feira de são cristóvão, lugar de memória da migração ... · subjetividade; com essa...

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Feira de São Cristóvão, lugar de memória da migração nordestina na cidade do Rio de Janeiro: considerações acerca de um filme de pesquisa produzido a partir de fontes orais e visuais 1 SYLVIA NEMER 2 A presença nordestina no Rio de Janeiro está ligada, na memória coletiva” (HALBWACHS, 1990), a um espaço da cidade fortemente associado à experiência da migração: a Feira de São Cristóvão cujos primórdios remontam ao pequeno comércio de produtos do Nordeste que começou a se desenvolver, entre as décadas de 1940 e 1950, em torno do ponto de desembarque dos pau de araras. Ali, no espaço aberto do Campo de São Cristóvão, a Feira funcionou por mais de cinco décadas até a sua transferência para o Pavilhão de São Cristóvão onde funciona desde 2003 como Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Concentrando, nos seus primeiros tempos, uma parcela expressiva dos recém chegados, o local logo se transformou em espaço referencial da migração nordestina na cidade. Naquele pedacinho de Nordeste no Rio de Janeiro os conterrâneos se reuniam para comprar produtos típicos, encontrar familiares e conhecidos, estreitar laços de sociabilidade e lembrar da terra natal. Embora situada em uma das regiões mais centrais do Rio de Janeiro, a Feira de São Cristóvão, até sua incorporação em 2003 à esfera da administração municipal, foi sempre tratada como uma área marginal em relação ao restante do território da cidade, inscrevendo-se em uma categoria de espaços cujas trajetórias são marcadas pelo silêncio não só quanto a sua presença física, mas, sobretudo, no que se refere a sua força simbólica. O presente trabalho parte desses silêncios para refletir sobre o problema das fontes disponíveis ao estudo da Feira de São Cristóvão e sobre a metodologia utilizada no trabalho com as mesmas. A proposta é aprofundar determinados aspectos de um projeto recentemente concluído, no qual a pesquisa sobre o espaço em pauta se concentrou, de um lado, na sua representatividade como lugar de memóriada migração nordestina na cidade do Rio de Janeiro, e, de outro, na sua condição de lugar ignorado pelas instituições de memória. Diante da especificidade do objeto 1 Este trabalho se baseia na minha tese de doutorado Feira de São Cristóvão: contando histórias, tecendo memórias defendida em dezembro de 2012 no Programa de Pós Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2 Professora visitante do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Feira de São Cristóvão, lugar de memória da migração nordestina na cidade do

Rio de Janeiro: considerações acerca de um filme de pesquisa produzido a partir

de fontes orais e visuais1

SYLVIA NEMER2

A presença nordestina no Rio de Janeiro está ligada, na “memória coletiva”

(HALBWACHS, 1990), a um espaço da cidade fortemente associado à experiência da

migração: a Feira de São Cristóvão cujos primórdios remontam ao pequeno comércio

de produtos do Nordeste que começou a se desenvolver, entre as décadas de 1940 e

1950, em torno do ponto de desembarque dos pau de araras. Ali, no espaço aberto do

Campo de São Cristóvão, a Feira funcionou por mais de cinco décadas até a sua

transferência para o Pavilhão de São Cristóvão onde funciona desde 2003 como

Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas.

Concentrando, nos seus primeiros tempos, uma parcela expressiva dos recém

chegados, o local logo se transformou em espaço referencial da migração nordestina

na cidade. Naquele pedacinho de Nordeste no Rio de Janeiro os conterrâneos se

reuniam para comprar produtos típicos, encontrar familiares e conhecidos, estreitar

laços de sociabilidade e lembrar da terra natal. Embora situada em uma das regiões

mais centrais do Rio de Janeiro, a Feira de São Cristóvão, até sua incorporação em

2003 à esfera da administração municipal, foi sempre tratada como uma área marginal

em relação ao restante do território da cidade, inscrevendo-se em uma categoria de

espaços cujas trajetórias são marcadas pelo silêncio não só quanto a sua presença

física, mas, sobretudo, no que se refere a sua força simbólica.

O presente trabalho parte desses silêncios para refletir sobre o problema das

fontes disponíveis ao estudo da Feira de São Cristóvão e sobre a metodologia

utilizada no trabalho com as mesmas. A proposta é aprofundar determinados aspectos

de um projeto recentemente concluído, no qual a pesquisa sobre o espaço em pauta se

concentrou, de um lado, na sua representatividade como “lugar de memória” da

migração nordestina na cidade do Rio de Janeiro, e, de outro, na sua condição de

lugar ignorado pelas instituições de memória. Diante da especificidade do objeto

1 Este trabalho se baseia na minha tese de doutorado Feira de São Cristóvão: contando histórias,

tecendo memórias defendida em dezembro de 2012 no Programa de Pós Graduação em História Social

da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2 Professora visitante do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

2 estudado além da carência de fontes institucionais acerca do mesmo, a pesquisa

recorreu aos processos de memória, através dos quais buscou-se abrir caminhos ao

passado tal como vivido pela coletividade no espaço considerado.

Na relação entre espaço e coletividade de memória, o projeto colocou em

destaque a figura do cordelista, como representante e porta-voz da comunidade

frequentadora da Feira, habituada a se reunir em torno das bancas dos poetas para

escutar histórias que lhes traziam lembranças da terra natal. Impressas em folhetos de

cordel, essas histórias, eram contadas ou cantadas em voz alta pelos cordelistas que

misturavam ao repertório tradicional do romanceiro nordestino, narrativas sobre as

peripécias dos migrantes no Rio de Janeiro: suas lutas cotidianas para conviver com a

sociedade local, sobreviver na cidade grande e preservar sua cultura, ativa nos seus

espaços de trabalho e sociabilidade. “Homens memória” (LE GOFF, 2003) de uma

cultura de base fundamentalmente oral, foram eles, os cordelistas, que nos

conduziram pelos intrincados corredores das memórias da Feira de São Cristóvão.

As narrativas em circulação nos folhetos de cordel, os vídeos com os

depoimentos de seis dos principais representantes do cordel na Feira e os acervos

pessoais de dois deles, atuaram como fontes da pesquisa sobre o espaço em questão,

bem como do filme, posteriormente, montado para apresentar o objeto analisado,

inseparável das vozes, dos sons, dos gestos, em suma, da “performance”

(ZUMTHOR, p. 983) que constitui a base da cultura ali em circulação. Partindo do

pressuposto de que o filme é um recurso valioso para apresentação de pesquisas

históricas baseadas em fontes orais e visuais, pretende-se, agora, discutir – tomando

como referência o filme desenvolvido a partir da pesquisa realizada para a minha tese

de doutorado sobre a história da Feira de São Cristóvão (NEMER, 2012) – o potencial

do meio audiovisual de colocar em circulação conteúdos e conceitos dificilmente

trabalhados no texto escrito. A base da montagem do filme são os vídeos com os

depoimentos dos seis cordelistas participantes do projeto a partir dos quais levantou-

se a discussão sobre a noção de ”testemunho” que conduzirá, no presente trabalho, a

reflexão sobre o uso, na narrativa audiovisual, de fontes produzidas por coletividades

de memória.

3 A análise de Beatriz Sarlo em Tempo passado: Cultura da memória e guinada

subjetiva é central em relação a essa questão. O texto traz considerações importantes a

respeito da entrada de novos sujeitos no campo da investigação histórica que

experimentou, nos últimos tempos, uma grande valorização dos processos de

subjetividade; com essa “guinada subjetiva”, os “sujeitos marginais” entraram para o

terreno da história provocando um novo interesse em torno dos “discursos da

memória: diários, cartas, conselhos, orações” (SARLO, 2007, p 17). Os “discursos da

memória”, tal como considerados na análise de Sarlo, representam um meio de se

colocar em cena a pluralidade de vozes constitutivas dos processos analisados. A

memória, nesse caso, não atua como “documento”, mas, nas palavras de Jacques Le

Goff, como “monumento” (LE GOFF, op. cit., 2003), ou seja, como meio de

produção de significados referidos ao contexto sócio histórico no qual estão inseridos

os novos sujeitos da experiência e, consequentemente, da narração.

Longe da pretensão da história positivista, de trazer à tona a verdade sobre o

passado tal como efetivamente ocorrido, a memória, segundo a autora, não se dissocia

da noção de discurso, do processo de construção do “eu” através da narrativa. No que

se refere às memórias dos “sujeitos marginais”, Verena Alberti chama atenção,

baseada nas observações de Michael Pollack, para o risco do pesquisador cair nas

usuais polarizações, transformando-se em uma espécie de “missionário encarregado

de contrapor memórias ‘dominadas’ a memórias ‘dominantes’”. “É preciso ter em

mente”, lembra a autora, “que há uma multiplicidade de memórias em disputa.”

(ALBERTI, 2004, p. 33-43)

O filme sobre a Feira de São Cristóvão se apoia na noção de “memórias em

disputa” que leva em conta os postulados apresentados por Alberti a respeito da

história oral ao mesmo tempo em que chama atenção para o modus operandi da

cultura constitutiva de tais memórias, atravessada pela idéia de luta, como apontou

Ruth Terra em Memórias de lutas: literatura de folhetos do Nordeste, 1893-1930. A

autora considera que a luta, na cultura do cordel, se manifesta em uma dupla

perspectiva: de um lado, na luta cotidiana dos indivíduos contra as adversidades

características do ambiente sócio-histórico no qual o cordel está inserido; de outro, na

luta simbólica, tematizada nos folhetos e representada nos marcos e desafios poéticos.

4 Transitando do Nordeste para o Rio de Janeiro, o cordel será recriado no

ambiente da Feira de São Cristóvão onde a luta irá se manifestar contra os poderes

hegemônicos, da polícia, em suas habituais intervenções no funcionamento da Feira,

das autoridades municipais, em suas frequentes ameaças de extinção ou remoção da

Feira para outros locais, dos jornalistas, em suas constantes denúncias às

irregularidades verificadas no local. Mas, muito além do confronto entre setores

dominantes e dominados também é importante considerar que a luta, no espaço da

Feira, se manifesta, de diferentes formas, entre os próprios membros da coletividade,

em decorrência de disputas pelo poder interno controlado pelas associações ali

atuantes ou pela ocupação das melhores áreas para instalação das barracas. No

semento do cordel, é a palavra, seja impressa, seja falada, que dá sentido a essas lutas,

atuando como uma teatralização das disputas travadas entre os próprios poetas ou

entre estes e os poderes constituídos em defesa daquele espaço considerado, de

direito, da comunidade nordestina.

Voltando à pesquisa sobre a Feira de São Cristóvão, o que aí se pretendeu

colocar em destaque foi a questão da luta pela preservação da Feira no seu espaço de

funcionamento original, luta essa protagonizada pelos cordelistas cujos papéis,

constantemente confundidos, de artista popular e porta voz dos interesses da

comunidade, implicaram em inúmeras rivalidades, como ficou evidenciado nos

depoimentos dos poetas entrevistados para o projeto. Nos vídeos com as entrevistas

gravadas observa-se mais claramente a relação entre as disputas internas transcorridas

no passado e a sua recriação no presente através do trabalho da memória. Aqui o

conceito de “memórias em disputa” ganha corpo através das imagens que mostram

como os cordelistas desejam se apresentar perante o entrevistador, subentendendo-se

que este ocupa, na visão dos poetas, o papel de fixação dos seus respectivos perfis

para além dos seus círculos mais imediatos. Na construção da própria imagem os

poetas buscaram definir seus papéis, destacando suas singularidades e suas diferenças

em relação aos demais integrantes da cultura que representam.

As indumentárias e os ambientes por eles escolhidos para a gravação das

entrevistas são bastante reveladores do modo como cada um deles desejava

representar a si próprio e a sua atuação na Feira de São Cristóvão, como ficou claro,

5 principalmente, nos depoimentos dos cordelistas da primeira geração do cordel da

Feira, Raimundo Santa Helena, José João da Silva – o Azulão e Gonçalo Ferreira da

Silva. Tendo participado da Feira, praticamente, desde os seus primórdios, os três

cordelistas buscavam, como se percebe nos vídeos com os registros dos depoimentos,

marcar suas respectivas posições no interior daquele espaço, através de “discursos da

memória” nos quais sobressaem as rivalidades que mantem entre si.

O caso de Santa Helena é o mais curioso, pois, ao mesmo tempo em que seu

nome aparece vinculado ao marco de fundação da Feira de São Cristóvão, a sua

participação no ambiente da Feira só acontecerá, efetivamente, 3 décadas depois

quando, aposentado da Marinha, ele passa a atuar como cordelista naquele local. A

construção da sua imagem se dá a partir da articulação desses três “discursos da

memória”: o ato de fundação da Feira de São Cristóvão associado ao desembarque

dos pracinhas vindos da Segunda Guerra (entre os quais, o próprio Santa Helena); o

cordel, de sua autoria, celebrando o fim da guerra e o começo da Feira; a sua atuação

na Marinha inseparável, como diz ele, da sua condição de pensador. É, aliás, sob essa

legenda, que ele constrói a ligação entre as várias referências do seu passado: Santa

Helena, o marinheiro pensador é o slogan que sintetiza os três discursos da memória

– a Feira, o cordel e a Marinha – funcionando como uma espécie de marketing

pessoal gravado nos produtos utilizados para veicular a sua imagem. No vídeo com a

sua entrevista o vemos com um boné da Marinha e uma camiseta estampada com o

seu slogan. As referências presentes no figurino são reproduzidas no local onde se

desenrola a gravação, feita, a propósito, na própria residência do poeta no bairro de

Madureira. Capítulo à parte na sequência de surpresas reservadas por Santa Helena, a

casa funcionava como um cenário onde centenas de capas de folhetos de sua autoria

cobriam as paredes da varanda e da sala, destinadas à exposição do seu acervo

pessoal. As cenas inusitadas se repetiam nos fundos da casa onde, conduzida por

Santa Helena, me vi diante de várias caixas d’água repletas de documentos destruídos

pelas águas de uma enchente que atingiu a residência do poeta em 2007. Os papéis,

embora inutilizados, permaneciam, 3 anos após à enchente, expostos sob nossas vistas

nos lembrando, com sua incômoda presença, que o destino de algumas memórias só

poderia ser o inevitável desaparecimento no fundo de velhas latas de lixo.

6 O vídeo gravado na residência de Santa Helena falava por si só, indicando,

pela força das suas imagens, que nenhum recurso, além do audiovisual, poderia fazer

jus aos múltiplos sentidos ali reproduzidos. Diante dessa constatação veio a opção de

fazer um filme para apresentação dos resultados da pesquisa sobre a Feira de São

Cristóvão. Que outro meio me permitiria lidar com as inúmeras referências passadas,

primeiro, na entrevista de Santa Helena e, em seguida, na dos demais cordelistas? O

texto produzido como exigência do meio acadêmico, deixava de lado uma série de

informações que apenas o registro audiovisual poderia passar, como o tom de voz, os

gestos e os movimentos dos poetas, representativos da dinâmica de lutas travadas no

ambiente da Feira.

O encontro com Santa Helena foi o primeiro da sequência de seis entrevistas

realizadas para o projeto. Mas, nesse caso, talvez não possamos falar, propriamente,

em entrevista. Inquieto, ele se desviava, o tempo todo, do roteiro preestabelecido, não

respondia às perguntas, só falava o que queria e não parava de andar pela casa, me

mostrando os documentos que ele havia, durante anos, acumulado. O vídeo realizado

na sua residência pode ser considerado como a expressão figurada das teorias

contemporâneas sobre a memória como trabalho e como discurso. No encontro com

os demais poetas o processo se repete, ainda que de forma menos impactante.

Observa-se isso no vídeo com o registro da entrevista de Azulão; também

realizado na residência do poeta em Engenheiro Pedreira, o material gravado reproduz

o mesmo esquema, visível na gravação de Santa Helena, de representação de si,

através da composição do figurino e do cenário. Nesse caso, a imagem será construída

em torno da idéia de tradição, sendo o chapéu de couro típico do sertanejo um dos

elementos centrais na construção dessa mensagem. Outro elemento destaque é a viola,

que reforça o vínculo do poeta com a tradição da cantoria, diferenciando-o dos demais

cordelistas entrevistados que atuavam apenas como poetas de bancada. Também

relevante como elemento de composição da imagem foi o local escolhido para a

entrevista, realizada numa área externa da residência do poeta, com vista para muitas

árvores e bem em frente a uma grande pilha de tijolos. Ali, acompanhado da sua

inseparável viola, ele falou sobre a sua vida, sua chegada no Rio de Janeiro, seu

trabalho como ajudante na construção civil e sua atividade como cantador. As falas,

7 entremeadas com trechos de cantoria de viola, se associam às referências do campo

visual, compondo um pano de fundo a partir do qual o poeta construirá o seu vínculo

com a Feira de São Cristóvão onde, desde a sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1949,

atuou vendendo cordéis e cantando romances. As imagens e os sons reforçam o

significado de uma experiência e trajetória singulares, diferenciando o poeta dos

demais cordelistas da Feira, principalmente, de Santa Helena, com quem ele tinha

uma antiga rixa.

Desavenças entre os cordelistas eram, aliás, muitos comuns no ambiente da

Feira. Com Santa Helena, os embates eram frequentes. O perfil polêmico e agitador

do poeta, que estava sempre à frente dos movimentos promovidos pelos feirantes, o

colocava, constantemente, em confronto com as associações dos feirantes, com os

próprios feirantes e, principalmente, com os demais cordelistas. Com Gonçalo a briga

girou em torno da criação da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC)

que, como faz questão de frisar o poeta, nasceu na Feira de São Cristóvão. Esse

vínculo ele busca reforçar em sua entrevista, realizada na sede da ABLC.

Funcionando, desde a sua fundação, em 1988, em um prédio antigo, em Santa Teresa,

a instituição foi idealizada por Umberto Pelegrino que também doou o imóvel para a

instalação da sua sede. A história da fundação da ABLC se liga à própria história de

Gonçalo cuja ligação com o meio intelectual remete ao início da sua vida profissional

na rádio MEC onde fez contatos que seriam importantes na sua futura carreira de

cordelista. Estas referências estarão no centro da entrevista de Gonçalo cuja

apresentação pessoal revela a preocupação de passar uma idéia de sobriedade. O

ambiente escolhido para conceder o depoimento reforça a intenção do poeta de

construir para si uma imagem de respeito e seriedade. Totalmente diferente da relação

personificada de Santa Helena e Azulão com Feira de São Cristóvão e com o cordel

ali praticado, a marca registrada de Gonçalo é a institucionalização do cordel em um

processo onde a Feira teria atuado como ponte para a criação da ABLC.

As entrevistas de Santa Helena, Azulão e Gonçalo revelam, de diferentes

formas, as relações estreitas dos cordelistas mais velhos com a Feira de São Cristóvão

cujas manifestações iniciais coincidem com a chegada em massa de migrantes

nordestinos no Rio de Janeiro. Nessa época, os três poetas, recém chegados à cidade,

8 começaram a frequentar a Feira, então funcionando no Campo de São Cristóvão. É ali

que eles vão se afirmar como artistas e construir suas identidades como porta-vozes

da comunidade nordestina no Rio de Janeiro.

As três primeiras entrevistas deixam claro a condição de pertencimento dos

cordelistas da primeira geração, à Feira de São Cristóvão. Diferente é a relação

estabelecida pelos três cordelistas da segunda geração que, chegados ao Rio de

Janeiro entre as décadas de 1960 e 1970, começaram a frequentar a Feira em um

momento em que o seu funcionamento já estava consolidado, o fluxo migratório

começava a cair, o público frequentador não era mais compactamente nordestino e o

som eletrônico começava a concorrer com a cantoria de viola. Nesse contexto, vai

despontar uma nova geração do cordel na Feira, com destaque para Sepalo Campelo,

Chico Salles e Marcus Lucenna cujas entrevistas revelam a nova relação do artista

popular com aquele espaço, nessas alturas, oferecendo maior espaço à música

eletrônica do que ao cordel e à cantoria. É essa geração de artistas que participará

mais ativamente do processo de transferência da Feira do seu local de funcionamento

original para o interior do Pavilhão de São Cristóvão onde passará para à esfera da

administração municipal.

No processo de incorporação da Feira ao poder público, têm destaque a figura

de Marcus Lucenna que, na época da entrevista, atuava como gestor daquele espaço,

ocupação que conciliava com várias outras atividades, como o radialismo, a literatura

de cordel, a música e a política, representativas da sua trajetória na Feira de São

Cristóvão entre as décadas de 1990 e 2000, período que corresponde ao acervo de

documentos que acumulou sobre o espaço em questão. Esse acervo, além do

disponibilizado por Santa Helena, compõe o corpus de fontes impressas trabalhadas

na pesquisa, do qual constam, folhetos, cartas, bilhetes, fotografias e, principalmente,

recortes de jornais e revistas.

Das fontes impressas recolhidas em outros acervos, destacam-se: 1) folhetos

de cordel sobre a Feira do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa; 2) reportagens

sobre a Feira do acervo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular; 3)

fotografias, pertencentes aos acervos dos jornais O Globo, O Dia e Jornal do Brasil,

com imagens da Feira nos primeiros tempos do seu funcionamento no Campo de São

9 Cristóvão; 4) fotografias pertencentes ao acervo particular do fotógrafo Cesar Duarte

que cedeu o direito de uso de sua coleção de fotos retratando a Feira em 1982.

Além do conjunto documental impresso (textual e fotográfico), que constitui o

corpus de fontes preexistentes à pesquisa, destaca-se um outro conjunto de fontes

produzidas, especificamente, para a pesquisa. Trata-se dos vídeos com os

depoimentos dos cordelistas, representativos de um processo de produção de

significados no qual não só o entrevistado participa, mas também o entrevistador.

Nesse caso, dois problemas básicos costumam ser levantados: o primeiro relacionado

às perguntas feitas, que previamente podem conduzir as respostas dadas pelos

entrevistados; o segundo, relacionado à seleção dos trechos dos depoimentos,

eventualmente, escolhidos para enquadrar a análise à determinados pressupostos.

A metodologia da história oral alerta para esses dilemas, chamando atenção

para o tratamento das narrativas sobre o passado, como observou Verena Alberti:

“[...] contar uma história é operar por exclusão, é selecionar e ordenar os

acontecimentos de acordo com o sentido que se lhes quer conferir e se quer

conferir à própria história. Mas isso não quer dizer que o resultado da

exclusão e da seleção não tenha relação com a realidade. Ao contrário, é

preciso tomar cuidado para não incorrermos no extremo oposto, passando

a sustentar que tudo não passa de versões do passado, ou ainda que toda

construção narrativa é ‘ficção’” (ALBERTI, op. cit., p. 69)

Citando o teórico de literatura Lutz Niethammer, Alberti levanta a questão das

histórias que existem dentro das entrevistas de história oral:

“Entrevistas de história oral são fontes que documentam o passado –

experiências pessoais, acontecimentos, conjunturas – e as concepções

sobre passado através de sequências narrativas, isto é, pequenas histórias

cujo sentido está atrelado à forma com que são narradas, sendo impossível

dar conta do primeiro (o sentido) sem considerar o segundo (a forma)

(Ibid. p. 73)

A relação entre sentido e forma, tal como mencionada por Alberti a propósito

da história oral, nos reconduz à questão das disputas verbais na cultura do cordel as

quais chegam mesmo a substituir a ação, como observou Jerusa Pires Ferreira em A

palavra, ocupação de rivais.

“[...] a fala constrói toda uma retórica do combate, sustenta os lances do

desenvolvimento guerreiro, cavalheiresco, chegando mesmo a substituir a

ação. [...] Pode-se dizer, no caso desta literatura ‘popular’ que a

teatralização se adapta ao gosto pelas bravuras e peripécias, e aí quando a

participação do poeta se faz mais incisivamente rítmica em sua narrativa, e

mais enfática e estimulante para o leitor ouvinte espectador, quando se

10 desenrola, com ímpeto, a linguagem imperativa e autoritária, tão de acordo

com os referenciais nordestinos.” (FERREIRA, In: BATISTA et al., 2004,

p. 353)

O comentário deixa claro a estreita ligação entre a temática do combate na

literatura de cordel, as formas verbais e gestuais por meio das quais é produzido o

sentido das ações narradas e o referente sócio cultural em que as disputas verbais se

desenvolvem. Trata-se, como sinalizou Ferreira, de uma “teatralização do mundo,

muito importante para uma sociedade com a que produz os folhetos nordestinos, onde

a função dramática atua como uma espécie de garantia de equilíbrio” (IBID)

No que se refere às disputas entre os três poetas da primeira geração do cordel

da Feira, estas seriam a reprodução, à nível discursivo, de um tipo específico de

relação social hierárquica e autoritária, intensamente experimentada por eles durante a

infância e adolescência, passadas, entre as décadas de 1920 e 1940, no sertão

nordestino, na época ainda bastante isolado em relação às áreas urbanas e alheio aos

processos de modernização do campo que começam a se manifestar nas décadas

seguintes (MELLO e NOVAIS In: SCHWARCZ, 1998). Em tal ambiente, a força da

tradição mantinha-se viva, agindo, para além das representações, sobre as ações.

“Destaca-se a força do simulacro, neste conjunto de atividades lúdicas,

neste mundo ritual onde a forma acaba por agir sobre o conteúdo, passando

a linguagem a ser o próprio rito. Sugere-se então a constatação de como se

fundem nestas situações as antinomias viver e representar, ser e parecer.”

(FERREIRA, op. cit., p. 354)

Em relação a Gonçalo, a sua forma de representação verbal, muito mais

cuidadosa do que a de Santa Helena e de Azulão, possivelmente fruto dos seus

contatos com o meio intelectual carioca após a sua admissão na rádio MEC, não

significa o pertencimento do poeta a um universo social e cultural distinto daquele em

que se situam as experiências dos outros dois. Ao contrário, o que a sua retórica

elabora revela é que, embora em posição diferente, as suas referências se localizam no

mesmo campo conjuntural em que estão situadas as falas dos demais cordelistas da

sua geração. Trata-se, como observou Ferreira,

“da divisão de um só universo, as duas partes fazendo parte de um todo.

Assim Oliveiros e Ferrabraz são uma parte (cristã) e outra (moura) mas são

uníssono de uma mentalidade de mundo e de guerra. [...] parece-me que

estou a escutar os discursos que tantas vezes presenciei entre ‘coronéis’

vizinhos, em minha região natal. É então que cresce a ética cavalheiresca,

a ponto de substituir até a própria retórica da disputa.” (IBID, p. 354-355)

11

A Batalha de Oliveiros e Ferrabraz, que serve como referência às

observações da autora, é um famoso folheto escrito, no início do século XX, por

Leandro Gomes de Barros, considerado o pai da literatura de cordel. Com inúmeras

variações, essa narrativa circulou amplamente pelo sertão nordestino, formando várias

gerações de narradores e ouvintes na ética do combate. Em meados do século

passado, o universo sócio cultural no qual se afirmava o quadro ético e estético do

combate começa a se modificar. É no interior deste universo em rápida transformação

que se enquadram as primeiras experiências dos cordelistas da segunda geração os

quais, como veremos nos vídeos dos depoimentos, procuram demonstrar uma atitude

de neutralidade em relação às rivalidades travadas entre os seus colegas mais velhos.

Percebe-se, com eles, a intensificação dos esquemas de despersonificação das práticas

e saberes populares tradicionais e um processo crescente de institucionalização e

racionalização do funcionamento da Feira de São Cristóvão. Nesse contexto, a

memória já não se refere às experiências vividas, caracterizando-se, ao contrário,

como uma “pós memória” (SARLO, op. cit.), ou seja, uma memória a posteriori,

constituída a partir das histórias acerca das experiências passadas, registradas em

folhetos de cordel e transmitidas dos antigos para os novos frequentadores pela

tradição oral, ainda muito presente no cotidiano da Feira.

As formas de uso da memória verificadas entre as duas gerações de cordelistas

se reproduzem na composição do ambiente da Feira em seus dois espaços, tempos e

formas de funcionamento. No primeiro quadro, a Feira se encontra no espaço aberto

do Campo de São Cristóvão onde, entre meados dos anos 1940 e o início da década de

2000, funcionou como feira livre, sob o controle e a responsabilidade das associações

dos feirantes. Aqui predominavam os processos espontâneos de transmissão de

memórias, processos estes desaparecidos com o desaparecimento do seu local original

de circulação (NORA, 1984). No segundo conjunto de referências, temos como marco

o ano de 2003 quando a Feira foi transferida para o interior do Pavilhão de São

Cristóvão e passou a funcionar sob a administração do poder público municipal.

Nesse caso, começam a se constituir os “lugares de memória” (NORA, op. cit.). A

nova Feira será um deles. O outro, que terá lugar na residência de Santa Helena,

12 expressa o desejo do poeta salvar do esquecimento as experiências vividas, no espaço

da antiga Feira, pelos migrantes nordestinos chegados ao Rio de Janeiro a partir dos

anos 1940.

O filme produzido a partir das fontes coletadas (fotografias com imagens da

antiga Feira e reproduções de material impresso como capas de folhetos e matérias

publicadas pela imprensa) e das produzidas para a pesquisa (os vídeos com os

depoimentos dos poetas e os vídeos com registros da nova Feira) visa traduzir

visualmente os processos de construção da identidade nordestina vividos pela

coletividade participante da Feira de São Cristóvão e as disputas pelas memórias das

suas duas experiências de funcionamento.

A narrativa audiovisual nos permitiu colocar em destaque o papel do discurso

na produção de significados da pesquisa, oferecendo, por meio de sons e imagens,

uma reflexão não apenas sobre o discurso da memória presente nas fontes analisadas,

mas também sobre o discurso produzido a partir do trabalho com essas fontes:

trabalho de análise e interpretação reproduzido através de uma fala em off sobreposta

ao campo visual. Atuando como comentário, a narração em off teve como base um

texto cujo tamanho deveria ser compatível com o tempo disponível a uma

apresentação de trabalho acadêmico, ou seja, em torno de 20 minutos. Com isso, era

necessário calibrar o comentário para fazê-lo encontrar um ritmo correspondente à

cada sequência visando o equilíbrio geral do filme.

Começava, assim, um esforço de adaptação da edição do vídeo aos

pressupostos da pesquisa que deveria colocar em evidência, através de comentários,

imagens, música e montagem, determinada perspectiva sobre a história da Feira de

São Cristóvão, trabalhada originalmente em uma tese de doutorado de quase 300

páginas. A questão era destacar o ponto focal da pesquisa, sintetizando seus

argumentos principais e retrabalhando-os a partir da linguagem audiovisual. Nesse

caso, a busca de solução para as dificuldades próprias à fabricação de um filme de

montagem se confrontavam às exigências da análise histórica tal qual os historiadores

a concebem: descrição e crítica das fontes – no caso do filme, as imagens dos

materiais exibidos articuladas aos comentários; confronto com outros documentos, em

13 especial, fontes escritas coletadas em arquivos; montagem obedecendo a uma lógica

intelectual e científica respaldada nas discussões historiográficas mais recentes.

Com base nessas discussões, o filme se propôs mostrar a dimensão política e

simbólica das lutas pela memória travadas na Feira de São Cristóvão cuja

interpretação e abordagem nos permitiu oferecer uma alternativa às narrativas

produzidas acerca do espaço em pauta, normalmente, permeadas por lugares comuns

e julgamentos preconceituosos. Considerando o impacto dessas narrativas na

construção de uma memória sobre o espaço em pauta, o filme, na medida em que

levanta outras possibilidades de interpretação, se inscreve em uma perspectiva

bastante atual de reflexão sobre a história pública.

Fruto também dos debates historiográficos mais recentes, é a discussão em

torno da adoção de uma metodologia de pesquisa adequada ao trabalho com fontes

iconográficas e videográficas. Entendemos que a utilização do audiovisual como

suporte para apresentação de resultados de pesquisa histórica, embora ainda pouco

adotada no meio acadêmico, pode ser uma opção metodologicamente válida para o

historiador lidar com fontes imagísticas, “em última análise, para discutir a história

em imagens, pela imagem” (DELAGE e GUIGUENO, 2004, p. 130).

Bibliografia

ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro, Editora

FGV, 2004.

DELAGE, Christian e GUIGUENO, Vincent. L’historien et le film. Paris, Éditions

Gallimard, 2004.

FERREIRA, Jerusa Pires. “A palavra, ocupação de rivais” In: BATISTA, Maria de

Fátima et. al. (Orgs.). Estudos em Literatura Popular. João Pessoa, Editora

Universitária, UFPB, 2004.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, Ed. Unicamp, 2003.

MELLO, João Manuel Cardoso e NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio e

sociabilidade moderna” In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida

privada no Brasil, vol. 4. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

NEMER, Sylvia. Feira de São Cristóvão: contando histórias, tecendo memórias.

Doutorado em História Social da Cultura, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade

Católica, 2012 (tese)

NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. T. I, v. 1, Paris, Gallimard, 1984.

14 SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São

Paulo, Companhia das Letras, Belo Horizonte, UFMG, 2007.

TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de lutas: Literatura de folhetos do Nordeste

1893-1930. São Paulo, Global Editora, 1983.

ZUMTHOR, Paul. Introdution à la poésie orale. Paris, Éditions du Seuil, 1983.