feminismo e filosofia polÍtica -...

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E m Uma Vindicação dos Direitos da Mulher, de 1792, a filósofa inglesa Mary Wollstonecraft escreve em defesa do igual estatuto moral e político das mulheres, insistindo no papel dos fa- tores sociais para a definição do masculi- no e do feminino e na participação da me- tade excluída da sociedade nos assuntos desta, que são também os seus assuntos. Desde então, o pensamento feminista tem discutido as condições para a concretiza- ção de uma sociedade justa, e os seus con- tributos incluem uma crítica da distinção entre o privado e o público e a explicita- ção do carácter estrutural da opressão das mulheres. O pensamento liberal tradicio- nal considera que existe uma dicotomia entre o mundo público - da lei e do gover- no - e o mundo privado - do mercado, da religião e de outras associações da socie- dade civil. Esta distinção esgotaria os ter- mos em que devem ser pensadas a igual- dade dos cidadãos e a liberdade dos indivíduos. O pensamento feminista tem chamado a atenção para o facto de existir uma outra distinção que esta obscurece: a distinção entre, por um lado, o Estado e a sociedade civil e, por outro, a esfera priva- da doméstica. Sob um hipotético contrato social que sustentaria as instituições pú- blicas e a sociedade civil estaria um outro contrato, um contrato sexual, como lhe chama a filósofa inglesa Carol Pateman, garantindo a divisão do trabalho familiar que, libertando os homens, lhes permite abraçar a vida da política, do trabalho e dos negócios. A distinção tradicional entre público e privado seria, então, insuficiente para dar conta de um tipo específico de desigualdade e distribuição de poder na esfera privada com consequências na de- sigualdade e distribuição de poder na es- fera pública. “O pessoal é político” é a frase que exprime sinteticamente a discri- minação operada por esta distinção tradi- cional. A crítica desta distinção entre público e privado revela o carácter estrutural da opressão histórica das mulheres nas socie- dades humanas. Ser oprimido consiste em enfrentar, direta ou indiretamente, cons- trangimentos e obstáculos materiais e psi- cológicos, como a violência, a privação económica, ou os estereótipos. Dadas as variadas forças que jogam na distribuição desigual de privilégios e desvantagens en- tre homens e mulheres, não basta que a lei considere discriminatório tratar as pessoas de modo diferente com base no sexo, a não ser que o sexo constitua uma diferen- ça legítima para a decisão em causa. Isto porque é possível que as mulheres se en- contrem em posição de desvantagem ain- da que esse tipo de discriminação não ocorra. Quando um empregador define uma posição para a qual quer recrutar al- guém, e contrata um homem porque ele preenche melhor os critérios definidos, não está a discriminar com base no sexo, mas a escolher, legitima e razoavelmente, o indivíduo mais adequado para aquilo que pretende. O problema está antes no facto de, dada a desigual distribuição do trabalho doméstico, as mulheres se encon- trarem à partida em pior situação quando concorrem no mercado de trabalho. E as- sim, é compatível com a ausência de dis- criminação evidente em casos individuais uma discriminação sistemática que coloca as mulheres como grupo numa posição geral de desvantagem. Assim, mostrar a natureza complexa, e muitas vezes subtil, da discriminação, é necessário para for- mular medidas práticas adequadas para combatê-la. Uma das lições do filósofo escocês David Hume é que a filosofia de- ve ser útil e que à sua dimensão crítica de- ve estar aliada a sua relevância prática. Na medida em que o pensamento obscuro po- de ser o refúgio daquilo a que chama “su- perstições populares” e esconder as mais variadas formas de opressão, a argumen- tação rigorosa e justa tem não apenas uma função teórica mas também política e mo- ral, e contribui não apenas para o progres- so na busca da verdade mas também da justiça. O pensamento feminista tem tido um papel fundamental no que respeita a esta dupla aspiração, teórica e prática, da filosofia. *Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho 28 2 de Dezembro 2017 correiodominho.pt A rubrica “Ethos e Polis” resulta de uma colaboração estabelecida entre o Correio do Minho e o Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho. Terá uma periodicidade mensal. O seu principal propósito é o de colocar em diálogo os investigadores do CEPS, os leitores do Correio do Minho e a sociedade em geral a respeito de temas que convocam a reflexão política e moral. Ethos e Polis FEMINISMO E FILOSOFIA POLÍTICA ALEXANDRA ABRANCHES* Rubrica em colaboração com o Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho, que tem por principal objetivo criar diálogo com a comunidade. Poderá colocar qualquer questão nos domínios da teoria política e da ética aos seus investigadores através de [email protected].

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Em Uma Vindicação dos Direitos daMulher, de 1792, a filósofa inglesaMary Wollstonecraft escreve em

defesa do igual estatuto moral e políticodas mulheres, insistindo no papel dos fa-tores sociais para a definição do masculi-no e do feminino e na participação da me-tade excluída da sociedade nos assuntosdesta, que são também os seus assuntos.Desde então, o pensamento feminista temdiscutido as condições para a concretiza-ção de uma sociedade justa, e os seus con-tributos incluem uma crítica da distinçãoentre o privado e o público e a explicita-ção do carácter estrutural da opressão dasmulheres. O pensamento liberal tradicio-nal considera que existe uma dicotomiaentre o mundo público - da lei e do gover-no - e o mundo privado - do mercado, dareligião e de outras associações da socie-dade civil. Esta distinção esgotaria os ter-mos em que devem ser pensadas a igual-dade dos cidadãos e a liberdade dosindivíduos. O pensamento feminista temchamado a atenção para o facto de existiruma outra distinção que esta obscurece: adistinção entre, por um lado, o Estado e asociedade civil e, por outro, a esfera priva-da doméstica. Sob um hipotético contratosocial que sustentaria as instituições pú-blicas e a sociedade civil estaria um outrocontrato, um contrato sexual, como lhechama a filósofa inglesa Carol Pateman,garantindo a divisão do trabalho familiarque, libertando os homens, lhes permiteabraçar a vida da política, do trabalho edos negócios. A distinção tradicional entrepúblico e privado seria, então, insuficientepara dar conta de um tipo específico dedesigualdade e distribuição de poder naesfera privada com consequências na de-sigualdade e distribuição de poder na es-fera pública. “O pessoal é político” é afrase que exprime sinteticamente a discri-minação operada por esta distinção tradi-cional.

A crítica desta distinção entre público eprivado revela o carácter estrutural daopressão histórica das mulheres nas socie-dades humanas. Ser oprimido consiste emenfrentar, direta ou indiretamente, cons-

trangimentos e obstáculos materiais e psi-cológicos, como a violência, a privaçãoeconómica, ou os estereótipos. Dadas asvariadas forças que jogam na distribuiçãodesigual de privilégios e desvantagens en-tre homens e mulheres, não basta que a leiconsidere discriminatório tratar as pessoasde modo diferente com base no sexo, anão ser que o sexo constitua uma diferen-ça legítima para a decisão em causa. Istoporque é possível que as mulheres se en-contrem em posição de desvantagem ain-da que esse tipo de discriminação nãoocorra. Quando um empregador defineuma posição para a qual quer recrutar al-guém, e contrata um homem porque elepreenche melhor os critérios definidos,não está a discriminar com base no sexo,mas a escolher, legitima e razoavelmente,o indivíduo mais adequado para aquiloque pretende. O problema está antes nofacto de, dada a desigual distribuição dotrabalho doméstico, as mulheres se encon-trarem à partida em pior situação quandoconcorrem no mercado de trabalho. E as-sim, é compatível com a ausência de dis-criminação evidente em casos individuaisuma discriminação sistemática que colocaas mulheres como grupo numa posiçãogeral de desvantagem. Assim, mostrar anatureza complexa, e muitas vezes subtil,da discriminação, é necessário para for-mular medidas práticas adequadas paracombatê-la. Uma das lições do filósofoescocês David Hume é que a filosofia de-ve ser útil e que à sua dimensão crítica de-ve estar aliada a sua relevância prática. Namedida em que o pensamento obscuro po-de ser o refúgio daquilo a que chama “su-perstições populares” e esconder as maisvariadas formas de opressão, a argumen-tação rigorosa e justa tem não apenas umafunção teórica mas também política e mo-ral, e contribui não apenas para o progres-so na busca da verdade mas também dajustiça. O pensamento feminista tem tidoum papel fundamental no que respeita aesta dupla aspiração, teórica e prática, dafilosofia.

*Centro de Ética, Política e Sociedadeda Universidade do Minho

28 2 de Dezembro 2017 correiodominho.pt

A rubrica “Ethos e Polis” resulta de uma colaboração estabelecida entre o Correio do Minho e o Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho. Terá uma periodicidade mensal. O seu principal propósito é o de colocar em diálogo os investigadores do CEPS, os leitores do Correio do Minho e a sociedade em geral a respeito de temas que convocam a reflexão política e moral.

Ethos e Polis

FEMINISMO E FILOSOFIA POLÍTICAALEXANDRA ABRANCHES*

Rubrica em colaboração com o Centro de Ética, Política

e Sociedade da Universidade do Minho, que tem por principal

objetivo criar diálogo com a comunidade. Poderá colocar

qualquer questão nos domíniosda teoria política e da ética aos

seus investigadores através de [email protected].