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Filosofia do Direito Nota do digitalizador Esta versão digital do livro “Filosofia do Direito”, de Miguel Reale, foi formatada de maneira a manter paginação o mais próximo possível da do original impresso, num total de 779 páginas. Para aqueles que quiserem imprimir, sugiro o uso do recurso do “Microsoft Word” que permite a impressão de duas páginas por folha e utilizar papel A4.

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Filosofia do Direito

Filosofia do Direito

Nota do digitalizador

Esta verso digital do livro Filosofia do Direito, de Miguel Reale, foi formatada de maneira a manter paginao o mais prximo possvel da do original impresso, num total de 779 pginas.

Para aqueles que quiserem imprimir, sugiro o uso do recurso do Microsoft Word que permite a impresso de duas pginas por folha e utilizar papel A4.

19- edio, 1 tiragem 1999

2 tiragem 2000

MIGUEL REALE

Filosofia do Direito

19 edio

3 tiragem

2002

ISBN 85-02-01855-8

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

(CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, Miguel, 1910-2006

Filosofia do direito / Miguel Reale. - 19. ed. - So Paulo

Saraiva, 1999.

Bibliografia.

1. Direito - Filosofia I. Ttulo.

99-1528

CDU-340.12

ndices para catlogo sistemtico:

1. Direito : Filosofia 340.12

2. Filosofia do direito 340.12

3. Filosofia jurdica 340.12

Editora Saraiva

Avenida Marqus de So Vicente, Tel.: PABX (11) 3613-3000 Fax Vendas: (11) 3611-3268

1697 CEP 01139-904 Barra Funda So Paulo SP Fax: (11) 3611-3308 Fone Vendas: (11) 3613-3344

Endereo Internet: www.editorasaraiva.com.br

Principais Obras do Autor

O Estado Moderno. 193.5. 3 edies esg.

Formao da Poltica Burguesa. 1935. esg.

O Capitalismo Internacional. 1935. esg.

Atualidades de um Mundo Antigo. 1936. esg.

Atualidades Brasileiras. 1937. esg.

Fundamentos do Direito. 1940. esg. 2. ed. Revista dos Tribunais, 1972.

Teoria do Direito e do Estado. 1940. esg. 2. ed. 1960. esg. 3. ed., rev., Livr. Martins Ed., 1972, esg. 4. ed.. Saraiva, 1984.

A Doutrina de Kant no Brasil. 1949. esg.

Filosofia do Direito. 1. ed. 1953. 2. ed. 1957. 3. ed. 1962. 4. ed. 1965. esg. 5. ed. 1969. 6. ed. Saraiva, 1972. 7. ed. 1975. 8. ed. 1978. 9. ed. 1982. 10. ed. 1983. 11. ed. 1986. 12. ed, 1987. 14. ed. 1991. 15. ed. 1993. 16. ed. 1994. 17. ed. 1996. 18. ed, 1998, 19, ed, 1999,

Horizontes do Direito e da Histria. Saraiva, 1956. 2. ed. 1977.

Nos Quadrantes do Direito Positivo. Ed. Michalany, 1960,

Filosofia em So Paulo. 1962, esg. 2. ed. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1976.

Parlamentarismo Brasileiro. 2. ed. Saraiva, 1962.

Pluralismo e Liberdade. Saraiva, 1963,

Imperativos da Revoluo de Maro. Livr. Martins Ed., 1965.

Poemas do Amor e do Tempo. Saraiva, 1965.

Introduo e Notas aos "Cadernos de Filosofia", de Diogo Antonio Feij. Ed. Grijalbo, 1967.

Revogao e Anulamento do Ato Administrativo. Forense, 1968. 2. ed. 1980.

Teoria Tridimensional do Direito. Saraiva, 1968, 5, ed, 1994,

Revoluo e Democracia. Ed. Convvio, 1969, 2, ed, 1977.

O Direito como Experincia. Saraiva, 1968, 2, ed. 1992.

Direito Administrativo. Forense, 1969.

Problemas de Nosso Tempo. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1969.

Lies Preliminares de Direito. Bushatsky, 1973. 24. ed. Saraiva, 1998.

Lies Preliminares de Direito. Ed. portuguesa. Coimbra, Livr, Almedina, 1982,

Cem Anos de Cincia do Direito no Brasil. Saraiva, 1973.

Experincia e Cultura. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1977,

Poltica de Ontem e de Hoje (Introduo Teoria do Estado). Saraiva, 1978.

Estudos de Filosofia e Cincia do Direito. Saraiva, 1978.

Poemas da Noite. Ed. Soma, 1980,

O Homem e seus Horizontes. Ed, Convvio, 1980.

Questes de Direito. Sugestes Literrias. 1981.

Miguel Reale na UnB. Braslia, 1982,

A Filosofia na Obra de Machado de Assis Antologia Filosfica de Machado de Assis. Pioneira, 1982,

Verdade e Conjetura. Nova Fronteira, 1983,

Obras Polticas (1, fase 1931-1937). UnB, 1983. 3 vols.

Direito Natural/Direito Positivo. Saraiva, 1984.

Figuras da Inteligncia Brasileira. Tempo Brasileiro Ed. e Univ. do Cear, 1984.

Teoria e Prtica do Direito. Saraiva, 1984.

Sonetos da Verdade. Nova Fronteira, 1984.

Por uma Constituio Brasileira. Revista dos Tribunais, 1985.

Reforma Universitria. Ed. Convvio, 1985.

O Projeto de Cdigo Civil. Saraiva, 1986. 2. ed, 1998,

Liberdade e Democracia. Saraiva, 1987,

Memrias, v. 1. Destinos Cruzados. Saraiva, 1986. 2. ed. 1987.

Memrias, v. 2. A Balana e a Espada. Saraiva, 1987.

Introduo Filosofia. Saraiva, 1988. 3. ed. 1994.

O Belo e outros Valores. Academia Brasileira de Letras, 1989.

Aplicaes da Constituio de 1988. Forense, 1990.

Nova Fase do Direito Moderno. Saraiva, 1990. 2. ed. 1998.

Vida Oculta. Massao Ohno/Stefanowski Ed., 1990.

Temas de Direito Positivo. Revista dos Tribunais, 1992.

Face Oculta de Euclides da Cunha. 1993.

Fontes e Modelos do Direito. Saraiva, 1994.

Paradigmas da Cultura Contempornea. Saraiva. 1996.

Questes de Direito Pblico. Saraiva. 1997.

Questes de Direito Privado. Saraiva, 1997.

De Olhos Postos no Brasil e no Mundo. Expresso e Cultura, 1997.

O Estado Democrtico de Direito e o Conflito das Ideologias. Saraiva, 1998. 2. ed. 1999.

PRINCIPAIS OBRAS TRADUZIDAS

Filosofia dei Diritto. Trad. Luigi Bagolini e G. Ricci. Torino, Giappichelli, 1936.

Il Diritto come Esperienza, com ensaio introd. de Domenico Coccopalmerio. Milano, Giuffr, 1973.

Teoria Tridimensional del Derecho. Trad. J. A. Sardina-Paramo. Santiago de Compostella. Imprenta Paredes, 1973. 2. ed. Universidad de Chile, Valparaso (na coletnea "Juristas Perenes").

Fundamentos del Derecho. Trad. Jlio O. Chiappini. Buenos Aires, Depalma, 1976. Introduccin al Derecho. Trad. Brufau Prats. Madrid, Ed. Pirmide, 1976. 2. ed. 1977. 9. ed. 1989.

Filosofia del Derecho. Trad. Miguel Angel Herreros. Madrid, Ed. Pirmide, 1979.

Exprience et Culture. Trad. Giovanni DellAnna Bordeaux, ditions Brire, 1990.

A meus filhos

EBE,

LVIA MARIA

e

MIGUEL

ndice Geral

Principais obras do Autor .......................................................................... V

Prefcio 14. edio.................................................................................. XIX

Prefcio 5. edio.................................................................................... XXI

Prefcio 2. edio.................................................................................... XXIII

Prefcio 1. edio.................................................................................... XXV

PARTE I

Propedutica Filosfica

AD USUM JURISPRUDENTIAE

Ttulo I

Objeto da Filosofia

Captulo I

Noo Preliminar de Filosofia Sua Finalidade

Amor do saber e exigncia de universalidade............................................. 5

O problema dos pressupostos...................................................................... 11

Captulo II

O Positivismo e a Reduo da Filosofia a uma Enciclopdia das

Cincias O Neopositivismo

"Philosophia, ancilla scientiarum".............................................................. 14

Os neopositivistas........................................................................................ 18

Captulo III

Autonomia da Filosofia Seus Mximos Problemas

Perguntas prvias......................................................................................... 23

Teoria do Conhecimento; Lgica e Ontognoseologia................................. 26

tica............................................................................................................. 34

Axiologia..................................................................................................... 37

Metafsica e concepo do mundo.............................................................. 38

Ttulo II

Noes de Gnoseologia

Captulo IV

Sentido do Pensar de Nosso Tempo Gnoseologia,

Ontologia e Ontognoseologia

Predomnio do problema do ser at o Renascimento.................................. 43

A Filosofia moderna e o problema do conhecer......................................... 45

A correlao sujeito-objeto e o problema do ser......................................... 49

Captulo V

Graduao do Conhecimento O Conhecimento

Vulgar e o Cientfico

O particular e o genrico.................................. ............................................ 53

Estrutura do conhecimento: tipos, leis e princpios..................................... 56

O Direito como Cincia............................................................................... 61

Captulo VI

Natureza Crtico-Axiolgica do Conhecimento Filosfico

Sentido geral do Criticismo......................................................................... 65

Condicionamento do saber filosfico.......................................................... 68

Captulo VII

Relaes Entre Filosofia e Cincia Positiva

Acepes da palavra "cincia".................................................................... 73

Objeto e Mtodo.......................................................................................... 74

Metodologia da Filosofia e das Cincias..................................................... 78

Captulo VIII

Do Conhecimento Quanto Origem

O Empirismo ou empiricismo..................................................................... 87

Empirismo e Direito.................................................................................... 91

Racionalismo............................................................................................... 93

Racionalismo e Direito................................................................................ 97

Criticismo.................................................................................................... 100

Juzos analticos e sintticos........................................................................ 106

Criticismo ontognoseolgico....................................................................... 107

Criticismo e Direito..................................................................................... 113

Captulo IX

Do Conhecimento Quanto Essncia

O Realismo................................................................................................... 116

O Idealismo.................................................................................................. 118

Posio de Kant e de Augusto Comte ......................................................... 122

Posio ontognoseolgica........................................................................... 125

Correlao com a problemtica jurdica...................................................... 127

Captulo X

Das Formas do Conhecimento

Dos processos intuitivos em geral............................................................... 131

Dos mtodos de cognio mediata.............................................................. 141

Mtodo e Objeto.......................................................................................... 148

Antecipaes epistemolgicas sobre o Direito............................................ 150

Outras espcies de mtodo.......................................................................... 154

Captulo XI

Da Possibilidade do Conhecimento

Doutrinas dogmticas.................................................................................. 158

Doutrinas cticas ......................................................................................... 162

O relativismo............................................................................................... 165

Ttulo III

Noes de Ontologia e de Axiologia

Captulo XII

Teoria dos Objetos

Noes gerais..............'................................................................................. 175

Objetos fsicos e psquicos.......................................................................... 177

O Direito como objeto natural..................................................................... 180

Objetos ideais.............................................................................................. 182

O Direito e os objetos ideais........................................................................ 184

Os valores e o mundo do dever ser............................................................. 187

Caractersticas do valor............................................................................... 189

Os valores e o Direito.................................................................................. 192

Captulo XIII

Teorias Sobre o Valor

Explicaes psicolgicas............................................................................. 195

Interpretao sociolgica dos valores.......................................................... 197

Ontologismo axiolgico.............................................................................. 202

Teoria histrico-cultural dos valores........................................................... 204

Captulo XIV

A Cultura e o Valor da Pessoa Humana

Objetividade e historicidade dos valores..................................................... 208

A pessoa como valor fonte.......................................................................... 211

Ttulo IV

tica e Teoria da Cultura

Captulo XV

Cultura, Esprito e Liberdade

Criao e tutela de bens............................................................................... 217

Estrutura dos bens culturais......................................................................... 223

Captulo XVI

Ciclos de Cultura e Constelaes Axiolgicas

Ordenao dos valores................................................................................. 228

Cultura e civilizaes................................................................................... 230

Classificaes dos valores........................................................................... 234

Captulo XVII

Natureza e Cultura

Bens culturais e cincias culturais............................................................... 240

Explicao e generalizao Compreenso e integrao de sentido........ 243

Juzos de valore juzos de realidade........................................................... 247

As leis do mundo cultural............................................................................ 251

Captulo XVIII

Leis Naturais e Leis ticas Teoria e Prtica

O problema da sano................................................................................. 257

Cincias especulativas e normativas Cincia e Tcnica......................... 264

Captulo XIX

Bem Pessoal e Bem Coletivo

Justia e bem comum .................................................................................. 271

Individualismo, personalismo e transpersonalismo..................................... 277

PARTE II

Ontognoseologia Jurdica

Ttulo V

Os Temas da Filosofia Jurdica

Captulo XX

Objeto e Diviso da Filosofia do Direito

Conceito de Filosofia do Direito................................................................. 285

A diviso tripartida...................................................................................... 291

Diviso de Stammler.................................................................................. 295

Captulo XXI

A Temtica Geral e os Temas Especiais

A Ontognoseologia Jurdica........................................................................ 300

Epistemologia jurdica................................................................................. 305

Deontologia jurdica.................................................................................... 308

Culturologia jurdica.................................................................................... 309

Ttulo VI

Empirismo e Apriorismo Jurdicos e suas

Compreenses Unilaterais

Captulo XXII

O Conceito de Direito Segundo as Doutrinas Empricas

Posio de Pedro Lessa............................................................................... 317

Crtica do empirismo jurdico...................................................................... 321

Ser e dever ser.............................................................................................. 324

A rplica dos empiristas.............................................................................. 326

O neo-empirismo jurdico........................................................................... 329

Captulo XXIII

A Concepo do Direito na Doutrina de Stammler

O Direito como forma do querer................................................................. 332

Conceito e idia do Direito.......................................................................... 339

Captulo XXIV

A Concepo do Direito na Doutrina de Del Vecchio

Direito e intersubjetividade......................................................................... 341

Justia e alteridade....................................................................................... 346

Ttulo VIl

A Realidade Jurdica e o Problema Ontognoseolgico

Captulo XXV

O Inevitvel Contedo Axiolgico do Direito

Crtica do apriorismo jurdico..................................................................... 351

Alm do empirismo e do apriorismo jurdicos............................................ 357

Captulo XXVI

O Direito e a Investigao Histrico-Axiolgica

Anlise fenomenolgica da realidade jurdica............................................ 361

Da reduo fenomenolgica reflexo histrico-axiolgica Implicao

e polaridade............................................................................................. 367

Ttulo VIII

Fenomenologia da Ao e da Conduta

Captulo XXVII

Conduta e Ordem de Fins

Ato e valor................................................................................................... 377

Fins e categorias do agir.............................................................................. 380

Captulo XXVIII

Tridimensionalidade da Conduta tica

Momentos da conduta................................................................................. 388

Especificidade da conduta tica................................................................... 391

Captulo XXIX

Modalidades de Conduta

Conduta religiosa......................................................................................... 394

Conduta moral............................................................................................. 396

Conduta costumeira..................................................................................... 399

Conduta jurdica.......................................................................................... 401

Ttulo IX

Explicaes Unilaterais ou Reducionistas da Realidade Jurdica

Captulo XXX

Antecedentes Histricos

Formao de uma conscincia normativa.................................................... 410

A Escola da Exegese e a jurisprudncia conceituai..................................... 415

O Direito como fato histrico ou relao social.......................................... 422

Da crise na interpretao da lei crise da Cincia tradicional do Direito... 426

Captulo XXXI

O Sociologismo Jurdico

Observaes de ordem geral........................................................................ 434

Sociologismo jurdico de Duguit e as exigncias da solidariedade............ 439

Leis sociais e nexo teleolgico.................................................................... 443

Regras do Direito e normas tcnicas........................................................... 449

Captulo XXXII

O Normativlsmo Lgico de Hans Kelsen e a Eficcia do Direito

Objetivos da teoria pura do Direito............................................................. 455

Dever ser e imputabilidade.......................................................................... 461

Esttica e dinmica do Direito..................................................................... 469

Uma tricotomia implcita............................................................................. 473

Captulo XXXIII

O Moralismo Jurdico e a Natureza da Norma de Direito

O comando jurdico..................................................................................... 481

O moralismo jurdico de Cathrein............................................................... 483

O moralismo jurdico de Ripert................................................................... 487

O moralismo concreto de Gentile e de Binder............................................ 489

Ttulo X

Teoria Tridimensional do Direito

Captulo XXXIV

O Termo "Direito" e sua Trplice Perspectiva Histrica

A intuio axiolgica do Direito................................................................. 497

A intuio normativa do Direito.................................................................. 507

Captulo XXXV

O Tridimensionalismo Abstrato ou Genrico

Espcies de teorias tridimensionais............................................................. 511

O trialismo de Lask e o monismo neo-hegeliano........................................ 515

O trialismo de Radbruch.............................................................................. 520

Tridimensionalidade implcita: Santi Romano e Hauriou........................... 524

O trialismo perspectivstico......................................................................... 529

O trialismo de Roscoe Pound e Julius Stone............................................... 535

Captulo XXXVI

O Tridimensionalismo Especfico e a Unidade da Experincia

Jurdica

A trilateralidade esttica de Wilhelm Sauer................................................ 539

Pressupostos do tridimensionalismo dinmico............................................ 543

Nomognese jurdica................................................................................... 550

Processo normativo e poder......................................................................... 555

Captulo XXXVII

Normatividade e Historicidade do Direito

Normativismo jurdico concreto.................................................................. 562

Atualizao histrica dos valores do Direito............................................... 572

Normatividade, interpretao e Dogmtica Jurdica................................... 580

Captulo XXXVIII

Fundamento, Eficcia e Vigncia

Natureza filosfica do problema Conexes com a Poltica do Direito,

com a Teoria Geral do Direito e com a Sociologia Jurdica............... 586

O problema do fundamento......................................................................... 589

O problema da vigncia e da positividade................................................... 597

O problema da eficcia................................................................................ 606

As cincias da realidade jurdica................................................................. 612

Ttulo XI

Direito e Moral

Captulo XXXIX

O Problema na Grcia e em Roma

O Direito na "paideia" grega....................................................................... 621

O Direito como "voluntas" A idia romana de "Jus" e de Jurisprudncia 627

Captulo XL

Direito e Moral na Idade Mdia

Concepo tomista da lei............................................................................. 636

Justia como "proportio ad alterum"........................................................... 640

Captulo XLI ^Direito e Moral na poca Moderna O Contratualismo

Reduo individualista................................................................................ 644

Modalidades de contratualismo................................................................... 647

Captulo XLII

Exterioridade, Coercibilidade e Heteronomia

Thomasius e seus objetivos jurdicos-polticos........................................... 653

A contribuio de Emmanuel Kant............................................................. 656

Captulo XLIII

Anlise do Problema da Exterioridade do Direito

A exterioridade luz da experincia jurdica.............................................. 664

Valorao do ato jurdico............................................................................. 668

Captulo XLIV

Coercitividade e Coercibilidade

Coao social, coao psicolgica e coao jurdica.................................. 672

Objees teoria da coao........................................................................ 676

Coao virtual e coao atual...................................................................... 680

Captulo XLV

A Bilateralidade Atributiva do Direito

Bilateralidade tica e bilateralidade jurdica............................................... 685

Sentido objetivo da bilateralidade jurdica.................................................. 691

Captulo XLVI Conceito de Direito

Direito e valores de convivncia.................................................................. 699

Os corolrios da atributividade.................................................................... 706

Distino entre Direito e Moral................................................................... 711

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................ 715

NDICE ANALTICO E REMISSIVO........................................................ 729

NDICE DE AUTORES .............................................................................. 743

PREFCIO 14 EDIO

O simples fato de uma obra de Filosofia do Direito atingir catorze edies, exaurindo-se a anterior em pouco mais de dois anos, vem confirmar minha assertiva no concernente profunda alterao operada na atitude de mestres, advogados e estudantes perante a experincia jurdica, nestas ltimas dcadas.

Nota-se, com efeito, talvez como reflexo das incertezas prprias de uma sociedade em acelerada mudana, maior preocupao pelos pressupostos filosficos do Direito, mesmo quando os estudos se desenvolvem com propsitos de ordem prtica.

Devo dizer que, na edio de 1978, ano do jubileu da presente obra, j entendera necessrio submet-la a minuciosa reviso. No que tenha alterado o texto das edies anteriores em sua estrutura bsica, mas introduzi mudanas em pontos essenciais, a fim dep-lo em sintonia com o estado atual de minhas pesquisas filosficas, tal como resulta de meus livros Experincia e Cultura, Verdade e Conjetura e Nova Fase do Direito Moderno.

Por outro lado, no podiam deixar de repercutir neste livro as colocaes feitas em minhas Lies Preliminares de Direito, obra que complementar desta, pois representa a projeo do tridimensionalismo no plano da Teoria Geral do Direito. Desse modo, os dois livros se completam, confirmando a tese, por mim tantas vezes defendida, de que os "conceitos transcendentais" s se compreendem plenamente em funo da experincia.

Maio de 1991,

M. R.

PREFCIO 5. EDIO

Ao preparar os originais para a edio anterior deste Curso, julgara ter-lhe dado a sua estrutura definitiva, sempre sujeita, claro, a naturais complementos e retificaes, mas os estudos finais de duas obras, de concepo geminada, "O Direito como Experincia" e "Teoria Tridimensional do Direito", convenceram-me da necessidade de rever toda a matria dos captulos XXXV, XXXVI e XXXVII, no s para fins pedaggicos, como tambm para correlacion-la com o estado atual de meu pensamento.

Alm disso, procurei tornar mais clara a exposio, em muitos pontos, sem prejuzo da densidade e do rigor dos conceitos. A nova distribuio dos assuntos, no tomo segundo, assim como os acrscimos introduzidos, tm por fim situar melhor o que denomino "normativismo jurdico concreto " e, por conseguinte, a minha recente "teoria dos modelos jurdicos", nos quadros da Filosofia do Direito contempornea.

Quem se abalanar afazer um cotejo entre as diversas edies desta obra notar que no h soluo de continuidade entre elas, mas antes o lento e gradual desdobrar-se de um pensamento que se altera na medida em que procura se completar, em funo da experincia jurdica focalizada.

Esta edio assinala, por outro lado, uma mudana substancial em meus propsitos, visto como julguei de bom alvitre consider-la autnoma e conclusa, na sua feio de Curso: as partes complementares, relativas Epistemologia, Deontologia e Culturologia Jurdicas tero mais carter monogrfico, desdobrando-se em ensaios independentes, o primeiro dos quais o j citado livro "O Direito como Experincia ", que representa o fruto mais maduro de minhas atividades docentes no plano epistemolgico. Se a presente obra lana as suas razes no Curso de Bacharelado, aquela nasceu de investigaes procedidas no Curso de Especializao.

V-se, pois, como vo de mos dadas o ensino e a pesquisa, no podendo, por ora, dizer como e quando outros trabalhos me ser possvel dar a pblico. O que sei que o trabalho continua fiel ao originrio programa de estabelecer uma constante correlao entre a Cincia e a Vida.

Janeiro de 1968.

O Autor

PREFCIO 2. EDIO

O simples fato de esgotar-se, em menos de trs anos, a primeira edio de um livro de Filosofia do Direito no Brasil deveras revelador do renovado interesse de nossos juristas pelos problemas fundamentais da Jurisprudncia, aps certo perodo de quase descaso por tudo o que ultrapassasse o plano emprico-positivo.

Algumas obras de Teoria Geral do Direito, tratados, instituies e monografias especializadas, recentemente produzidas no Pas, distinguem-se por rigorosa preocupao metdica e sistemtica, demonstrando que, vencendo a tentao dos comentrios feitos de afogadilho, vamos retomando o ritmo da produo cientfica que, com Teixeira de Freitas e o Conselheiro Lafayette, Carvalho de Mendona e Clvis Bevilqua, j nos assegurara primado inconteste nas letras jurdicas latino-americanas.

E de esperar-se que correspondendo a este cuidado pelas idias gerais, e pelo cultivo dos valores nacionais no quadro universal da Jurisprudncia contempornea, de esperar-se que, na anunciada reforma dos ensinos jurdicos, seja seguido o exemplo de So Paulo, da Bahia e do Rio Grande do Sul, incluindo-se a cadeira de Filosofia do Direito no currculo do Bacharelado. Parafraseando Francis Bacon, poder-se-ia dizer que um medocre conhecimento do Direito arreda da Filosofia, enquanto que um srio estudo reconduz a ela.

E, pois, com relativo otimismo dado valor negativo de uma legislao muitas vezes descuidada que me apresso a publicar esta nova edio, praticamente a terceira, eis que j introduzira algumas alteraes no texto magnificamente vertido para o italiano pelo ilustre mestre Luigi Bagolini, da Universidade de Gnova, com o concurso precioso de Giovanni Ricci.

Fcil ser perceber os acrscimos e as modificaes feitas, algumas de relevo, mas sem perda do sentido pedaggico que desde o incio me inspirou. Procurei, por outro lado, ajustar ainda mais a obra s exigncias dos juristas, convencido como estou de que a Filosofia do Direito deve ter significado concreto para a Jurisprudncia, correspondendo s estruturas e ao desenvolvimento da experincia histrica do Direito.

Aos mestres estrangeiros e nacionais, que honraram o meu trabalho com a sua ateno, formulando observaes ou reparos fecundos, a que procurei atender, deixo aqui o meu mais vivo agradecimento, esperando poder levar a bom termo a rdua tarefa concebida, de maneira que, atravs das partes especiais do Curso, no se perca a necessria determinao da unidade do Direito como "processus".

Conforta-me verificar que, nesta tarefa de atingir a consistncia integral da experincia jurdica, na concreo histrica de seus trs elementos (fato, valor e norma) esto empenhados juristas da Europa e da Amrica, como ainda recentemente pde ser observado no Congresso Interamericano de Filosofia, no Chile.

Pode-se dizer que outra questo ora se impe com urgncia: fazer com que a concepo histrico-cultural do Direito, cada vez mais reconhecida pelos juristas-filsofos, passe a influir, de modo decisivo, tambm nos quadrantes da Dogmtica Jurdica, assim como da Tcnica judicial e forense, tornando-se menos acabrunhadora a distncia entre a abstrao das leis e os anseios concretos de Justia.

Maio de 1957.

O Autor

PREFCIO 1. EDIO

Este livro representa o fruto de mais de dez anos de magistrio na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, sob cujas Arcadas, quando ainda estudante, comecei a redigir minhas primeiras observaes sobre os problemas do Direito e do Estado.

J naqueles escritos juvenis firmara o propsito de "teorizar a vida e de viver a teoria na unidade indissolvel do pensamento e da ao", e, ao volver Academia, em 1940, para a disputa de uma ctedra, penso ter obedecido ao mesmo programa de vida, cuidando de determinar os fundamentos do Direito em funo de elementos lgicos, axiolgicos e fticos.

Jamais compreendi o Direito como pura abstrao, lgica ou tica, destacada da experincia social. Nesta deve ele afundar suas razes, para poder altear-se firme e receber o oxignio tonificador dos ideais de Justia. Esse sentido concreto do Direito tornou-se ainda mais vigoroso em contacto com os problemas de governo, ou na vivncia apaixonante dos embates polticos, quando submetidos a uma crtica viva os preceitos da legislao positiva.

As lides forenses, assim como o trato assduo com questes administrativas e polticas, inclinam o esprito a valorar melhor o drama cotidiano, as expresses particulares do querer e do agir, e, com isto, a perceber o risco das tipificaes e dos esquemas rgidos e isolados, que seduzem ilusoriamente a tantos espritos no mbito da Jurisprudncia.

As oportunidades de legislar abrem novas perspectivas compreenso dos limites do Direito vigente, revelando a tenso inevitvel de uma experincia, como a jurdica, na qual nem bem se realiza algo como norma, e j se projeta como exigncia nova de valores para o futuro, de maneira que a moralidade incessante de "mais justia" polariza-se com a exigncia de "mais certeza" ou de "mais segurana".

possvel que, nestas pginas, se mostre, tais as conjunturas da poca, mais forte do que nunca o jamais abandonado ideal de compor o abstrato e o concreto, a abstrao terica e o querer particular, a fora projetante da liberdade e a prudncia do poder na gnese e no desenvolvimento do Direito, mas creio que essa tendncia no contraria o ritmo de nossa tradio jurdica, sempre aderente realidade, at ao ponto de correr o risco de descambar para o casusmo em que a Cincia irremediavelmente se estiola.

Por mais, porm, que estas pginas se prendam s circunstncias de nosso tempo, refletindo uma concepo geral do universo e da vida na qual e pela qual adquirem real significado as concepes do Direito , o seu modo de comunicao permanece nos lindes impostos pelas necessidades didticas. Trata-se de um Curso, revisto e completado com base em apostilas taquigrafadas graas iniciativa do Centro Acadmico XI de Agosto. Embora haja suprimido o suprfluo e refundido a obra, acrescentando vrios captulos e dando-lhes nova ordem e unidade sistemtica, conservei afeio original de lies, com a dupla finalidade de servir aos estudantes do Bacharelado e aos de Especializao.

No excluo possa merecer tambm a ateno dos juristas ptrios empenhados no trabalho cientfico-positivo. Se a meditao filosfica do Direito sempre necessria, mais ainda se impe em pocas de transmutao de valores, quando o Direito vigente recebe o impacto de foras imprevistas, crescendo a responsabilidade do jurista, alado dignidade de intrprete e de protagonista da Histria, no mais resignado ao papel de mero executador de decises tomadas revelia de seus ideais e de sua conscincia.

Como advertiu Pedro Lessa quando se praticou o grave erro de eliminar a Filosofia do Direito de nossos cursos jurdicos, em boa hora reparado pela Academia de So Paulo, no obstante a tendncia ainda hoje dominante no sistema federal de ensino , "em nenhum pas mais do que no Brasil se acentua a necessidade de atrair a ateno dos que lidam com o Direito, constitudo e constituendo, para os princpios, para as verdades gerais, para as leis fundamentais, que constituem o supedneo do Direito, que lhe explicam a razo de ser, revelam o quid constante, permanente, invarivel, que se nota em meio das transformaes das normas jurdicas, e infundem a convico da necessidade absoluta da Justia". (*)

Na realidade, aqui como alhures, um pragmatismo fcil invade, dia a dia, os domnios da Jurisprudncia, ameaando comprometer a linha de continuidade de um labor cientfico, vlido por seus princpios estruturais e pelo sentido de concreo que lhe deram jurisconsultos da estirpe de Teixeira de Freitas, Paula Batista ou Lafayette, e no pelo af de acomodar-se a exigncias que no exprimem necessidades vitais da comunidade brasileira, mas apenas opinies improvisadas na crista dos acontecimentos.

Legisla-se em geral, com imperdovel esquecimento dos princpios e das grandes diretrizes histrico-sociais do sistema jurdico ptrio, a tal ponto que, em um mesmo ato, preceitos dspares ou conflitantes se consagram; e, como eco inevitvel, avolumam-se, no menos atabalhoadamente, comentrios apressados de legislao em um casusmo alarmante e infecundo. Felizmente, algumas personalidades vigorosas conseguem vencer nessa tarefa de ilustrao de textos, animando a exegese com um sopro de doutrina e de compreenso geral da experincia jurdica, conscientes de todas as dificuldades de um trabalho de alto alcance quando no desviado para o plano das vantagens materiais.

Por outro lado, no poucas e preciosas monografias sobre diversos setores da Jurisprudncia, assim como Cursos elaborados com admirvel rigor metdico, marcam o rumo a ser trilhado pelo autntico jurista, cujo esprito se entreabre, necessria e beneficamente, para os problemas da Filosofia e da Teoria Geral do Direito, confirmando o acerto de um dos grandes mestres de nosso tempo: "Nenhum ramo da Cincia vive sem respirar Filosofia, mas esta necessidade sentida no Direito mais do que em qualquer outra. A medida que se avana pela estrada da Jurisprudncia, mais e mais o problema do metajurdico desvela a sua decisiva importncia; o jurista convence-se cada vez mais de que, se no sabe seno Direito, na realidade no conhece nem mesmo o Direito".{**)

Em minha experincia de magistrio, no digo que tenha sempre logrado unanimidade de compreenso nessa ordem de proble mas,

(*) Pedro Lessa, Estudos de Filosofia do Direito, Rio, 2." ed., 1916, pg. 9.

(**) Francesco Carnelutti, Tempo Perso, Bolonha, 1952, pg. 8.

mas posso afirmar que mesmo os jovens menos propensos especulao filosfica acabam tocados pela majestade do Direito e pela dignidade da misso do jurista, e este resultado, que envolve a personalidade moral, no menos precioso que o referente ao aprimoramento do intelecto.

O melhor caminho para o mestre, que s deposita justificada confiana na espontnea transmisso dos valores, talvez seja apelar para a espiritualidade livre, procurando revelar e no impor formas de vida.

Desejo ainda ponderar, pondo termo a estas consideraes que j se alongam, que cuidei necessrio fixar alguns problemas fundamentais da Filosofia, antes de entrar no exame das questes filosfico-jurdicas, no s por lembrar o sacrificado curso de Lgica e de Psicologia de nossos Colgios, como tambm para atender a uma exigncia natural de unidade, sendo a Filosofia do Direito a Filosofia mesma voltada para uma das expresses universais do esprito.

Uma Introduo Filosofia, com a vivncia direta e "intencional" dos problemas jurdico-sociais, apresenta outro centro de interesse para jovens habituados ao trato das leis e da problemtica da existncia humana, levando-os a compreender como andam errados os que projetam a Filosofia fora da vida, reduzindo-a a esquemas trios, em que se espelham as presunes e as veleidades de uma sabedoria pretensamente livre de problemas e de dvidas.

Alm do mais, no h razo para negar-se autenticidade filosfica a quem se situa no campo de uma Cincia, para da filosofar Karl Jaspers chega mesmo a dizer que o melhor filsofo talvez seja o cientista, que firma, por assim dizer, os ps em dado setor da Cincia e, sem jamais perder de vista o concreto, perquire todos os lados da relao com o conhecimento em geral, mantendo-se em mutuao contnua com a realidade, tal como esta se lhe apresenta em sua concreteza. (***)

(***) K. Jaspers, Psicologia delle Visioni del Mondo, trad. de V. Loriga, Roma, 1950, pg. 12.

Por ter dado certo desenvolvimento Propedutica Filosfica, ilustrando-a com exemplos da vida jurdica, o Curso pde tomar, na segunda parte, sem quebra de sua finalidade didtica, um cunho mais pronunciadamente pessoal, coisa alis inevitvel em qualquer especulao de carter crtico. O leitor encontrar, desse modo, uma exposio da Teoria Tridimensional do Direito, que venho desenvolvendo e completando desde 1940, em cotejo com as doutrinas jurdicas fundamentais de nossa poca, mas, acima de tudo, com os olhos voltados para a experincia viva e atuante do Direito.

Os dois tomos, que ora confio mocidade acadmica, destinam-se Parte Geral da Filosofia do Direito, esperando no me venham a faltar tempo e entusiasmo para poder levar a termo o plano proposto, com a publicao dos volumes destinados ao estudo especial da Epistemologia, da Deontologia e da Culturologia Jurdicas, aqui apenas esboadas.

So Paulo, 11 de agosto de 1953.

O Autor

PARTE I

Propedutica Filosfica

AD USUM JURISPRUDENTIAE

Ttulo I

Objeto da Filosofia

Captulo I

Noo Preliminar de Filosofia Sua Finalidade

Amor do Saber e Exigncia de Universalidade

1. Poderamos comear este curso apresentando uma longa srie de definies de Filosofia ou de Filosofia do Direito lembrando o que disseram, por exemplo, Aristteles, Kant, Hegel, ou Farias Brito, sobre a matria. Seria exigir, no entanto, esforo mnemnico desmedido, com pouco ou nenhum resultado. Devemos, ao contrrio, procurar atingir o conceito de Filosofia atravs de demorado e progressivo exame das exigncias que suscitaram os problemas historicamente reconhecidos como sendo de ordem filosfica. S essa compreenso histrica que poder ser fecunda; razo pela qual vamos estabelecer, por ora, apenas uma noo provisria ligada s prprias razes etimolgicas do termo.

Se nos inspirarmos nas origens do pensamento ocidental verificaremos que a palavra Filosofia significa amizade ou amor pela sabedoria. O termo deveras expressivo. Os primeiros filsofos gregos no concordaram em ser chamados sbios, por terem conscincia do muito que ignoravam. Preferiram ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja filsofos.

A Filosofia reflete no mais alto grau essa paixo da verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior perfeio, tendo-se em mira os pressupostos ltimos daquilo que se sabe.

Filsofo autntico, e no o mero expositor de sistemas, , como o verdadeiro cientista, um pesquisador incansvel, que procura sempre renovar as perguntas formuladas, no sentido de alcanar respostas que sejam "condies" das demais. A Filosofia comea com um estado de inquietao e de perplexidade, para culminar numa atitude crtica diante do real e da vida.

Aristteles (384-322 a.C), repetindo ensinamento platnico, dizia que a Filosofia comeou com a perplexidade, ou melhor, com a atitude de assombro do homem perante a natureza, em um crescendo de dvidas, a comear pelas dificuldades mais aparentes .

1 Cf. Metafsica, L. I. Cap. 2.". Podemos dizer, com mile BRHIER, que a filosofia comeou quando as afirmaes da conscincia espontnea sobre o homem e sobre o universo se tornaram problemticas". tudes de Philosophie Antique. Paris, 1955, pg. 12.

O homem passou a filosofar no momento em que se viu cercado pelo problema e pelo mistrio, adquirindo conscincia de sua dignidade pensante. No preciso, pois, sentir-se tranqilamente ancorado em algum sistema de Filosofia, nem ser capaz de dizer em que ano escreveu Kant cada um de seus estudos, para se possuir atitude filosfica: esta prpria de quem saiba captar e renovar os problemas universais sobre o cosmos e sobre a vida, procurando satisfazer s exigncias atuais, significantes por novos e por velhos problemas situados em diversos ciclos histrico-culturais.

A Filosofia, por ser a expresso mais alta da amizade pela sabedoria, tende a no se contentar com uma resposta, enquanto esta no atinja a essncia, a razo ltima de um dado "campo" de problemas. H certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia a cincia das causas primeiras ou das razes ltimas: trata-se, porm, mais de uma inclinao ou orientao perene para a verdade ltima, do que a posse da verdade plena.

A Filosofia, com efeito, procura sempre resposta a perguntas sucessivas, objetivando atingir, por vias diversas, certas verdades gerais, que pem a necessidade de outras: da o impulso inelutvel e nunca plenamente satisfeito de penetrar, de camada em camada, na rbita da realidade, numa busca incessante de totalidade de sentido, na qual se situem o homem e o cosmos. Ora, quando atingimos uma verdade que nos d a razo de ser de todo um sistema particular de conhecimento, e verificamos a impossibilidade de reduzir tal verdade a outras verdades mais simples e subordinantes, segundo certa perspectiva, dizemos que atingimos um princpio, ou um pressuposto.

Quando se afirma que Filosofia a cincia dos primeiros princpios, o que se quer dizer que a Filosofia pretende elaborar uma reduo conceituai progressiva, at atingir juzos com os quais se possa legitimar uma srie de outros juzos integrados em um sistema de compreenso total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparvel da Filosofia.

V-se, pois, que a Filosofia representa perene esforo de sondagem nas razes dos problemas. uma cincia cujos cultores somente se considerariam satisfeitos se lhes fosse facultado atingir, com certeza e universalidade, todos os princpios ou razes ltimas explicativas da realidade, em uma plena interpretao da experincia humana; mas, nas vicissitudes do tempo, tal paixo pela verdade sempre se renova; surgem teorias, sistemas, posies pessoais, perspectivas diversas, em um dinamismo que nos conatural e prprio, de maneira que a universalidade dos problemas no pode contar com resultados ou solues todos universalmente vlidos. Poder-se-ia dizer, porm, que em nossa procura total da verdade que se manifesta a verdade total. Parafraseando a reflexo agostiniana de Blaise Pascal, diramos do filsofo com relao verdade: "tu no me procurarias, se j no me tivesses encontrado".

2. "Console-toi, tu ne me chercherais pas si tu ne m'avais trouv." Fenses, ed. de Victor Giraud, Paris, 1926, Le Mystre de Jesus. Alis, consoante ponderao de N. Hartmann, quando se formula um problema, algo j se conhece da coisa a que o mesmo se refere. De outro modo seria impossvel at mesmo distinguir um problema de outro. Cf. Ontologia, I, Fundamentos, trad. de Jos Caos, Mxico, 1954, pg. 32. Max Scheler e Martin Heidegger tambm se referem aos "esquemas antecipatrios" que possibilitam o conhecimento. Vide Miguel Reale Experincia e Cultura, So Paulo, 1977, pg. 88.

Quem passa a estudar Filosofia no plano da Histria fica, primeira vista, desapontado, quando no ctico, por encontrar um tumultuar de respostas, uma multiplicao de sistemas e de teorias. Surge, ento, logo a pergunta: Por que estudar Filosofia, se os filsofos jamais logram se entender? Qual a vantagem ou a utilidade da Filosofia, se os maiores pensadores nunca chegam a concordncia sobre pontos fundamentais? Quando se fazem tais perguntas, pensa-se que esto sendo destrudas as veleidades da Filosofia, esquecendo-se de que reside exatamente a a grandeza e a dignidade do saber filosfico, sem que resulte comprometida a sua pretenso de ser cincia rigorosa.

A Filosofia no existiria se todos os filsofos culminassem em concluses uniformes, idnticas. A Filosofia , ao contrrio, uma atividade perene do esprito ditada pelo desejo de renovar-se sempre a universalidade de certos problemas, embora, claro, as diversas situaes de lugar e de tempo possam condicionar a formulao diversa de antigas perguntas: o que distingue, porm, a Filosofia que as perguntas formuladas por Plato ou Aristteles, Descartes ou Kant, no perdem a sua atualidade, visto possurem um significado universal, que ultrapassa os horizontes dos ciclos histricos. A universalidade da Filosofia est de certa forma mais nos problemas do que nas solues, o que no deve causar estranheza se lembrarmos, com Jorge Simmel, que a Filosofia mesma , por assim dizer, o primeiro de seus problemas, revertendo o seu problematicismo sobre a sua prpria essncia A pesquisa das razes ltimas das coisas e dos primeiros princpios implica a possibilidade de solues diversas e de teorias contrastantes, sem que isto signifique o desconhecimento de verdades universais que se imponham ao esprito com a fora irrefragvel da evidncia.

3 SiMMEL, Problemas Fundamentales de la Filosofia, trad. de Fernando Vela, Madri, 1946, pgs. II e segs. Em sentido anlogo pronuncia-se Karl Jaspers; "Toda filosofia define-se a si mesma por sua realizao. O que ela seja, no se pode saber seno pela experincia; v-se, ento, que ela , ao mesmo tempo, a atualizao do pensamento vivo e a reflexo sobre esse pensamento, ou a ao e o comentrio da ao" Introduction Ia Philosophie, trad. de Jeanne Hersch, Paris, 1950, pg. 9. Quanto impossibilidade de se conceberem os diferentes sistemas filosficos como tentativas diversas de responder s mesmas e eternas perguntas, V. R. G. Collingwood, Autobiografia, trad. de J. Hernndez Campos, Mxico, 1953, pgs. 65 e segs.

A histria da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta no pode se estiolar em um sistema cerrado, onde tudo j esteja pensado, muitas vezes antecipadamente resolvido. Quando um filsofo chega ao ponto de no ter mais dvidas, passa a ser a histria acabada de suas idias, o que no quer dizer que no gere a Filosofia nos espritos uma serenidade fecunda, apesar da incessante pesquisa. Como observa Karl Jaspers, "esse modo de estar em marcha o destino do homem no tempo no exclui a possibilidade de uma profunda paz interior, e at mesmo, em certos instantes supremos, a de uma espcie de plenitude".

Para no dar seno dois exemplos de filsofos autnticos, lembraramos duas figuras impressionantes, pertencentes a culturas distintas, e que representam pontos culminantes do pensamento contemporneo Benedetto Croce e John Dewey, os quais jamais se deram por satisfeitos com suas pesquisas, apesar de dezenas e dezenas de anos de perseverante estudo, mantendo ambos o mesmo teor de produo cientfica, at viglia da morte.

Dewey e Croce so dois padres da Filosofia que no se cristaliza, nem fica paralisada por ter encontrado resposta para dados problemas. A Filosofia deve ser vista como atividade perene do esprito, como paixo pela verdade essencial e, nesse sentido, realiza, em seu mais alto grau e conseqncia, a qualidade inerente a toda cincia: a insatisfao dos resultados e a procura cuidadosa de mais claros fundamentos, sem outra finalidade alm da puramente especulativa. Isto no significa, porm, que o filsofo no possa ou no deva empenhar-se por suas idias: o que incompatvel com a pesquisa filosfica a converso da ao prtica e, sobretudo, do empenho poltico-social, em razo e meta do filosofar4.

4. Pode-se mesmo dizer que a Filosofia a sabedoria mais o propsito de torn-la real. Antecipando-se aos tempos modernos, Dante qualificava-a "uno amoroso uso di sapienza" (Convivia, III, XI).

2. Ora, a Filosofia do Direito, esclarea-se desde logo, no disciplina jurdica, mas a prpria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade, que a "realidade jurdica". Nem mesmo se pode afirmar que seja Filosofia especial, porque a Filosofia, na sua totalidade, na medida em que se preocupa com algo que possui valor universal, a experincia histrica e social do direito.

O direito realidade universal. Onde quer que exista o homem, a existe o direito como expresso de vida e de convivncia. exatamente por ser o direito fenmeno universal que ele suscetvel de indagao filosfica. A Filosofia no pode cuidar seno daquilo que tenha sentido de universalidade. Esta a razo pela qual se faz Filosofia da vida, Filosofia do direito. Filosofia da histria ou Filosofia da arte. Falar em vida humana falar tambm em direito, da se evidenciando os ttulos existenciais de uma Filosofia jurdica. Na Filosofia do Direito deve refletir-se, pois, a mesma necessidade de especulao do problema jurdico em suas razes, independentemente de preocupaes imediatas de ordem prtica.

Enquanto que o jurista constri a sua cincia partindo de certos pressupostos, que so fornecidos pela lei e pelos cdigos, o filsofo do direito converte em problema o que para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranqilo, porque a lei constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz prolata a sua sentena e a apia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar cumprindo sua misso de cincia e de humanidade, porquanto assenta a sua convico em pontos ou em cnones que devem ser reconhecidos como obrigatrios. O filsofo do direito, ao contrrio, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razes lgicas e morais que levam o juiz a no se revoltar contra a lei, e a no criar soluo sua para o caso que est apreciando, uma vez convencido da inutilidade, da inadequao ou da injustia da lei vigente? Por que a lei obriga? Como obriga? Quais os limites lgicos da obrigatoriedade legal?

A misso da Filosofia do Direito , portanto, de crtica da experincia jurdica, no sentido de determinar as suas condies transcendentais, ou seja, aquelas condies que servem de fundamento experincia, tornando-a possvel. Que que governa a vida jurdica? Que que, logicamente, condiciona o trabalho do jurista? Quais as bases da Cincia do Direito e quais os ttulos ticos da atividade do legislador? Eis a exemplos da j apontada preocupao de buscar os pressupostos, as condies ltimas, procurando partir de verdades evidentes, ou melhor, evidenciadas no processar-se da experincia histrico-social.

O Problema dos Pressupostos

3. Talvez resida no problema dos pressupostos a principal diferena entre Cincia positiva e Filosofia. Cincia positiva construo que parte sempre de um ou de mais pressupostos particulares; Filosofia crtica de pressupostos, sem partir de pressupostos particulares, visto como as "evidncias" se pem, no se pressupem.

Assim, a Geometria toda uma construo lgica, que obedece a determinados pontos de partida, a certos pressupostos ou "dados". A Geometria euclidiana, por exemplo, baseia-se no postulado de que "por um ponto tomado fora de uma reta, pode-se fazer passar uma paralela a essa reta e s uma". Por outro lado, a Geometria, que cincia de todas as espcies possveis de espao, como nos diz Kant, no pode definir o que seja "espao", partindo de uma noo pressuposta, de carter operacional.

Ora, as Geometrias no-euclidianas no so menos Geometrias do que a que comeamos a estudar nos ginsios, embora no admitam o postulado acima enunciado, preferindo afirmar, como Riemann, que "por um ponto tomado fora duma reta no se pode fazer passar nenhuma paralela a esta reta", ou ento, como Lobatchewsky: "Por um ponto tomado fora duma reta, pode-se fazer passar uma infinidade de paralelas a esta reta". Trata-se, por conseguinte, de Geometrias igualmente rigorosas, cada qual no sistema de suas referncias5.

5. "Toda Geometria", escreve Ernst Cassirer, lembrando ensinamentos de Klein, "pressupe, com efeito, a forma geral do espao, a forma da 'possvel coexistncia'. Quanto a isto, em nada se distinguem umas Geometrias de outras (..). As distintas Geometrias no se encontram isoladas e desconexas entre si, mas se desenvolvem umas com base nas outras, e este desenvolvimento o fruto de um pensamento rigorosamente determinado." (Cf. Cassirer, El Problema dei Conocimiento, Mxico, trad. esp. de W. Roces, 1948, pg. 57.)

Toda cincia depende, portanto, em seu ponto de partida, de certas afirmaes, que se aceitam como condio de validade de determinado sistema ou ordem de conhecimentos. E at mesmo quando se pretende abstrair de toda ordem dada, a fim de que a "indagao" ou a "pesquisa" possa determinar as verdades de maneira livre e autnoma, ainda assim se pressupe a validade da pesquisa experimental como produtora ou reveladora de "assertivas garantidas" (warranted assertibility) para empregarmos expresses caractersticas de John Dewey em sua Lgica6.

A Filosofia , assim, um conhecimento que converte em problema os pressupostos das cincias, como, por exemplo, o "espao", objeto da Geometria. , portanto, sempre de natureza crtica. Uma Filosofia que no seja crtica , a nosso ver, inautntica: sempre perquirio de razes ou indagao de pressupostos, sem partir de pressupostos particulares, mas de evidncias universalmente vlidas7.

6. Cf. John Dewey, Lgica, Teoria dellIlndagine, trad. it.. 1949, caps. IV e V.

7. No possvel pretender que a Filosofia seja, radicalmente, um saber sem pressupostos, ou, mais genericamente, sem verdades iniciais condicionadoras da especulao pura. O prprio Simmel, filsofo da problematicidade, reconhece como suposto prvio comum de todo filosofar em geral" a potncia psquica de totalizao, ou seja, o poder de "criar uma totalidade objetiva com os fragmentos da objetividade" (op. cit., pg. 17). Pensar sem supostos prvios , sob certo prisma, mais uma exigncia deontolgica do que lgica, no plano da Filosofia, como pensar em funo do homem, em sua universalidade, e no em funo de um de seus aspectos particulares e contingentes.

Eis a uma noo geral do que entendemos por Filosofia, como estudo das condies ltimas, dos primeiros princpios que governam a realidade natural e o mundo moral, ou compreenso crtico-sistemtica do universo e da vida.

Entender-se-o melhor tais palavras quando da apreciao de algumas doutrinas fundamentais, principalmente ao tratarmos do problema das relaes entre Filosofia e Cincia, objeto de um dos prximos captulos.

Que representa a Filosofia perante a Cincia? Qual a relao entre a Filosofia e as chamadas cincias positivas ou fsico-matemticas? A Filosofia uma cincia da mesma natureza das cincias naturais, como a Fsica, a Qumica, a Astronomia, a Biologia ou, ao contrrio, cincia de ordem diversa, distinta das outras em sua essncia e em seus mtodos?

No desejamos, no entanto, concluir este primeiro contacto com a indagao filosfica sem, preliminarmente, esclarecer que o termo cincia pode ser tomado em duas acepes distintas. A Filosofia ser, por certo, cincia, se dermos a esta palavra o significado lato de "sistema de conhecimentos metodicamente adquiridos e integrados em uma unidade coerente". A discriminao mais ou menos rigorosa entre Filosofia e Cincia surge quando se atribui ao segundo termo um sentido estrito como "sistema de conhecimentos metodicamente adquiridos e de validade universal, pela verificao objetiva, inclusive experimental, da certeza de seus dados e resultados", conforme ser melhor esclarecido oportunamente8. Cumpre, alis, observar que, de conformidade com a Teoria do Conhecimento contempornea, a certeza das cincias sempre provisria, sujeita a sucessivas verificaes, a tal ponto que j se disse ser prprio das asseres cientficas a sua refutabilidade, realando-se o seu vis conjetural.

Em concluso, a Filosofia, entendida como "cincia" na primeira das acepes acima recordadas, tem por objeto indagar dos pressupostos ou condies de possibilidade de todas as cincias particulares, as quais esto sempre sujeitas a novos "testes" e verificaes.

No demais acrescentar que, a nosso ver, a investigao filosfica pressupe pelo menos uma verdade admitida vista das verdades das cincias , e o capacidade sintetizadora do esprito, pela qual o homem se distingue dos outros animais, aos quais no dado superar, integrando-os numa unidade conceituai nova e concreta, os elementos particulares e multplices da experincia9.

8. Cf. Lalandh, Vocabulaire Tchnique et Critique de Ia Philosophie, Paris, 1932, 4f ed., vol. II, pgs. 735 e segs.

9. Sobre essa capacidade que denominamos nomottica, v. nosso livro Experincia e Cultura, cit. Em livro posterior. Verdade e Conjetura, pensamos ter demonstrado o papel que esta desempenha em todos os domnios das cincias e lambem na Filosofia.

Captulo I

O Positivismo e a Reduo da Filosofia a uma Enciclopdia das Cincias O Neopositivismo

"Philosophia, Ancilla Scientiarum"

4. Na determinao da natureza do saber filosfico, prefervel comear pela resposta mais simples e acessvel. Vamos iniciar o estudo dessa matria, apreciando, embora rapidamente, a posio do positivismo.

J se deve saber, pelo menos de maneira geral, o que se entende por positivismo. De qualquer forma, no ser demais acrescentar algo sobre essa grande corrente de pensamento que exerceu e ainda exerce inegvel influncia no Brasil, especialmente atravs das obras do mais conhecido filsofo francs do sculo passado. Augusto Comte, cuja "lei dos trs estados" invocada como sendo a pedra angular de seu sistema, que atribui, com efeito, humanidade trs estdios histricos sucessivos fundamentais, o teolgico, o metafsico e o positivo.

Augusto Comte (1793-1857), o pensador europeu que no sculo XIX mais influiu na histria cultural e poltica brasileira, era um homem de formao matemtica, animado do propsito de dar Filosofia uma certeza igual quela que, a seu ver, seria prpria das cincias fsico-matemticas. Para Comte, a Filosofia s digna desse nome enquanto no se diversifica da prpria Cincia, marcando uma viso orgnica da natureza e da sociedade, fundada nos resultados de um saber constitudo objetivamente luz dos fatos ou das suas relaes. Tal posio e tendncia de Augusto Comte, baseando o saber filosfico sobre o alicerce das cincias positivas, estavam destinadas a obter repercusso muito grande em sua poca, notadamente por sua declarada averso Metafsica e a quaisquer formas de conhecimento a priori, isto , no resultantes da experincia.

A publicao do Curso de Filosofia Positiva de Augusto Comte (1830-1842) marca, sem dvida, um momento relevante na histria do pensamento europeu e americano, possuindo ainda entre ns continuadores entusiastas, sem falar no neopositivismo contemporneo, que invoca, porm, outras fontes inspiradoras, apesar de coincidir com a Filosofia positiva em vrios pontos essenciais.

No podemos, logo no incio do curso, mostrar a diferena entre o positivismo de Augusto Comte e suas ramificaes na ltima centria. Limitamo-nos a dizer que em todas essas correntes o que existe como constante a idia de que a Filosofia algo de inseparvel do saber emprico e positivo, uma forma ou momento das prprias cincias, quando no as cincias em sua viso unitria.

Para Herbert Spencer, cuja teoria evolucionista uma derivao do positivismo, a Cincia se distingue da Filosofia apenas por uma questo de grau. Ficou muito conhecida a afirmao spenceriana, contida em seu livro First Principies (1862), de que a Cincia o saber particularmente unificado, enquanto que a Filosofia o saber totalmente unificado.

Entre Cincia e Filosofia no haveria, portanto, uma diferena de essncia ou de qualidade, mas, to-somente, uma diferena de grau ou de generalidade. O fsico ou o qumico elaboram, apreciam um aspecto particular da realidade ou de algo: o mesmo fazem o bilogo, o astrnomo ou o matemtico. Cada qual tem seu campo de pesquisa e unifica e delimita os resultados de suas indagaes. A Cincia , portanto, um saber parcial unificado, referente a um aspecto abstrado de outros aspectos possveis, como condio de observao e anlise, nunca deixando de ser observao de fatos e de relaes entre fatos.

A Filosofia viria depois, como Enciclopdia das cincias ou sistematizao das concepes cientficas. Terminada a tarefa de cada cientista no seu campo particular, ao filsofo caberia realizar a sntese ou o compndio dos resultados. Surgiu mesmo a afirmao de que a Filosofia no devia ser vista seno como uma "Enciclopdia" (en, kuklos, paideia), o que quer dizer conhecimento cclico, total, das coisas. Assim sendo, se cada cientista trabalha no seu setor, ignorando muitas vezes a tarefa e o xito dos outros, necessrio, depois, que todos os resultados se componham e se integrem em uma unidade de carter provisrio, sempre sujeita s revises resultantes do progresso cientfico.

O da Filosofia seria, desse modo, um trabalho de composio unitria das pesquisas de cada um e de todos os cientistas; tal esforo fundamental de unificao dos resultados das pesquisas particulares, basear-se-ia, de um ponto de vista esttico, sobre a hierarquia das cincias, a unidade do mtodo e a homogeneidade do saber, e, do ponto de vista dinmico, na convergncia progressiva de todas as cincias no sentido da Sociologia, cincia final e universal.

1- Cf. L. Lvy-Brhl, La Philosophie d'Auguste Comte, 4. ed., Paris, 1921, pg. 141. Cf., infra, 44.

Qual a vantagem ou misso da Filosofia? Realizar esta sntese, para propiciar a cada cientista abertura de novas perspectivas, e a todos uma compreenso total, mas positiva do universo. A viso total e unitria dos conhecimentos cientficos teria a vantagem de despertar em cada campo particular de pesquisa a possibilidade de aspectos at ento obscuros e despercebidos. A Filosofia seria, de certa maneira, uma ancila das cincias, uma resultante das cincias na unidade do saber positivo, oferecendo diretrizes seguras para a reforma e o governo da sociedade.

O positivismo contrape-se, sob certo prisma, a uma outra concepo, tambm de subordinao da Filosofia, dominante no perodo medieval. Na Idade Mdia, a Filosofia apresenta, com efeito, certo carter instrumental anlogo, no sentido de servir a algo. A Filosofia uma serva da Teologia, uma "ancilla Theologiae". Vale, desde que no carreie elementos contra uma viso teocntrica da vida e a compreenso do homem segundo verdades reveladas. uma forma de saber que, em suas concluses, permanece subordinada Teologia, cujas verdades no pode contrariar. No que o pensador medieval desprezasse a experincia e os ditames da razo, limitando-se a desenvolver conseqncias a partir de verdades assentes ou predeterminadas por fora de autoridade divina ou humana. O problema outro: na especulao medieval os pontos de partida podiam ser estritamente filosficos, como podia ser filosfica a orientao da pesquisa, havendo exemplos admirveis de apego experincia, mas a indagao prevalecia at e enquanto suas ilaes no contrariassem certos enunciados reconhecidos como de valor transcendente. Desse modo, a Teologia funcionava como limite negativo ltimo, balizando o trabalho especulativo puro.

2. essa, alis, a atitude ainda dominante na Escolstica, tal como explicitamente se enuncia no conhecido Trait lmcntaire de Philosophie. de Mercier-De Wulf e Nys, Louvain, 1911, t. l, pgs. 33 e segs.: " misso da Igreja anunciar ao mundo a verdade revelada. Sendo essa a sua misso, no admite que se atente contra o ensinamento divino. Ela respeita a liberdade da Cincia e da Filosofia, at e enquanto os cientistas e os filsofos no se ponham em oposio s verdades que ela sabe reveladas por Deus e, por conseguinte, indubitavelmente verdadeiras". (...) "A doutrina revelada no para o filsofo e para o cientista um motivo de adeso, uma parte direta de conhecimentos, mas uma salvaguarda, uma norma negativa." No mesmo sentido se expressa Jacques Maritain: "A Teologia ou cincia de Deus, enquanto se deu a conhecer a ns pela revelao, est acima da Filosofia. A Filosofia lhe submetida no em seus princpios, nem em seu desenvolvimento, mas em suas concluses (sic), sobre as quais a Teologia exerce controle, constituindo assim regra negativa para a Filosofia", (Introduo Geral Filosofia, trad. bras., Rio, 1948, pg. 88.)

Na viso positivista opera-se uma inverso: a Filosofia tambm algo posto a servio de algo, no mais um conhecimento subordinado Teologia, ou que encontre nesta um "limite negativo", mas, a servio da prpria Cincia, cujos resultados deve unificar e completar, e de cujas concluses deve partir.

Na concepo positivista da Filosofia como sendo a prpria Cincia em sua explicao unitria a Filosofia deixa praticamente de desempenhar uma funo criadora autnoma. A Filosofia no cria, nem inova, porque seu trabalho fica na dependncia do trabalho alheio. "A Filosofia caminha pelos ps da Cincia", afirma um discpulo de Augusto Comte. medida que a Cincia descobre verdades, a Filosofia se enriquece. Quer dizer que ela no teria funo prpria na busca da verdade, resolvendo-se a sua funo cm um apndice do trabalho do cientista, para descobrir os nexos de harmonia entre os resultados, formulando-se um "compndio de resultados": destarte, o filsofo seria um "especialista de generalidades".

Houve vrias formalidades dessa teoria. Umas mais brandas, outras menos rgidas, mas em toda a evoluo positivista at nossos dias prepondera a idia central de que a Filosofia a expresso da prpria Cincia, confundindo-se essencialmente com ela.

Os Neopositivistas

5. Para o neopositivismo contemporneo, para o chamado Crculo de Viena, assim como para a Escola Analtica de Cambridge e todas as suas derivaes, a Filosofia no seno uma teoria metodolgico-lingstica das cincias, uma anlise rigorosa da significao dos enunciados das cincias e de sua verificabilidade, visando, segundo alguns, a purific-las de "pseudoproblemas". Da a importncia absorvente que na corrente neopositivista assume a Lgica matemtica ou a Lgica simblica, ou, de maneira mais geral, a Nova Lgica. Todavia, a Nova Lgica possui validade objetiva e independe de correntes filosficas, no representando seno o ponto extremo de uma exigncia de "formalizao" j nsita no desenvolvimento da Lgica clssica.

Sem confundir, pois, o campo da Logstica com o do neopositivismo, podemos dizer que, nesta corrente, a Filosofia consistiria em esclarecer e precisar os meios de expresso do conhecimento cientfico, para apur-lo, ou melhor, depur-lo de equvocos e pseudoverdades. Lembrem-se, a propsito, estes aforismos de Ludwig Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus: "O objeto da Filosofia a clarificao lgica dos pensamentos. A Filosofia no uma teoria, mas uma atividade. Um trabalho filosfico consiste essencialmente de elucidaes. O resultado da Filosofia no so 'proposies filosficas', mas tornar claras as proposies".

3. L. WITTGENSTEIN, Tractatus Logico-Philosophicus. Londres, 5. ed., 1951, pg. 77. Sobre o positivismo lgico em geral, v. a seleo de ensaios organizada por Herbert Feigl e Wilfried Sellars, Readings in Philosophical Analysis, Nova Iorque, 1949; Richard von Mises, Positivism, a Study in Human Understanding, Cambridge, 1951; Hans Reichenbach, The Rise of Scientific Philosophy, Berkeley e Los Angeles, 3. ed., 1956; Julius R. Weinberg, Introduzione al Positivismo Lgico, trad. de L. Geymonat, 1950; A. J. Ayer, Language, Truth and Logic, Londres, 1936. Para mais recente bibliografia, v. nosso livro Experincia e Cultura, cit.

A Filosofia no teria de fazer indagaes sobre o ser, pondo ou alimentando problemas metafsicos, dos quais no possvel dizer que sejam verdadeiros, nem falsos, mas apenas destitudos de sentido. A Metafsica expresso que no tem significado aos olhos do neopositivismo. O problema tico mesmo algo que desborda do campo especfico da pesquisa, cientfica, porquanto depende de cada indivduo, de seus pendores e inclinaes, de emoes variveis e imprevisveis, sem garantia de verificabilidade.

Segundo o ponto de vista, por exemplo, de Hans Reichenbach, impossvel falar-se em "verdade moral", porque a verdade apenas atributo dos enunciados lgicos, e no de uma diretiva do comportamento humano. Uma diretiva no pode ser classificada como "verdadeira" ou "falsa", porquanto estes predicados s se aplicam a enunciados, ou seja, a proposies, as quais podem ser ou sintticas ou analticas. Para explicar melhor a posio dos neopositivistas torna-se necessrio abrir aqui um parntesis sobre as possveis espcies de juzos 4.

4. Sobre o que se de'e entender por juzo, v., infra, 18, pgs. 59 e segs. Quanto s espcies de juzo, v. 36-A, pgs. 106 e segs.

Dizem-se analticos os juzos que so puramente formais: o predicado de tais juzos nada acrescenta ao sujeito; apenas torna explcito ou desenvolve rigorosamente o que no sujeito j se contm. Assim, se digo: "o todo maior que a parte", estou predicando do "todo" o que evidentemente est implcito em seu conceito, sem necessidade de recorrer, para tanto, a qualquer dado da experincia.

Os juzos sintticos, ao contrrio, so fundados na experincia, e como tais so a posteriori: o que seu predicado expressa no est contido no conceito do sujeito, mas representa algo que se acrescenta ao sujeito por via emprica. Se digo: "Esta gramtica de lngua portuguesa", afirmo algo que no se contm no simples conceito de gramtica, que podia ser de francs, de alemo etc.: a assero s pode resultar da experincia.

Ora, segundo os neopositivistas os juzos analticos so todos tautolgicos (da o seu rigor formal), enquanto que os sintticos so todos necessariamente empricos. Como veremos, na Filosofia de Kant pe-se uma pergunta essencial sobre a possibilidade de uma terceira espcie de juzos: os "juzos sintticos a priori", entre os quais figuram os da Matemtica.

Declaram os neopositivistas que as proposies sintticas nos informam sobre questes de fato, enquanto que as analticas, como as da Lgica c da Matemtica, so vazias, destitudas de contedo, quando no meras "frmulas lgico-lingsticas": a Cincia, por isso, nos diz o que . c no o que deveria ser. Desse modo, no se pode conceber a Moral como um sistema de conhecimentos ou de certezas, mas sim como uma proviso ou estoque de diretrizes ou imperativos, variveis no tempo e no espao, imperativos que, lingisticamente, no so mais que expresses de decises volitivas de origem social: "A frico das volies entre si a fora motriz de todo o desenvolvimento tico. Poderemos, conclui Reichenbach, admitir que a fora desempenha um papel eminente nas transformaes da hierarquia dos valores morais, se a definirmos por qualquer das formas de sucesso na afirmao da vontade prpria perante a das demais pessoas"5.

5 Hans Reichenbach, op. cit.. pgs. 276 e segs.

No diversa a opinio de Carnap, sintetizando, de certa forma, a dos "empiristas lgicos" em geral: "As afirmaes hipotticas da Metafsica, da Filosofia dos valores, da tica quando seja esta tratada como disciplina normativa, e no como uma pesquisa psicossociolgica de fatos , constituem pseudo-afirmaes; elas no possuem contedo lgico, sendo apenas expresses de natureza emocional que, por sua vez, estimulam emoes e movimentos volitivos naqueles a que se destinam"6.

Perante o positivismo de inspirao comteana, revelam os adeptos do neopositivismo, ou empirismo lgico, um cuidado maior na determinao das condies formais da investigao cientfica, baseados sobretudo no princpio de convencionalidade de seus pressupostos c no de verificabilidade.

Partindo da distino radical entre proposies verificveis (e como tais dotadas de sentido) e proposies inverificveis (e como tais destitudas de sentido) acabam, no entanto, excluindo sumariamente da Filosofia problemas que lhe so essenciais, ficando tudo subordinado aos horizontes do conhecimento cientfico-positivo. Da resultarem afastados do domnio cientfico ou filosfico, na maioria desses autores, no s a Metafsica e a Axiologia, como tambm a Moral e o Direito, tal como teremos a oportunidade de examinar no decurso deste livro7.

curioso observar que alguns marxistas chegam a concluses semelhantes dos neopositivistas, como o caso de Althusser, para quem a Filosofia se reduz s leis do pensamento, "como podem ser inferidas da histria das cincias"8.

6. Rudolf Carnap. The Logical Syntax of Language. Londres, 1937, pg. 278.

7. Sobre a repercusso do neopositivismo no campo do Direito, v. Virglio Giorgianni, Neopositivismo e Scienza del Diritto, Roma, 1956; Luigi Caiani, I Giudizi di Valore nellInterpretazione Giuridica, Pdua, 1954, pgs. 100 e segs.; e Miguel Reale. O Direito como Experincia, So Paulo, 1968, pgs. 98 e segs.

8. Althusser-Louis Lnine et Ia Philosopliie. Paris, 1969, pg. 47.

Fazendo abstrao de diferenas particulares, mister reconhecer em todas as formas de positivismo uma idia central no sentido de subordinar a Filosofia s necessidades ou s coordenadas do saber cientfico positivo, concebendo-a como Metodologia da Cincia, ou Teoria das Cincias. No fundo, o que dita a atitude positivista o prisma histrico com que pode ser focado o problema, no sentido de um saber filosfico inicial que, no decorrer das Idades, ter-se-ia desmembrado em cincias particulares (a Matemtica, a Astronomia, a Fsica, a Qumica, a Sociologia, a Poltica, a Economia, o Direito etc.), sem deixar resduos, ou deixando apenas a misso residual de uma composio de resultados em uma viso unitria (aspirao do positivismo clssico), ou a verificao das significaes com o rigor tcnico expressional s peculiar s cincias mesmas (propsito dos neopositivistas).

Em primeiro lugar, discutvel que os fatos se tenham passado segundo a explicao corrente de desintegraes progressivas, operadas em um saber inicialmente tido como de natureza filosfica. Se, de incio, cuidavam os sbios e os filsofos, ao mesmo tempo e indistintamente, de problemas relativos a fenmenos que hoje as cincias da natureza ou as cincias do esprito consideram de seu mbito respectivo, no dito que a unidade amorfa e indiferenada do saber fosse de natureza filosfica, de uma Filosofia destinada a desaparecer medida que fosse gerando, em seu seio, os filhos emancipados e rebeldes.

Mesmo, porm, que no padecesse dvida a histria dos desmembramentos sucessivos da Filosofia, como mathesis de todos os conhecimentos positivos, ainda assim restaria indagar da existncia ou no de algo no resolvido pelo processo da cientificao do saber.

Ser exato dizer que a filosofia apenas Metodologia das cincias, a Linguagem das cincias, ou a Enciclopdia das cincias? A nosso ver, tais afirmaes no oferecem possibilidade de resposta a uma objeo fundamental, que a seguinte: admitido que a Filosofia tenha a funo de apreciar os resultados das cincias, de ser "a crtica da linguagem cientfica", caber saber com que critrio ou medida se vo cotejar os resultados das pesquisas realizadas nos diversos domnios do saber. Pode a Cincia mesma oferecer os critrios de sua validade? o que passaremos a averiguar.

Captulo III

Autonomia da Filosofia Seus Mximos Problemas

Perguntas Prvias

6. primeira vista, parece acertado dizer-se que a misso da Filosofia seja receber os resultados das cincias e coorden-los em uma unidade nova. Mas, tudo isso envolve estas perguntas: Com que critrio se far a sntese? Ser essa sntese possvel, ou necessria? Graas a que faculdade sintetizadora? Em que limites e com quais condies?

Se nos propomos resumir resultados, devemos faz-lo segundo certo prisma, ou, por outras palavras, segundo um valor. Quem nos d o critrio de valor para cotejar, para excluir e resumir resultados? Qual ser a norma para a estimativa da unidade? Quem nos assegura que nos resultados das cincias j esteja imanente a unidade que se busca? Ser essa unidade possvel?

Sem um critrio seletivo, no faramos outra coisa seno repetir o que a Cincia j disse, ou, quando muito, elaboraramos um ndice das cincias, mas no verdadeira Filosofia. Se podemos confrontar explicaes parciais para atingirmos uma compreenso total, porque possumos a capacidade de consider-las, no abstratas ou abstradas do processo espiritual, como dados postos fora de ns, mas sim referidas fora una e integrante do esprito. A viso total da Cincia implicaria uma estimativa, um critrio de valor, para selecionar ou coordenar os resultados. Ento, a Filosofia no mais soma, nem mero resumo das cincias, segundo um "ponto de vista de conjunto", mas crtica das cincias.

Para reunir resultados e harmoniz-los, em primeiro lugar devemos pass-los pelo crivo de nossa crtica. Se admitirmos que a Filosofia deva ser uma viso unitria das cincias, fora convir que, em tal caso, j no existiria simples diferena quantitativa ou de grau, porm, uma essencial diferena qualitativa entre o saber do cientista como tal e o do filsofo, graas fora sinttica do esprito, que, de certa forma, se encontra ou se descobre a si mesmo na compreenso unitria dos bens de cultura .

1 Cabe aqui a lembrana das palavras de um pensador ptrio, Gonalves de Magalhes: "Como todas as Cincias empricas e matemticas se reduzem nas suas especialidades a reconhecer separadamente os fatos, as relaes e leis das coisas entre si, independentemente da causa necessria, e do esprito que as percebe, no haveria Filosofia se o esprito estivesse na impossibilidade de conhecer o que so as coisas em relao a ele que as percebe e causa real que as produz". (Fatos do Esprito Humano. Paris, 1858, pg. 29.) Gonalves de Magalhes permaneceu, no entanto, em um psicologismo vago, sem penetrar no sentido sintetizante ou integralizador do ato espiritual, como fonte constitutiva de valores e matriz de todo conhecimento. Para mais apropriado estudo da faculdade sintetizadora e simbolizante do esprito, vide nosso livro Experincia e Cultura, cit., pgs. 43 e segs., e passim.

Poder-se-ia pensar em distinguir Filosofia e cincia segundo os nexos que ambas tm em vista, dizendo-se que a cincia explica os fatos segundo seus enlaces causais, "explica" no sentido de que "estende", "desenvolve", torna "explcitos" os elementos implcitos que observa, determinando relaes constantes de coexistncia e de sucesso. Na realidade, porm, h cincias, como as culturais, que tambm no se limitam a explicar, e s se realizam graas compreenso, o que quer dizer, em virtude de subordinar os fatos a elementos teleolgicos, apreciando-os em suas conexes de sentido. O que se d com a Filosofia que esta representa uma compreenso total: no ordena os fatos e os compreende segundo este ou aquele setor de fins, mas em sua referibilidade axiolgica total, segundo critrios unitrios, atendendo unidade do sujeito e unidade da "situao do sujeito", em uma totalidade de conexes de sentido. prprio, pois, da Filosofia este "saber de compreenso total" merc do qual a realidade situada em uma cosmoviso fundamental.

A distino, ora lembrada, entre "explicao" e "compreenso", fundamental, a nosso ver, para a Filosofia e as cincias sociais, de maneira que dela cuidaremos em lugar oportuno.

7. Dissemos que o positivismo, no obstante as vrias modificaes que apresenta, distingue-se por conceber a Filosofia como algo de essencialmente ligado ao problema da cincia positiva, com a qual, praticamente, se confundiria. A corrente positivista, em nossos dias, adquire, como vimos, uma expresso diversa, sob a forma do neopositivismo que se conserva fiel tese de subordinao da Filosofia s cincias fsico-matemticas ou emprico-formais, embora j no pense em transformar a Filosofia em uma Enciclopdia das cincias, ou estas em Filosofia.

A bem ver, um dos propsitos da Filosofia no alcanar uma "sntese das cincias", talvez irrealizvel, mas sim uma concepo unitria da cincia, o que j foi afirmado por Aristteles e da tradio dos estudos, assistindo, porm, razo a Husserl quando observa que essa tarefa s possvel superando-se a concepo acanhada e fragmentria que os positivistas tm da realidade.

A falha do positivismo comea quando pensa atingir a sntese cientfica aceitando os resultados das cincias como ponto de partida. Alm da necessidade j assentada de um critrio de valor para ordenar as explicaes parciais do real, acresce que os resultados mesmos so suscetveis de dvida, pondo o problema de sua validade intrnseca. Todos os resultados que a Cincia nos oferece sero sempre vlidos? Quantas e quantas vezes a Cincia no nos apresenta concluses provisrias, precrias e, at mesmo, precipitadas!

A Filosofia, para ser fiel s conquistas do saber cientfico, deve ser, antes de mais nada, uma crtica da prpria cincia, das condies de sua certeza. Se pretendemos integrar em unidade as diferentes formas de conhecimento, essa integrao pressupe critrios de apreciao e de estimativa, e, mais precisamente, uma indagao sobre a validez universal das cincias e de seus pressupostos lgicos.

Donde se deve concluir que a especulao filosfica sempre de natureza crtica, visando a atingir o valor essencial sobre aquilo que se enuncia sobre os homens e as coisas, e dos atos. Assim sendo, implica, segundo certo prisma, uma considerao de natureza axiolgica, o que quer dizer, uma teoria do valor, a comear pelo problema da validade do conhecimento em geral.

Quando filosofamos, estamos sempre indagando do valor de algo. Poderamos mesmo dizer que a Filosofia tem como problema central o problema do valor '.

2. Nesse sentido, v. Miguel reale, Pluralismo e Liberdade, So Paulo, 1963, pgs. 31 e segs. e Experincia e Cultura, cit., sobretudo no captulo VII intitulado "Valor e experincia", pgs. 171 e segs.

Esta afirmao cresce de ponto em face da pretenso fundamental dos neopositivistas de que "a significao de qualquer enunciado est na dependncia de sua verificao mediante dados de fato". Como foi notado no seio da prpria doutrina do positivismo lgico, essa exigncia de verificao emprica insuscetvel de verificao emprica... At agora no se logrou verificar experimentalmente a verdade do princpio segundo o qual s so verdadeiras as proposies analticas ou as experimentalmente verificveis. Se assim, devemos concluir que h algo cuja validade suposta antes da indagao ou da pesquisa cientfica como condio da validade do processo experimental: certo critrio axiolgico est sempre implcito na investigao cientfica, delimitando o campo de seus resultados.

Teoria do Conhecimento: Lgica e Ontognoseologia

8. Do exposto j decorre que um dos problemas fundamentais da Filosofia consiste na indagao do valor do pensamento mesmo e do valor do verdadeiro. bvio que, se existem as cincias, porque possvel conhecer. Se existem a Matemtica, a Fsica, a Biologia etc., porque o homem tem uma conformao tal que lhe dado conhecer a realidade com certa margem de segurana e objetividade, demonstrando o poder inerente ao esprito de libertar-se do particular e do contingente, graas s snteses que realiza.

Ora, o valor do conhecimento pode c deve ser apreciado em dois planos distintos: o transcendental c o emprico-positivo. este condicionado por aquele. As condies primordiais do conhecimento so objeto da parte da Teoria do Conhecimento que denominamos Ontognoseologia. por motivos que logo mais aduziremos, dada a correlao essencial que a priori se pe. em sua universalidade, entre o sujeito que conhece c o objeto do conhecimento em geral.

Essas condies a priori do conhecimento constituem a base dos estudos lgicos positivos, isto , das pesquisas relativas validade formal das proposies, abstrao feita das coisas mencionadas (Lgica