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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DISCIPLINA DE TEORIA DO ESTADO – PROF. RICARDO FONSECA MESTRANDO ANDERSON PRESSENDO MENDES FICHAMENTO – 5ª SESSÃO REFERÊNCIA: COSTA, Pietro. Democracia política e Estado constitucional. In: COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 241-274. 1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS De forma introdutória, Pietro Costa esclarece que o ensaio terá por objeto a investigação da relação histórica entre democracia política e Estado constitucional, e será apresentado em duas partes: i) a primeira sobre as tradições histórico-culturais que deram lugar ao que hoje se chama de estado constitucional; e ii) a segunda parte analisará se este conceito ainda mantém as tensões que caracterizavam seus componentes originários. 2. VOLUNTAS E RATIO Segundo Pietro Costa, a “democracia constitucional” da segunda metade do século XIX pode ser vista como uma tentativa de solução da tensão entre poder e direito, que atravessou por séculos a cultura político-jurídica ocidental.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

SETOR DE CINCIAS JURDICAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

DISCIPLINA DE TEORIA DO ESTADO PROF. RICARDO FONSECA

MESTRANDO ANDERSON PRESSENDO MENDES

FICHAMENTO 5 SESSO

REFERNCIA: COSTA, Pietro. Democracia poltica e Estado constitucional. In: COSTA, Pietro. Soberania, representao, democracia: ensaios de histria do pensamento jurdico. Curitiba: Juru, 2010, p. 241-274.

1. NOES INTRODUTRIAS De forma introdutria, Pietro Costa esclarece que o ensaio ter por objeto a investigao da relao histrica entre democracia poltica e Estado constitucional, e ser apresentado em duas partes: i) a primeira sobre as tradies histrico-culturais que deram lugar ao que hoje se chama de estado constitucional; e ii) a segunda parte analisar se este conceito ainda mantm as tenses que caracterizavam seus componentes originrios.2. VOLUNTAS E RATIOSegundo Pietro Costa, a democracia constitucional da segunda metade do sculo XIX pode ser vista como uma tentativa de soluo da tenso entre poder e direito, que atravessou por sculos a cultura poltico-jurdica ocidental. Nota o autor italiano que, se de um lado, antiga e recorrente a celebrao de um poder supremo e irresistvel, de outro, so igualmente numerosas as manifestaes da exigncia oposta, isto , de conter o poder, de vincular a voluntas a uma ratio.

No medievo, o soberano representava o vrtice de uma pirmide de poderes, de uma ordem j estabelecida, natural, que coincidia com a prpria natureza das coisas. O soberano no criava a ordem, mas a conservava, tutelava, e se arbitrariamente tentasse alter-la, degener-se-ia em um tirano.

Segundo COSTA, com o advento da modernidade que a imagem de soberania se modifica, tomando a forma representada pelas ideias de Hobbes, vale dizer, da vontade soberana do Estado prevalecendo ao direito, na medida em que o soberano quem cria a ordem, constituindo seu pice, sem controle, como pressuposto de conteno do conflito dos homens e garantia da paz. No sentido contrrio, Coke defende que mesmo o Estado deveria observar a historicidade de um sistema construdo atravs dos sculos pela razo jurdica (common law).A seu turno, Locke, baseando-se em tendncias jusnaturalistas, tambm se ope ausncia de limites do soberano, sustentando que os direitos de propriedade e liberdade do indivduo transcendem ordem posta, remanescendo imunes ao arbtrio Estatal.

Pietro Costa finaliza este tpico ressaltando que, nesse perodo, a vontade onipresente do soberano dominou o cenrio, constituindo um campo de tenso permanente entre a voluntas do soberano e a ratio de uma ordem objetiva e no subjetiva fundada na racionalidade e resguardada pelo poder judicirio.3. O PODER DO DEMOS E OS DIREITOS DOS SUJEITOS: UM MODERNO CAMPO DE TENSO

Pietro Costa, em seu exame histrico do conceito de democracia, evidencia que, j em Aristteles, tal termo era utilizado como sendo um regime desequilibrado, caracterizado pelo predomnio de muitos (pobres) sobre poucos (ricos), sob o argumento de que os muitos so sempre expostos ao risco de formar uma massa anrquica irracional refratria a qualquer vnculo e ordem (p. 245).

Em busca de uma viso alternativa, Pietro Costa recorre ao pensamento de Marsilio di Padova, para quem o povo governa a si mesmo atravs das leis que ele se d (p. 246). A democracia, portanto, coincide com o autogoverno de um povo no considerado como a integralidade de indivduos, mas como uma entidade coletiva diferenciada dos demais indivduos. A seu turno, segundo Pietro Costa, Spinoza e Rousseau definiro a soberania do povo de forma plena e incondicionada, de modo que os direitos naturais, quando transformados em direitos civis, ao contrrio de perderem importncia, adquirem fora, ganhando com isso a exigibilidade que lhes faltava.Na Frana, o tema tratado pelas ideias de Sieys, que pensa de forma diametralmente oposta a Rousseau, na medida em que para este a representao aliena a liberdade poltica, e, para aquele, constitui a nica realizao possvel da democracia.Pietro Costa nota que, a partir de ento, passa-se a ter a crena de que a soberania popular no pode ser condicionada pela experincia do passado ou por uma ordem anterior, sendo ela prpria capaz de moldar o mundo e o direcionar no caminho de uma crescente civilidade. Emblemtico, nesse sentido, o pensamento de Thomas Jefferson, em que se toma a democracia como o poder de um povo livre que constitui para si prprio uma ordem sem vnculos ou condicionamentos.Nesse panorama, tem-se o seguinte cenrio: i) de um lado, o poder constituinte reconhece como povo a soma dos indivduos juridicamente iguais; ii) de outro, os direitos naturais so assumidos como fundamento da nova ordem, transformados em direitos fundamentais e com ntima relao com o poder. A constituio no se limita a organizar a sociedade, devendo faz-lo de em torno dos direitos fundamentais dos sujeitos. Sobre esta base, possvel afirmar a existncia de uma relao de substancial continuidade entre o constitucionalismo do fim do sculo XVIII e constitucionalismo da segunda metade do sculo XX.Ento, aparecem dois elementos de tenso: i) em primeiro lugar, embora a soberania do povo no admita limites ou obstculos, nem mesmo da constituio elaborada por geraes passadas, apresenta os direitos fundamentais como inegociveis e irredutveis, existindo, portanto, dois campos absolutos que geram uma tenso no facilmente solucionvel; ii) em segundo lugar, ao se garantir os direitos civis de forma universal no o faz em relao aos direitos polticos, estes reservados aos proprietrios, constituindo, em verdade, uma aristocracia proprietria. Segundo Pietro Costa, tal distino entre direitos civis e polticos faz com que a prpria afirmao do princpio da igualdade no tenha relao com a igualdade poltica ou social, pois somente a igualdade formal seria compatvel com a liberdade, sob pena de se permitir uma anarquia popular.A democracia, assim, enquanto forma de igualdade poltica dos sujeitos, seria incompatvel com a liberdade. A democracia poltica entrega por vias legais o poder a uma maioria que, destruindo a liberdade-propriedade, acaba com os fundamentos da ordem civil. Esse o recorrente pesadelo de tantos liberalismos oitocentistas: a tirania da maioria (p. 953).4. COMO DEFENDER DO PODER O SUJEITO: A TEORIA DO ESTADO DE DIREITO

Neste tpico, Pietro Costa desenvolve, basicamente, a ideia de que o poder soberano do povo ps em xeque a liberdade-propriedade, na medida em que a vontade tirnica da maioria poderia aniquilar os princpios balisadores da ordem racionalmente criada (civilizada). Surge, ento, para o autor italiano, a necessidade de compatibilizar a democracia com os direitos fundamentais, manifestando-se em dois momentos: i) a primeira tentativa de compatibilizao aparece no terreno da poltica: bastaria defender um nexo entre propriedade e direitos polticos para se combater o sufrgio universal; ii) a segunda soluo surge nos Estados Unidos, onde mesmo se reconhecendo uma soberania popular, confia-se a tutela dos direitos fundamentais (liberdade-propriedade) a um rgo jurisdicional. Essa soluo, no entanto, segundo Pietro Costa, por derivar da common law inglesa, no encontrou suporte to facilmente na Europa continental. Nessa ltima, a tenso entre democracia e direitos fundamentais se d no ambiente de conflito entre dois elementos caractersticos da cultura oitocentista: i) a centralidade do Estado-nao e sua soberania, que define a ordem por meio da manifestao de sua soberania pela lei; e ii) o enfraquecimento da posio dada aos direitos no sistema poltico-jurdico como um todo, na medida em que estes perdem o amparo da doutrina jusnaturalista e agora coincidem direta ou indiretamente - com a vontade estatal. Nesse sentido, os direitos no figuram como resultado de uma ordem metaestatal, no remetem a um plano de existncia inequivocamente outro que no o prprio plano estatal.Porm, questiona-se Pietro Costa: como, ento, defender as prerrogativas dos sujeitos sem cair na arcaica, inapresentvel metafsica jusnaturalstica, sem sair do horizonte estatal? A resposta para a questo constitui a construo do Estado de direito. O desafio que passa a se apresentar na Europa continental consiste em encontrar um mecanismo que permita a proteo dos sujeitos sem inferir o axioma da soberania absoluta do Estado. Uma primeira alternativa a tal desafio dada por Ihering e Jellinek, ao defenderem a autolimitao do Estado, ou seja, o Estado decide livremente se autolimitar, atravs do direito por ele prprio criado, tornando possvel o controle jurisdicional de sua atividade e a tutela dos direitos do cidado. O problema que surge, com essa tese, segundo Costa, que o prprio Estado pode revogar os limites anteriormente colocados. Alm disso, apenas a atuao administrativa do Estado (Estado administrao) estaria sujeita ao controle pelo judicirio, no a atuao legislativa, que represente a exteriorizao de sua soberania. Assim, quando est em jogo o Estado como tal, continua a ser afirmada, pela maioria da doutrina, a tese da constitutiva resistncia do soberano a qualquer vnculo ou limite jurdico. A legislao, concebida como expresso tpica da soberania, continua a ser absoluta.Kelsen, a seu turno, estabelece um novo elemento a este conflito, ao contestar a posio do Estado: para o autor austraco, o Estado no um ente real, no um sujeito pertencente ao mundo do ser que se relaciona com os indivduos, mas uma criao, um ordenamento (dinmico), um aparato normativo pertencente ao mundo do dever-ser. Estado e direito coincidem. Segundo Costa, o grande mrito de Kelsen foi ter apresentado a lei no mais como vrtice do sistema (como era na forma de exteriorizao da soberania), mas que se submete a uma norma superior, a constituio (concepo dinmica do ordenamento), permitindo assim o controle de tal conformidade hierrquica pelo poder judicirio.

5. COMO DEFENDER DO TOTALITARISMO OS SUJEITOS: A DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL

Pietro Costa indaga: at que ponto o modelo kelseniano permite compatibilizar a democracia o estado constitucional? Antes de responder, Pietro Costa ressalta dois traos caractersticos do modelo kelseniano: i) o rigor formal, que exclui qualquer trao da anterior concepo de direitos que possam ser buscados fora do ordenamento; e ii) que uma maioria qualificada poder alterar a constituio. Desses pontos se infere que o modelo kelseniano no suficiente a resolver a tenso entre democracia e estado constitucional, ao passo que apenas coloca tal tenso em um patamar mais elevado: o da constituio.

Kaufmann evidencia que no possvel solucionar o conflito com base em um formalismo que remeter a infinitos nveis normativos, sendo necessrio, ao revs, construir um fundamento substantivos que possam ser opostos ao poder legislativo, o que faz ao consagrar a historicidade de uma estrutura social constante.

O totalitarismo das experincias alem italiana da dcada de 30 demonstrou a fora perigosa do poder quando mal utilizado, pois evidenciou que os vnculos formais no eram suficientes para garantir os direitos dos cidados. Neste contexto, na cultura constitucionalista do ps guerra, so os direitos subjetivos que adquirem central relevncia, propondo uma nova forma de pensar a posio ocupada pelos direitos, tanto na ordem nacional como internacional. Os direitos passam a ser reconhecidos como pertencentes a uma realidade ontolgica, para alm dos limites da atuao do Estado.

O autor italiano conclui que esta nova forma de pensar uma homenagem ao modelo de Kelsen, reconhecendo a hierarquia das normas e o controle de constitucionalidade das leis. De outro vrtice, demonstra que a soluo do jurista austraco no poderia prevalecer, ante o risco da manipulao dos direitos fundamentais por uma maioria qualificada, mesmo em nvel constitucional.6. COMO DEFENDER DA DEMOCRACIA A CONSTITUIO: OS PRINCPIOS INDECIDVEIS

Pietro Costa nos demonstra que o constitucionalismo do ps-guerra ainda teve de lidar com a exigncia de se conceder aos direitos fundamentais um carter meta ou transestatal. Nessa ordem, os princpios e direitos fundamentais se encontravam como fundamento infundado da prpria ordem. De um lado, no eram direitos morais ainda no positivados, mas pelo contrrio, eram direitos reconhecidos e positivados na constituio. Deixam, no entanto, de ser apenas garantias individuais para se tornar, a partir do prprio sistema, princpios gerais e norteadores de como o Estado deve ser, de que direitos ainda no garantidos devero vir a ser assegurados aos indivduos (normas programticas)

Costa nota, a propsito, que, nos anos 60, tais princpios e garantias fundamentais tornam-se ainda a referencia obrigatria para a interpretao e aplicao de todas as normas jurdicas, independente do nvel hierrquico em que se encontrem.

A questo que continuava pendente de soluo era como compatibilizar o princpio democrtico com a segurana dos direitos fundamentais. Na Itlia, por exemplo, adotou-se a tcnica das clusulas ptreas, que, dotadas de maior rigidez, no admitem alterao pelo poder constituinte derivado. E no apenas clusulas ptreas positivadas, mas uma rigidez da constituio em seu carter material, como todos aqueles princpios implcitos que pertencem essncia dos valores em que se fundam a constituio.

Segundo o autor italiano confere-se, pois, aos princpios e direitos fundamentais um estatuto que os coloca acima da vontade dos poderes polticos, carecendo de soluo, porm, uma forma de controle em relao ao poder constituinte originrio.

7. AS METAMORFOSES DA DEMOCRACIA: DO DEMOS S ELITES

Pietro Costa cita, neste captulo, as concepes de democracia de Friedrich Hayek, Max Weber, Kelsen, Dahl.

Especificamente em relao ao ltimo, Costa nota o carter essencialmente pluralstico da democracia, pois Dahl frisa que no existe um povo unitariamente considerado, com uma vontade geral, mas sim um conjunto de grupos de interesses, separados e mesmo conflitantes entre si, que constituem o processo decisrio complexo. A democracia no uma vontade uma, mas sim a vontade resultante da interao entre esses diversos grupos de interesse, semelhantemente a uma poliarquia.

Dessa forma, configurando a democracia um inegvel pluralismo de grupos sociais, ela coincide com a multiplicidade de foras e interesses livremente integrados que acabam por constituir a constituio material. O que antes pode ter sido um risco ao Estado de direito, hoje a democracia, sob esse modelo plural, se mostra um trao caracterstico do estado constitucional (de direito). No h mais, segundo Costa, a partir desta constatao, a antiga tenso entre democracia e estado constitucional.

8. AS METAMORFOSES DO CONSTITUCIONALISMO: COMO DEFENDER OS PODERES DA DEMOCRACIA

Demonstrada essa nova configurao da democracia, harmnica ao estado constitucional, o autor italiano se questiona, em arremate, se ainda sobrevivem caracteres do significante de democracia do sculo XVIII, ao que responde positivamente. O historiador italiano chega concluso que, de um lado, ainda se mantm a concepo pela qual a democracia se realiza nos indivduos (que unidos constituem o povo) e so eles o centro do ordenamento democrtico, e, de outro lado, essa democracia, ganhou no sculo vinte seu contorno plural, de vrios grupos de interesse, como instrumento de tramite da participao poltica dos sujeitos.

Duas complicaes surgem, contudo, em relao a essa nova configurao: i) primeiro, o fato de ser uma democracia que deixou de se realizar pela participao igualitria dos sujeitos para se tornar uma democracia de participao dos grupos polticos; ii) segundo, por ter adquirido um carter transnacional, mesmo global. Desse cenrio, poder-se-ia cogitar se no estaramos retornando ao paradigma da tenso entre democracia e estado constitucional. Porm, tal afirmao no se sustenta, pois os novos poderes (ordem transnacional) no so a expresso de um conjunto de ordenamentos que constitua um povo. H apenas um conjunto de destinatrios, mas que no se enquadra de forma alguma no sujeito da democracia.

Segundo Costa, h que se pensar tambm na questo da politizao dos tribunais.