fernanda sobral et all - paradigmas em ciências sociais

68
SÉRIE CEPPAC ISSN Formato Eletrônico 19822693 010 Paradigmas em Ciências Sociais: Cinco ensaios interdisciplinares Fernanda Sobral Lucio Remuzat Rennó Jr. Cristhian Teófilo da Silva (organizadores) Textos de: Le-lyne Paes Leme Vasconcelos Nunes Ticiana Nascimento Egg Daniel Capistrano Renata Motta Irmina Anna Walczak Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas Brasília 2007 1

Upload: cabradapeste

Post on 01-Jul-2015

345 views

Category:

Documents


20 download

DESCRIPTION

Uploaded from Google Docs

TRANSCRIPT

Page 1: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

SÉRIE CEPPACISSN Formato Eletrônico 19822693

010

Paradigmas em Ciências Sociais: Cinco ensaios interdisciplinares

Fernanda SobralLucio Remuzat Rennó Jr.Cristhian Teófilo da Silva

(organizadores)

Textos de:

Le-lyne Paes Leme Vasconcelos NunesTiciana Nascimento Egg

Daniel CapistranoRenata Motta

Irmina Anna Walczak

Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas

Brasília 2007

1

Page 2: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Universidade de Brasília

Reitor da UnB: Thimothy Martin MulhollandDiretora do ICS: Lourdes Maria BandeiraDiretora do CEPPAC: Sônia RanincheskiEditor da Série CEPPAC: Cristhian Teófilo da Silva

A Série Ceppac é editada pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas desde 2006. Visa a divulgação de textos, artigos, ensaios e resultados de pesquisa nas Ciências Sociais e no continente americano. Divulgados na qualidade de textos de trabalho, a Série Ceppac incentiva e autoriza sua republicação. Solicita-se permuta

ISSN formato impressoISSN formato eletrônico 19822693

Série Ceppac vol. 010, Brasília: CEPPAC/UnB, 2007.

Série Ceppac has been edited by the Graduate Center for the Compartive Research on the Americas of the University of Brasilia since 2006. It seeks to disseminate working papers, articles, essays and research results in the area of Social Sciences and in the american continent.. In disseminating works in progress, this Series encourages and authorizes their republication. We encourage the exchange of this publication with those of other institutions.

ISSN print formatISSN electronic format 19822693

Série Ceppac vol. 010, Brasília: CEPPAC/UnB, 2007.

2

Page 3: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Paradigmas em Ciências Sociais: Cinco ensaios interdisciplinares

Fernanda SobralLucio Remuzat Rennó Jr.Cristhian Teófilo da Silva

(Organizadores)1

Apresentação

Para aqueles que não enxergam as bancadas, microscópios, tubos de ensaio e reagentes das Ciências Sociais, os cinco ensaios interdisciplinares aqui apresentados representam um estimulante colírio. Se nas assim chamadas Ciências Normais o trabalho e pensamento científicos tendem a ser percebidos pela ênfase na reprodução estereotípica de fórmulas, equações e experimentos, nas Ciências Sociais a definição corrente tende para um uso articulado de noções, conceitos e teorias no terreno textual.

Não se trata de mero paralelismo, ver textos, onde outras ciências acionariam cálculos. Entretanto, o texto e o cálculo são manifestações de todas as ciências, ainda que sejam mais típicos em certas áreas que em outras. O traço distintivo reside nos modos de trabalhar o texto e o cálculo, de hierarquizá-los na produção do conhecimento, de reconhecer seu respectivo potencial e limitação para a elucidação da realidade. É neste sentido, que os ensaios aqui reunidos mostram, ou demonstram, como pensam os cientistas sociais em formação.

Concordamos com Thomas Kuhn, para quem o aprendizado dos paradigmas é o que melhor prepara o futuro cientista para a profissão que escolheu integrar. O gênero “ensaio” é aqui estimulado como um artifício pedagógico para que o iniciante nas Ciências Sociais exercite conexões teóricas e arrisque trilhas históricas que desenharam as matrizes disciplinares multiparadigmáticas das Ciências Sociais tal como as conhecemos e praticamos hoje.

Deste modo, o leitor encontrará nos ensaios seguintes exercícios interpretativos marcados por referências múltiplas e cruzadas a autores, disciplinas, teorias e circunstâncias históricas diversas. Alguns o levarão a uma melhor compreensão dos debates que caracterizaram as fronteiras disciplinares tais como as percebemos, outros causarão suspeita, inquietação e desejo de demolição destas mesmas fronteiras. Entendemos que as controvérsias assim geradas são formadoras do espírito científico necessário para a prática interdisciplinar das Ciências Sociais no novo século.

Os ensaios a seguir refletem a variedade de pensamento e visões sobre as Ciências Sociais que existem na Antropologia, Sociologia e Ciência Política.

O primeiro ensaio de Le-lyne Nunes se propõe reinterpretar a contribuição de Thomas Kuhn, apresentada no clássico contemporâneo: “A estrutura das revoluções científicas”, para a compreensão da cientificidade das Ciências Sociais. Para tanto, lança mão de autores posicionados em disciplinas distintas, como Geertz e Cardoso de Oliveira, na Antropologia; Stephens e Beardsley na Ciência Política; e Bourdieu na Sociologia. Sugere, assim, a validade de aplicação da noção de paradigma como modelo de interpretação da natureza das Ciências Sociais, desde que enfatizado em sua

1 Professores do CEPPAC, UnB.

3

Page 4: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

dimensão sociológica de “comunidade científica” constituidora de campos multiparadigmáticos.

O segundo ensaio, de Ticiana Egg, aborda a difusão do positivismo enquanto postura (ethos) metodológico das ciências. Constrasta o bias positivista em autores situados na Antropologia, Sociologia e Ciência Política. Com sua revisão teórica, Ticiana Egg questiona percepções de que o positivismo teria sido superado enquanto concepção norteadora da prática científica nas Ciências Sociais. Aponta, assim, para a perenidade dos paradigmas nas Ciências Sociais o que é um traço distintivo crucial para apreendermos sua natureza multiparadigmática.

O ensaio de Daniel Capistrano pretende trabalhar o uso do conceito de paradigma de acordo com as releituras feitas por Roberto Cardoso de Oliveira e Philip Beardsley, para a Antropologia e para a Ciência Política, respectivamente. Em suas palavras: “Segundo esses autores, a aplicação da visão kuhniana de paradigma único para cada disciplina científica pode ser viável para as ciências exatas, mas enfrenta grandes problemas quando pensada para as Ciências Sociais”. Dentro dessa perspectiva, Capistrano busca enxergar uma relação entre o desenvolvimento de determinadas tradições de pensamento dentro de disciplinas pensadas como distintas, mais especificamente, a consolidação de teorias em torno do conceito de “cultura” na Antropologia e de “cultura política” na Ciência Política.

O quarto ensaio, de Renata Motta, busca recuperar a ruptura epistemológica fundamental da teoria social, nomeadamente, a ruptura com a noção de “natureza”, para postular que as Ciências Sociais correm o risco de perderem sua razão de ser caso optem pela “renaturalização positivista” da sociedade. Para ilustrar seu argumento ela avalia criticamente como autores que adotam o modelo teórico da “Escolha Racional” tomam por base o modelo de renaturalização proposto no âmbito da economia. Seu texto é elucidativo do quanto uma leitura meta-disciplinar é crucial para o exercício da vigilância epistemológica sugerida por Bourdieu, Chamoredon e Passeron.

O quinto e último ensaio de Irmina Walczak, ambiciona discutir o paradigma hermenêutico na qualidade de um paradigma compartilhado pela Antropologia, Sociologia e Ciência Política. Sua ênfase neste paradigma e as tensões que instaura no “campo semântico” da matriz disciplinar de cada disciplina demonstra a validade do insight de Roberto Cardoso de Oliveira par quem este paradigma instaura uma desordem produtiva nos paradigmas da ordem pré-existentes. Nestes termos, a perspectiva hermenêutica viria não somente aproximar a comunicação entre os paradigmas de uma disciplina, mas também aproximar a comunicação interdisciplinar nas Ciências Sociais.

***

4

Page 5: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Paradigma e comunidade científica: Reinterpretando os conceitos de Kuhn para as Ciências Sociais

Le-Lyne Paes Leme Vasconcelos Nunes2

Introdução

É usual a percepção das Ciências Sociais como um tipo diferente de ciência. Isso se deve a algumas de suas principais características como objeto, método, pretensão de objetividade e, principalmente, a ausência de um paradigma dominante. Estes fatores fazem com que muitas vezes questione-se o caráter científico do conhecimento social. Desta forma, este texto pretende analisar como os conceitos de paradigma e de comunidade científica de Kuhn podem ser aplicados às Ciências Sociais. O interesse é entender como estas duas categorias foram utilizadas ou reinterpretadas por alguns cientistas sociais para explicação do campo social. Para tanto faz-se um esforço comparativo entre o conceito e a argumentação dada por Kuhn com a de outros autores, atentando para a forma como elas se aproximam ou afastam.

A discussão sobre o caráter científico das Ciências Sociais se constitui em um amplo debate, para o qual se utilizará como referência o trabalho de Thomas Kuhn (2004) A Estrutura das Revoluções Científicas. Sua obra, escrita nos anos cinqüenta e publicada em 1962, une epistemologia à história da ciência, permitindo a reflexão sobre aspectos fundamentais do conhecimento científico. Para Geertz (2001), as idéias de Kuhn formam o pontapé inicial da Sociologia do conhecimento para o estudo das ciências, desencadeando uma verdadeira revolução.

Partindo das categorias básicas de Kuhn, vários autores, principalmente das Ciências Sociais, rediscutem suas idéias, levantando questionamentos sobre a aplicação das mesmas às suas áreas de estudos. Como esclarece Geertz (2001), a obra de Kuhn “Tornou-se a imagem mesma do estudo da ciência como iniciativa mundana; tornou-se para cunharmos uma expressão, seu paradigma dominante, pronto para ser imitado, ampliado, desdenhado ou derrubado” (GEERTZ, 2001, p. 145). É exatamente o conceito de paradigma e de comunidade científica para Kuhn, juntamente com algumas das releituras destes termos aplicadas ao campo das Ciências Sociais, o presente foco de interesse.

O pano de fundo desta discussão é a demanda das Ciências Sociais em se

firmarem como ciência e usufruírem da legitimidade dela decorrente. No tangente a seu campo, Bourdieu esclarece que:

Em todo caso, já faz muito tempo que a Sociologia saiu da pré-história, isto é, da idade das grandes teorias da filosofia social com a qual os leigos frequentemente a identificam. (...) A Sociologia possui o triste privilégio de ser incessantemente afrontada quanto à questão de sua cientificidade. Somos mil vezes menos exigentes em relação à História ou à Etnologia, para não falar da Geografia, da Filosofia ou da Arqueologia. (BOURDIEU, 1983, p. 16).

Neste sentido, o autor afirma que, para buscar seu reconhecimento e segurança enquanto ciência, muitos pesquisadores são levados a adotar aspectos ingênuos de legitimidade científica. A ansiedade para se aproximar do modelo das ciências exatas e terminar com a dicotomia “literatura versus ciência”, acarretou, na Sociologia, o gosto 2 Mestranda em Ciências Sociais no CEPPAC, UnB.

5

Page 6: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

pelo método, principalmente, estatístico. Surge então a difundida crítica de que as ciências da natureza falam de seus resultados, enquanto as ciências do homem falam de seus métodos (BOURDIEU, PASSERON & CHAMBOREDON, 2004).

Para compreender como a análise de Kuhn e, principalmente, os conceitos de paradigma e comunidade científica, podem ser estendidos às Ciências Sociais, observar-se-á como alguns cientistas sociais entenderam suas idéias e as reinterpretaram para seus campos de pesquisa. Para tanto, este artigo está dividido em três seções e cada uma consiste em um esforço comparativo entre a abordagem de Kuhn com a de outros autores. A primeira terá como foco o conceito de paradigma, cujo entendimento é base para compreensão do pensamento de Kuhn. A segunda abordará a possibilidade de existência de campos multiparadigmáticos. Mesmo sabendo que Kuhn não utiliza este termo, muitos cientistas sociais que dialogam com sua obra o fazem, gerando a necessidade de inserção desta seção Por fim, a última seção enfatizará como se estruturam e operam as comunidades científicas.

A centralidade do Paradigma

A obra A Estrutura das Revoluções Científicas consiste em um didático esforço de exposição da estrutura das ciências, sua forma de funcionamento interno e o modo como ocorrem as mudanças nas suas percepções básicas. O elemento chave na análise de Kuhn é o conceito de paradigma, no qual se assenta toda a ciência normal3. Apesar das numerosas críticas sobre a suposta falta de rigor conceitual com o qual Kuhn utiliza o termo, ele afirma que a noção de paradigma diz respeito “(...) às realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” (KUHN, 2006, p. 13).

O conceito de paradigma não pode ser confundido com teoria ou matriz disciplinar. Talvez grande parte da dificuldade de apreensão do significado do conceito esteja ligada à necessidade de distinção semântica entre eles. Kuhn, rápida e sucintamente, defende que teoria difere do conceito de paradigma por este possuir maior alcance e ter a natureza mais abrangente do que a teoria. A união entre o paradigma e a teoria resultaria na matriz disciplinar (KUHN, 2006).

O paradigma corresponde ao sustentáculo da ciência, uma vez que diz respeito

ao consenso sobre as premissas básicas do campo, possibilitando a pesquisa e definindo seu escopo. Correspondem a modelos de solução de quebra-cabeças para a comunidade pertinente, funcionando como um conjunto de crenças e valores (KUHN, 2006).

A importância da existência de um paradigma e de toda a estrutura valorativa e organizativa condensada por ele deve-se ao fato de que, na sua ausência, todos os fatos ligados a certo campo do conhecimento podem parecer igualmente relevantes. Esta ausência de consenso configuraria um enorme empecilho para o desenvolvimento da ciência, impossibilitando a existência de uma ciência normal (KUHN, 2006).

Conforme foi dito, Kuhn afirma que a ciência normal é sustentada por um paradigma. Contudo, este não responde a todos os questionamentos propostos, logo podem surgir acontecimentos novos que o paradigma não consiga explicar. Muitas

3 Ciência normal, para Kuhn (2004) diz respeito a pesquisa baseada em realizações científicas reconhecidas por uma comunidade científica como fundamentos para a prática posterior.

6

Page 7: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

vezes a comunidade científica ignorará estes eventos, a fim de preservar o paradigma dominante. Entretanto, estas novidades podem gerar problemas que resistam às regras e procedimentos comuns. São as chamadas anomalias, as quais introduzem questões não abarcadas pelo paradigma vigente, acarretando uma desorientação na ciência normal. Para Kuhn:

E quando isso ocorre – isto é, quando os membros da profissão não podem mais esquivar-se das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica – então começam as investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência. (KUHN, 2006, p24).

O processo de mudança de um paradigma para outro é chamado revolução científica e gera uma alteração nos padrões e problemas existentes no arcabouço científico. Novos problemas ganham legitimidade para serem cientificamente estudados e novas soluções são pesquisadas. Estes estudos inovadores acarretam mudanças nas regras que governavam a prática anterior da ciência normal. Com a rejeição do paradigma anterior, um novo entra em cena, significando mais do que um incremento do anterior. Constitui uma reconstrução e reavaliação do mesmo, logo, não se trata de um processo simples ou rápido e sim de uma revolução, como empregado por Kuhn. Um paradigma adquire a nova posição de dominante por ser mais bem sucedido que seus competidores na resolução de alguns problemas. À ciência normal cabe a atualização da promessa de sucesso do novo paradigma (KUHN, 2006).

Dada a provável ausência de um paradigma dominante nas Ciências Sociais, elas não parecem se assemelhar ao conceito kuhniano de ciência normal. Kuhn não se aprofunda neste aspecto e deixa claro que “Permanece em aberto a questão a respeito de que áreas da ciência social já adquiriram tais paradigmas. A história sugere que a estrada para um consenso estável na pesquisa é extraordinariamente árdua” (KUHN, 2006, p. 35). Esta isenção do autor torna-se delicada quando é lembrado seu ponto de que: “A aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais esotérico que ele permite é um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo científico que se queira considerar” (KUHN, 2006, p. 31). Isto ocorre porque os paradigmas possibilitam a existência de generalizações simbólicas, as quais parecem aumentar o poder de uma ciência.

Kuhn no prefácio da sua obra é um tanto evasivo no que tange ao conhecimento social, até porque este não constitui seu objeto de estudo. Ao descrever as diferenças entre uma comunidade de cientistas sociais e de uma comunidade de pesquisadores ligados às ciências naturais, afirma:

Fiquei especialmente impressionado com o número e a extensão dos desacordos expressos existentes entre os cientistas sociais no que diz respeito à natureza dos métodos e problemas científicos legítimos. Tanto a história como meus conhecimentos fizeram-me duvidar de que os praticantes das ciências naturais possuam respostas mais firmes ou mais permanentes para tais questões do que seus colegas das Ciências Sociais. E contudo, de algum modo, a prática da astronomia, da física, da química ou da biologia normalmente não evoca as controvérsias sobre fundamentos que atualmente parecem endêmicas entre, por exemplo, psicólogos ou sociólogos.” (KUHN, 2006, p. 12, 13)

Nota-se que o desacordo entre os cientistas sociais estaria nas questões básicas, como método e problemas legítimos. Mas até que ponto esta ausência de certezas em relação às Ciências Sociais as impossibilitaria de se firmarem enquanto ciência?

7

Page 8: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Partindo da obra de Kuhn, vários cientistas sociais reinterpretam o conceito de paradigma para análise de seus campos de pesquisa. A sensação de que as conclusões e a descrição de ciência de Kuhn não parecem funcionar muito bem para as Ciências Sociais acarretou vários estudos posteriores, como a reinterpretação do conceito de paradigma. Nestas análises, as Ciências Sociais são interpretadas como possuidoras de paradigmas, mas estes possuem naturezas distintas da descrita por Kuhn.

Jerone Stephens (1973), crítico do trabalho de Thomas Kuhn, ressalta que muitos cientistas políticos, para evitarem as críticas e questionamentos sobre a natureza de suas formulações, definem sua pesquisa apenas como enquadramentos para análises. Esta isenção em classificar o próprio trabalho como científico torna-se fator ainda mais delicado quando o autor aponta que é tênue a diferenciação entre os períodos pré-paradigmáticos, paradigmáticos e pós-paradigmáticos, pois o que muda em cada um deles é apenas a natureza do paradigma conquistado (STEPHENS, 1973). Tendo em mente a afirmação de Kuhn que “Sem o compromisso com um paradigma não poderia haver ciência normal” (KUHN, 2004, p. 135), e utilizando o argumento de Stephens sobre a pouca diferenciação paradigmática entre os períodos da ciência, o significado teórico da ciência normal fica bastante fragilizado. Já que nos três períodos há presença de um paradigma, mudando apenas a natureza do mesmo, qual é então a diferença e a necessidade de periodização? E mais, sabendo-se que um paradigma deve ser suficientemente aberto e que, quando um é rejeitado outro já deve estar disponível, o peso e importância do mesmo se tornam cada vez mais questionáveis (STEPHENS, 1973).

Adota postura bastante crítica ao defender que o conceito kuhniano de paradigma contribui muito pouco para a compreensão da Ciência Política, inclusive no esforço de distinção entre as formulações produzidas. O conceito não permite a separação entre as formulações que incrementam o conhecimento político das que possuem pouca utilidade (STEPHENS, 1973).

Stephens afirma que Kuhn apenas trocou o conceito de teoria pelo de paradigma, pois a conceitualização deste faz com que todas as formulações científicas se assemelhem a paradigmas. Neste sentido, Stephens comenta: “In his reformulation, too, Kuhn, begins to recognize what he previously had called a paradigm was what scientists themselves would call a theory or a set of theories” (STEPHENS, 1973, p. 474).

Neste mesmo sentido, Bourdieu reconhece que a Sociologia enquanto ciência sofre de pressões muitas vezes desprovidas de sentido e explicita: “Sob os apelos de urgência de uma teoria sociológica, confundem-se, com efeito, a exigência insustentável de uma teoria geral e universal das formações sociais e a exigência inelutável de uma teoria do conhecimento sociológico.” (BOURDIEU, PASSERON & CHAMBOREDON, 2004, p. 43)

A pretensão de uma teoria universal remete ao conceito de paradigma como realização científica universalmente reconhecida, entrelaçando semanticamente os dois conceitos. A ansiedade por uma teoria universal e geral não permite, segundo os autores, perceber que as grandes teorias clássicas são na verdade os fundamentos de teorias parciais, uma vez que se referem à determinada natureza de fatos. A teoria do conhecimento sociológico apenas possibilitaria a elaboração de teorias parciais da realidade social, sem alcançar a sua totalidade. Vale ressaltar que a linguagem do

8

Page 9: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

conhecimento social não pode ser confundida com o resultado da produção científica, ou, como elucida Bourdieu: “(...) o princípio unificar do discurso propriamente sociológico que não deve ser confundido com uma teoria unitária do social”. (BOURDIEU, PASSERON & CHAMBOREDON, 2004, p. 43)

Mesmo sem discutir diretamente o conceito de paradigma, Bourdieu nega a possibilidade de existência de uma teoria geral e universal para a Sociologia, caminhando de encontro à idéia kuhniana de ciência.

A negação de uma abordagem ou teoria geral também é realizada por Clifford Geertz (1988), para quem as contribuições teóricas dos ensaios dificilmente podem ser abstraídas a ponto de constituírem uma “teoria cultural”. Isto porque “As formulações teóricas pairam tão baixo sobre as interpretações que governam que não fazem muito sentido ou têm muito interesse fora delas” (GEERTZ, 1988, p. 36). Curiosamente, a análise cultural quanto mais profunda, menos completa. O compromisso da teoria, na etnografia, consiste em fornecer o vocabulário para que o ato simbólico seja capaz de expressar-se. Como o progresso da Antropologia interpretativa ocorre com o refinamento do debate, a precisão do mesmo é crucial para o desenvolvimento da ciência (GEERTZ, 1988).

Nota-se que, para estes autores, a existência de um paradigma ou de uma teoria geral, como podem ser interpretados os argumentos de Bourdieu (2004) e Geertz (1988), não parecem ser aplicáveis às Ciências Sociais. Já Stephens defende que possuir um paradigma dominante representaria apenas o esforço de uma comunidade científica em impor uma teoria, excluindo suas rivais. Este argumento é desenvolvido por cientistas sociais que vêem seu campo como multiparadigmático.

Campos multiparadigmáticos

Outras contribuições que favorecem a compreensão da natureza do campo das Ciências Sociais vêm de autores que não modificam o conceito inicial de paradigma, proposto por Kuhn. Ao contrário, eles o utilizam como base principal de sua argumentação. As Ciências Sociais são vistas como ciências, mas com a peculiaridade de possuírem mais de um paradigma dominante.

Um possível argumento articularia a realidade multiparadigmática das Ciências Sociais aos períodos pré-paradigmáticos descritos por Kuhn, os quais seriam caracterizados pela competição entre várias escolas pelo domínio do campo. A ocorrência de realizações relevantes levaria o número de escolas a se reduzir até que houvesse a prevalência de apenas uma. O tipo de pesquisa que se realizaria a partir daí seria marcada pela eficiência na solução de problemas e não na definição de quais seriam eles (KUHN, 2006).

Entretanto, afirmar que as Ciências Sociais se assemelham mais ao período pré-paradigmático do que à ciência propriamente dita não é ponto em que se quer chegar. Aqui o argumento é que as Ciências Sociais se constituem como ciências multiparadigmáticas, extrapolando o pensamento de Kuhn de que apenas em situações raras seria possível a coexistência pacífica de dois paradigmas.

Uma das contribuições para a Ciência Política vem de Philip L. Beardsley

9

Page 10: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

(1974), o qual propõe algumas indagações sobre o campo para concluir que ele pode e deve se ater a uma condição multiparadigmática. Partindo de três perguntas temporais, quais sejam, se a Ciência Política já possuiu um paradigma no passado, se conquistam um agora ou se possuirão no futuro, e de uma quarta pergunta de ordem valorativa, qual seja, se é desejável que ela faça esta conquista, o autor observa a história do campo e algumas das principais discussões que o permearam.

Para responder às perguntas propostas, retoma alguns diálogos entre Truman e Almond elucidando a clara ausência de consenso existente entre eles no tocante à provável época de emergência do paradigma na Ciência Política. Tal dissenso não poderia existir, uma vez que, para Kuhn, o paradigma é algo facilmente identificável. O diálogo entre Truman e Almond data, respectivamente, de seus escritos de 1965 e 1966, ou seja, poucos anos depois da primeira edição da Estrutura das Revoluções Científicas, em 1962. Além disso, Beardsley questiona o real caráter paradigmático das estruturas apontadas pelos autores, enfatizando que os antigos dogmas na Ciência Política dificultam a descoberta de anomalias, enquanto o verdadeiro paradigma possibilita aos pesquisadores o seu encontro. No tangente à atual aquisição de um paradigma, é enfático ao afirmar que: “We have seen that there is no reason to believe that political science has had or that is acquiring one”. (BEARDSLEY, 1974, p. 58).

O foco do argumento de Beardsley é explicitado ao indagar sobre a possibilidade futura de conquista do paradigma e sobre o caráter desejável desta aquisição. O autor rejeita ambas questões e defende a impossibilidade de existência de campo do conhecimento com um paradigma dominante. Esta uniformidade e unicidade privilegiariam determinados aspectos em detrimento de outros, sem corresponder a nenhum benefício real.

A defesa feita por Beardsley (1974) da Ciência Política como campo multiparadigmático se baseia no mesmo argumento utilizado por Stephens (1973) de que focalizar um ponto de vista pode ser empobrecedor. A multiplicidade de visões e o confronto entre elas podem gerar um terreno mais fértil para a compreensão da realidade social. Desta forma, Beardsley defende que a Ciência Política tanto pode como deve se estabelecer como campo multiparadigmático.

A idéia de ciência multiparadigmática é desenvolvida mais detalhadamente por Roberto Cardoso de Oliveira (2003), o qual sugere que o estranhamento antropológico com o outro seja aplicado à análise da Antropologia, uma vez que ela pode se constituir objeto de pesquisa e produto da cultura cientificista. A vocação meta-disciplinar do campo permite que se faça uma Antropologia da Antropologia, enquanto outras disciplinas apenas fazem a história de seu próprio campo.

Ao buscar a essência das tradições inscritas nos paradigmas da matriz disciplinar

da Antropologia, Cardoso de Oliveira apresenta um conceito diferente do que constituiria a mesma. Contrariando Kuhn, que relaciona intimamente a matriz disciplinar ao paradigma, tornando-os termos quase indistintos, Cardoso de Oliveira elucida o conceito e destaca sua relevância ao afirmar que matriz disciplinar: “é a articulação sistemática de um conjunto de paradigmas, a condição de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e relativamente eficientes.” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003, p. 15)

10

Page 11: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Diferente do exposto por Kuhn, para quem a ciência normal era caracterizada pela prevalência de um paradigma, a Antropologia social, para Roberto Cardoso de Oliveira, possui mais de um “mito” convivendo no mesmo espaço de tempo, sem que isso signifique a eliminação de qualquer um deles (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003).

Ao contrário do que ocorre nas ciências naturais, nas quais os paradigmas se processam em sucessão, nas ciências humanas eles coexistiriam no interior das comunidades disciplinares em diferentes países e instituições. Para clarear a idéia da simultaneidade dos paradigmas, o autor didaticamente divide a tradição antropológica em intelectualista e empirista e distingue a noção de tempo em sincronia e diacronia. O resultado é uma matriz com os quatros paradigmas do campo, quais sejam, o Paradigma Racionalista, com a Escola Francesa de Sociologia; o Paradigma Estrutural-funcionalista, com a Escola Britânica de Antropologia; o Paradigma Hermenêutico, com a Antropologia Interpretativa; e o Paradigma culturalista, com a Escola Histórico-Cultural (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003).

A partir desta multiplicidade, Cardoso de Oliveira (2003) aconselha cautela no que denomina “desenvolvimento perverso” dos paradigmas, ou seja, o modismo que o desenvolvimento de um paradigma pode acarretar.

Não se tratam de paradigmas anteriores ou posteriores, pois, para o autor:

(...) nas ciências humanas e, particularmente, na Antropologia, os paradigmas sobrevivem, vivendo um modo de simultaneidade, onde todos valem a sua maneira (própria de conhecer), á condição de não se desconhecerem uns aos outros, vivendo uma tensão da qual – a meu ver – nenhum de nós pode se furtar de levar em conta na atualização competente de sua disciplina e de seu ensino. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003, p. 23).

Uma vez aceita a correspondência entre as teorias universais e o conceito de paradigma, pode-se ver Bourdieu (2004) como defensor das Ciências Sociais como campos multiparadigmáticos. Este autor elucida que a ansiedade pelo alcance de uma teoria geral impossibilita reconhecer as teorias como parciais, pois mesmo as grandes teorias clássicas se referem, na verdade, a certas categorias de fenômenos e não à totalidade da realidade social.

Conforme exposto, o conceito de paradigma de Kuhn (2006) foi crucial para a reflexão das Ciências Sociais como conhecimento científico. Todavia, este conhecimento só pôde se estruturar sobre uma comunidade científica, a qual é imprescindível para a organização do campo e manutenção do paradigma. Nas palavras de Geertz: “(...) se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem.” (GEERTZ, 1988, p. 15)

A comunidade científica

A comunidade científica está estritamente relacionada à noção de paradigma e à forma como se processam as revoluções científicas. Kuhn define que “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 2006, p. 221).

11

Page 12: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Para Kuhn, a comunidade científica, composta por pesquisadores que vivem sob a égide de um mesmo paradigma, é imprescindível para a existência da ciência normal. A comunidade científica julga saber como o mundo está constituído. Possui estreita ligação com o paradigma, pois um conceito depende do outro para se estruturar e sustentar (KUHN, 2006).

Como toda comunidade científica compartilha o mesmo paradigma, ele é capaz de permitir e facilitar a comunicação e os julgamentos profissionais. Dado o consenso entre seus membros, os trabalhos realizados pela comunidade não justificam, definem ou explicam aspectos iniciais e objetos das pesquisas, que são tidos como consensuais. As realizações anteriores são os fundamentos de toda a prática posterior (KUHN, 2006).

O ingresso numa comunidade científica se dá através do amplo estudo e conhecimento sobre o paradigma. Desta forma, o novo membro estará apto para compartilhar as mesmas regras e se comprometer com as mesmas práticas necessárias ao desenvolvimento da ciência normal. “Deste modo, no seu estado normal, a comunidade científica é um instrumento imensamente eficiente para resolver problemas ou quebra-cabeças definidos por seu paradigma” (KUHN, 2004, p. 201).

Como o sucesso da comunidade é dado pelo interesse de seus membros em defenderem os pressupostos gerais, muitas vezes novidades fundamentais que atentem contra estes pressupostos são suprimidas. A intensificação destas supressões é o pressuposto básico para iniciação de uma revolução científica (KUHN, 2004).

Geertz ressalta a insistência apaixonada com que Kuhn defende a história da ciência como: “(...) a história do crescimento e da substituição das comunidades científicas auto-recrutadoras, normativamente definidas, dirigidas de maneiras variadas e, muitas vezes, claramente competitivas”. (GEERTZ, 2001, p. 146).

Tendo em vista os pressupostos de Kuhn (2006) e no tangente à estruturação da comunidade científica em torno de um paradigma, Cardoso de Oliveira (2003) afirma que muitas vezes os mais célebres antropólogos não se filiam de maneira nítida a nenhum, transitando freqüentemente na tensão entre eles produzida, o que gera um enriquecimento da pesquisa realizada (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003). A idéia de comunidade científica como algo fechado em torno de seu paradigma é então abandonada, colocando em seu lugar a possibilidade de transição entre diversos paradigmas coexistentes.

Stephens questiona a idéia de que, ao contrário do que ocorre no treinamento dos estudantes para ingressarem numa comunidade das ciências naturais, quando um cientista político aprende a linguagem da sua especialidade, ele dificilmente alcança uma compreensão dos acontecimentos da realidade (STEPHENS, 1973). Desta forma, ao contrário do esperado por Kuhn, de que os ingressantes numa ciência ao estudarem o paradigma estariam comprometidos com as mesmas regras e práticas, isso não ocorreria nas Ciências Sociais, nas quais eles mal alcançariam uma compreensão do mundo social.

Bourdieu inclui muitos aspectos da comunidade científica que ficam fora da análise de Kuhn. Retira o foco da comunidade como um grupo unido pela defesa de um

12

Page 13: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

paradigma e mostra-a como membros pertencentes a uma realidade social de luta. Lembra que a organização do trabalho e da profissão influenciam a pesquisa e a forma de publicação de resultados, muitas vezes guiando a carreira acadêmica pelas leis do mercado. Bourdieu chega então ao ponto de onde emergem suas principais considerações. De forma clara, expõe:

Portanto, é necessário substituir a questão de se a Sociologia é ou não uma ciência, e uma ciência como as outras, pela questão do tipo de organização e funcionamento da cidadela erudita mais favorável ao aparecimento e desenvolvimento de uma pesquisa submetida a controles estritamente científico. (BOURDIEU, PASSERON & CHAMBOREDON, 2004, p. 94).

A comunidade científica é vista como microcosmo social, ou seja, possui exigências de formação, autoridades universitárias, instâncias de cooptação, normas profissionais e valores. A produção de obras científicas depende, então, tanto da resistência da comunidade científica, como da conformidade aos enquadramentos científicos sustentados por ela.

A comunidade científica pode ser vista como pertencente ao campo científico. O

campo científico, por sua vez, pode ser definido como espaços estruturados por posições, as quais definem muito das propriedades do mesmo. Nele é necessária a definição dos objetos de disputa e dos interesses específicos e, para que funcione enquanto camo, “(...) é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputa etc.” (BOURDIEU, 1983, p. 89) Os campos são caracterizados pela constante disputa entre o novo e o dominante, aquele tentando forçar a entrada e este defendendo o monopólio contra a concorrência. Os participantes do jogo favorecem sua reprodução ao inserir valor no que é disputado e toda uma exigência tácita de conhecimento dos princípios do jogo é imposta aos recém-chegados (BOURDIEU, 1983).

O campo científico, como visto por Bourdieu, possui uma estrutura mais permanente e abrangente do que as comunidades científicas de Kuhn (2006). Enquanto para este, a mudança de paradigma constitui uma verdadeira revolução, Bourdieu afirma que as revoluções parciais que ocorrem constantemente no campo não questionam seus axiomas fundamentais, dos quais derivam todas as regras do jogo (BOURDIEU, 1983).

Conclusão

O esforço de compreensão da natureza das Ciências Sociais deve abranger as várias leituras sobre sua constituição multiparadigmática. A obra de Kuhn sobre a ciência e a estrutura de suas revoluções representa uma grande contribuição neste sentido, levando Geertz a afirmar que se trata do texto certo na hora certa. A definição de Kuhn do paradigma como descobertas científicas universalmente aceitas e balizadoras dos problemas e soluções de determinado campo permite a compreensão da forma como o conhecimento da ciência normal está estruturado. O esforço de estender esta definição à natureza das Ciências Sociais permitiu elucidar seu caráter particular.

Como vimos, apesar de clarear o campo científico de forma parcimoniosa, a análise de Kuhn parece não operar bem nas Ciências Sociais. Estas não possuiriam nem paradigma dominante nem comunidade científica estruturada da forma prevista por Kuhn. O modo como os cientistas sociais compreendem este aparente descompasso e o

13

Page 14: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

reinterpretaram para analisar seus campos permitiu ampliar o entendimento sobre os mesmos, mostrando não ser necessário que os paradigmas nas Ciências Sociais sejam tal como o descrito por Kuhn para que a adequada apreensão das revoluções científicas na ciência “normal”.

Diversas são as contribuições daí decorrentes. De forma geral, elas se concentram em três tópicos distintos, quais sejam, a estrutura paradigmática, a possibilidade de existência de campos multiparadigmáticos e o funcionamento da comunidade científica.

Sobre a necessidade de existência de um paradigma hegemônico como critério de cientificidade, Bourdieu (1983, 2004) e Geertz (1988) mostraram a impossibilidade de existência de teorias gerais e universais, e Stephens (1973) esclareceu que o conceito de paradigma seria mal empregado, referindo-se, na verdade, às teorias, logo, não seria o fator decisivo na classificação do campo como científico como tal ou não.

Outra contribuição resultou daqueles que defendem as Ciências Sociais como campos multiparadigmáticos. Neste caso, a Sociologia, a Antropologia e a Ciência Política possuem paradigmas, mas eles coexistem no campo científico de forma tensa. Esta defesa é feita por autores como Roberto Cardoso de Oliveira (2003), Beardsley (1974) e o próprio Stephens (1973).

Já a comunidade cientifica e seu funcionamento são revistos por cientistas sociais como Cardoso de Oliveira, Stephens e Bourdieu, cada um apresentando-a de forma distinta.

A análise de Kuhn, mesmo não se aplicando perfeitamente ao estudo das Ciências Sociais, constitui um bom modelo para se pensar formas de compreensão das mesmas, incluindo sua natureza, estrutura e funcionamento. Por constituírem um campo diferente das ciências naturais, as Ciências Sociais não podem ser pensadas com base nos mesmos parâmetros. Desta forma, são necessárias reinterpretações que tornem sua realidade mais apreensível, sem deixar de afirmar sua cientificidade.

Bibliografia

BEARDSLEY, Philip L. Political Science: The Case of the Missing Paradigm. Political Theory, V. 2, N. 1, Feb., 1974, p. 46-61.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude; CHAMBOREDON, Jean Claude. O ofício de sociólogo – preliminares epistemológicas. Petrópolis: Vozes, 2004.

BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 7 a 94.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

GEERTZ, Clifford. “Descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura” Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1988.

-----. “O legado de Thomas Kuhn: O texto certo na hora certa”. In: Nova Luz sobre a

14

Page 15: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Antropologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp. 143-148.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.

STEPHENS, Jerone. The Kuhnian Paradigm and Political Inquiry: An Appraisal. American Journal of Political Science, V. 17, N. 3, Aug., 1973, p. 467-88.

15

Page 16: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Os múltiplos caminhos do positivismo nas Ciências Sociais: Estudo dos pressupostos comteanos em Durkheim, Rivers e Teóricos da Escolha Racional

Ticiana Nascimento Egg4

IntroduçãoNeste artigo, busca-se analisar a presença do positivismo comteano nos

pressupostos epistemológicos e metodológicos de Émile Durkheim, W.H.R. Rivers e teóricos da Escolha Racional, na qualidade de expoentes das suas respectivas disciplinas: Sociologia, Antropologia Social e Ciência Política. A intenção é desenvolver um debate sobre a influência dessa corrente filosófica nestas disciplinas das Ciências Sociais e analisar se seus pressupostos metodológicos foram superados ou não.

Inicialmente, serão discutidos os pressupostos metodológicos e epistemológicos do positivismo de Auguste Comte. Para delimitação do objeto de estudo, optou-se por restringir a análise do positivismo de Auguste Comte em seus pressupostos metodológicos gerais. A discussão não deu enfoque a temas correlatos debatidos pelo autor, como religião. Também será estudada a crítica e consolidação do positivismo lógico do Círculo de Viena.

Posteriormente, serão apresentados os pressupostos metodológicos de Durkheim e a influência de Auguste Comte sobre suas considerações metodológicas, e presença do positivismo nos seus estudos sobre a religião. Rivers será enfocado em seguida, com o intuito de desenvolver um contraponto disciplinar da influência indireta do positivismo (via Stuart Mill) sobre as considerações metodológicas de um antropólogo fundador do método (positivo) genealógico. Por fim, discute-se a Teoria da Escolha Racional e a presença do positivismo na Ciência Política, a partir do debate de diferentes autores e críticos dessa teoria. É importante ressaltar que não houve a opção por um autor específico da Escolha Racional, por essa ser constituída principalmente por esforços de diferentes cientistas políticos.

Verifica-se no debate acadêmico críticas à visão positivista e a aplicação dos pressupostos metodológicos positivos nas Ciências Sociais. Por outro lado, parece que o positivismo ainda se encontra presente em importantes autores e correntes das Ciências Sociais, especialmente no que se refere aos seus pressupostos metodológicos. A opção por esse estudo não significa uma defesa da aplicação dos pressupostos positivistas nas disciplinas supracitadas, nem tampouco criticá-los. Busca-se principalmente analisar a influência dos pressupostos básicos como ferramenta epistemológica e metodológica das Ciências Sociais.

Pressupostos do positivismo clássico de Auguste ComteO positivismo começou a se fazer presente no campo científico a partir do século

XIX, época marcada pela dedicação às ciências naturais e pelo avanço obtido nesse campo. Seu pressuposto principal afirmava que o conhecimento científico consistia na busca de leis gerais dos fenômenos a partir da experimentação. Essa corrente busca, desse modo, identificar a explicação dos fenômenos universais, pelo método empírico ou pela verificação experimental.

Comte afirma que a certeza dos fatos da experiência seria o fundamento de uma construção teórica. Ou seja, pela observação e experimentação é que se descobriria as

4 Mestranda em Ciências Sociais no CEPPAC, UnB.

16

Page 17: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

relações que ligam os fenômenos naturais e sociais.

Para o autor, o homem seria simples espectador dos fenômenos e não poderia modificar a sua ação. É possível, por outro lado, prever e agir diante deles. Seria por meio da observação rigorosa de um fato particular que se poderia chegar a formulações gerais e leis naturais. Esse processo consolidaria a ciência. (RIBEIRO:2003)

Por outro lado, as causas dos fenômenos seriam inatingíveis, impenetráveis, e o estudo dessas se revelaria metafísico e não científico. Nesses termos, somente os fenômenos e a suas relações, e não a sua essência, se revelariam compreensíveis, conforme explica Ribeiro:O positivismo é, portanto, uma filosofia determinista que professa, de um lado, o experimentalismo sistemático e de outro considera anticientífico todo estudo das causas finais. Assim, admite que o espírito humano é capaz de atingir verdades positivas ou da ordem experimental, mas não resolve as questões metafísicas, não verificadas pela observação e pela experiência. (RIBEIRO: 2003; 15)

Nesse contexto, a Sociologia é concebida como uma ciência natural da sociedade, que pode ter esperanças de reproduzir um sistema de leis semelhantes, na forma, às leis estabelecidas nas Ciências Naturais. Assim, o método indutivo, ou seja, a observação dos fatos para deles induzir leis, por via da conseqüência e da correlação e das ciências naturais seria aplicado nas Ciências Sociais. Tal método teria três principais elementos: observação, experimentação e comparação5 (GIDDENS:1980).

Segundo José Ribeiro, de acordo com a filosofia positivista:

Para se reformar a sociedade, faz-se mister, antes de tudo, descobrir as leis que regem os fatos sociais, cuidando-se de afastar as concepções abstratas e as especulações metafísicas, que são estéreis, segundo Comte. É, pois, no desenvolvimento das ciências naturais que se encontra o caminho a seguir. Pela observação e pela experimentação, descobrir-se-ão as relações que ligam os fatos, cuja importância é básica na reforma econômica, política e social da sociedade. (RIBEIRO: 2003;15)

É importante ressaltar que não é explícito nos escritos de Comte, a intenção de desenvolver um estudo geral de todos fenômenos, como se estes adviessem de um princípio único, sujeitos a uma única lei. Não há intenção de se chegar a uma explicação universal por acreditar que o espírito humano é restrito e o universo complexo demais para se chegar a tal nível científico (perfeito). (COMTE:1991)

O autor só reconhece as ciências experimentais ou positivas, pois parte do princípio de que o objeto da ciência é somente aquele que está sujeito ao método da observação e da experiência. Ele distingue a ciência em dois grupos: o das ciências abstratas e o das ciências concretas. As ciências abstratas se referem àquelas que estudam as leis que regem os fatos da natureza e todas as combinações possíveis desses fatos. São definidas por ordem hierárquica – matemática, astronomia, física, química, biologia e Sociologia. As ciências concretas estudam os seres reais e “as combinações que efetivamente a natureza apresenta”. Comte não classifica essas ciências, que seriam a minerologia, botânica, zoologia, pois considera que elas ainda não estão constituídas.

5 Percebe-se que há uma constante referência à Sociologia nos estudos do positivismo. É importante ressaltar que isso se dá diante do fato de Comte estar fundando a disciplina. Contudo, o método, conforme dito, teve influência em várias outras disciplinas, como a história, Antropologia, Ciência Política e, decorre disso o objetivo desse trabalho em aplicar os pressupostos às Ciências Sociais entendidas de maneira mais abrangente.

17

Page 18: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

As ciências concretas dependem das abstratas, não valendo o contrário6. (OLIVEIRA:1988)

A filosofia da história, de Comte, pode ser resumida na sua conhecida “lei dos três estágios”, que correspondem às três fases distintas percorridas pelo desenvolvimento do conhecimento e do pensamento ou espírito humano. Essas consistem no estado teológico-fictício, que tem diferentes fases e na qual o espírito humano explica os fenômenos por meio da ação de vontades transcedentes ou de agentes sobrenaturais; no estado metafísico-abstrato, onde os fenômenos são explicados pela ação de forças ou entidades ocultas e abstratas; e no estado positivo-científico, no qual se explicam os fenômenos, subordinando-os às leis experimentalmente demonstradas.

No estado teológico, o espírito humano dirige suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais dos efeitos; nele, os fenômenos e anomalias são produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais. As observações dos fenômenos são reduzidas, o que mostra o papel relevante da imaginação. Esse estágio estaria dividido em três etapas: a do fetichismo, a do politeísmo e, por último, a do monoteísmo, que já seria uma transição para o estágio metafísico. No estado metafísico, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo. (BARRETO:2005)

No estado positivo, nas palavras do próprio Comte:

O espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso a ciência tende cada vez mais a diminuir. (COMTE: 1991;4)

O positivismo lógico do Círculo de Viena

Uma das mais importantes críticas revisionistas dos pressupostos do positivismo clássico de Comte consistiu no chamado positivismo lógico do Círculo de Viena.

O Círculo de Viena foi formado por Philipp Frank, Otto Neurath, Hans Hahn, Moritz Schilick e Rudolf Carnap, que se encontraram durante os anos de 1922 a 1936.7 Teria sido um movimento de investigação que tentava buscar nas ciências a base de

6 A hierarquia das ciências segue uma lógica de “generalidade decrescente” e “complexidade crescente”. As ciências que se desenvolveram primeiro, a matemática e a astronomia, são as que tratam das leis mais gerais da natureza, que governam os fenômenos mais distantes da ação humana. A partir dessas ciências, as demais foram focalizando cada vez mais no homem, chegando na Sociologia. (GIDDENS:1980)

7 Uma das principais influências recebidas pelos filósofos do Círculo de Viena, se não a principal, de acordo com Giddens, é o pensamento do positivista Ernst Mach (1838-1916). É importante também ressaltar a relação de Karl Popper com o círculo, que, mesmo não tendo participado diretamente, teve contato intelectual constante, principalmente como “oposicionista” oficial. Teve participação importante também Ludwig Wittgenstein (1889-1951).

18

Page 19: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

fundamentação de conhecimentos verdadeiros.O positivismo lógico foi desenvolvido por pesquisadores (em sua maior parte) que se dedicavam ao estudo filosófico da lógica e da matemática. Os seus esforços mostraram que se trata de proposições lógicas e matemáticas, regras segundo as quais formamos símbolos verbais e os transformamos em conformidade com as convenções que nós estabelecemos com vistas ao seu emprego para descrição da realidade. (OLIVEIRA: 1985;70)

Assim, os filósofos do Círculo de Viena defendiam a importância da lógica e da matemática como auxílio para os testes empíricos. A cientificidade e objetividade da matemática e das ciências naturais tornam-se modelo de cientificidade e de objetividade a ser procurado nas ciências humanas, conforme afirma Giddens: “Os positivistas lógicos buscaram desenvolver uma visão da ciência que reconhecesse a significação vital da Lógica e da Matemática no pensamento científico como sistemas de representações simbólicas”. (GIDDENS: 1980; 331 )

Uma das principais contribuições do Círculo de Viena reside no princípio da verificação, a qual compreende que o significado de uma afirmação ou proposição está relacionado a sua possibilidade de ser verificada. Em outras palavras, com base nesse princípio poderia se analisar se uma afirmação era significativa caso pudesse ser testada ou confirmada. Esse princípio passou por revisões e debates, até mesmo pelo questionamento do próprio princípio, se poderia ser testado ou não. Assim, ele foi declarado “regra de procedimento”, e não uma afirmação8. (GIDDENS: 1980)

Roberto Cardoso de Oliveira, parafraseando Carnap, resume o que foi o Círculo de Viena:

Os trabalhos da Escola de Viena têm por objeto a ciência, seja ela visualizada em seu conjunto, seja em seus diversos ramos. Submete à análise os conceitos, proposições, demonstrações e teorias que desempenhem um papel, menos, todavia, relativamente a considerações de evolução histórica ou de condições sociológicas ou psicológicas de aplicação, do que do ponto de vista lógico. Esse domínio não tem até agora recebido um nome particular; pode-se caracteriza-lo com o título de teoria da ciência, mais exatamente lógica da ciência. (...)“A ciência é um conjunto ordenado de proposições e é este o conjunto que representa o objeto da lógica da ciência. (OLIVEIRA:1988; 69).

A Sociologia de Durkheim e as influências de Augusto Comte

Émile Durkheim foi seguidor de Augusto Comte, tendo sido um dos principais difusores do positivismo como método e da sua aplicação na Sociologia. Apesar de algumas divergências teóricas com relação a Comte, seguiu em grande parte de seus estudos os principais pressupostos do positivismo.

Para Comte, a sociedade é tão real quanto um organismo vivo. Durkheim completa, afirmando que os homens se juntam e formam um ser novo, a sociedade, com natureza e leis próprias. Para ele, a vida coletiva tem características próprias, que ultrapassam a simples ampliação da vida individual dos homens.9

8 Carnap foi o principal revisor do princípio da verificação, adotando uma postura menos dogmática e mais liberal, como Giddens diz, incluindo as noções de "confirmabilidade" e "testabilidade" Em síntese, de seu modelo conclui-se que uma proposição pode ser testável completamente, testável apenas parcialmente, confirmada parcialmente ou confirmada por completo, o que corresponderia à verificabilidade da proposição. (BARRETO:2005)9 A sociedade teria uma característica sui generis. Ela possui qualidade específica do coletivo, não sendo a

19

Page 20: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Deste modo, para Durkheim, a sociedade e os fatos sociais são objetos da Sociologia.10 O objetivo do sociólogo é então o estudo da sociedade, com o intuito de entendê-la e compreendê-la, como os cientistas físicos, químicos e biólogos fazem com seus objetos (DURKHEIM: 1975). Nessa linha, o autor defende a aplicação do método positivo na Sociologia, cabendo, em suma, ao sociólogo: “Determinar corretamente os fatos que estuda, descobrir leis segundo as quais eles se produzem, deixando aos outros a tarefa de encontrar, se for o caso, as aplicações possíveis das propostas que ele estabelece”. (DURKHEIM: 1975; 126)

Durkheim, assim como Comte, busca equiparar metodologicamente a Sociologia com as ciências naturais. Defende que a Sociologia deve ser uma ciência positiva, como as demais ciências: “Se existe um ponto fora de dúvida atualmente é que todos os seres da natureza, desde o mineral até o homem, dizem respeito à ciência positiva, isto é, que tudo se passa segundo leis necessárias”. (DURKHEIM apud RODRIGUES: 1978: 19)

O autor reconhece a peculiaridade do objeto da Sociologia com relação às demais ciências. Por outro lado, afirma que as leis sociais são tão necessárias quanto as leis físicas. Para ele, toda a ordem especial de fenômenos submetidos a leis regulares, pode ser objeto de um estudo sistemático, assim como a Sociologia: (DURKHEIM: 1975)

Portanto, se as sociedades estão na natureza, devem obedecer, também elas, a esta lei geral que resulta da ciência e ao mesmo tempo domina. Evidentemente, os fatos sociais são mais complexos que os fatos biológicos e físico-químicos, e, no entanto, hoje já está fora de questão desligar a vida consciente do mundo e da ciência. (DURKHEIM: 1975; 79)

De acordo com o autor, a melhor forma de provar que as sociedades estariam sujeitas a leis é buscando encontrar empiricamente tais leis11. Para Durkheim, demonstrando mais uma vez a influência positivista, as leis sociais são descobertas aos poucos, por meio do método indutivo, conforme mostra Giddens: “Toda ciência, diz Durkheim, inclusive a Sociologia, só avança de forma lenta e cautelosa, através de uma paciente generalização indutiva, baseada em regularidades observáveis em fatos sociais”. (GIDDENS: 1980; 326).

O método para estudo da sociedade defendido por Durkheim é o histórico-comparativo e a observação empírica. De acordo com o autor, a história comparada é ferramenta de análise que subsidia o estudo do sociólogo sobre as instituições sociais, suas causas e finalidades. Ele afirma que as instituições são complexas, sendo necessário, para compreendê-las, estudar suas partes, a maneira pela qual formam conjuntos e, assim, a história preenche o papel de instrumento de estudo. Caberia, desse

simples soma dos indivíduos. As representações coletivas seguiriam paralelamente essa lógica. As representações individuais fomentam as representações coletivas, porém, as últimas têm consciência própria que influencia os indivíduos. O homem teria assim uma constituição dual – o ser individual e o ser social. O ser social internaliza as categorias e práticas da coletividade e o ser individual se refere às sensações, à percepção do indivíduo. (DURKHEIM:1995)10 “É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter”. (DURKHEIM: 1995; 11)

11 É conhecendo a sociedade, descobrindo leis da realidade social, que se poderá ter progressos. O homem pode, dessa maneira, agir, por meio da compreensão da sociedade.

20

Page 21: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

modo, à história explicar as instituições. Por outro lado, ao sociólogo caberia conhecer também a maneira na qual elas agem e os efeitos que geram, sendo adequado então o método da observação empírica.12

Verifica-se a influência e aplicação dos pressupostos epistemológicos do positivismo nos estudos de Durkheim sobre o sistema religioso. Para ele, o sistema religioso primitivo reside em uma sociedade com nível básico de simplicidade, sem intervenção religiosa anterior. Defende que, por meio do estudo do que denomina de sistema religioso primitivo, pode-se analisar a realidade das sociedades complexas.13 (DURKHEIM: 1982)

Durkheim buscava identificar a realidade implícita nos símbolos, como ritos e mitos, por acreditar que os símbolos traduzem aspectos da realidade da vida humana. Desse modo, um certo número de representações fundamentais e de atitudes rituais que, apesar da diferença de formas adotadas, têm em todos os casos idêntica significação objetiva e cumprem as mesmas funções. (DURKHEIM:1982)

Para Durkheim, o totemismo era a forma mais simples de religião. De acordo com Lukes (LUKES: 1985), o autor viu na etnografia do totemismo australiano um possível experimento que poderia provar uma teoria geral da religião: “Durkheim hoped by a close study of totemism to develop hypotheses from what causes about what religion is, of what elements it is made up, from what causes it results, and what functions it fulfils”. (LUKES: 1985; 458)

É clara, assim, a influência direta do positivismo de Comte sobre o pensamento de Durkheim, conforme mostra Giddens:

A linha de ligação de Comte e Durkheim é facilmente comprovada. No que concerne à ciência social no século XX, a influência de Comte resulta menos de seu impacto direto do que de sua representação na versão do método sociológico apresentada por Durkheim. As obras desse último constituíram a fonte imediata do funcionalismo, tanto na Antropologia como na Sociologia. Mas também tiveram um alcance mais amplo e um efeito difuso como um estímulo das tradições centrais do pensamento social contemporâneo, em que a meta de realizar uma ciência natural da sociedade é considerada tanto desejável como possível. (GIDDENS: 1980; 325)

Os métodos antropológicos de W.H.R. Rivers e suas características positivistas

Verifica-se no paradigma estrutural-funcionalista britânico a influência da tradição científica e do positivismo. De acordo com estudiosos da teoria antropológica, Rivers, Radcliffe-Brown, Malinowiski seriam os principais integrantes de tal paradigma e buscaram incorporar um padrão de cientificidade à Antropologia. O paradigma é caracterizado, em linhas gerais, por uma abordagem sincrônica da Antropologia, uma ênfase no trabalho de campo e sistematização do conhecimento acumulado sobre

12 Ademais, um importante método de se verificar uma relação lógica entre os fenômenos seria por meio da comparação. Portanto, para o autor, não é suficiente aos estudos sociológicos focalizarem em somente um único povo, mas deverão ser analisadas as sociedades de diferentes tipos e de diferentes épocas. (DURKHEIM: 1975)

13 Cabe mostrar que, para Durkheim, os primeiros sistemas de representações do homem sobre si mesmo e sobre o mundo são de origem religiosa. Dela surgem as noções que dominam vida intelectual, as categorias de entendimento, como as noções de tempo, espaço, quantidade. Assim, quando se analisa as crenças religiosas, esbarra-se com as categorias mais importantes de entendimento. (DURKHEIM: 1982)

21

Page 22: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

determinada sociedade. Seus estudos se concentram na estrutura social dos povos, diante da percepção da necessidade de conhecer as organizações sociais e de consolidar um registro empírico das instituições.

William H.R. Rivers teve papel fundamental na formação da Antropologia social, principalmente por ter sido o primeiro antropólogo a privilegiar a pesquisa de campo como uma forma de combater o evolucionismo especulativo; por ter desenvolvido a análise do parentesco na Antropologia; e o primeiro a propor que a Antropologia deveria seguir no estudo da organização social. (OLIVEIRA: 1998). Pode-se verificar a presença e a influência do positivismo em vários aspectos dos pressupostos teóricos e metodológicos no autor.

Rivers foi influenciado pelos pressupostos científicos das ciências naturais. De formação médica, inicialmente foi estudioso da psicologia experimental, tendo migrado para a etnologia, preocupando-se principalmente com questões relativas aos métodos etnográficos.

Demonstrando uma tendência positivista, o autor defendia que a Antropologia deveria ser uma ciência natural da sociedade, não tanto pelas generalizações, mas principalmente pelo fato de certos aspectos do fenômeno social deverem ser analisados por meio de um rigoroso método científico. Para ele, o processo lógico e metodológico da Antropologia seria a formulação de sentenças hipotéticas, seguidas de testes, para a explicação de novos fenômenos sociais. Porém, a observação, e não a experimentação, deveria ser a forma de se descobrir novos fatos sociais. (OLIVEIRA:1988)

Ademais, o antropólogo, em seu estudo sobre o povo Todas, buscou explicar certos aspectos desse povo, introduzindo assim, nos métodos da Antropologia, a explicação. Essa explicação se daria, principalmente, na origem e motivo de um determinado ato ou fenômeno social14. (STOCKING: 1985b)

É importante mencionar a importância da participação de Rivers na expedição ao Estreito de Torres, próximo a Austrália, pois foi naquele que o método genealógico de análise - uma das suas principais contribuições à Antropologia - foi consolidado. Inicialmente convidado para aplicar métodos sistemáticos da psicologia experimental nos primitivos, Rivers percebeu o potencial sociológico da sua pesquisa e dos dados coletados e passou a utilizá-los também com esse intuito.15 Tal método genealógico consistia em maneiras de coletar dados etnográficos relacionados a parentesco.

Apesar das críticas dos evolucionistas britânicos, Rivers defendia as teorias de

14 Deve-se ressaltar que Rivers, no entanto, especificamente no seu trabalho The Todas, enfrentou dificuldades em chegar à explicações dos costumes dos povos e entender o porquê das ações dos indivíduos. Diante dos problemas enfrentados pela dificuldade de comunicação com os nativos, Rivers fez suas próprias inferências.

15 É importante ressaltar que, mesmo tendo migrado para a etnografia, a psicologia sempre esteve presente nos seus estudos, devido principalmente a influência de Stuart Mill. (OLIVEIRA: 1998; 66):

“O fim último de todos os estudos da humanidade, sejam históricos ou científicos, está na procura de explicações em termos de psicologia, em termos de idéias, crenças, sentimentos e tendências instintivas através dos quais a conduta do homem, individual ou coletivo é determinada”.(RIVERS 1929; OLIVEIRA 1988;67)

22

Page 23: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Henry Morgan16, as quais afirmavam que os costumes e terminologias de parentesco dependem de causas sociais e têm funções sociais. Passou assim a defender o pressuposto de que uma estrutura social elementar de qualquer grupo poderia ser sistematicamente revelada nas suas terminologias de parentesco. (STOCKING 1985a e 1985b)

Nesse contexto, a história para Rivers não seria um método de descoberta, mas um campo de comprovação ou verificação de teorias e generalizações desenvolvidas, uma forma de observação e análise das estruturas sociais, mostrando, mesmo que de maneira indireta, as tendências positivistas, como mostra Roberto Cardoso de Oliveira:A rigor, para Rivers, menos do que um método, a história é um campo para observação e registro etnográfico, sobre o qual os fatos culturais se sucedem e diversificam no espaço geográfico, mas cuja explicação última estará sempre na psicologia, a dar conta das disposições mentais da humanidade. (OLIVEIRA:1988; 68)

A despeito dessa importância dada ao papel da psicologia, Rivers ainda busca atribuir a Antropologia um caráter e domínio próprio.

Stocking afirma que Rivers, em seu auge positivista, via seu método como solução para os problemas etnográficos, pois, de acordo com o autor, ele permitia que os antropólogos pudessem estudar questões abstratas, como idéias vagas expressas pelos nativos, de modo concreto. O autor mostra ainda que, de acordo com o antropólogo, por meio do chamado “método concreto”, se poderia formular leis que regulam a vida dos indivíduos. (STOCKING 1985a.)17

Finalmente, uma das maiores contribuições de Rivers a Antropologia consiste no método concreto desenvolvido por ele no Estreito de Torres, como mostra Stocking:

Our concern here, however, is less with how Rivers invention of the genealogical method led to a set of theoretical concerns which, subsequently dehistoricized by Radcliffe Brown, were to be central to the later British social anthropology. It is rather, insofar as it can be kept separate, with his somewhat paradoxical contribution to the development of ethnographic method. On the one hand, Rivers´s elaboration of the genealogical method offered a staunchly positivistic approach, a kind of quick methodological fix, by which scientifically trained observes, with no knowledge of the language and with very inferior interpreters, could in comparatively short time collect information that had remained hidden the most observant long term European residents, even in the point of laying bare the basic structure of the indigenous society. (…) But there were other aspects of his ethnographic experience that led toward a more sophisticated long-term intensive study, one that might enable the scientific observer to achieve something analogous to the more empathetic extensively detailed and broadly penetrating knowledge that had previously characterized the very best missionary ethnographers.( (STOCKING: 1985a; 87)

Cabe lembrar que, por outro lado, de acordo com Roberto Cardoso de Oliveira, Rivers não contribuiu fortemente para uma relevante inovação teórica na Antropologia, afirmando que “se de um lado o antropólogo preocupou-se em fundar a Antropologia social, como a alternativa científica à Antropologia cultural evolucionista, (...) de outro não se dispôs a discutir seus próprios fundamentos”.(OLIVEIRA:1998;64)

16 Lewis Henry Morgan, Systems of Consanguinity and Affinity (1871).17 Rivers ressaltava a construção de categorias a partir da visão do nativo, e não com base nas categorias

“civilizadas”. O desenho de análise não deveria ser baseado sob o ponto de vista do investigador, mas sim das categorias da tribo estudada. O método concreto não seria somente uma forma de analisar as abstrações dos primitivos, mas também uma forma de coleta de fatos concretos, não contaminados por abstrações evolucionistas européias. (STOCKING 1985a)

23

Page 24: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Haveria uma ambivalência teórica em Rivers. Criticava o evolucionismo e buscava desenvolver o difusionismo na Antropologia; porém, dada sua formação e contexto da época, era influenciado por essa vertente. Mesmo priorizando a análise histórica da cultura, Rivers achava que seu método levaria a reconstruções confiáveis de grande parte de seqüências históricas do desenvolvimento social humano. Tal ambivalência seria claramente expressada no trabalho etnográfico The Todas. Apesar de criticar a corrente evolucionista, conforme Stocking mostra, Rivers se refere a certos aspectos da cultura dos Todas como um estágio de uma evolução da sociedade. No decorrer do livro, são dadas várias explicações evolucionistas referentes à descrição das práticas do Todas, porém, nas no final, o autor mostra a dificuldade e as falhas da teoria evolucionista na explicação de certos costumes desse povo. Por outro lado, Rivers chega a afirmar que as especulações evolucionistas não têm base firme ao menos que existisse um estudo de todas as cultura e civilizações espalhadas no planeta. (STOCKING 1985a e 1985b)

A Teoria da Escolha Racional – Pressupostos teóricos e epistemológicos, críticas e tendências positivistas contemporâneas

A década de 50 foi um período intenso de mudanças e novas direções a serem tomadas na Ciência Política. A Segunda Guerra Mundial foi um marco na definição da busca por reforma na Ciência Política, pois estudiosos perceberam que nem o método nem os pressupostos teóricos dessa disciplina, mais especificamente do behaviorismo, conseguiam explicar problemas institucionais ou constitucionais, nem tampouco prevê-los.

Nesse debate, a teoria da escolha racional foi uma das correntes dessa disciplina que preencheu com sucesso as falhas e críticas ao behaviorismo. É clara a presença do positivismo nessa vertente da Ciência Política. Ainda que a teoria da escolha racional tenha como método o hipotético-dedutivo – o que vai de encontro com a posição indutiva de Comte - verifica-se uma marcante tendência positivista nos seus teóricos e até mesmo em seus críticos.

Essa teoria partiu da aproximação da Ciência Política com a economia, sendo seu principal pressuposto a racionalização dos indivíduos, ou seja, os indivíduos possuem preferências e sempre buscam maximizá-las em todas as situações. A racionalidade, por sua vez, consiste no fato de os indivíduos, com base nas suas crenças, escolherem o melhor instrumento para se atingir as suas preferências18.

Os teóricos dessa corrente buscam explicar os fenômenos e ações dos atores políticos, principalmente por meio da elaboração de modelos referentes aos fenômenos políticos como a lógica da regra majoritária e a dinâmica das instituições democráticas.(GREEN E SHAPIRO: 1994)

William Riker, um dos principais expoentes dessa corrente teórica, afirma que, a teoria da escolha racional responde a questões não respondidas anteriormente, por adotar métodos padrões de investigação científica. Para ele, essa vertente consiste em

18 “A rational individual is one that combines his or her beliefs about the external environment and preferences about things in that environment in a consistent manner”(BONCHEK, SHEPSLEY: 1997; 7).

24

Page 25: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

uma teoria, a partir da qual podem ser inferidas hipóteses e teoremas, que, por sua vez, podem ser testados por meio de observações empíricas19. (RIKER: 1997)

Para o autor, o uso da teoria permite prever ações, estruturas constitucionais, resultados e conflitos, caso os pressupostos estejam corretos ou válidos. A preocupação com a coleta de dados, a busca de evidências de comprovação dos pressupostos que evidenciam qual previsão seria predominante é tarefa dos teóricos da escolha racional. Ainda segundo o autor, a teoria da escolha racional é capaz de satisfazer os pressupostos para uma Ciência Política científica, o que demonstra uma postura evidentemente positivista (RIKER 1997).

Green e Shapiro (1994), mesmo sendo questionadores dessa vertente, não criticam os teóricos da Escolha Racional por estudar a política de maneira científica. De fato, eles concordam com essa postura na pesquisa, ainda que discordando da intenção em determinar leis universais sobre a política. Também não questionam - inclusive advogam - o uso de ferramentas matemáticas para exposição de seus modelos, e o método dedutivo. Afirmam que tal método tem seus aspectos positivos, já que identifica relações analíticas que podem passar despercebidas ou até mesmo contradições inerentes a outras teorias.

Todavia, os autores criticam o aspecto empírico de tais modelos. Segundo eles, os testes que já foram realizados ou apontam falhas destes modelos ou mostram a simples reformulação de um conhecimento já existente. Para eles, teorias formalmente rigorosas, como a da escolha racional, podem ser ambíguas se as referências empíricas não forem devidamente especificadas. MacKelvey e Rosenthal não só corroboram as críticas de Green e Shapiro, como também criticam os modelos teóricos de jogos das eleições, comitês, afirmando que estes obtiveram impacto somente no nível conceitual, tendo pouca relevância na análise empírica do mundo do comportamento político. Krehbiel corrobora, reafirmando que há uma inutilidade empírica sobre os modelos espaciais da teoria. (GREEN, SHAPIRO: 1994)

Afirmam ainda que a principal fraqueza dessa corrente está no fato de aspirar a determinação de teorias universais, aplicáveis a todas as situações, e que essa aspiração resultaria na pouca atenção para os testes empíricos e para a maneira como essas teorias podem ser operacionalizadas empiricamente. Para os autores, no trabalho empírico sistemático surgem os lapsos nessas teorias universais.

Percebe-se, assim, a postura positivista mesmo nos críticos da teoria da escolha racional, diante da preocupação e da defesa da aplicação de aspectos metodológicos e epistemológicos, caracterizados como positivistas na escolha racional.

Embora questione as críticas de Green e Shapiro, Jeffrey Friedman (1996), importante teórico da escolha racional, concorda com a distância entre pesquisa teórica e empírica apontada por aqueles autores. Isso, segundo esse último, se daria por duas principais razões: a primeira se refere à complexidade do mundo, e aos chamados fatores de distúrbios. Ele afirma que variáveis dependentes relevantes estão presentes

19 É importante ressaltar que, apesar de inovadora em termos teóricos, a teoria da escolha racional herdou a aplicação do método científico na Ciência Política do behaviorismo. Essa última vertente defendia, assim como teóricos da escolha racional, a verificação empírica, o uso de técnicas matemáticas, a sistematização da pesquisa.

25

Page 26: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

em um modelo, e muitas vezes fazem cair as previsões e a magnitude de uma hipótese. Dessa, a complexidade dos fenômenos leva a teorias ceteris paribus. A segunda razão se refere a existência de causas não observáveis nas Ciências Sociais, como estados mentais dos indivíduos, que levam à dificuldade da teoria chegar em uma previsão apurada dos fatos.

Cabe destacar que, diante do debate sobre teorias não suscetíveis a testes versus preocupação empírica, Friedman adota uma postura intermediária. Ele reconhece a importância da elaboração de teorias, sem a necessidade rigorosa de testar todas elas, mas ao mesmo tempo ressalta o papel relevante dos testes empíricos. Ou seja, defende restrições às teorias por meio dos testes e, ao mesmo tempo aceita um certo grau de inaplicabilidade destas. Desta forma, defende um método científico que usa teoria para explicar fatos, mas que ainda permita uma imperfeição da aplicação empírica da teoria.20 (FRIEDMAN: 1996; 16)

Esse método trataria as teorias como tipos ideais, que buscam explicar padrões de comportamento:

The ideal type view denies that the purpose of prediction is to falsify theories, rather than to falsify the hypothesis that a certain theory applies to a certain case, the purpose of empirical research, therefore, is to confirm or falsify the possibility that a particular event is an instance of the operation of a certain law (...). (FRIEDMAN:1996;16)

Dessa forma, somente a pesquisa empírica poderia falsear ou verificar hipóteses de que um certo tipo ideal explica um certo fenômeno do mundo real. Todas as teorias coerentes são verdadeiras se sua condição inicial se mantém. O tipo ideal sancionaria um certo grau de “fantasia” da teoria, já que aceita a existência de pressupostos teóricos não testáveis e mesmo assim aplicáveis aos fenômenos empíricos. Porém, a perspectiva do tipo ideal constrói uma teorização enviesada para a interação com a pesquisa empírica, para desse modo a teoria ser cientificamente relevante.

If the task of empirical research is to see whether, and on what extent, a theory explains a particular slice of reality rather to see whether reality falsifies a theory, positive evidence will be even more valuable than the negative kind.

The advantage of the ideal type approach is that by, placing the inexact fit of theory at center stage, it redirects scientific research away from attempting to use empirical data do verify or falsify laws, instead using it to show how close or how far competing laws come to explaining actual behavior in a given case.(FRIEDMAN op. cit.)

Verifica-se assim que, por um lado, Friedman questiona o pressuposto positivista referente à elaboração de leis gerais rigorosamente baseadas em observações e testes empíricos. Em outro aspecto, mesmo criticando o que chama de postura hiperpositivista de Green e Shapiro, defende alguns dos pressupostos metodológicos e epistemológicos do positivismo na teoria da escolha racional e mostra uma preocupação com o caráter científico da Ciência Política.

Considerações finais

Os estudos empíricos e teóricos de Rivers mostram a influência do positivismo

20 Segundo Friedman: “The problem with many searches for confirming evidence is that they aim to prove the universal applicability of the assumptions underlying the theory.” (FRIEDMAN: 1996;11)

26

Page 27: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

na Antropologia social. O traço positivista mais marcante se refere a intenção do etnólogo em fazer da Antropologia uma disciplina científica, por meio da inserção de métodos científicos, da experiência empírica, do trabalho de campo.

Essa busca em desenvolver a cientificidade na Antropologia concretiza-se no seu método concreto de parentesco. Verifica-se a preocupação de Rivers com a comprovação empírica de teorias, principalmente por meio do trabalho de campo.

Émile Durkheim foi um dos principais seguidores de Augusto Comte, e a influência do positivismo em seus estudos é evidente. É constante a busca de Durkheim em encontrar leis gerais que regem o comportamento dos indivíduos na sociedade, por meio da experiência empírica e da análise histórica. Percebe-se o positivismo em várias de suas considerações sobre o papel da Sociologia e o método a ser seguido por essa, na sua aproximação e ligação com as ciências naturais, e também nos seus estudos sobre as religiões.

Pode-se afirmar também que a Teoria da Escolha Racional é um paradigma com fortes traços positivistas. A busca pela aplicabilidade de seus modelos, pela comprovação empírica e pela generalização da atuação de atores políticos demonstra evidências positivistas. É importante apontar, contudo, que o método dedutivo da teoria da escolha racional vai de encontro com o pressuposto do positivismo referente ao estudo exaustivo de fatos empíricos para se chegar a uma generalização.

Por outro lado, há a pretensão de se definir uma lei geral que explique o comportamento político do homem na arena política, o que mostra a influência do positivismo de Comte. Já a ênfase na demonstração lógica da teoria por meio de testes matemáticos e estatísticos, por sua vez, mostra a herança do positivismo do Círculo de Viena. Pode-se verificar então uma marcante tendência positivista nos teóricos da escolha racional e até mesmo em seus críticos, podendo-se verificar a presença do positivismo na Ciência Política contemporânea.

Deste modo, constata-se a presença do positivismo nos autores e diferentes disciplinas constitutivas das Ciências Sociais o que sugere a atenção que deve ser dada à presença dessa corrente filosófica nas Ciências Sociais como um todo e em outros autores. Questionou-se realmente se podemos falar na superação do positivismo, tão fortemente criticado por diversos cientistas sociais, à luz da revolução paradigmática de Thomas Kuhn, ou se seus pressupostos ainda se mantêm influentes nas Ciências Sociais.

Pode-se afirmar, com base nos revisões trazidas nesse trabalho que, mesmo criticado por importantes vertentes contemporâneas das Ciências Sociais, muitos aspectos epistemológicos e metodológicos do positivismo estão presentes em importantes e influentes autores e paradigmas de diferentes disciplinas e em diferentes momentos de sua constituição.

Bibliografia

BARRETO, Túlio Velho. Positivismo, positivismos – da tradição francesa ao positivismo instrumental, Jun/Dez. 1998. Disponível em: www. dca.fee.unicamp.br. Acesso: 20 de junho de 2007.

27

Page 28: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positivista. 5ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. pp. 2-39.

DURKHEIM, Emile. A Ciência Social e a Ação. São Paulo: DIFEL, Difusão Editorial S.A., 1975.

---- As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 1995.

---- Las Formas elementares de la vida religiosa- El sistema totemico en Australia. Madrid: Akal Editor, 1982.

EASTON, David. The Future of the Postbehavioral Phase in Political Science. In: Kristen Monroe (ed.) Contemporary Empirical Political Theory. Berkeley: University of Califórnia Press. 1997. pp.13-46.

FRIEDMAN, Jeffrey. Introduction: Economic Approaches to Politics. In: Jeffrey Friedman The Rational Choice Controversy. New Haven: Yale University Press, 1996. pp.1-24.

GIDDENS, Anthony. O Positivismo e seus críticos. In. BOTTOMORE, Tom. História da Análise Sociológica. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1980. pp. 317-378.

GREEN, Donald P.; SHAPIRO, Ian. Pathologies of rational choice theory: a critique of applications in political science. New Haven: Yale University Press, 1994.

LUKES, Steven: Emile Durkheim. His life and work. Stanford: Stanford University Press, 1985.

RIBEIRO, José. Augusto Comte e o Positivismo. Campinas: Edicamp, 2003.

RIKER, William. The Ferment of the 1950´s and the Development of Rational Choice Theory. In: Kristen Monroe (ed.) Contemporary Empirical Political Theory. Berkeley: University of California Press. 1997. pp. 191-201.

RODRIGUES, A. Durkheim, vida e obra. São Paulo: Editora Ática, 1978.

SHEPSLE, Kenneth A.; BONCHEK, Mark S. Analyzing Politics: Rationality, Behavior and Institutions. New York: Norton & Company. 1997.

STOCKING Jr., George. The Ethnographer’s Magic: Fieldwork in British Anthropology from Tylor to Malinowski. Observers Observed: Essays on Ethnographic Fieldwork. In: Functionalism Historicized: Essays on British Social Anthropology History of Anthropology. Vol. 1. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985a.

28

Page 29: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

pp.70-120.

-----. “Radcliffe-Brown and British Social Anthropology”. In: Functionalism Historicized: Essays on British Social Anthropology. History of Anthropology, Vol. 2. Madison: The University of Wisconsin Press. 1985b. pp. 131-191.

29

Page 30: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

O paradigma culturalista nas Ciências Sociais: Antropologia e Ciência Política em perspectiva comparada

Daniel Capistrano21

Introdução

A história das teorias, problemas e métodos amplamente adotados e legitimados pelas comunidades científicas de cada disciplina das Ciências Sociais possui uma forte relação com o contexto social em que se desenvolvem e com o diálogo mantido entre essas disciplinas. Por compartilharem tradições de pensamento, metodologias e objetos similares, as Ciências Sociais acabam por assumir dinâmicas de desenvolvimento semelhantes e que, em alguns casos, dão origem a debates interdisciplinares ou conceitos de origem interdisciplinar.

Nesse sentido, o trabalho proposto pretende discutir o caso específico dos paradigmas culturalistas na Antropologia e na Ciência Política, comparando a relação entre eles e o ambiente em que surgem, além dos possíveis aspectos semelhantes dos estudos inseridos dentro dessas correntes.

Primeiramente, propõe-se realizar uma breve discussão da idéia de paradigma e da apropriação que alguns autores fazem dela como instrumento de análise do desenvolvimento das Ciências Sociais. Após isso, o enfoque se voltará para o contexto social e acadêmico do surgimento de correntes que serviram de base para o desenvolvimento do paradigma culturalista na Antropologia (Franz Boas e a Escola de Cultura e Personalidade) e na Ciência Política (o conceito de cultura política e o paradigma comportamentalista). Por fim, algumas questões serão levantadas sobre os elementos comuns no desenvolvimento desses dois paradigmas e sobre a possibilidade de diálogo entre esses.

Existiria um paradigma culturalista das Ciências Sociais?

Para se expressar em termos de um “paradigma” culturalista é necessário que sejam apresentadas as limitações do conceito de “paradigma” dentro das Ciências Sociais e de seu uso nesse trabalho devido a pluralidade de significados atribuídos a esse termo dentro do debate contemporâneo.

A ciência enxergada como um fenômeno contido dentro do quadro de análise das relações sociais é uma tendência relativamente nova. Apesar da análise sociológica da produção do conhecimento científico remontar a reflexões mais antigas, como as de Karl Marx (SANTOS, 1978) por exemplo, tornar a atividade científica como um problema de pesquisa frente aos contextos político, cultural, social e econômico e a sua dinâmica interna, é uma tendência que data da segunda metade do Século XX.

Ludwick Fleck, nas décadas de 1930 e 1940, já começava a desenvolver as idéias de “estilos de pensamento” e “coletivos de pensamento”, que colocavam em questão a forma de organização da atividade científica (LORENZANO, 2004). No entanto, essa postura crítica frente ao ideal de desenvolvimento cumulativo e linear da ciência só se torna relevante com a publicação do mais conhecido trabalho de Thomas

21 Mestrando em Ciências Sociais no CEPPAC, UnB.

30

Page 31: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas”, no início da década de 1960. Com esse trabalho, Kuhn defende a idéia de que o progresso da ciência é dado por meio de grandes rupturas e não como uma linha de desenvolvimento contínua que, seguramente, era a proposição mais disseminada e mais aceita entre os estudiosos da ciência.

Dessa forma, Kuhn propõe uma visão mais complexa da atividade científica – pouco recorrente entre filósofos e historiadores da ciência, na qual seus “avanços” poderiam ser relativizados, visto que esses seriam frutos de uma construção histórica e social das comunidades científicas. Para desenvolver essa idéia, o autor defende que, numa determinada época, para uma disciplina específica, o desenvolvimento do conhecimento é dado pelo compartilhamento de uma visão de mundo específica, guiada não só por suposições teóricas semelhantes, mas por métodos e técnicas legitimados pela comunidade de praticantes dessa disciplina.

Essa visão é a base do conceito de paradigma de Thomas Kuhn que, em suas palavras, seria fundamentalmente “o que os membros de uma comunidade científica compartilham, e uma comunidade científica consiste de pessoas que compartilham um paradigma” (KUHN, 1992). Dessa forma, a história da ciência seria baseada em uma sucessão de paradigmas, ou seja, normas, suposições teóricas, regras e métodos amplamente difundidos dentro de uma comunidade científica que, em determinado momento, experimenta o esgotamento da capacidade explicativa em relação ao seu objeto e sucumbe a outros paradigmas que apresentam projetos aparentemente mais “explicativos”.

Embora se trate de um grande avanço na discussão sobre o caráter explicativo da ciência, sobre a acumulação do conhecimento, sobre a neutralidade e, principalmente, sobre a problematização da atividade científica frente aos contextos históricos e sociais, o conceito de “paradigma” é visto com muita reserva pelos debatedores dessa questão quando se propõe uma leitura das Ciências Sociais com os mesmos parâmetros.

Diversas críticas se seguiram a análise kuhniana do desenvolvimento científico e hoje o campo da discussão teórica sobre o conceito de paradigma apresenta mais debates e contradições do que proposições de uso.

Nesse texto, pretende-se trabalhar o uso do conceito de paradigma de acordo com as releituras feitas por Roberto Cardoso de Oliveira (1997a) e Philip Beardsley (1974). Segundo esses autores, a aplicação da visão kuhniana de paradigma único para cada disciplina científica pode ser viável para as ciências exatas, mas enfrenta grandes problemas quando pensada para as Ciências Sociais. Devido às especificidades metodológicas e, principalmente, de natureza do objeto da pesquisa social é necessário enxergar a dinâmica das Ciências Sociais de maneira distinta.

Para Cardoso de Oliveira, que aborda especificamente a dinâmica histórica de formação e desenvolvimento da Antropologia social, é possível observar a coexistência de vários paradigmas sem que um se sobressaia e os outros se desfaçam. Para ele, o que se verifica na Antropologia social moderna é a existência de uma matriz disciplinar que se caracteriza pela coexistência de quatro paradigmas distintos.

De forma distinta do uso corrente do termo “matriz disciplinar” no posfácio da obra de Kuhn (1992:217-257), a coexistência paradigmática não é colocada como um

31

Page 32: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

aspecto transitório de um campo em direção à formação de uma ciência normal, mas sim como característica própria dessa disciplina científica. Dentre os quatro elementos da matriz disciplinar de Cardoso de Oliveira, o paradigma culturalista, ligado a escola histórico-culturalista norte-americana, será discutido mais detalhadamente nesse trabalho.

Com uma perspectiva semelhante, o cientista político Philip Beardsley (1974) argumenta que a Ciência Política poderia ser caracterizada como multiparadigmática. Propondo uma revisão do conceito kuhniano de paradigma aplicado a Ciência Política, Beardsley procura discutir se é possível falar da existência de um paradigma por algum momento considerável na história da Ciência Política ou se essa disciplina presencia a formação de um paradigma. O autor conclui que não houve e nem há algo substantivo que poderia ser chamado de paradigma, segundo os termos de Kuhn, na Ciência Política.

Contudo, Beardsley afirma que “a Ciência Política pode e deve alcançar uma condição multiparadigmática” (1974:60). Para ele, é inviável imaginar o desenvolvimento de uma Ciência Política, com seus múltiplos pontos de vista e processos distintos de investigação, encerrada em um único paradigma que integre toda essa diversidade; mas é possível e existe uma necessidade urgente de trabalhos que analisem, confrontem e sintetizem esses pontos de vista. À época do artigo, Beardsley reconhece o conceito de “sistema político” como o “candidato mais ambicioso para um paradigma na Ciência Política” (1974:60). Hoje, é possível pensar na coexistência entre correntes como a rational choice, as abordagens culturalistas, as neo-institucionalistas e pós-modernas em um quadro que se candidataria a uma composição multiparadigmática da Ciência Política.

Essas discussões sobre o conceito de paradigma e seu uso nas Ciências Sociais se deram de forma mais intensa na década de 1970 e de 1980. Apesar de representarem um pouco do que foi o impacto do trabalho de Kuhn sobre as Ciências Sociais nas décadas que se seguiram a sua publicação, os autores citados apresentam questões muito úteis e atuais para se pensar o desenvolvimento teórico e metodológico de algumas correntes e tradições de pensamento dentro das disciplinas das Ciências Sociais e entre as mesmas.

O contexto e o desenvolvimento dos paradigmas culturalistas

Até o início do Século XX, os diversos desenvolvimentos em teoria política e teoria social estavam marcados por uma forte ênfase no aspecto normativo e institucional das relações entre os homens. Ou seja, é possível afirmar que o objeto principal do pensamento social, desde suas origens registradas nas narrativas clássicas de Platão e Aristóteles, esteve atrelado à análise de normas sociais e de valores morais.

Essas afirmações generalistas desconsideram algumas importantes elaborações teóricas voltadas para questões culturais, ou seja, centradas em costumes, atitudes, valores e comportamentos dos indivíduos, que estavam presentes em alguns clássicos como Tocqueville e Montesquieu, devido ao caráter normativo que fundamentava a reflexão desses autores.

Contudo, ainda no final do Século XIX e início do Século XX, começam a se

32

Page 33: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

consolidar novas perspectivas que consideravam essa dimensão cultural das relações sociais e que propunham, também, uma abordagem mais positiva desses estudos dentro das Ciências Sociais.

Por possuir uma circunscrição espacial e temporal específica, o surgimento dessas novas perspectivas está associado ao contexto econômico, cultural e político dos Estados Unidos no início do Século XX. A academia norte-americana fazia parte de uma sociedade em transformação que experimentou um grande crescimento populacional e um forte desenvolvimento econômico advindo da industrialização, da modernização econômica e da urbanização na virada do século.

As influências desse contexto para a dinâmica da produção de conhecimento dentro das Ciências Sociais foram diversas. De maneira geral, destaca-se o grande aporte financeiro para o desenvolvimento de pesquisas que tratavam de problemas sociais decorrentes dessas transformações. Em um primeiro momento, esse apoio era voltado para projetos que visavam o estudo de questões como “imigração”, “pobreza” e “urbanização” que se destacavam como os mais relevantes segundo os interesses dessas instituições financiadoras (BECKER, 1996).

O conjunto dos trabalhos mais importantes para a discussão proposta nesse trabalho, surge em outros dois momentos desse apoio: no período entre guerras e após a II Guerra Mundial. O aumento da preocupação do governo e de algumas instituições privadas norte-americanas com a perspectiva de seus cidadãos em relação ao regime político, com a questão do nacionalismo, com a cultura de países “inimigos” e com a própria dinâmica social interna afetada pelas grandes guerras, fez como que um volume considerável de recursos econômicos e políticos fosse voltado para estudos e pesquisas sociais. Essa sustentação econômica se deu, em grande parte, por meio do apoio de fundações privadas e do governo dos Estados Unidos para estudos em diversas áreas das Ciências Sociais (JONES-KERN, 1999).

O debate a respeito do possível viés imposto por essas instituições na escolha do objeto e na maneira de se fazer ciência social durante esse período é bastante polêmico e controverso. Mesmo assim, tanto aqueles que se posicionam a favor do financiamento dessas fundações, quanto aqueles que se posicionam contra, reconhecem uma influência relevante, seja positiva ou negativa, sobre os projetos financiados (PLATT, 1996).

Outro aspecto contextual importante que marcou esse período foi o forte desenvolvimento dos métodos e técnicas de pesquisa, propiciado pelos avanços tecnológicos. Destacam-se o desenvolvimento na área de transportes que viabilizou estudos com uma abrangência espacial muito maior e facilitou a realização de estudos de campo em sociedades distintas, e também o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, possibilitando a construção e o processamento de dados em larga escala e em tempo muito menor, o que causou uma verdadeira revolução na estatística.

Essa revolução na estatística possui conseqüências diretas para as Ciências Sociais a partir da década de 1930. Primeiramente, a popularização entre as universidades de uma atividade que antes estava concentrada quase absolutamente na administração do governo e que passa a ser comum nas pesquisas sociais acadêmicas. O progresso das tecnologias de informação e comunicação e da estatística computacional

33

Page 34: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

são decorrências diretas da forte industrialização e dos grandes investimentos bélicos realizados na primeira metade do século nos Estados Unidos.

Como argumentado anteriormente, esse contexto relatado dos Estados Unidos no início do Século XX foi fundamental para o surgimento de diferentes perspectivas teórico-metodológicas dentro da Antropologia e da Ciência Política. Perspectivas essas, que têm como característica definidora a combinação de dois fatores distintos de todos os outros recorrentes até então em cada uma dessas disciplinas: a operacionalização do conceito de cultura e uma forte preocupação empirista, e por isso são relacionadas como formadoras de um paradigma específico na Antropologia (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1997a) e na Ciência Política (CHILCOTE, 1997). Segue-se uma referência às principais idéias a partir das quais esses paradigmas se desenvolveram.

O paradigma culturalista na Antropologia: Boas, Mead e Benedict

O alemão Franz Boas é o principal representante dessa nova proposta de abordagem nos Estados Unidos frente a uma forte tradição de estudos dentro da Antropologia européia. Grande parte dos trabalhos antropológicos realizados até meados do Século XIX partia dos pressupostos evolucionistas ou difusionistas de que haveria certo direcionamento e linearidade no desenvolvimento histórico, e de que processos sociais semelhantes ocorreriam em diferentes épocas para diferentes sociedades. Os primeiros trabalhos de Boas, no final do Século XIX, inspirados em seus estudos de física, geografia e lingüística – sua formação inicial é de físico – ressaltavam o caráter relativo de determinadas idéias largamente difundidas na Antropologia evolucionista como causalidade e classificação.

De acordo com um dos principais debatedores da obra de Boas, George Stocking Jr. (2004), as primeiras contribuições desse autor para a formação da Antropologia cultural, podem ser identificadas nos debates com representantes do pensamento evolucionista. Primeiramente, Boas vai de encontro à idéia de causalidade dos evolucionistas, caracterizada pela noção simplista de que efeitos semelhantes teriam, necessariamente, causas similares, afirmando que “Embora causas semelhantes tenham efeitos semelhantes, efeitos semelhantes não têm causas semelhantes” (BOAS, 1887d:589 apud STOCKING JR., 2004).

Outra grande investida de Boas consistiu na crítica à classificação das sociedades como se as mesmas passassem, inevitavelmente, pelos mesmos processos sociais. O exemplo é dado com a questão prática do arranjo de um museu, pois a disposição das peças implicava questões muito mais profundas de ligação com os processos sociais específicos de cada sociedade e não, como se dava na época, pela semelhança física ou pela significação simbólica, dada pela sociedade do museólogo, ao objeto do museu.

Apesar disso, não é sobre a crítica ao evolucionismo e ao difusionismo que se sustenta a Antropologia boasiana. Afinal, a própria Antropologia social britânica consolidada a partir de um paradigma estrutural-funcionalista surge em contraste ao pensamento evolucionista e essa é uma característica que possui raízes na tradição empirista anglo-saxônica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1997a). As contribuições fundamentais de Franz Boas para a formação de um paradigma distinto da Antropologia social estariam por vir como conseqüência de estudos posteriores.

34

Page 35: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Embora tenha nascido e se formado na Alemanha, Franz Boas migrou para os Estados Unidos e nesse país passou a ter contato com a Antropologia anglo-americana que, apesar de ligada a uma Antropologia de cunho mais físico e biológico, contribui com a tradição de estudos etnológicos para os estudos de Boas. Essa tradição foi combinada com certa herança da Antropologia alemã no debate do conceito de cultura e na importância da história que deu origem a principal contribuição de Boas para a formação da Escola Histórico-Cultural Norte-americana. (STOCKING JR., 1968).

Em Franz Boas, a idéia de cultura adaptada para uma perspectiva mais histórica e combinada com o caráter empírico é transformada de um aspecto não-substancial do estudo antropológico para um conceito central da Antropologia que adquire instrumentalidade e operacionalização. Como afirma Stocking Jr. , ao comentar o papel de Boas que inaugura um paradigma dentro da Antropologia social: A idéia de cultura, radicalmente transformada em significado, é o elemento central desse paradigma... Boas não ofereceu, como Tylor afirmou ter feito, uma definição da “cultura” da Antropologia. Entretanto, o que ele fez foi criar uma importante parte do contexto no qual essa palavra adquire seu significado antropológico característico. (1968: 232-3, tradução minha)

Na dimensão metodológica, Boas inaugura a autoridade antropológica do saber local da realidade de uma sociedade específica, seu foco é dado sobre o caso etnográfico individual. Embora tenha sofrido diversas críticas pelo aspecto cientificista – mesmo na tensão de coexistência com o aspecto histórico – na tentativa de desenvolvimento de uma Antropologia social ou cultural com características emprestadas das ciências naturais.

De forma geral, a grande contribuição de Boas está na consolidação dessa nova perspectiva sobre a cultura que ele deixa como herança para o paradigma culturalista e que é visível na produção de duas representantes da tradição culturalista: Ruth Benedict e Margaret Mead. Ambas tiveram ligação forte com os trabalhos de Franz Boas tornando-se conhecidas como “boasianas evoluídas” (STOCKING JR., 2004). Seus trabalhos tiveram importância fundamental para a formação do que ficou conhecida como a Escola de Cultura e Personalidade.

Ruth Benedict dá início a um grande debate de aproximação da psicologia e da Antropologia ao publicar um trabalho chamado Patterns of Culture. Seguindo o esforço de Boas na definição de um conceito de cultura antropológico, essa publicação de Benedict inaugura a perspectiva da cultura como um conjunto de padrões e traços de comportamentos individuais. Esse foco sobre estudos de padrões de comportamento (padrões culturais) que considerassem o nível individual tem um impacto muito forte não só para a maioria das produções da escola de cultura e personalidade que são inspiradas nisso, mas também para o surgimento de estudos políticos que deram origem ao paradigma culturalista na Ciência Política, como será comentado mais adiante.

Margaret Mead, aluna de Ruth Benedict, desenvolveu diversos estudos relacionados ao caráter nacional e, dentre os autores aqui citados, é uma das pensadoras que teve maior relação com o contexto político marcado pelas guerras. Por meio de alguns órgãos do governo norte-americano ligados ao esforço de guerra, Mead teve a possibilidade de realizar estudos de campo fora dos EUA, o que foi uma importante colaboração para consolidar a metodologia de estudos comparativos baseados em

35

Page 36: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

indivíduos, até mesmo porque:

Naquele momento de perplexidade, durante e após a Segunda Guerra Mundial, fazia-se mais do que nunca necessário pensar o papel político dos Estados-nação. Principalmente, porque cada vez mais constatava-se que indivíduos e grupos conduziam suas atividades em função dos chamados “valores nacionais”. (KUSCHNIR e CARNEIRO 1999: 4)

Ciência Política: Comportamentalismo x Institucionalismo

Em contraste com a história da Antropologia e da Antropologia social que possui certa organização e produção desde meados do Século XIX, a institucionalização da Ciência Política se dá na virada do século XX, impulsionada principalmente pelos autores Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto.

Como afirma Mariza Peirano (1997:21), baseada em Mario Grynszpan (1994): “a Ciência Política resulta, em grande parte, do esforço de alguns cientistas sociais norte-americanos que, como comentadores dos pais fundadores, criaram suas próprias clivagens e descendências intelectuais”.

Em 1956, o cientista político Gabriel Almond publica o artigo “Comparative Political Systems” onde sugere “como uma aplicação de certos conceitos antropológicos e sociológicos pode facilitar a comparação sistemática entre tipos de sistemas políticos em operação no mundo” (ALMOND, 1956:391). Tal sugestão é substancialmente inovadora frente às perspectivas institucionalistas preponderantes que tornava a Ciência Política muito mais próxima de disciplinas como a economia e o direito.

Como assume Almond, essa nova perspectiva surge das demandas do interesse acadêmico norte-americano em ampliar sua análise para incluir outras regiões além da Europa Ocidental e demandas de maior precisão em relação ao conhecimento sobre a realidade de outros países, visto que “o nosso [norte-americano] interesse internacional tem se expandido e se tornado mais urgente”. É importante ressaltar que o contexto político dos Estados Unidos é determinado pelo final da II Guerra Mundial e início de uma concorrência em âmbito internacional entre duas propostas distintas de sistema político, uma capitaneada pelos Estados Unidos e a outra pela antiga União Soviética.

Resumidamente, a sugestão de Gabriel Almond de uma nova abordagem baseada em conceitos sociológicos e antropológicos é baseada no argumento de que “Todo o sistema político está enraizado em padrões de orientações para a ação política” (1956:391) e que a apreensão e a mensuração desses padrões de orientação para a política, a cultura política, é metodologicamente possível de ser realizada no nível individual e se apresenta como fundamental para o estudo de sistemas políticos comparados.

O primeiro trabalho empírico baseado nessa perspectiva foi The Civic Culture (ALMOND e VERBA, 1963) e ficou conhecido como a grande referência do paradigma comportamentalista (CHILCOTE, 1997). Os trabalhos decorrentes, inspirados na obra de Almond e Verba e que deram corpo ao paradigma comportamentalista durante a década de 1960, foram marcados por um uso intenso de metodologias quantitativas e de trabalhos empíricos e por um diálogo, análogo ao da Escola de Cultura e Personalidade, com a psicologia.

36

Page 37: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

No início da década de 1980, Gabriel Almond realiza uma pequena revisão da história intelectual do conceito de Cultura Política. Nessa revisão, Almond enumera algumas inspirações teóricas do conceito e cita, de passagem, a influência do trabalho da Escola de Cultura e Personalidade na formação desse conceito:

Uma quarta vertente intelectual integrante da conceitualização e pesquisa em cultura política foi a psicoAntropologia... uma junção da psicoanálise com as Ciências Sociais começou em 1920 e 1930 com o trabalho de Bronislaw Malinowski, Ruth Benedict, Margaret Mead e Harold Lasswell. (ALMOND e VERBA, 1980:14)

A produção dentro do paradigma comportamentalista sofreu severas críticas e se viu quase ameaçada durante toda a década de 1970 e 1980. As críticas em relação ao paradigma comportamentalista se concentraram muito mais sobre o trabalho de Almond e Verba – mais especificamente sobre o conceito de cultura cívica visto como etnocêntrico – do que sobre a proposta teórico-metodológica do paradigma.

Mais recentemente, tem se observado o surgimento de um número considerável de novos estudos que resgatam a perspectiva da cultura política como nos trabalhos de Robert Putnam e Ronald Inglehart. A produção e o espaço adquirido dentro da Ciência Política por esses novos estudos que, mesmo sem dar ênfase ao conceito, adotam o pressuposto culturalista dos estudos de cultura política, podem ser considerados como um movimento de formação, após o ostracismo do paradigma comportamentalista, do paradigma culturalista dessa disciplina.

Considerações finais

A tentativa desse trabalho de enxergar uma relação entre o desenvolvimento de determinadas tradições de pensamento dentro de disciplinas distintas das Ciências Sociais e o contexto político, econômico e cultural não pretende realizar juízos de valor sobre o conhecimento produzido pelos autores que arbitrariamente foram identificados nesse texto como formadores dessas correntes.

Certamente, a classificação como paradigma culturalista exposta e imposta nessa reflexão aos autores e suas idéias para facilitar a exposição do argumento, por outro lado limita o alcance dessas idéias que possuem interface e podem até mesmo serem caracterizadas como colaboradoras de outras tradições de pensamento e outros paradigmas dentro dessas disciplinas científicas (TEÓFILO DA SILVA, 2003). As perspectivas sociológicas no que tangem ao conceito de cultura também foram desconsideradas para facilitar essa exposição, apesar de possuírem forte ligação com o desenvolvimento desses paradigmas culturalistas, principalmente no que concerne a influência de Max Weber e Talcott Parsons.

O objetivo dessa reflexão está relacionado a uma tentativa própria da Sociologia da ciência, cujas origens podem ser atribuídas à obra de Thomas Kuhn, em tornar problema de pesquisa a maneira como o campo científico produz conhecimento enfatizando a ligação imanente com o meio social em que esse conhecimento é produzido.

A forma de separação das idéias aqui expostas é intencional e de extrema relevância para a reflexão proposta. Não foi objetivo desse trabalho estabelecer qualquer relação substancial entre o conteúdo semântico do conceito de cultura como utilizado

37

Page 38: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

por antropólogos e a idéia de cultura política recorrente no paradigma culturalista da Ciência Política. A forma com a qual esses dois conceitos são usados possui relação nos termos em que foi colocado nesse texto, mas os mesmos não se confundem quanto ao significado que cada um possui dentro de cada disciplina.

Nesse trabalho, procurou-se sustentar a hipótese de que a concepção moderna de cultura e o uso desse conceito, tanto na Antropologia social, quanto na Ciência Política, possuem uma origem fortemente relacionada ao contexto social em que os autores pioneiros viveram. Uma das implicações diretas desse argumento recai sobre os trabalhos baseados em cada uma dessas tradições que devem ser interpretados considerando o ponto de vista exposto, e elaborados considerando a ressalvas que essa relação traz à tona.

Este é um ponto já explorado em trabalhos como o de Roberto Cardoso de Oliveira (1997b) onde é proposta uma etnografia das Antropologias periféricas, ou seja, uma visão mais sistemática sobre a Antropologia realizada em países à margem daqueles onde se originaram as correntes mais tradicionais da disciplina (Estados Unidos, França e Inglaterra). Tal empreendimento é necessário devido “a inviabilidade de desassociar a aplicação da Antropologia (...) das condições socioculturais, inclusive políticas, que propiciaram seu surgimento enquanto disciplina" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1997b:149)

Na Ciência Política, Henrique Castro (2000) argumenta que o próprio conceito de cultura política merece ser examinado criticamente e adaptado para se pensar realidades distintas como a latino-americana. O conceito de cultura política, principalmente nos estudos em que é associado à idéia de cultura cívica (ALMOND e VERBA, 1980), traz consigo uma visão normativa da política baseada nas condições de elaboração desse conceito e desconsidera condições específicas de cada situação onde se propõe a aplicação do mesmo.

Além disso, a relação exposta tem conseqüências diretas sobre a forma como essas tradições de pensamento se desenvolveram, e se destaca como um fator importante para uma possível comparação e abertura de diálogo entre as disciplinas. Tanto na Ciência Política quanto na Antropologia, não existe qualquer esforço de comparação ou combinação entre as perspectivas culturalistas originadas em cada disciplina. Esse esforço é possível a partir do momento em que se assume certa coerência e sintonia entre as duas perspectivas no que concerne a oposição em que ambas adotam frente ao ponto de vista racionalista/ institucionalista preponderante no surgimento das mesmas.

Também é possível observar que essas perspectivas compartilham um objeto com características muito comuns. Por surgirem e se desenvolverem em um contexto onde era necessário um conhecimento mais apurado sobre o “outro” – em seu sentido antropológico, o estudo das relações sociais segundo os valores, atitudes e comportamentos predominantes no processo social e suas influências sobre as instituições, é o ponto de partida das duas abordagens.

Baseados em uma relação entre o conceito de cultura política e a tradição de estudos antropológicos, Kuschnir e Carneiro acreditam que “o apelo fortemente normativo e etnocêntrico presente nos trabalhos fundadores dos estudos de cultura

38

Page 39: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

política, principalmente em Almond e Verba (1963), acabou por afastar os antropólogos deste debate” (1999:19). Além disso, a “necessidade” de uma metodologia fortemente ligada ao uso de técnicas quantitativas, de certa forma, afastou a perspectiva culturalista na Ciência Política de um diálogo com o paradigma culturalista antropológico, visto que esse último se caracteriza essencialmente pelo uso de técnicas qualitativas mesmo sendo fortemente empirista. Contudo, é sobre esse ponto que se podem vislumbrar as principais possibilidades de diálogo entre essas correntes.

Bibliografia

ALMOND, Gabriel. Comparative political systems. Journal of politics, 18, p. 391-409, 1956.

----- & VERBA, S. The civic culture. Princeton: Princeton University Press, 1963.

-----. The civic culture revisited. Boston: Little & Brown, 1980.

BEARDSLEY, Philip L. Political Science: The Case of the Missing Paradigm. Political Theory, V. 2, N. 1, Feb., 1974, p. 46-61.

BECKER, Howard. A escola de Chicago. Mana., Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131996000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 29/06/2007.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Tempo e Tradição: Interpretando a Antropologia”. Sobre o Pensamento Antropológico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Por uma etnografia das Antropologias periféricas”. Sobre o Pensamento Antropológico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b.

CASTRO, H.C.O. Democracia e mudanças econômicas no Brasil, Argentina e Chile: Um estudo comparativo de cultura política. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000.

CHILCOTE, Ronald H. Teorias de política comparativa: a busca de um paradigma reconsiderado. Petrópolis: Vozes, 1997.

GRYNSZPAN, Mario. As Elites da Teoria. Tese de Doutorado, PPGAS/MN/UFRJ. 1994.

JONES-KERN, Kevin. ''Franz Boas, Margaret Mead, and D. Rockefeller: the role of the Rockefeller foundation in the history of american anthropology'', in American Association for behavioral and social science journal, 2. 1999. Disponível em http://aabss.org/journal1999/f20Jones.html . Acesso em 29 de junho de2007.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.

39

Page 40: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

KUSCHNIR, Karina e CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura política e Antropologia da política. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 24, p. 227-250, 1999.

LORENZANO, César. Los ancestros de Thomas Kuhn (homenaje a Ludwik Fleck). In: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C. P.; SILVA, C. C.; FERREIRA, J. M. H. (eds.). Filosofia e história da ciência no Cone Sul: 3o Encontro. Campinas: AFHIC, 2004. Pp. 91-101. Disponível em http://ghtc.ifi.unicamp.br/AFHIC3/Trabalhos/12-Cesar-Lorenzano.pdf . Acesso em 13 de maio de 2007.

PEIRANO, Mariza. Antropologia política, Ciência Política e Antropologia da política. In: Três ensaios breves. Série Antropologia nº 231, Universidade de Brasília, Depto. de Antropologia, 1997, p.15-26.

PLATT, J. “Has Funding Made A Difference To Research Methods?”, Sociological Research Online, vol. 1, no. 1, 1996. Disponível em http://www.socresonline.org.uk/socresonline/1/1/5.html . Acesso em 29 de junho de 2007.

RENNÓ, Lúcio R.. Revisitando A Corrente Dominante da Teoria da Cultura Politica. Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Brasilia, v. 1, n. 1, 1997.

SANTOS, Boaventura de Souza. "Da Sociologia da ciência à política científica". Revista Crítica das Ciências Sociais, 1, 1978. Disponível em

TEÓFILO DA SILVA, Cristhian. “A hermenêutica de Boas: Elementos para uma releitura da matriz disciplinar da Antropologia”. Habitus, v.1, n.º2, jullho/dezembro 2003, pp.367-394.

STOCKING JR., George W. “Franz Boas and the Culture Concept in Historical Perspective”. In: Race, Culture, and Evolution: Essays in the History of Anthropology. New York: The Free Press, 1968, pp. 195-233.

______. “Introdução – Os pressupostos básicos da Antropologia de Boas”. In BOAS, Franz. A formação da Antropologia americana– 1883-1911. Rio de Janeiro, Contraponto/Editora UFRJ, 2004. Pp. 15-38

40

Page 41: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

A ruptura constante com a natureza nas Ciências Sociais

Renata Motta22

Condenado inúmeras vezes, o conceito de natureza humana, a mais simples e mais natural das naturezas simples, sobrevive sob as espécies de conceitos que são como sua moeda corrente, por exemplo, as “tendências” ou as “propensões” de certos economistas, as “motivações” da psicologia social ou as “necessidades” e os “pré-requisitos” da análise funcionalista.Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron, 2004, p. 30.

Introdução

A proposta deste texto é explorar na obra de Pierre Bourdieu e, por meio da leitura de autores clássicos das Ciências Sociais, a ruptura com a idéia de natureza humana como uma ruptura epistemológica constitutiva das Ciências Sociais. Na primeira parte, discorrerei sobre as concepções de Bourdieu, de Marx, Durkheim e Weber sobre a ciência social23 como superação das explicações do social baseadas no conceito de natureza. Partindo desta concepção de ciência social, analisarei, na segunda parte, um texto programático de teóricos da vertente da escolha racional na Ciência Política, Shepsle e Bonchek, como um exemplo de uma possível renaturalização destas ciências.

Cabe ressaltar que o objetivo não é realizar uma crítica à teoria da escolha racional, uma abordagem que comporta distintos matizes e diversos autores. O escopo do presente texto é tomar um exemplo de como a ruptura epistemológica que considero constitutiva das Ciências Sociais não está restrita aos autores fundadores destas disciplinas, mas requer atualização constante quando se opta por romper com uma leitura substancialista do indivíduo.

Meu argumento, que será desenvolvido na terceira e última parte, é que a adoção de uma ontologia do homem baseada no natural ou no social é ao mesmo tempo uma tomada de posição epistemológica e social, na medida em que é indissociável de uma concepção sobre a relação entre teoria e empiria e, de forma mais geral, sobre o papel da ciência social.

22 Mestranda em Ciências Sociais no CEPPAC, UnB.23 Optei pelo termo “ciência social” para tratar em conjunto a Ciência Política, a Antropologia e a

Sociologia porque me refiro uma ruptura epistemológica que se deu quando não havia fronteiras nítidas entre estas disciplinas e trato intercambiavelmente das três em conjunto, já que meu argumento é sobre este processo de ruptura que é comum às ciências do social. Assim, são desconsideradas as distinções que aparecem em um ou outro autor citado quando se refere à Sociologia ou à Ciência Política, tratando-as todas como Ciências Sociais.

41

Page 42: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Uma ciência do social se constrói contra a natureza

Em sua obra sobre metodologia da pesquisa na Sociologia, Bourdieu, Chamboredon & Passeron (2004) defendem uma atitude de “vigilância epistemológica”: de uma ruptura, que é a conquista do fato contra a ilusão do saber imediato e da explicitação metódica dos pressupostos teóricos utilizados na construção do objeto. Para os autores, o obstáculo por excelência dos sociólogos é sua familiaridade com seu objeto de estudo, o universo social, daí decorre sua dificuldade em separar a Sociologia espontânea da científica. Assim, a invenção sociológica pressupõe a ruptura com o real e com as configurações que ele impõe à percepção, ou seja, tanto em relação à experiência ingênua do social quanto à expressão dessa experiência de forma ingênua. Esta é possível pelo rompimento com a linguagem comum, a partir de sua análise e da invenção de um sistema de noções metodicamente definidas e ressignificadas. Um dos princípios da pesquisa social para os autores é:

(...) a lembrança da decisão metodológica de não abdicar prematuramente do direito à explicação sociológica ou, dito por outras palavras, não recorrer a um princípio de explicação tirado de outra ciência, quer se trate da biologia ou psicologia, enquanto não tiver sido completamente comprovada da eficácia dos métodos de explicação propriamente sociológica. Além do fato de que, ao recorrer a fatores que são por definição trans-históricos e transculturais, corremos o risco de dar como explicado isso mesmo que deve ser explicado (...). (BOURDIEU, CHAMBOREDON & PASSERON, 2004, p. 30).

Optar pelo simples, abdicar-se da explicação sociológica seria, para estes autores, negar-se como sociólogo. Recorrer a conceitos da biologia como “natureza” para explicar o mundo social é abdicar de fazer ciência social. Os autores recuperam os clássicos da teoria social para exemplificarem este princípio de que o social deve ser explicado pelo social. Assim, para Marx, recorrer ao conceito de “natureza” é eliminar a construção histórica das instituições e relações sociais, bem como suas funções. Tal naturalização pode ter um papel ideológico, de tomar como dado da natureza aquilo que é produto da história, justificando relações de dominação como eternas e não passíveis de serem mudadas.

Opondo-se tanto aos economistas políticos quanto aos filósofos neo-hegelianos, Marx traz a história para as ciências do homem. Quanto aos primeiros, critica a abstração da suposição de um estado primevo, fictício, que “nada explica. Apenas empurra a questão para uma distância nebulosa, cinzenta. Supõe na forma do fato, do evento, aquilo que ele deve deduzir, a saber, a relação necessária entre duas coisas (...)” (MARX, 1989, p. 148). Quanto à filosofia alemã neohegeliana, Marx critica sua especulação sobre o espírito, a consciência, que a autonomiza da vida empírica, efetiva, chamando-a a descer do céu para a terra, desfazendo o que considera uma inversão daquela filosofia: “não a consciência determina a vida, mas a vida determina a consciência” (MARX E ENGELS, 1989, p. 193). Os autores expõem em seguida sua proposta:Esse modo de consideração não é sem pressupostos. Parte dos pressupostos efetivos, não os abandona um instante sequer. Os seus pressupostos são os homens em seu processo de desenvolvimento efetivo, empiricamente intuível e sob condições determinadas, e não os homens fechados em si e fixados em alguma fantasia. (...) Lá onde termina a especulação, na vida efetiva, aí começa portanto a ciência positiva, efetiva, a exposição do exercício prático, do processo prático de desenvolvimento dos homens (idem).

42

Page 43: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Sua concepção de história se opõe diretamente à concepção da filosofia idealista que vê no “espírito puro” o critério de explicação da história, ou seja, algo que está fora dela, que é supra-mundano. A concepção materialista de Marx traz para o decurso histórico a relação do homem e de suas circunstâncias, sendo estas transmitidas da geração anterior e passiveis de modificação pela nova geração, em suas palavras: “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias”(idem, p. 204).

Neste ponto, é elucidativo recuperar a afirmação de Bourdieu, de que se esforça para “mostrar que o que, por todos os cantos, se chama de social é história” (BOURDIEU, 1983: 59), isto é, os fenômenos sociais são resultados da ação humana no tempo, são históricos, datados e, reversamente, a história é construída socialmente. Postular o homem religioso, como faz a tradição hegeliana, como homem primevo é escapar à explicação daquilo que deveria ser explicado.

Enquanto Marx critica que a filosofia alemã está invertida, Durkheim chama a atenção para a inversão de se tomar a causa pelo efeito e vice-versa: contra uma explicação psicológica dos fatos sociais, o autor nega o caráter inato de certos estados psíquicos que seriam determinantes de fenômenos sociais24. Ao contrário disso, não se tratam de instintos inerentes à natureza humana e podem ser explicados por outros fenômenos sociais. Daí a formulação de sua regra: “A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais anteriores e não entre os estados da consciência individual” (DURKHEIM, 1982, p. 96).

Saindo da consciência individual, Durkheim vai desenvolver um tema que se torna central para a sua Sociologia, as representações coletivas, conceito que situa no plano do coletivo e das singularidades de cada sociedade o que era, até então, considerado como constitutivo do indivíduo universal, como na filosofia do conhecimento kantiana (1982, 1970). Tomadas como “fatos sociais”, Durkheim, lhes atribui externalidade ao indivíduo (estruturas objetivas, portanto) e coercibilidade (são incorporadas no indivíduo e não objeto de sua consciência e arbítrio): “Estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem” (DURKHEIM, 1982: p. 3).

As representações coletivas, para este autor, são a síntese de um saber acumulado por gerações e por isso transcendem o que um indivíduo sabe e conhece, tanto em riqueza de conteúdo quanto no tempo. As próprias categorias de entendimento têm origem social, ou seja, são estados da coletividade e dependem de como esta é constituída e organizada, das instituições sociais (DURKHEIM, 1970). O autor rompe, desta forma, não só com o individualismo da psicologia, mas também com as explicações biológicas de uma possível natureza social para fundar uma ciência social: “para que a Sociologia tenha o direito de existir, é necessário que haja no reino social 24 “(...) Se a origem da evolução social fosse a constituição psicológica do homem, não se poderia mais compreender como se

teria produzido; seria preciso admitir então que tem como motor alguma mola interior à natureza humana. Que mola, porém, poderia ser esta? Seria aquela espécie de instinto de que fala COMTE e que leva o homem a realizar sua natureza de maneira cada vez mais completa? Mas então responde-se à pergunta por outra pergunta e explica-se o progresso pela tendência inata ao progresso, verdadeira entidade metafísica cuja existência, de resto, nada vem demonstrar (...)” (DURKHEIM, 1982: p. 95).

43

Page 44: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

qualquer coisa que escape à investigação biológica”(idem, 1987, p. 92, tradução livre).

Weber também rompe com explicações baseadas em tendências inatas de uma psicologia individual e, portanto, de explicações universais para os fenômenos culturais, os quais seriam caracterizados por sua singularidade. Assim, em um texto no qual expõe a metodologia das Ciências Sociais (1982), o autor argumenta que só se pode ter conhecimento dos acontecimentos culturais com base na sua significação, sempre singular, sempre estruturada em relações singulares. Para Weber, “Não há qualquer dúvida de que o ponto de partida do interesse pelas Ciências Sociais reside na configuração real, isto é, singular, da vida sócio-cultural (...)”(WEBER, 1979, p. 50, grifo do autor).

Em seu famoso estudo sobre a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER, 1986), por exemplo, o autor estuda as conseqüências práticas que teve para a economia o racionalismo ascético baseado na concepção de vocação que surge com a Reforma de Lutero. Weber analisa os fundamentos religiosos de quatro seitas protestantes constitutivos de uma ascese mundana metódica e racional, a qual se torna o meio de se assegurar que se é um predestinado do poder divino. A valorização do trabalho duro e constante e a condenação do gozo em vida e do uso irracional dos ganhos tiveram como conseqüências a geração de lucros, a acumulação de riqueza poupada e seu investimento de forma racional, uma alavanca poderosa para o que Weber denominou de o “espírito do capitalismo”.

Este breve resumo de um de seus estudos sobre Sociologia da religião e sobre as relações entre sociedade e economia demonstram como o autor foge de tendências inatas como “fome de riqueza” e “ânsia de lucro” para mostrar que elas não explicam como fenômenos singulares, como o capitalismo contemporâneo, se constituíram. Weber afirma que sempre houve indivíduos com estas características, mas o que explica a formação do espírito capitalista é o novo significado cultural que o lucro e a riqueza assumem com alguns desenvolvimentos dogmáticos da Reforma protestante: se antes o lucro e a acumulação de riqueza existiam, mas eram considerados negativamente de acordo com as idéias de valor vigentes na ética cristã, nas sociedades onde prevaleciam certas seitas protestantes estudadas por Weber, eles assumem um significado cultural singular: uma concepção de riqueza como boa obra de vocação libera o desenvolvimento do espírito capitalista.

A constituição de uma nova ciência, a ciência do social, isto é, das relações entre os homens, dependeu, portanto, de um novo método, que se distanciasse das explicações baseadas nas ciências da natureza:

É de esperar que a situação em que nada saberemos enquanto não tivermos reduzido causalmente os acontecimentos culturais à “raça” – como se fez, de modo semelhante, em relação ao “ambiente” ou, anteriormente ainda às “circunstâncias”-, que possa vir a ser lentamente superada através de um trabalho metodologicamente fundamentado. (idem, 1982, p. 43).

Este trabalho seria a “atribuição segura dos acontecimentos culturais concretos e

44

Page 45: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

individuais da realidade histórica, a certas causas concretas, historicamente dadas (...)” (idem, grifos do autor). Como Marx, Weber toma como ponto de partida o concreto, o histórico, as relações entre os homens. Como Durkheim, Weber rompe com explicações fundadas na idéia de tendências inatas psicológicas e volta para o aspecto coletivo, culturalmente significativo, relativo a singularidades de uma sociedade. Os três autores adotam uma atitude de “vigilância epistemológica”, como defendida por Bourdieu, Chamboredon e Passeron: todos procedem a uma explicitação metódica dos pressupostos teóricos utilizados na construção do objeto social e, contra a ilusão do saber imediato, aquilo que é considerado como “natureza humana”, fundado na universalidade biológica da espécie humana, os autores demonstram que é socialmente (e, portanto historicamente, construído).

Contra o que Bourdieu, Chamboredon & Passeron, (2004, p. 154), chamam de “a esterilidade da explicação das especificidades históricas por meio de tendências universais”, os autores que são considerados fundadores das Ciências Sociais rompem com o universalismo das explicações baseadas nas tendências da natureza humana para explicar os fenômenos sociais, constituindo uma nova ciência, a ciência do social.

O paradigma da escolha racional da Ciência Política: uma renaturalização nas Ciências Sociais?

Entre os alvos das críticas dos autores acima mencionados, notadamente, de Marx, de Durkheim e de Bourdieu, estão os economistas neoclássicos. Bourdieu, por exemplo, critica o conceito naturalista de interesse dos economistas clássicos, um “interesse a-histórico, natural, universal, que na realidade é a universalização inconsciente do interesse que a economia capitalista engendra e supõe. E não é por acaso que para sair deste naturalismo, os economistas têm que recorrer à sociobiologia” (BOURDIEU, 1983, p.27). Em outras palavras, estes economistas constróem uma explicação do social com base em pressupostos inscritos na ordem do biológico e não do social, criando uma “natureza” humana.

Pretendo avaliar como autores que adotam o paradigma da escolha racional da Ciência Política podem conduzir as Ciências Sociais a uma renaturalização, na medida em que toma explicitamente por base este modelo da economia. Adotarei como texto ilustrativo deste argumento o livro de Kenneth A. Shepsle e Mark S. Bonchek (1997), “Analyzing Politics: rationality, behavior, and institutions”, especialmente seu capítulo 2, “Rationality: the model of choice”, ressaltando que a escola de autores que adotam este paradigma não pode ser esgotada no ponto de vista destes dois autores. Assim, o alvo do argumento não é uma crítica a um paradigma, mas a uma atitude epistemológica de alguns cientistas sociais.

Shepsle e Bonchek (1997, p. 21-22, tradução livre) partem da cumulação de um corpo de conhecimento científico na economia, que, segundo eles, é “um conjunto logicamente integrado de princípios, uma série de ferramentas de pesquisa – uma metodologia, se preferir – para previsão e explicação”, para a pergunta se seria possível construir, analogamente, uma ciência da política: “é possível começar com uma série simples de premissas ou pressupostos e, destes, derivar princípios de performance,

45

Page 46: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

resultados e comportamento políticos?”.

Sua resposta começa de início com a afirmação de que, se a economia havia utilizado de forma mais abrangente e promissora o pressuposto da racionalidade, não havia nada de distintivamente econômico no comportamento racional. Os atores adotam, assim, o pressuposto de que os atores políticos, como os atores econômicos, se comportam racionalmente. A série de premissas desenvolvida por Shepsle e Bonchek (1997, p. 16-19) pode ser resumida da seguinte forma:

a. Os indivíduos possuem desejos e crenças.

b. Os desejos, denominados “preferências”, fazem parte do que classificam como mundo interior. Metodologicamente, estas são tomadas como dadas, fora do escopo de investigação da Ciência Política.

c. Os indivíduos agem de forma auto-interessada (self-interested) de acordo com suas preferências, ou seja, eles agem para realizá-las. Para tanto, possuem um repertório de comportamentos, entendidos como instrumentos para atingirem seu resultado preferido.

d. A concepção do indivíduo acerca da eficácia de um instrumento para a obtenção de sua preferência é sua crença, em um contexto de um ambiente externo permeado de incerteza.

e. Agir combinando suas preferências e suas crenças sobre o mundo exterior de forma consistente é a racionalidade instrumental.

Os autores compartilham metodologicamente com os economistas ao tomar preferências como fixas no longo prazo e fora do escopo de sua investigação (remetidas a biologia, a psicologia e a Sociologia). Sua abordagem também é a do individualismo metodológico, a qual, segundo os autores, implica que estas preferências não podem ser explicadas em termos de classes sociais, de grupos sociais, de pertencimento nacional, na medida em que estes não teriam “mentes” e, portanto, não teriam preferências e crenças por si. As preferências seriam relativas à cognição humana (SHEPSLE e BONCHEK, 1997, p. 16-19).

A começar pela premissa de que os indivíduos possuem preferências dadas e fixas, e não passíveis de explicação pelas relações sociais nas quais estão inseridos, pode-se dizer que os autores subtraem à Ciência Política, uma ciência do social, a explicação daquilo que é passível de explicação, remetendo para outras disciplinas aquilo que é seu objeto de estudo, o comportamento e as relações políticas. Esta abdicação da explicação traz um risco de renaturalização da Ciência Política, notadamente quando se opta, na ontologia do ator político, por uma psicologia biológica e individualizante expressa no conceito de “mente”. As conquistas de Durkheim na construção do objeto da nova ciência que surge, os fatos sociais, categoria na qual insere as representações coletivas, são desconsideradas: as consciências individuais e, extensivamente, as preferências individuais, não se esgotam no substrato biológico do cérebro. Mesmo a cognição humana é socialmente construída, ao contrário do postulado

46

Page 47: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

universalista kantiano das categorias da percepção e do entendimento. Voltar-se para a cognição humana, portanto, não significa optar por um individualismo metodológico e tampouco para a idéia universalizante e naturalizadora de espécie humana. Adotar o pressuposto de que os indivíduos agem combinando preferências e crenças e, simultaneamente, assumir que as preferências e crenças são dadas e fixas, partindo de uma premissa cognitivista é abdicar-se prematuramente da explicação social e correr o risco de uma renaturalização na Ciência Política.

A metodologia de Shepsle e Bonchek para explicar e prever o comportamento político é também baseada no modelo econômico: como os indivíduos alocam seus recursos. Eles são capazes de ordenar suas preferências e de escolher aquela do topo da lista, o que significa que possuem um comportamento maximizador. Para os autores, é este elemento que define os indivíduos: “Indivíduos em situações sociais são definidos como buscando algum objetivo, (...) visando fazer o melhor que podem de acordo com seus próprios termos” (SHEPSLE e BONCHEK, 1997, p. 31, tradução livre). Recorrendo a Weber (1986), como acima exposto, quando este autor demonstra que tendências inatas como “fome de riqueza” não explicam como fenômenos singulares se constituem, pode-se questionar se postular um comportamento maximizador e egoísta não seria também recorrer a tendências inatas e, assim, arriscar-se a renaturalizar a ciência social.

Cabe retomar Weber e sua argumentação de que sempre houve indivíduos com fome de riqueza e que isto, por si só, não dá conta do surgimento do espírito capitalista. A explicação não parte de premissas sobre uma ontologia do indivíduo, mas sobre este inserido em uma ordem social na qual certas idéias de valor são consideradas legítimas, ao passo que outras não o são, como a ânsia de lucro e a riqueza. Na mesma direção, Jeffrey Friedman (1996), em sua análise das abordagens econômicas para a política, afirma que o terreno político é diferente do econômico e, se agir de forma egoísta é legítimo neste, não é visto como legítimo naquele, embora a percepção do comportamento apropriado e, portanto, do grau em que agir egoisticamente é considerado legítimo, varie historicamente.

Além do pressuposto do egoísmo no comportamento político, Friedman questiona o da escolha racional, quando introduz seu livro com a pergunta: se a política sempre foi o terreno do acidental, do emocional, do ideológico, do habitual e do tradicional, “como a política e, por implicação, a história podem ser consideradas como produto de ‘escolha racional’?”(FRIEDMAN, 1996, p. 1). Há novamente um risco das Ciências Sociais perderem a conquista de Marx quando realiza a “desinversão” nos pressupostos da filosofia neo-hegeliana e na economia política ao afirmar que a vida cria a consciência e não o contrário e que as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias. O foco na escolha racional para explicar os fenômenos políticos, além de postular uma natureza humana racional, incorre em um individualismo extremo para dar conta de fenômenos que são sociais. A renaturalização é um caso específico de uma explicação substancialista do que é relacional, ou seja, a explicação das relações entre os homens a partir de conceitos substancialistas como natureza, como indivíduo, tomados autonomamente.

O modo de pensar substancialista, que é o do senso comum – e do racismo – (...) leva a tratar as atividades ou preferências próprias a certos indivíduos ou a certos grupos de uma certa sociedade, em um

47

Page 48: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

determinado momento, como propriedades substanciais, inscritas de uma vez por todas em uma espécie de essência biológica ou – o que não é melhor – cultural (...)” (BOURDIEU, 1996, p. 17, grifo do autor).

Mesmo o conceito de razão pode ser tratado de forma social, ao invés de ser tratado a-historicamente como ontologia individual, como atesta a noção de habitus de Bourdieu. Esta se baseia em um conceito de razão diferente da ponderação e do cálculo planejado, as razões práticas. Segundo o autor, os agentes estão envolvidos em seus afazeres que não são postos como objetos do pensar, como projetos, pois se situam no presente do por vir, do “a fazer”. A razão prática é infra-consciente e expressa a relação de cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo social no qual o agente está situado (BOURDIEU, 1996: p.142)25. Trata-se de um senso prático que os agentes possuem que é adquirido socialmente e não inato: “um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (...), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada” (idem, 1996: p. 42).

Postulados como o egoísmo e a racionalidade inatos do indivíduo universal que servem de base para a teoria da escolha racional desconsideram o que há de coletivo e, portanto, de singular de cada sociedade, dentro de cada indivíduo e não é percebido. Retomando Durkheim, as estruturas mentais são uma forma na qual a sociedade está presente no indivíduo, longe de serem apenas um dado inerente à natureza humana e, portanto, merecem uma explicação por fatos sociais. Isso porque “A Sociologia toma o biológico e psicológico como um dado. E se esforça por estabelecer como o mundo social o utiliza, o transforma, o transfigura” (BOURDIEU, 1983, p. 24). Em outras palavras, mesmo o biológico e o psicológico, mesmo a natureza, é socialmente significada, adquire um caráter social que é passível de explicação como tal. A uma teoria social que se baseia somente no indivíduo e, mesmo quando contempla um mundo exterior, só o faz em termos de como suas incertezas deste mundo afetam as crenças que o indivíduo possui sobre ele e, desta forma, seu cálculo racional, podemos contrapor o argumento de Durkheim e de Bourdieu de que o mundo exterior está no agindo no indivíduo e este é, desta forma, uma forma de existência da sociedade26.

O que está em jogo na discussão de naturalização ou não dos pressupostos sobre o mundo social é, também, a razão de ser da ciência social. A questão não é o economicismo que serve de base à teoria da escolha racional, mas como um economicismo que postula o egoísmo e a racionalidade à natureza humana destitui a ciência econômica, a Ciência Política e, de modo geral, a ciência social da tarefa de 25 “A teoria da ação que proponho (com a noção de habitus) implica me dizer que a maior parte das ações humanas tem por base algo diferente da intenção, isto é, disposições adquiridas que fazem com que a ação possa e deva ser interpretada como orientada em direção a tal ou qual fim, sem que se possa, entretanto, dizer que ela tenha por princípio a busca consciente desse objetivo” (p.164). 26 “A ciência social ainda não parou de tropeçar no problema do indivíduo e da sociedade. (...) A evidência da individuação biológica impede que se veja que a sociedade existe sob duas formas inseparáveis: por um lado, as instituições que podem revestir a forma de coisa físicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; por outro, as disposições adquiridas, as maneiras duráveis de ser ou de fazer que se encarnam nos corpos (e que eu chamo de habitus). O corpo socializado (aquilo que chamamos de indivíduo ou pessoa) não se opõe à sociedade: ele é uma de suas formas de existência” (BOURDIEU, 1983: 24, grifo do autor).

48

Page 49: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

compreender e explicar o social pelo social, que a sua própria razão de ser. Boudon ressalta este aspecto auto-explicativo da teoria da escolha racional, retomando alguns autores desta abordagem:

Como Hollis (1977) afirma, “a ação racional é sua própria explicação”. Para Coleman (1986, p. 1), “Ações racionais de indivíduos têm uma atratividade única como a base para a teoria social. Se uma instituição ou um processo social pode ser considerado em termos de ações racionais de indivíduos, então e só então, podemos dizer que foi 'explicado' ’’. O próprio conceito de ação racional é uma concepção de ação que é “inteligível”, uma ação sobre a qual não precisamos colocar questões. (...) Em suma, tão logo um fenômeno social pode ser explicado como resultado de ações individuais racionais, a explicação não demanda questionamentos adicionais: ele não tem caixas-pretas. (Boudon, 2003: 3-4, tradução livre).

Se um fenômeno social não puder ser considerado em termos de ações racionais de indivíduos, ele fica fora da teoria, como os paradoxos que Boudon (2003) exemplifica: quando os atores agem de forma não egoísta, quando atores não agem de acordo com o princípio da maximização da utilidade, quando atores agem em situações que não lhes afetam diretamente. Os próprios autores, Shepsle e Bonchek, atestam o que chamam de ambigüidade de seus pressupostos ontológicos ao afirmar que partem, assim como os economistas, de pressupostos que não consideram verificáveis como afirmações empíricas, na medida em que seu objetivo não é descrever a realidade, mas explicar e prever, o que consideram propriamente o objetivo da ciência:

A idéia é esta: podemos explicar variações e regularidades na performance, nos resultados e no comportamento econômicos com uma série simples de pressupostos? A teoria econômica moderna é um grande edifício intelectual precisamente porque teve sucesso, como nenhuma outra ciência social, construindo explicações logicamente, rigorosamente e de forma empiricamente significativa (SHEPSLE e BONCHEK,1997, p.21, tradução livre).

Se os autores tratam como uma opção excludente, descrição e explicação, a questão que se coloca é como a explicação pode ser empiricamente significativa se há uma dissociação da empiria nos seus pressupostos. Friedman (1996) chama a atenção para esta dissociação na economia, tomada de modelo pelos teóricos da escolha racional, argumentando, grosso modo, que o pressuposto da racionalidade – à maneira do pressuposto do egoísmo – é um postulado teórico de possibilidade do real, diferente de uma descrição acurada da realidade. Na economia, a versão instrumentalista da teoria da escolha racional (no sentido de servir para prever comportamentos) venceu o realismo, dissociando teoria e empiria. O privilégio é dado à capacidade de fazer predições e não à plausibilidade de pressupostos sobre a realidade. No entanto, “precisamente porque não podemos saber de antemão se as pessoas serão instrumentalmente racionais é que não podemos prever seu comportamento” (FRIEDMAN, 1996, p.15). Criticando tanto os pressupostos dissociados de realidade quanto a pretensão de realizar previsões sobre o comportamento político, Friedman argumenta que “uma crítica mais radical e, no entanto, mais construtiva da teoria da escolha racional pode ser imaginada a partir da crença de que a ciência social deveria oferecer explicações realistas (no sentido de verstehende) das ações humanas”(idem).

Como se pode analisar no projeto científico de Shepsle e Bonchek, os

49

Page 50: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

pressupostos sobre a ontologia do autor que abdicam de uma explicação social de seu comportamento, correndo o risco de renaturalizar as Ciências Sociais, implicam, portanto, uma decisão epistemológica sobre a relação entre empiria e teoria e uma concepção sobre o papel das Ciências Sociais. É este último ponto que será desenvolvido na próxima seção.

Desnaturalizar é desfatalizar: o conhecimento emancipador das Ciências Sociais

O apego à teoria exemplificado na análise do texto de Shepsle e Bonchek distancia o cientista da realidade27 e dissocia a empiria da teoria, a partir do momento em que esta se autonomiza como um jogo de previsões. “O objetivo da teoria da escolha racional é possibilitar testes sobre intenções conflitantes” (RIKER, 1997, p. 200) que seja passível de extrapolação para novas situações, ou seja, ser um modelo de testes que permite prever o comportamento dos atores é um objetivo explícito desta vertente das Ciências Sociais, como sustenta Riker, um de seus pais fundadores. Meu argumento é que este tipo de ciência social se enquadra naquilo que Bourdieu denomina de “engenharia social”: Pode-se ter como objeto compreender o mundo social, no sentido de compreender por compreender. Pode-se, ao contrário, procurar as técnicas que permitem manipulá-lo, colocando assim a Sociologia a serviço da gestão da ordem estabelecida. (...) Grande parte dos que se designam como sociólogos ou economistas são engenheiros sociais que têm como função fornecer receitas aos dirigentes das empresas privadas e das administrações. (...) Os governantes atualmente necessitam de uma ciência capaz de racionalizar, no duplo sentido do termo, a dominação, isto é, capaz ao mesmo tempo de reforçar os mecanismos que a asseguram e de legitimá-la. É evidente que os limites desta ciência se encontram em suas funções práticas: tanto entre os engenheiros sociais quanto entre os dirigentes da economia, ela jamais pode fazer um questionamento radical.(BOURDIEU, 1983, p.22, grifos do autor).

Para Bourdieu, a ciência social não é neutra socialmente e seu caráter conservador ou emancipador depende da posição ocupada no mundo social e do tipo de relação com o mesmo. Para o autor, o cientista social enuncia leis sociais com o objetivo do conhecimento de relações que são históricas e, portanto, passíveis de serem perpetuadas ou transformadas por uma luta social. A ciência social teria o papel de revelar o não percebido do mundo social, especialmente, os determinismos sociais e, ao fazê-lo, proporcionar um maior grau de liberdade possível. Os determinismos sociais são, para o autor, o postulado científico da ciência social de que um fato social possui uma razão suficiente para existir e que esta razão é social. Não reside, assim, na ordem da natureza. “Uma lei ignorada é uma natureza, um destino (...); uma lei conhecida aparece como uma possibilidade de liberdade” (idem, p.36). “Em suma, ao mesmo tempo em que desnaturaliza, a Sociologia desfataliza” (idem, p. 37).

O questionamento radical é incompatível com a postura manifesta em teóricos da escolha racional de se tomar a realidade como dada e, partir de pressupostos ahistóricos desta, construir uma teoria para dizer o futuro, que seria uma continuação do presente. Essa postura conservadora vê o social em termos ahistóricos e não abre espaço

27 “(...) há primeiramente uma teoria. O analista infere teoremas ou hipóteses da teoria, depois testa os teoremas contra observações da natureza. Se estas observações não falsificam os teoremas, então o analista tem alguma confiança de que os teoremas que deduziu estão corretos e que a teoria também. Se os testes não funcionam, então é hora de voltar ao quadro em branco” (Riker, 1997, p. 196).

50

Page 51: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

para a compreensão de como o mundo social foi construído desta forma e não de outra e, menos ainda, para o questionamento de qual o espaço para a autonomia do indivíduo e sua capacidade de mudança das estruturas sociais.

Em se tratando do caráter emancipador da ciência, cabe retomar Marx. As implicações epistemológicas e sociais da tese de Marx sobre a inversão da concepção idealista, ou seja, de que a vida que determina a consciência e não o contrário, não escaparam, à época, a Engels, o qual afirma na “A ‘Contribuição à Crítica da Economia Política’ de Karl Marx”: “isto não só encerra conseqüências eminentemente revolucionárias para a teoria, como também para a prática” (MARX e ENGELS, 1977, p.306). Portanto, a “ciência efetiva” de Marx constrói seus pressupostos pela aniquilação da forma de pensar dominante à época, a filosofia hegeliana e a economia política, e elabora uma nova teoria sobre a vida social que rompe com qualquer substancialismo ao focalizar as relações28. Esse deslocamento teórico das coisas para as relações humanas é acompanhado de um posicionamento sobre a relação entre teoria e prática, tendo Marx e Engels se engajado na transformação das condições objetivas da classe operária e de suas relações com outras classes por meio da mobilização política, sobretudo pelo trabalho de construção objetiva da idéia de classe, pela transformação das estruturas subjetivas dos trabalhadores.

É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstra-se ad hominem, logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem. (MARX, 2005, p. 151).

A ruptura com a natureza é parte deste questionamento radical que tem no homem a sua própria raiz e daí seu caráter emancipador. Neste trabalho, tentei analisar um exemplo de que esta ruptura não foi feita de uma vez por todas quando dos primórdios das Ciências Sociais, mas requer atualização constante, sob o risco de abdicar da razão de ser destas disciplinas. Vale ilustrar com uma passagem de Durkheim o argumento que procurei desenvolver ao longo deste texto de que a incorporação dos pressupostos da economia feita por alguns teóricos da escolha racional foi realizada de uma maneira que significou um retrocesso em relação à ruptura que define as Ciências Sociais:(...) para simplificar as coisas os economistas as empobreceram artificialmente. Não somente fizeram a abstração de todas as circunstâncias de tempo, de lugar, de país para imaginar o tipo abstrato de homem em geral, mas neste tipo de ideal mesmo, eles negligenciaram tudo o que não se refere à vida estritamente individual, tanto que de abstração em abstração não lhes restou mais do que o triste retrato do egoísta em si. A economia política perdeu assim todos os benefícios de seu princípios. Ele se tornou uma ciência

28 “A economia política começa pela mercadoria, pelo momento em que se trocam uns produtos por outros (...). Mas o que o converte em mercadoria é, pura e simplesmente, o fato de que à coisa, ao produto, vai ligada uma relação entre duas pessoas ou comunidades, a relação entre o produtor e o consumiod, que aqui na não se confundem na mesma pessoa. Eis aqui um exemplo de um fato peculiar que atravessa oda a economia política e que produziu lamentáveis confusões na cabeça dos economistas burgueses. A economia não trata de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última instância, entre classes; embora estas relações estejam sempre ligadas a coisas e apareçam como coisas. Embora um ou outro economista já tivesse vislumbrado, em casos isolados, esta conexão, foi Marx quem a descobriu quanto ao seu alcance para toda a economia (...)” (ENGELS In: MARX E ENGELS, 1977, p. 311, grifos do autor).

51

Page 52: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

abstrata e dedutiva, ocupada não em observar a realidade mas em construir um ideal mais ou menos desejável; porque este homem geral, este egoísta sistemático de qual nos fala não é mais do que um ser da razão. O homem real, que nós conhecemos e que nós somos, é distintivamente complexo (...). Os economistas não possuíam ainda, portanto, uma idéia de sociedade justa o suficiente para servir verdadeiramente de base à ciência social” (1987, p. 85, tradução minha).

Bibliografia

BOUDON. Annual Review of Sociology. 2003. 29 paginas :1-21. Disponível em arjournals.annualreviews.org.

BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude & PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2004.

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.

BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

DURKHEIM, E. As representações individuais e coletivas. In: Sociologia e Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1970.

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 1982.

DURKHEIM, E. La science sociale et l’action. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.

FRIEDMAN, J. "Introduction: Economic Approaches to Politics," in The Rational Choice Controversy: Economic Models of Politics Reconsidered, ed. Jeffrey Friedman (New Haven: Yale University Press), 1996.

MARX, K. Crítica da filosofía do direito de Hegel. Sao Paulo: Boitempo, 2005.

MARX, K. Trabalho alienado e superação positiva da auto- alienação humana. In: Florestan, Fernandes. Marx Engels História. 3 edição. São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 147-163.

MARX, K. & ENGELS, F. Oposição entre concepção materialista e idealista. In: Florestan, Fernandes. Marx Engels História. 3 edição. São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 182-214.

MARX, K. & ENGELS, F. Textos. Volume III. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1977.

RIKER, W. The ferment of the 1950’s and the development of rational choice theory. In: KRISTEN MOROE (ed.) Contemporary empirical political theory. Berkeley: University of California Press, 1997.

SHEPSLE, Kenneth A. & BONCHEK, Mark S. Analyzing politics: rationality, behavior and institutions. New York: Norton & Company. 1997. capítulo 2.

WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia compreensiva. Volume 1. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

52

Page 53: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

WEBER, M. Sobre a teoria das Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1979.

WEBER, M. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1986.

53

Page 54: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

O paradigma hermenêutico nas Ciências Sociais

Irmina Anna Walczak29

Introdução

Cada uma das disciplinas do currículo mínimo das Ciências Sociais: Antropologia, Sociologia e Ciência Política possui sua própria matriz disciplinar, ex definitione, “a articulação sistemática de um conjunto de paradigmas” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003: 15) que coexistem no tempo. Devido aos interesses singulares de cada área, distintas teorias e métodos aplicados, cada matriz é composta de paradigmas particulares. Existem, contudo, paradigmas que habitam ou têm influências nas matrizes de todas as três disciplinas mencionadas.

O presente trabalho tem por objetivo discutir um destes paradigmas compartilhados - o paradigma hermenêutico. Pretende-se percorrer as três disciplinas com o intuito de encontrar e situar dentro delas o paradigma hermenêutico. Tentar-se-á mapear sua relação com outros paradigmas e o espaço ocupado dentro das matrizes disciplinares. Ressalto, porém, que não se tem a pretensão de descrever as matrizes em toda sua complexidade, mas somente refletir sobre elas pelo prisma do paradigma hermenêutico a fim de definir suas origens, funções e força da interação.

Lembrando das especificidades dos campos semânticos das áreas trabalhadas, procurarei identificar conceitos principais referentes ao paradigma hermenêutico em cada uma delas e tentarei relacioná-los entre si. Por este meio pretende-se responder a pergunta se existe um ou vários paradigmas hermenêuticos dentro das Ciências Sociais e quais serioam os pontos de divergência entre eles, caso existam.

Roberto Cardoso (2003) chama atenção que a quantidade e diversidade das posturas hermenêuticas no mundo científico é tanta que se poderia utilizar o conceito de movimento hermenêutico. Para não perder o foco do trabalho proposto, dentro desta densidade das abordagens possíveis me orientarei pelas idéias de Weber (1992, 2000) e Cardoso de Oliveira (2003, 2006) respectivamente na Sociologia e na Antropologia e na área da Ciência Política artigos da autoria de Taylor (1979), Easton (1997) e Chilcote (1998). Admitimos, todavia, que esta limitação das referências bibliográficas, devida também ao tamanho do nosso artigo, resultará na revelação de um dos olhares possíveis sobre esta questão e não um todo.

Origens filosóficas

Na mitologia grega, o mensageiro da vontade dos deuses para os mortais chamava-se Hermes. Sua função não se limitava a anunciar as palavras divinas, mas interpretá-las e ousando das explicações e comentários torná-las claras e compreensíveis aos homens. Hermenêutica que filosoficamente deriva do nome deste mensageiro, tem consequentemente duas funções: a verificação do significado exato da palavra, frase ou texto e o descobrimento das instruções contidas dentro das suas formas simbólicas (BLEICHER, 1980).

29 Doutoranda em Ciências Sociais, CEPPAC, UnB.

54

Page 55: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Desde sua aparição em solo grego, a hermenêutica apresenta duas faces: uma sagrada e outra profana. Empregada no domínio teológico na interpretação de textos bíblicos ela é conhecida como exegese e aplicada aos textos profanos é denominada filologia. Qualquer que seja o domínio da sua atuação, a hermenêutica mostra-se como a arte de interpretação que visa a captar o sentido escondido por traz da linguagem escrita e oral.

Dilthey e Schleiermacher são grandes responsáveis pela extensão da hermenêutica às ciências humanas e sua manifestação como o problema filosófico (pela colocação em jogo da questão da compreensão). Embora tenha trabalhado com a hermenêutica no campo da história e psicologia, Dilthey estava convencido da sua eficácia em todas as disciplinas. Ao refletir sobre método das Geisteswissenschafte, ele propôs a dicotomia entre explicação e compreensão, a primeira utilizada nas ciências naturais, a segunda apropriada às ciências humanas (RICOEUR, 1978).

A partir daí, o conceito-chave da hermenêutica “compreensão” e sua relação com conceitos igualmente importantes como “interpretação” e “explicação” vai variando das abordagens propostas por filósofos a chegarem. Na compilação apresentada por Domingues este caminho é percorrido da seguinte maneira:

[...] Droysen, que introduziu a distinção entre explicação e compreensão, propõe sua articulação e fala de uma ‘explicação compreensiva’. [...] Heidegger, por sua vez, diz que a compreensão vem primeiro e a interpretação, que é uma explicação, instaura-se depois, como algo derivado. Gadamer, ao retomar Heidegger, propõe, sem falar de método, uma démarche indiferente à distinção entre explicação e compreensão, entendendo que são a mesma coisa (DOMINGUES, 2005: 12).

Por fim, na perspectiva do defensor do enxerto da hermenêutica sobre fenomenologia, Paul Riceour, a hermenêutica permite a compreensão de si mediante a compreensão do outro. Nas palavras do autor:

Ao propor religar a linguagem simbólica à compreensão de si, penso satisfazer ao desejo mais profundo da hermenêutica. Toda interpretação se propõe a vencer um afastamento, uma distância, entre a época cultural revoluta, à qual pertence o texto, e o próprio intérprete. Ao superar essa distancia, ao tornar-se contemporâneo do texto, o exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torna-lo próprio; quer dizer fazê-lo seu. Portanto, o que ele persegue, através da compreensão do outro, é ampliação da própria compreensão de si mesmo (RICEOUR, 1978: 18).

A apresentada flutuação conceptual no plano de teoria que além dos conceitos citados mexe também com as perspectivas de tempo e indivíduo, indica-nos atenção e precisão ao examinarmos o paradigma hermenêutico. Mais ainda, provoca a suspeita de que dentro das Ciências Sociais, assim como acontece na filosofia, existem vários paradigmas hermenêuticos.

Antropologia interpretativa

Na visão de Roberto Cardoso de Oliveira, a matriz disciplinar da Antropologia social é construída através de cruzamento das tradições: a intelectualista e a empirista com duas perspectivas da categoria de tempo: a sincrônica e a diacrônica. Os paradigmas que se enquadram neste modelo representam quatro comunidades de pensamento antropológico diferentes: a Escola Francesa de Sociologia, a Escola Britânica de Antropologia, a Escola Histórico-Cultural Norte-Americana e a Escola Interpretativa. Embora, segundo seu autor, a matriz assim constituída seja incompleta,

55

Page 56: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

pois aborda somente pensamento produzido e promovido em países de centro, ela, indubitavelmente, facilita-nos o entendimento do movimento histórico da disciplina e a sua dinâmica interna.

Apesar de possuírem características singulares, os três primeiros paradigmas: racionalista, estrutural-funcionalista e culturalista estão unidos em busca de leis universais. Enraizados nas culturas científicas particulares, têm “em comum um objetivo: o de criarem uma nova disciplina científica”. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003: 92). Denominados pelo autor de paradigmas da ordem, baseiam-se em culto à razão e procura de objetividade. Entretanto, estas idéias-valor de Iluminismo incorporadas pelos paradigmas da modernidade são questionadas pelo último paradigma da matriz, o paradigma hermenêutico:

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, [escreve Geertz na explicação do seu conceito de cultura] assumo a cultura sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado (1978: 15, grifo meu).

Ocupando o lugar no cruzamento da tradição intelectualista e perspectiva temporal, o paradigma hermenêutico é o último componente resultante da etnografia intelectual da Antropologia desenvolvida por Cardoso de Oliveira. Popularizado na Antropologia graças a reelaboração de Clifford Geertz citada acima, nas páginas do livro A Interpretação das Culturas, teve seu prelúdio na proposta histórico-cultural de Franz Boas. 30 Pela crítica do discurso científico, até então o único legitimado, tornou-se um elemento desordenador, porém, não em sentido de destruição ou superação dos paradigmas anteriores e bem pelo contrário, como catalisador de novas formas de se fazer Antropologia. Introduziu “uma tensão extremamente saudável, em nada parecida com uma crise” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006: 69), “dinamizando extraordinariamente a Antropologia dos nossos dias”. (ibid: 64).

Gerador da Antropologia pós-moderna e interpretativa, o paradigma hermenêutico está orientado pela noção de Verstehen. Nos ensaios de Cardoso de Oliveira, compilados no livro O trabalho do antropólogo, encontramos a natureza deste “compreender” que escapa ao seu papel tradicional de produzir hipóteses e “passa a ter função de indiscutível valor cognitivo”. (ibid: 91).

Inspirado nas idéias de Ricoeur, o autor repensa a relação entre compreensão e explicação dentro da Antropologia interpretativa. Ele coloca a interpretação no lugar de “uma única categoria cognitiva” que engloba explicação e compreensão como formas adjetivadoras. Sendo assim, temos interpretação explicativa e interpretação compreensiva como duas modalidades da interpretação (um processo complexo e amplo de conhecimento) que convivem numa relação dialética, mas ao mesmo tempo, até certo ponto se complementam:

[...] a primeira voltada para identificação de regras e de padrões suscetíveis de um tratamento proposicional; a segunda voltada para a apreensão do campo semântico em que se movimenta uma sociedade particular; uma apreensão, aliás, comumente feita por todos nós no exercício da “observação participante” – sempre reconhecida, seja dito, como inerentemente impressionista, precisamente por não fornecer proposições nomológicas (ibid: 101).

30 Mais sobre a receptividade da Antropologia Social ao paradigma hermenêutico em SILVA, Cristian Teófilo da. “A hermenêutica de Boas: Elementos para uma releitura da matriz disciplinar da Antropologia”. In: Habitus. Goiânia, Vol 1, No 2, julho/dezembro 2003.

56

Page 57: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Para melhor entendimento deste modelo de dupla interpretação, vale a pena

mencionar neste cenário mais um termo utilizado por Ricoeur - “excedente de sentido”. Na visão do filósofo, “excedente de sentido” é tudo isso que sobrevive aos métodos da explicação e acaba sendo detectado pela compreensão. Por esta compreensão que:

[...] é sobretudo o momento não metódico que nas ciências interpretativas se compõe com o momento metódico de explicação. Esse momento procede, acompanha, fecha e assim envolve a explicação. Em compensação, a explicação desenvolve analiticamente a compreensão. (RICOEUR apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006: 71).

Diante dessa relação dialógica entre a explicação e a compreensão, a antiga controvérsia entre as ciências naturais e humanas perde a razão de ser. Seu lugar ocupa algo que os hermeneutas chamam de “fusão de horizontes”. E este fenômeno, tão característico do paradigma hermenêutico comunicativo e auto-reflexivo, ocorre também de outros modos.

No encontro etnográfico, por exemplo, ele realiza-se no exercício do diálogo entre observador e observado. De acordo com as palavras de Geertz: ”agora todos somos nativos”, o pesquisador não somente tenta entender o outro, mas também estimula este na tentativa de ser compreendido. Mais ainda, ele chega a ser questionado frente ao saber do nativo e posto sob suspeita. Num confronto de saberes, ele procura ampliar o seu horizonte pela incorporação do horizonte do seu interlocutor. Ciente da sua cultura, processo de socialização e comunidade científica à qual pertence, entra em reação com o observado, visando à formação de “uma nova substância” – a tradução do discurso do outro, um texto polifônico, onde a voz do autor se entrelaça com a voz do nativo. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003, 2006).

Além disso, a “fusão de horizontes”, inerente à relação dialógica, associa-se às categorias de intersubjetividade, individualidade e historicidade que passam a ser exercidas pelo pesquisador nesta nova Antropologia. Nas palavras de Cardoso de Oliveira (2003: 101):

[...] os horizontes não se excluem de um modo absoluto, mas se interseccionam e muitas vezes se fundem. E propiciam, por conseguinte, o exercício pleno da intersubjetividade [...] nos domínios privilegiados da investigação etnográfica. A investigação que revitaliza o pesquisador e o pesquisado enquanto individualidades explicitamente reconhecidas, uma vez que a própria biografia deste último pode ser a autobiografia do primeiro. E ao apreender a vida do Outro [...], o faz em termos de historicidade do qual ele próprio, pesquisador, não se exclui.

Neste momento, é interessante refletirmos separadamente sobre estes conceitos detectados, pois junto com a “compreensão”, parecem formar a coluna do paradigma hermenêutico no campo da Antropologia.

Desprezada pela Escola Francesa e acusada por Radcliffe-Brown de ser especulativa, a categoria do tempo reaparece no horizonte da Antropologia com o culturalismo Boasiano. Entretanto, somente no seio da Antropologia interpretativa ganha a posição da “condição de conhecimento” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003: 21), transformando-se da história objetivada em historicidade. Dito isto nas palavras de Cardoso de Oliveira (2003: 97): “a história, desvencilhada das peias naturalistas que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente, pois dela se esperava fosse objetiva, toma sua forma interiorizada e se assume como historicidade”.

57

Page 58: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Com esta interiorização do tempo, o pesquisador, reconhece sua posição histórica dentro da prática etnográfica, ou seja, ele assume o momento fugitivo em que constrói o seu diálogo com o Outro e a sua história, a bagagem de experiências e conhecimento que até então acumulou. Além disso, a sua consciência histórica, formada hermeneuticamente, faz-lhe reconhecer os próprios preconceitos como horizonte de presente. Em conseqüência disto, ele abdica da objetividade positivista e assume criticamente limites da sua compreensão. Em face disto, a historicidade ganha a denominação de elemento desordenador do ideário científico.

O parecido acontece com a subjetividade que embora presente nos paradigmas da ordem (em forma domesticada e naturalizada), somente com a chegada do paradigma hermenêutico é “liberada da coerção da objetividade, toma sua forma socializada, assumindo–se como intersubjetividade” (ibid: 97). Realizada na base de reciprocidade - o diálogo constante entre interlocutores situados nos campos semânticos distintos, porém em posições simétricas - constitui o sentido pleno de experiência humana. Sua força é reconhecida por Roberto Cardoso de Oliveira (2006: 86):

[...] se a esfera de subjetividade mostrou-se, ao longo da história das ciências – incluindo-se as Ciências Sociais como a Sociologia e a Antropologia social -, passível de neutralização pelo método, já a esfera de intersubjetividade mostrou-se capaz de se impor com tal vigor no horizonte de conhecimento cientifico que não há como deixar de considerá-la como um fato – por certo epistêmico – instransponível sem o recurso da reflexão hermenêutica.

Em outras palavras, a compreensão intersubjetiva é uma realidade do antropólogo, um momento não metódico que no caso das etnografias que se pretendam completas e contemporâneas é indispensável. A crítica da objetividade e a suspeita do método, inscritos na intersubjetividade, não procuram, porém, levar a uma negação da tradição das Ciências Sociais ou à rejeição da razão. Elas somente sensibilizam a Antropologia e seus praticantes introduzindo uma perspectiva crítica sobre diferentes modalidades de saber. Na perspectiva de Cardoso de Oliveira (2006: 31): “é o reconhecimento dessa intersubjetividade que torna o antropólogo moderno um cientista social menos ingênuo. Tenho para mim que talvez seja essa uma das mais fortes contribuições do paradigma hermenêutico para a disciplina”.

Neste momento, parece-me valioso retomar a questão da compreensão intersubjetiva de modo como a trabalhou Gadamer, ou seja, manifestando sua importância no mundo das ciências, tanto sociais, quanto objetivas. Segundo o filósofo, as comunidades científicas utilizam hermenêutica e especialmente a compreensão intersubjetiva, inconscientemente, no ato de definir sentido de conceitos, termos, critérios e normas do seu próprio meio. Esta tarefa de esclarecer sentidos e facilitar a comunicação, de abrir debates e exercitar o diálogo é, então, mais uma contribuição da intersubjetividade (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006).

As ponderações acerca da individualidade, o último dos três elementos desordenadores do paradigma hermenêutico, são complementares àquilo que citamos no decorrer desta exposição. O caminho da reformulação do indivíduo, domesticado eficazmente pela “Antropologia tradicional”, em individualidade realiza-se através da liberação das tentações do psicologismo. O pesquisador e o pesquisado assumem suas individualidades de mesmo modo como assumiram sua historicidade. Querendo apreender o Outro, captar o seu horizonte, não desistem de manifestar a sua

58

Page 59: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

originalidade o que reflete no texto etnográfico resultante deste encontro, texto intersubjetivo e, portanto, extremamente polifônico.

Para concluir esta parte das nossas reflexões sobre o paradigma hermenêutico, vale a pena citar, mais uma vez, o nosso guia no mundo da Antropologia que delimitou o papel que a hermenêutica desempenha na matriz disciplinar:

. de moderação na autoridade do autor – com eliminação com qualquer dose de autoritarismo;

. de maior atenção na elaboração da escrita – com a obrigatória tematização do processo de textualização das observações etnográficas;. de preocupação com o momento histórico do próprio encontro etnográfico – com a conseqüente apreensão da historicidade em que se vêem envolvidos sujeito cognoscente e objeto cognoscível; e, finalmente, porém não em último lugar,. um enxerto de compreensão sobre os limites da razão científica, ou da cientificidade, da própria disciplina – o que não quer dizer abrir mão da razão e de suas possibilidades de explicação (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006: 64).

Em respeito a esta última função, a última em ordenação e não em importância como sublinhou o próprio autor, gostaria de lembrar que embora a Antropologia interpretativa seja filha da pós-modernidade, ela não rejeita a razão, a cientificidade, mas suspeita delas com o propósito de tornar a Antropologia menos ingênua em relação à capacidade cognitiva objetiva. Portanto, seu uso das premissas do paradigma hermenêutico não pretende um desenvolvimento que levaria a germinação de interpretativismo. Tomando em conta aparecimento das teorias radicais em qualquer disciplina, podemos facilmente imaginar o surgimento destas dentro da nova Antropologia, contudo, enfatiza-se que não é este o objetivo da Antropologia interpretativa segundo Clifford Geertz ou Roberto Cardoso de Oliveira.

Sociologia compreensiva

Quando pensamos em descrever a matriz disciplinar da Sociologia, pensamos em “ordenar”, “estabelecer relações” entre três grandes clássicos da disciplina: Emile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Este objetivo pode ser conseguido pelo cruzamento dos dois paradigmas importantes: o individualista e o coletivista com duas óticas que definem de que maneira se dá a relação entre estes indivíduos ou coletividades.31 Uma visualização geométrica deste modelo seria de modo que a linha horizontal conteria os paradigmas e a linha vertical abrigaria as modalidades de relação: primeiramente a de conflito e em seguida a de consenso. As quatro divisórias delimitadas desta maneira designariam, respectivamente, o lugar de cada um dos clássicos dentro da matriz. E assim, o espaço obtido do cruzamento do paradigma individualista com a relação de conflito pertenceria a Weber, na mesma linha de relação de conflito, mas cruzada com o paradigma coletivista situar-se-ia Marx, o ponto de encontro do paradigma coletivista com a relação de consenso definiria o lugar de Durkheim e o último espaço, definido pelo paradigma individualista e a relação de consenso ficaria desocupado.

Lembrando do objeto deste artigo, o trabalho da definição da matriz disciplinar da Sociologia desta perspectiva pareceria inútil, pois em nenhum momento mencionou-se o procurado paradigma hermenêutico e seu lugar dentro da matriz. Entretanto, não

31 Proposta da matriz disciplinar da Sociologia apresentada por Fernanda Antônia da Fonseca Sobral durante aula de Paradigmas das Ciências Sociais ministrada no CEPPAC, UnB, no dia 12 de junho de 2007.

59

Page 60: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

estamos tão longe como pode parecer, pois Max Weber, definido acima como partidário do paradigma individualista e de conflito construiu sua Sociologia compreensiva sob influências do paradigma hermenêutico que embora seja implícito, deixou suas marcas na proposta epistemológica e metodológica do autor. Segundo Domingues (2005), a falta do nome “hermenêutica” na escrita weberiana não se deve a mais nada que simples questão lexical. Na época do autor, este vocábulo sequer existia. Sendo uma “coisa nova” nas ciências humanas, a hermenêutica aparecia mais na forma de “flutuação conceptual” do que um paradigma ou movimento que merecesse um nome próprio.

Sempre focalizado na determinação das bases metodológicas, Weber define sua Sociologia numa proposta de compreensão, em que se misturam a curiosidade pela realidade e atenção aos limites de conhecimento. “[Nas ciências da vida cultural do homem] procuramos dominar a realidade por meio da reflexão e da compreensão” (WEBER, 1992: 123, grifo meu) manifesta o autor no texto A “objetividade” do conhecimento na ciência social e Ciência Política, datado de 1904, nas cartas do qual ele se depara com a tarefa de formar instrumentos para viabilização deste intuito epistemológico.

Na definição do objeto de estudo da ciência da cultura do homem, Sozialwissenschaft, Weber descreve-a como ciência empírica e ressalta como tal, que ela precisa perguntar pelo sentido e tentar compreendê-lo com a ajuda de meios empíricos, mais do que descrever e explicar os fatos. A missão do cientista, portanto, reside em decifrar e interpretar “as conexões conceituais entre os problemas” (ibid: 109), as conexões de sentido entre os indivíduos. Nos Conceitos sociológicos fundamentais, onde o autor defende um trabalho cuidadoso de formação de conceitos, ele propõe a interpretação como procedimento básico da Sociologia (WEBER, 1991). Em fim, na extensão de Droysen, ele articula explicação e compreensão e fala, de modo conversível, da “compreensão explicativa” e “explicação compreensiva”.

Enquanto ao sentido, que se torna o centro da investigação sociológica weberiana, ele é polissêmico, isto é, possui seu tempo e espaço e certa particularidade devida ao fato que processo da sua análise e determinação depende do sujeito, do ângulo e da perspectiva da sua apreensão. Na visão do autor, o sentido constitui uma porta de entrada que permite atribuir significados aos fatos quanto à avaliação da realidade. Esta relação de simbiose entre sentido e ação dá-se, porém, da seguinte maneira:

[...] a ação racional sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu “sentido visado”. O agente mais o “sente”, de forma indeterminada, do que o sabe ou tem “clara idéia” dele; na maioria dos casos, age instintiva ou habitualmente. Apenas ocasionalmente e, no caso de ações análogas em massa, muitas vezes só em poucos indivíduos, eleva-se à consciência um sentido (seja racional, seja irracional) da ação. Uma ação determinada pelo sentido efetivamente, isto é, claramente e com plena consciência, é na realidade apenas um caso-limite (WEBER, 1991: 13).

Visando compreensão racional da realidade empírica, da ação social humana, Weber faz clara distinção entre os enunciados que exprimem um conhecimento empírico dos que exprimem juízos de valor e condena a confusão entre os dois.

Ciente da “limitação quantitativa” e da “insuficiência qualitativa dos meios externos” (WEBER, 1992: 118) para verificar a realidade empírica pesquisada, ele formula tipos ideais – uma ferramenta heurística que não se encontra empiricamente,

60

Page 61: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

mas que possibilita confrontar o campo empírico com o quadro ideal. Embasada na construção lógica do tipo ideal, a confrontação tende a captar o sentido ou a conexão de sentido e, por este meio, permitir a compreensão do caso particular.

Neste momento vale a pena explicar resumidamente que a mencionada particularidade dos casos encontrados nas ciências da cultura, deve-se a sua relação estreita com idéias de valor, o decisivo na compreensão dos acontecimentos culturais, o “prisma sob qual consideramos a ‘cultura’ em cada caso” (ibid: 130). Segundo Weber (ibid: 131): “todo indivíduo histórico está arraigado, de modo logicamente necessário, em ‘idéias de valor’” e disso resulta que todo conhecimento da realidade cultural é um conhecimento subordinado a pontos de vista particulares. Mais ainda,

A realidade empírica é “cultura” para nós porque e na medida em que a relacionamos com idéias de valor. Ela abrange aqueles e somente aqueles componentes da realidade que através desta relação tornam-se significativos para nós. Uma parcela ínfima da realidade individual que observamos em cada caso é matizada pela ação do nosso interesse condicionado por essas idéias de valor; apenas ela tem significado para nós, precisamente porque revela relações tornadas importantes graças à sua vinculação a idéias de valor. E somente por isso, e na medida em que isso ocorre, interessa-nos conhecer a sua característica individual (ibid: 127).

Mostrando a fragmentação da realidade cultural e sua natureza particular em cada olhar distinto, o sociólogo comprova a impossibilidade de redução da empiria infinita da realidade cultural ao número finito das leis. Mostra que leis podem constituir uma das várias operações no processo de conhecimento, mas não permitem captar as conexões de sentido. Elas são um modo heurístico de conhecimento e podem ser úteis unicamente no nível hipotético. Portanto, como já mencionamos, é indispensável a formulação do instrumento inovador que dê conta desta complexa realidade empírica da vida cultural do homem.

Segundo a “receita” de Weber (ibid: 138):

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É impossível encontrar empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia.

Puramente lógicos, os tipos ideais devem ser rigorosamente separados da noção do “dever ser”, do exemplar, pois não é esta a função deles, nem da ciência dentro da qual operam. Seu papel é de apontar a direção para construção de hipóteses, é de “apreender os indivíduos históricos ou os seus diversos elementos em conceitos genéricos” (WEBER, ibid: 140). Como meios de conhecimento, permitem objetivamente captar a subjetividade do fenômeno ou da ação social. Weber, contudo, sinaliza a necessidade contínua da transformação e adaptação dos conceitos, dependendo da apreensão e compreensão da realidade. Esta dica é de quem sabe que:

[...] os problemas culturais que fazem mover a humanidade renascem a cada instante, sob um aspecto diferente, e permanecem variáveis: o âmbito daquilo que, no fluxo eternamente infinito do individual, adquire para nós importância e significação e se converte em “individualidade histórica” (ibid: 131).

A preocupação histórica presente na reflexão sobre o tipo ideal é um dos exemplos da discussão epistemológica da história na Sociologia compreensiva. Weber define boa parte do seu pensamento por meio dessa dimensão. Além do “indivíduo

61

Page 62: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

histórico”, ele utiliza conceitos como: “interpretação histórica”, “fenômeno histórico” e “explicação histórica”. Ele aplica a noção de história no intuito de operacionalizar o estudo do real através do sentido particular, esse particular que deriva das idéias de valor distintas para cada sujeito. Segundo Domingues (2005), é por via desta perspectiva temporal da realidade - uma das características da visão de ciência da hermenêutica, que o paradigma hermenêutico se manifesta na Sociologia compreensiva.

Max Weber, como representante da escola histórica alemã, sofreu influências da sua vizinhança com o romantismo. É graças a essa convivência que este sociólogo, politólogo, economista e historiador reconheceu a potência do sentimento e do indivíduo. O seu lugar dentro da matriz disciplinar mostra com quanta convicção adotou este princípio. Embora alguns dos aspectos da incorporação do sujeito no processo cognitivo já foram expostos, tentarei, mais uma vez, refletir sobre eles, a fim de mostrar mais um laço claro entre a Sociologia compreensiva e o paradigma hermenêutico.

Não há qualquer dúvida de que o ponto de vista do interesse pelas Ciências Sociais reside na configuração real e, portanto, individual da vida sócio-cultural que nos rodeia, quando queremos apreendê-la no seu contexto universal, nem por isso menos individual, e no seu desenvolvimento a partir de outros estados sócio-culturais, naturalmente individuais também (WEBER, 1992: 125-126).

Neste trecho, a palavra “individual” parece sonar como eco. Caracterizando a vida sócio-cultural, seu contexto e estados, ela, nomeadamente, domina o campo de trabalho.

“O conceito de cultura é um conceito de valor” diz Weber (ibid: 127) e como o valor tem caráter particular, ele faz com que os fatos culturais sejam vistos de várias perspectivas, tão individuais quanto os sujeitos que os olham. Devido a esta natureza da vida cultural, Weber focaliza suas análises sobre a ação social dos indivíduos e conexões de sentido que existem entre eles, procurando sempre levar em conta a perspectiva do sujeito. Sem ignorar a coletividade e suas representações, ele busca compreender a conduta humana orientada pela ação dos outros, tanto sujeitos do passado quanto do presente. Portanto, o sujeito cognoscente ou cientista ao recortar um pedaço da realidade e olhar ele de um ponto de vista particular provoca a subjetividade da ciência e comprova influências hermenêuticas no pensamento de Weber.

Concluindo, o indivíduo interessava a Weber, não somente de ponto de vista epistemológico, mas em todas as suas dimensões. Em suas palavras: “O elemento ‘pessoal’ é o que verdadeiramente confere valor a uma obra científica. Ou seja, de qualquer obra deverá exprimir uma ‘personalidade’ paralelamente a outras qualidades” (ibid: 131).

O paradigma pós-moderno na Ciência Política

Com o final dos anos 60, chegou à Ciência Política um tempo de divergência e fragmentação provocado pelo questionamento da abordagem comportamental, até então dominante na disciplina. A discussão foi potencializada pelas idéias de Thomas Kuhn que no seu livro Estrutura das revoluções cientificas definiu noção de paradigma dominante e descreveu o processo da substituição de um paradigma pelo outro, através da revolução científica, “a qual ocorre quando a comunidade científica muda para

62

Page 63: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

paradigmas significamente diferentes” (CHILCOTE, 1998: 85).

O trabalho de Kuhn, originalmente referenciado nas ciências naturais, provocou, neste período de mudança, uma produção significativa de textos que buscavam aplicar o pensamento kuhniano à área da Ciência Política. Wolin (1969), Beardsley (1974), Ricci (1977), Rogowski (1978) e vários outros procuravam, com um olhar de historiador, encontrar paradigma dominante, definir a situação que viviam e refletir sobre o futuro da disciplina. Embora dificilmente encontremos um consenso entre conclusões as quais chegaram, reconhecemos que o seu trabalho foi um passo decisivo para a reflexão sobre a história da Ciência Política e sua estrutura. Ou seja, com o questionamento da existência e importância do paradigma dominante fizeram primeiros passos para formular a matriz disciplinar (CHILCOTE, 1998).

Na visão norte-americana de Easton (1997: 13), a história da Ciência Política consiste de quatro etapas: [...] the formal-legal, governing most of the nineteenth century; the traditional or informal, probably dating from Walter Bagehot in England Woodrow Wilson in the United States; the behavioral beginning after World War [...]; and the postbehavioral stage, which took root in the 1960s and has flourished since that time.

Porém, são as duas últimas que ganharam a legitimação da comunidade científica e reconhecidas como ciências políticas empíricas ou política comparativa foram postas em oposição à filosofia política praticada anteriormente.

As etapas de Easton são substituídas na análise de Chilcote pela noção de abordagem. Na perspectiva deste cientista político, a abordagem comportamentalista foi uma reação à especulação das teorias que visavam explicações embasadas em normas e regras arbitrárias. Seus teóricos e praticantes apelavam: “[...] por uma pesquisa empírica sistemática, incluindo a elaboração de esquemas classificatórios, a conceituação em vários níveis de abstração, a construção de hipóteses e a testagem das hipóteses com dados empíricos”. (CHILCOTE, 1998: 82).

Por sua vez, a abordagem pós-comportamental, buscando a “relevância” e a “ação”, definia-se numa série de dogmas:

Primeiro, a substância precede a técnica, de modo que problemas urgentes da sociedade tornam-se mais importantes que as ferramentas de investigação. Segundo, o próprio comportamentalismo é ideologicamente conservador e limita-se à abstração antes que à realidade dos tempos de crise. Terceiro, a ciência não pode ser neutra em seus valores, o fato não pode ser separado do valor e as premissas de valor devem estar relacionadas com o conhecimento. Quatro, os intelectuais devem ter responsabilidade para com sua sociedade [...]. Quinto, o intelectual deve pôr o conhecimento em operação e engajar-se na melhoria da sociedade e, sexto, o intelectual deve ingressar nas lutas de sua época e participar na politização das profissões e instituições acadêmicas (ibid: 83).

As duas abordagens citadas fazem parte de duas visões distintas de fazer Ciência Política, uma chamada paradigma dominante e outra, oposta àquela, paradigma alternativo. Tendo como o pano de fundo a tradição positiva e sob influências do pensamento liberal, a abordagem comportamental constitui a base do paradigma dominante. O paradigma alternativo, tradicionalmente historicista, manifesta-se na abordagem pós-comportamental que carrega traços do pensamento marxista. Nomeados alternativamente o paradigma da escolha racional e o paradigma pós-moderno, estas

63

Page 64: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

duas visões, apesar de fazerem parte da mesma matriz disciplinar, dificilmente fundam elos de relação ou dialogam (CHILCOTE, 1998).

Segundo Easton (1997: 26): “Postbehavioralism destroyed the central focus and sense of commitment provides by behavioralism. Political science is now divided by ideologies, methodologies, preferences, and theoretical orientations”.

Entre esta diversidade de metodologias, preferências etc., encontra-se também o nosso paradigma hermenêutico ou, melhor dizendo, alguns dos seus traços. Abrigado por paradigma pós-moderno ocupa, porém, um espaço mínimo na matriz disciplinar.

The important thing for our purposes [declara Easton] is that we view Weber’s interpretative method as one of the alternatives offered by postbehavioralists for solving the problem of how to fit subjective behavior, defined as intentionality and purposes, into the analysis of society (EASTON, 1997: 20-21, grifo meu).

Entretanto, vários cientistas políticos contemporâneos notam que esta limitação da atuação do paradigma hermenêutico, sua redução à função de uma referência pode ser prejudicial à Ciência Política.

Peter Euben, por exemplo, na sua reflexão sobre a Ciência Política e o complexo de Édipo chama provocativamente a Ciência Política e a teoria da escolha racional, em particular, de cegas. Cegas pelo fato de não enxergarem que a racionalidade é um mito, que a objetividade é impossível. Segundo o autor, quando um agente que se acha livre da história e auto-gerado e pensa ver o mundo de modo racional, ele, de fato, vira um ignorante, porque não existe uma linguagem eticamente neutra, porque “every way of seeing is a way of not seeing” (EUBEN, 1997: 135). Todos nós vivemos numa teia de significados locais - sugere a peça de Sófocles, portanto, a Ciência Política precisa reconhecer o fator cultural, particular dos fenômenos estudados e adequar seus métodos a este desafio. É neste processo que a herança da hermenêutica se pode mostrar eficiente.

A preocupação com a ignorância de significados na disciplina é manifestada também por Charles Taylor (1979: 65):

We need to go beyond the bounds of science based on verification to one which would study the intersubjective and common meanings embedded in social reality.32 But this science would be hermeneutical in the sense that has been developed in this paper. It would not be founded on brute data; its most primitive data would be readings of meanings; [meanings] which are partially constituted by self-definition, which are in the sense already interpretations, and which can thus be re-expressed or made explicit by a science of politics.

Nesta ocasião, o autor critica também a aplicação dos mesmos conceitos, criados pela Ciência Política norte-americana, às sociedades distantes que possam atribuir significados distintos aos fenômenos superficialmente parecidos. No seu entender, um 32 Taylor faz a distinção entre “intersubjective meanings” e “common meanings” da seguinte maneira: “Intersubjective meanings [are] ways of experiencing action in society which are expressed in the language and descriptions constitutive of institutions and practices […] Common meanings are the basis of community. Intersubjective meaning gives a people a common language to talk about social reality and common understanding of certain norms, but only with common meanings does this common reference would contain significant common actions, celebrations and feeling.” (TAYLOR, 1979: 50-51, grifo meu).

64

Page 65: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

olhar particular, subjetivo à vida política das sociedades modernas é indispensável.

Considerações finais

Todas as três matrizes disciplinares revistas neste artigo apresentaram existência do paradigma hermenêutico ou traços que comprovam sua influência. Com a presença mais marcante na Antropologia, pois ocupando explicitamente o lugar de um dos quatro paradigmas dominantes, o paradigma hermenêutico dialoga com o resto de paradigmas e tenta completá-los. Resulta disso sua função contemporânea nesta área que é o reconhecido complemento metodológico. Um pouco menos acentuado, porém presente, através da teoria e metodologia weberianas, o paradigma hermenêutico na Sociologia limita sua atuação ao papel de um dos tipos da análise qualitativa, em geral complementar aos métodos quantitativos. Por fim, na Ciência Política, onde os paradigmas dominantes vivem sem interação interna, a hermenêutica é mais uma indicação dos pós-modernistas para o futuro do que um fato real.

Do mesmo modo como o paradigma hermenêutico ocupa espaços diferentes e se relaciona de maneira singular dentro das matrizes, ele acentua e trabalha conceitos distintos em cada das disciplinas analisadas. Os termos como “compreensão”, “significado”, “sujeito” e vários outros que se originam na hermenêutica podem até se repetir, mas eles são inseridos em três campos semânticos particulares da Antropologia, Sociologia e Ciência Política e, por tanto, empregados de perspectivas distintas.

Visto isso concluímos que o paradigma hermenêutico nas Ciências Sociais não é homogêneo. Cada destas disciplinas adaptou a hermenêutica filosófica devido aos seus interesses. Moldou-a segundo suas necessidades e aproveitou dela idéias que ajudassem responder às perguntas da sua realidade.

Bibliografia

BLEICHER, Josef. The rise of classical hermeneutics. In: Contemporary hermeneutics. London, Boston, Melbourne and Henley: Routledge & Kegan Paul, 1980.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora Unesp, 2006.

-----. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

CHILCOTE, Ronald H. A política e a ciência da política na investigação comparativa. In: Teorias de política comparativa. A busca de um Paradigma Reconsiderado. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

DOMINGUES, Ivan. Weber, a hermenêutica e as ciências humanas. Cadernos IHU em formação. Ano 1, No 3, 2005. Disponível em: www.unisinos.br/ihu. Acesso em: 23 de julho de 2007.

GEERTZ, Clifford. Descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura. In: Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. EASTON, David. The future of the Postbehavioral Phase in Political Science. In:

65

Page 66: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

MONROE, Kristen (org). Contemporary Empirical Political Theory. Berkeley: University of California Press, 1997.

EUBEN, Peter J. Oedipean Complexities and Political Science. Tragedy and the Search for Knowledge. In: MONROE, Kristen (org.). Contemporary Empirical Political Theory. Berkeley: University of California Press, 1997.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1978.

TAYLOR, Charles. Interpretation and the Sciences of Man. In: RABINOW, Paul & SULLIVAN, William (orgs.). Interpretive Social Science. Berkeley: University of California Press, 1979.

WEBER, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. In: Economia e Sociedade:fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora UnB, 1991.

__________ A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na Ciência Política. In: Metodologia das Ciências Sociais, parte 1. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992.

66

Page 67: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

SÉRIE CEPPAC

Últimos títulos publicados

001. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Discurso de agradecimento pelo título de Doutor Honoris Causa”. Série Ceppac, 2006, 8p.

002. STANTON, Anthony. “El Laberinto de la Soledad” y la apertura de canon. Série Ceppac, 2006, 12p.

003. BERNAL, Juan Bosco. “Desafíos de las innovaciones en los sistemas educativos latinoamericanos”. Série Ceppac, 2006, 17p.

004. TEÓFILO DA SILVA, Cristhian. “A condição pós-moderna e as Ciências Sociais”. Série Ceppac, 2007, 12p.

005. SARAIVA, Adriana Coelho. “Sob as lentes da meta-ciência: Reflexões sobre as perspectiva interdisciplinares de Pierre Bourdieu e Bruno Latour”. Série Ceppac, 2007, 10p.

006. FLEISCHER, David. “A política de coligações no Brasil – antes e depois da verticalização (1994 e 1998 vs. 2002 e 2006): Impactos sobre os partidos”. Série Ceppac, 2007, 22p.

007. REYMÃO, Ana Elizabeth. “O acesso à terra em duas Américas: Uma reflexão sobre elementos da política agrária nos EUA e na América Latina no Século XIX”. Série Ceppac, 2007, 12p.

008. COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. “Os elementos constitutivos da mestiçagem brasileira e da pluralidade caribenha: A questão do 'negro'”. Série Ceppac, 2007, 12p.

009. TEÓFILO DA SILVA, Cristhian. “Ethnic Resilience and Official Ethnocide: Ethnic and Legal Invisibility of Indigenes in Brazil and Canada”. Série Ceppac, 2007, 15p.

010. SOBRAL, Fernanda; RENNÓ Jr., Lucio Remuzat & TEÓFILO DA SILVA, Cristhian (orgs.). “Paradigmas em Cências Sociais: Cinco ensaios interdisciplinares (com textos de Le-lyne Paes Leme Vasconcelos Nunes, Ticiana Nascimento Egg, Daniel Capistrano, Renata Motta & Irmina Anna Walczak). Série Ceppac, 2007, 68p.

67

Page 68: Fernanda Sobral et all - Paradigmas em Ciências Sociais

Instruções para os Colaboradores da Série Ceppac

A fim de tornar mais eficiente o preparo de cada número da série, toda e qualquer matéria destinada à publicação deve ser enviada ao Editor da Série Ceppac em cópia legível, com margens espaçosas (esquerda 3cm, direita 3cm, superior 2cm, inferior 2cm), espaço entre linhas “simples”, fonte “Times New Roman”, tamanho “12”, de modo a permitir anotações de revisão e diagramação. O texto deverá ser entregue com alinhamento “Justificado”.

As citações com mais de quatro linhas devem ser destacadas do texto normal em um novo parágrafo, reduzindo o espaço entre linhas para “simples”. As notas de pé-de-página deverão ser breves e excluir simples referências bibliográficas; estas devem ser incluídas no texto principal entre parêntesis, limitando-se ao sobrenome do autor, ano e páginas, como, por exemplo: (CARDOSO DE OLIVEIRA 1998: 09). A referência completa deverá ser indicada na BIBLIOGRAFIA, conforme o seguinte modelo:

Livro

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Paralelo 15, 1998.

Capítulo de livro

LÓPEZ, Claudia Leonor. Procesos de formación de fronteras en la región del Alto Amazonas/Solimões: La historia de las relaciones interétnicas de los Ticuna. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto & BAINES, Stephen (orgs.). Nacionalidade e etnicidade em fronteiras. Coleção Américas. Brasília: Editora UnB, 2005, pp.55-83.

Artigo científico

CRESPO, Carolina. Del ocaso del pasado a la reliquia del presente: Una trayectoria de vida alrededor del arte rupestre en Patagonia argentina. Campos – Revista de Antropologia Social, 06/1-2, ano 2005, pp. 125-137.

Página da Internet

KELLY, R. Electronic Publishing at APS: Its not just online journalism. APS News Online, Los Angeles, Nov. 1996. Disponível em: http://www.aps.org/apsnews/1196/11965.html. Acesso em: 25 de novembro de 1998.

Deve-se evitar o uso de negritos, itálicos e sublinhados, bem como o uso de tabulações que afetem a diagramação do texto.

Os quadros, gráficos, figuras e fotos devem ser apresentados em folhas separadas, numerados e titulados corretamente, com indicação de seu lugar no texto e de forma pronta para impressão.

Solicita-se o envio do arquivo eletrônico ao editor da Série CEPPAC.

Grato por sua colaboração.

68