fazer dos mortos gente de hoje - esas.pt · ... desde o ano lectivo de 1921 – 1922 a escola...

38
Fazer dos Mortos Gente de Hoje Manuel Monteiro na 1ª Pessoa (1879 – 1952) Carlos Jaca DIÁRIO DO MINHO 11, 18 e 25 Maio2006 Foi, apenas, há cerca de vinte anos que comecei a descobrir a figura de Manuel Monteiro, ou melhor, a sua existência, embora possa invocar como atenuante o facto de não ser natural desta cidade. Aconteceu que ao leccionar pela primeira vez na Escola Secundária Alberto Sampaio, no já longínquo ano lectivo de 1983-84, notei, com algum espanto, que as folhas de exercício utilizadas pelos alunos estavam timbradas no cabeçalho com o nome de Manuel Monteiro. Esta situação, tão estranha como confusa, ficou esclarecida, para mim, quando a Dra. M. Etelvina Nunes de Sá, actual professora da Escola e Presidente da sua Assembleia e à época Presidente do Conselho Directivo, em introdução a uma breve mas interessante biografia de Manuel Monteiro afirmava que, em 1977, a então denominada Escola Técnica Alberto Sampaio, «achou por bem encetar um processo de mudança do seu patrono, substituindo Alberto Sampaio por Manuel Monteiro. O processo arrastou-se durante anos no Ministério da Educação, sem nada ser decidido. Foi retomado em 1984, e em 1985 esteve prestes a ser despachado favoravelmente, mas, inexplicavelmente, e mais uma vez, ficou metido na gaveta.Desde então assim permanece, votado ao esquecimento». Terminando este esclarecimento, a Dra. Etelvina Nunes de Sá refere as razões invocadas para a mudança de patrono na Escola, apontando para dois argumentos considerados fundamentais: «Alberto Sampaio, sendo uma figura digna das maiores homenagens, não era natural de Braga, onde a Escola se situa, e a sua memória já se encontrava preservada através de um importante Museu com o seu nome em Guimarães; Manuel Monteiro é um vulto da 1ª. República, com projecção internacional, bracarense, e o seu nome não estava ainda consagrado como patrono de qualquer instituição». No depoimentoque irá fazer ao suplemento Cultura” do “Diário do Minho”, Manuel Monteiro poderá, ou não, se o entender, pronunciar-se sobre essa questão. Carlos Jaca 1

Upload: doanlien

Post on 23-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Fazer dos Mortos Gente de Hoje Manuel Monteiro na 1ª Pessoa (1879 – 1952)

Carlos Jaca

DIÁRIO DO MINHO 11, 18 e 25 Maio2006

Foi, apenas, há cerca de vinte anos que comecei a descobrir a figura de Manuel

Monteiro, ou melhor, a sua existência, embora possa invocar como atenuante o facto de

não ser natural desta cidade.

Aconteceu que ao leccionar pela primeira vez na Escola Secundária Alberto

Sampaio, no já longínquo ano lectivo de 1983-84, notei, com algum espanto, que as

folhas de exercício utilizadas pelos alunos estavam timbradas no cabeçalho com o

nome de Manuel Monteiro.

Esta situação, tão estranha como confusa, ficou esclarecida, para mim, quando

a Dra. M. Etelvina Nunes de Sá, actual professora da Escola e Presidente da sua

Assembleia e à época Presidente do Conselho Directivo, em introdução a uma breve

mas interessante biografia de Manuel Monteiro afirmava que, em 1977, a então

denominada Escola Técnica Alberto Sampaio, «achou por bem encetar um processo de

mudança do seu patrono, substituindo Alberto Sampaio por Manuel Monteiro. O

processo arrastou-se durante anos no Ministério da Educação, sem nada ser decidido.

Foi retomado em 1984, e em 1985 esteve prestes a ser despachado

favoravelmente, mas, inexplicavelmente, e mais uma vez, ficou metido na gaveta.Desde

então assim permanece, votado ao esquecimento».

Terminando este esclarecimento, a Dra. Etelvina Nunes de Sá refere as razões

invocadas para a mudança de patrono na Escola, apontando para dois argumentos

considerados fundamentais: «Alberto Sampaio, sendo uma figura digna das maiores

homenagens, não era natural de Braga, onde a Escola se situa, e a sua memória já se

encontrava preservada através de um importante Museu com o seu nome em

Guimarães; Manuel Monteiro é um vulto da 1ª. República, com projecção

internacional, bracarense, e o seu nome não estava ainda consagrado como patrono de

qualquer instituição».

No “depoimento” que irá fazer ao suplemento “Cultura” do “Diário do Minho”,

Manuel Monteiro poderá, ou não, se o entender, pronunciar-se sobre essa questão.

Carlos Jaca 1

Curiosamente, em 17 de Março de 2003, e sem atropelar Alberto Sampaio, o

ilustre bracarense “entrou” na Escola e…lá ficou! É a Biblioteca Manuel Monteiro.

Entretanto, coincidindo com a minha entrada na Escola Secundária Alberto

Sampaio, passei a frequentar com alguma assiduidade o Arquivo Distrital e B.P.B. /

U.M. requisitando, por vezes, obras pertencentes à Sala M. M.

Fundamentalmente, as “Notas Bio-Bibliográficas”, elaboradas pelo Dr. Barreto

Nunes, Director da referida Instituição, levaram-me à recolha de novos e variados

elementos sobre o eminente homem público e Mestre de crítica e história de arte, que

foi Manuel Monteiro.Deste modo, passei a ter da sua vida e obra o conhecimento

suficiente para poder afirmar, em consciência, ser grande injustiça que a sua figura

não esteja, ainda, presente num busto, em zona nobre, ou que o seu honrado nome não

esteja perpetuado em qualquer instituição da cidade de Braga, a sua cidade.

«Depoimento» de Manuel Monteiro. Por motivos óbvios, recorri, com frequência, às opiniões de contemporâneos e

também a pessoas ou instituições, nomeadamente à Biblioteca Pública de Braga / U.

M. e à A S P A, que depois do meu falecimento se interessaram pela minha vida e obra.

Recordo, ainda, as actividades programadas, e cumpridas, pelas referidas instituições,

quando das comemorações do 1º Centenário do meu nascimento.

Apesar de me terem considerado um dos mais ilustres bracarenses de todos os

tempos e que na 1ª metade do século passado fui figura de extraordinário relevo tanto na

vida política da nação, como na investigação e crítica de Arte, no estudo da etnografia e

no Direito Internacional de que terei sido Mestre, nunca de tal me vangloriei.

Quem me conheceu sabia da minha simplicidade; quer nos gestos, quer nas

palavras, quer nas atitudes fui sempre um homem discreto e de sóbria e modesta

maneira de ser.

A minha renúncia ia até à escusa de singelas homenagens.Em 1919 a Câmara

Municipal de Braga deliberou por unanimidade que à Rua Nova de Santa Cruz, onde

nasci e havia de morrer, fosse dado o meu nome.Recusei, embora sensibilizado com a

lisonja da Municipalidade Bracarense e que a simples lembrança dessa iniciativa

saldava «com larga generosidade a dívida contraída com aquele a quem a mesma é

tributada», e que a mais nada me julgava com direito…

Carlos Jaca 2

Todavia, neste caso, tratando-se de um “depoimento,” ver-me-ei obrigado a referir

algumas situações que, julgo, honraram a minha pessoa e obra.

Para este “depoimento” que, por motivos de ordem vária não poderá ser exaustivo,

daí naturais lacunas, considerei três aspectos fundamentais, mesmo indissociáveis, da

minha personalidade: a qualidade de bracarense, intelectual e político. Sabe-se bem

que amei muito a minha terra, o seu património cultural, as suas gentes.Braga sempre

esteve no centro dos meus interesses intelectuais e das minhas preocupações políticas.

Embora a faceta mais perdurável da minha personalidade tenha sido a de critico e

historiador de arte, foi certamente o conjunto multiforme das minhas qualidades e

aptidões, realizadas através dos múltiplos caminhos que percorri, que me tornaram,

dizem, um homem excepcional da minha geração.

Do Colégio do Espírito Santo a Coimbra. De meu nome completo Manuel Joaquim Rodrigues Monteiro, filho de José

Joaquim Rodrigues Monteiro e de Rosa Maria Pereira Monteiro, abri os olhos à luz do

dia a 29 de Setembro de 1879, no prédio nº 164, da Rua Nova de Santa Cruz, freguesia

de São Victor, da cidade de Braga. Aqui cresci, fiz estudos preparatórios e convivi, levando uma infância

descuidada.Desse tempo recordo com saudade alguns professores, o Costa Lima e o

João de Deus para os latins e o Costinha para a ciência dos números, bem como os meus

condiscípulos do Colégio do Espírito Santo onde entrei em 1890 e em cujo edifício

funciona, desde o ano lectivo de 1921 – 1922 a Escola Secundária Sá de Miranda.

Recordo, ainda, que à esquerda da Rua de Santa Margarida, perto do Senhor de

Infias, havia uma moça que vendia castanhas assadas.Era a tentação de todos nós…as

castanhas, não a moça, claro, e, por isso, raro dia se passava sem irmos a elas, que por

vezes se regavam com vinho do Herdeiro.

De vez em quando, até se gazeteava, faltando à aula.Então dava-se um passeio

mais largo, para matar o tempo.Ainda me está na lembrança um que demos a

Cabanas.Ao chegar ao portão que dá para a quinta, que então era de um brasileiro muito

simpático chamado Rodrigues, num abrir e fechar de olhos trepei ao cimo do muro que

servia de encaixe ao portão de ferro e de lá arenguei às massas que de baixo,

Carlos Jaca 3

boquiabertas, admiravam a minha eloquência de futuro tribuno e parlamentar, que

jamais sonhara vir a ser.

Todos os condiscípulos me tratavam por Monteirinho, mas era o Vieira aquele

que mais privava comigo, chegando a apresentá-lo a familiares meus, como foi o caso

de meu tio marceneiro, especialista em conserto de carruagens, que morava em

Guadalupe, nas primeiras casas depois do Campo Novo, e que visitávamos com

frequência sobretudo porque na mesma casa existia uma pequena fábrica de elásticos e

nós íamos lá comprá-los para fazer fisgas.

Também o apresentei a um outro tio, que estivera nos Brasis, e era muito meu

amigo, encontrando-nos com frequência debaixo da Arcada, junto ao café Faria, onde

hoje está o Astória.

Depois a vida separou-nos, Coimbra seria o meu próximo destino.

Apesar de ter apenas dez anos, idade com que entrei para o Colégio do Espírito

Santo, dei-me conta da situação conturbada que se vivia no País.

Nesse ano, em 11 de Janeiro de 1890, o Ultimatum britânico ao Governo de

Lisboa provocou uma vaga nacional de indignação contra a Inglaterra e contra a

submissão e o servilismo da Monarquia face à coroa inglesa, registando-se

manifestações e tumultos aqui e além.

Em Braga, os estudantes estiveram em plano de evidência.Criaram-se comissões

com diversos objectivos, enviaram-se telegramas ao Chefe do Estado e aos estudantes

de Lisboa, Porto e Coimbra manifestando total apoio pelas suas patrióticas decisões.

A 13 de Fevereiro, no Teatro S. Geraldo (onde está hoje o Banco de Portugal) a

Academia bracarense deliberou, correspondendo às propostas feitas ao País pelo célebre

e combativo poeta Guerra Junqueiro, não realizar os tradicionais festejos carnavalescos,

propondo em substituição a «realização de um cortejo cívico para proclamar bem alto, e

publicamente, o luto na nação perante o procedimento vil da Mesquinha Albion»

Cerca de um ano depois, em 31 de Janeiro de 1891, eclodiu no Porto a primeira

revolta republicana.Embora sufocada, serviu para revelar a existência de uma ameaça

real às instituições vigentes.

Sete anos depois, em 12 de Outubro de 1898, concluídos os estudos secundários,

tive acesso à 1ª matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.Nesta

cidade, e por recomendação de meu primo, Rocha Peixoto, relacionei-me com António

Augusto Gonçalves, professor, pintor, escultor, arqueólogo e notável crítico de arte,

cuja casa passei a frequentar e me introduziu no seu círculo de amigos, iniciando-me no

Carlos Jaca 4

estudo da arte românica.Aquele meu primo, arqueólogo e etnógrafo, foi, sem dúvida,

uma das pessoas que maior importância tiveram no meu futuro desenvolvimento

intelectual dando-me a conhecer o mundo inexplorado da etnografia portuguesa.

A partir do ano lectivo de 1903-1904 passei a viver na “2ª República do Norte”, na

Rua de Sub-Ripas, aí convivendo, entre outros, com Alberto Feio, Domingos Pereira e

Justino Cruz, bracarenses que vieram a desempenhar acção relevante na cidade, na

região e no País durante a 1ª República.Outros companheiros, eram Carlos Olavo, Sousa

Pinto, Luís de Almeida Braga, a figura lendária que foi o Pad-Zé, etc.

O ambiente de Coimbra, tal como aconteceu com a “Geração de 70”, não poderia

ter deixado de influenciar a minha formação intelectual e cívica, que se foi consolidando

até ao advento da República.

Durante o curso colaborei no jornal republicano conimbricense “Resistência”,

dirigido por Quim Martins e colaborei na revista “Arte e Vida” de cuja direcção fazia

parte com João de Barros e Manuel Sousa Pinto.

Em Abril de 1905 fui admitido como sócio do Instituto de Coimbra e, em Junho

do mesmo ano, concluía o curso de Direito, sendo aprovado “simpliciter”no último

exame.Era o meu regresso a Braga.

Mentor das ideias republicanas. Intervenção na actividade política. Concluída a formatura e de novo instalado na terra natal, e montando banca de

advogado no Campo da Vinha, o ano de 1905 iria marcar o início da minha projecção

pública.

Braga era, por este tempo, uma pequena cidade de província mergulhada numa

tradição de marasmo e imobilismo.A população da cidade andava pelos vinte mil

habitantes e a tendência do crescimento era de lentidão.Centro de uma região rural

com elevado índice de emigração para o Brasil, não havia na cidade um espírito de

abertura às correntes do progresso e do fomento cultural.

Considere-se, no entanto, que ao lado de manifestações obscurantistas, também as

havia já de progresso e de sentimentos de fraternidade social.

Registo que, em 1903, quando ainda me encontrava em Coimbra, realizou-se em

Braga um congresso operário socialista internacional.Este era o III Congresso Galaico-

Portucalense, o I fora realizado em Tuy (1901) e o II em Viana do Castelo (1902).

No de Braga, efectuado entre 20 e 26 de Abril, estiveram presentes 47 associações

Carlos Jaca 5

portuguesas com mais de sete mil associados, e 30 espanholas com cinco mil.As sessões

realizaram-se no Teatro de S. Geraldo, e a sua organização esteve a cargo da Associação

das Operários Chapeleiros, que era ao tempo o grande organismo sindical dos

trabalhadores bracarenses.Nas conclusões do congresso reclamava-se a diminuição das

horas de trabalho nas fábricas e oficinas.

O movimento operário era já intenso em Braga no princípio do séc. XX.Havia um

forte movimento associativista local, que era animado pelo apoio dos trabalhadores do

Porto.Aos domingos vinham de lá comboios repletos de empregados comerciais, que se

espalhavam na cidade a propagar as ideias novas, como então se dizia.Além da grande

Associação dos Chapeleiros, havia também, organizado pelo Centro Socialista local, a

Associação das Quatro Artes da Construção Civil, com Cooperativa anexa.O grande

mentor do movimento operário português, que foi Azedo Gneco, e o grande animador

Felizardo Lima vieram várias vezes a Braga promover conferências públicas.Pode

dizer-se que a vida cultural e intelectual de Braga era animada predominantemente pelo

movimento operário.Por influência da “Voz do Operário” de Lisboa, organizou-se em

1904 o Centro Operário de Braga, que se propunha criar algumas escolas e chegou a

manter uma Universidade livre destinada principalmente a trabalhadores

Foi neste ambiente, já um tanto ou quanto agitado, que eu, como outros jovens

intelectuais burgueses, me liguei ao movimento popular da minha terra natal,

colaborando nas iniciativas culturais dos operários bracarenses.

Devo dizer que, ainda na juventude, revelei o meu interesse pelos problemas

sociais e pela questão da governação do país, intervindo em movimentos de propaganda

política.Naturalmente, a minha formação intelectual e ideológica conduzir-me-iam à

aceitação da doutrina republicana que então se radicava no espírito da camada

intelectual e da pequena burguesia. Foi assim que, com o início da minha actividade

profissional de advogado, me tornei um dos mentores das ideias republicanas no

meio social bracarense.

Confrontando-nos com a hostilidade persistente dos meios sociais dominantes,

mas em contrapartida apoiados pelos sectores populares da cidade e, no meu caso, bem

relacionado em Coimbra e no Porto com vultos notáveis da corrente republicana fui,

com Domingos Pereira, Simões de Almeida, Justino Cruz, Manuel de Oliveira,

Alberto Feio e outros, um dos organizadores locais do Partido Republicano que então

passou a ter aqui em Braga, as suas próprias estruturas.

Carlos Jaca 6

Como já referi, o ano de 1905 iria marcar o início da minha projecção pública.De

facto, foi nesse ano que se realizou o primeiro comício republicano em Braga, nos

terrenos da Cruz de Pedra, onde até há alguns anos se encontravam instalados os

Serviços Municipalizados, tendo sido orador juntamente com o Eduardo de Abreu e o

Sousa Fernandes.

No ano seguinte participei activamente em vários comícios de propaganda

republicana merecendo, por isso, os elogios de Bernardino Machado que me foram

endereçados por carta datada de 21 de Dezembro de 1906.

Neste mesmo ano, foi promovida a fundação do Centro Republicano com sede

inicial no Campo de Touros, hoje Praça do Município, tendo sido eleito Presidente da

Comissão Municipal de Braga do Partido Republicano e membro de um grupo de

“resistência, propaganda e acção.”

Efectivamente, a minha intervenção na actividade política não se limitava ao

exercício da palavra em que aliás, dizem, era exímio.Assim, e ainda no ano de 1906,

disputei as eleições municipais de Braga numa lista do partido republicano, em que

participaram o advogado João José de Freitas, o médico Custódio Pereira, o negociante

Bento de Oliveira, os farmacêuticos José Fernandes de Macedo, Henrique José Alves e

ainda outros conterrâneos.

Como era possuidor de uma palavra fácil e calorosa, e com alguma atracção

pessoal, fui ganhando adesões sempre crescentes, o que me estimulava a preparar e a

intensificar grandes manifestações republicanas em Braga no período final da

Monarquia – o comício de Março de 1908, presidido por António José de Almeida, e o

de Agosto presidido por Alfredo de Magalhães.

No ano seguinte, ao mesmo tempo que actuava como político, como advogado

reclamava a favor do concelho de Amares, reivindicando a propriedade pública das

águas termais de Caldelas.

Em finais de Agosto de 1910 ocorreram as últimas eleições antes da queda do

regime monárquico o que, ao fim e ao cabo, era mais que previsível, era fatal.Comigo,

eram candidatos pelo Círculo de Braga, António Martins de Sousa Lima, João Caetano

de Fonseca Lima, José Joaquim de Oliveira, Joaquim de Sousa Fernandes e José

Summavielle Soares.

Numa sessão de propaganda que antecedeu as referidas eleições, afirmei esperar

«que todos os cidadãos votem no próximo dia 28,não como carneiros ou cousas, como

Carlos Jaca 7

são a maioria dos monarchicos, mas como homens perfeitamente conhecedores das

suas responsabilidades nesta hora tremenda».

A 1 de Setembro o “Radical” órgão oficioso do Centro Escolar Bernardino

Machado, anunciava, ou prenunciava, que «a velha monarchia toca a finados porque a

republica está em marcha.Viva a REPUBLICA! Para que viva a PATRIA»!

Assim foi.Em 5 de Outubro de 1910, enquanto o rei se refugiava em Inglaterra, a

República era aclamada oficialmente na Câmara Municipal de Lisboa sendo depois

proclamada telegraficamente ao resto do país, onde se aceitou sem grandes problemas o

novo regime político, verificando-se apenas a mudança de algumas personalidades e a

conversão de outras à nova situação.

1º Governador Civil de Braga após o advento da República.

A Revolução de 5 de Outubro de 1910 veio assim encontrar o povo da cidade de

Braga predisposto para aceitar o novo regime.

Logo que o Dr. Domingos Pereira trouxe da capital a notícia da implantação da

República, fui nomeado Governador Civil do Distrito aguardando comunicação de

Lisboa para tomar posse, visto o último Governador Civil da Monarquia, Dr. Ferreira

Botelho, assim o pedir – não queria abandonar o seu posto sem ordens superiores o que,

naturalmente, compreendi.

Instalando-me no dia 6 de Outubro no Grande Hotel, que existiu na Avenida

Central, fui alvo de grandiosas manifestações populares, tomando posse do cargo no dia

seguinte, posse que me foi conferida pelo Comandante da 5ª Brigada Militar, fazendo

guarda de honra uma força de Infantaria 8 com a respectiva banda.

Ao mesmo tempo Domingos Pereira era designado Administrador do Concelho

dando posse, no dia 8 de Outubro, à nova Comissão Administrativa da Câmara

Municipal que era constituída por Francisco José de Faria, Francisco Baptista da Silva,

Alberto Feio, Luís Augusto Simões de Almeida, Miguel Menezes Ribeiro Braga, José

Fernandes Macedo e Domingos Palha. O Domingos Pereira viria a acumular o cargo de

Presidente da Câmara, enquanto Justino Cruz era o novo secretário do Governo Civil.

Desempenhei o cargo de Governador Civil durante mais de dois anos, até Março

de 1913. Apesar dos tempos conturbados e incertos do novo regime, não obstante as

dificuldades inerentes a um período de profunda mutação política e social, dizem que a

minha actuação no exercício do cargo foi notável, eu diria antes, equilibrada e prudente.

Carlos Jaca 8

Não me inclinei nunca em excesso para um lado ou para o outro, não agravei

ninguém, não cultivei o dogma, não bajulei as “elites”, mas também não pactuei com a

“rua” embora a não desprezasse nem blasfemasse contra ela. Servi a minha terra com

carinho bairrista. Pretendi ser atencioso com todos, diligente na resolução dos

problemas resultantes das circunstâncias, protector constante dos humildes e defensor

incansável do património histórico e cultural.Foi através de uma nobre conduta de

homem sério e leal, que pude superar, ou anular, tanto a oposição dos adversários

políticos como as intrigas de alguns correligionários mesquinhos.

Logo à partida surgia uma situação de alto melindre.

Uma vez implantada, a República identificava-se com a luta contra a

Igreja.Todas as Ordens Religiosas seriam expulsas. Em Abril de 1911, Afonso Costa

determinava a Lei da Separação da Igreja e do Estado. Desde já, esclareço que, nesta

questão de anticlericalismo, não líamos todos pela mesma cartilha, é que havia

republicanos e … republicanos!

Pela minha parte, obviamente apoiado por outros republicanos, nomeadamente o

Domingos Pereira, estive sempre sensibilizado para a questão religiosa procurando,

dentro do possível, evitar ou diminuir alguns dos graves prejuízos que as leis

anticlericais de Lisboa provocavam no território bracarense.

Assim, a 11 de Outubro, recebi, cordialmente, o Arcebispo de Braga, D. Manuel

da Cunha, que me apresentou cumprimentos, retribuindo-lhe a cortesia no dia seguinte.

Igualmente, recebi uma comissão enviada pelo Cabido.De facto, e sem hipocrisias,

pretendíamos, aqui em Braga, criar um clima de entendimento.

Embora o Arcebispo tivesse enviado ao titular da Justiça um ofício, em que

manifestava a sua adesão à República, e tivesse aconselhado o clero bracarense, através

de uma pastoral, a adaptar-se à nova conjuntura política, a extinção das Ordens

Religiosas e Colégios onde estudavam centenas de estudantes, Colégio do Espírito

Santo, Colégio do Sagrado Coração de Maria, Seminário de Montariol, Colégio de S.

Tomás de Aquino e Colégio Inglês, estava em marcha.

Em face da forte oposição a esta medida governamental parti para Lisboa, a 20 de

Outubro, acompanhado do Administrador do Concelho, Domingos Pereira, a fim de,

entre outros assuntos a tratar, dialogarmos com o Governo acerca do decreto de

expulsão das referidas instituições.

Carlos Jaca 9

Numa altura em que o Governo Provisório anunciava a Lei da Separação da Igreja e do

Estado, receando-se em Lisboa a reacção do sector clerical de Braga, o jornal “O

Século” sabendo da nossa presença na capital, entrevistou-nos (24/10/1905) a esse

respeito.

Sobre essa questão, respondi ao jornalista que «o fanatismo de Braga não é bem o

que se imaginava; e quanto ao clero minhoto não se importa com isso, todos acatarão

bem a nova situação desde que os não prejudiquem economicamente». E, acrescentei,

que «o poder constituído seria exercido com toda a benevolência e com o mais intenso

respeito pelos sentimentos e pelos direitos de cada um».

A questão religiosa prosseguiu durante os anos de 1911, 1912 e 1913.

No entanto, muita gente reconhecia a necessidade de uma situação diferente, que

suavizasse as relações entre a República e a Igreja. Bernardino Machado, quando

Presidente do Ministério pela 1ª vez, 1914, (tutelava eu a pasta da Justiça), pronunciou-

se a favor de um entendimento e actuou nesse sentido.

Ainda a propósito da questão religiosa, logo no início do meu mandato, devo

referir o apoio e a protecção concedida ao Colégio da Regeneração, fundado em Braga

por Monsenhor Airosa.

Existe um manuscrito, que presumo ser de Monsenhor Airosa, ou pelo menos do

seu total conhecimento, onde se pode ler o seguinte: «Quando se proclamou a

República em Portugal, era então governador civil em Braga Manuel Monteiro. (…)

Nessa ocasião o Padre Director do Colégio foi entender-se com o snr.Governador Civil

e mostrando-lhe a necessidade que tinha das religiosas e o bom resultado moral e

social dos seus serviços – (Manuel Monteiro) não insistiu, calou-se como que fechou os

olhos; e elas foram ficando no Colégio. (…) Ao bondoso Coração de S. Ex.ª deve o

Colégio a sua conservação e progressos».

O apoio que dei ao Colégio não se limitava apenas ao aspecto institucional ou

moral, porquanto ao visitá-lo deixava sempre um donativo, muitas vezes do meu bolso e

o Colégio acabou…por não ser extinto.

Já não recordo bem, mas os franciscanos de Montariol, embora obrigados a

deixar o seu Colégio após a República, foram autorizados a levar uma boa parte dos

seus bens móveis.Diz o investigador bracarense, Eduardo de Oliveira, que «é bem

possível que aí tivesse havido a mão e o bom senso de Manuel Monteiro».

O período durante o qual exerci o cargo de Governador Civil não foram tempos

fáceis, e não o poderiam ser em tal conjuntura. Curiosamente, nem sempre eram os

Carlos Jaca 10

opositores ao regime a provocar e a complicar as situações, mas sim os próprios

republicanos e a tal ponto que, por duas vezes, cheguei a pedir a demissão do cargo.

A primeira sucedeu em Março de 1912, quando da tentativa de realização de uma

sindicância ao Administrador do Concelho, tendo, para o efeito, vindo a Braga o

Secretário do Ministro do Interior. Perante o facto, despropositado, e que tomei como

uma desconsideração, a sindicância não se realizou e, então, retirei o pedido de

demissão.

O segundo pedido de demissão sucedeu a 10 de Fevereiro de 1913,devido a uma

luta que travei contra a transferência do Arquivo Episcopal para Lisboa, o que se

acontecesse seria uma perda irreparável para a nossa cidade.

Júlio Dantas, encarregue de fazer o levantamento do acervo existente no Arquivo

do Cabido da Mitra da Sé Catedral, pretendia transferir o referido espólio para a Torre

do Tombo.

Este propósito pôs toda a cidade em polvorosa, provocando uma onda enorme de

adesão e protesto, republicanos, membros da Igreja, associações de comerciantes e

industriais, Governo Civil, apoiados por enorme movimento popular.

O caso chegou mesmo a ser levado ao Parlamento. Domingos Pereira, deputado

por Braga, em sessão de 7 de Fevereiro de 1913, enviou para a mesa uma representação

aprovada num comício em Braga contra a saída dos arquivos para Lisboa, afirmando

que a referida representação não ia assinada por todos os habitantes da cidade «porque

tal era materialmente impossível, mas a vontade d’elles está alli bem expressa».

O certo é que o Governo acabou por ter o bom senso de voltar atrás em tal

proposta, os arquivos continuaram em Braga, a minha demissão não foi aceite e a 17

de Março fui alvo de uma manifestação de apoio por parte do sector conservador da

cidade.

Precisamente dois meses depois fui exonerado do cargo de Governador Civil, por

via de ter sido nomeado Juiz do Supremo Tribunal Administrativo. A parti daí, e até ao

regresso definitivo a Braga em 1939,a minha vida iria sofrer profundas modificações.

Porém, apaixonado por tudo quanto dizia respeito à minha terra natal, e antes de

prosseguir o relato da minha passagem por Lisboa (1913-1916) e Egipto (1916-1940),

permitam-me, por uma questão da mais elementar justiça, recordar um bracarense a

quem a cidade muito deve – refiro-me ao Tenente – Coronel Albano Justino Lopes

Gonçalves a quem, nas cartas enviadas de Alexandria, sete das quais quando já se

encontrava à frente da Confraria do Bom Jesus, eu tratava por “Albaníssimo”.

Carlos Jaca 11

Lopes Gonçalves merece ser recordado porque deve considerar-se como um dos

grandes renovadores de Braga, cuja série costuma ser encabeçada pelo famoso

Arcebispo D. Diogo de Sousa.

No início de 1912, procurei Lopes Gonçalves e pedi-lhe que aceitasse a

presidência de uma comissão administrativa destinada a substituir a que vinha

administrando o Município desde o advento da República e que, já por mais de uma

vez, havia manifestado o empenho de ser substituída.

Aceitou, (presidiu à Câmara de Braga desde 6 de Dezembro de 1912 a 15 de

Julho de 1915) e eu acertei no homem preciso para dinamizar a vida da cidade e do

seu concelho, resolver-lhe os problemas e delinear-lhe um futuro que a caminho de

meaados do século se mostrasse digna da sua rica e milenar história.

Lopes Gonçalves tinha antecedentes, já havia dado sobejas provas de larga

capacidade empreendedora à frente de um município do Ultramar, visto que fora

Presidente da Câmara de Lourenço Marques o que lhe valeu o ser agraciado com o

hábito de Santiago, em Novembro de 1904. Note-se que logo ao terminar o seu curso,

na Escola do Exército, seguiu para Moçambique onde exerceu vários cargos públicos

sempre com a maior eficiência e distinção.

Além do mais, Lopes Gonçalves ficou com o cargo da Secretaria e Obras, sendo

aí, justamente, que se revelou o carácter inovador de um dos mais distintos edis da

cidade de Braga.

O seu bem elaborado programa de acção patenteia-se no curto período de pouco

mais de dois anos, em que imprimiu à cidade fisionomia condizente com o século XX:

foi a abertura da Avenida Central, novos arruamentos e ajardinamentos, a construção

do mercado, os transportes urbanos por tracção eléctrica, a conclusão das obras de

abastecimento de água à cidade, iniciadas ao tempo da presidência do Dr. Domingos

José Soares, modificação do sistema de iluminação pública tornando-o misto, pelo

emprego da luz eléctrica nos pontos mais centrais e importantes da cidade, e por gás

nos restantes. Também lançou um plano de construção de casas económicas a que deu

o nome de”bairro social”, mas apenas se concluíram duas, ao cimo da Rua do Taxa.

Obviamente, que o plano traçado para o projecto de Braga não era isento de

erros. Foi o caso do novo mercado, ou melhor, a sua localização, uma vez que não teve

em conta os dois belos edifícios, Câmara Municipal e Paço dos Arcebispos que

ornavam a velha Praça do Pão ou Campo de Touros.Diga-se, em abono da verdade, que

neste ponto Lopes Gonçalves terá falhado, mas a obra levantada por ele na cidade é de

Carlos Jaca 12

tal maneira valiosa que o erro da implantação desse mercado que, de resto era uma

construção funcional e não destituída de beleza, fica inteiramente absolvido.

Por último, uma faceta curiosa do “Albaníssimo” – o culto da música que o

acompanhou toda a sua vida.Poderei até afirmar, e prestando-lhe justiça, que Lopes

Gonçalves foi o percursor do Conservatório de Música de Braga, já que idealizou, em

1914, a criação de uma Escola Municipal de Música. Numa carta que escreveu ao

“Correio do Minho” e publicada em 24 de Julho de 1929, atribuía a essa escola o ensino

dos rudimentos de música e de solfejo dos instrumentos de corda e dos instrumentos

mais usuais das madeiras e dos metais.

Só muito mais tarde, já depois do meu falecimento, na década de sessenta se

concretizaria a escola de música em Braga com a fundação do Conservatório, graças à

acção da musicóloga D. Maria Adelina Caravana Rigaud de Sousa.

Julgo que, embora muito sinteticamente, foi justo e oportuno recordar este ilustre

bracarense cuja memória parece ter caído no esquecimento.

Juiz do Supremo Tribunal Administrativo.Ministro da Justiça.

Ministro do Fomento. Presidente da Câmara dos Deputados. Antes de me fixar em Lisboa, recebi dos meus conterrâneos provas de grande

estima e consideração e manifestações de carinho, que muito me sensibilizaram. Aliás,

as minhas visitas pelos concelhos do Distrito eram sempre festivas e geralmente

rodeadas de apoios de simpatia.

Recordo o banquete de despedida realizado a 13 de Julho no Teatro de S.

Geraldo, contando com mais de duzentas pessoas, entre as quais um representante do

Dr. Afonso Costa, chefe do Partido Republicano, o partido dominante da 1ª República.

Nesta confraternização, entre os muitos elogios, tocou-me, particularmente, a

nota bairrista dada por Lopes Gonçalves, o “Albaníssimo,” quando a determinada altura

do seu discurso, afirmou: «Perdemos um governador civil excelente, que era a honra

da República, mas lucramos com o advogado junto da capital na defesa do

progresso desta cidade».

Já agora, e por achar curioso, reproduzo um apontamento publicado no jornal de

Vieira do Minho, “A Cabreira” (20 / 7 / 1913), comentando o meu processo de

Governador: «com firmeza, calma, decisão e energia – com o melhor dos sorrisos a

Carlos Jaca 13

bailar-lhe nos lábios, muito delicado, muito atencioso – sempre prevenido – de pé atrás

contra a manha hipócrita de uns e os arranjos demagógicos de outros».

Colocado em Lisboa como Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, não

tardou que, ainda nesse mesmo ano, tivesse sido eleito deputado por Barcelos nas

eleições suplementares.

Para além das funções parlamentares, a partir de Fevereiro do ano seguinte,

passei a desempenhar o cargo de titular da Justiça no Gabinete de Bernardino

Machado, não havendo incompatibilidade, uma vez que, segundo a Constituição da 1ª

República, era permitida a acumulação de funções parlamentares com funções

governativas.

A nova modalidade de constituição do Gabinete obrigou a procurar nas massas

partidárias elementos conciliadores, mas que fossem conciliáveis também. Todavia,

tornou-se impossível, porquanto os partidos da Conjunção Republicana (unionista e

evolucionista), ressentidos do predomínio do nosso partido, recusaram colaborar num

Ministério com participação interpartidária que implicaria o regresso de elementos

democráticos ao Poder. Contudo, o novo Gabinete ficava definitivamente constituído a

9 de Fevereiro

Com a Presidência, Bernardino Machado chamou a si a pasta do Interior e

interinamente a dos Negócios Estrangeiros. As restantes distribuíram-se por quatro

extrapartidários e por três democráticos em que me incluía eu, sobraçando a já referida

pasta da Justiça.

Damião Peres, um dos maiores historiadores portugueses, afirma que de todos os

componentes do Gabinete «se podia dizer serem intelectualmente e profissionalmente

assinaláveis. Manuel Monteiro, historiador de arte românica portuguesa, era um

considerado jurista, que, já sendo Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, viria a sê-

lo nos Tribunais Internacionais do Egipto».

No dia seguinte à posse, a 10 de Fevereiro, o Gabinete fazia a apresentação

parlamentar, tendo Bernardino Machado, Presidente do Ministério, declarado ser

intenção do Governo promover quantas medidas fossem necessárias à acalmia dos

espíritos, e entre elas, como primeira, a promulgação de uma lei de amnistia

beneficiadora dos acusados de crimes políticos contra o regime.

O esboçado programa ministerial incluía também a revisão da Lei da

Separação, «mantendo a supremacia do poder civil, mas também os direitos

Carlos Jaca 14

invioláveis das crenças religiosas», e a reforma do estatuto das classes laboriosas.Era

um programa de pacificação, que por um lado procurava estabelecer um clima de

convivência com os adversários do regime, e por outro, atenuar o antagonismo

manifesto com o sindicalismo operário.

De facto, desde logo, as atenções do Gabinete se voltaram para o problema

reputado mais urgente, o da amnistia. Assim, em 19 de Fevereiro, como Ministro da

Justiça apresentei na Câmara dos Deputados, em nome do Governo, a respectiva

proposta de lei.

Embora acaloradamente discutida por numerosos oradores, a proposta passou a

lei com inusitada celeridade. Imediatamente promulgada pelo Presidente da República,

a lei amnistiadora tornou-se executiva em 22 tendo sido publicada em suplemento do

Diário do Governo do dia 21, no desejo ministerial de antecipar o mais possível, mesmo

só por algumas horas, a libertação dos presos políticos.

A revisão à Lei de Separação da Igreja e do Estado iria, finalmente, possibilitar a

reabertura de vários templos e o regresso ao múnus episcopal de vários bispos e

sacerdotes emigrados desde 1910, como era o caso do Bispo do Porto, D. António

Barroso e do Patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo.

Considere-se, ainda, a legislação no sentido de fomentar prédios de renda

económica, liberalização das associações de classe, contratos colectivos de trabalho

proposta do deputado socialista Manuel José da Silva e o ensaio de uma reforma do

ensino primário (8 de Junho), quinze dias antes da minha demissão.

Efectivamente, exerci o cargo de Ministro da Justiça, apenas, entre 9 de

Fevereiro e 22 de Junho de 1914.

A discordância com Bernardino Machado esteve na origem do meu pedido de

demissão.

O caso era o seguinte: tratava-se da concessão de direitos de instalação de uma

central hidroeléctrica nas Portas de Ródão a um grupo de quatro engenheiros, do qual

fazia parte António Maria da Silva, destacado vulto do partido democrático. A

concessão tinha sido atribuída em 28 de Março de 1914.

Em meados de Junho levantou-se contra ele grande campanha, ao abrigo do

art.º21 da Constituição nos termos da qual «deputados ou senadores não podiam fazer

parte de administrações de empresas ou sociedades constituídas por contratos ou

concessão especial do Estado ou que hajam deste privilégio» … O ataque era sobretudo

contra o partido democrático.

Carlos Jaca 15

Na Câmara dos Deputados a discussão foi acirrada. António Maria da Silva

chamou canalha a um deputado, e este, por sua vez, chamou-lhe tolerado o que levou o

deputado democrático a tentar tirar desforço! As galerias intervieram na contenda e

deram morras ao Afonso Costa. Nos Passos Perdidos houve bofetões. Toda a gente

andava armada.

Francamente esta não era a minha “guerra,”por isso não tardaria a abandoná-la

em breve e definitivamente.

Em 23 de Junho Bernardino Machado formava novo Governo com os ministros

do anterior, excepto os três do partido democrático: eu, Tomás Cabreira e Aquiles

Gonçalves. A minha saída do Governo levou à organização de um jantar de homenagem

que se realizou, ao terminar as férias de Verão, em 29 de Setembro.

Antes de findar o ano de 1914, em 18 de Dezembro, talvez pelo meu bom

relacionamento e capacidade de diálogo quer com correligionários, quer com

adversários políticos, fui eleito Presidente da Câmara dos Deputados.

Entretanto, em Agosto eclodira a 1ª Grande Guerra Mundial.Era necessário

defender as colónias, militarmente das arremetidas alemãs e diplomaticamente das

arremetidas britânicas, alegando neste caso a secular aliança.

Interesse nacional, interesse colonial e interesse republicano apontavam para a

intervenção na guerra ao lado dos Aliados. Neste aspecto, nós, os Democráticos, e os

Evolucionistas estávamos de acordo. Já os Unionistas, e com eles muitos dos

monárquicos e clericais, pensavam o contrário ou, pelo menos, queriam esperar por uma

melhor compreensão do desenlace do conflito.

De qualquer modo, os militares passaram a desempenhar um importante papel

na vida política portuguesa.

Foi assim que no mês seguinte ao da minha eleição para Presidente da Câmara

dos Deputados, ou mais precisamente a 28 de Janeiro de 1915, o Presidente da

República, Manuel de Arriaga resolveu intervir, realizando aquilo que se pode chamar

um autêntico golpe de Estado. Arriaga provoca a demissão do Governo e confia ao seu

amigo pessoal, General Pimenta de Castro, a Presidência, que acumula com a função

de Ministro da Guerra, e o encargo de organizar ministério. Pimenta de Castro entregou

sete das nove pastas a oficiais do exército e da marinha, facto sem precedentes.

Carlos Jaca 16

Era um golpe anticonstitucional desferido contra a 1ª República, com o

objectivo de afastar do Poder os partidos políticos republicanos que defendiam Portugal

na Guerra, ao lado das potências aliadas.

O novo Governo constituído à sombra da Presidência da República (Manuel de

Arriaga), precisava, para lograr os seus fins, de atingir o outro órgão de soberania que

era o Poder Legislativo.

A 20 de Fevereiro as eleições foram adiadas “sine die.” A 24, saía a nova lei

eleitoral, em que só a tenaz resistência dos outros ministros impediu Pimenta de Castro

de implantar o sufrágio universal, uma das suas ideias favoritas de inventor de sistemas

eleitorais. A 27 de Fevereiro, depois de receber uma manifestação de apoio por 600

oficiais, anunciou que o Congresso da República já não abriria na data prevista.

Apesar da proibição persistimos em reunir o Parlamento como estava marcado

para o dia 4 de Março. Em S. Bento fomos recebidos pela G. N. R. e quando, como

Presidente da Câmara dos Deputados pretendia entrar, o comandante impediu-me, bem

como o senador Bernardino Machado, o General Correia Barreto, então Presidente do

Senado e outros mais.

Na previsão do que iria acontecer, tinham os parlamentares recebido indicação

para seguir para o Palácio da Mitra, em Santo António do Tojal, antiga residência de

Verão do Patriarca de Lisboa e daí o nome.

Reunidos numa sala, que então servia de escola primária, foram tomadas várias

decisões, entre as quais, declarando o Ministério e o Poder Executivo fora da lei,

negada validade a quaisquer actos ditatoriais do Governo, incitando todos os cidadãos

portugueses, e, especialmente, os funcionários públicos, a não cumprirem alguns dos

decretos, considerando-os nulos e sem efeito algum.

Mesmo sabendo, antecipadamente, ser impotente para fazer prevalecer os

valores que defendia, não prescindi de deixar o meu protesto como testemunho de

dignidade.

Este acto, único nos nossos anais parlamentares, teve um eco enorme no país, e

contribuiu poderosamente para mobilizar as forças políticas e populares contra os

objectivos ditatoriais do Governo.Como era mais que previsível, fui destituído do cargo

de Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, ao mesmo tempo que, eu próprio, requeria

ao Juízo Criminal procedimento judicial contra o Presidente da República, o Presidente

do Ministério e mais quantos, quer como mandantes, quer como executantes, tomaram

parte activa neste acto de violação de um dos poderes do Estado.

Carlos Jaca 17

Estas pendências, porém, não se haviam de resolver pela via normal do Poder

Judicial, porquanto não havia neste caso, independência de poderes. Assim, a partir de 4

de Março já não era possível evitar a prova de força entre os poderes executivo e

legislativo. A solução do conflito entre os órgãos de soberania seria encontrada ao fim

de dois meses por via revolucionária – refiro-me ao levantamento militar e popular de

14 de Maio de 1915 que derrubou o Governo de Pimenta de Castro e levou à renúncia o

Presidente da República, substituído provisoriamente por Teófilo Braga.

O Parlamento reabriu de novo a 27 de Maio e eu fui reintegrado no meu lugar de

Juiz no Supremo Tribunal Administrativo, preparado, eventualmente, para outras

funções no aparelho do Estado o que, de facto, veio a acontecer. Em princípio chegou a

constar que seria nomeado futuro embaixador no Brasil, mas passei a desempenhar o

cargo de Ministro do Fomento, tendo sido também, a 13 de Junho, eleito deputado,

agora, pelo Círculo de Braga.

O cargo da pasta do Fomento, que exerci durante cerca de meio ano, abrangia,

ao tempo, múltiplas atribuições que, mais tarde, passaram a ser distribuídas por

diferentes e novos ministérios: Agricultura, Comércio e Indústria, Comunicações

Obras Públicas e Trabalho.

Logo de início, três ordens de problemas me preocuparam especialmente e

mereceram a minha atenção: o abastecimento; procurando diminuir a carestia de

géneros de primeira necessidade, era tempo de guerra; melhoria das condições de

trabalho, nomeadamente pela fixação das 8 horas em várias indústrias, a proibição do

trabalho nocturno das mulheres nas fábricas e regulamentação de desastres de trabalho

no fomento, a melhoria das termas e centros de vilegiatura. Este último sector já fora

objecto do meu interesse, ainda antes da implantação da República e quando

Governador Civil de Braga.

Na situação de Ministro promovi a ampliação das termas de Melgaço e da Curia,

a construção de arruamentos nas Taipas, a ligação ferroviária de Vidago a Chaves, etc.

Assim, talvez possa dizer que fui um pioneiro do termalismo em Portugal

.Igualmente, promovi melhoramentos em Ponte de Lima, o abastecimento de água à

cidade de Évora, a construção da nova variante da estrada municipal de Guimarães à

Penha, a abertura da estação postal em Arco de Baúlhe, etc.

Durante a minha administração, chamei para assessor em questões florestais o

engenheiro agrónomo – silvicultor Tude de Sousa, que desde 1904 era o responsável

florestal da Serra do Gerês, e nessa qualidade tinha continuado os estudos que eu

Carlos Jaca 18

iniciara ainda estudante com meu primo Rocha Peixoto. Pouco tempo antes de

abandonar o cargo ministerial, fiz publicar no Diário do Governo um decreto sobre a

arborização do Sameiro e Falperra, o mesmo aconselhando para o Bom Jesus.

Desta minha passagem pelo Governo refiro, ainda, a criação da estação de

vilegiatura do Estoril que, mais tarde, a construção da linha de caminho de ferro veio

transformar numa zona de grande implantação turística, tanto a nível nacional como

internacional.

Foi efémera a minha carreira como homem público.

À medida que se aproximava o final do ano de 1915 não tinha dúvidas de que a

minha carreira política estava por pouco. Sentia o adensar das nuvens sobre o horizonte

da vida social e económica. O levantamento popular contra a carestia de vida e a falta

de géneros ia em crescendo, reagindo cada vez mais violentamente contra o

açambarcamento praticado pelos endinheirados.

Com o início da Guerra na Europa, os interesses populares foram postergados

em favor dos interesses militaristas e colonialistas. Havia mobilizações para fazer

marchar para África contingentes destinados a oporem-se aos ataques alemães, ao

mesmo tempo que se preparava a intervenção portuguesa nas frentes de guerra na

Europa. A política imperialista e militarista não interessava ao povo português, mas

apenas a certas camadas da burguesia estreitamente ligadas à política económica e

diplomática das Grandes Potências.

A 18 de Novembro, o Presidente do Ministério, José de Castro, apresentou a

demissão do seu Governo, tendo sido, de imediato, substituído por Afonso Costa, que

conservou alguns dos ministérios anteriores (Justiça, Estrangeiros, Guerra e Colónias) e

substituindo os restantes, entre eles, o meu, o do Fomento. Esta pasta foi ocupada pelo

Eng.º António Maria da Silva, o “tal”, que já no ano anterior dera motivos à minha

demissão de Ministro da Justiça, por via de ser declarada a inconstitucionalidade do, já

referido, decreto de concessão de direitos de instalação de uma central hidroeléctrica

nas Portas de Ródão. O Eng.º António Maria da Silva veio a ser Presidente do

Ministério por seis vezes, entre 1920 e 1926, e numa delas durante oito dias, 30 de

Novembro a 7 de Dezembro de 1922. Nesses anos, eu já estava em Alexandria mas, de

qualquer modo, nunca me sentiria, decididamente, a ser comparsa em “filmes” de “Far

– West.”

Carlos Jaca 19

Cerca de um mês depois de ter sido exonerado do cargo de Ministro do Fomento

fui nomeado Presidente da Câmara dos Deputados, da qual viria a pedir a demissão um

ano depois.Politicamente, para mim, era o “fim da linha”.

Haja em atenção que o próprio estilo da Primeira República assentava no culto

da personalidade individualista. Os partidos políticos designavam-se mais pelos nomes

dos seus chefes do que pelo ideário e objectivos dos seus programas.Eram os

“afonsistas”, os “almeidistas”, os “camachistas”.

Na verdade, eu era um disciplinado partidário de Afonso Costa, que chefiava o

Partido Republicano, só que Afonso Costa não era só ele, era também toda a camarilha

que o rodeava e que actuava em seu nome, nomeadamente, o irmão Artur Costa.

Acontece que, exactamente, em Janeiro de 1916 um jornal de Lisboa (“A

Capital”, 26 – 1 – 1916) dava a seguinte notícia comentada, sobre a Câmara dos

Deputados:

«Não assistiu hoje à sessão o Sr. Dr. Manuel Monteiro, ilustre presidente da

Câmara dos Deputados.

Pelos seus correligionários, o Sr. Dr. Manuel foi arguido de incorrecto e de

desrespeitador do regimento.

O Sr. Manuel Monteiro não é o presidente que convenha à maioria. Substituam-

no pelo Sr. Artur Costa. Este sim… deve ser pau para toda a obra» …

Nem o meu temperamento, nem a minha formação, me predispunham para os

jogos da luta pela conquista do poder que então se travavam. Acomodava-me melhor ao

ambiente de estudo e ponderação. Por isso… preparei com dignidade a minha discreta

retirada, e a 8 de Novembro comuniquei à Câmara dos Deputados a renúncia do meu

mandato por ter de me ausentar do país «a fim de desempenhar, em comissão de

serviço, o cargo de Juiz nos Tribunais Internacionais do Egipto», para o qual já fora

nomeado

Em relação ao ano de 1916 posso, ainda, referir que em 23 de Março fui

admitido como sócio correspondente da Academia Real das Ciências, cuja

candidatura foi apresentada por Henrique Lopes de Mendonça, autor de “A

Portuguesa”, hoje Hino Nacional, cuja música é de Alfredo Keil

No mês seguinte fui homenageado no Grande Hotel de Itália, no Monte Estoril,

promovido por dirigentes da Associação Industrial, da Associação Comercial e da

União da Agricultura, Comércio e Indústria e onde estiveram presentes individualidades

da alta finança.

Carlos Jaca 20

Não foi fácil convencerem-me a aceitar tal manifestação de apoio. Ao mesmo

tempo que me homenageavam por algumas providências que porventura os tivessem

beneficiado, estes homens pensariam, por certo, valer-se do meu prestígio político para

me lançar em novas funções públicas.

Aos brindes agradeci a festa, mas sublinhei que não via motivo nem razão para

ela, pois no Ministério não fizera mais que cumprir o meu dever.

Juiz dos Tribunais Mistos de Massurá e Alexandria (Egipto).

Presidente do Tribunal Internacional de Alexandria (predecessor do

Tribunal Internacional de Haia).

Parti para o Egipto a 11 de Novembro, fazendo a viagem através da Espanha na

companhia de Columbano Bordalo Pinheiro, que me pintou o retrato, e João Barreira.

Na França visitei a Provença e cheguei ao Egipto (Cairo) em Dezembro, instalando-me

em Massurá onde me mantive até 1921, aí exercendo a magistratura judicial nos

Tribunais Mistos do Egipto como representante de Portugal.Em Março do referido

ano sou transferido para Alexandria, continuando como Juiz do Tribunal

Internacional. De 1930 a 1940, data da minha aposentação, fui Presidente do

Tribunal Internacional, eleito pelos meus pares onde também era Juiz o consagrado

jurista Prof. Machado Vilela, especialista em direito internacional privado e que tinha

sido professor de Oliveira Salazar em Coimbra. O Município de Vila Verde, muito justa

e reconhecidamente, ergueu-lhe uma estátua em sua homenagem no jardim ao lado do

Tribunal da Comarca.

Ausente no Egipto durante 24 anos e embora sempre atento e interessado em

tudo o que se passava no meu país, que todos os anos visitava, jamais voltaria a

desempenhar qualquer função política.

Em 1923, numa situação de crise política, (aliás estas situações eram “normais”)

o meu nome voltou às parangonas dos jornais (“Diário de Lisboa”, 28-6-1923)

lembrado como eventual candidato à Presidência da República. Jugo ter-se tratado de

uma lembrança de amigos de Lisboa e Porto, a que eu era completamente estranho.

Já agora posso referir mais duas situações, depois do meu regresso definitivo a

Portugal.Embora mantivesse a minha coerência política afastei-me sempre do

intervencionismo activo e da promiscuidade dos velhos políticos.

Carlos Jaca 21

Acontece que em 1945, no final da 2ª Grande Guerra e na sequência da derrota

dos exércitos nazi-fascistas que haviam devastado a Europa, em Portugal surge em

Outubro o MUD, Movimento de Unidade Democrática.

Em Braga ia realizar-se um comício de apoio às reivindicações de eleições

livres.Desse comício um dos promotores era o, então, jovem Victor de

Sá.Demonstrando, já nessa altura, inegáveis qualidades que o viriam a projectar como

grande referência no

panorama político e

cultural português, foi a este

jovem bracarense que eu

enviei de Lisboa um

telegrama de adesão e apoio à

iniciativa. Não estive

presente, mas também não

me mantive indiferente.

Três anos depois, em

1948, ao ser proposta a

candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, candidatura

oposicionista, os políticos locais do meu tempo não acreditavam que eu viesse a ter

intervenção no processo. Depois de analisar a situação com outros amigos, não hesitei

em subscrever o processo de propositura a entregar no Supremo Tribunal

Administrativo.

A este propósito, devo dizer que nunca pus em causa a minha fé nos princípios

da República, antes procurei servi-la sempre, e através dela servir Braga, minha terra

natal.Porém menos sólida terá sido a minha fé nos homens políticos do meu tempo e

mais, do meu partido.

A cultura, a contemplação estética dos testemunhos artísticos, a investigação

histórica, voltaram a preencher as minhas disponibilidades de espírito e as necessidades

de comunicação humana.

Do que foi, durante quase um quarto de século, em terras egípcias, em reputação

pessoal e prestígio para o país a minha acção, existem vários testemunhos. Destes,

permitam-me, apenas, uma breve referência em minha memória, do Prof., Machado

Vilela: «Onde quer que se manifestasse a sua actividade, o Dr. Manuel Monteiro nunca

deixava de revelar o seu temperamento e a sua intenção de verdadeiro artista. E essa

Carlos Jaca 22

intuição conduziria naturalmente o seu espírito a um conhecimento e a uma penetração

dos factos e das ideias que lhe facilitavam a percepção daquela certeza e daquela

verdade que devem constituir o fundo de toda a certeza judicial, a qual por isso mesmo

se chama veredictum e é tida como expressão da verdade, o que bem traduz o

conhecido adágio jurídico – res judicata pro veritate habetur (coisa julgada deve ser

tida por verdade) … e neste delicado trabalho de investigação e de crítica para a

qualificação precisa dos factos submetidos à apreciação do juiz e para a determinação

rigorosa da regra de direito que os rege, muito auxílio pode prestar a intuição do

verdadeiro significado dos factos e do exacto sentido das leis. E essa intuição tinha em

grau elevado o juiz Manuel Monteiro, o que fez com que ele fosse considerado no

Egipto, não só um juiz amado, mas um juiz seguro».

De facto, diziam, que a minha intuição de julgador faziam de mim um juiz

superiormente seguro e possuidor das grandes qualidades que inspiravam confiança aos

litigantes e firmavam o prestígio dos magistrados.

Durante os largos anos que vivi no Próximo Oriente, e apesar do trabalho e

responsabilidade que o cargo exigia, nunca deixei de manter e aperfeiçoar a minha

vocação de crítico e historiador da arte, bem como ainda arranjar tempo e disposição

para o convívio espiritual com os meus numerosos amigos que se espalhavam pelo país

e por terras do exílio.

Uma dessas relações de amizade, especialmente significativa, foi a que mantive

com Afonso Costa. Conhecia-o bem, nunca deixando de apreciar os seus méritos, a

profunda amizade e a elevada consideração e apreço com que me distinguia.

Correspondi-me com muitos homens de letras, entre os quais, Guerra Junqueiro,

Afonso Lopes Vieira, João Penha, Leonardo Coimbra, Malheiro Dias, Duarte Leite,

Antero de Figueiredo, João de Barros, Ferreira de Castro, João de Araújo Correia,

Joaquim Manso, Alfredo Pimenta, Sousa Costa, Feliciano Ramos e Júlio Brandão.

Historiadores e críticos de arte, como: João Barreira, Joaquim Vasconcelos, José

Figueiredo, Diogo de Macedo, Alberto Feio, Reinaldo dos Santos, Aarão de Lacerda,

Mário Cardoso, Alberto Vieira Braga e Artur Magalhães Bastos.

Como não podia deixar de ser, políticos.Para além do Afonso Costa, já referido,

Bernardino Machado, o meu conterrâneo Domingos Pereira, Alfredo Magalhães, Nuno

Simões, José Relvas, João Chagas, Bazílio Teles, João Soares (pai de Mário Soares) e

António Luís Gomes.

Carlos Jaca 23

O Regresso a Braga. No ano de 1939, vim do Egipto passar as minhas férias em Braga, como tinha

feito quase todos os anos. Nao vim, porém, directamente para Portugal, detendo-me

alguns dias no sul de França, para fazer uma cura de águas minerais em La Preste,

procurando aí tratamento para um sofrimento que desde há muito me vinha molestando.

Contudo, não só não encontrei os alívios que esperava, mas contraí naquela

estância de águas uma colibacilose tão grave, que pôs a minha vida em perigo.

Entretanto, surgia a 2ª Guerra Mundial, os meus velhos sofrimentos

agravaram-se com aquela doença e, logo que foi possível, recolhi ao Hospital do Carmo,

no Porto, onde me submeti a uma delicada operação de alta cirurgia e onde estive

internado de Janeiro a Maio de 1940.

Como a guerra continuasse, e de Alexandria reclamassem a minha presença no

Tribunal Internacional daquela cidade, do qual era Presidente, e eu mesmo desejasse lá

voltar para completar a minha carreira, pela promoção ao Tribunal de Apelação, que

também funcionava como Tribunal de Correcção, e a hora que passava era uma hora de

grandes incertezas, decidi fazer o meu testamento antes de partir.

A seguir procurei preparar a minha viagem de regresso ao Egipto, tendo ido

nesse intuito a Vichy, onde então se encontrava o governo francês, por a cidade de Paris

estar ocupada pelos exércitos alemães, para o efeito de pedir, por intermédio do

Ministro de Portugal junto daquele governo, as permissões necessárias para embarcar

em França e seguir para o Egipto pelo Mediterrâneo.

Aquele Ministro, que era oficial da Armada, Humberto da Gama Ochôa, disse

que poderia conseguir todas as licenças necessárias para o meu embarque e para a

minha viagem, mas que não me deixava partir, pois a guerra no Mediterrâneo, tanto

guerra de superfície como guerra aérea e submarina, e a guerra terrestre tanto na Síria

como na Palestina, por onde teria de passar para entrar no Egipto, não me deixariam lá

chegar

Obedeci, regressei a Portugal, pedi a minha exoneração das Jurisdições Mistas e

a 14 de Novembro de 1940 fui aposentado pelo Governo egípcio. Assim, fechei a

minha carreira naquele país, a qual teve, como já referi, a duração de 24 anos.

Em Portugal, e quase sempre em Braga, vivi os onze anos restantes da minha

vida, votado sempre, e até quase ao meu último momento, à minha grande paixão de

Carlos Jaca 24

romeiro, historiador e crítico de arte, sendo desse período alguns trabalhos que são

considerados dos mais notáveis.

Não obstante o nível atingido no desempenho de cargos políticos e judiciais, isso

constitui, apenas, uma pequena parte, e não a mais relevante, da minha vida.

Uma outra actividade me ocupava permanentemente nas horas de lazer e essa é

que estava em perfeita consonância com a minha vocação natural – foi a que dediquei

ao estudo dos monumentos medievais. Elaborar a história desses monumentos e

divulgar o seu sentido e o seu valor cultural foi a tarefa que me impus e dediquei com

persistência.

De qualquer modo abordar aqui esta grande paixão da minha vida, que foi a

faceta de Historiador e Crítico de Arte, não poderá ser senão de uma forma muito

breve, porquanto só a leitura da minha obra poderá oferecer-vos uma visão mais

completa, recorrendo para isso, fundamentalmente, aos “Dispersos” (1980) que, devido

ao seu alto valor, merecerão, a seu tempo, referência especial.

O Historiador e o Crítico de Arte. Os primeiros passos no domínio da etnografia e arqueologia dei-os pela mão de

meu primo, António Augusto Rocha Peixoto, grande etnógrafo poveiro e que veio a

falecer, prematuramente, em 1909, aos 43 anos de idade Treze anos mais novo,

acompanhei-o a pé nas suas digressões por serras e vales do Noroeste, iniciando-me na

recolha e dados de observação.

Já estava em Coimbra quando, nas férias da Páscoa e nas férias grandes de 1902,

jornadeámos em visita de estudo a Castro Laboreiro, à Serra do Extremo, ao Soajo,

Lindoso e Serra Amarela. Muitas vezes, a pé, calcorreámos as freguesias ao redor da

Póvoa de Varzim, para apreciar os trabalhos nos campos e a vida dos pescadores.

Madrugávamos para nos dirigirmos a Rates, a Rio Mau, ao castro de Terroso, a Vila

do Conde, a Azurara, a Vairão…Guiado pelo saber seguro de meu primo fui-me

inclinando, gradualmente, mais para os assuntos da Arte, procurando que os meus

trabalhos fossem de leitura agradável e acessível e, ao mesmo tempo, sensibilizar as

pessoas para a defesa dos monumentos antigos, tantas vezes ameaçados de ruína quer

pelo tempo, quer pela incúria ou ganância dos homens.

Assim, logo em 1905, no início da minha vida profissional, aqui em Braga, reagi

veementemente quando tive conhecimento do projecto de demolição do Castelo, velho

Carlos Jaca 25

monumento que D. Dinis mandara construir em 1300 e que desde esse tempo, com 600

anos de história sempre ali se mantivera.

O decreto, datado de 1875, previa a alienação pelo Governo dos terrenos das

praças de guerra que já não fossem necessárias para a defesa. Dizia o Relatório: «Muito

mais vale para o futuro do País o proveito que há-de resultar para muitas terras de

poderem as municipalidades abrir boas ruas ou espaços largos e os particulares

levantarem importantes estabelecimentos, em lugares ocupados hoje por muralhas ou

castelos meio derrocados e de todo inúteis para a guerra».

No início de 1906, publiquei na revista coimbrã, “Arte e Vida”, o opúsculo

“Defesa de um Castelo Medieval”- depoimento de um combatente. Tratava-se,

obviamente, de defender com toda clareza e combatividade, o património artístico e

monumental de Braga. Iam demolir o Castelo, quando apenas precisava de quem o

libertasse das excrescências e o reabilitasse com um fácil restauro, porém, «num outro

país haveria empenho em o expurgar (o Castelo) das superfectações que o

mascaravam, reconduzindo-o tanto quanto possível à pureza originária.Mas, como

entre nós se caminha sempre pela inversa, já não seria para descontentar a sua

conservação em tal estado».

A verdade, porém, é que os edis da Câmara e seus acólitos reagiram

intempestivamente e a causa foi perdida. A pouco e pouco, Braga, graças ao camartelo

dos insensíveis governos locais, deixaria de ter história, de ter fisionomia

própria.Constou-me que este “filme,”agora de longa metragem, e com novos actores,

tem estado em “reposição,” em cópia nova e… a cores, obviamente! Adiante.

O Castelo começa a ser demolido a 16 de Setembro do mesmo ano, depois da

publicação do meu opúsculo e de muita polémica, tanto mais que, sendo eu um jovem

de 27 anos, ousara contrariar os planos de quem então tudo mandava em Braga.Perdera-

se também a oportunidade sobre a sua adaptação a um Museu, que fora a sugestão por

mim apresentada para o seu aproveitamento. O Castelo foi demolido, e em seu lugar

existe hoje a rua que lhe tomou o nome. Só a Torre de Menagem acabou por ser

poupada ao camartelo municipal, certamente graças ao meu alerta bem secundado, entre

outros, pelo genealogista bracarense Dr. José de Sousa Machado e o arqueólogo Albano

Belino.Neste ano de 1906, ainda dei à estampa nos “Serões”, publicação lisboeta, um

estudo subordinado à epígrafe “Castelos do Norte de Portugal” com o subtítulo de

“Como se organizava a defesa territorial do país durante a Idade Média”. Henrique

Lopes de Mendonça, na Academia Real das Ciências, saudou a referida publicação

Carlos Jaca 26

afirmando: «deixa no nosso espírito o pesar de que a um pequeno artigo de revista se

circunscrevesse o fruto de sábias investigações, utilíssimas à história».

Em Dezembro, admitindo, talvez, o reconhecimento de todo um trabalho que

vinha desenvolvendo, a Associação dos Arqueólogos Portugueses admitiu-me como

sócio correspondente.

Seria, porém, em 1908, com a monografia do Românico Português intitulada “S.

Pedro de Rates que eu conquistaria, dizem, a consagração definitiva, passando desde

então a ser considerado uma grande autoridade no domínio da arte românica em

Portugal – «Mais do que uma monografia que escalpeliza um monumento e o coloca no

seu verdadeiro tempo, longe das lendas e escritos produzidos por gente que não se

importava com o rigor histórico, “S. Pedro de Rates” é, também, devido à sua longa

introdução, a primeira súmula produzida entre nós sobre a arte românica em

Portugal».

No Verão de 1912, exercendo já o cargo de Governador Civil de Braga, promovi

e organizei uma Exposição de Arte Sacra montada no Paço Arquiepiscopal e interferi

no sentido de ser concedida uma avultada verba para obras da Biblioteca Pública.

Considere-se que, durante o largo período vivido no Egipto (24 anos) nunca

deixei, embora com menos frequência, de produzir alguns trabalhos, sendo desse tempo

os seguintes: “As nossas origens”, em “O Primeiro de Janeiro” (29 de Maio de 1924);

“Capela de D. Gonçalo Pereira: quem lhe acode?” (“Correio do Minho” – 3 de

Março de 1932); “A Catedral”( de Braga) – “Latina”, Agosto de 1935; “Dois artistas

inéditos do século de Quinhentos” “O Primeiro de Janeiro”, 15 e 19 de Fevereiro de

1936; “A escultura românica em Portugal: os tempos historiados da porta

principal da Sé de Braga”, onde são analisadas pormenorizadas composições

figurativas modeladas nas velhas pedras dos nossos monumentos antigos, como por

exemplo a decoração existente nas duas arquivoltas românicas do portal principal da Sé

de Braga (publicação de 1938).

São deste mesmo ano diversos artigos sobre o românico português, tendo por

fulcro a igreja de Cedofeita e a Sé Velha de Coimbra. Em 1939,publiquei uma das

minhas obras consideradas das mais notáveis, “S. Frutuoso: uma igreja moçárabe”.

A partir deste ano, isto é, após a fixação definitiva na minha cidade, apesar de

muitas vezes me encontrar adoentado, recomecei um labor intenso sobre temas de Arte,

quer em jornais, quer em revistas, quer preparando obras de maior fôlego, como a

Carlos Jaca 27

monumental, “Igrejas medievas do Porto”, publicada já depois do meu falecimento

(1954), com prefácio de Alberto Feio.

Em 1941,no nº 4 da “Revista de Guimarães”, apresentei uma compilação da

correspondência entre meu primo Rocha Peixoto e Alberto Sampaio,

“Correspondência Inédita de Alberto Sampaio (Alberto Sampaio e Rocha

Peixoto)”, aproveitando o ensejo para testemunhar o meu apreço por ambos,

salientando «as relações de Alberto Sampaio, que eu muito venerei, com Rocha Peixoto,

que eu muito amei». Apesar de ser muito mais novo do que Alberto Sampaio conhecia-o

bem e ambos colaborámos na “Revista de Guimarães” e na “Portugália”, onde

pontificavam Ricardo Severo e Rocha Peixoto, que era íntimo de Alberto Sampaio.

A propósito da “Revista de Guimarães”posso ainda dizer que, em 1948, aquela

prestigiada publicação divulgava o meu estudo, “O Românico Português”:

(SobrevivênciasVimaranenses), onde falo do antigo palácio real reconstruído pelos

arquitectos de Cluny no local do antigo mosteiro fundado por Mumadona nos começos

do século X. Neste estudo esclareço, também, a origem da pequena igreja de S. Miguel

do Castelo.

Neste mesmo ano, em Abril de 1949, fui relator da secção de Arte Pré –

Românica Peninsular, no Congresso Internacional de História de Arte realizado em

Lisboa.

Entretanto, ia-me ligando a outras iniciativas. Em 1944, publicava-se o primeiro

número da revista “Mínia” (órgão do Instituto Minhoto de Estudos Regionais), da

qual fui director e colaborador.Fui igualmente sócio fundador da “Liga da Defesa da

Região de Braga” e 1º Presidente do Rotary Club de Braga.

Já agora, não queria deixar de vos apresentar uma outra faceta da minha

actividade cultural, praticamente esquecida, talvez porque efémera – professor

Pouco depois de ter chegado do Egipto, anuí ao pedido do Dr. Egídio

Guimarães que eu conheci ainda criança, tinha onze anos, em casa de seu tio, o Dr.

João Amorim de quem eu era grande amigo e visitava em todas as férias na sua quinta

da Tomada, no Bom Jesus.

O Dr. Egídio Guimarães, que veio a ser ilustre Director da Biblioteca Pública e

Arquivo Distrital de Braga, e na altura, durante dois anos professor no Colégio de S.

Tomás de Aquino, fundado pelo Dr. Sérgio da Silva Pinto, convidou-me,

argumentando o meu muito saber no campo da Arte, a proferir uma série de lições a um

Carlos Jaca 28

público interessado.Após algumas hesitações, aceitei o convite devido às pessoas

intervenientes e aos objectivos pretendidos.

De facto, era uma boa oportunidade para dar ao público de Braga uma série de

lições de arte (de generalidades, dizia eu) que teriam o mérito de alertar alguns espíritos

mais inclinados ao assunto e que até ajudariam e contribuiriam para a defesa do

património em que sempre me empenhara.

As lições eram dadas no salão nobre do Grémio do Comércio, instalado por

cima da Confeitaria Ferreira Capa, na Rua dos Capelistas, ao sábado pelas 21,30 horas.

O público correspondeu, acorrendo a essas lições, enchendo sempre por

completo a grande sala.

A imprensa referiu-se largamente a este acontecimento cultural. Assim, o

“Correio do Minho” de 18 de Janeiro de 1942, noticiava: «No Grémio do Comércio,

iniciou-se ontem o curso de arte regido pelo Senhor Dr. Manuel Monteiro. O vasto

salão nobre do Grémio do Comercio foi pequeno para conter a escolhida assistência

que ali acorreu, ontem à noite, para ouvir a lição do distinto arqueólogo, Senhor Dr.

Manuel Monteiro. “Correio do Minho” ao afirmar que o facto ia assumir proporções

de verdadeiro acontecimento intelectual, não se enganou. Braga interessou-se duma

maneira invulgar pela iniciativa feliz do Centro de Artes e Letras do Colégio de S.

Tomaz de Aquino. A apresentação foi feita pelo ilustre Director da Biblioteca Pública,

Dr. Alberto Feio.

Recebido com uma prolongada e significativa salva de palmas, o Senhor Dr.

Manuel Monteiro começou por dizer que acedera ao convite de “dois jovens de

iniciativa fecunda e que se encontrava, por um lado, satisfeito por corresponder ao

interesse mostrado em o ouvir em singelas palestras sobre arte» …

Foram vinte lições magistrais, dizem, que se prolongaram pelos anos lectivos de

1942 e de 1942 – 43. Abrangeram desde a Pré – História, ao Egipto, à Mesopotâmia, à

Grécia, a Roma, à Arte Cristã da Idade Média, ao surto espectacular do Gótico, à

Renascença.

As lições eram sempre ilustradas com projecções, trazendo de casa assinaladas

as gravuras a projectar.

Porém, julgo ter sido este o único trabalho que se perdeu. Como não me servia

de qualquer texto, nem de notas, nem estando ainda, ao tempo, vulgarizada a gravação,

aquelas lições – conferências apenas deixaram um pouco de fermento entre os jovens de

então.

Carlos Jaca 29

A chegar ao fim da caminhada ainda publiquei dois trabalhos na “Bracara

Augusta”, a pedido do meu inesquecível amigo Dr. Sérgio da Silva Pinto.

No primeiro,“La Chanson de Roland no Românico Português” (1950),

interpreto a história figurada que se vê num capitel existente na Sé de Braga.Segundo

a minha leitura interpretativa, aceite sem a mínima discordância, «na maior das

arquivoltas medievais acham-se figurados três episódios do Roman de Renart, a

epopeia alegoricamente satírica de tão retumbante voga na Baixa Idade Média

Este facto é de uma importância singularmente reveladora quanto à origem dos

artistas a quem se deve a feitura da catedral metropolitana de Braga.

Dela se deduz com incontestável certeza que eram franceses, e, pela rigorosa e

racional contestação dos acontecimentos históricos, se achavam subordinados à

poderosa Ordem de Cluny sob cujos auspícios se formou o Condado Portucalense ao

qual forneceu os primeiros prelados – S. Geraldo e Maurício Burdino -, assim como as

colónias de monges para o povoamento dos mosteiros, então, reconstruídos, ou de novo

erguidos, além dos elementos para a sua organização eclesiástica e, consequentemente,

dos arquitectos para actualizar a expressão da sua fisionomia monumental».

Três meses antes de falecer era publicado o meu último trabalho, “Uma Obra

de Arte da Renascença”, onde alertava os meus conterrâneos para a situação

lamentável em que se encontrava o antigo coro da Sé de Braga.Construído entre 1570

e 1580, veio substituir um anterior coro medieval e que, por sua vez, foi substituído pelo

actual, quando no segundo quartel do século XVIII, quando o Cabido Primaz em “sede

vacante”, «acometido do delírio das grandezas, transformou a severa nave da Catedral

em salão de festas, um pouco à maneira italiana da época mandou fazer em 1738 novo

coro e novos órgãos, sendo estes executados por Fr. Simão Fontana da Galiza».

Acontece que o Prelado desfez-se do coro substituído, importante espécimen do

património artístico bracarense do século XVIII, jazendo agora «escalavrado, a

apodrecer e a ruir, num abandono confrangedor, na igreja do antigo Convento de

S. Francisco da suburbana freguesia de Real». Chamei a atenção para a edilidade

bracarense que, aliás, vinha manifestando grande sensibilidade para os problemas da

Cultura, no sentido da «remoção deste coro, como notável documento da arte

quinhentista, procedendo ao seu restauro e expondo-o para sempre num Museu, onde

dignamente salvaguardado, ficará ao alcance do estudo dos espíritos artistas e à

admiração carinhosa dos sentimentos estetas».

Carlos Jaca 30

Julgo que mantive um combate pela defesa do património até ao último dos

meus dias.

Morte. Testamento. Homenagem Ao aproximar-se o Natal de 1951, sentia que o fim estava próximo, via a tristeza

nos olhos dos amigos que ainda tinham coragem para me visitar. Os sofrimentos eram

constantes e as sufocações insistentes, mas se o físico denunciava já um fim doloroso

que se aproximava, a lucidez nunca me abandonou até aos últimos momentos, quando a

morte me veio buscar cerca das 22 horas do dia 18 de Janeiro de 1952, na Rua Nova de

Santa Cruz.

Referi ter feito testamento quando, em pleno período de guerra, reclamaram a

minha presença em Alexandria e, também, que as circunstâncias não me permitiram o

regresso ao Egipto.

Desse testamento, e para que conheçam melhor a minha personalidade, irei

divulgar algumas disposições naquilo que, discretamente, pode e deve ser revelado,

tendo sido testamenteiro o Dr. Machado Vilela que só o soube após o meu falecimento:

«Eu, Manuel Monteiro, adiante assinado, achando-me na posse plena das

faculdades mentais, resolvo fazer, por este meio, as disposições de última vontade.

Morro pobre, tendo granjeado, sempre, com o meu trabalho, o pão de cada dia, para

mim e para uma numerosa família fraterna que o destino e a afeição do sangue me

impuseram.No entanto conservei intacto, e até melhorando, o que herdei, procurando

perpetuar assim, com piedoso respeito, o nome e a memória dos meus maiores.Essa

minguada herança faz o objecto principal deste testamento. Como vim modesta e

obscuramente para o tumulto e para a luz da vida, também obscura e modestamente

quero entrar na treva e na paz do túmulo. Portanto, se falecer em Portugal, desejo que

o meu funeral seja simples, sem qualquer ostentação inútil, que só serve para lisonjear

a vaidade humana.Se no além, como diz o grande poeta, “memória desta vida se

consente,” apenas me vastam as lágrimas e as magoadas preces daqueles a quem fiz

bem e sentirem a minha falta» …

Dispus dos meus bens como melhor entendi fazê-lo, fechando o testamento com

as seguintes palavras:«Terminam assim as minhas disposições testamentárias, sentindo

Carlos Jaca 31

não possuir uma grande fortuna, para deixar todos os que viveram do meu amparo ao

abrigo da desventura, e ainda para melhorar as condições materiais e financeiras das

simpáticas instituições de beneficência da minha terra natal, a fim de lhes permitir uma

eficiência mais larga à sua obra ou acção altruísta de assistência. Procurei sempre

fazer o maior bem possível e evitar praticar o mal, pelo que desço à cova com a

tranquilidade na consciência, embora me atribuíssem por vezes factos cuja

responsabilidade não me cabe, porque nunca os consenti, nem os ordenei.No entanto,

se porventura alguém por mim se considerar ofendido, com o mais sincero

arrependimento lhe peço perdão, apagando da minha memória o gravame de uma

acusação. Despeço-me assim deste mundo e que no outro. Na mão de Deus, na sua mão

direita, descanse afinal meu coração. Braga, 19 de Outubro de 1940.Manuel

Monteiro».

Ao completar-se o primeiro aniversário do meu falecimento, a Câmara

Municipal de Braga promoveu-me uma homenagem, simples mas de grande

significado. Consistiu em três actos separados entre si, porém ligados ao pensamento

comum, de marcar tal efeméride nos fastos citadinos.

Foi celebrada uma missa de sufrágio na Igreja dos Terceiros, que estava cheia de

fiéis e com a presença de altas personalidades. Foi celebrante o Reverendo Padre João

Pinto da Silva, meu particular amigo e Director do Instituto do Fraião, da Congregação

do Espírito Santo, em cujo Colégio iniciara os meus estudos.

Após o acto religioso, na Rua Nova de Santa Cruz, na casa onde vivi e morri,

foi descerrada uma lápide em minha memória.

No local, o Presidente do Município, António Maria Santos da Cunha, apesar

de comungarmos ideias diferentes, num breve mas brilhante improviso, proferiu

algumas palavras de «saudade e gratidão, exaltando a figura prestigiosa do

homenageado, indelevelmente marcada no coração dos Bracarenses». Depois falou o

Padre João Pinto da Silva que descreveu as minhas actividades desde os bancos da

escola, passagem pelo Colégio do Espírito Santo, os tempos de Coimbra e como

homem público e investigador.

Carlos Jaca 32

Seguidamente a lápide, que estava coberta com a Bandeira Nacional, foi

descerrada pela minha sobrinha-neta, menina Ana

Maria da Rocha Peixoto.

A inscrição na lápide dizia o seguinte: NESTA CASA VIVEU E MORREU

O INSIGNE BRACARENSE

DR. MANUEL MONTEIRO EMINENTE HOMEM PÚBLICO

E MESTRE DE CRÍTICA E HISTÓRIA DE ARTE

HOMENAGEM DA CIDADE DE BRAGA

NO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DO SEU

FALECIMENTO

XVIII-I- MCMLIII

Ao fim da tarde, realizou-se uma sessão

solene no Salão Nobre dos Paços do Concelho.

A mesa que presidiu era constituída pelo Dr.

Cunha Matos, em representação do Governador Civil, minha irmã Etelvina Monteiro,

o Reverendo Cónego Dr. Martins Gonçalves, em representação de S. Ex.ª

Reverendíssima o Senhor Arcebispo Primaz, e os Drs. Machado Vilela e Alberto Feio.

Discursaram o Presidente da Câmara, que me havia visitado em casa pouco

tempo antes do meu falecimento, o Dr. Sérgio da Silva Pinto, o Dr. Alberto Feio e o

Professor Dr. Machado Vilela, encerrando a sessão o Governador Civil substituto Dr.

Cunha Matos.

Também o Rotary Club de Braga, do qual fui Presidente, como referi, me

recordou em variadíssimas ocasiões, quer em conferências, quer no nosso “Boletim.”

1ºCentenário do Nascimento. (1879 – 1979) Este meu “regresso,” motivado pelo “depoimento” que estou a fazer ao

suplemento “Cultura” do “Diário do Minho,” proporcionou-me a oportunidade de

saber que, felizmente, algumas pessoas e instituições não se esqueceram de mim,

enquanto outras, julgo, são insensíveis à cultura e “inoxidáveis,” ou “impermeáveis”

em relação à defesa do património, como por exemplo foi o tão badalado caso do

Castelo de Braga, em 1906…

Saúdo todas as pessoas, entidades e instituições que, de algum modo, estiveram

envolvidas na série de iniciativas comemorativas do 1º Centenário do meu nascimento,

Carlos Jaca 33

balizado entre 29 de Setembro de 1979 e 29 de Setembro de 1980, o ano “Manuel

Monteiro,” como “ouvi” chamar-lhe.Atendendo a que o meu nome e obra andavam

muito esquecidos, poderei mesmo falar em“renascimento,” porquanto foram

“desencantados” estudos, trabalhos, artigos, de que eu próprio já não me lembrava.

Logo na primeira reunião do Conselho de Gestão da Biblioteca Pública de

Braga, realizada em 15 de Setembro de 1978 foi proposto que, entre as actividades a

programar, se devia incluir a comemoração do centenário do meu nascimento, decisão

que não era de todo estranha, mas louvável, dado o prestígio dos seus responsáveis e,

ainda, o facto da minha livraria particular e espólio literário ser pertença da Instituição

bracarense.

Efectivamente, em 1956, a Biblioteca Pública de Braga adquiriu, por 90.000$00,

aos meus herdeiros, a

referida livraria,

constituída por cerca de

4000 livros e revistas,

incluindo centenas de

páginas manuscritas e

um bom arquivo

fotográfico, herdado de

Rocha Peixoto e, ainda,

por 50.000$00, o meu

retrato pintado por

Columbano.No ano seguinte, a 25 de Fevereiro, era inaugurada a “Sala Manuel

Monteiro.”

Dois meses depois da reunião do Conselho de Gestão da Biblioteca Pública de

Braga, era a Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural

– ASPA – que, a 17 de Novembro, alertava as chamadas “forças vivas” da cidade para o

dever de se comemorar com a maior dignidade e amplitude o meu

centenário.Efectivamente, naquela data, e com o referido objectivo, a ASPA enviava ao

Governador Civil de Braga, Presidente da Câmara Municipal, Reitor da Universidade

do Minho, Presidente da Associação Jurídica de Braga e Presidente do Rotary Club de

Braga um ofício-carta, juntamente com o meu “curriculum.”

Carlos Jaca 34

A iniciativa teve o acolhimento esperado delineando-se, desde logo, um

programa que, para além dos eventos comemorativos, deixasse documentação bastante

para conhecimento da minha vida e obra.

Sob este ponto de vista, notável foi a publicação de “Dispersos” e das “Notas

Bio-Bibliográficas.”

Os “Dispersos,” colectânea organizada pela ASPA e patrocinada pela

Assembleia Distrital de Braga, são constituídos por uma série de trabalhos nos campos

da Etnografia e da Arte, muitos deles esgotados ou dispersos (daí o título) pelas mais

variadas publicações, tanto jornais, como revistas de difícil acesso e que, desse modo,

facilmente cairiam no esquecimento.

Nos “Dispersos” estão incluídas as monografias e a minha colaboração em

várias revistas, contando quarenta e seis títulos, sendo trinta e dois relativos a assuntos

de arte.

Trata-se de um trabalho de grande envergadura, e paciência, a que se

propuseram o Dr. Henrique Barreto Nunes e o investigador e historiador de Arte,

Eduardo de Oliveira, ambos “umbilicalmente” ligados à ASPA.

A sua persistência levou-os, inclusivamente, a recolher artigos até em pequenos

e desconhecidos periódicos de Trás-os-Montes, além de que os meus estudos foram

publicados, na sua maior parte, em revistas da especialidade, e aí permaneceriam

inacessíveis à generalidade das pessoas.Tarefa de grande dedicação, sem a qual ficariam

para sempre ignorados alguns escritos que, hoje, estou, não sem alguma emoção, a

gostar de “rever” e “reler.”

Ao Dr. Henrique Barreto Nunes devo as “Notas Bio – Bibliográficas,” uma

publicação de indiscutível mérito ilustrada na capa com o meu retrato magistralmente

ilustrado por António Carneiro, e que teve o apoio e o interesse da Universidade do

Minho.Esta publicação, trabalho moroso e delicado «representa, porém, muitas horas

de leitura de livros e documentos, de pesquisa bibliográfica e de recolha de elementos».

Constituída por cerca de 40 páginas laboriosamente preparadas, coligindo os

seus dados sem olhar a canseiras, julgo que o Dr. Barreto Nunes terá pensado numa

dupla convergência: recordar as fases mais relevantes da minha obra e proporcionar a

“ferramenta”, a bússola orientadora, a todos aqueles que vierem a interessar-se por

qualquer aspecto da minha personalidade.

Carlos Jaca 35

Para além destas memoráveis publicações que, pelo seu significado e

objectivos marcam, em minha opinião, o ponto alto das iniciativas comemorativas,

todas as actividades programadas foram plena e brilhantemente cumpridas.

Assim, em 29 de Setembro de 1979, data do meu aniversário natalício,

iniciaram-se as comemorações no Instituto Monsenhor Airosa inaugurando-se a

exposição “Manuel Monteiro e Monsenhor Airosa”, tendo sido palestrante o Dr.

Costa Lopes numa cerimónia alusiva ao acontecimento.

A 12 de Dezembro o Dr. José Ferreira Salgado, por iniciativa da Câmara

Municipal, proferiu uma conferência abordando a minha faceta de historiador de arte.

A Universidade do Minho divulgava o programa das comemorações a efectuar

em 1979-1980, e de que constaria a organização de uma exposição bio-biblio-

iconográfica, a publicação de uma bio-bibliografia, a que já me referi, a publicação

do catálogo da minha livraria e uma conferência sobre a minha actividade como

intelectual e político.

Foi, precisamente, a 16 de Junho de 1980, com a conferência intitulada “Manuel

Monteiro, ou a República inviável” (Braga no seu tempo), proferida pelo Dr. Victor

de Sá, que a Universidade do Minho e a Biblioteca Municipal iniciaram as

comemorações do centenário do meu nascimento.Foi, também cunhada uma medalha

com a minha efígie, cuja execução pertenceu ao arquitecto Ilídio Fontes.

Também o Professor Ferreira de Almeida pronunciou uma brilhante

conferência em sessão solene na Câmara Municipal.

Finalmente, a 29 de Setembro, seria inaugurada uma exposição sobre a minha

vida e obra, organizada pela Casa Museu Nogueira da Silva.

E aqui dou por findo o “meu depoimento.” Bem-haja a todos aqueles que muito

têm contribuído para que a minha memória e obra permaneçam vivas e activas na

cidade onde nasci e que tanto amei.

Bibliografia consultada

Cardoso, José – «Perfis de ilustres bracarenses» – Quem foi Manuel Monteiro.

Braga, APPACDM, 1994.

Garibáldi, A. – «Elogio Académico do Dr. Manuel Monteiro». Edições

Península. Porto, 1953.

Gomes, Joaquim da Silva – «Antologia de Bracarenses Ilustres». Braga, 2004.

Carlos Jaca 36

Guimarães, Egídio Amorim – «Sete Cartas de Alexandria». Uma trilogia:

Manuel Monteiro, Albano Justino Lopes Gonçalves e Braga.Separata de «Bracara

Augusta». Vol.XL

Homenagem ao Dr. Manuel Monteiro no 1º aniversário do seu passamento

(discursos de A. M. Santos da Cunha, Sérgio S. Pinto e Machado Vilela). «Bracara

Augusta». Braga, 4 (4) Ago. 1953.

Malheiro, A. Ménice – «Braga Contemporânea». Vila Nova de Famalicão,

1933.

Mendonça, Aníbal – «Folhas que reverdecem» (Crónicas de Braga) – «O Dr.

Manuel Monteiro». Livraria Cruz, 1957.

Monteiro, Manuel – «Dispersos, Inéditos e Cartas» – Artigos em publicações

periódicas. Monografias. Prefácio de Egídio Amorim Guimarães. Recolha, Organização

de textos e Bibliografia por Henrique M. Barreto Nunes. Assembleia Distrital de

Braga.Edição da ASPA, 1980.

Nunes, Henrique Barreto – «Manuel Monteiro». Notas Bio-Bibliográficas.

Universidade do Minho / Biblioteca Pública de Braga., 1980.

Oliveira, Eduardo Pires de – «A Freguesia de São Victor-Braga». Junta de

Freguesia de S. Victor. Braga, 2001.

Peres, Damião – «História de Portugal». Edição monumental Barcelos,

Suplemento. Portucalense Editora. MCMLIV.

Rego, Raul – «História da República». Vols. II e III. Prefácio de Mário Soares.

Círculo de Leitores, 1986.

Sá, M. Etelvina Nunes de – «Um pouco de História da Escola: Mudança de

Patrono». Objectivo: homenagear um ilustre bracarense – Manuel Monteiro.

Sá, Victor de – «Manuel Monteiro ou a República Inviável». Universidade do

Minho / Biblioteca Pública de Braga, 1980.

Salgado, José Ferreira – «Manuel Monteiro no centenário do seu nascimento».

Braga, 1980

Serrão, Joaquim Veríssimo – «História de Portugal» – Vol. XII. Editorial

Verbo, 1990.

Sousa, Amadeu José Campos de – «Braga do entardecer da Monarquia ao tempo

da 1ª República (1890 – 1926)». Abordagem de História Política. 2ª Edição.Edições

Casa do Professor, 2004.

Carlos Jaca 37

A história da cidade de Braga já não pode fazer-se sem recorrer a esta obra,

fruto de notável e laboriosa investigação fornecendo, ainda, pistas para novas

investigações. De leitura agradável, a publicação do que foi originariamente uma

dissertação de mestrado, está plenamente justificada.

Carlos Jaca 38