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Um Manifesto FEMINISMO PARA OS 99%

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Um Manifesto

FEMINISMO PARA OS 99%

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Tradução deEURÍDICE GOMES

Cinzia ArruzzaTithi Bhattacharya

Nancy Fraser

FEMINISMO PARA OS 99%

Um Manifesto

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Para o Coletivo de Combahee River, que idealizou este caminho há muito tempo

e para as grevistas polacas e argentinas,

a desbravar novos caminhos neste momento

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ÍNDICE

Um manifesto — Encruzilhada 11

TESES 19

Tese 1 Uma nova onda feminista está a reinventar a greve 21

Tese 2 O feminismo liberal está falido. Está na altura de virar a página 29

Tese 3 Precisamos de um feminismo anticapitalista – um feminismo para os 99% 33

Tese 4 Estamos a viver uma crise social em todas as suas vertentes cuja origem é o capitalismo 37

Tese 5 Nas sociedades capitalistas, a opressão de género está alicerçada na subordinação da reprodução social à produção pelo lucro. Queremos inverter esta situação 43

Tese 6 A violência de género assume muitas formas, todas elas enredadas nas relações sociais capitalistas. É nossa prerrogativa combatê-las a todas 51

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Tese 7 O capitalismo tenta estruturar a sexualidade. Nós queremos libertá-la 63

Tese 8 O capitalismo nasceu da violência racista e colonial. O feminismo para os 99% é anti -racista e anti-imperialista 73

Tese 9 Lutando pela reversão da destruição capitalista da Terra, o feminismo para os 99% é ecossocialista 83

Tese 10 O capitalismo é incompatível com a verdadeira democracia ou com a paz. A nossa resposta é o nternacionalismo feminista 87

Tese 11 O feminismo para os 99% desafia os movimentos radicais a unirem-se numa sublevação anticapitalista conjunta 93

Epílogo 99

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UM MANIFESTO

Encruzilhada

Na Primavera de 2018, Sheryl Sandberg, directora de Operações do Facebook, anunciou ao mundo que «tudo seria muito melhor se metade dos países e empresas fossem dirigidos por mulheres e metade dos lares por homens» e que «não deveríamos descansar até atingirmos esse objectivo». Expoente máximo do feminismo empresarial, Sandberg já tinha ganhado fama (e fortuna) ao instigar mulheres em cargos de chefia a lean in* nas reuniões de administração.

* Lean in [em inglês: inclinar‑se (como movimento corporal) ou fazer‑se ouvir, pedir a palavra], é o termo utilizado por Sheryl Sandberg no seu livro Lean In: Women, Work and the Will to Lead, para descrever o movimento físico que as mulheres devem fazer para serem ouvidas numa reunião de adminis‑tração. Traduzido para português como Faça acontecer – Lean in: mulheres, trabalho e vontade de liderar, traduzido por Miguel Romeira, Editorial Presença, Queluz de Baixo, 2014. (N. da T.)

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A ex‑chefe de gabinete do secretário do Tesouro Larry Summers – o homem que desregulou Wall Street – não tinha quaisquer dúvidas em dizer às mulheres que o sucesso alcançado através de uma postura dura e firme no mundo dos negó‑cios era a única via para a igualdade de género.

Nessa mesma Primavera, uma greve de mili‑tantes feministas parou Espanha. Os organizado‑res da «huelga feminista» de vinte e quatro horas, a que se juntaram mais de cinco milhões de mani‑festantes, exigiam «uma sociedade livre da opres‑são sexista, de exploração e violência […] uma revolta e luta contra a aliança do patriarcado e do capitalismo, que nos quer obedientes, submissas e caladas». Quando o Sol se pôs em Madrid e Barcelona, as feministas em greve anunciaram ao mundo que, «no dia 8 de Março, cruzaremos os braços, interrompendo toda a actividade produ‑tiva e reprodutiva», declarando que «não aceita‑riam piores condições de trabalho nem salários inferiores aos dos homens pelo mesmo trabalho».

Estas duas vozes representam caminhos opostos para o movimento feminista. Por um lado, Sandberg e a classe a que pertence enca ram o feminismo como um servo do capitalismo. Pretendem um mundo onde a função de gestão

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da exploração no local de trabalho e da opressão social seja partilhado por homens e mulheres da classe dominante. Esta é uma visão extraordinária do domínio da igualdade de oportunidades: pedir a pessoas comuns que, em nome do feminismo, fiquem gratas pelo facto de ser uma mulher, e não um homem, a sabotar o seu sindicato, a dar ordem a um drone para lhes matar os pais, ou a decidir o aprisionamento dos filhos numa jaula na fronteira. Em claro contraste com o feminismo liberal de Sandberg, as organizadoras da «huelga feminista» insistem em acabar com o capitalismo: o sistema que gera o patrão e que fabrica frontei‑ras nacionais e os drones que as vigiam.

Confrontados com estas duas perspectivas do feminismo, encontramo‑nos numa encruzi‑lhada e a escolha que fizermos acarreta conse‑quências extraordinárias para a humanidade. Um caminho conduz a um planeta esgotado onde a vida humana, se ainda for viável, está de tal forma empobrecida que se tornou irreconhecí‑vel. O outro aponta para um mundo presente desde sempre nos sonhos mais nobres da huma‑nidade: um mundo justo, cuja riqueza e recursos naturais são partilhados por todos e onde igual‑dade e liberdade são premissas, não aspirações.

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O contraste não podia ser mais acentuado. No entanto, o que torna hoje a escolha tão pre‑mente para nós, é a ausência de um meio‑termo viável. Devemos esta carência de alternativas ao neoliberalismo, essa forma excepcionalmente predatória e financeirizada de capitalismo que imperou nos últimos quarenta anos. Depois de ter envenenado a atmosfera, de ter ridiculari‑zado toda e qualquer pretensão de governo democrático, levado ao limite as nossas capaci‑dades sociais e piorado, na generalidade, as con‑dições de vida para a larga maioria, esta iteração do capitalismo subiu a parada para todas as lutas sociais, transformando sérios esforços em alcan‑çar algumas reformas numa batalha campal pela sobrevivência. Na presença de tais condições, a neutralidade deixou de ser uma hipótese e as feministas têm de assumir uma posição. Deve‑remos continuar a perseguir «o domínio da igualdade de oportunidades» enquanto o pla‑neta arde? Ou deveremos repensar a justiça de género num formato anticapitalista, que nos ajude a atravessar a crise actual em direcção a uma nova sociedade?

Este Manifesto é um guia para esta segunda via, uma jornada que encaramos tão necessária

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quando exequível. Um feminismo anticapitalista é hoje concebível em parte devido ao colapso da credibilidade das elites políticas em todo o mundo. As baixas incluem não apenas os parti‑dos de centro‑esquerda e de centro‑direita que promoveram o neoliberalismo – e que são, hoje, tristes sombras de si mesmos – mas também os seus aliados do feminismo empresarial ao estilo de Sandberg, cujo verniz «progressista» perdeu o brilho. O feminismo liberal conheceu a derra‑deira derrota nas eleições presidenciais dos Esta‑dos Unidos da América de 2016, quando a badalada candidatura de Hillary Clinton falhou em entusiasmar as eleitoras. E por uma boa razão: Clinton é a personificação do fosso cres‑cente entre a ascensão a altos cargos de uma elite de mulheres e a conquista de melhorias nas vidas da grande maioria.

A derrota de Clinton foi a nossa chamada de atenção. Este acontecimento de proporções his‑tóricas que expôs a bancarrota do feminismo liberal acabou por dar à esquerda uma oportuni‑dade de o desafiar. No vazio criado pelo declínio do liberalismo, temos a hipótese de construir um outro feminismo. Um feminismo com uma nova definição das questões feministas, com uma

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orientação de classe diferente, com um novo espírito – radical e de mudança.

Este Manifesto é a nossa forma de promover esse «outro» feminismo. Escrevemo‑lo não para esboçar uma utopia imaginada, mas para traçar um caminho que deve ser feito para alcançarmos uma sociedade justa. O nosso objectivo é explicar por que deve o feminismo escolher o caminho das greves feministas, por que devemos unir‑nos a outros movimentos anticapitalistas e anti‑sis‑tema e por que deve o nosso movimento trans‑forma‑se num feminismo para os 99%. Apenas deste modo – estabelecendo uma ligação a movi‑mentos anti‑racistas e pró‑ambientalistas e a activistas dos direitos dos trabalhadores e de migrantes – pode o feminismo estar à altura do desafio que temos pela frente. Ao rejeitar limi‑narmente o dogma do lean in e o feminismo do 1%, o nosso feminismo poderá tornar‑se numa esperança para todos.

O que nos dá a coragem de embarcar neste projecto agora é a nova onda de militância acti‑vista feminista. Não é o feminismo empresarial, que se revelou desastroso para as mulheres trabalhadoras e que perdeu toda a credibilidade; nem o «feminismo do microcrédito» que arrogava

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«dar poder» a mulheres do hemisfério Sul atra‑vés do empréstimo de pequenas quantias de dinheiro. Em vez disso, o que nos dá esperança são as greves internacionais feministas e de mulheres de 2017 e 2018. Foram estas greves, e os movimentos cada vez mais coordenados em torno delas que estão a surgir e a tomar forma, que inspiraram – e agora corporizam – um femi‑nismo para os 99%.

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TESES

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TESE 1

Uma nova onda feminista está a reinventar a greve

O recente movimento de greve feminista começou na Polónia, em Outubro de 2016, quando mais de cem mil mulheres se manifesta‑ram e marcharam contra a ilegalização do aborto naquele país. No final do mês, uma sublevação de recusa radical já tinha atravessado o Atlântico até à Argentina, onde mulheres em greve enfren‑taram o assassino de Lucía Pérez com um grito militante: «Ni una menos.» Depressa se espa‑lhou para a Itália, o Brasil, a Turquia, o Peru, os Estados Unidos, o México, o Chile e dezenas de outros países. Das ruas de onde saiu, o movi‑mento eclodiu em locais de trabalho e escolas, invadindo rapidamente os ambiciosos mundos do espectáculo, media e política. Nos últimos dois anos, as suas palavras de ordem têm ressoado em força por todo o mundo: #NosotrasParamos,

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#WeStrike, #VivasNosQueremos, #NiUnaMenos, #TimesUp, #Feminism4the99. O que começou como uma ligeira ondulação para depois se tor‑nar uma onda, é agora uma maré imensa: um novo movimento feminista global que pode ganhar força suficiente para desfazer as actuais alianças e redesenhar o mapa político.

Um conjunto de acções locais a nível nacio‑nal transformou‑se num movimento transacional no dia 8 de Março de 2017, quando organizadores de todo o mundo decidiram fazer um apelo con‑junto à greve. Com este golpe arrojado, re‑ po litizaram o Dia Internacional da Mulher. Distanciando‑se das frioleiras de mau‑gosto que despolitizavam aquele marco – os almoços, os aperitivos, os cartões comemorativos –, as gre‑vistas reanimaram as entretanto esquecidas raí‑zes históricas do dia, assentes no proletariado e no feminismo socialista. As suas acções evocam o espírito das mobilizações de mulheres traba‑lhadoras do início do século xx – paradigmatica‑mente, as manifestações e greves lideradas por imigrantes e por mulheres judias nos Estados Unidos e que inspiraram os socialistas america‑nos e organizar o primeiro Dia Nacional da Mulher e que levaram as socialistas alemãs Luise

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Zietz e Clara Zetkin a exigir um Dia Internacio‑nal das Mulheres Trabalhadoras.

Recuperando esse espírito de militância, as greves feministas de hoje reivindicam as suas raí‑zes nas lutas históricas pelos direitos dos traba‑lhadores e justiça social. Ao unir mulheres separadas por oceanos, montanhas e continentes, bem como por fronteiras, arame farpado e muros, as palavras de ordem «A solidariedade é a nossa arma» ganham um novo significado. Ao romper com o isolamento imposto por muros domésticos e simbólicos, as greves demonstram o enorme potencial político do poder das mulhe‑res: o poder daquelas cujo trabalho, remunerado e não-remunerado, sustenta o mundo.

Mas não é tudo: este movimento que agora floresce inventou novas formas de fazer a greve e impregnou a própria greve de um novo tipo de política. Ao aliar a suspensão laboral a marchas, manifestações, encerramento de comércio local, bloqueios e boicotes, o movimento está a recupe‑rar o seu outrora amplo leque de acções grevistas, dramaticamente reduzido por décadas de ofen‑siva neoliberal. Ao mesmo tempo, esta nova onda está a democratizar as greves e a expandir o seu escopo de acção, sobretudo ao alargar a ideia

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daquilo que pode considerar‑se «trabalho». Ao recusar‑se a limitar esta categoria ao trabalho remunerado, o activismo grevista das mulheres também suspende o trabalho doméstico, sexo e sorrisos. Ao tornar visível o papel indispensável desempenhado pelo trabalho de género e não-remu-nerado na sociedade capitalista, valoriza activida‑des que beneficiam o capital, mas que não são remuneradas. Mas também ao trabalho remune‑rado é aplicada uma perspectiva alargada do que deve ser considerado «trabalho». Longe de se focarem apenas nos salários e nos horários labo‑rais, concentram‑se também nos problemas de assédio e violência sexual, entraves à justiça reprodutiva e ao direito à greve.

Assim, a nova onda feminista tem a possi‑bilidade de ultrapassar a persistente e fractu‑rante oposição entre «políticas de identidade» e «política de classe». Ao expor a união do «local de trabalho» e da «vida privada», recusa limitar a luta de classes a apenas um desses espaços. E ao redefinir o que pode ser considerado como «trabalho» e quem pode ser considerado «tra‑balhador», rejeita a desvalorização capitalista estrutural do trabalho feminino – remunerado e não‑remunerado. Em suma, a greve feminista

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das mulheres antecipa a possibilidade de uma nova e inédita fase da luta de classes: feminista, internacionalista, pró‑ambientalista e anti‑ra‑ cista.

Esta intervenção é deveras oportuna. A mili‑tância grevista das mulheres surge num momento em que sindicatos outrora influentes, ligados às manufacturas, se encontram profundamente enfraquecidos. De forma a revitalizar a luta de classes, os activistas escolheram outro campo de batalha: o ataque neoliberal aos cuidados de saúde, à educação, às pensões e à habitação. Ao concentrar‑se neste outro eixo do ataque neoli‑beral às condições de vida da classe média traba‑lhadora, voltaram‑se para o trabalho e para os serviços necessários à sustentação dos seres humanos e de comunidades sociais. É aqui, na esfera da «reprodução social», que encontramos hoje a maioria das greves militantes e lutas rei‑vindicativas. Da onda de greves de professores nos Estados Unidos à luta contra a privatização da água na Irlanda, passando pelas greves dos profissionais sanitários Dalit na Índia – todos liderados e impulsionados por mulheres –, os trabalhadores estão a rebelar‑se contra o ataque do capital à reprodução social. Embora não

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estejam formalmente vinculadas ao movimento da Greve Internacional de Mulheres, estes gre‑vistas partilham com ele muitos aspectos. Tam‑bém eles valorizam o trabalho que é necessário para reproduzir as nossas vidas, não deixando de se opor à sua exploração; e também eles aliam reivindicações salariais e de condições de traba‑lho com exigências de aumento de investimento público em serviços sociais.

Além disso, em países como a Argentina, a Espanha e a Itália, o feminismo da greve das mulheres captou amplo apoio de forças que se opõem à austeridade. Não foram apenas mulhe‑res e pessoas não‑binárias, mas também homens, que se juntaram às impressionantes manifesta‑ções do movimento contra o desinvestimento em educação, saúde, habitação, transportes públicos e protecção ambiental. Através desta recusa em financiar o ataque do capital a estes «bens pú‑ blicos», as greves feministas estão a tornar‑se o catalisador e modelo para esforços globais de defesa das comunidades.

No fundo, a nova onda de activismo femi‑nista militante está a redefinir a noção de impos‑sível, exigindo tanto pão como rosas: o pão que décadas de neoliberalismo retiraram das nossas

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mesas, mas também a beleza que alimenta o nosso espírito através da euforia da insurrei‑ção.