio da sociedade, que “requeira” e que justifique a sua formulação.

Impende esclarecer que o termo “requerer” adredemente destacado, está intimamente ligado àquela crítica de que o legislador, em várias situações, estaria apartado da realidade.

Destarte, delimita então o campo axiológico, e, aplicando a Lógica do Razoável, deverá eleger valores que interessem ao mundo jurídico. É bem verdade que existem alguns valores, como os religiosos, entendidos como de superior hierarquia, que se realizam espontaneamente. Somente a título de ilustração, mister se faz mencionar que os valores estéticos, tidos como de menor hierarquia, como o estabelecer distinção entre o belo e o feio, não são relevantes.

O que importa ressaltar é que não se deve cogitar de hierarquia entre valores, pois este não é um critério a ser seguido pelo legislador. A Justiça sim é um valor que sempre deve inspirar o legislador, já que entre outras funções, ao Direito se designa a incumbência de garantir a realização de alguns valores e prestigiar outros para a garantia da paz social.

Resulta disto que a atividade legislativa deve estar impregnada de critérios valorativos, mas que não podem ser fornecidos pela lógica formal, mas sim, pela lógica do humano, pela Lógica do Razoável.

2.14.4. A Lógica do Razoável e a Função Jurisdicional

Como visto no item retro, o legislador opera com valorações sobre os tipos de situações reais ou hipotéticas, valorações sobre gêneros ou espécies de situações, enquanto o Juiz, na sua atividade jurisdicional, completa a obra do legislador. Isto porque em vez de avaliar os tipos de situações em termos de gênero e espécie, avalia as situações individuais em termos concretos. Torna-se evidente então a incontestável diferença entre a operação do julgador e a do legislador, pois o essencial na atividade do primeiro não é necessariamente o texto da lei.

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A despeito de colocado no presente opúsculo, de uma maneira bastante sintética, Recaséns Siches elabora um esquema das situações em que pode o juiz se encontrar, no mister de sua tarefa de prestação da tutela jurisdicional, elaborando a norma individualizada, encontrada de maneira clara e precisa, também na monografia de Lídia Reis de Almeida Prado:

“Situação 1 - Aparentemente existe uma norma vigente, aplicável ao caso em julgamento, de modo a lhe produzir uma solução satisfatória. Mas, mesmo nesta situação, o magistrado realiza uma série de juízos axiológicos: para encontrar a norma, para apreciar a prova e qualificar os fatos, e para adequar o sentido abstrato e geral da norma à significação concreta do caso controvertido;

Situação 2 - Há dúvida sobre a qual das normas de mesma hierarquia, mas de conteúdo diferente, deve ser aplicável ao conflito. Em tal hipótese, além das valorações referidas na "situação 1", o juiz, após analisar os resultados que cada uma dessas normas produziria, deve escolher aquela que conduz a uma solução mais justa;

Situação 3 - À primeira vista, o juiz, por se deixar influenciar por nomenclaturas e conceitos classificatórios contidos numa norma, pensa estar diante da regra que cobre o caso. Mas quando ensaia mentalmente a aplicação desta à controvérsia sub judice, percebe que a aplicação de tal norma à espécie, levaria a uma conseqüência diversa ao resultado a que a norma propõe, ou seja, contrária aos efeitos que o legislador pretendeu ou que teria pretendido se tivesse em vista a controvérsia concreta da questão. Em tal circunstância, o juiz deve afastar a norma aparentemente aplicável à espécie e considerar-se diante de um caso de lacuna.

Situação 4 - Por mais que o juiz investigue, não contém o Direito positivo vigente uma norma aplicável ao caso. Nessa situação, dá-se uma autêntica hipótese de lacuna.”

Após a apresentação dessas situações, Siches adverte serem frutíferas para análise das situações "3" e "4", algumas considerações sobre a equidade, que serão feitas no próximo item.

Como o processo de produção do Direito não se encerra com a promulgação da lei, mas sim no momento de sua individualização, que é a fase concreta, pode-se afirmar que esta é a mais importante. Mesmo não se verificando lacunas e contradições na lei, o órgão jurisdicional, no momento de julgar o caso concreto a si apresentado, valora as provas e fatos aos autos carreados, qualificando-as de maneira jurídica e adaptando-as ao geral e abstrato sentido da lei. Isto o faz, porque ao se deparar com leis contraditórias, deverá optar por uma ou outra, e pautar-se por critérios de justiça, antecipando mentalmente os efeitos que da aplicação da norma advirão e verificar se tais efeitos estão de acordo com os propósitos da lei. Nada mais lógico e razoável do que isto.

2.14.5. A Lógica do Razoável e a Equidade

A equidade deve ser considerada em toda extensão possível do termo e liga-se a três acepções intimamente correlacionadas no dizer de Alípio Silveira, e que são as seguintes:

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a) latíssima, o princípio universal da ordem normativa, a razão prática extensível a toda conduta humana como religiosa, moral, social, jurídica e outras, que configura-se como uma suprema regra de justiça a que os homens devem obedecer;

b) lata, confundindo-se com a ideia de justiça absoluta ou ideal, com os princípios de Direito, com a ideia do Direito, com o Direito natural em todas as suas significações;

c) estrita, o ideal de justiça enquanto aplicado, ou seja, na interpretação, integração,

d) individualização judiciária, adaptação, etc. Sendo, nessa acepção empírica, a justiça no caso concreto.

A equidade, segundo Agostinho Alvim, classifica-se em legal e judicial. Na primeira, seria a contida no texto da norma, que prevê várias soluções, por exemplo, o artigo 10, §§ 1º e 2º, da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977.

Torna-se evidente que ainda antes do advento do atual Código, o juiz ao aplicar tal preceito em benefício das partes, sempre averiguava certas circunstâncias, como idade dos filhos, inocência ou não dos pais, e outras. Todavia, em todas estas situações, vê-se claramente um standard jurídico, e que “há um apelo à equidade do magistrado, a quem cabe julgar do enquadramento ou não do caso, em face das diretivas jurídicas”, no dizer de Limongi França.

Na segunda concepção do aludido autor, a judicial, podemos dizer que é aquela em que o legislador permite, explícita ou implicitamente ao julgador, no caso concreto, como no caso do artigo 1040, IV do Código Civil de 1916, que antes da revogação promovida por força da Lei 9.307/96, consistia na autorização, dada aos árbitros para julgarem por equidade, fora das regras e formas de direito.

Dos requisitos que Limongi França aponta, o que mais ressalta aos olhos quanto à pertinência deste trabalho, é no que tange à omissão, defeito ou acentuada generalidade da lei.

A equidade é tradicionalmente vista como um método para colmatar, para corrigir a lei em sua aplicação ao caso concreto, daí, a advertência de Recaséns Siches no sentido de ser indispensável a restauração da autêntica perspectiva de equidade, que foi mostrada, entre outros, por Aristóteles e Cícero.

Para Aristóteles, a equidade consistia na expressão do justo natural em relação ao caso concreto, sendo superior ao justo legal. Em outras palavras, a equidade é o autenticamente justo a respeito do caso particular.

Observava Aristóteles que o erro resultante da aplicação da fórmula geral da lei a casos particulares diferentes dos habituais por ela previstos, não é um erro que tenha praticado o legislador, não é um erro que esteja na lei mas algo que decorre da natureza das coisas, porque a lei só pode reger universalmente.

Segundo Cícero, equidade não consiste em corrigir a lei na aplicação desta a casos, mas sim, na sua exata aplicação, precisamente de acordo com as verdadeiras vontades do legislador, acima da imprecisão das palavras.

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O que Siches extrai dos ensinamentos de Cícero e Aristóteles é que o legislador elabora suas normas gerais tendo em vista as situações habituais. Quando se tratar de um caso que não pertença a esse campo de situações, como quando o caso se apresenta como um tipo diferente daqueles que serviram de motivação na elaboração da lei ou, se a aplicação da regra genérica ao caso produzir resultados opostos àqueles a que se propôs, então deve-se considerar aquela regra como não aplicável à espécie. E se não há, na ordem jurídico-positiva, outra norma que sirva para resolver satisfatoriamente o caso, o juiz deve considerar-se como se estivesse diante de uma hipótese de lacuna.

Isto ocorre porque o problema de se decidir se uma norma jurídica é ou não aplicável a um determinado caso concreto, não se resolve por procedimento de lógica dedutiva. Ao contrário, é um problema que se pode solucionar somente por ponderação e estimativa dos resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações reais.

Siches conclui que correto é o caminho de se considerar a equidade como um "procedimento-adaptação" das normas jurídicas aos casos práticos, conjugando-as com as cambiantes necessidades da vida. No dizer de Lídia Reis de Almeida Prado, a equidade não é um método de interpretação, mas o meio de interpretação, pois foi um antecedente, um pressentimento do "logos" do razoável em matéria da interpretação das normas jurídicas.

Maria Helena Diniz, supeditando-se em Recaséns Siches, afirma que a equidade aparece na aplicação do método histórico-evolutivo no que pertine a interpretação do Direito, pois preconiza a adequação da lei às novas circunstâncias e do método teleológico, que requer a valoração da lei a fim de que o órgão jurisdicional possa acompanhar as vicissitudes da realidade concreta.

Desta forma, pela equidade, compreendem-se e estimam-se os resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações fáticas; se o resultado prático concorda com as valorações que inspiram a norma em que se funda, tal norma deverá ser aplicada. Todavia, se ao contrário, a norma aplicável a um caso singular produzir efeitos que viriam a contradizer as valorações, conforme as quais se modela a ordem jurídica, então indubitavelmente, tal norma não deve ser aplicada a esse caso concreto, o que resulta dizer que a equidade está consagrada como elemento de adaptação da norma ao caso concreto.

Na leitura, ainda que perfunctória da regra ditada no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, vê-se claramente que é possível corrigir a inadequação da norma ao caso concreto. Destarte, a equidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos.

Por derradeiro a este tópico, convém ressaltar a posição de Vicente Ráo que apresenta três regras que devem ser seguidas pelo magistrado ao aplicar a equidade:

“a) por igual modo devem ser tratadas as coisas iguais e desigualmente as desiguais;

b) todos os elementos que concorreram para constituir a relação sub judice, coisa ou pessoa, ou que, no tocante a estas, tenham importância, ou sobre elas exerçam influência, devem ser devidamente considerados;

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c) entre várias soluções possíveis deve-se preferir a mais humana, por ser a que melhor atende à justiça “.(sem destaque no original)

A equidade, então, confere um poder discricionário ao magistrado, mas não uma arbitrariedade. É uma autorização de apreciar, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular. Um poder conferido ao julgador para revelar o direito latente. Ora, como valer-se da equidade, aplicando-se a lógica do razoável, sem considerarmos o poder de intuição do julgador?

2.14.6. Aplicações Práticas

As aplicações em casos práticos são da mais variada natureza possível. Não somente naqueles casos já suscitados, que de certa forma contestam a regra ou aplicação do artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil mas que diuturnamente ocorrem.

Com específica relação aos negócios jurídicos, podemos arrolar como grandes exemplos, ainda que outros possam ser alinhados, todas as disposições constantes do Livro III, Título I, Capítulo IV, dos defeitos dos negócios jurídicos. É que os efeitos reflexos destas patologias podem ser causa de extremada injustiça se o julgador se descuidar das considerações alinhadas neste trabalho e, em alguns casos, aplicar a norma positivada como está e declarar a nulidade ou a anulação de um negócio defeituoso.

É ainda possível destacar dentre estes, os artigos 156 e 157 e respectivos parágrafos, pois o leitor poderá perceber a imensidão de situações conseqüentes da falta de razoabilidade. Aliás, esta foi a impressão digital do legislador: faltou com a razoabilidade nestas específicas disposições. A despeito dos elogios que são merecedores os aludidos artigos, não podemos nos furtar à crítica, dadas as omissões que também são resultantes, como a previsão do parágrafo segundo do 157, inexistente no artigo 156.

Com base nestas ponderações, espera-se que a razoabilidade oriente o julgador no instante de analisar o caso submetido à sua apreciação e que os conceitos de “grave dano” e onerosidade excessiva sejam realmente verificados no negócio jurídico, eis que a norma do artigo 171 determina a sua anulação. Todavia, talvez em algumas situações, o melhor mesmo não seria retira-lo do mundo jurídico, mas sim promover medidas que equilibrem a relação jurídica e atenuem a onerosidade para patamares aceitáveis de acordo com a função social do contrato.

Demais disto, como esperar que o julgador atinja a percepção da intenção da vontade prevista no artigo 112 do vigente Código, sem uma atividade intuitiva e razoável? Como detectar e aplicar o preceito de boa-fé explicitado no artigo 113?

Será que no caso em concreto a atividade interpretativa, acerca do que seria “pessoa de diligência normal” é algo que não exige uma maior cautela e que a falta de razoabilidade não poderia conduzir à injustiça?

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2.15. Teoria da Argumentação Jurídica13

2.15.1. Introdução

É comum, ao sermos iniciados no mundo jurídico, ouvirmos e idealizarmos a figura do operador do Direito, como aquele profissional capaz de articular com perspicácia o sistema normativo com as minúcias de cada caso concreto. Como se o conhecimento amplo dos recursos oferecidos pelo ordenamento jurídico desse conta da complexa dimensão das relações humanas. Não basta sermos operadores do Direito, devemos ser “pensadores do Direito”. Temos que ser capazes de medir os efeitos de nossas ações perante o mundo e a responsabilidade que decorre delas. Pensar o Direito envolve o ato de articular o pensar com a ação argumentativa no mundo que expressa a reflexão, e por isso o exercício do Direito está intimamente ligado à argumentação. Esse processo demanda uma dialética constante do jurista com a realidade social e, de modo geral, aqueles que conseguem desenvolver essa aptidão são frequentemente reconhecidos por sua sabedoria e respeito à função social do Direito.

A argumentação é uma atividade indispensável ao Direito, sem ela a própria base principiológica dos ordenamentos jurídicos estaria em ameaça. Os juízes, em geral, e principalmente as cortes constitucionais estariam fadados a cumprir dogmaticamente a Lei, e haveria um retrocesso ao método clássico da Escola da Exegese que permitia apenas uma interpretação literal. Os princípios constitucionais e o próprio funcionamento do Direito estariam mitigados se não fosse possível conferir boas razões para lhes servir como fundamento ao serem reivindicados os direitos.

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA SURGE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX COM O OBJETIVO DE PROPOR MECANISMOS DE CONTROLE SOBRE A RACIONALIDADE DO DISCURSO JURÍDICO, POSSIBILITANDO QUE AS DECISÕES JURÍDICAS SEJAM PAUTADAS POR CRITÉRIOS SEGUROS FRENTE À COMPLEXIDADE DOS CASOS CONCRETOS. Em contraposição àqueles que defendem a pós-modernidade, a Teoria da Argumentação Jurídica é uma retomada à crença na racionalidade iluminista e, como observaremos, possui algumas deficiências. O nosso objetivo é realizar uma análise sucinta da evolução deste ramo ainda recente da filosofia do Direito e posteriormente expor críticas a esse modelo de racionalidade, visando ao aprimoramento e ao surgimento de novas alternativas. Após esta breve introdução, adentremos no cerne das reflexões que pretendemos desenvolver.

2.15.2. A Teoria da Argumentação Jurídica como Controle de Racionalidade

A racionalidade jurídica pode ser analisada sob diversos enfoques convergentes, entre eles a questão da produção do Direito, o que remete à questão da democracia e do Estado de Direito, bem como a discussão sobre a mudança de paradigma empreendida pela filosofia da linguagem, o que nos leva à Teoria da Argumentação Jurídica. Os autores que acabaram por construir o modelo padrão de Teoria da Argumentação Jurídica atual (Viehweg, Perelman, Maccormick, Alexy, Aarnio, Habermas, etc.) acreditam no poder emancipatório da Razão, são, portanto, herdeiros do iluminismo. O debate se acentua quando os pós-modernos negam a utilidade desse tipo de teoria, pois a falência do discurso moderno teria trazido uma incredulidade em relação às metanarrativas, ou seja, nem a Razão, a religião, a política, a 13 Extraído do texto: “A Teoria da Argumentação Jurídica como controle de racionalidade: breves considerações acerca de sua viabilidade”, de Adílson Silva Ferraz.

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moral, a ciência, a arte e quaisquer sistemas totalizantes poderiam solucionar a condição fragmentada em que se encontra a humanidade14. A atualidade se caracterizaria pela consumação da capacidade crítica do sujeito (redução dos espíritos) e pela extinção das formas filosóficas que serviam de referência para pensar o estar-no-mundo. Apesar das variadas críticas, a teoria da argumentação jurídica continua em plena expansão e se destaca pela interdisciplinaridade, ao envolver diversos ramos do conhecimento em suas discussões.

De forma sucinta, a função da Teoria da Argumentação Jurídica é evitar arbitrariedades nas decisões jurídicas, oferecendo respostas para a questão das várias possibilidades de aplicação do Direito, explicitada desde Kelsen na sua Teoria Pura do Direito. O pensador da Escola de Viena falava em uma indeterminação do sujeito frente aos seus atos jurídicos, ou seja, a possibilidade de escolher entre vários caminhos de fundamentação, interpretação e soluções diferentes15. O Direito formaria uma moldura dentro da qual estariam contidas as várias possibilidades de aplicação. Portanto, o grande problema da metodologia jurídica atualmente é garantir que as decisões jurídicas sejam fundamentadas racionalmente mesmo quando o Direito positivo não oferece uma solução imediata e satisfatória para o caso concreto.

Há ainda outro aspecto relevante, o Direito não é uma ciência empírica. Alguns de seus ramos sim, como a Sociologia do Direito, a História do Direito e a Criminologia. Nas ciências naturais, o objeto de estudo é extensional, pode ser mensurado, pesado, verificado pela experiência sensorial. Já a Ciência do Direito trata da norma, do dever-ser, de modo que a dogmática jurídica envolve conceitos, regras e princípios na solução das suas controvérsias. Mas se a Ciência jurídica não engloba verificação empírica, quais seriam seus critérios de verdade e segurança? Seria preciso desenvolver cada vez mais mecanismos que permitam a ação dos juristas em função de uma técnica objetiva e que possibilitem maior grau de imparcialidade na produção e na aplicação do Direito.

Os melhores candidatos para essa função seriam os cânones do Direito (métodos de interpretação), mas da sua utilização decorrem algumas dificuldades. Os resultados poderiam variar a depender do intérprete, há muitos cânones e não há hierarquia entre os mesmos. Apesar das deficiências, os cânones apresentam uma lógica interna importante para as decisões jurídicas. A Tópica, com seus catálogos de Topoi, e a Nova retórica, de Chäim Perelman, representaram um avanço, mas não atingiram uma solução adequada por não estabelecer procedimentos seguros quanto aos resultados e por não dar a devida importância para os elementos formais do ordenamento jurídico, enquanto um sistema dinâmico de normas produzido pelo Estado. Dessa forma, critérios mais sólidos são necessários para resolver casos jurídicos quando, mais do que a dogmática jurídica, é utilizada a razão prática em detrimento da irracionalidade dos nossos impulsos, emoções e interesses.

O caso Elmer (Riggs versus Palmer), citado por Dworkin, demonstra bem a dificuldade em manter uma fundamentação racional frente a casos controversos (hard cases). Elmer assassinou o avô por envenenamento em Nova York, em 1882. Sabia que o testamento deixava-o com maior parte dos bens do seu avô e desconfiava que o velho, que voltara a se

14 Pós-modernidad aqui tratada nas vertentes do ceticismo e do existencialismo.15 Kelsen entendia que o ato de interpretar era um ato de vontade, e não de conhecimento.

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casar havia pouco, pudesse alterar o testamento e deixá-lo sem nada. O crime de Elmer foi descoberto e ele foi considerado culpado e condenado a alguns anos de prisão. Estaria ele legalmente habilitado para receber a herança que seu avô lhe deixara no último testamento? A lei de sucessões da época não explicitava nada sobre o direito de herança na hipótese de o herdeiro assassinar o testador. A maioria dos juízes da mais alta Corte de Nova York decidiram em acordo com a lei, o único voto dissidente foi do juiz Gray, que defendia que o testador teria conhecimento e assumiu a responsabilidade por todas as cláusulas do testamento ao estipulá-las. Além disso, se Elmer perdesse a herança por causa do assassinato, estaria sendo duplamente punido por seu crime (bis in idem). Esse tipo de caso controverso não é incomum e revela como é complexo decidir quando há conflito entre a esfera jurídica e a moral, pois o senso de equidade não só se revela em seguir princípios corretos, mas também em aplicá-los de forma imparcial, considerando-se todas as circunstâncias especiais, de modo que não é possível abdicar da moralidade, da ética (razão prática).

Enquanto perdurou a visão positivista de raciocínio jurídico própria da exegese, as decisões judiciais eram consideradas uma simples operação dedutiva de subsunção, devendo a solução ser alcançada unicamente segundo o critério da legalidade, sem levar em consideração o seu caráter de razoabilidade. A concepção positivista tinha como consequência negar o papel da lógica, dos métodos científicos e do uso prático da razão, rompendo a tradição aristotélica que admitia a sua utilização em todos os domínios de ação. No século XX, com o resgate da tradição retórica e em virtude da mudança de paradigma empreendida pela linguistic turn, foi reconhecida a importância do desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica. Essa necessidade é ainda mais premente, já que a complexidade, função e estrutura do Direito se diferenciam de outros fenômenos sociais justamente porque a prática jurídica é essencialmente argumentativa. A seguir, analisaremos mais detalhadamente dois modelos de Teoria da Argumentação, desenvolvidos por Jürgen Habermas e por Robert Alexy.

2.15.3. A Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas

Introduzindo em 1981 uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, Habermas publica “Teoria da Ação Comunicativa”, aquela que é considerada sua obra mais importante. Nessa obra o filósofo alemão demonstra sua capacidade de dialogar com desenvoltura com as diversas correntes filosóficas e científicas. Quanto à crítica à sociedade moderna, assume um caminho próprio em relação aos filósofos da Escola de Frankfurt, desenvolvendo uma teoria comunicativa calcada num procedimento discursivo que prescreve a igualdade entre os sujeitos, de modo a precaver a alienação e a dominação. Os escritos de Habermas foram marcantes na formulação de uma teoria do discurso prático racional geral e posterior elaboração da Teoria da Argumentação jurídica. Para os fins do nosso estudo, destacaremos sucintamente alguns aspectos da sua teoria do discurso e a sua relação com a construção da democracia através do consenso.

A Teoria do Discurso de Habermas explica a legitimidade do Direito com auxílio de regras e pressupostos de comunicação que são institucionalizados juridicamente, os quais permitem concluir que os processos de criação e de aplicação do Direito levam a resultados racionais.

Ora, para Habermas, a prática da linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um

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consenso. Assim, O CONSENSO SOCIAL DERIVA DA AÇÃO COMUNICATIVA, ou seja, uma orientação que responde ao interesse por um entendimento recíproco e pela manutenção e proteção de uma intersubjetividade permanentemente ameaçada no mundo da vida. A prática da ação comunicativa objetiva resgatar da razão a sua verdadeira função social, já que, “no curso da modernização capitalista, o potencial comunicativo da razão é simultaneamente desdobrado e deformado.” Nem sempre a ação é voltada para o entendimento e na maioria das vezes se reveste de estratégias (ação estratégica) visando a outros fins, envolve uma comunicação distorcida ou é impossibilitada pelas características físicas e psíquicas dos sujeitos.

O discurso pressupõe a argumentação, a participação de atores que se comunicam livremente e em situação de simetria. Habermas reconhece que uma ética formada com base no consenso discursivo é quase inalcançável, porém, não impossível. Dessa forma, os pressupostos da racionalidade comunicativa serviriam como uma idéia reguladora de uma ética pragmática.

Habermas fornece dois princípios que são complementares e orientam a argumentação no

sentido ético. O primeiro é chamado de “PRINCÍPIO DO DISCURSO”, representado por (D), o qual é colocado como uma condição anterior ao discurso. De acordo com (D): “São válidas as normas racionais às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.” Ou seja, só são válidas as normas que puderem ser assentidas por todos os participantes do discurso. Habermas é radical em afirmar que só sob essa condição é que as normas (jurídicas ou morais) provenientes do discurso são válidas. A adesão de todos significa também a sua participação integral na produção da norma, o que torna qualquer um competente para resgatar a sua pretensão de validade para assegurar a obediência.

Enquanto o princípio (D) se refere ao processo de elaboração da norma, o princípio (U) refere-se às consequências de sua realização. Esse princípio não tem conteúdo como uma norma positivada, pois esta é uma tarefa histórica de cada sociedade. Tem o objetivo de ser apenas o método, o procedimento pelo qual as normas advindas do discurso são justificadas. Esse

princípio de regulação da ética é chamado de (U), ou “PRINCÍPIO DE UNIVERSALIZAÇÃO”. Seguindo um critério de fundamentação da ética segundo normas, a correção das ações entre os sujeitos diz respeito à retitude dessas ações em relação às normas vigentes. O princípio (U) informa que “Qualquer norma válida deve satisfazer a condição de que as consequências e os efeitos colaterais, que resultarem previsivelmente da sua observância geral para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos, possam ser aceitos sem coação por todos os afetados.” Esse princípio expressa a idéia de uma fundamentação discursiva da ética, informando que só podem reclamar validez das normas que encontrem ou possam encontrar assentimento de todos os participantes do discurso. Uma norma que não satisfaça essa condição não é uma norma moral ou válida. Uma norma justificada por esse processo é uma norma boa para todos os envolvidos. O que determina o caráter moral de uma norma de ação é que ela possa ser aceita como justa por qualquer um que a analisasse. A aceitação sobre a decisão tem que ser compartilhada não pela maioria, mas sim por todos. Assim, age moralmente quem age de acordo com uma norma que foi fruto

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de um procedimento de universalização dessa conduta, decorrente do consenso de uma comunidade ideal de comunicação.

É na sua obra de 1992, intitulada “Direito e Democracia: entre Facticidade e Validade”, que Habermas tenta unir a sua teoria discursiva ao Direito. Até esse livro, não havia conferido ao Direito um papel central na sua teoria, limitando-se a examinar indiretamente o seu desenvolvimento histórico tendo a racionalidade como parâmetro. A grande questão que Habermas tenta solucionar é: como o Direito pode ser legítimo recorrendo apenas à própria legalidade? O Direito seria uma amálgama entre facticidade e validade, entre o mundo da vida e o sistema, impedindo a colonização do primeiro pelo segundo. Afirma ainda que as ordens jurídicas modernas não podem tirar sua legitimação senão da idéia de autodeterminação, com efeito, é necessário que os cidadãos possam conceber-se a qualquer momento como os autores do Direito ao qual estão submetidos enquanto destinatários. A tese defendida por Habermas é a de que não se pode supor que a fé na legalidade de um procedimento legitime-se por si mesma, pois uma correção processual das etapas de formulação do Direito aponta para a base de validade do Direito. Então, o que dá força à legalidade é justamente a certeza de um fundamento racional que transforma em válido todo ordenamento jurídico. Mas como pode a legitimidade surgir da legalidade? Somente à medida que a legalidade é resultado da criação discursiva e reflexo da opinião e da vontade dos membros de uma comunidade jurídica. De acordo com Habermas, a pergunta pela legitimidade da ordem legal não obtém resposta adequada quando se apela para uma racionalidade jurídica autônoma, isenta da moral. Para Max Weber, as ordens estatais ocidentais seriam desdobramentos da “dominação legal”, do uso legal da força. A legitimidade conferida à legalidade advém da fé nas formas jurídicas independentemente da tradição ou do carisma. Weber introduziu um conceito positivista de Direito, segundo o qual o Direito é aquilo que o legislador, legitimado ou não, produz como norma através de um processo institucionalizado. Isso significa que o Direito tem uma racionalidade própria que independe da moral. Habermas discorda dessa posição afirmando que o Direito é moral na medida em que é produzido sob as condições de uma argumentação racionalmente moral. A legitimidade pode ser obtida através da legalidade, na medida em que os processos para a produção de normas jurídicas são racionais no sentido de uma razão prático-moral procedimental16. Não há uma identificação intrínseca entre legalidade e legitimidade, de modo que a legalidade não produz legitimidade de per si. Somente uma legalidade legítima produz legitimidade, ou seja, a legitimidade é resultante do entrelaçamento entre os processos jurídicos e uma argumentação moral que obedece à sua própria racionalidade procedimental (Discurso). Assim, para Habermas, só tem sentido falar em legitimidade da legalidade à medida que a juridicidade se abre e incorpora a dimensão da moralidade, estabelecendo assim uma relação com o Direito que, ao mesmo tempo, é interna e normativa. Em síntese, só é legitima a legalidade circunscrita em uma racionalidade cujo procedimento se situa entre processos jurídicos e argumentos morais.

16 Assim, o fundamento democrático do Direito é o próprio procedimento prévio de criação baseado no consenso. Como nele atuaram pessoas livres e racionais, dotadas de moralidade, o resultado do trabalho legiferante só pode ser legítimo. Como Habermas pregava o consenso, se a norma não fosse produzida por essa via, ela seria legal, mas não legítima.

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O Direito não seria um sistema fechado em si mesmo, o que possibilita uma abertura, inevitável, aos discursos morais. Dentre os princípios do Direito moderno, há em grande parte os princípios morais, que possuem uma dupla estrutura: ao mesmo tempo em que são morais, foram incorporados ao sistema jurídico por meio da positivação. A segunda questão que ele procura responder é: A moral é capaz de garantir a integração da sociedade? Habermas procura aliar a moralidade com a segurança jurídica, e essa abertura do Direito à Moral significa uma incorporação da moral à própria racionalidade procedimental. Um dos pontos mais conflituosos da teoria de Habermas é justamente a ética do discurso. Chega à conclusão de que um discurso que gera as normas entre os indivíduos calcado apenas na moral (Razão Prática) não é capaz de garantir as pretensões de validade do discurso e é por isso que atribui ao Direito o papel de intervir como Medium, estabilizando a tensão entre a facticidade dos procedimentos jurídicos e a validade desses procedimentos, confrontando-os ao contexto histórico de cada sociedade.

Até as Tanner Lectures Habermas defendia uma relação de co-originariedade entre Direito e Moral, em que sua origem é simultânea, declinando-se posteriormente em favor de uma complementação recíproca. Essa relação de complementação recíproca significa que, ao mesmo tempo em que o Direito e a moral podem se originar simultaneamente, ocorre o condicionamento da ordem jurídica a uma esfera moral superior que a legitima, sendo a validade inerente ao Direito falível e sempre aberta à problematização pela sociedade através do discurso: “Para que o Direito mantenha sua legitimidade, é necessário que os cidadãos troquem seu papel de sujeitos privados do direito e assumam a perspectiva de participantes em processos de entendimento que versam sobre as regras de sua convivência.” Enquanto pessoa moral, o sujeito encontra-se sob o domínio da cultura, tendo como referência os valores sociais pelos quais age segundo seus interesses. Por pertencer simultaneamente à esfera da cultura e ser institucional, o Direito tem a capacidade de compensar as fragilidades morais do indivíduo. Ao se integrar a uma comunidade jurídica, ou seja, ao ser sujeito de Direito, retira-se o fardo das decisões individuais e se passa a decidir intersubjetivamente. É sob a tutela do ordenamento jurídico que a pessoa moral se livra do fardo de decidir monologicamente e pode decidir universalmente. Assim, o critério de Justiça é transferido, por meio do Direito, para o momento de formalização institucional da validade das normas, e já que o Direito complementa a moral, irradia a moralidade em todas as áreas da ação humana. Assim, ressalta que esse direito retira dos indivíduos “o fardo das normas morais e as transfere para leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação”. O Direito deve agir como medium de integração social, pois lhe cabe evitar ações moralmente inadmissíveis e estratégicas, além de solucionar os conflitos de forma democrática. Ocorre uma transferência de responsabilidade para o Direito, que retira o peso do sujeito de decidir o que é justo ou injusto. É o Direito o encarregado de barrar os excessos do sistema econômico e político, porque ele, ao mesmo tempo em que regulamenta o poder e a economia, também regulamenta as expectativas dos sujeitos no mundo da vida. Cumpre, assim, uma função integradora. Embora o Direito e a Moral sejam esferas distintas, não existe preponderância de uma sobre a outra, sendo que o processo legislativo, as decisões judiciais e a própria Dogmática Jurídica atrelam a ambas uma reciprocidade. Habermas, de certa forma, recusa a credibilidade de uma esfera moral individual que oriente nossas ações de forma confiável. A resolução dos problemas desliga-se da tradição e atrela-se ao procedimento unicamente.

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A Teoria da Ação Comunicativa garantiria através de procedimentos democráticos o diálogo racional e justo entre a sociedade civil, o mercado e o Estado, permitindo a autonomia no sentido de auto-regulamentação. O pensamento de Habermas foi o alicerce para os modelos padrões de Teoria da Argumentação Jurídica.

2.15.4. Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy

É interessante perceber que Alexy, influenciado por Kant e Habermas, e Neil Maccormick, por Hume, Hart e pela tradição da Common Law, trilharam caminhos diferentes em direção ao mesmo objetivo, alcançando resultados semelhantes. Ambos pensadores partiram da necessidade de construir uma teoria da argumentação para o Direito e do reconhecimento de que o juiz não decide exclusivamente com base na capacidade de extrair logicamente conclusões válidas (silogismo jurídico), mas deve julgar mesmo na ausência desses pressupostos lógicos, naqueles casos em que não é claro o método que utilizará para argumentar racionalmente. A decisão judicial nestes casos sofre a abrangência interpretativa do ordenamento jurídico e é pautada primordialmente segundo a razão prática e pelos princípios gerais de Justiça. Por isso o principal objetivo da elaboração de uma teoria da argumentação para o Direito é encontrar uma forma de manter a racionalidade do discurso jurídico, conferindo o máximo de segurança às decisões jurídicas.

Alexy retoma a difícil questão enfrentada desde Kant: é possível a moral ser racionalizada? E aproxima o problema especificamente para o Direito, ao qual a mesma pergunta repercute indiretamente: é possível uma argumentação jurídica racional? Obter uma resposta satisfatória seria bastante útil nas decisões que se tornam complexas por envolverem conflito de princípios, normas, valores etc. Da própria argumentação jurídico-racional depende não só o caráter científico do Direito, mas também a legitimidade das decisões judiciais. A racionalidade de um discurso prático poderia ser mantida ao serem cumpridas as condições expressas por um sistema de regras ou procedimentos. A racionalidade do discurso se define pelo conjunto dessas regras do discurso, portanto, o critério de racionalidade não se refere a uma verdade ontológica a priori, mas a um critério de “correção” do agir conforme o procedimento17. Nesse sentido, a racionalidade deve ser entendida enquanto “racionalidade comunicativa”.

A aplicação das regras do discurso não leva à segurança de sua efetividade, mas a uma considerável redução de sua irracionalidade. A Teoria da Argumentação Jurídica constitui, de certo modo, uma busca por uma objetividade na prescrição de normas ou condutas aceitas indiscriminadamente por todos aqueles que participam do discurso e que possam ser universalizáveis.

Embora tenhamos citado o caso Riggs versus Palmer descrito por Dworkin, este discorda em vários pontos de Alexy, se recusando a construir um sistema de regras procedimentais como fez o jurista de Kiel. No ensaio “Sistema Jurídico, Principios Jurídicos y Razón Práctica”, ALEXY APRESENTA SUAS OBJEÇÕES À TESE DWORKIANA DA EXISTÊNCIA DE UMA ÚNICA RESPOSTA CORRETA PARA UM CASO CONTROVERSO (HARD CASE). O filósofo de Oxford rejeita duas correntes de pensamento, o convencionalismo, que considera a melhor interpretação a de que os juízes descobrem e aplicam convenções legais especiais, e o pragmatismo, que encontra na 17 A racionalidade do discurso jurídico, para Alexy, não está, então, no seu objeto, mas no adequado procedimento que ele trilha para ser desenvolvido.

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história dos juízes vistos como arquitetos de um futuro melhor, livres da exigência inibidora de agir coerentemente uns com os outros.

Dworkin desenvolve sua teoria levando em conta o giro hermenêutico empreendido por Heidegger e Gadamer. A orientação do decidir humano estaria submetida à orientação e aos limites das pré-compreensões inscritas na consciência histórica do sujeito. Com a metáfora do “Juiz Hércules”, Dworkin defende a figura ideal de um magistrado capaz de decidir de maneira criteriosa e íntegra, através de uma interpretação construtiva do ordenamento jurídico como um todo, considerando também a leitura da sociedade quanto aos princípios envolvidos no caso. Portanto, dentro dos limites da história e da moralidade está circunscrita a única resposta certa para cada caso. ALEXY DEFENDE QUE HÁ UMA MULTIPLICIDADE DE OPÇÕES E QUE A SUA ESCOLHA DEVE SER PAUTADA SEGUNDO OS CRITÉRIOS DE CORREÇÃO DO DISCURSO. Como não é possível uma teoria da razão prática de cunho ontológico, somente se pode recorrer para as teorias morais procedimentais, que formulariam regras ou condições para a argumentação e para uma decisão racional18. A teoria da correspondência de Aristóteles é então superada na medida em que o critério da verdade não é mais a correspondência entre a asserção que descreve algo e a realidade, mas

construída discursivamente. Portanto, A VERDADE NÃO ESTÁ NO MUNDO, É UMA PRODUÇÃO CULTURAL HUMANA SUBORDINADA À REFUTABILIDADE (FALSEABILIDADE) E QUE, POR SER HISTÓRICA, PODE SER NEGADA E SUBSTITUÍDA POR UM NOVO ARGUMENTO RACIONAL QUE LHE SIRVA ENQUANTO FUNDAMENTO.

A argumentação jurídica é vista por Alexy como um caso especial da argumentação prática geral. Sua peculiaridade está na série de vínculos institucionais que a caracteriza, tais como a Lei, o precedente e a dogmática jurídica (tese do caso especial). O procedimento da teoria da argumentação jurídica é vinculado a quatro níveis de limitação: o discurso prático geral, o procedimento legislativo, o discurso jurídico e o procedimento judicial. Mas mesmo esses vínculos, concebidos como um sistema de regras, princípios e procedimento, são incapazes de levar a um resultado preciso. As regras do discurso serviriam então para que se pudesse contar com um mínimo de racionalidade. Assim, ter-se-ia uma decisão aproximadamente correta.

Embora o discurso jurídico esteja circunscrito às regras da razão prática geral, Alexy afirma a necessidade de formulação de regras próprias à atividade da argumentação jurídica.

A justificação das decisões jurídicas poderia se dar através de uma justificação interna (internal justification) e uma justificação externa (external justification). Na justificação interna a decisão segue logicamente das suas premissas (silogismo jurídico), enquanto o objeto da justificação externa é a correção dessas premissas. A partir das teorias do discurso prático da ética analítica (naturalismo, intuicionismo, emotivismo, Wittgenstein, Austin, Hare, Toulmin e

18 Veja a grande diferença entre o procedimentalismo de Habermas e o procedimentalismo de Alexy. Em Habermas, o procedimentalismo é voltado à política, à formação do Direito, criando-se condições discursivas adequadas entre os participantes do jogo político. Em Alexy, o procedimentalismo é voltado para a atuação do juiz (especialmente), no estabelecimento de critérios e condições para uma argumentação judicial válida do ponto de vista racional.

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Baier), da teoria consensual de Habermas e da teoria da argumentação de Perelman é que Alexy retira o substrato para estabelecer o conjunto de procedimentos da sua teoria da argumentação jurídica, entre eles a regra das cargas da argumentação e a regra de transição. A obra de Alexy é um marco na história da Filosofia do Direito, e, apesar das deficiências e críticas à teoria da argumentação, esse ramo se confirma como uma das promessas do porvir da Ciência do Direito.

ALEXY DIZ QUE A LEGITIMAÇÃO DO TRIBUNAL É ARGUMENTATIVA. O TRIBUNAL CONVENCE NÃO POR UMA PRESUNÇÃO DE QUE O PESO DA CORREÇÃO REPOUSA NO FATO DA MAIORIA TER DECIDIDO. TEM SUA LEGITIMIDADE ARGUMENTATIVA, NO MODO ARGUMENTATIVO, A PRESUNÇÃO DE QUE AQUELE GRUPO SE HOUVE COM A MAIOR CORREÇÃO POSSÍVEL AO DECIDIR EM UMA ÚLTIMA INSTÂNCIA DE DEBATE. É assim que sustentamos o STF. O Tribunal tem que convencer a população em cada julgamento de que somente se pode concluir pelo justo daquela maneira. Tanto o Tribunal quanto o Parlamento são representantes do povo, mas atuam de maneiras diferentes. O Parlamento atua democraticamente, e o Judiciário atua argumentativamente. O Tribunal age em nome do povo, às vezes até contra o processo político democrático. A representação argumentativa dá certo quando o Tribunal é aceito como instância de reflexão do processo político democrático.

Observe-se que o Judiciário é um órgão político também, mas que atua argumentativamente.

O Tribunal é a institucionalização da razão. A segurança jurídica é dada pelo Tribunal quando da solução para conflito que perturba a segurança jurídica. O tribunal concretiza direitos fundamentais em um Estado Constitucional Democrático. A democracia convive com a legitimação argumentativa.

2.15.5. Teoria da Argumentação Jurídica de Chaïm Perelman: A Nova Retórica

Chaïm Perelman foi um filósofo do Direito que apesar de nascido na Polônia, viveu grande parte de sua vida na Bélgica, tendo estudado Direito e Filosofia na Universidade de Bruxelas. Sua obra principal é o Traité de l'argumentation - la nouvelle rhétorique5 (1958), escrita juntamente com Lucie Olbrechts-Tyteca, obra base de sua Teoria da Argumentação. Importantes contribuições no campo filosófico o qualificam como um dos mais importantes teóricos da Retórica do século passado. O estudo da argumentação em seu Traité de l'argumentation foi sistematizado em três grandes partes: os pressupostos, os pontos de partida da argumentação e as técnicas argumentativas, essas últimas, por exigirem um tratamento mais profundo do tema, não são indicadas para uma abordagem que se propõe inicial. Por esse motivo, considerando a proposta apresentada, trabalharemos basicamente com os pressupostos da argumentação.

A sua idéia de redefinição da retórica centra-se no conceito de auditório, ou seja, os destinatários de um discurso. Trabalhando com a premissa de contato de espíritos, Perelman defende a argumentação como meio de promover uma adesão de espíritos por intermédio da não-coação. Pensamento de grande valia, uma vez que se alcança a adesão do destinatário, mediante suas próprias convicções. Desse modo, destaca o discurso como um importante elemento da argumentação, sendo o fator que efetuaria a interação entre orador e auditório, entre emissor e destinatário.

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Assim, para um completo tratamento do tema, torna-se importante apresentar os elementos da argumentação, visualizados nos conceitos de orador, discurso e auditório, que são pressupostos para o entendimento da nova retórica. Partindo posteriormente para o conceito perelmaniano de auditório universal, imprescindível destacar sua importância como parâmetro ideal para o desenvolvimento da argumentação, bem como para a definição das estratégias argumentativas pautadas na persuasão e no convencimento. Estas estratégias, em virtude de sua importância, também serão objeto de uma breve discussão, tendo em vista a ligação intrínseca que possuem com os auditórios a que são direcionadas. Finalmente, com a intenção de resgatar parte do pensamento do filósofo belga, cabe apresentar a ligação existente entre seu conceito de auditório universal e a concepção da situação ideal de fala, trabalhada por Habermas e Alexy, demonstrando em que medida tais idéias atuam na busca pela universalidade e racionalidade do discurso jurídico.

2.15.5.1. Os Elementos da Argumentação

A discussão proposta não está relacionada a um estudo da oratória, entretanto, sendo a Teoria da Argumentação de Perelman uma retomada da antiga arte retórica concebida por Aristóteles, o estudo do pensamento perelmaniano, poderia parecer em um primeiro momento, uma simples reedição dos antigos ensinamentos do filósofo grego. Todavia, o próprio Perelman afirmou que seu trabalho se tratava de uma nova visão acerca da antiga retórica, mantendo com relação a esta, basicamente a idéia de auditório (PERELMAN, 1996:7).

Em seus estudos, o filósofo belga destaca alguns pontos de suma importância para o entendimento desta nova retórica. O discurso é compreendido como argumentação. Orador e auditório são, respectivamente, aquele que apresenta o discurso e aqueles a quem o discurso é dirigido (PERELMAN, 1996:7). Assim, Perelman promove interessante construção ao estabelecer discurso, auditório e orador como elementos da argumentação, entendida aqui em sentido amplo, como método para provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas (PERELMAN, 1996:4).

Tal ponto de vista é bem fundado na idéia de que auditório e orador são elementos em profunda e constante ligação. O auditório determina o modo de proceder do orador, enquanto o orador deve se adaptar às características do auditório, de modo a alcançar melhores resultados em sua empreitada. Dessa maneira, não há como afastar a idéia de que a argumentação se desenvolve para o auditório.

Acerca do orador, Perelman destaca a importância da constante adaptação do discurso aos destinatários, afirmando que cabe ao auditório o papel principal para determinar a qualidade da argumentação e o comportamento dos oradores (PERELMAN, 1996:27).

O auditório, entendido, a priori, como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação, pode ser concebido de três formas distintas. A partir de sua extensão, Perelman e Olbrechts-Tyteca nos apresentam três modelos:

a) O primeiro é o auditório universal, constituído por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais.

b) O segundo formado apenas pelo interlocutor a quem se dirige, entendido como um diálogo.

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c) O terceiro auditório abrange o próprio sujeito, quando delibera consigo próprio, hipótese em que coincidem os elementos auditório e orador (PERELMAN, 1996:33-34).

Tal extensão não pode ser compreendida simplesmente como a visualização física dos destinatários do discurso. Essa dimensão física é facilmente visualizada em um discurso verbal, todavia, não é bem estabelecida em um discurso escrito. O exemplo clássico é o do escritor que publica um livro, mas não sabe ao certo, no momento da confecção ou publicação, quem é o seu auditório. Desse modo, um dos grandes problemas colocados à frente do orador é descobrir quem de fato são os seus destinatários, os quais são imprescindíveis para o processo de adaptação e construção. Essa construção do auditório, à luz dos destinatários, não se trata de inovação dos nossos tempos, já sendo visualizada em Aristóteles, Cícero e Quintiliano, demonstrando estes autores que o conhecimento daqueles a quem se dirige a argumentação é uma condição prévia para o desenvolvimento de uma argumentação eficaz (PERELMAN, 1996:23).

Essa extensão dos auditórios, a princípio, sem muita utilidade prática, acaba por se tornar essencial na definição de uma estratégia argumentativa pautada na convicção ou persuasão.

Apesar das críticas sobre a imprecisão destes conceitos, oportuna lição nos ensina Atienza, ao demonstrar a distinção entre persuadir e convencer sob o viés do pensamento perelmaniano. Com vistas ao auditório que se pretende argumentar, considera o jusfilósofo espanhol que “uma argumentação persuasiva, para Perelman, é aquela que só vale para um auditório particular, ao passo que uma argumentação convincente é a que se pretende válida para todo ser dotado de razão” (ATIENZA, 2006:63).

Nesse sentido, quando ocorre uma argumentação perante um único ouvinte, encarado como auditório particular, deve-se optar por uma estratégia argumentativa persuasiva, todavia, se o destinatário é encarado como auditório universal, deve-se optar por uma estratégia pautada no convencimento.

Acredita-se que o interesse maior do estudo da argumentação, seja a descoberta de técnicas argumentativas passíveis de se impor a todos os auditórios. Tal objetivo seria possível mediante um discurso pautado na objetividade, alcançando um modelo ideal de argumentação que se imporia a auditórios compostos por homens competentes ou racionais (PERELMAN, 1996:29).

2.15.5.2. O Auditório Universal

Tendo em vista que a própria concepção de auditório utilizada por Perelman deriva da definição tradicional de Aristóteles, especificamente, nessa parte, o filósofo belga inova em uma noção basilar de seu pensamento, ao estabelecer o conceito de auditório universal (Auditoire Universel).

Mediante a idéia de que é a partir dos destinatários que toda argumentação se desenvolve, ele destaca o auditório universal como um auditório “constituído por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN, 1996:33-34). A partir disso, busca-se elucidar a objetividade desse conceito, citando Perelman, destaca-se que este auditório “é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência” (PERELMAN, 1996:37).

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Assim, para ele, o auditório universal é tido como um limite a ser atingido. Todavia, apesar dessa importância, ele não nega a imprecisão do conceito, uma vez que cada cultura ou cada indivíduo poderão ter sua concepção acerca do auditório universal (PERELMAN, 1996:37). Essa idéia desempenha importante papel como objeto de discussão aqui proposto, pois além de promover o parâmetro ideal de visualização do destinatário, permite ainda ao orador, em seu exercício de adaptação com relação àquele, escolher entre duas estratégias argumentativas: persuadir ou convencer (ATIEZA, 2006:63), as quais por também serem fonte de imprecisões, são igualmente objeto de forte crítica por parte de outros autores. A consideração do caráter ideal, atribuído ao conceito de auditório universal, permite uma aproximação deste com a situação ideal de fala, descrita por Habermas e utilizada por Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurídica. Atienza ao também analisar o conceito perelmaniano, enxerga aspectos positivos e negativos. Sob o aspecto positivo, o pensador espanhol concorda com Alexy e sua atribuição ideal ao conceito de auditório universal, situado como parâmetro de racionalidade e objetividade (ATIENZA, 2006:81), concordando com o papel central exercido pelo auditório universal. Já sob o aspecto negativo, destaca a noção obscura desenvolvida, apontando para tanto, as críticas de Aulis Aarnio e Letizia Gianformaggio (ATIENZA, 2006:81) ao conceito em comento Alexy contempla importante papel à Teoria da Argumentação de Perelman no campo normativo, uma vez que os destinatários, considerados sob a forma de auditório universal, somente se convencem mediante argumentos racionais. Nota-se que, a aproximação entre auditório universal, convencimento e racionalidade é novamente alvo de deliberação (ALEXY, 2005:168). Assim, de uma forma mais lúcida, acerca dessa ligação, assevera o mestre alemão que esse estado (o auditório universal) corresponde à situação ideal de fala Habermasiana. “O que em Perelman é o acordo do auditório universal, é em Habermas o consenso alcançado sob condições ideais” (ALEXY, 2005:170). Acerca da racionalidade na argumentação, citando Alexy, observa-se estreita relação com a busca pela universalidade, “o apelo a uma universalidade, visando à realização do ideal de comunidade universal é a característica da argumentação racional” (ALEXY, 2005:140).

Finalizando, ainda nos dizeres do jusfilósofo alemão, este conceito de Perelman (auditório universal) não é uno, mas contempla duas visões: a primeira formando um auditório que os indivíduos ou uma sociedade representam para si próprios, e a segunda como a totalidade de seres humanos participantes do discurso. Sendo assim, será a concordância alcançada por parte do auditório universal, o critério de racionalidade e objetividade da argumentação, uma vez que o auditório universal só é convencido mediante argumentos racionais. Neste ponto, reside o caráter objetivo, alcançando-se uma validade para todo ser racional, consequentemente empreende-se uma argumentação racional, ao considerar que “cada homem crê num conjunto de fatos, de verdades, que todo homem ‘normal’ deve, segundo ele, aceitar, porque são válidos para todo ser racional” (PERELMAN, 1996:31).

2.15.5.3. Persuadir e Convencer

Em seu Tratado da Argumentação Chaïm Perelman e Olbrechts-Tyteca diferenciariam os procedimentos argumentativos, com base nos objetivos do orador, afirmando que se o objetivo deste está em obter um resultado, persuadir é mais do que convencer, entretanto, se a preocupação do orador reside no caráter racional da adesão, convencer é mais que persuadir (PERELMAN, 1996:30).

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Assim, visualiza-se que a argumentação pode ser desenvolvida mediante um processo de persuasão ou de convencimento, a opção por um processo ou outro, como já dito, deriva da concepção que o orador faz do auditório e de suas extensões. Nesse sentido, para uma melhor visualização, as extensões já concebidas são divididas em dois modelos: o auditório particular e o auditório universal. O primeiro compreende a argumentação realizada perante um indivíduo, bem como aquela realizada pelo orador consigo próprio. O segundo compreende o auditório sob aspectos ideais, formado por todos os seres humanos racionais.

Com isso, busca o filósofo belga ligar uma estratégia argumentativa a um auditório específico, ao propor “chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional” (PERELMAN, 1996:31). Ao presente trabalho não cabe discorrer acerca da ligação entre auditório particular e as técnicas de persuasão, concentrando-se na análise de uma argumentação pautada na convicção e realizada perante o auditório universal, que está relacionada com o caráter de universalidade e racionalidade.

Assim, observando as diferentes formas que assumem as argumentações perante auditórios diversos, é nítido que a adaptação do orador ao seu auditório, não se refere somente à escolha dos argumentos a serem utilizados, mas também às estratégias de argumentação que devem variar de acordo com o auditório a que se destina.

Por fim, é certa a visão de Perelman, ao estabelecer que do ponto de vista racional, convencer é mais que persuadir, tornando uma argumentação formulada sob os ditames do convencimento, mais próxima do ideal de objetividade e racionalidade, ligada ao auditório universal. Por isso há uma convergência entre as concepções de auditório universal e situação ideal de fala, como parâmetros ideais de objetividade e racionalidade.

2.15.5.4. A Situação Ideal de Fala

A Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy apóia seu caráter de universalidade na situação ideal de fala, idéia já concebida por Habermas. Trata-se de uma situação ideal em que todos os oradores têm direitos iguais e que não existe coerção, havendo uma relação simétrica entre os indivíduos (HABERMAS apud ATIENZA, 1996:163). Essas condições ideais de Habermas são utilizadas por Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurídica e apresentadas sob a forma de regras, assim definidas como: regras fundamentais, de razão, de carga da argumentação, de fundamentação e de transição (ALEXY, 2005:283-286).

Muitas críticas pairam sobre as Teorias da Argumentação quando se discute acerca das possibilidades de sua realização, questionam os críticos, se este estabelecimento de regras abstratas, não tornaria a realização completa dos procedimentos, algo impossível de se obter na prática. Alexy frisa que é possível uma realização aproximada da situação ideal de fala (ALEXY, 2005:136). Além disso, importante destacar que a elaboração e cumprimento dessas regras, proporcionam a racionalidade do discurso, e é precisamente a racionalidade o que confere universalidade às conclusões obtidas consensualmente (TOLEDO, 2006:615).

Assim, o estabelecimento desses critérios a serem observados na prática do discurso, especificamente no discurso jurídico, não tem como condição sine qua non a exigibilidade de cumprimento de modo absoluto e em todas as situações a que são submetidos. Somente não

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se pode afastar o entendimento de que é mediante eles que devem ocorrer a fundamentação e orientação do discurso.

Ainda nesse entendimento, a própria racionalidade do discurso, não pode ser inferida somente mediante o cumprimento de todas as regras apresentadas, uma vez que se trata de uma situação ideal, e que devido a este aspecto não é real (TOLEDO, 2006:616). Entretanto, quando respeitados, alcançam padrões de racionalidade e universalidade, que proporcionam no âmbito do discurso jurídico a legitimidade da legislação e a controlabilidade das decisões judiciais, importantes bases para a consolidação da democracia e do próprio Estado de Direito (TOLEDO, 2006:619), fatores indissociáveis dos objetivos perseguidos pelo atual Estado brasileiro.

2.15.5.4. A Busca pela Universalidade

O próprio Alexy destacou a proximidade existente entre a situação ideal de fala Habermasiana, concepção utilizada em sua teoria, e o conceito de auditório universal perelmaniano (ALEXY, 2005:179). A proposta de resgatar o trabalho de Chaïm Perelman, demonstrando ainda seu caráter atual, foi aqui trabalhada evidenciando o seu conceito de auditório universal e a situação ideal de fala de Habermas, utilizada por Alexy, em teoria mais recente, como meio de se alcançar a racionalidade e universalidade do discurso jurídico. Desse modo, buscou-se uma ligação entre o conceito perelmaniano e conceitos mais recentes da atual discussão que cerca as Teorias da Argumentação Jurídica.

Perelman promove uma composição ideal do auditório universal, ao estabelecer sua formação “por toda humanidade, ou pelo menos por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN, 1996:33-34). Considerando que o acordo para estes casos seria alcançado mediante o convencimento, estratégia argumentativa relacionada com os métodos racionais, tem-se o auditório universal como um limite a ser atingido, uma vez que a composição alcançada neste limiar é o critério de racionalidade e objetividade da argumentação.

Habermas estabelece a situação ideal de fala como um parâmetro, sendo considerada aquela em que todos os oradores têm direitos iguais e que não existe coerção, havendo uma relação simétrica entre os indivíduos (HABERMAS apud ATIENZA, 2006:163). Assim, o acordo é obtido mediante a igual participação entre os falantes.

Nessa situação ideal, a elaboração e cumprimento de regras proporcionam a racionalidade, sendo ela o que confere a universalidade ao discurso.

Por fim, torna-se evidente que o resultado buscado pelos idealizadores de tais parâmetros é a busca pelo caráter universal da argumentação, aproximando-se do aspecto racional. Como se vê, seja mediante a situação ideal de fala, seja mediante o auditório universal, esse objetivo é alcançado.

2.15.6. Teoria da Argumentação Jurídica de Neil Maccormick

A teoria de MacCormick pode ser sintetizada em alguns pontos. Primeiro, MacCormick identifica que a justificação básica no direito é uma justificação de natureza dedutiva: diante de fatos operativos, aplicam-se determinadas consequências normativas. Porém, isso não é o bastante para solucionar controvérsias em casos problemáticos, nos quais nem os fatos operativos nem as consequências normativas são claras.

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MacCormick identifica quatro tipos de problemas que podem ocorrer com as premissas do raciocínio dedutivo no direito. São eles os problemas de interpretação, problemas de pertinência, problemas de prova e problemas de qualificação. Quando eles ocorrem, o julgador deve fazer uma escolha entre aplicações por vezes conflitantes do direito: os mesmo fatos operativos e as mesmas normas gerariam consequências normativas diferentes.

Seguindo a ideia de que o direito é uma atividade racional, MacCormick foge da ideia de que, em casos problemáticos, o que se faz é simplesmente arbitrário. Ele diz que há uma racionalidade além da dedução silogística que está presente no direito nos casos difíceis, e essa racionalidade é retórica. ELE PROPÕE QUATRO CRITÉRIOS PARA ANALISAR A RACIONALIDADE DE ARGUMENTOS: A UNIVERSALIZAÇÃO, A CONSISTÊNCIA, A COERÊNCIA E O CONSEQUENCIALISMO JURÍDICO.

Em resumo, esses critérios podem ser definidos assim:

(i) universalização – um argumento deve poder ser afirmado na forma de um princípio de ação universal aceitável, que poderia ser aplicado de forma satisfatória a todos os casos com as mesmas características decisivas;

(ii) consistência – a exigência da consistência significa que as afirmações constantes de um raciocínio de justificativa devem ser postuladas de forma livre de contradições entre si. Difere da coerência na medida em que esse último critério relaciona-se com o sentido que se dá à narrativa. É possível criar uma narrativa livre de inconsistências, mas cujo sentido seja de alguma forma injusto, e por isso a consistência não se sustenta sozinha como critério de avaliação de argumentos.

(iii) coerência – resumidamente, a coerência diz respeito aos princípios e valores que são afirmados ou almejados na decisão, e sobre a justificabilidade desses princípios e valores no delineamento de uma forma de vida satisfatória. Ou seja, esse critério procura identificar se os valores afirmados em uma decisão, em conjunto, são aceitáveis e válidos.

(iv) consequencialismo jurídico – diz respeito não às consequência sociais de longo prazo, difíceis de serem calculadas e avaliadas de fato, mas aos comportamentos logicamente permitidos pela decisão, de forma que, se esses comportamentos forem aceitáveis, as consequências possíveis são tidas como aceitáveis também, e vice-versa.

3. Conceitos Básicos da Filosofia do Direito1. Autopoiese: trata-se de conceito criado inicialmente para a biologia (chilenos

Maturana e Varela), se referindo à capacidade dos seres de se autoproduzirem. No Direito, foi adaptado por Niklas Lühmann.]

O sistema jurídico é considerado um dos “sistemas funcionais”, ou sistemas parciais, do sistema social global, com a tarefa de reduzir a complexidade do ambiente por meio da absorção do comportamento social. “O sistema jurídico, para Luhmann, integra o ‘sistema imunológico’ das sociedades, imunizando-as de conflitos entre seus membros, surgidos já em outros sistemas sociais (político, econômico, familiar, etc).

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(...) Para tanto, a complexidade da realidade social, com sua extrema contingência, é reduzida pela construção de uma ‘para-realidade’, codificada a partir do esquematismo binário ‘direito/não-direito’ (ou ‘lícito/ilícito), em que se prevêem os conflitos que são conflitos para o Direito e se oferecem as soluções que são conformes ao Direito”.

O fechamento operacional, e a autopoiése do sistema, dá a este a possibilidade de se desenvolver dinamicamente. Assim o desenvolvimento do Direito se dá reagindo apenas aos seus próprios impulsos, mas estimulado por “irritações” do ambiente social.

“O sistema jurídico, enquanto autopoiético, é fechado, logo, demarca seu próprio limite, auto-referencialmente, na complexidade própria do meio ambiente, mostrando o que dele faz parte, seus elementos, que ele e só ele, enquanto autônomo, produz, ao conferir-lhes qualidade normativa (=validade) e significado jurídico às comunicações que nele, pela relação entre esses elementos, acontecem”.

Considerando o Direito como capaz de se autoproduzir, portanto o sistema jurídico como autopoiético, há a necessidade de elementos do meio ambiente.

Hans Kelsen (Teoria pura do direito) falando sobre sistemas estático e dinâmico na ordem jurídica, estabelece que um há “normas regulando normas” e no outro “condutas produzindo normas”. Adaptando esse raciocínio ao sistema jurídico – sob a teoria dos sistemas sociais – teríamos as condutas como elementos provenientes do meio, ou de outro sistema, que irritam o sistema jurídico, fazendo com que haja uma seletividade (por meio da seleção dentre as diversas possibilidades de agir – denominado por Luhmann de dupla seletividade) gerando uma reação do sistema jurídico que resulta na produção de uma norma, essa sim regula a conduta.

“O sistema (jurídico) é autopoiético e diferenciado de outros, pois estabelece conexões que conferem sentido (jurídico) a condutas referidas, assim, umas às outras e delimitadas, no sistema, em relação ao ambiente”.

Quando, por exemplo, a conduta que gerou a reação do sistema jurídico ao produzir uma norma reguladora do sistema social, é proveniente de outro sistema, fala-se na necessidade de realizar o acoplamento estrutural do sistema jurídico com outros sistemas sociais, como o político, econômico, etc. Nesse contexto a constituição é a grande responsável pelo acoplamento estrutural ente os sistemas jurídico e político.

A caracterização do sistema jurídico como um sistema social autopoiético se faz por meio da identificação de sua especificidade na realização da forma exclusiva com que nesse sistema, o Direito, se veiculam comunicações.

“Note-se que a autonomia do sistema jurídico não há de ser entendida no sentido de um isolamento deste em face dos demais sistemas sociais, o da moral, religião, economia, política, ciência, etc., funcionalmente diferenciados em sociedades complexas como as que se têm na atualidade. Essa autonomia significa, na verdade, que o sistema jurídico funciona com um código próprio, sem necessidade de recorrer a

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critérios fornecidos por algum daqueles outros sistemas, aos quais, no entanto, o sistema jurídico se acopla, através deprocedimentos desenvolvidos em seu seio, procedimentos de reprodução jurídica, de natureza legislativa, administrativa, contratual e, principalmente, judicial

2. Axiologia: estudo dos valores que emanam de uma norma ou de um conjunto normativo.

3. Deontologia: trata-se do estudo dos deveres que se impõem a determinadas pessoas que se encontram em certas posições jurídicas. Aqui entram as questões dos modais deônticos, o proibido, o permitido e o obrigado.

4. Eidética: busca da essência das coisas. Termo muito importante na fenomenologia e em Platão.

5. Epicurismo: corrente mais suavizada do hedonismo. Prega que o homem deve sim procurar o prazer e gozar a vida, pois a felicidade seria a finalidade última da existência. Porém, o prazer seria filtrado pelo sábio, o qual priorizaria o prazer intelectual ao sensível, o sereno ao violento, o ético ao grotesco.

6. Estoicismo: defende que o papel da ética é viver de acordo com a razão, devendo fazer imperar a racionalidade sobre os sentidos, eliminando-se o homem de suas paixões, que o escravizam.

7. Eudemonismo: doutrina que considera a busca por uma vida feliz o princípio e fundamento dos valores morais.

8. Epistemologia: trata-se da doutrina do conhecimento jurídico em todas as suas modalidades. É que, com o constituir-se de novos campos de estudo do Direito, tais como a Sociologia Jurídica, a Etnologia Jurídica ou a Lógica Jurídica, alargaram-se, concomitantemente, os horizontes epistemológicos, os quais não podem mais ficar adstritos às exigências da Ciência Dogmática do Direito, por mais que esta assinale o momento culminante do processo comum de investigação. Uma das tarefas primordiais da Epistemologia Jurídica consiste, aliás, na determinação do objeto das diversas ciências jurídicas, não só para esclarecer a natureza e o tipo de cada uma delas (recorde-se o exposto supra, vol. I, pág. 264 e segs.) mas também para estabelecer as suas relações e implicações na unidade do saber jurídico. Compete-lhe, outrossim, delimitar o campo da pesquisa científica do Direito, em suas conexões com outras ciências humanas, como, por exemplo, a Sociologia, a Economia Política, a Psicologia, a Teoria do Estado etc.

É só graças a essa visão compreensiva que é possível situar com rigor os problemas epistemológicos da Jurisprudência ou Ciência Dogmática do Direito, a qual ocupa o centro do quadro jurídico, não só pela maturidade de seus estudos, devido a uma tradição mais que bimilenar, mas também porque representa, como já dissemos, o momento culminante da experiênca do Direito.

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Muitas são, pois, as questões com que se defronta a Epistemologia Jurídica, que poderia ser definida como sendo a doutrina dos valores lógicos da realidade social do Direito, ou, por outras palavras, dos pressupostos lógicos que condicionam e legitimam o conhecimento jurídico, desde a Teoria Geral do Direito — que é a sua projeção imediata no plano empírico-positivo --— até às distintas disciplinas em que se desdobra a Jurisprudência.

É nessa linha de estudos que caberá ao epistemólogo do Direito determinar, por exemplo, que tipo de experiência é essa que denominamos "experiência jurídica"; qual a natureza e o papel da Lógica Jurídica e a sua situação perante a Ciência Dogmática do Direito; como se põem os problemas de sistematização e integração dos institutos jurídicos: se nos quadros de um único ordenamento ou, ao contrário, numa pluralidade deles; qual a natureza da Hermenêutica Jurídica e os seus pressupostos, em função do papel por ela desempenhado na tela da Teoria Geral do Direito; qual a natureza e a estrutura das normas jurídicas, se elas devem ou não ser concebidas como "bens culturais de suporte ideal" insuscetíveis, portanto, de serem tratadas como simples "proposições lógicas"; se a tradicional teoria das fontes do Direito deve ou não ser atualizada à luz de uma teoria dos "modelos jurídicos", e assim por diante.

Poder-se-ia dizer, em suma, à vista desses exemplos, que a Epistemologia Jurídica recebe da Ontognoseologia Jurídica o conceito de Direito e o desenvolve na multiplicidade de suas projeções e conseqüências, especificando, em função das exigências práticas da vida jurídica, as "categorias regionais da juridicidade", conform a feliz terminologia de Recaséns Siches, tais como as de direito subjetivo, direito objetivo, relação jurídica, fonte do direito, modelo jurídico, instituição, ficção jurídica etc., que são como que as vigas mestras do edifício jurídico, assegurando-lhe validade lógica ou vigência.

Costumamos dizer que a Epistemologia Jurídica, ao estudar o Direito, considera, de maneira prevalecente, o problema da vigência, mas sempre em função da eficácia e do fundamento.

9. Gnoseologia: estudo da capacidade cognitiva do homem, sobre como ele pode chegar ao conhecimento.

10. Hedonismo: doutrina que prega que o papel do homem na terra é ter prazer e fugir da dor.

11. Idealismo: doutrina que prega que a finalidade última do homem é praticar o bem.

12. Lógica apodítica: lógica que distingue entre o verdadeiro x falso (possibilidade de verdade absoluta).

13. Lógica dialética: lógica que distingue entre o verossímel x inverossímel (juízo de probabilidade, certeza construída, e não dada).

14. Neokantismo: novas leituras de Kant após o radicalismo do positivismo jurídico, em que se retomou a discussão do fundamento moral do direito.

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15. Virada kantiana: "Kantish wender", é um momento onde o kantismo é retomado no direito, principalmente nas teorias de John Rawls, Robert Alexy, Ronald Dworkin, Konrad Hesse.

16. Revolução copernicana: Antes de Kant, a Filosofia clássica vivia girando em torno de objetos, aos quais se subordinava essencialmente (empirismo, métodos descartianos); enquanto que, no dizer de Kant, quem deve ficar fixo é o sujeito, em torno do qual deve girar o objeto, que somente é tal porque "posto" pelo sujeito. Era isso o que Kant chamava significativamente de revolução copernicana. Assim como Copérnico supera o sistema ptolemaico, colocando não mais a Terra, mas sim o Sol no centro de nosso sistema planetário, afirmava o filósofo germânico ser necessário romper com a atitude gnoseológica tradicional. Em lugar de se conceber o sujeito cognoscente como planeta a girar em torno do objeto, pretende Kant serem os objetos dependentes da posição central e primordial do sujeito cognoscente. Esta referência ao criticismo de Kant visa a mostrar a correlação essencial que existe entre o problema do objeto e o do método, até ao ponto de subordinar-se um problema ao outro: — uma ciência viria a ser o seu método, porque o sujeito que conhece, ao seguir um método, criaria, de certa maneira, o objeto, como momento de seu pensar. Com a revolução copernicana, Kant refutou a Fiolosfia do Objeto (relação sujeito objeto), para mudar o foco para a Filosofia do Sujeito (sujeito-sujeito). É uma concepção transcendental da filosofia, em que o dado não se desenvolve na realidade, mas no intelecto, um modo de perceber a realidade.

17. Metodologia: estudo dos diversos processos que devem disciplinar a pesquisa do real, de acordo com as peculiaridades de cada campo de indagação.

18. Ontognoseologia: doutrina das condições transcendentais e empírico-positivas do conhecimento. Ela tem foco tanto no ser cognoscente quanto no objeto.

19. Ontologia: teoria do conhecimento clássico que se preocupa com o objeto cognitivo

20. Semiótica: a semiótica enquanto ciência geral dos signos é uma linguagem que estuda outras linguagens. Nesse diapasão, a semiótica jurídica é uma metalinguagem que fala da linguagem do Direito e da Ciência do Direito, ou seja, da linguagem utilizada pelos operadores do Direito. Na semiótica jurídica, a exemplo do que ocorre na semiótica, podemos identificar três diferentes dimensões: a semântica, a sintaxe e a pragmática. Portanto, é possível destacar a existência de uma semântica jurídica, de uma sintaxe jurídica e de uma pragmática jurídica. Seguindo este viés de raciocínio, a Ciência do Direito, entendida como metalinguagem que fala de uma linguagem objeto, que é o direito positivo, pode examinar o seu objeto através da sintaxe, da semântica ou da pragmática (a dimensão escolhida vai depender da concepção adotada por cada jurista). Assim, por exemplo, a investigação acerca da validade das normas jurídicas no pensamento de Hans Kelsen é uma relação sintática. Por outro lado, mister frisar que como metalinguagem, a semiótica jurídica é utilizada para identificar as estruturas lógicas do Direito.

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4. Direito, Ética, Cultura, Justiça, Equidade e Moral e Outras Questões de Humanística

4.1. Conceitos de Direito

Émile DurkheimO direito é fato social. Mas não qualquer fato, e sim um que se destaca acima dos demais por ter fundamento social capaz de impor sanções, perda de patrimônio e privação da liberdade, mais contundentes do que as sanções dos outros fatos sociais

Miguel Reale

O Direito é um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social. O Direito, por conseguinte, tutela comportamentos humanos: para que essa garantia seja possível é que existem as regras, as normas de direito como instrumentos de salvaguarda e amparo da convivência social. Direito é fato, valor e norma. Vide o tópico do tridimensionalismo jurídico.

Karl Marx Direito é uma estrutura, parte da superestrutura estatal, que serve à classe dominante, meio oficial de dominar o proletariado.

Corrente clássica

Direito é se confunde com justiça; justiça é dar a cada um o que é seu, aquilo que merece.

Kant

A noção de direito refere-se à relação exterior e prática de uma pessoa com outra, na medida em que as suas ações possam influir sobre outras ações; essa noção diz respeito à relação do arbítrio do agente com o arbítrio do outro. Estabelece-se, assim, uma relação mútua de arbítrios, onde se consideram não as finalidades pretendidas por cada um dos agentes, mas unicamente se a manifestação da vontade de um, expressa em sua ação, constitui um empecilho ao exercício da liberdade do outro, de acordo com uma lei universal ou o princípio universal do direito. O direito em si reporta-se à manutenção da liberdade de cada um segundo uma lei válida para todos. Logo, a injustiça é a perturbação do estado de livre coexistência, pois o impedimento à liberdade de um não pode subsistir com a liberdade de todos, segundo leis gerais.

PositivismoDireito se confunde com poder. É o conjunto de determinações estatais oficiais cogentes, dotadas de heteronomia. O Direito não se caracteriza com base em sua justiça, mas sim em sua oficialidade. Daí a possibilidade, no positivismo, de falarmos em um direito injusto.

4.1.1. Direito em Kant

O que é o direito? Quid jus? O que é o direito é a pergunta que os juristas não conseguem responder há séculos. Kant diz que quando os juristas procuram compreender o que é o direito eles caem na tautologia – jus est quod justum est, o justo é aquilo que é justo – ou então definem o direito como sendo as leis existentes. Mesmo nos tribunais, o juiz diz o que é o direito conforme as leis positivas de determinado país, numa época histórica. Por essa razão, a decisão judicial não deixa de expressar um relativismo empírico.

A questão não é respondida pelos jurisconsultos, pois ir ao fundo do problema consiste em examinar a pretensão inerente às determinações das condições de legitimidade de um sistema jurídico e em nome do que é legítimo. É preciso, então, saber qual é o critério universal em função do qual o jus é reconhecido como o justum e que preside a toda júris-latio (legislação) e a toda júris- dictio (aplicar o direito).

Torna-se, assim, necessário que se renuncie às perspectivas dogmático-descritivas do empirismo de Hume e do pragmatismo utilitarista, bem como não se satisfaça com a lógica hipotético-dedutiva do jusnaturalismo.

A questão quid juris somente poderá ser respondida quando procurarmos conhecer as condições que tornam justas as normas prescritivas de uma ordem jurídica, de acordo com um “princípio universal de direito” (Kant, Doutrina do Direito, Introdução, §C). Trata-se, assim, de buscarmos a lei universal que torna possíveis não

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somente a justiça de determinada ação, mas para além dela, a justiça – entenda-se o bem fundamentado ou a legitimidade – das regras que asseguram a obrigatoriedade (você deve) ou a liceidade (você pode).

A doutrina do Direito de Kant efetua uma reflexão transcendental, partindo das leis e das regras de direito como material jurídico e pesquisa as estruturas a priori da razão prática, não ao nível da casuística, como escreve Kant, mas enquanto condições legisladoras e organizadoras do sistema do direito. O Direito enquanto ciência é o conjunto de leis suscetíveis de uma legislação exterior, que forma a ciência do direito positivo. O Direito em si é uma questão que só se resolve reportando-se à razão, como pensa Kant, na Doutrina do Direito: “Uma ciência puramente empírica do Direito (como a cabeça de madeira na fábula de Fedro) é uma cabeça que pode ser bela, mas tem somente um defeito – não tem cérebro”.

Encontra-se na obra de Kant os seguintes pressupostos, a partir dos quais se pode desenvolver a ideia de direito: A NOÇÃO DE DIREITO REFERE-SE À RELAÇÃO EXTERIOR E PRÁTICA DE UMA PESSOA COM OUTRA, NA MEDIDA EM QUE AS SUAS AÇÕES POSSAM INFLUIR SOBRE OUTRAS AÇÕES; ESSA NOÇÃO DIZ RESPEITO À RELAÇÃO DO ARBÍTRIO DO AGENTE COM O ARBÍTRIO DO OUTRO. Estabelece-se, assim, uma relação mútua de arbítrios, onde se consideram não as finalidades pretendidas por cada um dos agentes, mas unicamente se a manifestação da vontade de um, expressa em sua ação, constitui um empecilho ao exercício da liberdade do outro, de acordo com uma lei universal ou o Princípio Universal do Direito. Esse princípio é formulado por Kant da seguinte forma: “é justa toda a ação ou cuja máxima permite à liberdade de todos e de cada um coexistir com a liberdade de todos os outros, de acordo com uma lei universal”.

O princípio universal do direito origina-se desse princípio geral, que lhe antecede: é justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um, segundo leis universais.

O DIREITO EM SI REPORTA-SE À MANUTENÇÃO DA LIBERDADE DE CADA UM SEGUNDO UMA LEI VÁLIDA PARA TODOS. LOGO, A INJUSTIÇA É A PERTURBAÇÃO DO ESTADO DE LIVRE COEXISTÊNCIA, POIS O IMPEDIMENTO À LIBERDADE DE UM NÃO PODE SUBSISTIR COM A LIBERDADE DE TODOS, SEGUNDO LEIS GERAIS. Kant estabelece, então, a Lei Universal do Direito para que se possa objetivar as determinações do princípio universal do Direito nas relações sociais: “Age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal”.

O direito pretende, assim, limitar a liberdade pessoal irrestrita de cada indivíduo, própria da natureza humana no estado de natureza. Nesse contexto é que Kant desenvolve a teoria da liberdade, ideia angular em todo o sistema do pensamento ético-filosófico e político kantiano. Para Kant, o conceito de liberdade explicita-se através de dois elementos, que se articulam e complementam um ao outro:

a) Liberdade como coexistência, que consiste na limitação recíproca da vontade de cada e tem como limite a esfera individual do outro; esse aspecto da liberdade torna-se possível na medida em que a liberdade é considerada também como obediência;

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b) Liberdade como autonomia, que é a propriedade da vontade graças à qual esta é para si mesma a sua lei, somente sendo livre aquele que se torna, através da vontade própria, fonte das suas próprias leis, ou seja, autônomo.

Kant reconsidera então o conflito entre a possível contradição entre a liberdade como autonomia e a liberdade como coexistência. DE FORMA IMEDIATA, O DIREITO RESTRINGE A AUTONOMIA, OBRIGANDO O INDIVÍDUO A CURVAR-SE DIANTE DE UMA VONTADE QUE NÃO LHE É PRÓPRIA. ESSE POSSÍVEL CONFLITO SERÁ SOLUCIONADO POR KANT COM O USO DA IDEIA DO CONTRATO SOCIAL. ATRAVÉS DO CONTRATO SOCIAL AS AUTONOMIAS INDIVIDUAIS IRÃO REFLETIR-SE NA VONTADE GERAL, QUE ASSEGURA A MANIFESTAÇÃO DA AUTONOMIA E DA COEXISTÊNCIA DE FORMA COMPLEMENTAR. Dessa vontade geral, todos participam na sua elaboração e na submissão aos seus ditames.

A ideia do justo e do injusto insere-se, assim, no quadro de uma teoria da liberdade. Quando o uso de uma liberdade pessoal consubstancia-se em obstáculo ao exercício de outra liberdade pessoal segundo leis universais ocorre uma injustiça. Para Kant a violação da liberdade do outro ocorre porque se rompe a relação de igualdade existente entre os homens, que assegura ao homem a sua humanidade, que se encontra determinada pela liberdade. A igualdade inata ao homem significa para Kant independência de não ser obrigado a aquilo que os outros reciprocamente não obrigados. Trata-se a independência, nas palavras de Kant, “da qualidade do homem ser o seu próprio senhor (sui iuris) e também daquela de um homem ilibado (iusti), porque antes de qualquer ato jurídico nada fez de injusto.”

As consequências dessa argumentação residem na impossibilidade lógica de separação do direito e da faculdade de obrigar, aos que se opõem ao seu livre exercício e a possibilidade de uma obrigação mútua, que se torna universal conforme a liberdade de todos segundo leis gerais. Embora o direito se funde na consciência da obrigação de todos segundo uma lei geral, essa consciência não é seu móbil. Pelo contrário, seu móbil é a possibilidade de uma força exterior conciliável com a liberdade de todos, segundo leis gerais.

4.1.2. Direito em Kelsen

Na Teoria Pura, Direito é norma (Se A é, B deve ser) e o conhecimento jurídico dirige-se, precisamente, a estas normas que conferem a certos fatos o caráter de atos jurídicos ou antijurídicos (...) (pois) só as normas de Direito podem constituir o objeto do conhecimento jurídico (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, Saraiva, 1939, p. 11/12). A interpretação restringe-se à fixação do sentido da norma, tendo por resultado a determinação do espaço representado pela norma e, por conseqüência, o conhecimento das várias possibilidades que existem dentro dele (op. cit., p. 80). Estabelecido o âmbito de validez e vigência da norma aplicada, não há mais nenhum critério jurídico que possa auxiliar na escolha de uma ou outra das possibilidades decisórias: O problema do saber qual das possibilidades existentes no âmbito duma norma é a justa é o problema que, pela sua natureza, escapa ao conhecimento jurídico; não é um problema de teoria, mas de política do Direito

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4.1.3. Direito em Carlos Cossio

Derecho no es norma, sino conduta normada (Cossio, La Teoria Egológica dei Derecho), sendo a conduta o objeto do estudo da ciência jurídica. A superação da concepção racionalista percebe-se advertindo que ao jurista não interessa tanto a lei, senão aquilo a que a lei se refere, quer dizer, a conduta dos homens. Se advierte entonces que ei jurista no interpreta ia iey sino que interpreta ia conduta mediante la /ey (Aftalión, Olano, Vilanova, Introducción aI Derecho, p. 83). O Direito, como objeto, é conduta em interferência intersubjetiva; é um ser cultural (cultura é tudo o que o homem faz com fins valorados), real, está no mundo da experiência, tem valor positivo ou negativo, podendo ser conhecido através de um ato capaz de apreender a realidade que está no mundo da experiência e seu valor. Cossio considera que interpretação é esse ato de compreensão da conduta através de certos esquemas conceituais fornecidos por standards chamados leis, atingível mediante um método empírico-dialético.

4.1.4. Direito no Realismo Jurídico

Para os realistas, a ciência jurídica deve ocupar-se de fatos, não entes metafísicos, tais como dever jurídico, direito subjetivo, etc. Toda a palavra que não tenha provisão de fundos no mercado dos fatos à vista, está falida (Cohen). Criticam a ideia de que o Direito cria vínculos (dado o fato x, a conseqüência será y), porquanto isto não está no mundo do ser, não há realidade sensível nessa relação de causalidade. O extraterreno, que observasse o comportamento das pessoas, não perceberia a existência do Direito (Olivecrona, Linguaje Jurídico Y Realidad, p. 7/8). O que existe é o fato x e a conseqüência será o que vier a ser ditado na sentença. Ambos o entes reais: o fato e a sentença. A crença de que o efeito reconhecido na sentença decorre da existência do Direito é mística, servindo apenas para nos tranqüilizar, atendendo aos nossos anseios de segurança. ‘Os direitos e deveres são mais que profecias, predições do que acontecerá com quem praticar certos atos’, dizia Holmes, o iniciador do realismo americano. Afirmar a existência da relação jurídica entre A e B é uma predição do que a sociedade (através do Juiz) irá dizer e fazer a favor de um ou de outro. Nesse contexto, interpretar é conhecer as situações de fato presentes e criar a norma para o caso.

4.2 Ética

4.2.1. Ética X Moral

Há quem não distinga ética de moral. Isso por causa de uma antiga confusão realizada na história. A palavra moral vem da palavra latina que significa costumes, e a palavra ética da palavra grega que também significa costumes. Logo, isso induz ao erro de pensar que moral = ética visto que ambas significam costumes. A filologia, entretanto, prova que o pensamento está equivocado.

Ética é um sistema filosófico que tenta extrair de forma geral e abstrata princípios morais em sua unidade a partir das práticas sociais, possuindo uma normatividade externa e passível de impor uma reprovação social ao agente que se comporte de forma antiética.

Em outra definição, ÉTICA É A CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO MORAL DOS HOMENS EM SOCIEDADE. O objeto da ética é a moral. A moral é um dos aspectos do comportamento humano. Com exatidão maior, o objeto da ética é a moralidade positiva, ou seja, o conjunto de

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regras de comportamento e formas de vida através das quais tende o homem a realizar o valor do bem.

A ÉTICA SERIA UMA TEORIA DOS COSTUMES; JÁ A MORAL NÃO É CIÊNCIA, SENÃO OBJETO DA CIÊNCIA. Como ciência, a ética procura extrair dos fatos morais os princípios gerais a eles aplicáveis. A ética deve aspirar à racionalidade e objetividade mais completas, e, ao mesmo tempo, deve proporcionar conhecimentos sistemáticos, metódicos.

A ética é uma disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las. A Ética aprimora e desenvolve o sentido moral do comportamento humano e influencia a conduta humana.

De acordo com Raul Livino (membro da Banca do TRF1), ética começa quando entra em cena o outro, que a impõe. E mais: hodiernamente, a ética é condição indispensável para eficácia econômica e política. E continua:

No confronto entre o todo – algo que é construído com uma parte de cada eu - , temos vários enfoques. Da Grécia, temos em princípio uma ética naturalística, objetivando adequar a conduta humana ao cosmo (pré-socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles), relacionadas neste campo com uma localidade específica.

Com a decadência do modelo exsurge uma ambição por um conhecimento prático, não especulativo, com tendência para produzir resultado na vida pública, ou seja, “tudo é relativo ao sujeito, ao homem, medida de todas as coisas”.

A ética, em Sócrates, é racionalista, contém três elementos e é universal: conhecimento universalmente válido; a natureza do conhecimento é moral; conhecer para agir corretamente.

Em síntese: o homem é feliz, quando conhece o bem e em assim sendo não pode deixar de praticá-lo, tornando-se dono de si próprio. Em Platão, a polis é o terreno adequado para a vida moral. Em Aristóteles, a comunidade social é a ambiência própria da realização moral, embora aquela seja restrita, limitado ficando o agir reto a uma minoria ou elite.

Com a decadência e ruína do mundo helênico, onde operou-se também a queda dos principais impérios (macedônio e romano), os estados gregos perderam suas autonomias e os referidos impérios experimentaram organização, desenvolvimento e queda; a questão moral deslocou-se da polis para a necessidade física natural do mundo. O homem, como tudo no mundo, possui seu destino e somente lhe é dado ter consciência de tal condição (estóicos e epicuistas).

Thomas de Aquino cristianizou Aristóteles, enquanto Santo Agostinho enalteceu a interioridade, da vontade e do amor, valorando a experiência pessoal, criando um posicionamento oposto à ética racional dos gregos.

No mundo moderno, tivemos uma gradual mudança do cenário da ética teocêntrica para a antropocêntrica cujo ponto primordial fora Kant.

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Sobre a ética em Kant, assinala Adolfo Sánchez Vasquez Kant – fiel ao seu antropocentrismo ético - empresta assim à moral o seu princípio mais alto, e o faz exatamente num mundo humano concreto no qual o homem, longe de ser um fim em si, é meio, instrumento ou objeto mercadoria, (por exemplo), e no qual, por outra parte, ainda não se verificam as condições reais, efetivas, para transformá-lo efetivamente em fim. Mas esta consciência de que não deve ser tratado como meio, e sim como fim, tem um profundo conteúdo humanista, moral, e inspira, hoje, todos aqueles que desejam a realização desse princípio kantiano, não já num mundo ideal, mas em nosso mundo real.

A ética kantiana é uma ética formal e autônoma. Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independente da sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto. Por ser autônoma (e opor-se assim às morais heterônomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento, em oposição à ética medieval. Finalmente por conceber o comportamento moral, como pertencente a um sujeito autônomo e livre, ativo e criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes de tudo como ser ativo, produtor ou criador.

Na visão ainda do autor citado, sobre a ética contemporânea, tem se:

No plano filosófico, a ética contemporânea se apresenta em suas origens como uma reação contra o formalismo e o racionalismo abstrato kantiano, sobretudo contra a forma absoluta que este adquire em Hegel. Na filosofia hegeliana, chega a seu apogeu a concepção kantiana do sujeito soberano, ativo e livre; mas, em Hegel, o sujeito é ideia, razão ou espírito absoluto, que é a totalidade do real, incluindo o próprio homem como um seu atributo. A sua atividade moral não é senão uma fase do desenvolvimento do espírito ou um meio pelo qual o espírito – como verdadeiro sujeito – se manifesta e se realiza.

A reação ética contra o formalismo kantiano e o racionalismo absoluto de Hegel é uma tentativa de salvar o concreto diante do formal, ou também o homem real em face da sua transformação, numa abstração ou num simples predicado do abstrato ou do universal.

De acordo com a orientação geral que segue o movimento filosófico, desde Hegel até os nossos dias, o pensamento ético também reage: a) contra o formalismo e o universalismo abstrato e em favor do homem concreto (o indivíduo, para Kierkegaard, o existencialismo atual; o homem social, para Marx); b) contra o racionalismo absoluto e em favor do conhecimento do irracional no comportamento humano (Kierkegaard, o existencialismo, o pragmatismo e a psicanálise); c) contra a fundamentação transcendente (metafísica) da ética e em favor da procura da sua origem no próprio homem (em geral, todas as doutrinas que examinamos, e, com um acento particular, a ética de inspiração analítica, a qual, para subtrair-se a qualquer metafísica, refugia-se na análise da linguagem moral).

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Segundo Sartre, o homem é liberdade. Cada um de nós é absolutamente livre e mostra a sua liberdade sendo o que escolheu ser. A liberdade, além disto, é a única fonte de valor. Cada indivíduo, escolhe livremente e, ao escolher, cria o seu valor. Assim, na medida em que não existem valores objetivamente fundados, cada um deve criar ou inventar os valores ou as normas que guiem o seu comportamento. Mas, se não existem normas gerais, o que é que determina o valor de cada ato? Não é o seu fim real nem o seu conteúdo concreto, mas o grau de liberdade com que se realiza.

Cada ato ou cada indivíduo vale moralmente não por sua submissão a uma norma ou a um valor estabelecido – assim renunciaria à sua própria liberdade -, mas pelo uso que faz da própria liberdade. Se a liberdade e o valor supremo, o valioso é escolher e agir livremente.

Segundo Marx, o homem real é, em unidade indissolúvel, um ser espiritual e sensível, natural e propriamente humano, teórico e prático, objetivo e subjetivo. O homem é, antes de tudo, práxis: isto é, define-se como um ser produtor, transformador, criador; mediante o seu trabalho, transforma a natureza externa, nela se plasma e, ao mesmo tempo, cria um mundo à sua medida, isto é, à medida de sua natureza humana.

Esta objetivação do homem no mundo externo, pela qual produz um mundo de objetos úteis, corresponde a sua natureza de ser produtor, criador, que também se manifesta na arte e em outras atividades.

Em conclusão, trago à colação síntese elaborada pelo Professor Adolfo Sánchez Vasquez em sua obra Ética:

A ideia de que a ética deve ter suas raízes no fato da moral, como sistema de regulamentação das relações entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, orientou nosso estudo. Por ser a moral uma forma de comportamento humano que se encontra em todos os tempos e em todas as sociedades, partimos do critério de que é preciso considerá-la em toda a sua diversidade, fixando, de maneira especial em suas manifestações atuais. Podemos assim impugnar as tentativas especulativas de tratar a moral como um sistema normativo único, válido para todos os tempos e para todos os homens, assim como rejeitar a tendência de identificá-la com uma determinada forma histórico-concreta de comportamento moral.

Não se confundem ética e moral. Ainda que seja certo que toda moral efetiva supõe certos princípios, normas ou regras de conduta, não é a ética que, em uma comunidade dada, os estabelecem. A ética se encontra com uma experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, uma série de morais efetivas já existentes, e partindo delas, trata de estabelecer a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes de valoração, a natureza e função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos, e o princípio que rege a mudança e sucessão dos sistemas morais.

La ética es la teoría o ciencia del comportamiento moral de los hombres en sociedad. O sea, es ciencia de una forma específica de conducta humana.

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En nuestra definición se subraya, en primer lugar, el carácter científico de esta disciplina; o sea, se responde a la necesidad de un tratamiento científico de los problemas morales. De acuerdo con este tratamiento, la ética se ocupa de un objeto propio: el sector de la realidad humana que llamamos moral, constituido —como ya hemos señalado—^ por un tipo peculiar de hechos o actos humanos. Como ciencia, la ética parte de cierto tipo de hechos tratando de descubrir sus principios generales. En este sentido, aunque parte de datos empíricos, o sea, de la existencia de un comportamiento moral efectivo, no puede mantenerse al nivel de una simple descripción o registro de ellos, sino que los trasciende con sus conceptos, hipótesis y teorías. En cuanto conocimiento científico, la ética ha de aspirar a la racionalidad y objetividad más plenas, y a la vez ha de proporcionar conocimientos sistemáticos, metódicos y, hasta donde sea posible, veri-ficables.

Ciertamente, este tratamiento científico de los problemas morales dista mucho todavía de ser satisfactorio, y de las dificultades para alcanzarlo siguen beneficiándose todavía las éticas especulativas tradicionales, y las actuales de inspiración positivista.

La ética es la ciencia de la moral, es decir, de una esfera de la conducta humana. No hay que confundir aquí la teoría con su objeto: el mundo moral. Las proposiciones de la ética deben tener el mismo rigor, coherencia y fundamentación que las proposiciones científicas. En cambio, los principios, normas o juicios de una moral determinada no revisten ese carácter. Y no sólo no tienen un carácter científico, sino que la experiencia histórica moral demuestra que muchas veces son incompatibles con los conocimientos que aportan las ciencias naturales y sociales. Por ello, podemos afirmar que si cabe hablar de una ética científica,

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ÉTICA

no puede decirse lo mismo de la moral. No hay una moral científica, pero sí hay —o puede haber— un conocimiento de la moral que pueda ser científico. Aquí como en otras ciencias, lo científico radica en el método, en el tratamiento del objeto, y no en el objeto mismo. De la misma manera, puede decirse que el mundo físico no es científico, aunque sí lo es su tratamiento o estudio de él por la ciencia física. Pero si no hay una moral científica de por sí, puede darse una moral compatible con los conocimientos científicos acerca del hombre, de la sociedad y, en particular, acerca de la conducta humana moral. Y es aquí donde la ética puede servir para fundamentar una moral, sin ser ella por sí misma normativa o prescriptiva. La moral no es ciencia, sino objeto de la ciencia, y en este sentido es estudiada, investigada por ella. La ética no es la moral, y por ello no puede reducirse a un conjunto de normas y prescripciones; su misión es explicar la moral efectiva, y, en este sentido, puede influir en la moral misma.

Su objeto de estudio lo constituye un tipo de actos humanos: los actos conscientes y voluntarios de los individuos que afectan a otros, a determinados grupos sociales, o a la sociedad en su conjunto.

Ética y moral se relacionan, pues, en la definición antes dada, como una ciencia específica y su objeto. Una y otra palabra mantienen así una relación que no tenían propiamente en sus orígenes etimológicos. Ciertamente, moral procede del latín mos o mores, «costumbre» o «costumbres», en el sentido de conjunto de normas o reglas adquiridas por hábito. La moral tiene que ver así con el comportamiento adquirido, o modo de ser conquistado por el hombre. Ética proviene del griego ethos, que significa análogamente «modo de ser» o «carácter» en cuanto forma de vida también adquirida o conquistada por el hombre. Así, pues, originariamente ethos y mos, «carácter» y «costumbre», hacen hincapié en un modo de conducta que no responde a una disposición natural, sino que es adquirido o conquistado por hábito. Y justamente, esa no naturalidad del modo de ser del hombre es lo que, en la Antigüedad, le da su dimensión moral.

Vemos, pues, que el significado etimológico de moral y de

OBJETO DE LA ÉTICA

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ética no nos dan el significado actual de ambos términos, pero sí nos instalan en el terreno específicamente humano en el que se hace posible y se funda el comportamiento moral: lo humano como lo adquirido o conquistado por.el hombre sobre lo que hay en él de pura naturaleza. El comportamiento moral sólo lo es del hombre en cuanto que sobre su propia naturaleza crea esta segunda naturaleza, de la que forma parte su actividad moral.

4. ÉTICA Y FILOSOFÍA

Al definirla como un conjunto sistemático de conocimientos racionales y objetivos acerca del comportamiento humano moral, la ética se nos presenta con un objeto propio que se tiende a

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tratar científicamente. Esta tendencia contrasta con la concepción tradicional que la reducía a un simple capítulo de la filosofía, en la mayoría de los casos, especulativa.

En favor de esta posición se esgrimen diversos argumentos de diferente peso que conducen a negar el carácter científico e independiente de la ética. Se arguye que ésta no establece proposiciones con validez objetiva, sino juicios de valor o normas que no pueden aspirar a esa validez. Pero, como ya hemos señalado, esto es aplicable a un tipo determinado de ética —-la norma-tivista— que ve su tarea fundamental en hacer recomendaciones y formular una serie de normas y prescripciones morales; pero dicha objeción no alcanza a la teoría ética, que trata de explicar la naturaleza, fundamentos y condiciones de la moral, poniéndola en relación con las necesidades sociales de los hombres. Un código moral, o un sistema de normas, no es ciencia, pero puede ser explicado científicamente, cualquiera que sea su carácter o las necesidades sociales a que responda. La moral —rdecíamos anteriormente— no es científica, pero sus orígenes, fundamentos y evolución pueden ser investigados racional y objetivamente; es decir, desde el punto de vista de la ciencia. Como cualquier otro tipo de realidad —natural o social—, la moral no puede excluir un tratamiento científico. Incluso un tipo de fenómeno cultural y social como los prejuicios"no es una excepción a este respecto;

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ÉTICA

es cierto que los prejuicios no son científicos, y que con ellos no puede constituirse una ciencia, pero sí cabe una explicación científica (sistemática, objetiva y racional) de los prejuicios humanos en cuanto que forman parte de una realidad humana social.

En la negación de toda relación entre la ética y la ciencia, pretende fundarse la adscripción exclusiva de la primera a la filosofía. La ética se presenta entonces como una pieza de una filosofía especulativa, es decir, construida a espaldas de la ciencia y de la vida real. Esta ética filosófica trata más de buscar la concordancia con principios filosóficos universales que con la realidad moral en su desenvolvimiento histórico y real, y de ahí también el carácter absoluto y apriorístico de sus afirmaciones sobre lo bueno, el deber, los valores morales, etc. Ciertamente, aunque la historia del pensamiento filosófico se halle preñada de este tipo de éticas, en una época en que la historia, la antropología, la psicología y las ciencias sociales nos brindan materiales valiosísimos para el estudio del hecho moral, ya no se justifica la existencia de una ética puramente filosófica, especulativa o deductiva, divorciada de la ciencia y de la propia realidad humana moral.

En favor del carácter puramente filosófico de la ética se arguye también que las cuestiones éticas han constituido siempre una parte del pensamiento filosófico. Y así ha sido en verdad. Casi desde los albores de la filosofía, y particularmente desde Sócrates en la Antigüedad griega, los filósofos no han dejado de ocuparse en mayor o menor grado de dichas cuestiones. Y esto se aplica, sobre todo, al largo período de la historia de la filosofía, en que por no haberse constituido todavía un saber científico acerca de diversos sectores de la realidad natural o humana, la filosofía se presentaba como un saber total que se ocupaba prácticamente de todo. Pero, en los tiempos modernos, se sientan las bases de un verdadero conocimiento científico -^que es, originariamente, físico-matemático—, y a medida que el tratamiento científico va extendiéndose a nuevos objetos o sectores de la realidad, comprendiendo en ésta la realidad social del hombre, diversas ramas del saber se van desgajando del tronco común de la filosofía para constituir ciencias especiales con una materia

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propia de estudio, y con un tratamiento sistemático, metódico, objetivo y racional común a las diversas ciencias. Una de las últimas ramas que se han desprendido de ese tronco común es la psicología —ciencia natural y social a la vez—', aunque haya todavía quien se empeñe en hacer de ella —como tratado del alma—■? una simple psicología filosófica.

Por esa vía científica marchan hoy diversas disciplinas —entre ellas la ética—- que tradicionalmente eran consideradas como tareas exclusivas de los filósofos. Pero, en la actualidad, este proceso de conquista de una verdadera naturaleza científica cobra más bien el carácter de una ruptura con las filosofías especulativas que pretenden supeditarlas, y de un acercamiento a las ciencias que ponen provechosas conclusiones en sus manos. La ética tiende así a estudiar un tipo de fenómenos que se dan efectivamente en la vida del hombre como ser

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social y constituyen lo que llamamos el mundo moral; asimismo, trata de estudiarlos no deduciéndolos de principios absolutos o apriorísticos, sino hundiendo sus raíces en la propia existencia histórica y social del hombre.

Ahora bien, el hecho de que la ética, así concebida —-es decir, con un objeto propio tratado científicamente—■, busque la autonomía propia de un saber científico, no significa que esta autonomía pueda considerarse absoluta con respecto a otras ramas del saber, y, en primer lugar, con respecto a la filosofía misma. Las importantes contribuciones del pensamiento filosófico en este terreno —desde la filosofía griega hasta nuestros días—*, lejos de quedar relegadas al olvido han de ser muy tenidas en cuenta, ya que en muchos casos conservan su riqueza y vitalidad. De ahí la necesidad y la importancia de su estudio.

Una ética científica presupone necesariamente una concepción filosófica inmanentista y racionalista del mundo y del hombre, en la que se eliminen instancias o factores extramundanos o suprahumanos, e irracionales. En consonancia con esta visión inmanentista y racionalista del mundo, la ética científica es incompatible con cualquier cosmovisión universal y totalizadora que pretenda situarse por encima de las ciencias positivas o en contradicción con ellas. Las cuestiones éticas fundamentales

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-^como, por ejemplo, las de las relaciones entre responsabilidad, libertad y necesidad— tienen que ser abordadas a partir de supuestos filosóficos cardinales como el de la dialéctica de la necesidad y la libertad. Pero en este problema, como en otros, la ética científica ha de apoyarse en una filosofía vinculada estrechamente a las ciencias, y no en una filosofía especulativa, divorciada de ellas, que pretenda deducir la solución de los problemas éticos de principios absolutos.

A su vez, como teoría de una forma específica del comportamiento humano, la ética no puede dejar de partir de cierta concepción filosófica del hombre. La conducta moral es propia del hombre como ser histórico, social y práctico, es decir, como un ser que transforma conscientemente el mundo que le rodea; que hace de la naturaleza exterior un mundo a su medida humana, y que, de este modo, transforma su propia naturaleza. El comportamiento moral no es, por tanto, la manifestación de una naturaleza humana eterna e inmutable, dada de una vez y para siempre, sino de una naturaleza que está siempre sujeta al proceso de transformación que constituye justamente la historia de la humanidad. La moral, y sus cambios fundamentales, no son sino una parte de esa historia humana, es decir, del proceso de auto-producción o autotransformación del hombre que se manifiesta en diversas formas, estrechamente vinculadas entre sí: desde sus formas materiales de existencia a sus formas espirituales, a las que pertenece la vida moral.

Vemos, pues, que si la moral es inseparable de la actividad práctica del hombre —material y espiritual—, la ética no puede dejar de tener nunca como fondo la concepción filosófica del hombre que nos da una visión total de éste como ser social, histórico y creador. Toda una serie de conceptos que la ética maneja de un modo específico, como los de libertad, necesidad, valor, conciencia, socialidad, etc., presuponen un esclarecimiento fñosófico previo. Asimismo, los problemas relacionados con el conocimiento moral, o con la forma, significación y validez de los juicios morales requieren que la ética recurra a disciplinas filosóficas especiales como la lógica, la filosofía del lenguaje y la epistemología.

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En suma, la ética científica se halla vinculada estrechamente a la filosofía, aunque como ya hemos señalado no a cualquier filosofía, y esta vinculación, lejos de excluir su carácter científico, lo presupone necesariamente cuando se trata de una filosofía que se apoya en la ciencia misma.

4.2.2. Conceitos de Ética

Entendo que o conceito mais adequado está exposto no item anterior. Aqui exponho conceitos específicos, apresentados historicamente por certos importantes filósofos e sociólogos.

Sócrates Ética é ser racional. Através da razão o homem estabelece um comportamento otimizado, estabelece a virtude do comportamento. Ele deve levar a racionalidade às últimas

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consequências e através da razão estabelecer qual o comportamento ideal do ser humano e a virtude do seu comportamento. Sócrates, portanto, estabelece a chamada ética racionalista, porque, segundo Sócrates o que diferencia o homem dos animais é a razão. Ademais, para ele só era possível ser Ético obedecendo às leis da pólis, pois foram construídas pelo homem.

Platão Ética é agir com racionalidade despida de interesse pessoal, cumprindo a virtude com a qual já nasceu o homem.

Aristóteles Ética é ser virtuoso pela razão, praticando-a. Ser virtuoso, por sua vez, é adotar o meio termo dos extremos, ser moderado.

Agostinho e Tomás de Aquino

Ética é o desenvolvimento da ligação entre o ser criado e Deus. Então ser ético é pautar sua conduta aos parâmetros divinos, que representa a perfeição teórica. Há aí uma mistura entre racionalismo platônico e aristotélico, mas a fé e a ligação com Deus agora assumem, a virtude aí assume uma feição menos racional e mais teocrática.

Kant

Em Kant, não há uma separação muito precisa entre ética e moral. Para Kant, através do uso concentrado da razão, o ser humano, sem olhar aspectos externos, sociais, consegue deduzir normas de comportamento obrigatórias, por si mesmo impostas pelo agente como um dever (imperativos categóricos). O imperativo categórico nada mais é do que o comprometimento da própria pessoa com seu comportamento ético.

Georg Hegel

Contrasta o formalismo excessivo de Kant, para o qual a pessoa só atinjiria a ética através do uso concentrado da razão, do ponto de vista individual. E Hegel entendia que a situação não era tão formal assim, porque a ética depende das circunstancias sociais, onde o indivíduo nasceu, as relações sociais e históricas, e, portanto, não tem como cada um estabelecer normas internas, porque não se vai chegar num consenso. Esse formalismo kantiano não permite que se chegue a um consenso ético.

Jürgen Habermas

Não se pode chegar a nenhum padrão de ética sem um discurso democrático. Para que se chegue a um padrão de ética, a um comportamento ético, é necessário que todos os indivíduos da sociedade iniciem um processo de discussão dialético através de argumentos válidos, para que o mais adequado prevaleça (instrumentalismo do discurso). Agir comunicativo: só devemos agir após um processo de comunicação; esgotado todo o processo de comunicação, a dialética dos argumentos, e escolhido o melhor argumento, então a sociedade age. Isso tem uma implicação enorme com a propria aplicabilidade das normas jurídica, porque uma norma jurídica só vai ter validade após o discurso argumentativo (contraditório).

Savater Os seres humanos podem inventar e escolher, em parte, sua forma de vida. Esse saber-viver é o que se chama de ética.

Peter Singer Questiona se é possível chegar a um conceito de ética numa sociedade tão plural como a atual. Entende que sim, desde que o homem se valha da razão e que seja ela convincente.

John Rawls

A pessoa sensível deve determinar quais os princípios de moralidade e justiça nortearão sua vida. Deve-se partir de condições comumente aceitas, a partir da posição original (véu da ignorância) que seria suprida pela racionalidade. A ética é justamente saber discernir entre o devido e o indevido, o bom e o mau, o bem e o mal. Isso cabe aos lúcidos fazer, já que aos doidos e psicopatas de nada adianta falar em ética.

Bauman A moralidade na ética pós-moderna não é universalizável e é aporética.

4.2.2. Ética e Meio Ambiente

Esse tema é desenvolvido em profundidade por Peter Singer.

Desde a Antigüidade, as culturas hebraicas e gregas fizeram o ser humano o centro do universo moral, e não somente o núcleo, mas a preferência totalitária das características moralmente significativas do mundo.

Para o antropocentrismo clássico o homem é o centro do mundo, o limite de cada coisa, de onde emanam todos os valores. Tem como base filosófica o humanismo que, de acordo com um dicionário especializado possui dois significados distintos: I) o movimento literário e filosófico que teve suas origens na Itália, na segunda metade do séc. XIV e da Itália difundiu-se para os demais países da Europa, constituindo a origem da cultura moderna; II) qualquer movimento filosófico que tenha como fundamento a matéria humana ou os limites e interesses do homem.

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Esta posição humana vem sendo questionada e suas práticas consideradas não mais aceitas, trata-se da (tentativa de) superação do paradigma antropocêntrico, por uma nova visão de mundo, com valores recentes.

Contudo, para uma reflexão inicial sobre essas mudanças, faz-se necessária uma análise do conceito de paradigma. Dentro desse exame, Thomas Kuhn, definiu:

Paradigmas (do grego, parádeigma) são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante um período de tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes da ciência. Nessa concepção, um primeiro sentido sociológico do conceito de paradigma indica toda a constelação de crenças, valores, procedimentos e técnicas partilhadas no consenso de uma comunidade determinada. Num segundo e mais profundo sentido, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebracabeças que, empregadas de forma modelar ou exemplar, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos demais problemas da ciência normal.

Somente após a devida articulação das experiências e teoria experimental ratificando a novidade relativa aos fatos, ou seja, de descoberta é que a simples teoria dá passagem à nova síntese: o paradigma.

O novo paradigma traz consigo uma ética preocupada com a universalidade, que considera as consequências dos atos humanos em relação ao todo.

E mais, tira o homem do centro das preocupações e quer trazer o ambiente para o foco principal, sem é claro, desconsiderar o primeiro, mas conseguindo definir preocupações que não atinjam-no de modo direto, somente como parte do meio. Nisso encontra-se o grande desafio de como atribuir importância à preservação dos animais, das espécies, das árvores e do ecossistema, sem considerarmos os interesses dos seres humanos, sejam eles econômicos, de lazer ou científicos.

4.2.3. Ética de Princípios e Ética de Resultados

A ética dos princípios julga a ação com base naquilo que está antes, o princípio, a norma, a máxima – não matar, não mentir, observar os pactos estabelecidos.

A ética dos resultados julga a ação com base naquilo que vem depois, isto é, com base nos efeitos da ação. Pela ética de resultados, a ação humana é boa e correta quando atinge os resultados esperados.

Pela ética de princípios, o uso da camisinha, a pesquisa das células-tronco, o aborto de fetos sem cérebro, o divórcio, a eutanásia são questões resolvidas que não requerem decisões: os princípios universais os proíbem. Mas a ética contextual ou de resultados nos obriga a fazer perguntas sobre o bem ou o mal que uma ação irá criar. O uso da camisinha contribui para diminuir a incidência da Aids? As pesquisas com células-tronco contribuem para trazer a cura para uma infinidade de doenças? O aborto de um feto sem cérebro contribuirá para diminuir a dor de uma mulher? O divórcio contribuirá para que homens e mulheres possam recomeçar suas vidas afetivas? A eutanásia pode ser o único caminho para libertar uma pessoa da dor que não a deixará?

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4.2.4. Eutanásia e Ética/Moral

Sobre o aspecto ético existem, segundo Nalini, quatro pontos de vista essenciais sobre a admissibilidade ou não da eutanásia.

A primeira, é a doutrina da sagração da vida em sentido estrito, para a qual nenhuma das modalidades de eutanásia é aceitável.

A segunda é a doutrina da sagração da vida em sentido moderado, e corresponde às acepções ético-médicas habituais, ou seja, proíbe-se toda forma de eutanásia direta-ativa, bem como toda forma de assistência ao suicídio, mas, sob certas circunstâncias, permite-se a eutanásia indireta: deixar morrer um paciente no sentido da eutanásia-passiva.

O terceiro ponto de vista é a posição liberal moderada, a permitir a eutanásia indireta-ativa ou deixá-lo morrer no sentido da eutanásia passiva, mas também permite o suicídio do paciente.

O último e o quarto ponto de vista é a posição fortemente liberal, que permite a assistência ao suicídio e também todas as formas de eutanásia, inclusiva a direta-ativa.

Em termos éticos, segundo o autor, apenas as duas primeiras posições seriam admissíveis. As demais colidem com o valor insuperável da vida.

4.3. Conceitos de CulturaCultura, de acordo com Miguel Reale, é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.

Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou sem fins. Ao contrário, a vida humana é sempre uma procura de valores. Viver é indiscutivelmente optar diariamente, permanentemente, entre dois ou mais valores. A existência é uma constante tomada de posição segundo valores. Se suprimirmos a ideia de valor, perderemos a substância da própria existência humana. Viver é, por conseguinte, uma realização de fins. O mais humilde dos homens tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter plena consciência de que há algo condicionando os seus atos.

O conceito de fim é básico para caracterizar o mundo da cultura. A cultura existe exatamente porque o homem, em busca da realização de fins que lhe são próprios, altera aquilo que lhe é "dado", alterando-se a si próprio.

Para ilustrar essa passagem do natural para o cultural, - mesmo porque não há conflito entre ambos, pois, como adverte Jaspers, a natureza está sempre na base de toda criação cultural, - costuma-se lembrar o exemplo de um cientista que encontra, numa caverna, um pedaço de sílex.

À primeira vista, por se tratar de peça tão tosca, tão vizinha do natural espontâneo, considera-a apenas com olhos de geólogo ou de mineralogista, indagando de suas qualidades, para classificá-la segundo os esquemas do saber positivo.

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Um exame mais atento revela, todavia, que aquele pedaço de sílex recebera uma forma resultante da interferência, do trabalho do homem, afeiçoando-se a fins humanos, para servir como utensílio, um machado, uma arma. Desde esse instante, o dado da natureza se converte em elemento da cultura, adquirindo uma significação ou dimensão nova, a exigir a participação do antropólogo, isto é, de um estudioso de Antropologia cultural, que é a ciência das formas de vida, das crenças, das estruturas sociais e das instituições desenvolvidas pelo homem no processo das civilizações.

Esse exemplo, que nos transporta às origens da cultura, tem o mérito de mostrar a vinculação originária da cultura com a natureza, evitando-se certos exageros culturalistas, que fazem do homem um Barão de Münchausen pretendendo arrancar-se pelos cabelos para se libertar do mundo natural, no qual se acha imerso... É, ao contrário, com apoio na natureza, que a cultura surge e se desenvolve.

O sentido ora dado à palavra cultura não deve ser confundido com a acepção corrente da mesma palavra. "Cultura", na acepção comum desse termo, indica antes o aprimoramento do espírito, que possibilita aos homens cultivar todos os valores humanos. Homem culto é aquele que tem seu espírito de tal maneira conformado, através de meditações e experiências que, para ele, não existem problemas inúteis ou secundários, quando eles se situam nos horizontes de sua existência. O homem culto é bem mais do que o homem erudito. Este limita-se a reunir e a justapor conhecimentos, enquanto que o homem culto os unifica e anima com um sopro de espiritualidade e de entusiasmo.

O termo técnico "cultura", embora distinto do usual, guarda o mesmo sentido ético, o que compreenderemos melhor lembrando que a cultura se desdobra em diversos "ciclos culturais" ou distintos "estágios históricos", cada um dos quais corresponde a uma civilização. O termo "cultura" designa, portanto, um gênero, do qual a "civilização" é uma espécie.

4.3.1. Bens Culturais e Ciências Culturais

Dissemos que existem duas ordens de fenômenos: os da natureza e os da cultura. No estudo dos fenômenos puramente naturais, o homem chega a uma soma de conhecimentos que forma, em síntese, as chamadas ciências físico-matemáticas, como, por exemplo, a Física, a Química, a Matemática, a Astronomia, a Geologia, e assim por diante.

Essas ciências não podem ser chamadas ciências culturais; elas, entretanto, como ciências que são, constituem "bens da cultura". Elas entram a fazer parte do patrimônio da cultura, mas não são ciências culturais, porquanto o seu objeto é a natureza: são "ciências naturais", e como produto da atividade criadora do homem, integram também o mundo da cultura.

Se o homem, por um lado, estuda e explica a natureza, atingindo ciências especiais, por outro lado, volta-se para o estudo de si mesmo e da sua própria atividade consciente; ele abre perspectivas para outros campos do saber, que são a História, a Economia, a Sociologia, o Direito etc.

Essas ciências, que têm por objeto o próprio homem ou as atividades do homem buscando a realização de fins especificamente humanos, é que nós chamamos de ciências propriamente culturais. Há, pois, uma distinção bem clara e necessária: todas as ciências representam fatos

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culturais, bens culturais, mas, nem todas as ciências podem ser chamadas, no sentido rigoroso do termo, ciências culturais.

Ciências culturais são aquelas que, além de serem elementos da cultura, têm por objeto um bem cultural. A sociedade humana, por exemplo, não é só um fato natural, mas algo que já sofreu no tempo a interferência das gerações sucessivas.

Quando uma criança nasce já recebe, através dos primeiros vocábulos, uma série de ensinamentos das gerações anteriores. Herda ela, indiscutivelmente, através da linguagem, um acervo de espiritualidade que se integrou na convivência.

Em seguida, o ser humano vai recebendo educação e adquirindo conhecimentos para, depois, atuar sobre o meio ambiente e, desse modo, transformá-lo, através de novas formas de vida. A sociedade está constantemente em mutação, não obstante ter sua origem na natureza social do homem.

É necessário, pois, esclarecer o valor do ensinamento, que nos vem de Aristóteles, de que "o homem é um animal político" por sua própria natureza, ou seja, um animal destinado a viver em sociedade, de tal modo que, fora da sociedade, não poderia jamais realizar o bem que tem em vista.

É preciso compreender o sentido da palavra "natural" empregada por Aristóteles e seus continuadores. Não há dúvida que existe, na natureza humana, a raiz do fenômeno da convivência. É próprio da natureza humana viverem os homens uns ao lado dos outros, numa interdependência recíproca. Isto não quer dizer que o homem, impelido a viver em conjunto, nada acrescente à natureza mesma, pois ele a transforma, transformando-se a si mesmo, impelido por irrenunciável exigência de perfeição.

A sociedade em que vivemos é, em suma, também realidade cultural e não mero fato natural. A sociedade das abelhas e dos castores pode ser vista como um simples dado da natureza, porquanto esses animais vivem hoje, como viveram no passado e hão de viver no futuro. A convivência dos homens, ao contrário, é algo que se modifica através do tempo, sofrendo influências várias, alterando-se de lugar para lugar e de época para época. É a razão pela qual a Sociologia é entendida, pela grande maioria de seus cultores, como uma ciência cultural.

É evidente que o Direito, sendo uma ciência social, é também uma ciência cultural, como será objeto de estudos especiais.

4.4. Conceitos de Justiça

Pré-socráticosViam o mundo como o resultado dos feitos e desfeitos dos deuses. A Justiça era baseada nos mitos, alegorias que buscavam explicar os sucedidos terrenos de acordo com caprichos advindos de uma ordem sobrenatural.

Sócrates Justiça seria um valor fundamental, cujo conhecimento somente poderia ser alcançado através do diálogo, no interior da Pólis.

PlatãoPlatão defendia que cada pessoa tinha uma aptidão. Justiça ocorre quando cada um exerce a virtude sua na sociedade, de acordo com sua natural designação. Assim, o papel do homem já era pré-determinado

Aristóteles Justiça é o agir com cooperação interpessoal (homem é um ser político). Não se trata de algo individual, mas algo essencialmente social, que se manifesta nas relações entre os homens. Como se concretiza a justiça? Pelo alcance da igualdade. Ele via a justiça em duas acepções, justiça particular (justiça na relação entre as partes) e justiça universal (justiça que envolve o

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todo, ou seja, a legislação e toda comunidade por ela protegida). A justiça particular podia ser:Justiça particular comutativa ou corretiva: trata-se da justiça entre particulares, entre pessoas que atuam com coordenação, sem diferenciações hierárquicas, a qual deve ser concretizada de forma simples ou aritmética. Os ganhos e perdas das partes devem ser iguais, não importando o mérito individual. Esse justo conduz à noção de reciprocidade proporcional das forças dentro da malha social.Justiça particular distributiva: trata-se da justiça entre sociedade e particulares, não devendo ser implementada de forma direta, e sim proporcional. Nela se insere a importância do mérito (avaliação subjetiva do merecimento ou não de benefícios) para se fixar a justiça na distribuição dos bens. Aristóteles reconhecia que o mérito era um valor variável, conforme o sistema político adotado.Para se completar a teoria da justiça em Aristóteles, ele agregou o elemento da equidade em sua concepção. Equidade significaria avaliar o justo no caso concreto, visto que a lei possui um caráter geral e abstrato. Assim, equidade é a correção dos rigores da lei.

Sofistas apontavam a identidade entre a legalidade e a justiça, de modo a favorecer o desenvolvimento de ideias que associavam à inconstância da lei a inconstância do justo.

Jesus Cristo

Justiça é a justificação humana alcançada pela fé em Deus (Jesus); somente pelo conhecimento de Deus, e sendo por Ele justificado, o homem é capaz de praticar a verdadeira justiça. Ser justo é cumprir os dois mandamentos que guardam toda a axiologia do cristianismo verdadeiro: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. A justiça cristã é transcendental, eis que o “assunto” de Deus com o homem se refere à alma, que é eterna, e não ao corpo físico, que é mortal, perecível, do pó veio e ao pó voltará.

Agostinho

Justiça é buscar a correspondência entre a lei humana e a lei divina. A justiça terrena é, na verdade, reflexo da cidade dos homens; essa concepção deverá imperar até o advento da Cidade de Deus, quando então haverá a ruptura com a presente ordem social. Se o homem, por outro lado, se deixar inspirar divinamente, seus atos e instituições prosperarão.

Tomás de Aquino

Justiça consiste na disposição constante da vontade de dar a cada um o que é seu, segundo uma igualdade. Não respondeu, entretanto, o que era devido a quem. Ele é jusnaturalista, admite a existência de uma lei natural, a qual, entretanto, seria mutável.

Maquiavel

Não desenvolveu especificamente o tema sobre a justiça, mas sim sobre o poder. Para ele, o governante tinha que manter o poder para garantir a ordem, e da ordem poderia vir a justiça. O poder poderia vir e ser mantido por várias formas: carisma, competência, força. O importante é ser mantido (

Thomas Hobbes

Contratualista. Ser justo é obedecer ao contrato social firmado com o Leviatã (Estado), ente necessário para impedir que o homem retorne ao estado de natureza, em que o que imperava era a lei do mais forte.

John Locke

Contratualista. Ser justo é obedecer ao contrato social, contrato este muito mais razoável, entretanto, do que o de Hobbes. Antes do Estado, o homem não vivia no caos. O homem se organiza naturalmente. Os homens firmaram o contrato social a fim de permitir a solução de questões que dificilmente poderiam ser solvidas sem a participação de um poder. Em Locke, há direitos pré-contratuais, abrindo-se aí margem para a defesa dos direitos humanos.

Jean-Jacques Rousseau

Contratualista. Rousseau era um jusnaturalista, tendo sua filosofia um aspecto imanentista de justiça, não advinda de Deus, mas dos próprios homens. E a justiça, em Rousseau, é a observância das leis justas que foram elaboradas com base nos direitos naturais pela vontade geral de preservar direitos e liberdades inatos ao homem. Esses direitos os homens já tinham antes, quando viviam na Idade de Ouro, situação originária pré-contratual.

David Hume

Empirista e cético, antiracionalista. A justiça não se define por critérios subjetivos, pelo que um indivíduo considera justo, mas sim pelo que objetivamente se tem como justo na coletividade. Essas convenções podem mudar com o tempo, razão pela qual a Justiça seria o conjunto de comportamentos juridicamente exigidos em certo espaço/tempo.

Immanuel Kant

A noção de direito refere-se à relação exterior e prática de uma pessoa com outra, na medida em que as suas ações possam influir sobre outras ações; essa noção diz respeito à relação do arbítrio do agente com o arbítrio do outro. Estabelece-se, assim, uma relação mútua de arbítrios, onde se consideram não as finalidades pretendidas por cada um dos agentes, mas unicamente se a manifestação da vontade de um, expressa em sua ação, constitui um empecilho ao exercício da liberdade do outro, de acordo com uma lei universal ou o princípio universal do direito. O direito em si reporta-se à manutenção da liberdade de cada um segundo uma lei válida para todos (imperativo categórico geral). Logo, a injustiça é a perturbação do estado de livre coexistência, pois o impedimento à liberdade de um não pode subsistir com a liberdade de todos, segundo leis gerais. Kant traz como elemento essencial para se caracterizar a justiça a liberdade, o homem dando a si mesmo as suas leis e cumprindo-as por dever pessoalmente imposto A ação somente seria justa se exercida com o máximo de liberdade, respeitada a existência da liberdade alheia.

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Alf Ross

“Uma pessoa que sustenta que certa regra ou conjunto de regras – por exemplo, um sistema tributário – é injusto não indica nenhuma qualidade discernível nas regras; não apresenta nenhuma razão para sua atitude. Simplesmente se limita a manifestar uma expressão emocional. Tal pessoa diz: “Sou contra essa regra porque é injusta’. O que deveria dizer é: “Esta regra é injusta porque sou contra ela”. Alf Ross é o que há de mais radical no pensamento a respeito da justiça, porque ele nega a justiça. Para ele não há possibilidade de conhecimento racional a respeito da justiça. Para ele nós nem se quer devemos nos dar ao trabalho de teorizar a respeito da justiça, porque a justiça é fruto das nossas emoções, a justiça é fruto das nossas reações, é como uma criança de 06 anos que diz é injusto, mas criança de 06 anos não tem essa capacidade. Então ele vai dizer, a justiça é uma reação emocional do homem, ele diz que é injusto aquilo que o desagrada. Eu não sou capaz de conhecer a justiça, ele nega a possibilidade de se conhecer a justiça, então justiça não tem nada a ver com direito.

Dworkin

O direito deve ser visto como instrumento que realiza valores e expectativas de justiça que lhe são anteriores. Isso não pode ser feito no modelo positivista propugnado por Kelsen. Para Dworkin, a interpretação no direito é essencial, especialmente mediante sua posição de que o juízo jurídico não pode ser feito sem o juízo moral. Porém, ele não quer, com isso, ir de encontro ao sistema jurídico vigente para afirmar a inexistência de parâmetros judiciais de decisão ou conceder uma carta branca aos juízes para julgar. Para Dworkin, a atividade interpretativa, inerente ao Direito, é essencialmente evolutiva, na medida em que as concepções jurídicas do “ontem” são remanejadas, a cada case, para ser o melhor possível hoje. A satisfação do bem particular privado não pode ser conquistada sem que alguns elementos de justiça (públicos) intervenham para a sua realização. A justiça é entendida como condição de bem estar para a realização dos indivíduos. Seu ideal de justiça é liberal, mas descurar que a liberdade não pode ser confundida com a sorte.

John Rawls

Rawls é completamente antiutilistarista; elaborou uma teoria de justiça voltada para a democracia. A teoria da justiça parte de duas ponderações: a) A equidade rege todas as reflexões sobre a questão da justiça (equidade aqui em nada coincidindo com a concepção aristotélica). Equidade para ele dá-se quando do momento inicial em que se definem as premissas com as quais se construirão as estruturas institucionais da sociedade; mais claramente, quando se fala em equidade em Rawls, fala-se de um momento inicial em que os atores do contrato social discutiram em pé de absoluta igualdade os princípios da justiça; b) Rawls é contratualista (neocontratualista). Como ele cria uma teoria, ele a assenta numa base hipotética, não histórica, para poder desenvolver todo o seu raciocínio.Outro ponto nevrálgico em Rawls é o fato de que a justiça não é estudada com base na ação humana individualmente tomada, mas sim com base nas instituições sociais. É a justiça das instituições humanas (interesses comuns a todos) que beneficia ou prejudica a comunidade que a ela se encontra vinculada.O que são essas “instituições” em Rawls? São as leis fundamentais, regras e preceitos de uma sociedade, não devendo ser compreendidas no sentido organizacional, isto é, de Estado, Igreja etc. Assim, o modelo de Rawls BUSCA, ALÉM DE DETERMINAR O QUE É SOCIALMENTE JUSTO, MOSTRAR QUAIS SÃO OS MODAIS DEÔNTICOS (DEVERES) DAS INSTITUIÇÕES NAS ESTRUTURAS BÁSICAS DE UMA SOCIEDADE. Para apontar o que é justiça, Rawls confere um importante papel às questões relativas à distribuição de direitos e deveres e das oportunidades econômicas e condições sociais, assim como às relativas à participação nessa distribuição.

Utilitaristas

Justiça é a maximização das possibilidades de se alcançar a felicidade, já que o homem é movido pelo prazer e pela fuga da dor. Trata-se de um ser que age por interesses, interesses na obtenção do bem estar. A justiça utilitaária é ordenar a sociedade de forma que suas instituições mais importantes sejam planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros. Há justiça, então, se a maioria da sociedade possui bem estar, mesmo que em detrimento do mal causado para uma minoria. Justo é permitir que o homem seja feliz e se realize (conceito super-simplficiado das ideias utilitárias, cuidado).

LibertarianistasJustiça é permitir que cada um realize seu projeto pessoal de vida, sem ingerência estatal e sem pressões exteriores que levem o ideal pessoal a ser diferente do real (conceito super-simplficiado das ideias utilitárias, cuidado).

4.5. Conceitos de MoralA moral é o comportamento que a pessoa adota espontaneamente,

independentemente de sanção, por considerar que deve fazê-lo. O ato moral implica a adesão do espírito ao coneúdo da regra. Georg Jellinek dizia que o Direito era um

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mínimo ético, ou seja, que ele representaria o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver.

Isso, no entanto, não é correto. Isso porque existem várias questões incorporadas ao direito que podem ser tidas por amorais, ou seja, totalmente indiferentes da moral (exemplo: essa lei começa a vigorar na data de sua pulicação...) e várias questões imorais, mas incorporadas ao Direito, como a delação premiada. De acordo com Reale, por mais que os homens se esforcem por manter relações imorais apartadas do Direito, sempre permanece nele um resíduo de imoral tutelado.Logo, vê-se que há sim, por evidente, pontos comuns entre o Direito e a Moral, mas daí a dizer que o Direito é um mínimo ético é incorreto. Idealmente, representa-se o Direito e a moral por dois círculos concêntricos, sendo o Direito o círculo do meio. Mas na concepção real ou pragmática, o Direito é melhor representado por dois círculos secantes.

4.5.1. Moral Kantiana

Kant opõe-se ao relativismo, ao ceticismo e ao dogmatismo, do mesmo modo que pensadores contemporâneos, como Rawls, Apel, Habermas e Dworkin.

O julgamento e o ato moral não dependem de sentimentos pessoais, de decisões arbitrárias, de valores sócio-culturais ou de convenções. A ação humana, para Kant, é submetida a obrigações últimas, sendo o homem responsável diante de si mesmo e do outro, sendo que essa ação resulta de uma racionalidade que é própria do homem. Para que se possa justificar racionalmente a ação moral irá obedecer ao princípio último da moral - o imperativo categórico.

Do ponto de vista dos costumes, Kant classifica as ações humanas em ações:

a) contra o dever e, nesse sentido, as subdivide em ações: I) Por interesse pessoal; II) Legalidade simples; III) Por inclinação imediata;

b) De acordo com o dever e;

c) Por dever. Somente as últimas são consideradas como ações morais e, portanto, fazem parte do universo da moralidade.

Kant explica a ética/moral apelando para o conceito de dever, porque o homem – ser moral – não possui uma boa vontade sempre e naturalmente. O dever é que irá permitir que se torne boa a vontade nos seres finitos. Por sua vez, a boa vontade reside em cumprir o dever pelo respeito ao dever (e não em respeito à legalidade). O critério metaético da moralidade, a bondade incondicional, se realiza quando se faz o que é justo por ser moralmente correto e, portanto, quando a ação materializa o dever mesmo, independente de qualquer causa externa.

Apenas nesses casos, Kant fala de moralidade. A moralidade, portanto, irá dotar a vontade de uma qualidade que irá distinguir os seres humanos dos animais racionais, que agem somente de acordo com as leis da natureza. Escreve Kant que o essencial de toda a determinação da vontade mediante a lei moral é que ela, para ser uma manifestação da liberdade, será determinada unicamente pela lei moral, expressa no imperativo categórico. Essa determinação se realizará “não apenas sem a cooperação das impulsões sensíveis, mas até com a rejeição de todas elas e com a exclusão de todas as inclinações, enquanto elas se poderiam opor àquela

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lei.” Torna-se necessário, assim de acordo com Kant determinar-se um princípio objetivo, enquanto dirigido à vontade do agente.

Nesse contexto é que Kant demonstra a importância do imperativo categórico.

KANT DIVIDE OS IMPERATIVOS, MÁXIMAS DE QUALQUER AÇÃO HUMANA, EM HIPOTÉTICOS E CATEGÓRICOS. O IMPERATIVO É HIPOTÉTICO, QUANDO A AÇÃO É APENAS BOA, COMO MEIO PARA SE ATINGIR ALGO MAIS, ALGUM FIM. O IMPERATIVO É CATEGÓRICO, QUANDO REPRESENTA UMA AÇÃO COMO, OBJETIVAMENTE, NECESSÁRIA, SEM RELAÇÃO COM QUALQUER FIM; A AÇÃO É REPRESENTADA COMO BOA EM SI MESMA.

Logo, o imperativo categórico é o critério objetivo da moralidade e se articula, em três formulações, todas dirigidas à vontade do agente. Estabelecem máximas ou princípios subjetivos da ação e é passível de generalização, ou seja, exclui, expressamente, a análise das consequências ou do bem-estar imediato da pessoa, pois antes visa o bem-estar dos outros. Kant faz a formulação geral do imperativo categórico nos seguintes termos: “Age segundo a máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal”.

1ª. Formulação - “age unicamente de acordo com a máxima que possa se tornar universal”

2ª formulação – “age como se a máxima da tua ação se devesse tornar por tua vontade uma Lei Universal da Natureza’”.

3ª formulação – “age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e jamais como meio”.

4ª formulação – “age segundo máximas que contenha simultaneamente em si a sua própria validade universal para todo o ser racional”.

O imperativo categórico refere-se a máximas, ou seja, a princípios subjetivos da ação, que diferem de um indivíduo para outro, são princípios que o próprio sujeito reconhece como próprios e que contêm várias normas de orientação para a própria existência em termos pessoais e sociais (ex. eu ajo de determinada maneira e não de outra por princípio). As normas práticas são diversas de acordo com a situação e as possibilidades do sujeito, já que essas são também infinitas. Mesmo seguindo a mesma máxima, pode-se agir de forma diferente diante de situações que exigem a sua adoção.

A fórmula racional adotada por Kant para resolver a questão da adequação das máximas ao dever, sem cair no dogmatismo ou no formalismo rígido, consiste no emprego da ideia da razão prática e da autonomia. Autonomia consiste, como o próprio nome indica, na ação realizada de acordo com a lei elaborada pela própria vontade.

Kant argumenta que sendo a lei moral, a única lei estabelecida pela consciência individual, ela será o princípio determinante da manifestação da autonomia. ENCONTRA-SE NESSA CATEGORIA A FUNDAMENTAÇÃO DO CONCEITO DE LIBERDADE: VONTADE LIVRE É VONTADE SUBMETIDA A LEIS MORAIS, PORTANTO, ÀS LEIS QUE EXPRESSAM A AUTONOMIA. O respeito ao dever, imposto pela lei da autonomia será então o único móbil da ação que não torna a vontade heterônoma, ou seja, determinada por fatores alheios ao agente.

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O princípio da autonomia implica que se escolham somente aquelas máximas do nosso próprio querer que possam, simultaneamente, serem consideradas como lei universal, ou seja, de acordo com o imperativo categórico.

A moralidade torna-se, assim, como a única condição que torna o homem um fim em si mesmo. O homem torna-se um fim em si mesmo quando participa no reino dos fins, cada homem é um fim nesse reino como um membro legislador.

O homem é um membro legislador desse “reino” quando sua vontade é livre, ou seja, conforme uma lei universal e necessária que determina que o homem nunca seja tratado como meio e sempre como um fim em si mesmo. Como só a lei moral considera o homem como um fim em si mesmo, só em obediência a ela é que os homens podem coexistir livremente, na medida em que a liberdade de um encontra obstáculo na liberdade do outro em seu uso externo. A ausência de moralidade implica que cada um aja segundo as suas próprias inclinações, pois o homem, além do mundo inteligível, faz parte também do mundo sensível, o que o torna suscetível a paixões e inclinações diversas, ou seja, segundo leis que não podem ser universalizáveis, por exemplo, mentir. É a possibilidade de coexistência em um “reino” em que todos são respeitados como fins em si mesmos que acaba produzindo no homem o interesse pela lei moral. E, por isso, a lei moral é a única lei que o homem pode produzir para si mesmo.

Portanto, a heteronomia da vontade, a obediência não à lei moral, mas a determinações externas à nossa consciência, tem como consequência desconsiderar-se o homem como um fim em si mesmo, logo, não podendo ser universalizável, destruindo, assim, a igual liberdade de todos os homens. A autonomia da vontade, por outro lado, permite a liberdade de todos, entendida como coexistência, e, sendo assim, como obediência a uma lei que considera o outro como um fim em si e a não lhe fazer nada que não se deseje para si mesmo.

A vontade autônoma é aquela que adota uma máxima (que leva à ação) conforme o dever, pois ela toma para si esse dever, como se sua lei fosse, já que somente através dela pode se tornar um homem livre. A heteronomia da vontade, ao contrário, não leva à liberdade, pois o homem estará agindo segundo uma lei (uma determinação) que ele não produziu para si. O conceito de liberdade, em Kant, ao pressupor obediência à lei moral, exclui qualquer forma de consideração egoísta, pois a obediência tem em vista somente o outro, a quem a lei moral manda que se trate como um fim em si mesmo. Esta concepção oferece importantes aportes à construção da ideia de dignidade humana.

A lei moral é universal, pois vale indistintamente para todos os seres racionais, e, além disso, determina que o homem seja tomado, na ação, sempre como um fim em si mesmo. Ao formular o imperativo categórico, o homem torna-se um fim em si mesmo. Como essa condição só é alcançada através da ação moral, a moralidade e a humanidade são as únicas coisas dotadas de dignidade.

Kant afirma que o homem existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio, para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, tanto as direcionadas a ele mesmo, quanto nas que o são a outros seres racionais, o homem deve ser sempre considerado, simultaneamente, como fim.

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Tudo tem um preço ou uma dignidade, escreve Kant. Uma coisa caracteriza-se por ter um preço e pode ser substituída por outra coisa que lhe seja equivalente; “mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”. Ao contrário das coisas que têm um valor meramente relativo, os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por isso, limita todo o arbítrio e é um objeto de respeito. O homem não é, pois, um fim subjetivo para a ação, mas um fim objetivo, isto é, algo cuja existência é, em si mesma, um fim. Por isso, Kant remete à existência de um princípio prático da razão que determina a vontade humana e que pressupõe que a natureza racional existe como fim em si. A submissão a essa lei que ordena que cada homem jamais se trate, a si mesmo ou aos outros, simplesmente como meios, remete a uma ligação sistemática de leis objetivas comuns, isto é, a um “reino dos fins”, ou seja, a um estado no qual cada homem é um fim em si mesmo e somente nesse “reino”, o homem é um ser livre, um ser autônomo, em cuja vontade reside toda obrigação e toda autonomia.

4.5.1.1. Tratamento do Direito em Kant

Ao contrário do que consideram alguns leitores de Kant, na filosofia do direito kantiana não ocorre uma separação conceitual entre a moral e o direito, mas uma separação analítica. Isto significa que ocorre uma necessária complementaridade entre o sistema da moralidade e o sistema jurídico, que se materializa não na esfera da vontade individual, mas da ação do poder público, especificamente, na legislação. O direito à inviolabilidade da pessoa humana, por exemplo, se caracteriza como um direito subjetivo que pertence ao homem como pessoa, antes mesmo do direito estatal.

A doutrina do direito de Kant reflete, no campo da teoria do direito, a sistemática da metafísica dos costumes, que se apóia sobre os conceitos preliminares da teoria kantiana da moral, a philosophia practica universalis - dever e imperativo categórico, obrigação e coerção - e destaca duas questões fundamentais: a legalidade e a moralidade, e o a priori universal da razão jurídica.

Assim, Kant aborda um aspecto da moral, que a ética contemporânea ignora, pois o sujeito encontra-se ligado a dois tipos de relação, ambos subsumidos numa única e mesma obrigação, que é a lei moral, a saber, a legalidade e a moralidade.

A LEGALIDADE NÃO É UMA SOLUÇÃO CONTRÁRIA À MORALIDADE, MAS SUA CONDIÇÃO NECESSÁRIA. Dessa forma, a tese de Max Weber – os dois tipos weberianos de ética: a ética da responsabilidade e a ética da convicção – e a tese do positivismo da separação absoluta entre a legalidade e a moralidade não se sustentam diante da argumentação implícita no pensamento de Kant.

O ato moral para Kant não disputa com o ato legal, mas representa um reforço de suas exigências. A resposta à pergunta “o quê é o direito?” e não à pergunta “o quê está de acordo com o direito?”, insere-se no quadro geral que constitui as indagações fundamentais da metafísica kantiana:-“ O quê posso saber?” Ou os limites do conhecimento; “O quê devo fazer?”, onde se analisa o problema da ação humana e onde se encontra a quaestio iuris; “O quê posso esperar?”, onde são respondidas as indagações sobre a religião e a história e “O quê é o homem?” ou a antropologia filosófi ca.

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A razão prática designa a faculdade de agir independentemente de princípios de determinação, de escolha, a saber, dos desejos, das necessidades e das paixões, dos sentimentos do agradável e do desagradável. O estudo do julgamento estético conduziu Kant a afirmar na Crítica da Faculdade de Julgar que se existe um ser que é o objeto final da natureza, esse ser somente pode ser o homem. Kant repete então a tese do primado teleológico puro da ideia da liberdade e de seu valor regulador. Ao mesmo tempo, Kant procura articular a filosofia teórica com a filosofia prática no edifício de uma filosofia transcendental.

KANT APRESENTA O HOMEM NÃO COMO ELE É, MAS COMO DEVERIA SER. Dentro dessa perspectiva, Kant argumenta como pertence à faculdade de julgar estética realizar a síntese do mundo da natureza e com o da liberdade, ou seja, os requisitos da razão teórica e da razão prática.

A terceira Crítica representa uma virada na reflexão política e jurídica. Isto porque Kant estabelece uma ligação entre o “belo” – objeto do julgamento estético – e o bem – objeto da moralidade. Essa ligação é realizada considerando-se como hipótese do bem, o “belo”, que signifi ca ordem, uma harmonia que o direito, com

vistas a governar a sociedade civil, deve encarnar nas regras jurídicas. Assim, a virada é realizada, pois a ordem jurídica, à semelhança da beleza estética, apresenta-se para Kant como a inscrição da ideia de liberdade na natureza. O PODER LEGAL DA SOCIEDADE CIVIL DEVERÁ CONTER A VOCAÇÃO ANÁRQUICA DA LIBERDADE NATURAL. AS LEIS DEVERÃO INSTITUIR UMA ORDEM QUE SE ALGUM DIA, ESPERAVA KANT, PUDER SER PROJETADA EM DIMENSÃO MUNDIAL, CONSTITUIRÁ O DIREITO COSMOPOLÍTICO, O DIQUE CONTRA TODAS AS GUERRAS.

Kant chama de virtude a fortaleza moral do homem que tem em vista a superação de todos os impulsos sensíveis opostos à liberdade. A doutrina das virtudes trata da submissão da liberdade interna a leis, na medida em que a moralidade é a conformidade da máxima da ação

com o dever. Já O DIREITO É A SOMA DAS CONDIÇÕES SOB AS QUAIS O ARBÍTRIO DE UM PODE SER CONCILIADO COM O DE OUTRO, SEGUNDO UMA LEI UNIVERSAL DE LIBERDADE. PELA REALIZAÇÃO DA LIBERDADE EXTERNA, ALCANÇA-SE A LEGALIDADE, QUE É A CONFORMIDADE DE UMA LEI UNIVERSAL DA LIBERDADE.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant faz a distinção entre “legalidade” e “moralidade’: a “conformidade com o dever” não é o “dever”. “A simples conformidade ou não conformidade de uma ação com a lei, abstraindo-se o móvel de ação, chamamos legalidade (conformidade com a lei); todas às vezes que a Ideia do dever tirada da lei é ao mesmo tempo o móvel da ação, encontra-se aí a moralidade desta (os bons costumes)”. Não se encontra, entretanto, na lei moral o fundamento do direito para Kant.

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Tanto para o direito, como para a moral, existem deveres. Tanto num, como noutro, o dever não é definido por seu conteúdo, mas pela sua forma. “Agir por dever” significa que não se leva em conta nem as inclinações do agente, nem a finalidade pretendida. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes define o dever como “a necessidade de realizar uma ação por respeito à lei”. O dever, segundo definição contida na Introdução, é aquela ação a que cada um é obrigado, sendo a obrigação a “necessidade de uma ação livre exercida sob a influência do imperativo categórico da razão”. Mas Kant assinala que sendo toda obrigação uma resposta ao imperativo categórico, enunciado pela razão, podemos ser obrigados de diferentes maneiras, pois existem duas legislações da razão prática.

Kant toma o exemplo da promessa para diferenciar os dois tipos ou formas de obrigação encontradas na razão prática. De um lado, a obrigação moral de cumprir uma promessa corresponde a uma determinação do agir que se origina numa pura legislação interior (a obrigação moral obriga in foro interno); a lei do dever moral é aquela dada ao sujeito por si mesmo, ela resulta do exercício de sua autonomia. O cumprimento de uma obrigação jurídica, estabelecida num contrato, é um dever externo, pois diferentemente do imperativo moral ela não integra o motivo do agir de acordo com a lei; ela permanece externa. A legislação jurídica, para o sujeito de direito, significa assim heteronomia, sendo esta a razão do caráter coativo do direito. Dessa forma, para a metafísica dos costumes exigida por uma filosofi a prática que tem por objeto não a natureza, mas liberdade do arbítrio, o dever é o único móvel das ações morais, que determinará os limites do arbítrio; e se nas ações relativas ao direito a ideia do dever ocupa o seu lugar, a coatividade legal, acompanhada em caso de desobediência de uma sanção, legalmente prevista e definida, é que irá fornecer o critério de uma ação juridicamente válida.

4.6. Regras Jurídicas, Regras Morais e Regras de Trato SocialRegras jurídicas, regras morais e regras de trato social, de acordo com a

sociologia jurídica, se tratam de instrumentos de controle social: a) Regra moral : orienta a consciência humana em suas atitudes. É unilateral,

autônoma, interior, incoercível, sanção difusa;

b) Regra de trato social : padrões de conduta social ditados pela própria sociedade, com o propósito de tornar mais agradável o ambiente social. São seguidas por força do costume, de hábitos consagrados. De acordo com Radbruch e Del Vecchio, as regras de trato social encontram-se entre a Moral e o Direito. Ex: cortesia, etiqueta. Quem desatende a essa categoria de regras sofre uma sanção social, tal como a censura ou o desprezo público, mas não pode ser coagido (legitimamente) a praticá-las. É unilateral, heterônomo, exterior, incoercível, sanção difusa;

c) Regra jurídica : é bilateral, heterônomo, exterior, coercível, sanção prefixada.

REGRA MORAL REGRA DE TRATO SOCIAL REGRA JURÍDICA

Unilateral Unilateral BilateralNão Atributiva Não Atributiva AtributivaAutônoma Heterônoma HeterônomaInterior Exterior ExteriorNão coercitivas Não coercitivas Coercitivas

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Sanção difusa Sanção difusa Sanção pré-fixada

Vejamos:

a) Bilateralidade, alteridade ou intersubjetividade : Miguel Reale chama essa questão de bilateralidade atributiva. Segundo ele, “há bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente (garantia oficial, estatal) algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico. Onde não existe proporção no pretender, no exigir ou no fazer não há Direito, como inexiste este se não houver garantia específica de tais atos”. Em resumo, trata-se de uma proporção intersubjetiva em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir ou a fazer, garantidamente, algo.

b) Unilateral : impõe dever, sem previsão de um direito correspondente;

c) Heterônomo : regra (ou dever) cuja fonte criadora é externa ao homem, advindo do Estado ou da sociedade. Em relação ao Direito, significa que suas normas têm validade objetivamente aferida, independentemente da adesão do espírito. Essa validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas, as quais se põem acima das pretensões dos sujeitos de uma relação, superando-as na estrutura de um querer irredutível ao querer dos destinatários, é o que se denomina de heteronomia.

d) Autônomo : regra que a pessoa se impõe por nela reconhecer espontaneamente uma obrigação, sendo um dever pessoal. Isso é bem próximo ao conceito de imperativo categórico de Kant;

e) Exterior : atuam diretamente nas ações das pessoas em sociedade;

f) Interior : voltada para a consciência da pessoa, como um aconselhamento que pode interferir na conduta;

g) Coercível : refere-se à compatibilidade do Direito com a força, ou seja, que o Direito é a ordenação coercível da conduta humana. A coação no Direito não está sempre presente, não é efetiva, mas potencial. Isso porque a grande maioria dos institutos jurídicos, como, por exemplo, os contratos, são cumpridos espontaneamente. O Direito possui a coerção como recurso para lhe dar efetividade, mas tal atributo permanece latente, se implementando somente quando necessário.

h) Incoercível : quando não há a possibilidade de se ver uma regra cumprida mediante coerção. As regras morais, para serem realmente morais, devem ser cumpridas pelo dever pessoal ao qual se curva a pessoa, e não por imposições de terceiros. Se houver força exterior, deixa a conduta de ser moral;

i) Sanção prefixada : já traz, de antemão, a punição para o descumprimento;

j) Sanção difusa : não traz punição prefixada. No momento da violação é que haverá uma reprovação, uma censura, ao infrator, por diversas formas.

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4.7. Realidade, Verdade e ConhecimentoOs termos não são sinônimos, por evidente, mas sob o ponto de vista filosófico estão intimamente entrelaçados. A realidade é a porta de acesso ao conhecimento e este, por sua vez, a porta de acesso à verdade. A verdade é o que busca a filosofia. No dizer de Miguel Reale, filosofia significa amizade ou amor pela sabedoria, reflete no mais alto grau uma paixão pela verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior perfeição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe.

A Filosofia começa com um estado de inquietação e perplexidade, para culminar numa atitude mais crítica diante do real e da vida. Parafraseando Blaise Pascal, diz a respeito do filósofo em relação à verdade: “tu não me procurarias, se já não me tivesses encontrado” e conclui que “a Filosofia não existiria se todos os filósofos culminassem em conclusões uniformes, idênticas”. A Filosofia é, assim, um conhecimento que converte em problemas os pressupostos da ciência. É, portanto, sempre de natureza crítica, dialética.

Não há verdade absoluta, imutável, imune a críticas.

Por outro lado, é óbvio que, se existem as ciências, é porque é possível conhecer, é porque o homem tem uma conformação tal que lhe é dado conhecer a realidade com uma certa margem de segurança e objetividade, demonstrando o poder – inerente ao espírito – de libertar-se do particular e do contingente, graças às sínteses que realiza. Conhecimento, então, é o processo de explicação e compreensão das distintas esferas da realidade. A realidade é objeto do conhecimento, é aquilo que existe efetivamente e que pode ser percebido com certa margem de segurança e objetividade. Não é por outra razão que a coruja é a ave que simboliza a sabedoria (ave de Athena para os gregos, Minerva para os romanos), símbolo da racionalidade e da sabedoria, a representação de atitude desperta, que procura e que não dorme quando se trata na busca do conhecimento, associada à capacidade de enxergar nas trevas.

4.8. O ValorQuase impossível conceituar-se o valor, como já reconheceu Miguel Reale. Nesse sentido, legítimo que fosse o propósito de uma definição rigorosa, diríamos com Lotze que do valor se pode dizer apenas que vale. O seu “ser” é “valer”. Da mesma forma que dizemos que “ser é o que é”, temos que dizer que o “valor é o que vale”. Por que isto? Porque ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem devem ser. Não existe terceira posição equivalente. Todas as demais colocações possíveis são redutíveis àquelas duas, ou por elas se ordenam. Reale fornece as características do valor.

O valor é sempre bipolar. A bipolaridade possível no mundo dos objetos ideais, só é essencial nos valores, e isso bastaria para não serem confundidos com aqueles. Se os valores são bipolares, cabe observar que eles também se implicam reciprocamente, no sentido de que nenhum deles se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na realização dos demais. Além da bipolaridade, o valor também implica sempre uma tomada de posição do homem e, por conseguinte, a existência de um sentido, de uma referibilidade. Tudo aquilo que vale, vale para algo ou vale no sentido de algo e para alguém. O valor envolve, pois, uma orientação e, como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade.

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Daí dizermos que fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta. Toda sociedade obedece a uma tábua de valores, de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma como seus valores se distribuem ou se ordenam. É aqui que encontramos outra característica do valor: - sua possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica, embora seja, como já foi exposto, incomensurável. Bipolaridade, implicação, referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade e graduação hierárquica são, como se vê, algumas das notas que distinguem o mundo dos valores, a que se devem acrescentar as de objetividade, historicidade e inexauaribilidade.

Para Nalini adquire especial relevo na doutrina da realização de valores a noção do dever ser. É uma noção kantiana suprema e, portanto, indefinível. Todo valor ético deriva da subordinação da vontade ao imperativo categórico. Já Scheler e Hartmann invertem a proposição: o valor moral não se funda no dever, mas ocorre o inverso: todo dever pressupõe a existência dos valores. Para eles, não haveria sentido dizer que algo deve ser, se o que se postula como devido não fosse valioso. Caridade, justiça, temperança e outras virtudes deve ser, enquanto vale. Carecessem de valor não deveriam ser.

Da mesma forma que dizemos que “ser é o que é”, temos que dizer que o “valor é o que vale”. Por que isto? Porque ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem devem ser.

Por que Estudar as Matérias de Humanística?A razão da introdução de temas ligados à Filosofia do Direito, Psicologia

Jurídica, Teoria Geral do Direito e da Política, além de Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura, como novos temas a serem objeto de cobrança nos concursos para a carreira de magistrado, nos termos da Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça, busca exigir dos candidatos a juízes uma visão mais científica e humanista da Justiça e do próprio Direito, em decorrência do crescente caráter interdisciplinar resultante da quebra de barreiras entre as diversas áreas do conhecimento humanístico. O novo milênio exige um magistrado que não esteja apegado exclusivamente à técnica, numa postura positivista dentro de um contexto que deixou de sê-lo. Reclama-se um juiz que, além de dominar a técnica, tenha também uma postura ética e humanista, de pessoas com sensibilidade e sensatez suficientes para solucionar as contendas humanas, capaz de reconhecer a falência dos compromissos sociais e a insuficiência dos parâmetros sobre os quais edificou-se a ideia de Democracia ocidental e para reagir a disfunção da Justiça, de reconhecer que a ideia de segurança jurídica não pode abdicar do ideal de realização do justo concreto, de que o juiz não pode ater-se a ao formalismo e ao cumprimento rigoroso aos preceitos de ordem procedimental. Só um magistrado com formação humanística poderá atender a esses reclamos.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O que é a filosofia do direito?É uma filosofia a respeito do direito (filosofar a respeito dos fenômenos

jurídicos).É uma filosofia com um objeto específico.Sendo assim, para compreender-se a filosofia, primeiramente, é necessário

compreender o que é filosofia.

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De acordo com a maioria dos autores a filosofia tem por objetivo responder três perguntas básicas: 1º) O que é a Justiça?; 2º) O que é o direito; 3º) Qual é a metodologia do Direito (método próprio do Direito, que o diferencia das outras ciências)? (***De acordo com Miguel Reale o terceiro objeto de estudo da filosofia do direito é: Como a Justiça e o Direito se relacionam ao longo da história – através da positivação do direito).

Com base nessas três indagações é possível explicar porque filosofar A filosofia busca estabelecer a origem das coisas (estabelecer o porquê das

coisas).

A filosofia ocidental nasce na Grécia, por volta do século VI a.C., sendo que a primeira pergunta que a filosofia busca responder é: qual é o elemento através do qual tudo se origina (qual é o elemento que dá origem a tudo que existe).

Os primeiros filósofos eram conhecidos como filósofos da physis (natureza, físicos).

Aquele que teria sido o primeiro filósofo, Tales de Mileto, afirmou ter encontrado a resposta para tal indagação, afirmando que a origem de tudo que existe é a água. Contudo, tal entendimento foi criticado pelos demais filósofos. Para Demócrito o elemento a partir do qual tudo existe é o átomo.

A filosofia visa entender o que o ser (a origem das coisas, as questões últimas, os princípios das coisas).

A medida que o tempo passa surgem vários ramos dentro da filosofia, de acordo com a especificidade do objeto de conhecimento visado.

De acordo com Kant a filosofia se preocupava basicamente com algumas perguntas: a) o que me é permitido conhecer; b) o que me é permitido esperar da vida; c) o que devo fazer; d) o que é o homem.

A filosofia do direito, de certo modo, sempre esteve presente na obra dos filósofos antigos (p. ex. Platão, Aristóteles), muito embora ainda não houvesse uma disciplina chamada filosofia do direito (p. ex. Aristóteles tratou da filosofia do direito dentro da ética).

Portanto, a filosofia do direito sempre existiu dentro da filosofia, porque trata de temas de grande importância, que sempre nortearam os filósofos.

Assim sendo, a filosofia do direito em uma acepção ampla sempre existiu nas obras dos filósofos clássicos dentro da própria filosofia; por outro lado, a filosofia do direito em uma acepção estrita surgiu muito depois (final do século XVIII e início do século XIX).

A filosofia do direito se preocupa com o fenômeno jurídico (o enfoque de determinadas questões é distinto).

2. CONCEITO DE JUSTIÇA

2.1. Origens: o tema justiça nasce na cultura ocidental na Grécia, sendo resultado do desenvolvimento da filosofia grega.

Quando se afirma que a justiça é um dado cultural, está se referindo a cultura ocidental.

A cultura ocidental é formada por três grandes pilares: Grécia (Atenas): filosofia; Jerusalém: religião; Roma: direito.

O início da discussão sobre a justiça é consequência do aparecimento do pensamento racional (o pensamento racional corresponde a filosofia).

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A filosofia substituiu a explicação mitológica dos acontecimentos pela explicação racional, sendo que esta se difere daquela em razão de buscar ser uma explicação apenas material (busca explicar os fenômenos naturais por ele mesmo, sem se valer de argumentos sobrenaturais).

Com o surgimento da filosofia, o mundo vai perdendo a magia na explicação dos acontecimentos, buscando-se uma explicação racional destes, o que pode ser chamado também de laicização da mentalidade religiosa.

Antes do advento da filosofia os gregos viam o Direito e a Justiça como algo dado pelos Deuses, razão pela qual o Direito não poderia ser injusto (as leis eram dadas pelos Deuses, e estes são superiores aos homens, devendo os mesmos ser obedecidos, sem qualquer questionamento).

Com o advento da filosofia, os filósofos da época começaram a realizar algumas distinções, sendo que a que mais contribui para a evolução da filosofia é natureza (physis) x lei (nomos).

Alguns pensamentos filosóficos antigos:

Sofistas: implantaram a distinção entre natureza (physis) x lei (nomos).De acordo com os sofistas aquilo que é resultado na natureza é imutável,

enquanto aquilo que é resultado da lei é artificial, portanto, mutável.Os filósofos anteriores aos sofistas se preocuparam em conhecer somente as

questões da natureza (physis).Já os sofistas voltam os olhos para as questões humanas, não se preocupando

somente com as questões naturais.De acordo com os sofistas a esfera das coisas fruto de convenções humanas

(artificial) podem ser alteradas pelos homens.Contudo, questiona-se também o fato de todas as leis serem frutos de

convenções humanas, surgindo também o pensamento do direito natural.Essa distinção é uma revolução dentro do pensamento filosófico antigo, sendo

que a partir de tal distinção os sofistas passaram a questionar uma série de fenômenos sociais que antes não eram questionados (p. ex. escravidão).

Portanto, a partir de tal distinção surge a discussão a respeito da ideia de justiça, porque essa distinção traz a possibilidade de questionamento de tal fenômeno.

Assim, começa-se a questionar o que é justiça e quais os atributos de um Direito justo.

***Crítica: mesmo a ideia de natureza é uma questão cultural (natureza contraposta ao cultural).

Observação: os sofistas não eram pessoas religiosas

Sócrates: filósofo contemporâneo aos sofistas. Sócrates é uma figura histórica real, mas não deixou nada escrito (Platão foi discípulo de Socrátes).

Sócrates foi um filósofo que se colocou em oposição as conclusões que o pensamento dos sofistas gerou.

Os sofistas levaram a um relativismo a respeito de determinados temas, sendo que de acordo com Sócrates era possível chegar-se a um conceito verdadeiro sobre as coisas (***de acordo com alguns autores a ideia de conceito surgiu com Sócrates).

O pensamento sofista traz um relativismo sobre tudo.

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De acordo com Protagóras (principal representante do pensamento sofista): “o homem é a medida de todas as coisas” (se o homem varia de cultura para cultura, as medidas também variarão).

Sócrates, por outro lado, acredita na verdade.

Para Sócrates o justo é igual ao legal (ser justo é obedecer às leis da pólis).

2.2. Concepção Platônica de Justiça: Platão, seguindo seu mestre Sócrates, busca combater o relativismo, que tinha nos sofistas os seus principais representantes. Platão busca a verdade (o universal), visando combater o relativismo.

Nesse sentido, Platão desenvolve uma teoria, cujo objetivo é alcançar a verdade, ideias que possam ser consideradas universais, e não relativas.

Para explicar o pensamento platônico é necessário compreender a Teoria das Ideias, a qual afirma que existem coisas que são absolutas (expressão da verdade), portanto, universais, a tais coisas Platão dá o nome de ideias.

Para Platão o mundo se divide em dois planos (a existência humana pode ser vista sob dois planos): a) plano sensível (mundano); b) plano suprassensível. As ideias estão localizadas no plano suprassensível.

O que são ideias?

A palavra ideia evolui do grego “eidos”, que pode ser traduzido literalmente como forma, ou seja, essas ideias são a forma verdadeira (perfeita) de tudo o que existe no plano abaixo do suprassensível.

Ou seja, as coisas que estão no mundo sensível são coisas que nos levam a engano, porque não são perfeitas. A forma perfeita de tais coisas somente existe no mundo das ideias (suprassensível).

Portanto, o verdadeiro, o absoluto, o perfeito está localizado no plano do suprassensível. Tudo que existe no plano sensível é mera reprodução deformada daquilo que existe no plano do suprassensível (Platão explica essa questão através do mito da caverna).

De acordo com Platão a justiça é uma virtude (Platão continua uma tradição grega anterior a ele, visto que vários autores gregos tratavam a justiça como uma virtude, aliás a ideia de virtude é fundamental para compreender a ética grega).

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Para a filosofia grega era fundamental a ação equilibrada (era fundamental que o ser humano evitasse o excesso – nada em demasia é bom). Portanto, a ação moral, na visão grega, era uma ação equilibrada, nesse sentido é que deve ser entendida a virtude.

Quando não há virtude há “hybris” (excesso, desordem).

A justiça, portanto, é uma virtude, assim sendo, também está relacionada com a busca do equilíbrio.

Essa ideia de justiça como virtude será desenvolvida por Platão com o Estado ideal (obra A República). Se se trata de um Estado ideal o mesmo é justo (o estado é ideal porque há um equilíbrio de funções, cada cidadão desempenha as funções adequadas a sua realidade).

Para Platão cada cidadão já nasce com certa virtude preponderante (p. ex. amabilidade – servos; coragem – guerreiros; sabedoria – governo).

Segundo Platão: “as cidades nunca serão justas a não ser que o filósofo se torne rei ou, que o rei se torne filósofo”.

Nesse Estado ideal platônico a fórmula da justiça pode ser expressa da seguinte forma: “fazer cada um o seu” (cada pessoa desempenha a função que lhe seja adequada de acordo com a sua pré-disposição da alma).

De acordo com alguns filósofos, Platão ao elaborar essa fórmula de justiça, reformula uma fórmula mais antiga do que ele próprio, qual seja: “dar a cada um o que é seu”, que era a explicação grega clássica do que era justiça (Simônides).

Platão também desenvolve a concepção de justiça como retribuição, se aproveitando também de concepções antigas.

De acordo com Platão se alguém age de forma contrária a outrem, deve receber uma retribuição (responder o mal com o mal).

Essa concepção de Platão acaba, no final, desaguando em uma visão religiosa, pois a vida, em si mesma, pode se revelar injusta, sendo que, em última análise, a justiça só será encontrada após a morte (Mito de ER – as pessoas morrem e são julgadas pelos atos que praticaram em vida).

Portanto, em última análise, a justiça somente será encontrada após a morte. Por essa razão, Platão afirma que: “é melhor sofrer a injustiça do que cometê-la”.

2.3. Concepção Aristotélica de Justiça: essa concepção é o ponto culminante do pensamento grego sobre justiça, sendo que a mesma permanece até os dias atuais.

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Aristóteles, como discípulo de Platão, parte das mesmas concepções de seu mestre (justiça igual à virtude). Contudo, Aristóteles não é tão idealista quanto o seu mestre, partindo de ideias mais realistas.

De acordo com Aristóteles a justiça é uma virtude interpessoal, assim sendo, não faz sentido analisar a justiça do prisma individual, porque a análise da justiça pressupõe a existência de mais de um sujeito (deve ser analisada na coletividade – ninguém é virtuoso com ele mesmo).

Essa virtude interpessoal, que é a justiça, lida com o fenômeno da escassez dos bens sociais, visando lidar com o problema da distribuição.

Nós, seres humanos, vivemos em um ambiente submetido a determinadas condições que não podem ser alteradas. Assim sendo, a justiça visa estabelecer critérios para distribuir bens limitados (se os bens fossem ilimitados não seria necessário regras, pois cada indivíduo poderia ter quantos bens quisesse).

A justiça sendo uma virtude busca o meio-termo (caminho equilibrado). Aristóteles explica a sua concepção de justiça em sua obra: Ética à Nicômacos:

I____________________I____________________I

covardia coragem inconsequência

Assim sendo, o cerne da justiça é uma questão de igualdade.

De acordo com Aristóteles a justiça se manifeste de duas formas:

Justiça universal (também chamada em sentido amplo): nessa acepção justiça significa cumprir as leis. Para Aristóteles a condição de existência da sociedade era a obediência as leis (as leis garantiam que a pessoa se comportasse de modo virtuoso, garantindo, em última análise, o bem comum da sociedade);

Justiça particular (também chamada em sentido estrito): nessa acepção a justiça está relacionada a distribuição de modo justo. Essa distribuição pode ocorrer de duas formas:

o Justiça comutativa (ou corretiva): nessa justiça tem-se a igualdade simples (direta ou aritmética). A igualdade simples está no meio-termo entre o ganho e a perda;

o Justiça distributiva: está relacionado às condições políticas vigentes em determinada sociedade. Está relacionada à distribuição dos bens sociais, sendo que o modo como tal distribuição será relacionada dependerá do modo como a sociedade em questão se constitui politicamente.

Aqui está a Justiça

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A concepção de Aristóteles sobre Justiça é completada pela ideia de equidade, de acordo com Aristóteles a Justiça somente pode ser efetivada no caso concreto, sendo que em determinadas hipóteses, o aplicador deverá se valer da ideia de equidade (a equidade é como a régua de lesbos, a qual se amolda aquilo que se quer medir, portanto, a equidade está relacionada à adequação da norma legal ao caso concreto – flexibilização da norma).

Essa flexibilização da norma é necessária para evitar a “summum ius summa iniuria” (o maior direito é a maior injustiça, ou seja, o direito aplicado de forma inflexível pode gerar situações injustas).

A lei é uma norma geral e abstrata, a qual deve se valer da equidade, para que possa ser aplicada no caso concreto, sem que gere uma situação de injustiça.

A equidade, portanto, é o justo na concretude, e somente com a utilização da equidade tem-se a noção final da concepção de Aristóteles sobre o que seja Justiça.

Aristóteles ainda menciona outros dois tipos de Justiça:

Justo-legal: é aquilo que varia, o que é justo em um lugar, em um momento, não é justo em outro, sofre as influências das vontades do indivíduo.

Justo-natural: é aquilo que é justo em qualquer momento, em qualquer lugar, independentemente da vontade do indivíduo.

Portanto, Aristóteles está se referindo a antítese entre o direito natural e o direito positivo.

2.4. Concepção Clássica de Justiça: a concepção clássica de Justiça é “dar a cada um o que é seu” ou “dar a cada um o que lhe é devido”.

No bojo desta concepção está implícita a ideia de justo é aquilo que é direito, não se cogitando de um direito injusto.

Portanto, ser justo é aplicar a lei (aplicar o Direito).

Assim sendo, o instrumento pelo qual se realiza a Justiça é o Direito (agir com Justiça é aplicar o Direito, ou seja, justo = Direito).

É o Direito que estabelece o que é devido a cada um.

De acordo com Ulpiano: “A justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um seu direito”.

Santo Tomás de Aquino: “A justiça consiste na disposição constante da vontade em dar a cada um seu o que é seu”.

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Por esse motivo, Santo Agostinho afirmara não ser possível definir o Direito separado da noção de Justiça.

2.5. Divergências sobre o Conceito de Justiça: a ideia de justiça surge com as especulações dos sofistas, sendo que o pensamento que sai vitorioso historicamente, em matéria de Justiça, é o pensamento platônico-aristotélico, permanecendo ser a ideia de Justiça até o final da idade média.

Na modernidade essa concepção passa a ser questionada, em razão de uma série de acontecimentos (p. ex. reforma protestante, advento do capitalismo, renascimento etc) que levam o ser humano a um relativismo (o homem moderno é um homem cheio de dúvidas).

Esses acontecimentos rompem com a ordem estável vigente na idade média, sendo que a ideia de que a igualdade era o cerne da Justiça passa a ser fortemente questionada, porque o homem passa a ter uma série de dúvidas.

No ambiente da modernidade surgem as divergências sobre o conceito de justiça, surgindo outras explicações para conceituar o que seja a Justiça.

A. Escola do direito natural ou jusnaturalismo – de acordo com essa Escola, a justiça pode ser alcançada a partir da concepção daquilo que significa a natureza (o justo é aquilo que é adequado ao que significa natureza, ao passo que o injusto é aquilo que não é adequado ao que significa natureza).

Portanto, a justiça pode ser deduzida a partir daquilo que se entende por natureza (a conduta injusta é aquilo que viola a natureza).

A Escola jusnaturalista apresenta diversas ramificações, de acordo com aquilo que se concebe como sendo a natureza humana.

Para Rousseau, um dos principais expoentes dessa escola, o elemento básico que caracteriza a natureza humana é o valor da liberdade (a liberdade é aquilo que há de mais essencial no homem – a liberdade é um bem inalienável, sendo que o homem que abre mão de sua liberdade deixa de ser homem). Assim sendo, a justiça, para Rousseau, é aquilo que está em conformidade com a vontade geral (para uma lei ser justa deve ser produzida pela vontade geral – coletividade).

B. Utilitarismo – é uma concepção filosófica que teve muita repercussão dos Estados anglo-saxões. Essa concepção visa explicar, sobretudo, os conceitos ligados a moral e a política, se preocupando também com o fenômeno da justiça. De acordo com essa escola, a justiça pode ser compreendida a partir do princípio básico da concepção utilitarista, qual seja: princípio da satisfação.

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Segundo o princípio da satisfação (que é a causa última das ações humanas) consiste no fato da ação humana ser baseada na busca do prazer, evitando-se a dor.

Assim sendo, a justiça também deve estar relacionada a busca de um bem-estar (prazer), portanto, de acordo com essa escola, ter-se-á uma sociedade justa quando se atingir o máximo de bem-estar que é possível alcançar dentro de uma coletividade (o Estado deve atuar de forma a proporcionar o máximo de bem-estar a sua população).

De acordo com o utilitarismo, a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros (Sidgwick).

Essa concepção é alvo de muitas críticas (Kant):

Esse princípio da satisfação é algo muito difícil de ser aferido no caso concreto.

A concepção do utilitarismo, se levada as suas últimas consequências, imporá a uma parcela dos indivíduos uma condição de vida muito ruim, em prol de outra parcela de indivíduos que se encontre satisfeita (p. ex. satisfação máxima de 70% da sociedade, enquanto 30% dessa mesma sociedade sustenta o bem-estar da parcela maior).

O utilitarismo é uma concepção que não considera a dignidade da pessoa, sendo possível sacrificar-se parcela da sociedade em prol de outra maior (há duas medidas de dignidade). O sacrifício de um cidadão, mesmo que em prol de uma maioria, continua sendo injusto.

C. Kelsen – Kelsen foi um autor que se preocupou muito em compreender o conceito de justiça, mas a concepção de Kelsen não é baseada nas concepções clássicas, mas sim extremamente relativista.

De acordo com Kelsen a Justiça é um valor não científico, não podendo ser compreendida e analisada enquanto ciência.

A pretensão de Kelsen era compreender o Direito como algo científico, que deve ser estudado a partir de métodos científicos (Kelsen defende a ideia do Direito como uma ciência autônoma).

A metodologia científica, a qual Kelsen se refere, é a metodologia desenvolvida pelas ciências naturais ao longo do século XIX. Neste contexto, Kelsen extirpa a Justiça da ciência do Direito, pois não se pode fazer ciência sobre a Justiça, visto que se trata de um conceito essencialmente relativo (não há como obter-se uma justiça absoluta).

De acordo com Kelsen, seguindo a linha de Max Webber, os valores não são científicos, portanto, não podem ser inseridos na Ciência do Direito (não é possível realizar-se juízos de valores, pois não se podem estabelecer quais valores são superiores a outros).

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Portanto, segundo Kelsen, a justiça absoluta é algo impossível de se conhecer, não é possível estabelecer-se o que é justiça para todos os indivíduos, sendo que cada indivíduo terá sua própria concepção do que seja justiça, somente é possível estabelecer o que é justiça para cada indivíduo.

Ainda, Kelsen critica muito a concepção platônica e a concepção aristotélica de justiça:

A concepção de justiça de Platão é uma concepção autoritária (concepção antidemocrática de Estado, pois elimina a liberdade individual), porque o Estado que Platão concebe é um Estado que ordena tudo dentro da sociedade, não deixando margem de atuação para o Estado (Platão defendia a abolição da família). Platão não aceitava que os indivíduos escolhessem sua área de atuação, o que seria determinada pelo Estado de acordo com a sua virtude preponderante.

A explicação de Aristóteles sobre Justiça é uma explicação meramente formal, pois Aristóteles não estabelece quais os vícios a serem considerados para a fixação da Justiça (virtude). De acordo com Kelsen, Aristóteles pressupõe os vícios de acordo com seu momento histórico, os quais podem se alterar com a mudança de sociedade, assim sendo, a concepção de Aristóteles não é absoluta, mas sim conservadora, pois visa reforçar a vigência dos valores sociais da época.

Por fim, Kelsen critica a concepção clássica de Justiça, afirmando que “dar a cada um aquilo que é seu é uma definição totalmente vazia, pois a questão decisiva - o que é realmente que cada um pode considerar como seu - permanece sem resposta” (não há o estabelecimento do que é de cada um, sendo que o “seu” do referido conceito pode variar de sociedade para sociedade e de época para época). Portanto, não há qualquer universalidade nessa concepção, sendo também uma concepção relativa do que seja Justiça.

***A concepção clássica de Justiça é alvo de muitas outras críticas: “Uma pessoa que sustenta que certa regra ou conjunto de regras - por exemplo, um sistema tributário - é injusto não indica nenhuma razão para sua atitude. Simplesmente se limita a manifestar uma expressão emocional. Tal pessoa diz: “Sou contra essa regra porque é injusta”. O que deveria dizer é: ‘Esta regra é injusta porque sou contra ela’.” (Alf Ross).

D. John Rawls (Uma Teoria da Justiça) – a obra de Rawls é um marco no que se refere a Filosofia do Direito no século XX. Esse jurista visa reintroduzir a concepção contratualista, mas sob novas premissas (de forma mais elaborada). Assim sendo, Rawls representa um retorno ao método de explicação contratualista.

Toda a elaboração da Teoria do Ross é voltada a conciliar os três valores que compõem o lema da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), essa conciliação é buscada através da aplicação de dois princípios de Justiça, formulado pelo referido jurista:

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1º. Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável ao mais plenamente adequado esquema de liberdades básicas iguais, desde que seja compatível com o mesmo esquema das mesmas liberdades para todos, e;2º. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, elas devem estar vinculadas (attached) a cargos e posições acessíveis para todos, sob condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, e, segundo, devem primar pelo máximo benefício daqueles membros da sociedade que são os menos favorecidos (princípio da diferença).De acordo com o referido jurista é possível aceitar-se as desigualdades sociais

e econômicas, desde preenchidas duas condições: a) oportunidade igual para todos, e; b) as desigualdades devem ser estabelecidas de forma que gerem o maior benefício aos membros menos favorecidos.

3. CONCEITO DE DIREITO

3.1. Considerações Iniciais:

O que é o Direito?

Não há uma definição única sobre aquilo que seja Direito, havendo uma serie de concepções sobre o tema, de acordo com os enfoques e abordagens do fenômeno realizadas pelas escolas de pensamento e pelos juristas.

Não obstante essa plêiade de concepções sobre o Direito, é possível identificar-se elementos comuns a tais concepções, que podem servir de guia na definição daquilo que significa o Direito:

1º. Direito é uma ordem necessária: o Direito é uma exigência da vida em comunidade.

De acordo com Kant, se todos fossem perfeitos não haveria necessidade do Direito nem do Estado, mas os seres humanos não são perfeitos.

Nesse sentido, é possível afirmar-se que o Direito é inerente a sociedade humana (dado social). O Direito é um conjunto de regras que regula a existência em sociedade (o Direito surge dos conflitos sociais gerados pelo convívio em sociedade).

“Ubi societas ibi jus” – onde há sociedade há também o Direito (a existência em sociedade exige a existência do Direito).

2º. Direito como uma regra de conduta: trata-se de uma consequência do Direito como uma ordem necessária. Contudo, o Direito é uma regra social entre outras, visto que o Direito existe

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para dizer como os indivíduos devem se portar em sociedade, sendo, portanto, uma regra social, mas ao lado deste há outras regras sociais, p. ex. a moral, a etiqueta, a religião, os costumes.

Todas as normas sociais encontram-se no plano do dever-ser (prescrevem como a ação do indivíduo deve ser), o qual não se confunde com o plano do ser, que é composto pelas leis naturais (prescreve como ocorre determinada ação – como a ação é de fato).

A diferença entre o direito e as demais regras sociais, é que o Direito é impositivo, ou seja, além de prescrever as condutas que devem ou não ser praticadas impõe sanção para aquele que não obedece tais previsões.

3º. Direito como um termo polissêmico: o Direito como um termo polissêmico ou plurívoco possui vários significados possíveis, p. ex. o Direito pode ser empregado como sinônimo da concepção de Justiça, ou como sinônimo de Ciência do Direito, ou como sinônimo do ordenamento jurídico (Direito objetivo), ou com significado de facultas agendi (direito subjetivo).

O Direito é o termo polissêmico em razão da própria origem do termo (etimologia da palavra Direito):

A expressão “direito” deriva do latim directum, que deriva do termo dirige, que significa dirigir (o Direito tem haver como dirigir).

A expressão “direito” deriva do latim derectum (que significa totalmente reto ou absolutamente reto), termo que remete a ideia do fiel da balança, quando está totalmente reto significa que as coisas estão equilibradas.

Ainda, da expressão ius derivou as expressões Justiça, justo, jurisprudência, jurisdição, juiz. A expressão ius é uma das mais antigas palavras latinas para se referir ao Direito, e servia para se referir tanto ao Direito como a Justiça.

3.2. Correntes do Pensamento Jurídico:

A. Pensamento jurídico clássico – de acordo com esse pensamento o Direito é igual àquilo que é justo, e justo é aquilo que é devido, portanto, fazer o Direito é igual a realizar a Justiça (que consiste em dar a cada um o que é seu).

O justo é a ação da Justiça, portanto, a ação da Justiça é o Direito.

Conforme consta no Digesto, “o Direito é a arte do bom e do justo” (Código de Justiniano), não podendo este ser pensado de forma separada da Justiça.

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B. Escola do direito natural ou jusnaturalismo – essa escola prevaleceu entre os séculos XVII e XVIII. De acordo com o jusnaturalismo, o Direito é igual a Justiça, esta entendida como a conformidade com a natureza humana.

O Jusnatualismo traz a constante antítese entre o direito natural e o direito positivo, sendo que aquele seria superior a este (seu fundamento de validade), portanto, o direito positivo seria invalido quando violasse o direito natural.

Assim, sendo o direito natural algo imutável e absoluto (obedece a natureza humana), o direito natural é sempre justo, ao passo que o direito positivo pode ou não ser justo, conforme esteja ou não em conformidade com o direito natural.

Essa natureza humana é conhecida através da capacidade racional do ser humano (o ser humano é capaz, pela sua razão, compreender o que significa natureza humana).

Essa escola é muito criticada por renunciar a criação histórica do direito, imaginando ser capaz de construir um direito somente com a racionalidade humana (pensar o direito de forma unicamente racional), ocorre que o direito, na realidade, não é somente fruto da razão.

De acordo com o jusnaturalista Grocio (ou Grotius), o estudo do Direito deveria ser realizado da mesma forma da matemática, que é uma ciência racional.

O jurista Leibniz afirmava que a ciência do Direito não depende de fatos, mas de demonstrações rigorosamente lógicas.

Portanto, o jusnaturalismo objetivou fundar um direito que não existe na realidade, pois em que pese a versão racional do Direito, este também é composto por aspectos históricos e costumeiros.

C. Escola histórica do Direito – século XIX. Essa escola faz parte de um movimento maior, que é um movimento de reação ao iluminismo, chamado de romantismo. O romantismo é um movimento cultural, que se contrapõe as conclusões do iluminismo (movimento cultural que busca o esclarecimento do homem – busca explicações racionais).

O iluminismo sustentou no Direito o jusnaturalismo, que afastava do Direito a visão histórica e costumeira, neste contexto, a escola histórica do direito criticou severamente o jusnaturalismo.

O jurista Lurke, expositor de tal escola, afirmava que os direitos do homem (criação do jusnaturalismo) são abstrações de alguns filósofos, que não fazem parte da realidade humana, sendo que os direitos mais efetivos são os direitos advindos da tradição (os direitos do homem eram despidos de qualquer eficácia).

Segundo De Maistre não há esse homem, que os jusnaturalistas afirmam existir, há indivíduos diferentes entre si, moldados de acordo com a sua cultura (não há conceito absoluto de uma espécie de homem).

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O principal expositor dessa corrente é Savigny, que cria a ideia de espírito do povo para justificar a origem do Direito (o Direito tem origem nas práticas cotidianas de determinada sociedade, sendo criação do espirito do povo), assim sendo, dentro do direito deve-se buscar um consenso entre o espírito do povo e as construções racionais dos pensadores do Direito.

Savigny era contrário a codificação do Direito, afirmando que esta engessaria do Direito, e não permitiriam a sua evolução.

Essa tese de Savigny foi criticada por Thibaut, o qual afirmou que a codificação era necessária por razões de segurança jurídica.

O grande mérito da Escola histórica foi reconhecer que o Direito também é fruto de processos históricos, é nesse momento que se passa a admitir que o Direito apresenta uma variabilidade histórica, sendo fruto também da história.

O jusnaturalismo considerava o Direito como algo “aistórico”, ou seja, imutável, universal, não sujeito as influencias dos processos históricos (o Direito sempre existiu da mesma forma).

***A concepção de direitos do homem, que é fruto da escola jusnaturalista, prevaleceu a todas as críticas, sendo tese amplamente aceita nos dias atuais.

D. Positivismo jurídico – essa corrente prevaleceu até o início do século XX. De acordo com essa escola o Direito é igual a lei (em sentido amplo), ou seja, o Direito é norma jurídica.

Para muitos Thomas Hobbes é o pai do positivismo jurídico, sendo que de acordo com o referido jurista: “não é a verdade, mas sim a autoridade (o poder) que faz as leis.” Assim sendo, algo não é Direito por ser expressão da verdade, mas sim porque é fruto da autoridade (do poder), uma lei se torna lei por ter sido elaborada por alguém que possui o poder de transformá-la em lei.

Portanto, para o positivismo o Direito é igual à lei positiva (fruto da vontade estatal). O Direito é algo imposto pelo Estado, não havendo uma lei natural fruto da razão (verdade absoluta). O Direito é fruto do poder.

Essa corrente filosófica pode ser compreendida a partir da recusa da visão metafísica do Direito. A metafísica é aquilo que está acima do sensível, em um plano suprassensível (p. ex. valores). Portanto, em última análise, o positivismo recusa a explicação do Direito a partir de valores.

O positivismo busca uma explicação causal do Direito, assim sendo, no campo do Direito, a explicação deve ser de índole sociológica e não uma explicação que recorra a valores como a Justiça, ou seja, deve-se verificar como as normas jurídicas são de fato criadas, e não como gostaria que elas fossem.

Nestes termos, para o positivismo, em última análise, o Direito é igual a Poder (o Poder é a causa última do Direito).

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Neste contexto, Kelsen, um dos principais expositores do positivismo, escreve a Teoria Pura do Direito, que tinha por objetivo:

Explicar o direito como ele realmente é; Criar uma teoria pura do direito.

O objetivo do referido jurista é criar uma ciência do Direito, que estude o Direito apenas pelo fenômeno jurídico, abstendo de qualquer análise do fenômeno sobre outros prismas. Um dos requisitos para fazer-se ciência é estabelecer o seu objeto, método e princípios. De acordo com Kelsen, o objeto de estudo próprio do Direito é a norma jurídica (todo o fenômeno jurídico para Kelsen pode ser estudado a partir da concepção da norma jurídica, por essa razão a teoria de Kelsen é chamada por muitos autores de normativismo, visto que busca reduzir todo o fenômeno jurídico a norma, ou seja, busca reduzir todo o conhecimento do Direito ao conhecimento da norma jurídica).

Kelsen busca explicar porque uma norma jurídica é considerada Direito e a ordem de um assaltante, contrariando a concepção de Santo Agostinho, que afirmava que um Estado sem Justiça não passa de um bando de assaltantes (para este jurista para definir-se o Direito é imprescindível a noção de Justiça, posto que Direito sem Justiça não é Direito).

A ordem do Estado, em razão de estar fundada no ordenamento jurídico, possuindo caráter objetivo, portanto, é vinculante ao indivíduo (é obrigatória); já a ordem do bandido não está fundada no ordenamento jurídico, possuindo apenas caráter subjetivo, razão pela qual não é vinculante ao indivíduo.

Neste contexto, um ordenamento jurídico somente é ordenamento jurídico porque é globalmente eficaz, havendo um poder por traz do mesmo que tem a capacidade de aplicar sanções aos infratores do mesmo. Portanto, considerando que o Direito é igual ao poder para fazer as pessoas observá-lo, é possível que um grupo de infratores crie Direito, desde que possuam poder para torná-lo coercitivo (p. ex. Estado alemão), ou seja, não é necessário que o Direito encontre correspondência com a norma fundamental, bastando que haja poder de tornar a vontade efetiva.

Assim sendo, se a condição última de validade do Direito é sua eficácia, tem-se que qualquer conteúdo pode ser Direito (em outras palavras, uma norma para ser Direito não precisa ser justa, bastando que haja por traz da mesma um poder de torná-la efetiva).

As conclusões de Kelsen foram duramente criticadas pelos juristas da época, havendo autores que afirmam que tais conclusões colaboraram com as práticas ocorridas na Alemanha.

Contudo, na realidade, Kelsen era um partidário da democracia, que fugiu do nazismo e sempre defendeu a liberdade, razão pela qual tal afirmação se mostra desarrazoada. Mas, a verdade é que as conclusões a que Kelsen chega com a sua Teoria Pura do Direito não refletem a realidade do fenômeno jurídico.

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E. Pós-positivismo jurídico – essa corrente teve início na metade do século XX (após o final da 2ª GM), com a derrocada do modelo positivista.

Essa escola jusfilosófica busca a reaproximação do Direito com a moral e com a Justiça, pois o modelo positivista, ao sustentar que o Direito possuía validade nele mesmo, acabou contribuindo para as monstruosidades praticadas durante a 2ª GM.

Pós-positivismo é um novo paradigma concebido no âmbito da teoria jurídica, de contestação das insuficiências, aporias e limitações do positivismo jurídico, que reflete em larga medida uma ideologia herdada do Estado de Direito do século XIX.

No século XIX o juiz era visto apenas como aplicador da Lei (o juiz era a boca da lei). Para o positivismo o Direito se limitava a norma jurídica positivada pelo Estado, sendo que somente o Estado poderia criar o Direito (o juiz não cria o Direito, apenas o aplica).

Essa corrente de pensamento não está acabada, sendo uma corrente ainda em formação.

Os principais expositores dessa corrente são Dworkin e Alexy. Sendo que autores como Radbruch, Habermas, Rawls também influenciaram no desenvolvimento de tal corrente de pensamento.

De acordo com o pos-positivismo é necessário que haja um rompimento com o positivismo jurídico (deve-se romper com a conclusão de que qualquer conteúdo pode ser Direito). Para o pós-positivismo é necessário que haja um mínimo ético para que se possa considerar um ordenamento jurídico como Direito.

Segundo Höffe, é necessário que o ordenamento, para ser considerado como Direito, contenha um mínimo de eticidade.

Em todas as sociedades há determinadas regras comuns (p. ex. regra de a ninguém a lesar, regra de que o dano deve ser recomposto, regra de que é incesto não deve ser permitido), esse seria o conteúdo do mínimo ético, sendo que quando um ordenamento não observa esse mínimo de eticidade não merece ser considerado Direito (p. ex. julgamento dos nazistas no Tribunal de Nuremberg, onde se afastou a validade do ordenamento alemão nazista, não considerado como expressão do Direito).

Para o pós-positivismo, portanto, o Direito não se confunde com a lei.

Contudo, o pós-positivismo também não configura um retorno ao jusnaturalismo, sendo que de acordo com o Prof. Tércio uma norma jurídica não é invalidada simplesmente por ser injusta, no entanto, para que se possa dar sentido ao Direito é necessário também a análise da Justiça, ou seja, sem Justiça o Direito perde o sentido (não há razão em se cumprir uma norma injusta).

Vários autores tratam o pós-positivismo como sinônimo de neo-constitucionalismo, mas há quem diferencie tais expressões, na medida em que está última expressão é algo pensamento exclusivamente para o Direito Constitucional, enquanto o pós-positivismo pertence a Filosofia do Direito.

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Na realidade o neo-constitucionalismo é a expressão da filosofia contemporânea do direito dentro do Direito Constitucional, enquanto o pós-positivismo é a expressão da filosofia contemporânea do Direito dentro da Filosofia do Direito ou de todo o Direito.

***Características:

Discorda do positivismo jurídico quanto às fontes do Direito (para o positivismo jurídico o Direito é fruto tão somente da expressão do poder) – o Direito decorre não somente do poder, mas também da moral e da Justiça.

Discorda do positivismo jurídico quanto à separação entre Direito, Moral e Política – o Direito não é uma teoria pura, havendo articulação entre esses vários ramos das ciências sociais. O Direito se utiliza de vários institutos pertencentes às demais ciências.

Teoria do Direito conectada com a filosofia moral e a filosofia política – essa característica é decorrente da anterior.

A pretensão da atividade jurídica não deve estar totalmente orientada para a obtenção de êxito ou de vantagem (concepção utilitarista), sendo essencial na atividade jurídica a aspiração moral por justiça (pretensão por realizar justiça).

Relevância dada aos casos difíceis (hard cases) – o pós-positivismo tem uma preocupação muito grande com os hard cases, os quais não apresentam apenas uma solução como possível (conflito entre princípios aplicáveis ao caso concreto), sendo que o interprete, para solucionar o problema, deverá ponderar os princípios aplicáveis, a fim de encontrar a solução mais justa (nessas situações a doutrina tem papel relevante).

Reabilitação dos princípios – diferentemente do positivismo, o pós-positivismo tem como objetivo reforçar a validade e importância dos princípios. Para os pós-positivistas os princípios não são concebidos como o eram os jusnaturalistas (entidades metafísicas da razão – não havia comprometimento com a realidade de fato, somente era possível chegar aos princípios através da razão), nem como o eram para os positivistas (meras exortações morais sem qualquer conteúdo jurídico, não sendo, portanto, vinculante – objetivos da sociedade, destituídos de qualquer eficácia normativa). O art. 4º, da LINDB é um exemplo da visão pos-positivista dos princípios. No pos-positivismo as normas se dividem em duas espécies: a) norma-regra (menor âmbito de aplicabilidade e maior certeza de conteúdo), e; b) norma-princípio (maior âmbito de aplicabilidade e menor certeza de conteúdo).

O pós-positivismo busca ser uma terceira via entre o jusnaturalismo e positivismo. Diferentemente do jusnaturalismo, para o pós-positivismo a realidade da experiência jurídica tem uma importância fundamental (o jusnaturalismo concebia o pós-positivismo de forma completamente abstrata, incapaz de mudar a realidade social); diferentemente do positivismo, o pós-positivismo tem uma objeto mais amplo, visto que pensa o direito aliado as noções de justiça, de ética e de moral (o direito está conectado com essas demais dimensões das ciências humanas).

Teoria de Dworkin – Dworkin é um filósofo do Direito norte-americano da Universidade de Oxford, sucessor e aluno de Hart, mas não seu discípulo.

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Os estudos de Dworkin tem por objetivo a construção de uma filosofia liberal do Direito, sendo que a sua principal preocupação na construção de tal filosofia era a efetivação da liberdade, sendo que a liberdade convive com a igualdade, sendo que nessa convivência a igualdade deve prevalecer, por ser o elemento que limita a liberdade dos indivíduos na convivência em sociedade.

Portanto, o objetivo último de Dworkin era a limitação da liberdade pela igualdade, devendo-se garantir a igualdade de todos da mesma forma.

A liberdade individual vai até onde não prejudica a igualdade dos demais indivíduos.

Mas no campo do Direito, Dworkin formula a sua teoria das normas, dividindo as normas entre: a) normas-regras (funcionam na lógica do “tudo ou nada” – portanto, não há meio-termo na aplicação das regras, p. ex. regra da aposentadoria compulsória), e; b) normas-princípios (funcionam na lógica do “mais ou menos” – portanto, a aplicação dos princípios admite ponderação).

Dworkin ainda realiza uma distinção entre princípios e diretrizes, sendo que estes últimos são as pautas que estabelecem os objetivos a serem alcançados, p. ex. busca da redução da desigualdade social e erradicação da pobreza, busca de diminuição das mortes no trânsito. Portanto, as diretrizes são concretizadas através de políticas públicas, sendo mais concretas do que os princípios. Por outro lado, os princípios são as pautas, cuja observância corresponde a preceitos morais, éticos e de justiça, p. ex. a todos deve ser assegurado vida digna.

Assim, havendo um confronto entre diretrizes e princípios, devem preponderar os princípios, porque estes estão alicerçados em noções de justiça, de ética, de moral e de honestidade (seus preceitos são mais seguros); já as diretrizes podem ser alteradas com a eventual mudança de governo, vez que alicerçada nas concepções de quem governa.

Os princípios são a fonte de justificação moral e política do Direito vigente em uma determinada comunidade. Essa concepção traz em seu bojo a possibilidade de variação dos princípios, posto que estão relacionados ao local e ao tempo.

O modo como cada sociedade constrói valores que geram esses princípios são diversos.

Teoria de Alexy – esse filósofo busca estabelecer parâmetros racionais para a decisão jurídica.

Neste contexto, Alexy acredita na ideia de razão prática, ou seja, ele acredita que os aplicadores do direito são capazes de pensar em elementos jurídicos, que se utilizados garantem que determinada decisão será racional, contrapondo-se ao decisionismo, segundo o qual a decisão judicial não respeita parâmetros racionais (portanto, a decisão judicial não é fruto da razão, mas sim fruto da vontade daquele que decide ou, em última análise, fruto do poder).

Os pensadores decisionistas mais famosos são Kelsen e Schmidt.

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Assim, Alexy considera importante a construção de uma argumentação jurídica, para que se tenha uma decisão racional, deve-se ter uma argumentação racional (se a decisão jurídica é fruto de um discurso, esse discurso deve ser submetido a regras).

Portanto, Alexy recepciona a distinção entre princípios e regras feitas por Dworkin.

Além de recepcionar tal distinção, Alexy constrói também uma teoria dos direitos fundamentais. O objetivo dessa teoria é conciliar a abordagem jurisprudencial do Tribunal alemão com uma teoria dogmática dos direitos fundamentais (conciliar a teoria com a prática).

Para atingir tal objetivo, Alexy desenvolve uma ideia de ponderação, que é expressa pela concepção de proporcionalidade, que é pensado, primeiramente, como um princípio (submetido à lógica do “mais ou menos”). Esse princípio a respeito dos direitos fundamentais possui em seu bojo, em última análise, valores morais.

De acordo com Alexy o princípio da proporcionalidade é uma máxima que informa a aplicação dos demais princípios (é um princípio de princípios, ou um sobreprincípio).

***De acordo com Humberto Ávila o princípio da proporcionalidade é um postulado normativo ou uma metanorma (é uma norma acima das outras, que informa a aplicação desta, não regulando casos concretos diretamente).

O princípio da proporcionalidade é formado por outros 3 subprincípios:

1º. Princípio da adequação – é uma relação entre o meio e fim (o meio utilizado deve ser apto para atingir o fim que se deseja – proibição de excesso e proibição de insuficiência).

2º. Princípio da necessidade (também chamado de exigibilidade ou menor ingerência possível) – dentre os vários meios existentes, deve-se optar pelo menos gravoso.

3º. Princípio da proporcionalidade em sentido estrito – esse princípio é o que corresponde mais diretamente a uma lei geral de ponderação. Esse princípio está relacionado à relação custo x benefício da adoção de determinada medida (a medida proporcional é aquela cujos benefícios são maiores do que os custos).

Portanto, para Alexy quanto maior for à intervenção em um direito, maiores hão de ser os motivos que justifiquem tal intervenção

Essa concepção de Alexy acaba influenciando o pensamento jurídico e decisões judiciais muito importantes.

O pós-positivismo, portanto, representa uma concepção diversa do positivismo, visto que embebecidos de elementos, tidos pelos positivistas, como extrajurídicos (valores, como moralidade, honestidade, justiça).

Para o pós-positivismo o direito não se confunde com a lei escrita (é um conjunto muito maior, que abrange outros elementos das ciências jurídicas).

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O ponto de virada do pensamento jurídico é justamente o final da 2ª G.M (marcado pelo Tribunal de Nuremberg).

O ministro de economia em seu depoimento ao Tribunal de Nuremberg afirmou que: “Eu assinei as leis para a arianização da propriedade judaica. Se isso me faz ou não legalmente culpado, é um outro problema. Mas isso faz de mim moralmente culpado, não há dúvida disso. Eu deveria ter escutado minha mulher. Ela disse que seria melhor eu ter largado esse história de ministério e ter me mudado para um flat de três cômodos.”

Esse discurso traz em seu bojo a concepção positivista (separação do Direito e da moral).

4. EQUIDADE

4.1. Funções: as funções da equidade são as seguintes:

1º. Função de integração: a equidade pode ser utilizada na ausência de disposição normativa sobre determinado tema.

2º. Função de adaptação: a equidade tem por objetivo a adaptação da norma jurídica ao caso concreto (p. ex. art. 413, do CC – redução equitativa da cláusula penal, caso a obrigação inadimplida assegurada por esta tenha sido parcialmente cumprida; art. 944, do CC – redução equitativa da obrigação de indenizar quando houver excessiva desproporção entre a gravidade da conduta e o dano; art. 1.109, do CPC – equidade nos procedimentos de jurisdição voluntária).

4.2. Aplicação da Equidade: de acordo com o art. 127, do CPC: “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.”

Assim, segundo esse dispositivo o juiz somente poderia se valer da equidade na análise do caso concreto.

De acordo com Miguel Reale, se nós seguirmos de modo estrito o disposto no art. 127, do CPC, estaremos retirando da interpretação e aplicação do direito um elemento que lhe é essencial, que é a equidade.

Assim sendo, tal dispositivo deve ser lido juntamente com o disposto no art. 5º, da LINDB: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

Portanto, o bem comum somente pode ser atingido de fato, quando na aplicação do Direito se observa a equidade.

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A equidade é justamente o elemento que permite, tendo em vista o caso concreto, a aplicação do Direito.

A não observância do elemento equidade retira do Direito o seu caráter de realização de justiça.

De mais a mais, o art. 127, do CPC é um artigo de inspiração positivista, de modo que deve ser visto com ressalvas no momento atual (advento do pós-positivismo).

4.3. Considerações Finais: a equidade, que é o justo na concretude, não pode ser confundida com arbítrio.

A equidade está ligada também a existência de norma jurídica, ou seja, é com base no ordenamento jurídico que se aplica a equidade (portanto, a equidade pressupõe a norma).

Mesmo quando não há norma, os filósofos desde Aristóteles, defendem que é preciso que o interprete tente se colocar no lugar de alguém que legislaria naquela hipótese, para que possa estabelecer os parâmetros racionais de solução do caso concreto.

A equidade, nos últimos tempos, tem ganhado muita importância, mas sobre rubricas diversas, p. ex. proporcionalidade e razoabilidade (de acordo com o Prof. Eros Graus, tais termos não são nada além do que manifestações modernas da equidade).

A equidade, portanto, após um grande período de esquecimento (positivismo), ressurge com força total.

5. DIREITO X MORAL

5.1. Ética x Moral: ética é a ciência que toma por objeto imediato os juízos de apreciação sobre os atos qualificados como bons ou maus (a ética assume o caráter de ciência, cujo objeto é determinar as ações boas ou más); já a moral é o conjunto das prescrições admitidas numa época e numa sociedade determinadas, o esforço para conformar-se a essas prescrições, a exortação de segui-las (conjunto de práticas vigentes em determinada época e sociedade, as quais devem ser seguidas – caráter de cotidiano).

Portanto, a ética pode julgar as práticas morais como boas ou ruins, enquanto a moral apenas assume caráter descritivo.

No uso vulgar esses termos são utilizados sem preciosismo técnico, sendo que nessa mistura, tal distinção perde sentido.

5.2. Evolução Histórica da Distinção entre Direito e Moral: essa distinção entre Direito e Moral nem sempre esteve clara para as pessoas, sendo inclusive uma distinção recente.

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1º momento: um dos elementos que caracterizam os homens da antiguidade (hebreu, romanos e gregos) é que esses misturavam as regras morais, com as regras jurídicas e com as regras religiosas. Outro exemplo era os indianos, que chamavam de “darma” tudo o que era considerado um dever, independentemente, da origem de tal dever (religiosa, moral ou jurídica).

Os juristas romanos chegaram até a tangenciar a distinção entre o direito e a moral, mas não a efetivaram na prática, visto que ao definir o direito, o fizeram de forma a confundi-lo com preceitos morais:

“Ninguém sofre pena pelo simples fato de pensar.” apresenta certa distinção

“Nem tudo que é lícito é honesto.” entre o direito e a moral

“Direito é a arte do bom e do justo.”

“Os preceitos de direito são: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada um o que é seu.”

confunde o direito com a moral.

2º momento: somente com a idade moderna a distinção entre direito e moral começa a ser efetivada na prática.

Para muitos autores, Maquiavel é o autor que inaugura a distinção entre direito e política (se o objetivo último da política for alcançado, não importa que os meios utilizados tenham sido imorais). Portanto, rompe-se com o pensamento aristotélico segundo o qual a política existe para o bem comum (confusão entre a política e a moral).

Para Maquiavel a política existe por si mesmo, para garantir o poder.

Assim, com a modernidade há a necessidade de se distinguir o direito da moral.

De acordo com os autores, a reforma protestante é que origina a necessidade de distinção entre tais institutos, porque a ocorrência desta introduz um pluralismo religioso, anteriormente inexistente, que acarretam a ocorrência de guerras religiosas, as quais interferem na política, porque findam com uma série de tratados, que estabeleciam que a religião de determinado povo seria a religião do monarca.

Todos esses conflitos culminam na necessidade de se separar as coisas que pertencem a intimidade da pessoa (foro íntimo) daquelas que pertencem ao espaço público (entre os antigos o público e o privado se misturavam).

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3º momento: o positivismo jurídico é o ápice da separação do direito da moral (Kelsen afirma que qualquer conteúdo pode ser direito, mesmo que imoral).

5.2. Concepções das Distinções entre Direito e Moral: de acordo com Miguel Reale a relação entre direito e moral pode ser concebida de duas formas:

1º concepção: é a concepção positivista, que afirma não haver qualquer relação entre o direito e a moral (coisas totalmente independentes).

2º concepção: o direito e a moral são coisas finalisticamente relacionadas (a moral se apresenta como fim último do direito), p. ex. dever de mútua assistência entre os pais e os filhos (dever de solidariedade intergeracional).

A concepção mais adequada sobre o tema é aquela oferecida por Reale, segundo o qual há razões para se distinguir o direito e a moral, mas há razões para manterem-se os dois institutos ligados, assim sendo, deve-se distinguir o direito da moral, mas sem separá-los de forma absoluta (distinguir sem separar), de forma a preservar a interconexão de tais ramos (há uma unidade entre tais ramos, os quais, contudo, não se confunde, possuindo, cada um, elementos próprios).

5.3. Critérios de Distinção entre Direito e Moral: segundo Reale há alguns critérios que os autores costumam estabelecer para realizar a distinção entre o que é direito e o que é moral, quais sejam:

1º. Foro íntimo x foro externo: a moral pertence ao foro íntimo (pertence a consciência das pessoas); já o direito pertence ao foro externo (com relações as questões de direito é fundamental a questão da externalidade, visto que este se preocupa com as manifestações humanas e não com aquilo que o homem está pensando).

Crítica de Reale: não é verdadeiro dizer que o direito se preocupa sempre com a externalidade, posto que o que se passa na consciência do homem é em inúmeros momentos importante para o direito (p. ex. dolo e culpa no direito penal, interpretação dos contratos no direito civil, boa-fé do possuidor para a usucapião).

2º. Autonomia x heteronomia: a moral pertence ao campo da autonomia; enquanto o direito é heterônomo.

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A moral, como algo autônomo, permite a cada um dar a si mesmo a sua própria lei.

A ação moral é aquela que o indivíduo realiza sem qualquer outra intenção, é realizada unicamente pela consciência do indivíduo do dever de praticá-la, portanto, se a ação for praticada em razão de qualquer estimulo externo, esta não será mais moral.

Kant, com base em tais premissas, desenvolve a ideia de imperativo categórico, que é exatamente o que define uma ação como moral ou não.

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal (teste para dizer se uma ação é ou não moral).

Esse teste consiste na possibilidade de universalizar determinada ação sem qualquer prejuízo.

Por outro lado, o direito enquanto heterônomo significa um conjunto de normas que é dado (imposto) ao indivíduo por um terceiro (o Estado estabelece um ordenamento jurídico que é um dado objetivo em relação a cada indivíduo – ou seja, sua existência independe da subjetividade de cada indivíduo).

O direito como algo heterônomo está relacionado ao imperativo hipotético, visto que prescreve uma ação que é boa para atingir determinado fim.

Crítica: afirmar que o direito é somente heterônomo também não é verdadeiro, porque em muitos momentos as pessoas obedecem as normas jurídicas com autonomia, ou seja, não obedecem as normas jurídicas para atingir determinado fim, mas sim porque a norma é jurídica ou porque as normas devem ser obedecidas.

3º. Incoercibilidade x coercibilidade: a moral é incoercível, já o direito é coercível. Esses termos estão relacionados a ideia de sanção (coação).

A sanção, de acordo com Reale, é gênero de coerção, podendo ser premial ou prejudicial.

A coação é a força física aplicada àquele que descumpre a norma.

A moral é incoercível, pois não há a possibilidade de sanção (p. ex. pessoa que não cumprimenta os demais ao entrar em determinado local), por outro lado, o direito não existe sem coerção (o descumprimento da norma jurídica traz outras consequências jurídicas).

Crítica: não é bem verdade que a moral seja completamente destituída de sanção (p. ex. o descumprimento da norma moral pode trazer a sanção de isolamento pelos demais). Portanto, é possível a sanção moral, mas esta é qualitativa diferente da sanção jurídica, pois enquanto aquela é pulverizada (depende da sociedade), a sanção jurídica é institucionalizada (o Estado mantém o monopólio da coerção, impondo as respectivas sanções ao descumprimento das normas).

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4º. Bilateralidade x bilateralidade atributiva: de acordo com Reale essa é a distinção que melhor explica porque o direito não se confunde com a moral.

Tanto a moral como o direito possui bilateralidade, mas a bilateralidade do direito é diferente, sendo chamada por Reale de atributiva.

A bilateralidade tem como pressuposto o caráter social do ser humano (o homem vive em sociedade e, portanto, mantém relações com o seu semelhante).

Reale utilizando as lições do filósofo Petrazinsky afirma que na moral não há obrigação (poder de exigir determinada conduta – p. ex. esmola para mendigo), já no direito há a obrigação (poder de exigir determinada conduta – p. ex. pagamento de táxi).

6. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

6.1. A Metodologia Tradicional de Interpretação:

A. Bases históricas – a metodologia tradicional de interpretação tem como bases históricas a revolução francesa e a lógica científica:

A.1. revolução francesa – momento histórico que gera uma ruptura da ordem social e política estabelecendo:

os direitos individuais = trouxe a ideia que o direito estabelece um limite ao abuso de poder;

a soberania popular = soberano é o povo e não o monarca ou um grupo de pessoas que edita as leis (a lei válida é somente aquela votada pelo parlamento, através dos representantes do povo), a consequência disso é que o Poder Judiciário (o juiz) não pode criar norma jurídica.

A.2. lógica científica (século XIX) – essa corrente do pensamento tem um forte impacto não só nas ciências naturais, mas também nas ciências humanas (p. ex. positivismo no Direito).

Essa lógica é pensada para a aplicação nas ciências exatas (p. ex. física, química) e consiste em realizar experimentos para chegar a conclusões, utilizar formulas matemáticas para se expressar, buscar uma descrição exata dos fenômenos que pretendem explicar.

Com tal metodologia essa lógica se considera a única forma de conhecimento verdadeiro possível ao homem, ou seja, o conhecimento científico é o único que proporciona ao homem a capacidade de conhecer a verdade em sua essência (ter certeza das coisas). Assim sendo, um conhecimento que não é capaz de obter certeza acerca do que busca compreender não pode ser chamado de conhecimento científico.

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Essa lógica científica trouxe grande progresso técnico às ciências exatas ao longo do século XIX. Neste contexto, ao longo do século XIX as ciências humanas (inclusive o Direito) buscaram adotar o mesmo método adotado nas ciências naturais, com vistas a obter igual progresso, essa busca acaba por atingir a concepção das ciências humanas, inclusive o próprio Direito.

Por esses motivos, Kelsen afirmava que a Justiça não deve fazer parte da ciência do Direito, porque a Justiça é um valor não científico, ou seja, a Justiça é um dado essencialmente subjetivo, não podendo obter-se certeza sobre o seu conteúdo, assim sendo, não é possível fazer-se ciência em cima de tal conceito.

A adoção dessa lógica na ciência do Direito traz como consequência a ideia de que a sentença é um ato mecânico (o juiz deve aplicar a lei estabelecida pelo legislador ao caso em julgamento, isto é, o juiz é um mero aplicador da lei simples subsunção do fato a norma).

A sentença como um simples ato mecânico é deduzida do texto da lei (novamente a ideia do juiz como a boca da lei), portanto, a sentença é uma dedução que o juiz realiza a partir do texto legal (lógica dedutiva).

Essa dedução envolve a utilização do método da lógica dedutiva, que é o silogismo (figura típica da lógica dedutiva):

Premissa maior – lei

Premissa menor – caso concreto (subsunção)

Conclusão – sentença.

A conclusão (sentença) já está na lei, cabendo ao juiz apenas analisar o caso concreto (premissa menor) e subsumi-lo a norma (premissa maior), portanto, a ideia é de subsunção do fato a norma.

Isto é, a sentença é um conhecimento que não inova o ordenamento jurídico, pois quando ocorre à subsunção a consequência é imediata, visto que tal resultado já estava previsto na lei.

Assim, a metodologia tradicional seria a metodologia da lógica dedutiva, através do silogismo.

Essa metodologia tradicional da lógica dedutiva é adotada tanto pelos defensores do jusnaturalismo como pelos defensores do positivismo, conforme ensina Villey (apesar da oposição de ideias defendidas por estas correntes, elas adotam o mesmo método), sendo que o jusnaturalismo entende que a lei natural é a premissa maior (verdades absolutas

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encontradas no direito natural, p. ex. princípio do pacta sunt servanda), enquanto o positivismo entende que a sentença é fruto apenas subsunção da norma jurídica positiva ao caso concreto.

Portanto, as duas correntes de pensamento jurídico da modernidade adotam a lógica dedutiva (cada uma a sua maneira).

B. Teoria da interpretação e aplicação do direito de Savigny – é a teoria que acabou sendo a teoria de interpretação de aplicação do direito por excelência. Savigny foi quem desenvolveu a aplicação mais bem acabada do que seria a metodologia tradicional.

De acordo com Savigny na aplicação da norma jurídica deve-se utilizar quatro elementos, os quais não são excludentes, devendo ser utilizados em conjunto (a utilização desses elementos permitiram, segundo Savigny, a adequada interpretação da norma jurídica):

1º. Gramatical (interpretação gramatical): é a porta de entrada da interpretação da norma jurídica que consiste na aplicação das regras gramaticais para que consiga se entender aquilo que o legislador quis colocar na lei.

2º. Lógico (interpretação lógica): está relaciona ao modo como o pensamento se estrutura (lógica interna dentro do texto), construir o texto de uma forma racional e lógica.

3º. Histórico (interpretação histórica): consiste na busca pelas circunstâncias e pelos fatores históricos que influenciaram a produção da norma (busca descobrir a ocassio legis –analisar os motivos da lei e demais fatores), ou seja, visa descobrir os conjuntos de circunstâncias que levaram a edição da lei, sendo que para isso essa forma de interpretação se vale da análise dos debates legislativos, da exposição de motivos etc;

4º. Sistemático (interpretação sistemática): consiste em interpretar o direito considerando que as normas jurídicas fazem parte de um conjunto, de um mesmo sistema, de uma mesma unidade, estando interligadas. As normas jurídicas fazem parte de um ordenamento jurídico escalonado em forma de pirâmide (uma norma jurídica encontra fundamento de validade em outra norma jurídica que lhe é hierarquicamente superior, tendo o ordenamento jurídico como fundamento último de validade à Constituição).

Esses quatro elementos quando utilizados de modo correto tem como objetivo descobrir a vontade do legislador histórico (fim que buscava o grupo de pessoas que editou a lei), denominada pela doutrina como interpretação subjetiva, posto que uma interpretação que busca a vontade do sujeito que editou a lei. Essa interpretação subjetiva está ligada a dois valores: a) a segurança jurídica, pois essa espécie de interpretação assegura aquilo que o

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legislador pretendeu, e; b) a separação de poderes, pois não cabe ao intérprete “criar” a lei ou interpretá-la de modo diverso do intentado pelo legislador histórico.

Exemplos de juristas que adotam essa forma de interpretação:

Demolombe afirma que: “os textos antes de tudo. Interpretar é descobrir o sentido exato e verdadeiro da lei. Não é modificar, inovar, mas declarar, reconhecer.”

Savigny afirma que: “a interpretação é a reconstrução do pensamento inerente à lei.”

C. Interpretação objetiva – a interpretação subjetiva, que expressão da metodologia de interpretação tradicional da ciência jurídica, ao longo do século XIX, adquiriu uma rival denominada interpretação objetiva.

A interpretação objetiva busca estabelecer o fim atual da lei, mudando a interpretação do texto da lei de acordo com o contexto histórico, momento vivido (é como se o texto tivesse vida própria, o qual vai mudando de acordo com o contexto histórico).

Há dois valores que se coadunam com a ideia defendida pela interpretação objetiva: a) mutabilidade social, pois a sociedade muda e o direito deve acompanhar tais mudanças, e; b) ideal de justiça, se o direito não se adapta as mudanças sociais há fortes chances do mesmo ser injusto, o direito deve acompanhar as mudanças, pois cabe a este dar uma resposta às questões atuais.

Observação: prevalece hoje na doutrina atual a aplicação da interpretação objetiva, porém essa não elimina a aplicação da interpretação subjetiva, de modo que o ideal é que ambas as formas de interpretação se complementem, visto que há risco de excesso na aplicação das duas formas de interpretação (interpretação subjetiva = direito engessado; interpretação objetiva = interpretação que acaba criando algo completamente diferente da lei que o legislador pretendia criar, o intérprete possui muito poder nessa espécie de interpretação, podendo haver abuso por este). Cada espécie de interpretação tem o seu valor, devendo, quando possível, serem ambas conciliadas, com vistas a obter-se uma melhor aplicação da lei, mas se tal fato não for possível deve preponderar a utilização da interpretação objetiva.

D. Fracasso da metodologia tradicional de interpretação – a metodologia tradicional prevaleceu ao longo do século XIX, mas no século XX essa metodologia começa a sofrer serevas críticas, surgindo novas formas de metodologias alternativas.

As criticas da metodologia tradicional advém do fato desta ter fracassado nos objetivos que pretendia atingir, conforme sustentado por muitos autores.

A metodologia tradicional teria fracassado pelos seguintes motivos:

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1º. A linguagem jurídica não é científica: não se pode construir uma metodologia baseada na lógica científica para se trabalhar com elementos não científicos (os elementos que compõem o Direito não permitem que se chegue à certeza), isto porque os termos (expressões) utilizados no Direito são essencialmente valorativos, possuindo todos certos graus de indeterminação, incerteza (conceitos jurídicos indeterminados), p. ex. liberdade, justiça social, bem comum, capacidade contributiva, função social.

2º. A lógica dedutiva não contém caracteres valorativos: a lógica dedutiva não é a lógica adequada para trabalhar com valores, assim sendo, não pode ser aplicada ao direito, porque este é essencialmente valorativo.

Exemplo: crítica feita na obra de Radbruch, que conta uma história para defender a impossibilidade de aplicação da lógica dedutiva ao Direito: havia uma estação de trem em que havia uma placa dizendo “proibida a entrada de cães”, de modo que determinado dia chega um sujeito com um urso na coleira, o qual é proibido da entrar na estação, mas o sujeito contesta a proibição afirmando que a placa apenas proíbe a entrada de cães – demonstra-se assim a deficiência da lógica dedutiva. Neste contexto, Radbruch afirma que para resolver tal problema, é necessário ter-se a percepção de que a norma jurídica existe para efetivar determinados valores (a norma jurídica sempre traz em seu bojo determinados valores sociais), neste contexto, é possível verificar-se que a proibição acima mencionada tem por objetivo proteger a segurança e a incolumidade física da pessoa, podendo tal proibição ser estendida a qualquer animal, pois o risco que um cachorro causa as pessoas é o mesmo (até menor) do que o causado por um urso.

3º. Pelo argumento do antiformalismo jurídico (sociologismo jurídico): essa corrente chama a atenção para o fato da ineficácia das leis, em razão da falta de comprometimento desta com a realidade (distanciamento da lei com a realidade social – a sociedade é dinâmica e o direito é estático), chama a atenção também para o fato dos valores, da forma de criação, do meio ambiente e de outros fatores influenciarem a decisão do juiz (o juiz antes de qualquer coisa é um ser humano, com seus defeitos e qualidades, com seus vícios e suas virtudes, que julga um semelhante, e não uma máquina racional, que não consegue se despir de todos os seus preconceitos e conceitos ao julgar).

Os realismos jurídicos, americano e escandinavo, filiam-se a esta corrente.

Neste contexto, um jurista americano chegou inclusive a afirmar, quando perguntado o que era o Direito que este era aquilo que a Suprema Corte afirmava que ele era

Faz parte desta corrente também a ideia da “jurisprudência dos interesses” que ressalta os interesses e todos os fatores que influenciam a decisão daquele juiz naquele momento (meio ambiente, emoção e intuição do juiz etc).

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Von Kirchman afirma que “bastam três palavras do legislador para que todas as bibliotecas pandectistas percam seu valor, tornem-se borrões de tinta” (os pandectistas eram juristas que adotavam a metodologia tradicional). Ou seja, todos os estudos do direito estariam perdidos se a vontade mudasse.

4º. O conhecimento e julgamento enfrentam dificuldades: a capacidade do ser humano conhecer e julgar enfrentam sérias dificuldades.

John Rawls com a obra “Dificuldades do juízo” questiona a real capacidade dos seres humanos de conhecer com certeza algo e fazer julgamentos racionais.

Há várias correntes relativistas que colocam sérias dúvidas na capacidade do ser humano de realizar julgamentos racionais. Essas limitações causam problemas quando se objetiva estabelecer explicações racionais para os temas ligados ao Direito.

Embora tenhamos capacidade racional, essa capacidade encontra limitações, de forma que mesmo que se chegue à conclusão de quais elementos devem ser levados em consideração para se julgar determinada causa, a valoração dada para cada um desses argumentos certamente irá variar de acordo com cada julgador.

6.2. A Superação da Metodologia Tradicional:

A. Hermenêutica – hermenêutica vem do substantivo grego “hermeneia” que significa interpretação; muitos autores dizem que a palavra está ligada ao Deus Hermes, que era o Deus mensageiro dos Deuses, fazendo a intermediação (tradução) das mensagens divinas aos homens.

A hermenêutica é a ciência relacionada com a interpretação, sendo que para muitos é uma ciência que investiga as condições de interpretação.

A hermenêutica está relacionada, portanto, ao problema de interpretar.

A figura do intermediador (figura religiosa) é encontrada em outros momentos da história e em outras religiões, p. ex. a palavra pontífice significa alguém que faz a intermediação entre esse mundo e algo além desse mundo (imperador romano e papa).

A.1. desenvolvimento histórico da hermenêutica – autores importantes para a hermenêutica:

1º. Scheleiermacher (séc. XIX): para muitos esse pensador é o pai da hermenêutica moderna.

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Esse autor é importante para o desenvolvimento da hermenêutica, porque no século XIX realizava suas investigações a partir de um aspecto religioso, interpretava os evangelhos bíblicos, afirmando que a interpretação é algo que vai muito além da análise da estrutura gramatical de um texto, havendo intenções e psicologias por trás do texto. Entende que a interpretação está sim relacionada a estrutura gramatical, mas deve-se ter outra preocupação do ato de interpretar, a qual está relacionada com a estrutura feral do texto (há uma psicologia por traz do texto que deve ser atingida), devemos buscar compreender as intenções que se encontram no fundo do texto.

Portanto, para o referido pensador, na interpretação estamos trabalhando com duas dimensões:

Pré-conhecimento – o ato de interpretar envolve a percepção de quando estamos interpretando um texto levamos em consideração uma série de concepções do passado (o ato de interpretar envolve preconceitos, prejulgamentos, concepções do interprete), o que interfere no ato de interpretar, o que influencia também o autor do texto.

Assim, se toda interpretação envolve prejulgamentos, toda interpretação é uma interpretação de uma interpretação (a interpretação é circular – a interpretação não surge do nada, remetendo a outra interpretação já realizada – a interpretação realizada é resultado de uma interpretação de mundo anterior que o interprete já possuía).

Intérprete e obra – o intérprete deve tentar entrar no contexto daquele que realizou a obra, p. ex. tentar pensar como aquele que redigiu o livro (deve haver uma empatia), evitando-se anacronismos (analisar com os olhos de hoje o que foi produzido há muito tempo atrás), facilitando assim a interpretação.

2º. Dilthey: é o autor que pela primeira vez pensou em estabelecer a hermenêutica como a metodologia própria das ciências humanas (em contraposição à metodologia tradicional das ciências exatas). Afirma que por se tratarem de ciências diferentes, as ciências naturais (relacionadas com a descrição e explicação dos fenômenos) e as ciências humanas (relacionadas com a compreensão dos fenômenos, com a compreensão de realidades socioculturais), devem-se utilizar métodos diferentes para cada uma dessas espécies de ciências.

Nesse método hermenêutico utilizado pelas ciências humanas é de fundamental importância a percepção de que o mundo humano é um mundo dotado de historicidade, o homem é um produto da história e a cultura é uma construção histórica, assim sendo, trata-se de mundo que se altera de acordo com as mudanças históricas. Esse autor, portanto, introduz a importância do conhecimento histórico na compreensão das ciências humanas.

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3º. Heidegger (séc. XX): autor muito importante para o desenvolvimento da filosofia no século XX (a filosofia desse pensador tem um enorme impacto ao longo do século XX, influenciando um grande grupo de filósofos que utilizam-se das ideias desse pensador).

Heidegger compreende a hermenêutica como um elemento existencial do homem, para ele a existência humana é uma existência ontologicamente hermenêutica (o homem é um ser hermenêutico porque vive interpretando, a vida humana é uma interpretação constante, portanto, a interpretação faz parte da existência do homem – a interpretação faz parte da essência do homem.).

Esse pensador criou uma terminologia própria para definir o homem: dasein (“ser-aí”), o homem é um ente que se propõe a perguntar sobre o sentido do ser, a característica que difere o homem dos demais animais é essa pergunta incessante sobre o que é o ser, o que é o existente, qual é o sentido do ser – o homem sempre se relaciona com o mundo de uma forma ativa, sendo que o mundo é construção também do homem.

Heidegger afirma que: “esse ente, que nós mesmos já somos sempre e que tem, entres as outras possibilidade de ser, a de buscar, nos indicamos como o termo ‘ser-aí’.”

Nesse sentido, a existência do homem é a possibilidade, ou seja, o homem é a possibilidade de vir a ser algo, o homem é um projeto, porque é possibilidade, ou seja, o homem não existe no mundo de um modo impassível, o homem é um que se autoconstrói, constrói sua própria natureza e altera o mundo (as coisas são históricas porque o homem é um ser que se constrói, não há uma natureza humana imutável – a natureza humana é construída pelo próprio homem).

Heidegger junto com Wietgestein é um grande pensador preocupado com a linguagem, associando-a em sua obra como algo que contribui com a forma como o homem conhece determinada coisa, a linguagem é uma das coisas que constitui o homem (o homem é um ser de linguagem). A linguagem estabelece limites intransponíveis ao ser humano em relação a capacidade de se conhecer, não sendo o ser humano capaz de chegar a verdade das coisas, pois estamos limitados pela linguagem.

A linguagem afeta o modo como o homem conhece as coisas. A linguagem permite que o homem conheça certas coisas, mas também estabelece limites intransponíveis para os seres humanos com relação a possibilidade de se conhecer algo. Portanto, não é possível para os seres humanos chegar à verdade das coisas, porque este está limitado pela linguagem.

Tudo que conhecemos ou podemos entender são construções humanas, daí a importância do discurso e do argumento, sendo relevante conhecer toda história (passado) por trás dessas construções (o homem constrói conhecimento através da linguagem).

4º. Gadamer: é discípulo Heidegger. De acordo com este pensador a hermenêutica se funda na experiência global que o homem adquire no mundo ao longo de sua vida, de forma que quando se interpreta a experiência adquirida vem à tona.

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Se quando interpretamos somos marcados pelas nossas experiências passadas (fatores externos a interpretação), para a interpretação adequada é essencial que cheguemos a um ponto em que seja possível a defesa desses hábitos mentais que temos ao interpretar. Assim sendo, a interpretação adequada é aquela que é realizada com a consciência de que temos determinada formação, determinados valores, para que seja possível a separação dessas vivências daquilo que está no texto, não nos deixando contaminar por fatores externos (experiências vividas, valores familiares), evitarmos que tais fatores influenciem a decisão.

O pressuposto fundamental para interpretar, portanto, é tomar conhecimento dos nossos preconceitos (conceitos formados antes de interpretação), visando afastar estes da interpretação, sendo que se a interpretação obtida não estiver a contento deve-se realizar uma segunda interpretação, e assim por diante, porque a interpretação é algo constante.

Deve-se interpretar o que está no texto e não o que está na minha cabeça (processo de autoconhecimento).

Portanto, a condição para se compreender tem a ver com a sensibilidade para a alteridade do texto (o texto é um outro que não se confunde com o intérprete). O texto, portanto, uma vez gerado possui vida própria, não se prendendo ao autor que o editou, de modo que à medida que o tempo passa as interpretações também podem se alterar.

Nesse sentido, a interpretação é um processo histórico, pois tem relação com a história do intérprete e do texto.

A.2. contribuição da hermenêutica para a interpretação – a hermenêutica mostra a insuficiência das concepções tradicionais de interpretação (p. ex. mesmo que utilizando as quatro elementos de interpretação propostos por Savigny, pode-se não chegar ao motivo da lei, considerando os valores que influenciam o intérprete).

Essas concepções tradicionais de interpretação não considera toda a influência exercida pela história de vida do intérprete na interpretação.

A hermenêutica mostra que a interpretação está relacionada com a práxis da vida (com o que se experimenta do mundo – prática da vida), não sendo uma regra de silogismo ou uma regra matemática.

Assim, a hermenêutica afasta a interpretação do cientificismo que vigorou no século XIX, sendo algo bem menos científico do que se pretendia no século XIX.

Nesse sentido, a hermenêutica acaba contribuindo para o ressurgimento da interpretação objetiva, pois se o texto possui uma história própria, a finalidade buscada no texto também deve ser adequada ao momento histórico vivido, podendo mudar de acordo como o contexto, com o caso concreto.

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B. Lógica do razoável – é uma teoria desenvolvida por Recasens Siches que buscava o desenvolvimento de uma lógica própria das ciências normativas (que tem por objeto a norma).

Para Siches, as demais lógicas não são adequadas para se pensar o direito, em razão da diferença dos objetos, cabendo a teoria do direito criar uma lógica mais adequada ao direito, que para ele era a lógica do razoável.

Assim, se lógica dedutiva lida com o conceito racional (verdade absoluta, ser ou não ser, lógica binária – verdade ou mentira) a lógica do razoável utiliza a razoabilidade que trabalha com a ideia de uma pluralidade de soluções possíveis.

A expressão razoável remete a ideia de equilíbrio, de ponderação, de harmonia, daquilo que não é arbitrário, daquilo que corresponde ao senso comum em determinado momento histórico ou lugar. Portanto, não há o verdadeiro e o falso.

Assim, a lógica do razoável se mostra adequada ao direito, pelo fato desse ser uma ciência valorativa (o direito lida com uma pluralidade de valores, o seu conteúdo é valorativo, possuindo uma margem de indeterminação).

Nesse sentido, a norma jurídica existe com o objetivo de concretizar determinados fins, valores, de forma que a interpretação adequada deve buscar a concretização das finalidades que se encontram nos valores ínsitos à norma. Exatamente pelo fato da interpretação adequada ser aquela que concretiza o valor que a norma busca efetivar é que em determinadas situações é necessário à adequação da norma ao caso concreto, moldando a norma ao caso concreto, realizando as alterações necessárias.

Então, a verdadeira interpretação que leva a justiça é aquela interpretação que logra atualizar o direito em face do caso concreto (o direito existe em função da realidade, esta é a razão da existência do direito, sendo que este não existe como algo apartado da realidade social). É nesse momento em que os valores encontrados no ordenamento jurídico são de fato concretizados (os valores são, em última análise, a razão de ser do direito).

6.3. Interpretação do Direito na Doutrina Atual: a literatura mais recente a respeito da interpretação do direito busca evitar os extremismos (posturas mais radicais). Ou seja, a doutrina atual busca evitar tanto o extremo do racionalismo quanto o extremo do decisionismo.

Assim, a doutrina atual não concebe a interpretação como o racionalismo a concebia (p. ex. proposta de interpretação de Savigny – utilizar as quatro ferramentas para se alcançar a intenção do legislador; interpretação jusnaturalista – verdades absolutas) nem como o decisionismo ou realismo (p. ex. realismo americano: o direito é aquilo que a Suprema Corte diz; ou o direito é aquilo que quem tem poder determina).

Villey, importante representante da doutrina atual, afirma que: “todo processo nasce de uma controvérsia, não que se esteja tentando excluir qualquer exercício de dedução. Em todo discurso intervém uma dedução. Tão rigorosa quanto possível. Mas tosos os autores de lógica

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do direito observaram a frequência (...). Os termos do direito são maleáveis, seu sentido é fluido, sempre discutível (relatividade dos conceitos de direito) (...).”

Assim sendo, embora não se descarte definitivamente a lógica dedutiva, devem-se observar na sua utilização todas as restrições impostas pela lógica do direito.

Neste contexto, muitos autores tem dado muito enfoque à chamada Teoria da argumentação jurídica, que é o que há de mais recente em matéria de interpretação, passando a interpretação a adquirir um caráter mais prático e menos racionalista.

A preocupação volta-se ao modo como de fato a decisão é produzida, como de fato se realiza o processo decisório.

Há um abandono do racionalismo em favor da prática do direito, sendo que na vida prática do direito, para muitos autores, a argumentação possui caráter muito importante.

Nesse sentido, em sua obra de Perelman afirma que a decisão judicial é o resultado de um confronto de argumentos, onde vence aquele que tiver o melhor argumento (melhor argumento é aquele que mais convence ou que mais agrade o juiz). Em direito deve-se abandonar a ideia de verdade, pois não se trata de verdade mas de convencimento.

Características da ciência do direito para a doutrina atual:

1º. Texto diferente da norma: o texto é a letra da lei (p. ex. Código), já a norma é o resultado da interpretação que realizamos sobre o texto (aquilo que se extrai do texto legal), por esse motivo o texto pode ser o mesmo e mesmo assim a norma jurídica mudar.

2º. Intérprete produz norma jurídica: essa característica decorre da anterior. O intérprete pode criar a norma jurídica, porque essa não se confunde com a lei positivada. Essa afirmação relativiza o dogma da separação dos poderes (a discussão de ativismo relaciona-se com o dogma da separação de poderes).

3º. Intérprete não cria a norma do nada: o intérprete cria a norma a partir da legislação, o que significa que embora o intérprete crie norma jurídica, o mesmo não está livre para criar qualquer norma jurídica, estando sempre vinculado aos textos legislativos (não se trata de criação arbitrária, mas de criação regulada pelo texto legal).

4º. No direito não existe o verdadeiro: não há uma solução no direito que possa ser qualificada como verdadeira, porque tal expressão não é a mais adequada a ser utilizada no direito, sendo mais adequado qualificar as soluções jurídicas como razoável. Isso porque, no fundo, o direito

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não é ciência como a física, mas sim uma prudência, não estando relacionado com a verdade, mas com o equilíbrio, nesse sentido, o direito aproxima-se mais da arte.