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LUGARES DE APRENDIZAGEM EM ESPAÇOS E TEMPOS PÚBLICOS Modos de ocupar a noite na cidade de Porto Alegre, RS Eloenes Silva PPGEdu/UFRGS Introdução Novembro de 2016, noite de sexta feira. Dirijo-me ao local conhecido como Parque Farroupilha ou Redenção, na região central da cidade de Porto alegre, RS. O motivo: a realização do encontro noturno Serenata Iluminada.. Chego ao local e percebo centenas de pessoas em volta do lago Espelho Dágua. Os ocupantes do local, jovens em sua maioria, estão sentados, deitados ou flanando pelo parque.Conversam e sorriem, beijam e abraçam, cantam e tocam, dançam e recitam poesias em saraus improvisados ao ar livre. Bebidas, comidas e outros produtos artesanais são comercializados, aumentando a interação entre os participantes. Corpos, ações, sensações, imagens, cheiros, sons e luzes se misturam naquela paisagem noturna. Uma composição de cenas em que os sujeitos atuam como personagens, realizando inúmeras práticas, produzindo experiências, transformando aquele parque em um lugar de aprendizagem.. (Diários de campo, novembro de 2016) Este texto apresenta produções iniciais de dados para a pesquisa de doutorado em andamento vinculada ao campo dos Estudos Culturais e Educação 1 . Aos fragmentos de anotações retirados dos diários de campo, observações, registros fotográficos, abordagens e conversas com indivíduos e grupos durante o evento conhecido como Serenata Iluminada estão articuladas contribuições teóricas e metodológicas, atribuindo credibilidade às ideias e discussões desenvolvidas. Partindo do conceito elaborado por Ellswoerth (2005) de que determinados locais da cidade podem se constituir em “lugares de aprendizagem”, o objetivo desta análise consiste em investigar como determinadas práticas sociais realizadas durante a ocupação noturna de um parque urbano e público configuram experiências de aprendizados ao colocar seus participantes em constante interação com si mesmo, com os outros e com o ambiente. 1 Vinculada à Linha de Pesquisa dos Estudos Culturais e Educação do Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS a pesquisa Pedagogias da Noite: Personagens Urbanos, Práticas Culturais e Lugares de Aprendizagem na Noite da Metrópole tem por objetivo analisar como são produzidas as pedagogias da noite urbana. Para tanto, as investigações enfocam espaços e tempos públicos previamente selecionados na cidade de Porto Alegre, RS, onde são realizadas práticas culturais noturnas.

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LUGARES DE APRENDIZAGEM EM ESPAÇOS E TEMPOS PÚBLICOS

Modos de ocupar a noite na cidade de Porto Alegre, RS

Eloenes Silva

PPGEdu/UFRGS

Introdução

Novembro de 2016, noite de sexta feira. Dirijo-me ao local conhecido como Parque Farroupilha

ou Redenção, na região central da cidade de Porto alegre, RS. O motivo: a realização do

encontro noturno Serenata Iluminada.. Chego ao local e percebo centenas de pessoas em volta

do lago Espelho D’água. Os ocupantes do local, jovens em sua maioria, estão sentados,

deitados ou flanando pelo parque.Conversam e sorriem, beijam e abraçam, cantam e tocam,

dançam e recitam poesias em saraus improvisados ao ar livre. Bebidas, comidas e outros

produtos artesanais são comercializados, aumentando a interação entre os participantes.

Corpos, ações, sensações, imagens, cheiros, sons e luzes se misturam naquela paisagem

noturna. Uma composição de cenas em que os sujeitos atuam como personagens, realizando

inúmeras práticas, produzindo experiências, transformando aquele parque em um lugar de

aprendizagem..

(Diários de campo, novembro de 2016)

Este texto apresenta produções iniciais de dados para a pesquisa de doutorado

em andamento vinculada ao campo dos Estudos Culturais e Educação1. Aos fragmentos

de anotações retirados dos diários de campo, observações, registros fotográficos,

abordagens e conversas com indivíduos e grupos durante o evento conhecido como

Serenata Iluminada estão articuladas contribuições teóricas e metodológicas,

atribuindo credibilidade às ideias e discussões desenvolvidas.

Partindo do conceito elaborado por Ellswoerth (2005) de que determinados

locais da cidade podem se constituir em “lugares de aprendizagem”, o objetivo desta

análise consiste em investigar como determinadas práticas sociais realizadas durante a

ocupação noturna de um parque urbano e público configuram experiências de

aprendizados ao colocar seus participantes em constante interação com si mesmo, com

os outros e com o ambiente.

1Vinculada à Linha de Pesquisa dos Estudos Culturais e Educação do Programa de Pós Graduação em

Educação da UFRGS a pesquisa Pedagogias da Noite: Personagens Urbanos, Práticas Culturais e

Lugares de Aprendizagem na Noite da Metrópole tem por objetivo analisar como são produzidas as

pedagogias da noite urbana. Para tanto, as investigações enfocam espaços e tempos públicos previamente

selecionados na cidade de Porto Alegre, RS, onde são realizadas práticas culturais noturnas.

O texto está organizado em três partes. Na primeira, apresento os caminhos

teóricos e metodológicos que possibilitam adentrar espaços e tempos públicos

(SENNETT, 1988), buscando aproximações às práticas sociais cotidianas (CERTEAU,

2000) e à cultura da noite urbana (MARGULIS, 2005), além da inspiração na

“etnografia pós-moderna” (GOTTSCHALK, 1998; SANTOS, 2005) para a inserção nos

ambientes pesquisados. Na segunda parte seleciono práticas sociais cotidianas

registradas durante o referido evento noturno, reforçando seus traços pedagógicos a

partir dos encontros entre seus realizadores. Para tanto, três cenas noturnas são

compostas, visando analisar, juntamente com Maffesoli (2003, 2004) e Ellsworth

(2005), como são produzidas distintas experiências de aprendizado, constituindo aquele

local noturno como lugar de aprendizagem. Nas considerações finais, reforço como

determinados lugares de aprendizagem são identificados por meio de “espaços –entre”,

zonas intersticiais que possibilitam conectar sujeitos, práticas e objetos, produzindo a

materialidade do aprendizado em que o conhecimento se encontra em constante

processo de fabricação.

Lugares de aprendizagem noturna em espaços públicos da cidade: procedimentos

teórico-metodológicos

Sennett (1988) destaca que as palavras “público” e “privado” são básicas para

compreendermos as transformações da cultura ocidental2. O autor afirma que as

primeiras ocorrências da palavra “‘público’, na língua inglesa, identificavam esse termo

com o bem comum de toda a sociedade, acrescentando-se, perto do século XVII, ao

sentido de “‘público’ aquilo que é manifesto e está aberto à observação geral”, enquanto

[...] “‘privado’ significava uma região protegida da vida, definida pela família e pelos

amigos” (p.30).

2Os sentidos de “público” também surgem na França renascentista onde os significados atribuídos a le

public diziam respeito ao bem comum e ao corpo político, tornando-se gradualmente uma região especial

da sociabilidade. (Sennett, id., ibid.) “Na época em que a palavra “público” já havia adquirido seu

significado moderno, portanto, ela significava não apenas uma região da vida social localizada em

separado do âmbito da família e dos amigos íntimos, mas também esse domínio público dos conhecidos e

dos estranhos incluía uma diversidade relativamente grande de pessoas” (Sennett, ib., ib., p.30).

Segundo esse autor (1988) diferentes culturas entravam em contato na cidade e

estavam associadas com o público “cosmopolita da vida urbana que se movimenta

despreocupadamente em meio à diversidade e sem vínculo com o que é familiar. Desse

modo, Sennett (1988) conclui que o sentido de “‘público’ veio a significar uma vida que

passa fora da vida da família e dos amigos íntimos; na região pública, grupos sociais

complexos e díspares teriam que entrar em contato inelutavelmente. E o centro dessa

vida pública era a capital”.

Assim como os contextos urbanos sociais e públicos se modificam, também a

cultura da noite se transforma em uma composição de cenas com intensa atividade. Para

Margulis (2005), uma das oposições que permite aproximar a significação do espaço

urbano é a de dia-noite, a oposição entre luz e escuridão, ou o tempo processado

socialmente que regula a vida urbana, os horários de trabalho e descanso. Nos espaços e

tempos da noite “a cidade renasce na madrugada e se povoa [principalmente] de jovens

de ambos os sexos. Durante a noite, muitos territórios urbanos carregam um significado

diferente e também complexos itinerários se cruzam” (p. 12). Uma noite entendida

menos como período de refúgio e descanso que remete à volta para a esfera privada e

mais como composição da cultura urbana e coletiva que busca retomar espaços públicos

de convivência, produzindo experiências e aprendizados, configurando outros modos de

ser e estar em ambientes noturnos.

Olhares investigativos em direção aos lugares da noite onde são estabelecidas

relações entre os sujeitos e suas práticas, procurando conexões com a produção de seus

aprendizados, são possíveis através da ampliação dos usos e entendimentos do conceito

de pedagogia em contextos urbanos. Ellsworth (2005) considera que determinados

lugares da cidade são considerados pedagógicos, pois colocam em relação tanto as

condições exteriores como a arquitetura e demais ambientes físicos, quanto às

experiências que o sujeito realiza consigo mesmo a partir de movimentos de interação

com os espaços e os tempos da metrópole. Nesses lugares, segundo a autora, o

conhecimento e o aprendizado estão em fabricação constante, pois ao conectar o “lado

de dentro” e o “lado de fora” possibilitam o encontro de diferentes realidades a partir do

contato entre o “eu” e o “outro”. Os sentidos e sensações acionados por meio do corpo,

da mente e do cérebro de indivíduos em contato com os lugares de aprendizado

produzem distintos modos para vivenciar e se relacionar com o mundo (ELLSWORTH,

2005).

Adentrar espaços e tempos de uma cidade noturna a partir de uma perspectiva

cultural e pedagógica em busca das práticas realizadas pelos seus habitantes necessita a

inserção do pesquisador em territórios onde a vida é preenchida por múltiplos

significados e representações. Santos (2005) afirma que, ao “recuperar” o vivido pelos

habitantes locais, “os objetos trazidos, as fotos, as anotações do diário de campo/de

viagem funcionam, nesta (re)constituição, como matéria para compor/ilustrar a história

que se conta – eles dão autenticidade à narrativa do (a) contador(a)” (p.12). Compostos

por imagens, falas, gestos, práticas, sujeitos e lugares, a investigação de tais cenários

urbanos se assemelha a uma “viagem narrativa” onde é possível assumir, como destaca

Santos (2005), menos os modos de olhar e experimentar que caracterizariam um

“turista” urbano do que a experiência a partir da perspectiva de um “etnógrafo viajante”.

Gottschalk (1998), por sua vez, assevera que as produções investigativas

desenvolvidas por meio das “etnografias pós-modernas”, tanto no estilo quanto no

conteúdo, têm sido mais sensíveis às formas culturais que se apresentam no momento

contemporâneo. O autor continua, salientando que as etnografias desenvolvidas na

multiplicidade de ambientes contemporâneos necessitam estar “mais alertas às

disposições psicológico-sociais que possam ser estimuladas, mais modestas quanto às

reivindicações de possuírem a verdade e a autoridade, mais criticamente auto-reflexiva

com respeito à subjetividade e mais autoconsciente das estratégias linguistícas

narrativas”(p. 2).

Gottschalk (1998) destaca as possíveis “derivações” que podem surgir em

diversos pontos da cidade, enfatizando como isto pode produzir as “verdades locais” ou

“lógicas” próprias de cada ambiente. O mesmo autor (1998) busca inspiração na derive

3que os Situacionistas4 creditavam às cidades, onde os habitantes seriam mais do que

espectadores, e sim participantes de toda a interação no espaço urbano. Para o autor

3A expressão derive foi utilizada pelo movimento de vanguarda formado por Guy Debord, em 1951

conhecido como Internacional que propunha outras formas críticas de perceber, entender e interagir com

a cidade.Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/69. Acesso em 21/03/2015. 4 Segundo Felício (2007), os Situacionistas propunham uma forma de “psicogeografia”, estudando como

componentes geográficos, a arquitetura, a luz, o clima, os sons produzidos na cidade e o território urbano

afetavam o comportamento humano.

(1998), a etnografia pós-moderna considera a “sensibilidade” aos impactos de luz, som,

cores e cheiros presentes em diversos locais e que afetam nossos sentidos.

No entanto, a utilização de procedimentos inspirados nas etnografias pós-

modernas não dispensa tarefas essenciais como coleta, organização, interpretação,

validação e comunicação de dados, exigindo que o pesquisador permaneça constante e

criticamente atento a questões como “as subjetividades, os movimentos retóricos e os

problemas da voz, poder, política textual, limites à autoridade, asserções de verdade,

desejos inconscientes e assim por diante” (GOTTSCHALK, 1998, p.3).

Interações sensíveis com os espaços e tempos da cidade ampliam as formas de

condução dos sujeitos em lugares onde os relacionamentos entre os indivíduos e os

lugares públicos da noite urbana produzem experiências diversas e distintos

aprendizados. Segundo Ellsworth (2005), a experiência é crucial para entender os

processos pedagógicos desenvolvidos em lugares em que os processos de aprendizagem

são constituídos. No entanto, essas experiências de aprendizado nem sempre são

legíveis e transparentes, pois são constituídas por meio de “caminhos experimentais”

em que entram em cena o corpo, a mente, o cérebro e as sensações produzidas através

desses contatos com os ambientes urbanos (ELLSWORTH, 2005).

Uma das estratégias utilizadas para a identificação dos lugares de aprendizagem

noturna na cidade foi observar e registrar práticas cotidianas, penetrar nas vivências dos

sujeitos, montando cenas na paisagem de um parque púbico à noite. Investigação que

adota a perspectiva de Certeau (2005) em seguir “procedimentos – multiformes,

astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do

campo onde se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do

espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade” (p.175). Assim, nas seções

seguintes,apresento como a realização de determinadas práticas durante o encontro

Serenata Iluminada pode estar relacionado com a produção de aprendizados naquele

ambiente.

Serenata Iluminada: o lugar de aprendizagem e as cenas noturnas

Cena 1: “POA me faz sorrir” e os “abraços grátis”

“Ocupando o parque para pensar a convivência em Porto Alegre” é a descrição

do encontro noturno divulgado via redes sociais na internet e conhecido como Serenata

Iluminada. O evento é apresentado como uma causa que visa “a ocupação dos espaços

públicos da cidade, em prol de mais segurança, do direito à cidade, para que todos

possam compartilhar os parques, as ruas, com os amigos, vizinhos, familiares, enfim,

com todas as pessoas, também à noite”. Assim, pensar em serenata é pensar em noite,

iluminada, tanto tecnologicamente quanto metaforicamente, é pensar em outros modos

para investigar e entender como as práticas realizadas com o intento de ocupar espaços e

tempos públicos noturnos produzem aprendizados em determinados lugares na noite da

cidade.

“Porto Alegre está tão triste, conte pra nós um lugar que te faz feliz na

cidade!”, interpelam entusiasmadas as meninas enquanto oferecem adesivos e

conversam com os ocupantes do parque durante o evento.Momentos em que suas

açõessão registradas com fotografias e depoimentos.

Fonte acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarâes

Em meio ao burburinho de vozes e envolto pelo som dos instrumentos musicais

tocados ao vivo, escuto a empolgada descrição da campanha realizada por aquelas

jovens recém-saídas da adolescência:

A nossa campanha se chama POA ME FAZ SORRIR e ela consiste em fazer com que as

pessoas se lembrem de alguns momentos e alguns lugares que já fizeram elas sorrirem

em Porto Alegre {...} para que agente possa mostrar para outras pessoas, e talvez

outras pessoas terem a iniciativa de viver, de conhecer, de ir nesses lugares, de ter

esperança que Porto Alegre pode ser um lugar bom de novo.

Registrar fotograficamente os lugares da cidade que são lembrados através de

experiências pessoais positivas é uma prática para lidar com a dificuldade cada vez

maior, nos espaços e tempos públicos que se apresentam na cidade, de se vislumbrar os

locais onde a felicidade se acomoda. Embora o objetivo seja louvável, o que se

evidencia naquela prática são as possibilidades de experiências que são ampliadas e

produzidas durante sua realização. Experiências vividas intensamente com a interação

com os demais participantes do encontro, colocando o corpo, a mente e o cérebro em

movimentação constante para a produção de conhecimentos e aprendizados realizados

naquele lugar.

Ellsworth (2005) destaca que os aprendizados realizados em determinados

locais são difíceis de classificar como pedagógicos, pois são produzidos em lugares

peculiares, lugares que só podem ser identificados se mudarmos nosso ângulo de visão.

Segundo a mesma autora (2005, p.5), tais lugares são considerados “anômalos”, pois os

aprendizados e práticas que aí se desenvolvem são difíceis de serem vistos como

pedagógicas se “apenas os olharmos do ‘centro’ dos discursos e práticas educativas

dominantes – posição que leva o conhecimento a ser uma coisa já feita e o aprendizado

uma experiência já conhecida” [grifos da autora]. Mas, se olharmos para esses lugares

como possibilidades de multiplicar as potencialidades de aprendizados, a “excêntrica

conotação da frase ‘a experiência da auto-aprendizagem em construção’ torna sua força

pedagógica mais aparente. [grifos da autora] (p. 5).

Os lugares de aprendizado propostos por Ellsworth (2005) podem ser

identificados como espaços em que diversas práticas individuais ou em grupo são

realizadas. Para Ellsworth (2005), diferentes realidades colocadas em interação em um

mesmo espaço e tempo produzem experiências crucias para o entendimento entre o eu e

o mundo. Lugares de experiências vividas que se transformam em aprendizados,

colocando diferentes realidades em um mesmo espaço e tempo.

Durante a caminhada investigativa que eu continuava empreendendo pelo parque,

observo em diferentes grupos, distribuindo naquele local o gesto do abraço,

simbolizando as afetividades que aquele encontro possibilita. Momento em que me

aproximo e registro dois meninos oferecendo “abraços grátis”. (Diários de campo,

2016)

Na potência daquelas aproximações físicas, e “grátis”, são promovidos atos de

afetividade, assumindo tanto uma sutil forma de resistência às sensações de insegurança

e medo que provocam o esvaziamento dos espaços públicos de lazer à noite, quanto ao

que “parece ser a característica da comunhão sensível ou afetiva que vem substituir a

sociedade puramente utilitária”(Maffesoli, 2004, p.40).

Maffesoli acredita (2004) em experiências sociais em que repousa a “razão

sensível”, pois a sensibilidade deposita ênfase na vida e na experiência, mas também no

banal e no cotidiano, acentuando e pluralizando as razões e as sensações. Para o autor

(2004), é na fusão da experiência, da vivência e da coletividade que podemos encontrar

o fundamento e a legitimidade da razão que entra em sinergia com o sensível. Os

espaços e tempos imaginados, sentidos e praticados estão repletos de vivências

cotidianas, de experiências plurais que se fundem por meio do contato com o outro,

pois, como afirma Maffesoli (2004, p. 42), “é essa experiência do outro, a experiência

de sua vivência através da minha que fundamenta a compreensão dos diferentes

‘mundos’ constitutivos de um dado período”.

As formas de ocupar os espaços e tempos da noite naquele parque público estão

articuladas com as sensações que emergem a partir dos encontros. Encontros presenciais

por meio da potência do corpo, que está fisicamente presente e promove a emergência e

a experiência dos aprendizados que ali se efetuam. Realizadas em um evento público

onde diferentes encontros acontecem, essas iniciativas buscam tanto os “locais felizes”

em uma metrópole ameaçada pela tristeza claustrofóbica, quanto atitudes afetivas que

desejam retomar a prática cotidiana dos usos sociais de ocupação do espaço público

Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães

urbano.Sobretudo, através dessas práticas,os aprendizados estão em constante produção,

estão continuamente sendo feitos e colocando seus realizadores em relação de

experimentação com si mesmo e com as realidades do outro.

Cena 2 : o“saber-fazer pessoal” do aprendizado

Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães

Para fugir das totalizações dos olhares que cegam outras visibilidades possíveis,

continuei na busca de detectar demais práticas em meio aquele agrupamento social

noturno. Em alguns pontos do local existia a comercialização de bebidas, alimentos e

outros produtos fabricados artesanalmente, práticas que remetiam a formas

contemporâneas de escambo, pois seus realizadores trocavam entre si suas produções.

Para Certeau (2000), desde que o conceito de “popular” foi inscrito para identificar uma

hierarquização entre o trabalho científico e industrial sobre a produção que não tem por

finalidade exclusiva o lucro, baseando-se, assim, por outros modelos socioeconômicos,

certas práticas e saberes tem sido relegadas à “marginalidade” social.

Certeau (2000), ao usar o modelo da “sucata” para identificar as práticas que

subvertem a força da economia contemporânea e fogem da lógica industrial, de tempo e

fins lucrativos pode nos auxiliar a encontrar nas práticas “artesanais” observadas

durante o evento Serenata Iluminada o que o autor denomina de um “saber-fazer

pessoal”. Saberes e fazeres que servem menos pela forma como o seu material é

produzido, de forma “popular” ou “artesanal” e mais como possibilidades pedagógicas,

pois se configuram como práticas culturais que, além de realizar rupturas na ordem

social e econômica, sua produção e troca estão envoltas em aprendizados e

conhecimentos.

Ellsworth (2005) comenta que “se a pedagogia consiste de práticas e processos

que transformam qualitativamente os modos como pensamos e atuamos no mundo, isto

também transforma qualitativamente nossa incorporação no e do mundo”5 (p.118). Isto

significa dizer que, na pedagogia, o objeto de atenção e curiosidade pode ser

incorporado na experiência do aprendizado de si. Segundo a autora, eventos, objetos e

ambientes estão materialmente e profundamente implicados com o cérebro, a mente e as

sensações corporais que são cruciais para entender como são processados esses

movimentos de interação. Por isso, para a autora (2000), ao engajar-se com a

materialidade do tempo e do lugar, a pedagogia está implicada com as sensações e os

movimentos que são cruciais para potencializar o conhecimento e o entendimento,

produzindo a materialidade do aprendizado de si.

O “saber-fazer pessoal” dessas práticas vai além de uma manufatura artesanal,

elas promovem encontros, fabricando conhecimentos e vivências por meio de trocas em

que a comunicação, a reciprocidade, as amizades são produzidas através da interação

entre os sujeitos e os espaços e tempos em que estão inseridos. Observar a realização de

determinadas práticas durante aquele encontro noturno possibilitou compreender como

são produzidas diferentes experiências, movimentos e atuações, transformando aquele

local em um lugar de aprendizado.

Cena 3: sensações e aprendizados

5 As traduções da autora, neste texto, são de minha responsabilidade.

Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães

Não sei o que o rapaz lia, posicionando-se como um pensador introspectivo na lateral

do lago conhecido como Espelho D´água parecia não se importar com os passantes em

volta de si. Seguiu absorto... Em frente ao mesmo lago, músicos tocavam e cantavam

em uma interação com o público presente no encontro. Canções e luzes na noite,

chegando aos lugares mais escondidos do parque, atingindo indivíduos e grupos,

movimentando seus corpos..(Diários de campo, 2016)

Maffesoli (IE, 2003, p. 56) constata que existe uma dificuldade em certos

intelectuais de captarem “a parte de poesia que é preenchido o cotidiano”. Poesia que,

segundo o autor, certamente não é reivindicada como tal, mas que se encontra com força

“nessas comunicações não verbais pelas quais se expressa a paixão social” (p.56).

Certeau(2005) também pode nos auxiliar nessa aproximação do olhar ao afirmar que

uma “prática do espaço é indissolúvel do lugar sonhado”, é o “[...] processo indefinido

de estar ausente e a procura de um próprio” (p. 183). De acordo com esse autor (2000),

aos modos como os praticantes operam, ou como produzem suas “maneiras de

fazer”,um lugar praticado também pode ser vivido,sentido e aprendido de distintas

maneiras.

Aliada à contribuição de tais autores, a perspectiva adotada por Ellsworth (2005)

possibilita percorrer outros caminhos para entender como distintas formas pedagógicas

podem coexistir, além de serem produzidas e colocadas em funcionamento em diversos

lugares noturnos da cidade. Descobrir um novo sentido para a pedagogia tem se tornado

a busca e o desejo para Ellsworth (2000) articular uma “nova pedagogia das sensações”.

Tratam-se de pedagogias fluídas, formas de condução que emergem a partir de

múltiplos processos de interação, pois os saberes e aprendizados podem ser

“esculpidos” entre o eu e o mundo de diferentes maneiras, não seguem uma lógica

linear. Surgem “de um lugar que não pode ser acessado ou autenticado através da

linguagem proposicional ou referencial”6 (ELLSWORTH, 2008,p.8).

Para Ellsworth (2005) o “desconhecido” ou o “desconhecimento” é a radical

relação e interação do sujeito com o “outro” por meio de um espaço de transição, e é

esse “trânsito” entre o exterior e o interior que vai estabelecer o conhecimento. Segundo

a autora (2005), o espaço in-between, o “espaço entre”, que estabelece a diferença, é

espaço que encontra um “not me”, um eu que ainda não estava descoberto e que se

descobre em ações e práticas como respostas para mudar os encontros, tanto dentro de si

quanto fora.

O aprendizado de si é entendido por Ellsworth (2005,p.29) “[....] como um

processo engajado de duração e movimento, articulado através de redes de sensações e

por meio de panoramas de espaços, corpos e tempos”. Assim, a música, a poesia,

formas de artes ou práticas em que o corpo, a mente e o cérebro estão em

funcionamento constante, produzem sensações que colocam em interação o indivíduo

com os ambientes em que se encontram. São experiências de aprendizagem, pois, de

certo modo, forçam interações em lugares onde tudo se mistura: sons, ruídos, luzes,

vozes, arquitetura, os sujeitos e seus corpos. Nesse sentido, Ellsworth (2005) considera

as práticas realizadas em tempos e espaços como construtores de sensações, pois o

“corpo” dos ambientes pedagógicos encontra com o corpo dos sujeitos por meio de

redes de relações de interação produzidasnos lugares de aprendizados.

Continuei não sabendo o que o rapaz lia na beira do lago, continuei observando a

interação dos indivíduos durante a apresentação musical. Um olhar a partir de um ponto

fixo, a partir de uma perspectiva direcionada, refutaria a possibilidade de encontrar

aprendizados naquelas ações, mas, no espaço-tempo daquele lugar, eles eram

6 No trecho completo: Such knowings arise, in other words, from a place that can be neither accessed nor authenticated through propositional ou referential language (ELLSWORTH, 2005, p.8).

produzidos por meio da interação entre os sujeitos e tudo o que acontecia em sua volta.

Condição externa que atuava “internamente” por meio do corpo, da mente e do cérebro

dos indivíduos que ali se encontravam, conexões realizadas por meio de encontros entre

o “eu” e o ambiente onde os sujeitos participantes do encontro experimentavam outras

formas de viver, de sentir, de aprender.

Os sujeitos seguiam, caminhando pelo parque, enquanto a música entrava pelos

seus ouvidos, invadia seus cérebros e movimentava seus corpos. Tudo parecia interagir

naquele lugar. O “lugar sonhado” parecia encontrar os “lugares de aprendizagem”

através das sensações produzidas em seus espaços e tempos.

Considerações finais

Segundo Ellsworth (2005) as experiências de aprendizado, são produzidas

através de caminhos processuais entre o “eu” e as condições do lugar, ligando as

dimensões “interiores” e “exteriores”. São experiências de aprendizado, que se

localizam nos interstícios, práticas que se realizam “entre” espaços e tempos,

produzindo conexões através de encontros. Espaços, tempos, indivíduos, arquiteturas,

práticas, corpos e sensações se fundem como composições que colocam em contato os

sujeitos e os distintos modos de ocupar, conviver e aprender em determinados lugares

da cidade. Lugares de aprendizado onde os indivíduos vivem em redes de proximidades

presenciais, físicas, realizando práticas sociais, constituindo modos de ser e estar

consigo, com os outros e com o ambientes em que se encontram.

Os lugares de aprendizado evidenciam o que Maffesoli (2004) denomina

“ligância” social no sentido dado pelo termo francês como “aquilo que me liga ao

outro” (p.49), ou, conforme o autor, sua significação inglesa “que remete à confiança

que podemos sentir nos outros, ou à confiança que experimento com terceiros diante de

algo que nos é externo”(p.49). Assim, continua o mesmo autor (2004), “o meio, misto

como é, seria condição de possibilidade da existência humana, a partir da existência

social e da existência natural. Isso equivale a dizer que o ‘eu só toma consciência de si’

como relação” (p.49).

A composição das cenas noturnas a partir das práticas observadas e registradas

durante o encontro Serenata Iluminada demonstram que os aprendizados podem ser

produzidos por meio de relações entre o corpo, a mente e o cérebro, pois estão em

contato com as materialidades presentes no lugar de acontecimento da ação.

Aprendizados produzidos por meio de conhecimentos e saberes que estão

continuamente em fabricação, fugindo de lógicas que teimam em constituir a

aprendizagem como algo acabado. Práticas e experiências de aprendizados que ampliam

o entendimento de “pedagogia”, pois nem sempre são nítidas as fronteiras pedagógicas

que demarcam, conduzem e modelam os sujeitos envolvidos nesses processos.

Diante disso, finalizo esse texto seguindo Ellsworth (2005) e seu convite para

repensar como fabricamos e são fabricadas as teorias pedagógicas sobre sujeitos

humanos, como incorporamos experiências de movimentos, ações e sensações no

mundo, como realizamos leituras aos lugares de aprendizagem da cidade e, sobretudo,

repensar sobre a forma como conhecemos e usamos as teorias no campo da educação.

REFERÊNCIAS

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1994.

ELLSWORTH, Elizabeth. Places of Learning: media, architecture, pedagogy. London;

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MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do tragico nas sociedades pós-

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