fernando de azevedo - tempos e espaços em educação - 2014

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  • 155

    Fernando de Azevedo, a cultura brasileira e a histria da educao: notas historiogrficas

    Juarez Jos Tuchinski dos Anjos1*

    Resumo

    Tomando por objeto de anlise a obra A Cultura Brasilei-ra, de Fernando de Azevedo, considerada uma das escri-tas fundantes da histria da educao brasileira, o artigo tem por objetivo dialogar com a historiografia da obra azevediana a fim de reunir algumas notas historiogrfi-cas que auxiliem na leitura crtica desta obra e da narrati-va de histria da educao produzida por seu autor.

    Palavras-chave: Historiografia da Educao; A Cultura Brasileira; Fernando de Azevedo.

    * Mestre e Doutorando em Educao, na Linha de Histria e Historio-grafia da Educao, do Programa de Ps-Graduao em Educao, da Universidade Federal do Paran. Endereo eletrnico: [email protected]. Este artigo uma verso ampliada de um paper apre-sentado na disciplina Seminrio Avanado de Histria e Historiografia da Educao, no segundo semestre de 2011.

  • FERNANDO DE AZEVEDO, A CULTURA BRASILEIRA E A HISTRIA DA EDUCAO156

    Fernando de azevedo, the brazilian culture and the history of education: historiographical notes

    Abstract

    Based on the analysis of the work The Brazilian Culture, by Fernando de Azevedo, that is considered to be one of the foundational writings on the history of Brazilian education, this article aims to establish a dialogue with the historiography of the work of Azevedo in order to gather some historiographical notes that may help the critical reading process related to this work, as well as the reading of the narrative of history of education produced by the author.

    Keywords: Historiography of Education; Brazilian Cultu-re; Fernando de Azevedo.

    Fernando de azevedo, la cultura brasilea y la historia de la educacin: notas historiograficas

    Resumen

    Tomando como objeto de anlisis el libro La Cultura Brasilea, de Fernando de Azevedo, considerado uno de los escritos fundadores de la historia de la educacin brasilea, el artculo tiene como objetivo dialogar con la historiografia de la obra azevediana para recoger algu-nas notas historiogrficas que ayuden en la lectura crtica de este libro y de la narrativa de historia de la educacin producida por su autor.

    Palavras clave: Historiografia de la Educacin; La Cultura Brasilea; Fernando de Azevedo.

  • Juarez Jos Tuchinski dos Anjos 157

    Introduo

    Publicada pela primeira vez em 1943, A Cultura Brasileira (doravante, ACB), de Fernando de Azevedo (1894-1974), considerada uma das escritas fundantes no campo da Histria da Educao brasileira. Seu impacto fez-se sen-tir por muitas dcadas e suas interpretaes informaram boa parte da imagem construda no meio acadmico a respeito de nosso passado educacional.

    Muitas e boas anlises j foram feitas sobre ACB. Incon-tveis artigos, dissertaes e teses foram publicados a seu respeito, o que mais uma evidncia da importncia da obra no campo histrico-educacional. Em face disso, no pretendo oferecer uma anlise indita ou inusitada acerca de Azevedo e de seu texto. Seria ousadia teme-rria, dada a profuso de autores que j se dedicaram isso. Dentro dos limites deste artigo o objetivo outro: dialogar com a historiografia da obra azevediana em particular a relativa ACB a fim de reunir algumas notas historiogrficas que auxiliem na leitura crtica de Fernan-do de Azevedo, ACB e sua narrativa histrica.

    Tal intento, apesar dos estudos j realizados, permane-ce relevante, uma vez que as explicaes azevedianas continuam presentes no campo educacional de modo geral (CARVALHO, 2010a) (a meu ver, especialmente em trabalhos que necessitam de referncias pontuais sobre o passado educacional brasileiro), em algumas vertentes dentro do campo da histria da educao em especfico e, ainda, reproduzidas indiscriminadamente em manuais didticos vulgarizados nos cursos que oferecem a disci-plina histria da educao brasileira em nvel de gradu-ao. Tudo isso, no obstante as crticas que o autor e a obra j vm sofrendo, a um considervel tempo, da parte de importantes historiadores da educao, como Marta Carvalho (1989; 2010a, 2010b), dentre outros.

    A metodologia por mim adotada a da pesquisa biblio-grfica de cunho historiogrfico. Como definem Kalina Silva e Maciel Silva, a historiografia a reflexo sobre a produo e a escrita da Histria (SILVA e SILVA, 2009, p. 189). Dialogar com a historiografia acerca da obra azeve-diana e ACB significa, aqui, estabelecer interlocuo mais com os trabalhos que tm investigado a maneira como

    este autor produziu e escreveu sua narrativa histrica do que com o texto de Azevedo propriamente dito (embo-ra isso tambm ocorra), uma vez que essa ltima labuta, mais rdua, j foi feita nos estudos que sero mobiliza-dos nesta investigao.

    Sendo a historiografia uma forma de analisar os meca-nismos que envolvem a produo do discurso dos histo-riadores, percebendo esses discursos em relao ao tem-po e sociedade em que cada historiador est inserido (SILVA e SILVA, 2009, 190), as notas historiogrficas aqui reunidas procuram contemplar, ao menos, trs aspectos essenciais: a figura de Fernando de Azevedo, enquanto intelectual e ator histrico; o contexto de produo de ACB e, por fim, as concepes tericas, a operao histo-riogrfica, o tipo de narrativa e algumas das explicaes que, do encontro entre o sujeito, seu tempo e suas vises de mundo, da resultou. essa, inclusive, a estrutura em que est dividido o artigo. Ao final, ele encerrado com algumas concluses sobre os resultados a que este per-curso pela historiografia permitiu chegar.

    Fernando de Azevedo: educador, intelectual e historiador

    Alerta Edward Carr em O que Histria: Quando pega-mos um trabalho de Histria, nossa primeira preocupao no deveria ser com os fatos que ele contm, mas com o historiador que o escreveu (CARR, 2006, p. 58). Em outras palavras, uma lio to simples quo fundamental: antes de tentar entender o que narrado e explicado por um historiador nas suas obras, preciso buscar conhecer esse homem ou mulher, sua vida profissional e intelectual bem como sua produo bibliogrfica e suas redes de relaes para s ento, efetivamente, comear a tratar do texto que se quer ler e compreender em perspectiva historiogrfica. o que faremos aqui com Fernando de Azevedo.

    Nascido em abril de 1894, era mineiro, natural de So Gonalo do Sapuca, tendo passado os primeiros anos da infncia na cidade de Cambuquira. Sua famlia parece ter gozado de boa condio econmica, embora no incio do sculo passado suas correspondncias e memrias indiciem que teriam atravessado certa crise financeira (NEPHIE-USP, 2000).

  • FERNANDO DE AZEVEDO, A CULTURA BRASILEIRA E A HISTRIA DA EDUCAO158

    Conforme Maria Luiza Penna (2010), para iniciar os estu-dos primrios, Azevedo voltou para sua cidade natal, vi-vendo com os tios, enquanto frequentava o colgio par-ticular de Francisco Lentz. Mudou-se em 1903 para a ci-dade de Nova Friburgo (RJ), onde seria aluno do Colgio Anchieta, dirigido pelos padres jesutas, at 1908. No ano seguinte, sob a orientao do padre Leonel Fran-ca, inicia uma experincia vocacional dentro da Com-panhia de Jesus e que se prolonga at 1914, quando renuncia vida religiosa. (cf. PENNA, 2010, p. 147). Foi nessa poca oportuno destacar que exerceu pela primeira vez o magistrio, no Colgio So Lus, em It, tambm dos jesutas. Abandonadas as aspiraes vida religiosa, Fernando de Azevedo escolhe prosseguir sua formao acadmica matriculando-se no Curso de Di-reito na Faculdade do Rio de Janeiro, transferindo-o em seguida para Belo Horizonte e concluindo-o em 1918, na cidade de So Paulo. Todavia, nunca exerceu as letras ju-rdicas. (Idem, ibidem, p. 148).

    Aps a concluso do curso de Direito que Azevedo d incio a sua intensa vida profissional, que de modo resu-mido, pode ser situada como um largo trnsito (mas nem sempre concomitante) entre o magistrio no ginsio, na Escola Normal (fim da dcada de 10 e parte da dcada de 20) e no Departamento de Sociologia da USP (a partir da dcada de 30); o jornalismo (dcadas de 10 e 20, seguidas de uma ausncia prolongada e retorno somente na dca-da de 60) com contribuies para o Correio Paulistano e o Estado de So Paulo; o trabalho como Editor da mo-numental Biblioteca Pedaggica Brasileira, da Companhia Editora Nacional (1931-1946) e a ocupao de cargos p-blicos em vrias esferas de governo, com destaque dentre aquelas elencadas por Nelson Piletti (1984, p. 184), para as ligadas mais diretamente educao: Diretor geral da Instruo Pblica no Distrito Federal (1927-1930), Diretor geral da Instruo Pblica do Estado de So Paulo (1933), Diretor do Instituto de Educao da Universidade de So Paulo (1933-38), Diretor da Faculdade de Filosofia, Cin-cias e Letras da USP (1941-1943); Chefe do Departamento de Sociologia e Antropologia da FFCL da USP (1941-1943), Secretrio de Educao e Sade do Estado de So Paulo (1947), Diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacio-nais de So Paulo (1947) Secretario de Educao e Cultura do Municpio de So Paulo (1961).

    Educador, jornalista, editor e, em certa medida, poltico. Numa vida profissional assim resumida, percebe-se, na confluncia e simultaneidade de tais experincias, por um lado, a polissemia das ocupaes de Azevedo e, por outro, a centralidade que a educao assumiu nesse iti-nerrio, iniciado com certa modstia na funo de pro-fessor de uma escola ginasial nas dcadas de 10 e 20 e encerrado na mais alta posio da burocracia educacio-nal do Estado de So Paulo, na dcada de 1960, num cargo poltico de confiana. Indissocivel dessa vida profissional a sua ao como intelectual, que convm destacar sob dois aspectos: o seu engajamento nos gru-pos e movimentos aos quais se filiou e a sua produo bi-bliogrfica, realizada nos interstcios (e em alguns casos em decorrncia) de suas ocupaes.

    No tocante ao engajamento, Fernando de Azevedo man-teve estreitas relaes com certa intelectualidade pre-ocupada com os problemas educacionais do pas nas dcadas de 20-30. Essa intelectualidade, como lem-bram Carlos Eduardo Vieira e Caroline Marach, assumiu uma identidade como grupo social, como intelligensia. Como tal, incorporaram um sentimento de misso so-cial, inserindo-se na cena pblica como guias do povo, guardies da cultura e racionalizadores do estado (VIEI-RA; MARACH, 2007, p. 270). Este, por sinal, o perfil de intelectual assumido por Fernando de Azevedo, tanto no plano da palavra quanto da ao.

    Dessas suas relaes com a inttelligensia educacional, podemos destacar trs momentos significativos. Um pri-meiro, a Reforma do Ensino no Distrito Federal (1927-28), iniciativa que lhe deu grande projeo como educador e reformador. Na ocasio, aplicou algumas das suas concep-es educacionais da pedagogia da Escola Nova, mas com uma nfase especial no trabalho como princpio unifica-dor do sistema educacional (CARVALHO, 2010b, p. 247). Um segundo momento, mais longo que o anterior em ter-mos cronolgicos mas no qual aquele estava inserido, o constitudo pelos dilogos com a Associao Brasileira de Educao, por meio da participao nas Conferncias Nacionais de Educao (1927-1932). Estes eventos, como observa Maria Lcia Hilsdorf, foram saudados como a principal instncia social do debate das questes edu-cacionais do perodo 1925-35 (HILSDORF, 2003, p. 79),

  • Juarez Jos Tuchinski dos Anjos 159

    espao de discursos e embates entre diversos projetos e concepes educacionais, onde Fernando de Azevedo foi firmando suas relaes elegendo suas afinidades e desafetos com o grupo que posteriormente seria de-nominado os renovadores da educao brasileira e que subscreveriam, com ele, o documento sntese das ideias educacionais por eles defendidas, o Manifesto dos Pionei-ros pela Escola Nova, de 1932. O terceiro momento signi-ficativo de seu percurso intelectual , justamente, sua es-colha para o redator de tal manifesto. A seu ver, esse docu-mento serviria para estabelecer uma coeso ainda maior entre os elementos filiados nova corrente educacional e para dar novo prestgio e impulso novo ao mais belo e fecundo movimento de ideias, que j se operou no Brasil, nos domnios da educao (AZEVEDO, 2003 [1932], p. 10) e foi o ponto alto de sua atividade em prol das reformas educacionais que vinha defendendo desde a dcada de 1920. No entanto, vale ter presente o que observa Diana Gonalves Vidal a partir de novas pesquisas desenvolvidas aps a dcada de 1980, quando

    o manifesto comeou a ser revisitado pela in-vestigao acadmica (....) [e] foram questiona-dos seus dispositivos discursivos. Os pioneiros emergiram como um grupo cuja coeso no era fruto da identidade de posies ideolgi-cas, mas estratgia poltica de luta, conduzida no calor das batalhas pelo controle do apare-lho educacional. (...) A prpria noo de grupo coeso e, nessa medida, do personagem coletivo pioneiros passou a ser questionada, bem como o foi a unidade dos princpios da Escola Nova. (VIDAL, 2013, p. 580-581).

    Aqui j se evidencia, com efeito, uma das facetas mais marcantes do intelectual Fernando de Azevedo, desveladas primeiramente por Marta Carvalho (1989): sua capacidade de erigir monumentos de sentidos e significaes em torno das aes nas quais esteve envolvido. Em todo caso, dentro desse quadro que se insere o segundo aspecto de sua atividade intelectual, a sua produo bibliogrfica.

    Pode-se concordar com Maria Luiza Penna (1987) e Maria Rita de Almeida Toledo (1996) que, no obstante a con-tagem geral dos livros de Azevedo chegar ao nmero de 34, na realidade so 25 obras, se descontarmos as

    reedies parciais, fuses de textos, separatas e apro-veitamento de diferentes livros para montar um outro (TOLEDO, 1996, p. 47). Para uma aproximao no pela individualizao de sua produo, algo j feito por am-bas as autoras citadas, mas com os temas privilegiados por Fernando de Azevedo, servi-me da relao oferecida por Penna (1987), ensaiando uma classificao temtica e cronolgica, com base nos ttulos e perodos das pri-meiras edies. (Tabela 1)

    Tabela 1 Temas privilegiados por Fernando de Azevedo em sua produo intelectual

    Tema Nmero de Obras Arco de Tempo das Publicaes

    Antiguidade Clssica 2 1923-1924

    Crtica Literria 1 1929

    Educao Fsica 3 1920-1930

    Renascimento 1 1925

    Educao 10 1927-1958

    Sociologia 5 1935-1962

    Sociologia da Educao 1 1940

    Memrias 1 1961

    Autobiografia 1 1971

    Fonte: Bibliografia de Fernando de Azevedo (PENNA, 1987)

    Como os intelectuais de sua gerao, Azevedo escreveu sobre vrios temas e assuntos, mas quantitativamente seu maior nmero de obras trata da Educao e da Sociologia.

    Versando sobre o primeiro tema, sua produo concen-tra-se no arco de tempo de 1927-1958, sendo que meta-de de suas obras sobre Educao foram publicadas entre 1927-1935, coincidindo com o perodo de intensa ativi-dade em torno da Reforma Educacional do Distrito Fede-ral, das acaloradas discusses nas Conferncias da ABE e da redao do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. J as obras de sociologia comeam a ser produzidas entre 1935-1962 (e ainda podemos acrescentar sua Sociologia da Educao em 1940), poca em que leciona na USP e na qual escrever ACB, a obra que o tornou mais conhe-cido tanto no campo da Sociologia quanto da Educao.

    Foram justamente a sociologia e a educao, os temas mais caros em sua produo, e que, como veremos na terceira seo do artigo, se articularam na sua interpre-tao sobre a cultura brasileira e a histria da educao. Antes, porm, detenhamo-nos na anlise de ACB em seu contexto de produo.

  • FERNANDO DE AZEVEDO, A CULTURA BRASILEIRA E A HISTRIA DA EDUCAO160

    ACB em seu lugar de produo

    De toda sua vasta produo bibliogrfica, a obra mes-tra de Fernando de Azevedo sem dvida ACB, que tem por subttulo Introduo ao Estudo da Cultura no Brasil. Feita sob encomenda da comisso responsvel pelo Censo de 1940, a obra conta at o momento com 7 edies: 1943; 1944 (sem acrscimos, apenas transfor-mando a obra em livro, independente do Censo); 1958 (quando recebeu acrscimo e ganhou a forma atu-al, sem contudo alterar as interpretaes anteriores), 1963; 1971; fins da dcada de 1990 (cf. TOLEDO, 2000) e, atualmente, no site da EDUSP, consta ter sido realiza-da a 7 Edio, integrando a coleo Os Fundadores da USP. Nesse caminho editorial, conheceu trs formas de veiculao: primeiro como volume do Censo de 1940, editado pelo IBGE; depois volume em separado publi-cado inicialmente pela Companhia Editora Nacional e posteriormente pela Editora da Universidade de Braslia e numa terceira verso, a obra foi divida em trs volu-mes, correspondentes s trs partes que a compem. A edio mais recente, da USP, rene novamente as partes em um nico volume.

    Segundo informaes que faz questo de registrar no Prefcio, Azevedo gastou um ano e meio para escrever o livro, entregando com seis meses de antecedncia o tra-balho que lhe fora solicitado (cf. AZEVEDO, 1963, p. 21-22). Isso situa a escrita de ACB ainda que sem pretenso de uma exatido cronolgica entre os anos de 1939-1941, em pleno Estado Novo, quando Fernando de Aze-vedo ocupava o cargo de Editor da Biblioteca Pedaggi-ca Brasileira e iniciava sua atuao nos cargos de direo de departamentos na Universidade de So Paulo. Editor poderoso, professor universitrio, educador reconhecido pelo seu engajamento no movimento pela Escola Nova e intelectual comprometido com a poltica cultural do Estado Novo (CARVALHO, 2010b, p 332). Eram estas as credenciais que lhe conferiam determinada autoridade para tratar de um assunto to caro Nao: a introduo de um censo demogrfico. E desse lugar de um intelec-tual interessado na legitimao da poltica educacional do Estado Novo (Idem, ibidem) que ele fala e defende suas ideias, embora isso nem sempre fique claro no con-junto de seu livro.

    Sobre as expectativas em torno da obra, Fernando de Azevedo indica que os que a encomendaram solicita-vam-lhe que ela fosse uma introduo ao censo, ainda que em esboo, um retrato de corpo inteiro do Brasil, uma sntese, ou um quadro de conjunto da nossa cultura e civilizao (AZEVEDO, 1963, p. 21). Contudo o produto final, como salientam Diana Vidal e Luciano Mendes de Faria Filho, superou largamente a encomenda (VIDAL; FARIA FILHO, 2005, p. 97). Realizar censos populacionais no Brasil era sempre algo delicado, passvel de inmeros problemas. Os resultados, por sua vez, precisavam ser apresentados, antecipados ou ento e esse o caso da obra de Azevedo introduzidos e significados ao pblico que os receberia e deles faria uso. Tal pblico, na pers-pectiva de Fernando de Azevedo, seria amplo e compos-to por no especialistas, o que exigiu que ele escrevesse de forma mais simples essa obra destinada a tornar o Brasil mais conhecido dos brasileiros e a descobri-lo aos homens de outros pases (AZEVEDO, 1963, p. 22).

    Entrementes, se considerarmos o modo primeiro pelo qual a obra foi posta em circulao um grosso volume de um documento oficial parece ser pouco provvel que os brasileiros de modo geral fossem o pblico que efetiva-mente teria contato com a obra. Talvez, seja mais plausvel a hiptese de que esses genricos brasileiros seriam os socilogos, economistas, polticos, jornalistas, estudiosos das Coisas Brasileiras (o mesmo pblico que fazia a Bra-siliana de Azevedo, subseo da Biblioteca Pedaggica, ter tanto sucesso quela poca), intelectuais do Brasil e do exterior e provavelmente s depois que a obra tornou-se independente do censo alunos, estudantes e professo-res das universidades. No que esse retrato tenha deixado de chegar a pblicos mais amplos. Todavia, no foram en-contrados na historiografia indcios de que isso se desse j naquele contexto imediato de sua publicao.

    Naquilo que diz respeito ao contexto imediato de recep-o de ACB, o autor, no Prefcio da obra na quarta edio de 1963, aponta que foi bem acolhida tanto que alm de trs edies j fora traduzida para o ingls, tinha uma prova final em espanhol e o interesse de editores alemes e italianos para que fosse traduzida (AZEVEDO, 1963, p. 23). Ainda que se deva desconfiar um pouco dessa recep-o, o fato de ser reeditada indcio de que, ao menos,

  • Juarez Jos Tuchinski dos Anjos 161

    havia demanda por parte de determinado publico leitor. Maria Rita de Almeida Toledo afirma que o livro, com suas interpretaes, gozou da mesma credibilidade dos dados estatsticos, sendo recebido com essa mesma objetivida-de, com status de interpretao oficial (TOLEDO, 1996, p. 135). No consegui encontrar na historiografia consultada as crticas que certamente foram feitas pelos desafetos/opositores de Azevedo poca da publicao. Entretanto, um testemunho da boa receptividade da obra a crtica feita por Hlio Vianna na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, sobre a segunda edio e primeira independente do Censo. Vianna a definia como obra sem igual em nosso meio onde todos os aspectos da questo [a cultura brasileira] foram abordados pelo autor com am-plo conhecimento de causa, sendo utilizadas em seu tra-balho informaes das melhores origens, em certos casos as nicas possveis em nossa bibliografia. (VIANNA, 1945, p. 171). Tal considerao, vinda do Instituto Histrico e Ge-ogrfico Brasileiro que tinha como um de seus objetivos principais produzir a identidade do Brasil pelo estudo de seu passado faz pensar que o resultado de das pesquisas do socilogo no desagradavam a outros segmentos da intelectualidade que tinham, como ele, o objetivo de sn-tese do Brasil e de sua cultura.

    ACB na 4 Edio (consultada e utilizada por mim neste trabalho) apresenta 803 pginas de texto e 232 pginas de imagens, num total de 1.035 pginas. A obra divide-se em trs partes: I- Os Fatores da Cultura (Prefcio, Intro-duo e 5 captulos, contabilizando 220 pginas); II A Cultura (6 Captulos, com 280 pginas) e III A Transmis-so da Cultura (cinco captulos, divididos num total de 260 pginas). O nmero de pginas j revelador do empenho do autor em desenvolver com mais mincias o tema da Cultura, seguido daquele da Transmisso da Cultura, no qual a educao tem o papel central j que no somente constitui um dos aspectos mais caracte-rsticos, mas e o prprio veculo da cultura e da civili-zao consistindo em sua essncia, na transmisso de uma civilizao, numa presso exercida pelas geraes adultas sobre as geraes mais jovens. (AZEVEDO, 1963, p. 45). Segundo Libnia Nacif Xavier, a articulao entre as trs partes do livro sugere, primeira vista, uma linha de continuidade que vai da fragmentao dispersa no que ainda so fatores ao planejamento e a unidade, ga-

    rantidos pelos sistemas organizados de transmisso da Cultura (XAVIER, 1998, s.p.).

    na terceira parte A Transmisso da Cultura que Fer-nando de Azevedo redige a sua verso da histria da educao brasileira. sobre a introduo geral da obra e ela que nos deteremos a seguir. Histria da Educao Brasileira

    A historiografia da educao nas ltimas trs dcadas tem sido praticamente consensual em relao crtica que faz narrativa produzida por Fernando de Azevedo: por um lado, ela instaurou uma memria sobre os even-tos das dcadas de 20 e 30 perodo da atuao da ABE, das reformas educacionais e da instalao do Estado Novo , onde esvaziou os acontecimentos do seu senti-do poltico, varrendo-os para a zona das ideias perigo-sas (CARVALHO, 1989); por outro, atualizou e cristalizou representaes sobre o ensino brasileiro no Imprio e primeiros anos da Repblica (...) consolidando um lugar de interpretao do passado educativo como descaso (FARIA FILHO; VIDAL, 2005, p. 38). Isso se d, contudo, porque sua leitura do passado no era feita na perspec-tiva da histria, mas submetendo a histria sociologia, para desvendar os problemas do seu presente, numa cla-ra preocupao presentista (TOLEDO, 1996, p. 134).

    A leitura que se pode fazer da histria da educao pro-duzida por Fernando de Azevedo na Terceira Parte de ACB pode ser pautada, a partir do que indica a historio-grafia, na compreenso de que ele serviu-se de aconte-cimentos para, no modo como os disps e interpretou, produzir uma memria de dupla via: ao mesmo tempo em que significou o seu presente em torno da fabricao da zona perigosa para a qual relegou as ideias e con-cepes educacionais do seu presente que se opunham sua viso dos acontecimentos (CARVALHO, 1989), pro-duziu tambm uma zona nebulosa na qual ofuscou as iniciativas e as prticas educativas anteriores poca de sua ao, fabricando representaes em torno do seu presente e do seu passado, que tendo por muito tem-po sido tomadas como a histria tal qual aconteceu se constituem em importantes pistas para crtica historio-grfica de sua narrativa.

  • FERNANDO DE AZEVEDO, A CULTURA BRASILEIRA E A HISTRIA DA EDUCAO162

    Ao concordarmos com Kazumi Munakata que, na dcada de 30, dentre as ideias que se respiravam no Brasil, esta-vam os ideais de unificao, homogeneidade e integra-o e que tais temas foram caros a Fernando de Azevedo (MUNAKATA, 1996, p. 198) preciso apontar ao menos um dos aportes tericos que correspondiam a esses de-sejos e dos quais Azevedo se serviu para construir sua viso de mundo e campo de ao neste contexto, e que deixaram claras marcas em ACB. Assim, do seu dilogo com a sociologia educacional de Emile Durkheim, para quem a educao tinha por finalidade gerar sobre o ser individual o ser social, (DURKHEIM, 1965, p. 41), Aze-vedo alcanar a convico de que a escola, enquanto instrumento de transmisso de cultura, deveria desem-penhar essa tarefa de promoo da unidade e nacionali-dade por meio de um sistema de ensino unificado e vai criticar os educadores e polticos do passado por terem falhado nesta tarefa, ao mesmo tempo em que vai enal-tecer as possibilidades que a Revoluo de 30 concedeu para que esta mudana no papel da educao, no seu modo de entender, pudesse se processar.

    Da Sociologia de Durkheim extraiu ainda, segundo Bruno Bontempi Jr. (2005) e Maria Rita de Almeida Toledo (1996) o mtodo de anlise do qual se valeu para produzir sua interpretao sobre a cultura brasi-leira, na tentativa de elaborar a sntese racional que a essncia da sociedade (TOLEDO, 1996, p. 90). essa condio de sntese que permitir que ele retire das obras aquilo que lhe convm, amparando-se apenas dos dados depurados que servem de matria-prima sua interpretao. Somando-se essa opo meto-dolgica, Fernando de Azevedo serve-se de dois con-ceitos, claramente ancorados na sociologia de mile Durkheim que, articulados, apontam para o sentido que atribuiu a histria da educao brasileira. A cul-tura, rejeitadas as possibilidades conceituais da an-tropologia e abraadas as da perspectiva sociolgica (francesa) e histrica (alem), entendida por ele no sentido clssico: o estado moral, intelectual e artsti-co (AZEVEDO, 1964, p. 37) de um povo, de forma que seu estudo incidir diretamente sobre a produo, a conservao e o progresso dos valores intelectuais, das ideias, das cincias e das artes, de tudo, enfim, que constitui um esforo para o domnio da vida material e

    para a libertao do esprito. (Idem, p. 38). Essa cultura conservada e transmitida por meio da educao, que consiste (e a o dilogo com a sociologia educacional de Durkheim fica explcito) na presso exercida pelas geraes mais velhas sobre as mais jovens (AZEVEDO, 1964, p. 45). Por conta disso, escreve Bruno Bontempi Jr. ao analisar a escrita azevediana,

    Instncia privilegiada de transmisso da cul-tura, a educao v-se dotada, tanto em Dur-kheim como em Azevedo, de uma funo social eminentemente conservadora: a de promover a coero da gerao jovem pela adulta, a fim de que a primeira possa acolher as tradies e moldar-se imagem do grupo encabeado pela segunda, para que esta possa manter a sua con-tinuidade (BONTEMPI JR, 2005, p. 54).

    Como resultado dessa operao terica, tal cultura, trans-mitida pela educao, revela o grau de civilizao que de-terminada sociedade alcanou (AZEVEDO, 1964, p. 46). Isto posto, a histria da educao azevediana a histria de como a cultura, desde as origens at o presente, foi trans-mitida na sociedade brasileira por meio da educao e con-tribuiu para alcanarmos determinado grau de civilizao e de identidade como nao. por essa razo que critica-r o passado por no ter produzido um sistema educativo condizente com as necessidades materiais e intelectuais de cada poca e elevar o seu presente ao pice dessa histria, uma vez que v no perodo em que vive aquele em que a educao, por meio das Reformas Educacionais e da centra-lizao do sistema de ensino efetuada pela Revoluo de 30, estava mais prxima de cumprir esse papel.

    A periodizao adotada por Azevedo pode ser facilmente identificada nos Captulos da parte terceira: A Educao no perodo colonial (Captulo I); A Educao no Imprio (Captulo II); a Educao na Primeira Repblica (Captulo III); A Educao no Estado Novo (Captulo IV) e a Educa-o nos dias atuais (Captulo V). Claramente, ele realiza uma ciso entre o passado do atraso e o presente da renovao a partir do captulo IV.

    Tambm as imagens utilizadas na obra reforam essa dire-o que ele quer impor ao movimento da histria. Com efeito, ACB fartamente ilustrada com um caderno icono-

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    grfico, que entremeia os seus vrios captulos, possuindo paginao prpria, indo de 1 a 232 (quase um livro, dentro do livro!). As imagens embora no sejam referidas no cor-po dos captulos, tm a funo clara de ilustrar temas, lu-gares e personagens abordados, estabelecendo assim um dilogo implcito com a narrativa. No que toca Terceira Parte, os trs primeiros captulos que tratam, respectiva-mente, da educao na Colnia, educao no Imprio e Educao nos primeiros quarenta anos da Repblica, con-tam com 18 imagens cada um enquanto os captulos IV e V, que tratam das dcadas de 30 a 40, possuem juntos 60 imagens, superando em quantidade as ilustraes para os perodos mais recuados da histria, contribuindo para re-forar o papel que estes captulos ocupam no conjunto da histria da educao de Fernando de Azevedo, adquirin-do, ainda, carter de propaganda da poltica educacional do Estado Novo, j que vrias ilustraes so de institui-es criadas ou reformadas no perodo.

    Na anlise interna de cada um dos dois primeiros per-odos, nos captulos I e II, Fernando de Azevedo aponta sempre um marco fundador onde identifica as razes da cultura ou das instituies de transmisso da cultura e um marco crtico onde elege os viles que puseram em risco ou desestruturam o sistema de transmisso da cultura em funcionamento ou gestao. J no terceiro e quarto captulos, instaura na narrativa uma marcha ascen-sional para o novo (CARVALHO, 1989), onde o movimento da histria outro: a luta dos renovadores contra os tra-dicionalistas. A argumentao, como tem observado a historiografia da obra azevediana, produz representaes sobre cada um dos perodos: a colnia teria conhecido a nica experincia mais prxima de um sistema educativo, por meio da ao agregadora dos jesutas; o Imprio te-ria sido o tempo do fruto que ainda no estava maduro (AZEVEDO, 1964), j que suas iniciativas educacionais fa-lhavam por no serem unificadas, em funo do Ato Adi-cional de 1834; a primeira fase da Repblica teria reiterado a descentralizao do Imprio por meio do princpio do federalismo, que impediu que a mudana de regime se refletisse na mudana dos sistemas de ensino; por fim, a Revoluo de 1930, associada s ideias dos renovadores, realiza a necessria obra da centralizao e organizao de um sistema nacional de ensino. O resultado disso bem sintetizado por Libnia Xavier:

    Apresentando o movimento das reformas edu-cacionais promovidas a partir da dcada de 20 como a fase mais importante do desenvolvi-mento de uma poltica nacional de educao, Azevedo legitima sua prpria trajetria e a de seu grupo. Por este prisma, o movimento da renovao educacional apresentado como o marco que d a chave para delimitar o que se considera passado, para demarcar as grandes questes do presente e, finalmente, para definir o que se aponta para o futuro. (XAVIER, 1998, s.p.)

    Para produzir esses sentidos, Fernando de Azevedo ser-ve-se de alguns recursos narrativos e de organizao das fontes, que sustentam a argumentao e criam o efeito de verdade.

    Um primeiro recurso narrativo a repetio das ideias capitais que defende em cada captulo. Por exemplo, quando trata da educao jesutica e da sua contribuio para a cultura brasileira (Captulo I), repete vrias vezes, mas com sutis mudanas na forma, o argumento de que os padres da Companhia de Jesus instauraram aqui o pri-meiro sistema de ensino (AZEVEDO, 1964, p. 503; 507-8) e assim preservaram a cultura ibrica da desagregao (AZEVEDO, 1964, p. 510; 516; 534; 535). A insistncia nes-sas afirmaes espalhadas ao longo do captulo d, num primeiro momento, a impresso de dejav, mas, ao final, cria uma sensao de concordncia entre as evidncias e a interpretao, j que Azevedo no as repete simples-mente, mas reafirma-as atravs de dados empricos dis-tintos. O tema da agregao cultural promovida pelos jesutas, por exemplo, ora sustentado pelo dado das escolas elementares que mantiveram (AZEVEDO, 1964, p. 508), ora pela desagregao da cultura indgena que empreenderam (AZEVEDO, 1964, p. 516), ora pela ao dos bandeirantes no apresamento dos povos que aqui viviam (AZEVEDO, 1964, p. 537).

    Outro recurso a atribuio de ttulos ou de qualidades a alguns atores histricos, ajudando a associ-los a deter-minados feitos que considera positivos. No captulo II, rea-liza essa operao quando trata das tentativas de Reforma efetuadas ao longo do perodo imperial. Assim, Couto Fer-raz o organizador do ensino primrio no municpio da Corte (AZEVEDO, 1964, p. 597); o Visconde de Rio Branco o homem da ao francamente progressista (idem) que

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    cria a Escola de Minas em Ouro Preto; Lencio de Carvalho o inovador de ensino mais audacioso e radical do perodo do Imprio (AZEVEDO, 1964, p. 598). Na mesma medida, seu discurso tambm instaura, ao longo dos captulos I, II e III, os viles da histria: o Marqus de Pombal (AZEVE-DO, 1964, p. 539-541) e o Ato Adicional de 1834 uma das maiores aberraes na evoluo da poltica imperial (AZEVEDO, 1964, p. 566), do qual o princpio federativo adotado na Constituio Republicana de 1891 acaba sen-do uma permanncia (AZEVEDO, 1964, p. 610-611).

    Por fim, o recurso mais poderoso do qual Fernando de Azevedo lana mo na sua narrativa o da remoo de obstculos interpretao, por meio do apagamento das tenses. Isso se evidencia, sobretudo, no captulo IV, quando seu texto cria a ideia que de 1927-28 quando efetuou a Reforma do Ensino Primrio no Distrito Federal at o Golpe do Estado Novo em 1937 , teve incio uma marcha constante rumo renovao, na qual ele e os renovadores se opuseram ao grupo dos tradicionalis-tas. Em relao ao primeiro caso a Reforma do Ensino Primrio retira da narrativa as oposies que a reforma encontrou tanto dentro do Conselho Municipal do Rio de Janeiro (que frustrou sua inteno de aprov-la em 15 de outubro de 1927, quando da comemorao do centenrio da Lei do Ensino Primrio, a exemplo do que faria Francis-co de Campos em Minas Gerais), como da imprensa cario-ca, que, por exemplo, ironizava sobre como um governo que em 1927 no tinha dinheiro para a compra de lpis para alunos pobres conseguiria reformar toda a estrutura do ensino no ano seguinte! (FARIA FILHO; VIDAL, 2005, p. 26). J quando trata do embate entre renovao e tradi-o produz a impresso de que todo o movimento da d-cada de trinta consistia num projeto de escola defendida por liberais e contestada pelos catlicos, quando no nvel das experincias histrias, no interior da Associao Bra-sileira de Educao e das Conferncias Nacionais de Edu-cao, haviam vrios projetos em andamento, conforme demonstrou em profundidade Marta Carvalho (1998) em sua hoje clssica tese de doutorado, de forma que no era to fcil pr a marca de renovao apenas ao projeto que foi consagrado no Golpe do Estado Novo.

    No s de recursos narrativos vive a histria da Educao de Fernando de Azevedo: ela se faz tambm por meio

    das escolhas empricas que realiza e do modo como utiliza suas fontes, como bem observou Maria Rita de Almeida Toledo (1996). Embora ACB possua referncias bibliogrficas ao final de cada captulo, uma referncia geral no final da obra e um ndice onomstico, no to fcil identificar os autores e obras com as quais Fernan-do de Azevedo dialoga, uma vez que nem sempre so citados no corpo do texto. Como j observado, na in-troduo, Azevedo afirma que se props a realizar uma sntese (AZEVEDO, 1963, p. 47) de modo que para tanto se serve de trabalhos monogrficos para, a partir deles, realizar a sua interpretao. Pondo a ateno aqui na Parte Terceira, podem-se identificar algumas refern-cias. Para falar sobre o contexto mais geral do Brasil, serve-se de autores reconhecidos e ligados ao Instituto Histrico e Geogrfico, como Pandi Calgeras, Pedro Calmon e Hlio Vianna, dentro outros. Utilizava-se tam-bm de obras especficas sobre Histria da Educao, de autores como Jos Ricardo Pires de Almeida (captulos 1, 2 e 3); Primitivo Moacyr (Captulos 2, 3 e 4), Afrnio Pei-xoto (captulos 2, 3 e 4) e o Baro de Tef (captulos 2 e 3). Em vrios momentos, ele serve-se ainda daquele tipo de documentao que hoje chamamos de fontes hist-ricas como, por exemplo, os relatos de Saint-Hilaire ou Legislao Educacional mas sem diferenci-los do mes-mo uso que faz das monografias especializadas.

    Na escolha de suas fontes de pesquisa, Fernando de Aze-vedo consolida o que j fora iniciado por Afrnio Peixoto nas Noes de Histria da Educao (e distancia-se sig-nificativamente das histrias da Educao de Pires de Al-meida e Primitivo Moacyr): lana mo apenas de fontes secundrias, abrindo mo, em contrapartida, das buscas em arquivos. Embora essa seja uma das crticas mais con-tundentes matriz de interpretao azevediana na His-tria da Educao, foroso reconhecer que ele prprio alertava os leitores sobre essa sua escolha, no prefcio da obra, ao afirmar que ACB no traz documentos in-ditos, de origem direta, nem o autor se havia proposto a vasculhar arquivos, para exumar do esquecimento ve-lhas peas documentrias... (AZEVEDO, 1964, p. 27). Essa base documental pressuposta por Azevedo como j es-tando presente nos estudos dos quais se serve para efe-tuar sua sntese. Ainda em relao s fontes, Maria Rita de Almeida Toledo chama nossa ateno para um dado im-

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    portante: Azevedo utiliza as monografias especializadas principalmente para os perodos mais longnquos da evoluo da civilizao brasileira e o seu prprio teste-munho e o de seus companheiros para realizar a anlise do estado atual (TOLEDO, 1996, p. 125). desse modo que ele realiza o estabelecimento de uma memria em torno de sua ao e dos demais renovadores nos anos 30, misturando-a e confundindo-a com a histria da edu-cao brasileira que o conjunto da terceira parte de sua obra se prope a narrar.

    De modo geral, Maria Rita de Almeida Toledo (1996) identifica trs usos das fontes, atravs dos quais Fer-nando de Azevedo atribuiu diferentes pesos para as re-ferncias que consulta. Na sua operao historiogrfica, existem as fontes que conformam o estudo do autor e so colocadas em evidncia (Durkheim, Paul Fauconnet, Marcel Mauss, por exemplo), aparecendo na introduo e sendo seus pilares tericos. H ainda as fontes que dia-logam com suas opes terico-metodolgicas, com o objetivo de criar consenso, atestando sua erudio. Aqui, so basicamente obras estrangeiras, de vrias vertentes da sociologia. Por fim, as fontes que so apresentadas apenas como fora de argumentao e de informao, uso mais corrente ao longo da obra e das quais so as ilustrativas as mencionadas nos dois pargrafos anterio-res (Cf. TOLEDO, 1996, p. 110).

    Essa operao gera por vezes incongruncias, que so minimizadas novamente pelo recurso ao apagamento do que contraria as perspectivas interpretativas que pro-duz. Assim, no obstante Tavares Bastos, autor de A Pro-vncia, ser um defensor do Federalismo, citado e elo-giado, porque no plano da educao primria, defendia a centralizao do ensino (Captulo II). J ao mencionar o contexto que desembocou na reao do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (Captulo IV), embora sirva-se de Nbrega da Cunha para situar a importncia daquela iniciativa luz do pedido do presidente aos educadores reunidos na Conferncia de Educao, ignora as informa-es oferecidas por Cunha no mesmo livro, que indiciam claramente o grande articulador que este fora ao rever-ter a favor do seu grupo a situao de momento gera-da pela presena do Ministro da Educao Francisco de Campos e do Presidente Getlio Vargas...

    A narrativa de Fernando de Azevedo claramente pragmtica, como bem observaram Rita Toledo (1996) e Bruno Bontempi Jr. (2005). Busca no passado os erros que no devem ser repetidos no presente, destacando a capacidade dele e de seu grupo de educadores em modificar esse presente, pondo em prtica lies de acerto identificadas por meio dos erros e das falhas dos educadores que os precederam. Tal esprito pragmti-co certamente foi um dos fatores que associado pers-pectiva sociolgica que a historia da educao seguiu nos trinta anos seguintes sua publicao ajudam a compreender a fora que sua interpretao sobre a his-tria da escola alcanou e a razo de ser ela tanto para quem pesquisa a educao nas dcadas de 20-30, como aqueles que se dedicam a outros perodos uma leitura obrigatria, dado o alcance que teve na produo de uma histria-memria sobre as experincias educativas em nosso pas.

    Consideraes Finais

    Reler um clssico nunca tarefa fcil, especialmente para aqueles que querem inserir-se no campo do qual ele tor-nou-se referncia fundamental. Esse o caso de ACB de Fernando de Azevedo.

    Ao buscar realizar tal leitura, valendo-me da historiografia mais aprofundada sobre a obra em tela, penso ter recu-perado alguns dos aspectos mais mencionados da crtica desta narrativa, mas tambm ter ajudado a evidenciar alguns pontos igualmente relevantes a seu respeito, mas que s vezes so pouco recordados seja por historiadores da educao ou, especialmente, pesquisadores do campo educacional no familiarizados com esse debate histo-riogrfico e que, com muito mais frequncia do que seria desejvel, recorrem Fernando de Azevedo em busca de informaes para compor a parte histrica de seus ob-jetos especficos de estudo ou investigao, sem maiores crticas sobre a constituio e significado que essa narrati-va, intencionalmente, confere aos dados que relata.

    Isso, logicamente, no invalida o trabalho intelectual de Fernando de Azevedo nem deve ser motivo para que no seja lido e estabelecido dilogo com ele na pesquisa educacional. Porm, lembra a cautela com que essa inter-

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    locuo deve ser estabelecida, tendo presente que, pela maior parte, sua histria da educao deve ser tomada muito mais como um testemunho dos embates em que Azevedo esteve envolvido e sobre os quais produziu uma memria, do que de uma anlise preocupada em investi-gar cada fenmeno estudado dentro do seu tempo, para compreend-lo a partir dele prprio, como entende-se, atualmente, que devem ser as anlises histricas.

    Se essas notas aqui reunidas auxiliarem pesquisadores do campo educacional a proceder a crtica das infor-maes colhidas na narrativa histrica de Fernando de Azevedo ou a alunos e estudantes que esto se inserindo no campo da histria da educao a terem um primeiro contato com ACB, o objetivo perseguido neste artigo de reunir informaes dispersas em vasta produo histo-riogrfica da qual a aqui mobilizada representa apenas uma (significativa!) parte , ter oferecido a contribuio que motivou a sua escrita.

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    Data de Recebimento: 25 de agosto de 2014

    Data de Aprovao: 30 de outubro de 2014

    Data de Publicao: 30 de dezembro de 2014