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“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês”: uma crítica ferrenha à sociedade Natalia A. C. BISIO 1 Raquel de Lima TURCI 2 Resumo Este trabalho tratará dos poemas “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, de Gregório de Matos, e “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, com o principal objetivo de demonstrar como dois textos de diferentes épocas tratam de um assunto universal, porém de maneiras distintas. O intuito é comparar esses poemas, observando as diferenças e semelhanças existentes na abordagem do tema, a partir da análise de aspectos formais e semânticos, enfim, compreender o fazer poético de um texto mais distante da contemporaneidade e outro mais próximo. Palavras-chave: Barroco. Modernismo. Literatura comparada. Análise de poemas. Abstract This study presents the poems "Neste mundo é mais rico, o que mais rapa" by Gregorio de Matos, and "Ode ao burguês", by Mário de Andrade, in which the main objective is to demonstrate how two texts from different periods address a universal subject, but in different ways. The aim is to compare these poems, noting the differences and similarities in approach to the subject, based on the analysis of formal and semantic aspects, finally, understand the the poetic creation in a text distant from contemporaneity and a modern text. Keywords: Baroque. Modernism. Comparative literature. Analysis of poems. 1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara (UNESP), orientanda da Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite. CEP: 14800-721, Araraquara, São Paulo; e-mail: [email protected] 2 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara (UNESP), orientanda da Profª Drª Letícia Marcondes Rezende. CEP: 14050-010, Ribeirão Preto, São Paulo; e-mail: [email protected]

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“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês”: uma crítica

ferrenha à sociedade

Natalia A. C. BISIO1

Raquel de Lima TURCI2

Resumo

Este trabalho tratará dos poemas “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, de

Gregório de Matos, e “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, com o principal objetivo

de demonstrar como dois textos de diferentes épocas tratam de um assunto universal,

porém de maneiras distintas. O intuito é comparar esses poemas, observando as

diferenças e semelhanças existentes na abordagem do tema, a partir da análise de

aspectos formais e semânticos, enfim, compreender o fazer poético de um texto mais

distante da contemporaneidade e outro mais próximo.

Palavras-chave: Barroco. Modernismo. Literatura comparada. Análise de poemas.

Abstract

This study presents the poems "Neste mundo é mais rico, o que mais rapa" by Gregorio

de Matos, and "Ode ao burguês", by Mário de Andrade, in which the main objective is

to demonstrate how two texts from different periods address a universal subject, but in

different ways. The aim is to compare these poems, noting the differences and

similarities in approach to the subject, based on the analysis of formal and semantic

aspects, finally, understand the the poetic creation in a text distant from

contemporaneity and a modern text.

Keywords: Baroque. Modernism. Comparative literature. Analysis of poems.

1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara – (UNESP), orientanda da Profª Drª Guacira Marcondes

Machado Leite. CEP: 14800-721, Araraquara, São Paulo; e-mail: [email protected] 2 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual

Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara – (UNESP), orientanda da Profª Drª Letícia

Marcondes Rezende. CEP: 14050-010, Ribeirão Preto, São Paulo; e-mail: [email protected]

1. A comparação entre textos

A literatura está em perigo, como afirmou Todorov (2009) em seu trabalho do

início do século XX, pois lhe foi tirado o poder de participar da formação cultural dos

indivíduos da sociedade. Em meio à problemática que envolve o ensino dos estudos

literários, como o trabalho privilegiado da crítica e das teorias, o ensaísta búlgaro

também comenta o fato de a literatura ser apresentada aos alunos por meio da história

literária, e não dos textos artísticos propriamente ditos. Além disso, tal concepção de

história é marcada pela lógica de linearidade e causalidade, de modo que os movimentos

literários se sucedem uns aos outros, seguindo a ideia de antes e depois, em uma

concepção progressista, como se os textos ficassem ilhados em cada período literário,

sem relação uns com os outros.

Leyla Perrone-Moisés (1990) coloca-se contra o conceito de uma história linear

e causalista para os estudos da literatura: “Em arte não há progresso, não há avanço, em

termos de valor. [...] a arte, e em particular a literatura, não tende a produzir um

concerto harmonioso, [...] mas uma função crítica, contestadora, e uma função

dilacerada em todos os níveis” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 93). A partir dessa ideia,

a estudiosa discute a essência da literatura comparada, partindo das teorias do

dialogismo de Bakhtin e da intertextualidade de Júlia Kristeva, em que ambos veem a

literatura como um sistema de trocas; dos estudos de Tiniánov e de Borges sobre a

evolução literária e a tradição; e das ideias da Antropofagia cultural de Oswald de

Andrade. Assim, Leyla Perrone-Moisés chega à seguinte afirmação:

A literatura comparada não só se produz num constante diálogo de

textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da

literatura; cada obra nova é uma continuação, das obras anteriores, dos

gêneros e temas já existentes. Escrever é pois dialogar com a literatura

anterior e com a contemporânea” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94).

É, assim, a partir dessa ideia de diálogo entre as artes que se fundamenta este

trabalho. Pretende-se comparar os poemas “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”

de Gregório de Matos, escrito no século XVII, e “Ode ao burguês”, de Mario de

Andrade, escrito no século XX, de modo que se perceba como um tema comum em

ambas as obras, a forte crítica a certas mazelas humanas – como o egoísmo, a ganância,

a falsidade e a futilidade –, é trabalhado segundo as características próprias de seu

contexto histórico e literário, porém sem perder sua universalidade.

Além da semelhança temática entre ambos os textos, pode-se também encontrar

pontos de intersecção no fazer poético de duas épocas tão distantes historicamente,

como o florescer de uma literatura brasileira mais autônoma, que, embora, nos dois

casos, tenha se inspirado em movimentos advindos da Europa, fala de assuntos de sua

própria pátria e demonstra por meio de seus processos formais o surgimento de uma

consciência criadora nacional.

2. “Boca do Inferno”

A obra de Gregório de Matos (1636-1696) tornou-se um dos grandes paradigmas

da poesia barroca no Brasil e, segundo Massaud Moisés (2001), a literatura brasileira

floresce com a estética barroca. Ecos do Barroco europeu vieram para o Brasil nos

séculos XVII e XVIII representados não só por Gregório de Matos, mas também

Botelho de Oliveira, Frei Itaparica, entre outros. “O atrito entre os valores importados e

as sugestões libertárias oriundas de um solo ainda inóspito, onde começava a florescer

uma sociedade com pruridos de autonomia, constitui a grande marca da nossa literatura

colonial” (MOISÉS, 2001, p. 80). Em um período muito importante na história da

formação não só de uma literatura, mas de uma consciência nacional, eis a importância

de um poeta de alto nível artístico como Gregório de Matos.

Os contrastes de sua produção literária são muito acentuados: desde a sátira mais

irreverente até o pesar do poeta devoto. De acordo com Bosi (2006), tais contradições

ocorrem devido à ambiguidade da vida moral existente como pano de fundo da

educação ibero-jesuítica, em que a retórica nobre e moralizante mascarava o desejo pela

riqueza e pelo gozo. É por isto que, em sua sátira, Gregório de Matos faz uso de um

vocabulário popular e, muitas vezes chulo, sendo chamado de “Boca de Inferno” por

conta da sua língua viperina que visava atingir autoridades da colônia, escravos, além de

direcionar-se a todas as classes da nova sociedade, de preferência aos fidalgos

“caramurus” – referindo-se à mestiçagem –, aos senhores de engenho e ao novo

mercador lusitano, ávido por lucro.

“Seus poemas satíricos constituem um vasto painel das mazelas da sociedade

baiana do tempo” (MOISÉS, 2001, p. 96). Neles, “a virulência atinge o ápice em

poemas que podem ser considerados as suas obras-primas no gênero, quer como

denúncia social, quer como invenção poética” (MOISÉS, 2001, p. 97), como por

exemplo o soneto “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, que será analisado mais

adiante. A respeito da sua poesia sacra, Gregório era tão religioso quanto libertino. Tal

paradoxo representa o estilo barroco. Já na poesia lírica, escreve peças de amor, também

consideradas como obras-primas por Massaud Moisés (2001), sendo muito influenciado

por Camões quanto à descrição de seus sentimentos amorosos. A força artesanal em

Gregório é evidente. “Alguns de seus sonetos sacros e amorosos transpõem com brilho

esquemas de Góngora e de Quevedo e valem como exemplo do gosto seiscentista de

compor símiles e contrastes para enfunar imagens e destrinçar conceitos” (BOSI, 2006,

p. 39).

Segundo Moisés (2001), a poesia gregoriana possui um arsenal metafórico,

porém usado com discrição, e um jogo de palavras, ambas características típicas do

Barroco. o autor utilizou-se também de trocadilhos, de rupturas de palavras no fim dos

versos, “de um recurso formal que consiste em compor o poema com palavras

terminadas em idêntico fonema” (MOISÉS, 2001, p. 94). Um novo recurso utilizado

pelo poeta nesses anos de triunfo do cultismo ibérico foi a miscigenação da língua tupi –

e, em menor escala, da língua africana – com sua dicção barroca.

Apesar de serem exemplos formais, Gregório não deixa de demonstrar uma

temática que apresentava sua visão de mundo e da vida e suas vinculações conceptistas.

Por tratar da experiência cotidiana, “os poemas gregorianos equivalem a páginas dum

diário, nada íntimo, levando em consideração a vida libertina do poeta e o teor histórico

e social das confidências” (MOISÉS, 2001, p. 95).

Segundo Bosi (2006),

Em toda sua poesia o achincalhe e a denúncia encorpam-se e movem-

se à força de jogos sonoros, de rimas burlescas, de uma sintaxe

apertada e ardida, de um léxico incisivo, quando não retalhante; tudo o

que dá ao estilo de Gregório de Matos uma verve não igualada em

toda a história da sátira brasileira posterior (BOSI, 2006, p.40).

Moisés (2001) também expõe uma ideia semelhante à de Bosi quando afirma

que Gregório de Matos, “[...] dentre os poetas do tempo, em língua portuguesa, ninguém

se lhe iguala, e em outras literaturas poucos se lhe equiparam em talento genuíno, em

valor e em largueza de visão de mundo”. (MOISÉS, 2001, p. 110).

Enquanto Gregório viveu, seus poemas circulavam de mão em mão, de forma

manuscrita, ou de maneira oral. Suas obras foram publicadas apenas no século XX,

entre 1923 e 1933, pela Academia Brasileira de Letras, nos seis volumes a seguir: Sacra,

referente aos poemas religiosos; Lírica, reunindo os poemas lírico-amorosos; Graciosa,

com os poemas que exploram o humor; Satírica, contendo os poemas que exploram a

sátira (portanto, é aqui que se encontra o soneto em análise); Última, em que há poemas

de várias temáticas. A publicação da coletânea da Academia assim se organiza devido

às várias configurações poéticas gregorianas, como a lírica, a sacra e a satírica.

Posteriormente, os poemas gregorianos foram publicados em outras obras de reunião de

poemas, como por exemplo, Poemas escolhidos, organizado por José Miguel Wisnik.

3. A flor baixa se inculca por Tulipa: a crítica à sociedade colonial

“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:

Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:

Com sua língua ao nobre o vil decepa:

O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:

Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;

Quem menos falar pode, mais increpa:

Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;

Bengala hoje na mão, ontem garlopa:

Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa,

E mais não digo, porque a Musa topa

Em apa, epa, ipa, opa, upa.

(MATOS, 1984. p. 42).

O poema “Neste mundo é mais rico o que mais rapa”, de Gregório de Matos, já

deixa evidente, mesmo em uma primeira leitura desavisada, tanto a forma bem

trabalhada que apresenta, quanto a crítica mordaz feita à sociedade de sua época: a do

Brasil colônia no século XVII.

Constituindo-se soneto, forma clássica muito utilizada pelo barroco, apresenta

uma estrutura fixa, composta por dois quartetos seguidos de dois tercetos. A métrica

apresentada pelo autor também é rígida, pois o soneto todo é composto em versos

decassílabos.

Além disso, Gregório de Matos não deixa por menos ao compor as rimas de seu

poema. Observam-se, nas duas primeiras estrofes, rimas soantes interpoladas e

emparelhadas ABBA, como é percebido em “rapa”, “carepa”, “decepa”, “capa” e

“mapa”, “trepa”, “increpa” e “Papa”. E, nos dois últimos tercetos, pode-se verificar que

as rimas são soantes e intercaladas CDECDE, com “Tulipa”, “tripa”; “garlopa”, “topa”

e “chupa”, “upa”.

Além dessas rimas verificadas ao fim de cada verso, o poema é extremamente

trabalhado do ponto de vista sonoro ao apresentar também: rimas toantes, como as

encontradas em “língua” e “limpo”; um vasto número de aliterações com a consoante p

– “patife”, “pode”, “Papa” – ou com o som tr – “tropa”, “trapo”, “tripa” –, por exemplo;

assonâncias como em “trepo”, “trapo” e “dinheiro”, “ligeiro”; e uma anáfora,

encontrada na segunda estrofe com o termo “Quem”.

Como ocorre em todo bom poema, os aspectos formais até agora apresentados

são estruturados de tal forma que contribuem para a construção do sentido do texto. Os

sons de que o poeta mais se utiliza para construir o estrato sonoro de sua poesia são

secos, travados e fortes, constituídos principalmente pelas vogais orais /a/ e /ε/, e por

consoantes oclusivas, bilabiais surdas e alveolares vibrantes antecedidas por oclusivas,

repetindo, desse modo, várias vezes os /p/, /t/, /k/, /t/, /bɾ/, /tɾ/.

Tal uso denota rigor, severidade e intensidade na fala do eu lírico, além de

transmitir a sensação da presença de afirmações incisivas e de ideias fortes, definidas e

persistentes, dando ao estrato sonoro, desse modo, o tom agressivo utilizado pelo autor

no poema todo.

A linguagem adotada pelo poeta é satírica, portanto, também agressiva. Com um

vocabulário chulo – no qual são encontrados termos como “chupa”, “tripa” e “patife” –

que contém somente artigos definidos, tudo é bem claro e determinado, não ficando nas

entrelinhas a quem o ataque dirige-se, fazendo com que o poema seja curto e grosso,

sem cuidados ou delicadezas.

Porém, ao mesmo tempo em que se utiliza de disfemismos, o texto é

barrocamente engenhoso ao não nomear os objetos, apresentando um bom arsenal

metafórico e fazendo trocadilhos, como o encontrado no último verso “Em apa, epa, ipa,

opa, upa”.

A engenhosidade é também percebida na incorporação de antíteses como

nobre/vil, limpo/sujo e elevado/baixo, que perpassam todo o poema a fim de representar

a contradição existente entre aparência e realidade, e na apresentação de uma sintaxe

apertada, ardida, repleta de correlações, verificadas, por exemplo, nos 2º e 6º versos,

“Quem mais limpo se faz, tem mais carepa”, “Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa”.

Tudo isto é feito pelo autor a fim de que formalmente se consiga construir e

reforçar aquilo que também transmite com maestria ao leitor no plano dos sentidos: a

crítica ferina de sua sociedade.

Assim, é possível notar que, de maneira ácida, agressiva e bem construída, o

poema fala sobre a encenação social e a forma questionável de enriquecimento

encontrada no país, principalmente na sociedade baiana, à qual pertencia o poeta. Logo

na primeira estrofe, já é dito que os mais ricos são os que roubam: “Neste mundo é mais

rico, o que mais rapa” e que o “Velhaco” sempre tem proteção, “capa”.

A crítica à encenação social é encontrada também nessa primeira estrofe, pois

aquele que se apresenta como alguém muito limpo, que fala nobremente, em realidade,

é sujo e “vil”, tendo inclusive mais “carepa”, ou seja, caspa. Ao observar-se com

atenção essa estrofe, é possível reparar que a sujeira nela explicitada pode ser de caráter

tanto físico quanto moral, quando se pensa em alguém muito preocupado com a

aparência e com a vida social, mas que tem pouca moralidade.

A partir do que é apresentado nessa primeira estrofe, o ataque à sociedade

persiste durante todo o soneto, sempre em tom intenso e agressivo por meio da sátira

construída com seu vocabulário chulo e sua sonoridade seca. Percebe-se que a crítica

sobre o enriquecimento questionável dos colonos é reafirmada na segunda estrofe,

enquanto que na terceira é a encenação social que protagoniza. Já o último terceto fecha

o soneto retomando de modo inteligente e sintético tudo o que já foi dito, ao utilizar-se

da estratégia de expor as rimas que perpassaram o poema inteiro: “apa, epa, ipa, opa,

upa”.

Isso posto, ao aprofundar-se a análise da segunda estrofe, observa-se que ela

critica o fato de o “patife” exibir sua genealogia, pretendendo-se nobre, ao mostrar “da

nobreza o mapa”, e revela que as estratégias usadas por algumas pessoas era o roubo:

“Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa”; e, além disso, as de censurar, acusar e

repreender os outros, ao invés de “menos falar”, afinal, não teriam condições morais

para criticar seu próximo. Sendo que é enfatizado de modo contundente o aspecto

corrompido e voltado às aparências da sociedade quando, nessa estrofe, é afirmado que

aquele que tem o dinheiro conseguido por meio da “trepa” consegue até ser “Papa”.

No primeiro terceto, é evidenciado o fato de as aparências serem o que

realmente importa a esta sociedade, pois até “A flor baixa se inculca por Tulipa”.

Ademais, esse verso, juntamente com o que vem em seguida, leva o leitor a pensar

também no quão questionável é a ascensão social da população colonial, sendo que essa

aparente “tulipa”, em seu íntimo, é desonesta e imoral “flor baixa”.

Por fim, o poema é encerrado confirmando e reforçando tudo o que foi dito para

a parcela repulsiva desta sociedade, principalmente quando, em uma grande

manifestação de desprezo pela “tropa do trapo”, o eu-lírico vaza “a tripa”, expressão

que tem o sentido de defecar. Sem contar que ele só não diz mais porque a “Musa” vai

acabar topando novamente com as mesmas situações já descritas, aquelas que o

interessante eco “apa, epa, ipa, opa e upa” retoma na última linha do poema ao utilizar-

se do recurso de quebrar as últimas palavras de cada verso e dispô-las sequencialmente.

Torna-se importante salientar que, nessa última estrofe, é estabelecido também

um jogo com o elevado da épica e o rebaixado da sátira justamente quando é feita

alusão à Musa: inspiração clássica dos poetas para que sejam capazes de cantar a poesia.

Isso se compõe no texto como mais um reforçador das contradições que o perpassam

desde seu início.

Um último fato interessante a ser observado no texto de Gregório de Matos é

que somente as palavras “Velhaco”, “Papa”, “Tulipa” e “Musa” encontram-se escritas

em letra maiúscula no meio dos versos, estabelecendo uma inevitável correlação entre

esses quatro vocábulos. Escritos nessa ordem, um em cada estrofe, permitem o

estabelecimento de mais um reforço engenhoso às ideias desenvolvidas no poema.

Sendo as duas primeiras palavras masculinas e as duas últimas femininas, a relação

entre as duplas formadas é evidente, colocando-as em um mesmo nível, tanto os

velhacos e o papa, quanto a tulipa e a musa. Igualação que faz todo o sentido no texto,

já que os que enriqueceram por meio da velhacaria conseguiriam tranquilamente ser

papa, e a tulipa, flor rara e bela, é da mesma sublimidade da musa, aquela que inspira o

poeta.

4. Um homem moderno

Mário Raul de Andrade nasceu em São Paulo, em 9 de outubro de 1893.

Formou-se no Conservatório Dramático e Musical e, em 1917, estreou com um volume

de poesias chamado Há uma gota de sangue em cada poema, sob o pseudônimo de

Mário Sobral.

Pôs-se à frente da geração que inaugurou o modernismo no Brasil e, com sua

poética, seus “desvairismos” e “antropofagismos”, exerceu grande atividade em favor

dessas ideias – sobretudo no início de tal movimento literário. Quando os anos de 1920-

1921 viviam intensa campanha em favor dos ideais modernistas, Mário de Andrade

escreveu Paulicéia Desvairada, obra que viria a público dois anos depois, após a

Semana de Arte de Moderna, que pode ser considerada como uma “histórica virada de

1922”, segundo Massaud Moisés (2001).

O período anterior a 1922 era chamado de heróico por Mário de Andrade e,

junto a Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, entre outros artistas, sabiam

contra que, ou contra quem se rebelavam “[...] contra o status quo literário reinante no

país [...]” (MOISÉS, 2001, p. 22, grifos do autor).

[...] pode-se perfeitamente localizar em 1922 um divisor de águas:

invadíamos a história moderna, com todas as suas implicações.

Parecia que despertávamos de secular hibernação, em que o nosso

provincianismo ia de mãos dadas com o nosso subdesenvolvimento,

para ingressar na modernidade. [...] Evidentemente, o atraso cultural

não desaparecia como por milagre, mas a partir de 1922 acelera-se o

processo da nossa identidade histórica [...] (MOISÉS, 2001, p. 18).

Como um “homem de 22”, Mário de Andrade viveu com “[...] dramaticidade

uma consciência dividida entre a sedução da ‘cultura ocidental’ e as exigências do seu

povo, múltiplo nas raízes históricas e na dispersão geográfica”. (BOSI, 2006, p.306).

Ainda provou em sua ficção que, felizmente, conseguiu explorar essa multiplicidade.

Ensaísta e ficcionista, crítico de literatura e de música, tratadista e

pesquisador de folclore, poeta e teórico de arte, homem de gabinete

nas suas criações e homem de ação nas batalhas literárias, Mário de

Andrade é um escritor que, na sua múltipla fragmentação, resiste,

entretanto, a ser mutilado (MARTINS, 2002, p.259).

Entre suas obras principais encontram-se: Clã do Jabuti (1927), A escrava que

não era Isaura (1925), Macunaíma (1928), Lira Paulistana (1946), Contos Novos

(1946), O Movimento Modernista (1942). Ao todo, foram mais de 20 publicações, desde

contos a ensaios. Destaca-se de todas Paulicéia Desvairada, obra na qual se encontra o

poema tema de nossa análise, “Ode ao burguês”. Lançada em 1922, deu, assim, “[...] o

arranco inicial nos domínios da criação literária [...]” (MOISÉS, 2001, p. 52).

Segundo Benedito Nunes, em seu trabalho Mário de Andrade: Enfibriaturas do

Modernismo (1984), Pauliceia desvairada foi um grande marco na história da literatura

brasileira, pois “[...] pela primeira vez, frutificou, e até com certo atraso, em nossas

letras e artes, ‘o estado de espírito universal, cujas manifestações mais clamorosas,

cubismo e futurismo, deram seus primeiros vagidos europeus por 1909’” 3 (NUNES,

1984, p. 64). O próprio Mário de Andrade atesta esse atraso quanto às inovações

advindas com os movimentos de vanguarda europeus em seu Prefácio Interessantíssimo

– verdadeiro texto teórico sobre a poesia modernista, em que introduz seu novo “lirismo

desvairado”:

E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais.

Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das

teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si

pretendesse representar orientação moderna que ainda não

compreende bem. (ANDRADE, M., 1966, p.14).

Mário de Andrade também revela em seu prefácio: “Não sou futurista (de

Marinetti) [...] Tenho pontos de contato com o futurismo” (ANDRADE, 1966, p.16).

Assim, o poeta demonstra sua leitura e aplicação dos movimentos vanguardistas

europeus, porém reinterpretando-os segundo sua formação como poeta e criando uma

poesia moderna totalmente brasileira.

Pauliceia Desvairada

[...] teria o destino de fixar não somente os rumos do Modernismo, em

sua primeira fase, mas, também, os estais da carreira literária de Mário

de Andrade: o experimentalismo e o individualismo, que, de resto, ele

compartilhava com todos os seus companheiros de geração

(MARTINS, 2002, p.191).

Tratando-se ainda de sua poesia, São Paulo constitui o ponto de partida de sua

obra poética em Paulicéia Desvairada, e o seu ponto final, em Lira Paulistana. É nessa

última obra, por sua vez, que se encontravam seus poemas mais maduros do ponto de

3 Benedito Nunes cita Mario de Andrade, “Modernismo”, em O Empalhador de Passarinhos (São

Paulo: Martins Editora, s/data), pp. 159-160.

vista estético. Talvez, foi o momento em que o autor pode ser ele mesmo, e como disse

em 1942, fazendo um balanço melancólico do Modernismo, abandonar a ficção em

favor de um homem-de-estudo, que, por natureza, não era.

Com vasta contribuição no cenário artístico e da crítica nacionais, Mário de

Andrade morreu em 1945, deixando para trás sua complexa personalidade literária,

longe de ter nos revelado todos os seus segredos.

5. Ódio ao burguês

“Ode ao burguês”

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!

que vivem dentro de muros sem pulos;

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês

e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!

"– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

– Um colar... – Conto e quinhentos!!!

Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,

sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

(ANDRADE, 1987. p. 88-89)

Vaias. É assim que o poema “Ode ao Burguês” foi recebido na semana de Arte

Moderna, quando declamado pelo seu autor, Mário de Andrade. Tal ode tinha o objetivo

de atingir uma classe, a burguesia, que se sentia gloriosa por seus grandes lucros. O

poema irritou muitos industriais e fazendeiros de café.

Mário de Andrade também utiliza uma espécie de vaia, de insulto e faz em seu

texto uma caracterização pejorativa da burguesia, além de questioná-la e ridicularizá-la.

Tudo começa no paradoxo do título. O texto chama-se “Ode ao Burguês”, mas o que

realmente ocorre é o contrário do que esse tipo de composição possibilita: a ode

caracteriza-se por um poema que possui um tom alegre e entusiástico, e trata-se de uma

composição de tom elevado. Assim, ao ler o título do poema, pode-se pensar que se

trata de algo que vai elevar o burguês. Porém, Mário de Andrade é bastante irônico,

pois, na verdade, a figura a qual dedica a ode será totalmente escandalizada. Com isso, é

possível afirmar que o poeta joga com o som da palavra ode, que, lido na frase “ode ao

burguês”, torna-se ódio, vocábulo que se repete várias vezes no texto.

Esse sentimento de raiva espalha-se por todo o poema, que tem um ar de

manifesto. A presença constante de exclamações dá ao texto um tom eufórico e

agressivo, que chega a se parecer com um discurso marxista dirigido a essa classe, a

burguesia. “Ódio vermelho! Ódio fecundo [...]”, um sentimento da cor da bandeira

comunista. Pode-se dizer que a rebeldia também é encontrada nesse texto não somente

no plano temático, mas também no plano teórico: ao expressar uma forma inovadora,

contra a rigidez das composições anteriores. Esse desejo de ruptura com o tradicional já

começa, pode-se observar, no emprego de versos livres e brancos: a liberdade plena da

forma.

Há, desse modo, um ritmo livre de uniformidades, que surge da exploração da

potencialidade musical das orações. Sendo assim, nesse poema, não existe o trabalho

com o metro. O que acontece é que todo o texto se constitui como um conjunto rítmico,

totalmente sensorial. Essa liberdade dos ritmos ainda imprime uma significação estreita

com o campo semântico, como se comprova na grande repetição do som /ↄ/, encontrado

principalmente na palavra ódio, sobretudo na última estrofe, que expressa a intensidade

emocional do eu-lírico quando expõe suas impressões sobre o burguês. O som /S/

também aparece várias vezes, assim como a palavra burguês, contribuindo também para

o ritmo e a sonoridade do texto.

A expressividade dos fonemas também é obtida pelo seu posicionamento e sua

iteração. Essa variação relacional se constrói nesse poema por meio das figuras fônicas,

como a anáfora e o polissíndeto, em que ambos podem ser exemplificados com o verso

“Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!” (ANDRADE, 1987, p. 89). É

importante salientar que a anáfora é a figura fônica mais explorada no poema, dando,

com a repetição dos vocábulos, uma sonoridade maior aos versos.

Os efeitos sonoros também são reforçados pelo paralelismo sintático presente

nesse texto poético, que pode ser encontrado nos três primeiros versos das três primeiras

estrofes: “Eu insulto o burguês! [...]”; “Eu insulto as aristocracias cautelosas!”; “Eu

insulto o burguês-funesto!”. Além disso, os versos “Morte à gordura! /Morte às

adiposidades cerebrais!/ Morte ao burguês-mensal!”, também podem exemplificar esses

conjuntos semelhantes.

Todo o furor dirigido ao burguês expressa características do movimento

futurista, sobretudo pela agressividade, uma das principais teses de Marinetti, italiano

redator do primeiro manifesto futurista, Fondation et Manifeste du Futurisme (1909). A

violência aparece praticamente nas 11 teses apresentadas por Marinetti. Para o futurista,

na literatura, a intenção é romper com as tradições que exaltavam “[...] a imobilidade

pensativa, o êxtase e o sono [...] [e] exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o

passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco” (MARINETTI, 1926 apud TELES,

2009, p.115). Eis o modo como o poeta agride tanto ao burguês quanto à velha forma.

Nesse poema, do ponto de vista gramatical, é evidente também a relação com as

ideias futuristas. A ordenação paratática, como por exemplo no verso “Ódio vermelho!

Ódio fecundo! Ódio cíclico!” (ANDRADE, 1987, p. 89), que faz as orações

semelhantes estruturalmente pela sua formação definida em um substantivo – que é

sempre o mesmo: ódio – e um adjetivo. Trata-se do recurso chamado “palavras em

liberdade”, em que as frases substantivas estão em aposição.

Com esse uso inovador da sintaxe, as imagens libertam-se. No Manifesto técnico

da literatura futurista (1912), Marinetti já via a necessidade de libertação das imagens:

“A poesia deve ser uma sequência ininterrupta de imagens novas [...]” (MARINETTI,

1968 apud TELES, 2009, p.120). Essa ideia das imagens dispostas em série acaba por

lembrar também o princípio da simultaneidade dos futuristas, em que a arte deveria

mostrar concomitantemente os vários estados da mente e a representação de estágios

sucessivos de movimento. Em Mário de Andrade, portanto, a enumeração caótica, como

outro emprego sintático utilizado nesse poema, está intimamente relacionada com a

ideia de simultaneidade futurista.

No âmbito semântico, retornando ao apelo, também futurista, à violência,

podemos perceber que a fragmentação das ideias, que parecem explodir, contribui para

o tom agressivo dessa ode: o eu-lírico parece fazer um desabafo, bastante espontâneo,

do que pensa e sente pelo burguês. Um exemplo desse emprego sintático encontra-se

nos versos “O homem-curva! o homem-nádegas!/ O homem que sendo francês,

brasileiro, italiano,/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco” (ANDRADE, 1987, p. 88).

Além de toda essa expressividade da sintaxe, o poder sugestivo do poema é

enriquecido com o emprego de determinadas classes de palavras, que têm uma

importante funcionalidade literária. Há, por exemplo, o predomínio de artigos definidos,

que indicam o interesse de revelar a essência do objeto referido no texto poético. Na

maioria das vezes, esses artigos são ligados ao burguês, deixando claro que se fala desse

tipo social.

Há também o uso recorrente de adjetivos unidos a um substantivo por um hífen,

processo no qual o poeta utiliza uma espécie de “imagem-síntese” e cria palavras,

relacionando o conteúdo conceitual dos dois vocábulos e formando um sentido novo.

Trata-se de outro recurso criativo próximo ao conceito das palavras em liberdade. A

criação desses compostos também imprime a ideia de simultaneidade e de fragmentação

ao texto. É assim que surgem o “burguês- níquel”, o “burguês-burguês”, o “homem-

curva”, o “homem-nádegas” dentre muitos outros. Pode-se dizer que esses neologismos

concebem uma imagem metafórica, em que há uma relação binária entre as palavras,

uma aproximação de dois termos em busca de uma nova significação. Tudo para falar

de alguém extremamente ganancioso, que tem todas as características negativas: o

burguês, homem estático e preguiçoso.

O poema, em sua crítica voraz a tal classe da sociedade, considera o burguês um

homem que nunca muda, independentemente até de sua nacionalidade, sendo uma

pessoa extremamente cautelosa, temerosa, comedida com o dinheiro e que tenta prever,

medir e planejar tudo, sempre em busca do seu lucro. São aqueles que “algarismam os

amanhãs”. Vê-se essa caracterização nos versos: “O homem que sendo francês,

brasileiro, italiano, / É sempre um cauteloso pouco a pouco” (ANDRADE, 1987, p. 88).

No poema, o burguês é a figura que quer a ascensão social e busca sempre as

aparências: como se vê na segunda estrofe, as moças devem falar francês e tocar piano,

pois é sinônimo de nobreza, de boa educação, e também na quarta estrofe, quando é

transposta a fala do burguês e da filha, que quer um colar caro, para ostentar seu status.

O retrato criado pelo eu lírico é de um homem que não nasceu nobre, mas que pode

comprar títulos de nobreza –“Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros”

(ANDRADE, 1987, p. 88). Toda essa classe está inserida em seu “mundinho”, numa

vida regrada –“vivem dentro de muros sem pulos” (ANDRADE, 1987, p. 88).

Além das aparências, encontram-se também no texto aspectos que definem

certos costumes dessa classe. Em “burguês-cinema” e “burguês-tílburi” é feita

referência explícita ao hábito dessas pessoas de irem ao cinema e andarem nessa espécie

de carroça – sendo relevante o fato de eles não andarem a pé. A justaposição dos

substantivos cinema e tílburi a burguês, contudo, faz com que funcionem como

adjetivos, o que nos permite pensar não apenas naquilo que está explícito, mas também

em outros traços semânticos transferidos de um elemento a outro ao realizar-se a

justaposição.

O termo “burguês-cinema” pode-nos remeter, por exemplo, ao grande valor que

a burguesia dá às aparências, procurando copiar o modo de ser – tanto dos atores quanto

dos personagens representados – importado pelo cinema, e exibindo futilmente a seu

“público” o quão cinematográfica sua vida parece. Ao mesmo tempo, “burguês-tílburi”

ressalta novamente os aspectos da preguiça e do ócio que constituem o burguês que não

anda a pé, algo possível de ser relacionado, novamente, a um modo de vida repleto de

glamour e ócio divulgado pelo cinema.

Esses termos, portanto, chamam a atenção para o aspecto do status: o burguês

procura aparentar alguém bem sucedido, educado e culto perante a sociedade, e, como

seu objetivo é, sobretudo, parecer tudo isso, não é necessário muito esforço de sua

parte, realizando o suficiente para sustentar sua(s) máscara(s).

Algumas construções do poema levam-nos, ainda, a pensar em uma burguesia

gulosa, com a mania da comilança, por fazer caracterizações utilizando-se de palavras

referentes à comida, como: “o indigesto feijão com toucinho”; “gelatina pasma”; “purée

de batatas morais”. “Come! Come-te a ti mesmo [...]” (ANDRADE, 1987, p. 89),

conclui o eu-lírico. Há a referência intertextual com a conhecida frase filosófica de

Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Ao invés de conhecer seu interior em todos os

aspectos e cuidar de seu intelectual, o burguês faz o contrário e não possui firmeza

moral, é fútil e só pensa em dinheiro, cultivando suas “adiposidades cerebrais”.

Em seu mundinho de ganâncias, de luxos e de comilança, acrescenta-se ainda ao

burguês a falsa religiosidade. É a figura de um homem que vai à igreja, mostra-se

cristão, mas na verdade tudo isso é para manter as aparências. Para o eu-lírico é o

burguês “cheirando religião e que não crê em Deus!” (ANDRADE, 1987, p. 89).

A sátira é evidente nessa composição de Mário de Andrade, quando ridiculariza

o burguês. Porém, é importante ressaltar que essa ode critica essa figura não somente

pelo fato de ser membro da classe dominante. Benedito Nunes, em seu artigo Mário de

Andrade: As enfibraturas do Modernismo, afirma que essa ode hostiliza a vida

medíocre e o pouco desenvolvimento moral e mental dos burgueses,

Censurando-lhe o arrivismo, a pseudo cultura, o falso tradicionalismo

e a falta de religiosidade autentica, o poeta arlequinal, dissidente dos

hábitos da camada intelectual a que pertencia, achou-se igualmente em

desacordo com a sua própria classe, mas sem dela divergir

politicamente, muito embora rejeitasse o aparato da vida politica,

relegada a categoria do grotesco (NUNES, 1984, p.68).

Todo esse ódio pela burguesia se dá, na última estrofe, com o trabalho de uma

imagem visual bem sugestiva, na qual os burgueses marcham como soldados, no

comando do general, o eu-lírico, rumo ao seu “rancor inebriante” – “De mãos nas

costas! Marco eu o compasso! Eia!/ Dois a dois! Primeira posição! Marcha!”. Com essa

marcha da burguesia, o eu-lírico termina o poema expressando toda sua raiva, seu ódio,

parecendo expelir todo o seu sentimento em gritos, em um ar manifestante. “Fora! Fu!

Fora o bom burguês!...”.

6. Ódio à tropa do trapo: a crítica agressiva em “Neste mundo é mais rico, o

que mais rapa” e “Ode ao burguês”

Após as análises apresentadas dos poemas de Gregório de Matos e Mário de

Andrade, é possível estabelecer pontos comuns e divergentes entre os textos, pois, como

perceberemos no transcorrer deste tópico, mesmo com a distância temporal existente

entre eles, suas aproximações são relevantes e aquilo que os diferencia constitui

informação importante para melhor compreender-se o fazer poético de épocas distintas.

Algo evidente já em uma primeira leitura dos dois poemas selecionados é a

coincidência temática existente e tom satírico adotado pelos poetas. O tema abordado

por ambos os textos é o da crítica social que destaca os aspectos hipócrita, fútil e de

pouca moralidade da população ou de determinada camada dela, satirizando-a ao fazer

isso. É importante salientar, entretanto, que, devido à distância temporal existente na

produção dos textos, essa crítica abrangerá aspectos sociais distintos, consoantes com a

estrutura da sociedade na qual cada poema está inserido: no poema de Gregório de

Matos é criticada, sobretudo, a sociedade baiana do século XVII. Não há um

direcionamento da sátira para determinada classe social, como ocorre no caso de “Ode

ao burguês”, devido ao fato de na época do Brasil colônia as classes sociais não estarem

exatamente estabelecidas e determinadas, sendo a sociedade dividida basicamente entre

senhores de engenho, homens livres e escravos, algo bem diferente daquilo que se

passava no Brasil do século XX de Mário de Andrade, em que o poeta criticará

especialmente a burguesia.

Além disso, a abordagem de Gregório de Matos, por pertencer ao estilo barroco,

é muito mais preocupada com uma forma mais rígida do que a abordagem feita por

Mário de Andrade, um dos que iniciou o modernismo no Brasil. Enquanto no soneto

tem-se uma forma poética fixa, de estrutura e métrica rijas, cheia de rimas e dotada de

uma preocupação muito grande com as estruturas e os jogos sonoros; na poesia

modernista encontra-se um texto em versos livres e brancos que trabalha com o aspecto

sonoro de forma mais livre por meio de paralelismos e repetições de fonemas,

utilizando-se mais da potencialidade musical da oração, do que de rimas. Contudo, em

ambos os textos a sonoridade consegue intensificar o caráter agressivo e crítico dos

poemas.

Outro aspecto a ser observado é o de que Mário de Andrade explora o léxico

criando novas palavras e utilizando-as de forma não habitual, como quando diz

“homem-nádegas” ou “barões lampiões”; já Gregório de Matos, no poema analisado,

não cria neologismos, nem explora o léxico do mesmo modo que o vanguardista, porém

abusa de metáforas e antíteses, construindo, também, por meio de uma sonoridade

marcada e travada, repleta de sons oclusivos e vibrantes, sua crítica ferrenha.

Tais características formais e semânticas acima destacadas, apesar de serem

próprias de seu contexto histórico e literário, marcam o florescer de uma literatura

brasileira mais autônoma, que se apropria de assuntos nacionais, e o surgimento de uma

consciência criadora nacional.

Embora os dois movimentos brasileiros aqui citados tenham respirado um os

ares europeus do barroco e outro o das vanguardas europeias, Affonso Ávila (1977) vê

tanto no barroco quanto no modernismo dois segmentos do projeto literário brasileiro,

advindos “[...] de uma linguagem em curso criativo e de uma realidade contextual

inseparável de nossa peculiar experiência de expressão” (AVILA, 1977, p.28, grifos do

autor). Segundo o estudioso, juntamente com a visão ideológica de seu tempo, a obra de

Gregório de Mattos – como também o barroco brasileiro – representa um processo de

apropriação da linguagem própria brasileira dentro de uma consciência criadora

nacional, que simplesmente não se subordinou ao projeto literário europeu.

Com efeito, não será difícil constatar que o discurso poético

gregoriano difere em muitos aspectos do discurso padrão da poesia

lusa do mesmo período, quer pela temperatura semântica, mais quente

em sua referencialidade imediata, quer pela própria índole da dicção,

menos solene e afetada. Para o acaloramento semântico do verso

concorrem, sem dúvida, o aproveitamento de um novo material

significante, retirado ao vivo de uma fala de nítida feição popular ou

nativa, e o recurso frequente a um repertório temático de

predominância prosaica. [...] Através da leitura digamos linguística da

poesia de Gregório de Matos, o especialista poderá rastrear o

fenômeno emergente de uma entonação brasileira da língua, que não

será outro senão um modo já específico de sentir, de mentar e

exprimir o choque entre as formas de herança e os estímulos e

sugestões da peculiaridade tropical do país. Assim, a sua obra poética,

aberta tanto estética quanto semanticamente e voltada sempre para a

urgência comunicativa, traduz exemplarmente um processo de

apropriação da linguagem e da realidade, que é o próprio processo do

barroco brasileiro. (AVILA, 1977, p. 30).

Veem-se tais características apontadas acima pelo poeta e estudioso mineiro ao

se observar que Gregório faz sua critica, em “Neste mundo é mais rico, o que mais

rapa”, de forma ferina, com um vocabulário chulo e popular – como já foi mostrado em

nossa análise –, o que dá ao seu poema um tom tipicamente nacional.

Ainda no mesmo artigo, Ávila (1977) analisa o modernismo como um processo

de reflexão sobre a linguagem e a realidade, retomando o elo da primitiva apropriação

barroca e representando o grande vetor do processo literário brasileiro. Referente à

linguagem poética, o modernismo instaura a liberdade formal e uma moderna

criatividade estética:

Esse princípio valorizador da experimentação exerce-se em nível de

reflexão, com o escritor voltado de início para a inerência linguística

imediata – a palavra, a frase, o sintagma –, daí evoluindo para

operações mais complexas que abarcam toda a problemática estrutural

de seu texto. Entretanto, o que passa a ser questionado e reflexionado

não é tão só uma linguagem literária brasileira que se precisa rever e

reformular, mas a própria modernidade da escrita naquilo que as

correntes internacionais do momento impõem então como força

renovadora do pensamento criador. (AVILA, 1977, p. 34, grifos do

autor).

Quanto à questão do processo de reflexão da realidade, Ávila (1977) afirma que

o modernismo demonstra uma conscientização quanto a nossa realidade nacional, que

acrescentou a suas obras uma expressão propriamente brasileira e atual:

[...] o processo da reflexão modernista, como um grande leque de

arejamento crítico, primeiro se abre ao sopro novo da viração

universal, para depois fechar-se sobre nossa própria perplexidade e

repensá-la já não apenas em termos de linguagem, mas sobretudo de

realidade. O pêndulo linguagem/realidade,

experimentação/construção ritmará o desenvolvimento do projeto

literário brasileiro ao longo de uma vigência cíclica em que viremos,

afinal, a conhecer a nossa opção maior de originalidade. (AVILA,

1977, p. 34, grifos do autor).

Tais características previstas por Ávila (1977) encontram-se em “Ode ao

burguês” em seus versos livres e brancos, em seu trabalho por meio de paralelismos e

repetições de fonemas e em sua exploração do léxico criando novas palavras. Todo esse

trabalho criativo e muito original em termos literários é aplicado para refletir sobre o

contexto de sua época, voltado para a contestação de uma casta social de seu tempo, a

burguesia, preocupada somente com o seu status.

Assim, em “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês” não

observamos somente a coincidência temática – a crítica a uma camada social hipócrita,

fútil e de pouca moralidade – mas também o florescer de uma literatura preocupada em

falar da realidade de seu tempo e criar uma expressão mais nacional.

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