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FACULDADES INTEGRADAS VIANNA JÚNIOR
Marcella Moraes Pereira das Neves
POLÍTICA CRIMINAL ANTIDROGAS
Juiz de Fora
2006
2
POLÍTICA CRIMINAL ANTIDROGAS1 RESUMO : O diagnóstico da política criminal antidrogas brasileira, a começar por suas
origens, causas e promessas, seu real significado e suas ideologias punitivas:
transnacionalização do controle, movimentos de “Lei e Ordem” e doutrina da defesa
social, fazem com que ela se caracterize como bélica e genócida. Os dogmas deste
modelo contrariam a atual tendência do Direito Penal, qual seja um Estado minimalista-
garantista, além do confronto com modelos alternativos de controle. Deve-se ressaltar,
que a solução para o tráfico de drogas não está exclusivamente na seara jurídica, como,
também, em outras esferas de poder do Estado. A Lei 10.409/02 representa uma
conseqüência deste sistema penal, ao instituir um procedimento sumaríssimo para o
julgamento dos graves delitos da Lei 6368/76, contrariando o devido processo legal, que
assegura, no procedimento o estabelecimento de adequadas oportunidades de defesa.
Contudo, foi positiva apenas ao oportunizar ao réu a apresentação de defesa prévia antes
da instauração da ação penal. Este é o retrato e as conseqüências de um estado penal
maximalista-inquisitivo.
PALAVRAS-CHAVE: Política criminal – Drogas – Procedimento – Sumarização –
Neoliberalismo.
1 Marcella Moraes Pereira das Neves, aluna do 5º ano de Direito das Faculdades Integradas Vianna
Júnior.
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO--------------------------------------------------------------------------------------------4
1 A ORIGEM DO COMBATE ÀS DROGAS NO MUNDO -----------------------------------5
1.1 Breve histórico sobre a Política Criminal de Drogas no Brasil e seu vínculo
com o modelo internacional de combate-------------------------------------------------------13
2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO PROCEDIMENTO DA
LEI 10.409/02 ------------------------------------------------------------------------------------------25
3 POLÍTICAS CRIMINAIS DE DROGAS NO BRASIL: ALTERNATIVAS À
REPRESSÃO -----------------------------------------------------------------------------------------32
CONCLUSÃO ---------------------------------------------------------------------------------------------43
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------------------46
4
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretendeu criticar a atual política criminal antidrogas no
Brasil, importada dos EUA, demonstrando sua inaptidão para solucionar o atual
problema de drogas no país, em razão das peculiaridades latino-americanas serem
opostas as norte-americanas. Soma-se a isso, o fato dessa política criminal antidrogas
ser mascarada, escondendo sua real intenção, que seria a de criminalizar as populações
marginalizadas e os conflitos sociais. Dessa forma, este modelo penal externa um
objetivo e direciona seu poder de fogo para outro foco.
O objetivo central é desvendar as ideologias ocultas dos Aparelhos de Estado,
que acabam por inviabilizar a otimização da questão dos entorpecentes, demonstrando a
diafonia existente entre o discurso oficial e a funcionabilidade do sistema de drogas
fundados em “legislações penais do terror”.
O primeiro capítulo inicia-se com uma referência histórica a origem punitiva das
drogas no mundo, retrata o porque da repressão de estupefacientes, o porque de serem
considerados um mal social e já de forma tímida começa a detalhar o perfil de nossa
atual política criminal genocida e bélica. Fazendo referência aos tratados internacionais
sobre drogas ilícitas que objetivavam a transnacionalização do controle, sendo nítido
seu espírito repressivo, baseado nos movimentos de “lei e Ordem” e na doutrina da
defesa social, onde tudo se justificava em nome da Segurança Pública. Posteriormente,
passa-se a análise de como se deu esse processo no Brasil, que foi através da importação
do modelo político criminal norte-americano e, em seguida identifica as leis sobre
estupefacientes brasileiras com os modelos políticos transnacionais de controle.
No segundo capítulo projetou-se o estudo para o plano dogmático, ao cotejar
criticamente os aspectos processuais da nossa atual Lei de Tóxicos. Objetivou
demonstrar que a Lei 10.409/02 ao instituir um procedimento sumaríssimo para o
julgamento dos graves delitos da Lei 6368/76, findou em inconstitucionalidade por
violar a garantia constitucional do devido processo legal, que assegura ao procedimento,
o estabelecimento de adequadas oportunidades de defesa. Considerou-se, porém, como
positiva, a apresentação de defesa escrita pelo réu, antes da instauração da ação penal,
porém, inócua diante da realidade dos fatos.
A existência ou não de uma política criminal antidrogas no Brasil é o ponto
específico do terceiro capítulo, retratando os ocultos objetivos deste modelo penal
5
repressivo, suas falhas, apresentando alternativas à repressão. Por fim esclarece que o
problema não é somente jurídico, que não se resolve no âmbito das “legislações de
pânico”, as quais servem somente para violar direitos e garantias constitucionais, visto
que a solução esta na seara política, na necessidade de se dar um choque de cidadania na
sociedade, que se acostumou com essa estigmatização seletiva de classes sociais.
Pregar-se-ia, também, que a barbárie, em meio ao espiral de violência, force ao
renascimento da razão como resposta ao caos que nasce da irracionalidade de um
Estado Penal Maximalista - Inquisitivo.
1 A ORIGEM DO COMBATE ÀS DROGAS NO MUNDO
O uso de drogas sempre fez parte do cotidiano das sociedades. Richard Bucher,
psicanalista, doutor em Psicologia pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica,
enfatiza que
“em todas as sociedades sempre existiram drogas, utilizadas
com fins religiosos ou culturais, curativos, relaxantes ou
simplesmente prazerosos. Graças às suas propriedades
farmacológicas, certas substâncias naturais propiciam
modificações das sensações do humor e das percepções. Na
verdade, o homem desde sempre tenta modificar suas
percepções e sensações, bem como a relação consigo mesmo e
com seus meios naturais e sociais. Recorrer a drogas
psicoativas representa uma das inúmeras maneiras de atingir
este objetivo, presente na história de todos os povos, no mundo
inteiro. Antigamente, tais usos eram determinados pelos
costumes e hábitos sociais, e ajudaram a integrar pessoas na
comunidade, através de cerimônias coletivas, rituais e festas.
Nessas circunstâncias consumir drogas não representava perigo
para a comunidade, pois estava sob o seu controle.
Posteriormente, as drogas passaram a ter outra conotação,
6
devido ao desregulamento destes costumes, em conseqüências
das grandes mudanças sociais e econômicas”2.
Em virtude do exposto, o consumo dessas substâncias psicoativas tornou-se, do
ponto de vista do Estado e, de maneira geral, da sociedade uma questão relevante ao
mundo ocidental, apenas a partir do século XIX, quando, então, passou a ser
considerado um problema social. Tal rotulagem se deve a inúmeros fatores, os quais não
constituem compartimentos estanques, sejam eles religiosos, políticos, econômicos ou
morais3.
O abundante e indevido uso de estupefacientes passou a preocupar todas as
nações civilizadas, tendo como corolário às tentativas de controle e repressão em âmbito
polinacional.
Pode-se afirmar com exatidão, que esse processo ganhou força e se
institucionalizou primeiramente nos EUA. Enumeraram-se diversas causas desse
“pioneirismo” norte-americano, ainda que nenhuma delas tenha se dado lá
exclusivamente: a profunda antipatia cristã por algumas substâncias antigas e os estados
alteradores de consciência, agravada diretamente pelo puritanismo asceta da sociedade
norte-americana; a preocupação de elites econômicas e políticas com os “excessos” das
classes ou raças vistas como “perigosas” ou inferiores; o estímulo a determinados
psicoativos, em detrimento de outros, como decorrência de interesses nacionais e
econômicos. Esses fatores, aos quais se poderiam somar muitos outros, engendraram
um panorama propício para que, no final do século XIX, o consumo de entorpecentes e
suas propriedades farmacológicas passasse a ser tratado como uma questão pública
importante.4
O moralismo norte-americano, portanto, fez sediar um intenso debate público
sobre as drogas, como, também, a instituir um aparelho burocrático exclusivo para o seu
controle. A origem desta regulamentação está na pressão que os EUA exerceram sobre
todos os demais países do mundo a controlarem com rigor a produção de
2 Drogas: o que é preciso saber para previnir, 4ª ed. , São Paulo, Imprensa Oficial, 1994, p.10. 3 FIORE, Maurício. A medicalização da questão do uso de drogas no Brasil: reflexos acerca de debates
institucionais e jurídicos. em: Venâncio, Carneiro, Renato Pinto e Henrique. Álcool e drogas na história
do Brasil. – São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Ed. PUCMinas, 2005.p 258. 4 FIORE, Maurício, Op. cit.p.259.
7
estupefacientes, naquele momento principalmente a cocaína e a heroína. Tal esforço se
deu não apenas para exportar um modo de vida considerado ideal ou por interesses
econômicos e políticos, ambos sem dúvida importantes, mas sobretudo para legitimar
uma política rigorosa de controle interno do uso de drogas. Além da xenofobia e o
controle de etnias e classes tidas como “perigosas”.5
Podemos tomar como referência a primeira guerra do ópio, em 1839, como fonte
do primeiro contorcionismo regulamentador do comércio de drogas no mundo. Nesta
época, início do século XX, drogas hoje proibidas, como a cocaína e a heroína, faziam
parte de um lucrativo mercado legal que envolvia interesses de potências do período,
suas industrias farmacêuticas e suas estratégias geopolíticas no globo. Estados europeus
como Inglaterra, França, Alemanha, Holanda e Portugal tinham como um dos principais
itens de suas políticas coloniais a produção de matéria-prima para a industrialização de
psicoativos largamente comercializados, principalmente o ópio e seus derivados. A
atenção ao livre-comércio de entorpecentes motivou dois confrontos entre tais potências
ocidentais e o governo imperial chinês, que pretendia proibir o ópio no país.6 Tivemos
ali uma guerra em favor do comércio do ópio, ou seja, em favor dos negociantes
ingleses que contavam com o apoio norte-americano, e levavam o ópio da Índia para a
China, como etapa de um circuito comercial tríplice. O conflito opunha de um lado a
decisão do imperador chinês de interromper e proibir o comércio e o uso do ópio, e de
outro, como bem afirmou Jonathan D. Spence, “os enormes investimentos ingleses na
produção e distribuição da droga e o papel crucial representado pelos rendimentos do
ópio na estratégia da balança de pagamentos internacional da Inglaterra” ·7
Sem dúvida, esta guerra trouxe a marca da política que viabilizou o combate às
drogas. A condução das operações militares, também, revelou este estigma, objetivando
uma asfixia em suprimentos externos e um gradual avanço de posições (favorecido pelo
fosso tecnológico) que conduza à rendição e ao acordo para as “reparações”; não era
uma campanha para destituir o governo nem destruir a nação chinesa, o escopo era a
5 Idem. 6 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: um esboço histórico. em: Venâncio, Carneiro, Renato Pinto e
Henrique. Álcool e drogas na história do Brasil. – São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Ed. PUCMinas,
2005.p 293. 7 BATISTA, Nilo. Política Criminal com derramamento de sangue. In Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: RT, out-dez/ 97, nº 20, p. 78.
8
sobrevivência do Estado-devedor e dos consumidores de ópio que haviam criado aquele
mercado aparentemente infinito.8
Percebe-se que esta foi uma guerra em favor do tráfico de drogas, como já dito,
onde a política criminal adotada elegeu a própria guerra como método. Devemos, então,
ao contrário do grande teórico da guerra, o alemão Carl von Clausewitz vislumbrar
nesta política criminal as marcas da guerra e não procurar na guerra a marca da
política.9
Curioso notar que Estados hoje proibicionistas é que patrocinaram duas
campanhas, ambas conhecidas guerra do ópio, para em nome da liberdade comercial,
impor a legalização dos opiáceos aos chineses. Em defesa dos chineses algumas décadas
depois, vieram os americanos (que trocaram de lado, agora – 2ª fase da guerra do ópio -
imbuídos do espírito proibicionista), nos primeiros anos do século XX, ensaiavam
passos mais ousados no cenário internacional, buscando ocupar destaque no jogo de
poder, até então, protagonizado por europeus. Os EUA encamparam os anseios
proibicionistas do governo chinês e pressionaram os Estados ocidentais com interesses
no ópio e na região para uma conferência que discutisse limites para o mercado do
psicoativo. Tal debate resultou na Conferência de Shangai, em 1909, que reuniu 13
países para tratar do problema do ópio indiano infiltrado na China. Esta conferência
internacional, porém, não produziu resultados práticos10. Mas foi o primeiro documento
internacional a registrar determinações no sentido do controle de um mercado, até então,
livre.
Posteriormente, em dezembro de 1911, reuniu-se em Haia a primeira
Conferência Internacional do Ópio, da qual resultou, em 1912, convenção internacional
prejudicada em sua execução pela I Grande Guerra, tendo entrado em vigor apenas em
1921. Com a criação da Sociedade das Nações, sua Convenção constitutiva reconheceu
a atribuição de elaboração de acordos sobre o tráfico de ópio e outras drogas nocivas,
tendo sido criada em fevereiro de 1921 a “Comissão Consultiva do ópio e outras drogas
nocivas”. Ainda vinculadas à sociedade das Nações, mais cinco conferências foram
realizadas: a de 1924, da qual surgiu, em 1925, o acordo de Genebra, tornou realidade
os dispositivos da Conferência de Haia de 1912, tendo sido revisto na Conferência de
8 Idem. 9 BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 78-79. 10 RODRIGUES, Thiago, Op. cit., p. 293.
9
Bangkok em 1931; ainda em 1924, em novembro, nova Conferência realizou-se em
Genebra, à qual compareceram, além dos membros da Sociedade das Nações, os
Estados Unidos e a Alemanha, tendo sido, nesta Conferência, ampliado o conceito de
substância entorpecente e instituído sistema de controle do tráfico internacional por
meio de certificados de importação e autorização de exportação; em 1931 e 1936, em
Genebra, duas novas conferências foram realizadas, ficando estabelecida a obrigação de
os Estados participantes tomarem as providências para proibirem, no âmbito nacional, a
disseminação do vício.11
Todas essas tentativas de repressão organizada tiveram resultados duvidosos,
mormente pela falta de entendimento internacional, quando os interesses econômicos
dos países produtores de entorpecentes se sobrepunham aos interesses da humanidade.
O século XX havia sido o período dos maiores massacres e das mais amplas
violências perpetradas pelos homens em guerra, assim como fora, também, palco para
eclosão de conflitos generalizados e locais, que se entrecruzaram de formas distintas
consagrando, a partir de 1945, a guerra civil como face concreta dos embates
mundiais.12
A II Guerra Mundial, como toda convulsão de âmbito internacional, pela
desorganização ou perturbação social que causou, trouxe aumento do índice do
consumo de drogas, preocupando desde logo a ONU, assim que criada. Sob sua
convocação, em 1946, foi assinado protocolo, atualizando acordos anteriores; em 1948,
em Paris e, em 1953, em Nova York, firmando-se outros protocolos, sendo que este
último se restringiu a produção de opiáceos na fonte, permitindo sua destinação apenas
para uso médico. Finalmente, 1961, a 30 de março, firmou-se a Convenção Única de
Nova York sobre Entorpecentes, que anulou as anteriores, salvo a de 1936.13 A
Convenção única da ONU de 1961 pode ser identificada como o tratado-síntese da
seqüência de conferências internacionais realizadas no âmbito da Liga das Nações, até
os anos 1930 e, depois da Segunda Grande Guerra, documentos estes que expressaram
unanimidade na ênfase proibicionista.
11 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção - repressão: comentários à Lei nº 6368, de 21-10-76,
acompanhados da legislação vigente e de referência e ementário jurisprudencial - 11. ed. atual.- São
Paulo: Saraiva, 1996, p. 33. 12 RODRIGUES, Thiago, Op. cit., p. 292.
13 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 33
10
As normas da Convenção única sobre entorpecentes, apesar de rigorosas, não
são exaustivas, permitindo aos Estados a adoção de medidas mais rígidas de
fiscalização, se isto for necessário para proteger, segundo sua opinião, a saúde pública.14
.Esta Convenção, também estabeleceu listas de substâncias psicoativas com uso
controlado, assim como a relação daquelas que devem ser completamente banidas. O
critério fundamental a atribuir legalidade parcial ou total ilegalidade é a noção
controversa de “uso médico”: na lógica dos especialistas da ONU, podem ser
comercializadas – sempre sob estreito controle por meio de receitas – psicoativos que
tenham propriedades consideradas terapêuticas; os desprovidos de tais características
tem toda produção e uso vedado.
Em 21 de fevereiro de 1971, em Viena, foi firmada a Convenção sobre
substâncias Psicotrópicas, visando atualizar a fiscalização e abranger os entorpecentes
de repressão recente, como, por exemplo, as anfetaminas e o LSD.
Em 26 de março de 1972, em Genebra, firmou-se protocolo que modifica e
aperfeiçoa a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961. Este protocolo altera a
composição e as funções do Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes, amplia
as informações que devem ser fornecidas para o controle da produção de entorpecentes
naturais e sintéticos e salienta a necessidade de tratamento que deve ser fornecida ao
toxicômano.15
Papel importante na repressão ao tráfico de entorpecentes é o da Organização
Internacional de Polícia Criminal – INTERPOL – criada com o nome de Comissão
Internacional de Polícia Criminal, no Congresso Internacional de Polícia Criminal, em
Viena, de 3 a 6 de setembro de 1923.16
Em 20 de dezembro de 1988 foi concluída em Viena nova Convenção, que
entrou em vigor internacional em 11 de novembro de 1990. Esta Convenção, visando
fortalecer os meios jurídicos efetivos de combate ao tráfico ilícito, complementou as
Convenções de 1961 e 1972, acrescentando, entre outras coisas, o éter etílico e a
acetona no rol das substâncias controladas.17
Verifica-se, portanto, que a grande força motora da repressão ao tráfico de
drogas, sob a ótica do discurso político criminoso, ou seja, do tráfico de drogas, foi 14 Idem. 15 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 36. 16 Idem. 17 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 37.
11
proveniente dos EUA. Desde o momento em que o assunto tornou-se perceptível em
âmbito doméstico, as agências norte-americanas ligadas à manutenção da segurança
nacional concentraram seu foco de ação na oferta da droga. Esta política servia e serve
para ocultar uma das verdadeiras intenções que estão por trás do nobre intuito de
salvaguardar a saúde dos jovens norte-americanos: a neutralização de determinados
grupos étnicos (imigrantes italianos, colombianos, etc.), que em períodos históricos
distintos ameaçava e ameaça determinados setores da economia da maior potência
econômica e militar do planeta.18
Esta intensa repressão, que levaram os EUA a declarar uma “guerra contra o
tráfico” e a destinar cifras astronômicas do orçamento em equipamentos de vigilância,
armas e veículos especialmente preparados, treinamento de pessoal, entre outros, é
explicável, também, pela circunstância de que o tráfico de drogas ilícitas é um mercado
que movimenta muitos bilhões de dólares (assim como o mercado de bebidas alcoólicas
e cigarros, ou seja, drogas lícitas), que saem, retornam e saem novamente daquele país
com a mesma desenvoltura, quantia esta que os EUA abocanham apenas uma fração
ínfima, na forma de desapropriação de imóveis e ativos de contas bancárias de
propriedade dos traficantes.19
A “guerra contra as drogas” também fornece aos EUA um poderoso e eficiente
instrumento de dominação política sobre países latino-americanos, que se concretiza
não só através da imposição aos países subjugados da adoção de certas medidas de
profunda repercussão às já combalidas economias domésticas, sob pena de sanções
econômicas e comerciais, como também através do treinamento de policiais locais por
agentes do FBI ou envio de comissões de estudiosos ou simplesmente de missões
militares norte-americanas cujo objetivo declarado é o de auxiliar as autoridades locais a
traçar estratégias de combate às drogas.20
Paralelamente, os EUA implementaram o discurso-médico sanitário para o caso
do consumidor. Não poderia ser diferente, face aos movimentos contestatórios as drogas
passaram a ser utilizadas como instrumento de protesto contra o imperialismo , base da
política norte-americana, contra a síndrome armamentista e, fundamentalmente nos
18 NASCIMENTO, André Filgueiras. Análise de Aspectos Processuais da Lei nº 10.409/02 à Luz da
Política Criminal de Drogas no Brasil. Dissertação de Mestrado/UCAM. Rio de Janeiro, 2005, p. 18-
19. 19 Idem. 20 Idem.
12
Estados Unidos da América do Norte, contra a Guerra do Vietnã. O uso de drogas
ilícitas passa a ter, neste preciso momento histórico, sentido libertatório, adquirindo
caráter de manifestação política. Contrariamente ao que vinha acontecendo nas décadas
anteriores, o consumo de drogas sai dos guetos e invade a classe média. O pânico criado
por este fato solidificará campanhas de “Lei e Ordem”21, que orientaram a produção
legislativa norte-americana de combate às drogas e, conseqüentemente, a
transnacionalização22 do controle de entorpecentes.
Este contexto impedia uma criminalização generalizada da população, que tem uma
significação econômica, e que, por causa disto, convém não encarcerar, então, para o
consumidor branco/dependente/doente vige o discurso médico-sanitário, que sugere
tratamento- justiça terapêutica –ao invés do cárcere.23
Começa a ser gerado, segundo Rosa del Olmo24, duplo discurso sobre a droga
que pode ser conceituada como modelo médico-jurídico, tendendo a estabelecer
ideologia de diferenciação.
A principal característica deste discurso, segundo a criminóloga venezuelana, é
traçar distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre o doente e o delinqüente. O
primeiro, normalmente pessoa de classe média/alta, incidindo o discurso médico,
consolidado pelo modelo médico-sanitário em voga na década de cinqüenta, que
difunde o estereótipo da dependência.25 Já para os segundos, via de regra integrante dos
21 Inicialmente, podemos entender “Lei e Ordem” como movimento político-criminal autoritário, baseado
em um modelo punitivo-retributivista, que se instrumentaliza a partir do “mas media”. Estes movimentos
primam pelo recrudescimento do sistema punitivo com a diminuição das garantias individuais, aumento
das possibilidades de prisões cautelares e adoção de medidas penalógicas extremas 22 A transnacionalização do controle sobre entorpecentes, coloca-se no projeto de transnacionalização do
controle social. Segundo Rosa Del Olmo (América Latina y su Criminologia), a transnacionalização do
controle social do controle social implicaria a concepção do direito como ciência universal, com
finalidade de dirimir as fronteiras nacionais para o controle da criminalidade e “manutenção da paz”. A
universalização de normas para enfrentar o problema delitivo obteve projeção após a II Grande Guerra. O
substrato ideológico do controle transnacional será dado pelo movimento da Defesa Social. 23 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil, do discurso oficial às razões de
descriminalização. Rio de Janeiro: Luam, 1996, p.22. 24 CARVALHO, Salo de. Op. Cit., p. 23. 25 A categoria estereótipo é conceituada a partir da Teoria da Reação Social. A Teoria da Reação Social
compreende as teorias da rotulação (Becker, Erikson, Lemert e Kitsuse), do estigma (Goffman) e do
estereótipo (Chapman). Por estereótipo, entendemos os elementos simbólicos que são manipuláveis na
sociedade. O estereótipo serve para justificar a existência e o comportamento do sujeito na sociedade em
13
grupos socialmente excluídos, imigrantes ilegais, só caberia a prisão. Ou seja, recai o
discurso jurídico que define o estereótipo criminoso, passando estes a serem
considerados como corruptores da sociedade. É perceptível, também, que dentro do
próprio universo dos consumidores opera-se a diferenciação: se quem consome a droga
é pobre ou negro ou latino-americano, trata-se de um “viciado”, se é rico, trata-se de um
“doente”.
A pena grave como se vê não é o maior problema deste mal social e jurídico,
pois antes da judicialização do tráfico, as agências policiais do sistema penal,
respaldadas por ideologias intolerantes para com a conduta desviante, são responsáveis
pelo extermínio assustador de enormes contingentes populacionais pobres. O clima de
“guerra contra as drogas”, importado pelos encarregados da segurança pública urbana
diretamente para as ruas das grandes cidades, e devidamente legitimados pelos meios de
comunicação, faz com que as polícias estabeleçam táticas de guerrilha, que têm por
resultado prático a implementação de uma pena de morte extra-oficial para aqueles
envolvidos com o tráfico de drogas. Há aqui um aproveitamento do conceito de
“inimigo interno”, forjado para a repressão à criminalidade política intelectualizada,
questionadora do totalitarismo e da arbitrariedade dos governos militares, para a
criminalidade comum, de rua, composta em sua grande maioria por negros, pobres,
favelados, analfabetos ou semi-analfabetos, enfim, pelos excluídos do projeto
neoliberal.26
1.1 Breve histórico sobre a Política Criminal de Drogas no Brasil e seu vínculo com o
modelo internacional de combate
A compreensão da influência estrangeira sobre a política nacional de drogas,
depende intimamente da análise de como os Estados Unidos da América historicamente
trataram do problema, o que já foi tema deste ensaio.
relação com seu meio, e é determinado pelas características consensuais encontradas nos aparelhos de
controle social, difusos (escola, família, opinião pública) ou institucionais (aparelhos repressivos do
Estado), sobre o desviante, no caso específico o dependente ou delinqüente.A principal função do
estereótipo é transformar o delinqüente estereotipado em bode expiatório da sociedade, ao qual dirige-se
toda carga agressiva do sistema repressivo. 26 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 20.
14
Ao inócuo modelo americano de política criminal antidrogas importado por nós,
soma-se como agravante a estética da escravidão herdada por nosso país a qual é muito
presente na atual paranóia da segurança vivida hodiernamente. Se antes a fantasia era o
quilombo, hoje o medo é da periferia e do morro. As elites têm medo, mas é a
população da periferia e da favela que vive o terror e a barbárie no dia-a-dia, sendo,
ainda, esta camada da população vítima da chamada atitude suspeita, em que é uma
abordagem policial comum, em que a população negra e pobre em geral, é sempre
suspeita, ou seja, tudo aquilo que não é atitude suspeita se torna por uma questão
histórica ontológica. O sujeito é suspeito por si mesmo, por ser negro e pobre. Essa é a
barbárie cotidiana que normalmente vitimiza quem não tem poder para questionar a
ordem. O que se percebe é que, na saída do regime militar, a sociedade era muito mais
libertária, do que hoje. Naquela época todos estávamos convencidos de que esse tipo de
comportamento era arbitrário. Atualmente todos acreditam que é necessário. Esse é o
grande paradoxo da democracia e do neoliberalismo à brasileira. Esses discursos do
medo nos transformaram numa elite muito mais exterminadora. Na saída da ditadura,
questionava-se o arbítrio policial e, hoje em dia, ele é aplaudido.27
No Brasil, não havia, até final do século XIX, preocupação direta do Estado e
nem a existência de um debate sobre o controle do uso de qualquer substância
psicoativa. Pode-se apontar, é verdade, as Ordenações Filipinas como a primeira forma
de incriminação do uso, porte e comércio de determinadas substâncias tóxicas no país, a
qual enunciava que: “o indivíduo que guardasse em casa substâncias como o ópio,
poderia perder a fazenda e ser enviado para a África”. Posteriormente, com a
independência do Brasil e com o direito penal da escravidão é que acontece de forma
intensa e patente o encontro da repressão e da segregação, modelo, este, presente até
hoje, em nosso sistema punitivo. No entanto, a bibliografia demonstra que, naquele
momento, dava-se maior importância para o controle das práticas tradicionais de um
crescente contingente de população negra e miscigenada, escrava ou liberta, na capital
do Império, do que sobre o controle do uso de drogas, propriamente dito. A maconha, já
antes de sua proibição, era diretamente associada às classes baixas, aos negros e mulatos
e a bandidagem, associação que marca a simbologia do consumo dessa planta até os
dias de hoje. Evidentemente, a associação entre o uso da maconha e a cultura negra
27 Folha de São Paulo – Medo avaliza abuso policial e gera “elite exterminadora” – Fernanda Pena,
23/02/2004, Reportagem local com Vera Malagute Batista.
15
pode ser interpretada como um dos motivos que levaram, depois de quase um século, à
proibição definitiva desta planta no Brasil; as primeiras leis vão tratar especificamente
dos psicoativos. Percebe-se, entretanto, que não era contra a planta que a corte parecia
estar voltada, naquele momento, mas sim, contra a propagação de práticas específicas
de classe ou ração que, de alguma maneira, eram vistas como perigosas, num Rio de
Janeiro que abrigava a maior população escrava urbana do Novo Mundo.28
Posteriormente, em 1830 tivemos o primeiro Código Penal, ou seja, o Código
Imperial, o qual nada mencionava a respeito do consumo e tráfico de substâncias
entorpecentes. Pouco tempo depois veio à tona o regulamento de 29 de setembro de
1851, cuidando em seu artigo 51 da venda irregular de “substâncias venenosas”, que à
época configurava uma contravenção. A primeira disposição expressa sobre a proibição
de algum tipo se substância tóxica somente é encontrada no Código Penal Republicano
de 1890.
Segundo o Código, era considerado delito: “Expor á venda ou ministrar
substância venenosa sem legítima autorização e sem formalidades previstas nos
regulamentos sanitários”.29
Note-se que a primeira disposição expressa referente a substâncias tóxicas no
país já consagrava norma penal em branco que seria complementada, posteriormente
pelos regulamentos sanitários vinculados à discricionariedade do poder executivo.30
Em 1912 o Brasil subscreve o protocolo suplementar de assinaturas da
Conferência Internacional do Ópio, realizada em Haia. Posteriormente, em 8 de julho de
1914, sancionou-se a Resolução do Congresso Nacional que aprovara sua adesão,
resultando no decreto nº 2.861.
“Através do decreto nº 11.481, de 10 de fevereiro de 1915 –
que mencionava o abuso crescente do ópio, da morfina e seus
derivados, bem como da cocaína – Wenceslau Braz
determinava a observância da Convenção. É nesta ocasião que a
política criminal brasileira para drogas começa a adquirir uma
28 FIORE, Maurício, Op. cit., p. 263. 29 CARVALHO, Salo de. Op.cit., p. 19. 30 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 20.
16
configuração definida, na direção de um modelo que
chamaremos – sanitário – e que prevalecerá por meio século”.31
Nesta época, estávamos em plena construção da ordem burguesa no Brasil, o
que exigia o aperfeiçoamento e a eficácia das instituições de controle social, ou seja,
justiça e polícia. O discurso sanitário foi, assim, sem dúvida, um valioso instrumento de
segregação geográfica da população, situada à margem da dominação burguesa, e de
acionamento da instância penal.
O dispositivo do Código Penal, porém, isolado, foi insuficiente para combater a
onda de toxicomania que assolou nosso país após 1914, seguindo o exemplo europeu,
invadiu as principais capitais do país e o consumo, principalmente de ópio e haxixe pela
casta intelectual, incentivou a criação de medidas legislativas que regulamentassem o
uso e a venda de tais substâncias. Neste sentido, a consolidação das Leis Penais de
dezembro de 1932, disciplinou a matéria em seu artigo 159.
Em abril de 1936, a publicação do Decreto 780, modificado pelo Decreto 2.953
de agosto de 1938, é considerado o primeiro “grande impulso” na luta contra a
toxicomania no Brasil.32
Todavia, o primeiro momento legislativo, no que tange ao ingresso do país em
modelo internacional de controle de estupefacientes, dá-se com a edição do Decreto-lei
891 de novembro de 1938. Este Decreto-Lei é elaborado de acordo com as disposições
da Convenção de Genebra de 1936 e traz normas relativas a produção, tráfico e
consumo, juntamente com relação de substâncias consideradas tóxicas e que,
logicamente, deveriam ser proibidas pelos países que ratificassem a orientação da
Convenção.33
Em 1942, entra em vigor o novo Código Penal que vem a disciplinar a matéria
em seu artigo 281: “Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que
a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou de
qualquer maneira entregar ao consumo substância entorpecente”.
A manutenção da norma penal em branco pelo referido dispositivo e a utilização
do impreciso termo “de qualquer maneira” começam a delinear o perfil da técnica
31 BATISTA, Nilo. Op. cit., p.79. 32 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 20. 33 Idem.
17
legislativa que será utilizada até os nossos dias, não só ao que se refere às leis de
tóxicos, mas também a maior parte das legislações penais especiais. A principal
característica do dispositivo do artigo 281 do Código Penal, contudo, é a tentativa de
preservar o controle sobre o consumo de tráfico de substâncias entorpecentes ilícitas em
estatuto codificado. A partir de 1942, quando o Decreto-Lei 4.720 dispõe sobre cultivo
e, principalmente, após 1964, momento em que a Lei 4.451 introduz ao tipo do artigo
281 a ação de plantar, veremos, na legislação pátria, processo de total descodificação,
do controle de drogas ilícitas, com conseqüências drásticas para toda a estrutura
legislativa em matéria criminal.34
Na década de 1960, deu-se, segundo Rosa del Olmo o período decisivo de
difusão do modelo médico-sanitário e de concentração da droga como sinônimo de
dependência.35 Aos tratados internacionais que seguiram ao de Haia, todos já sob a
hegemonia norte-americana, culminou em 1961, com a aprovação do mais importante
de todos, a Convenção Única sobre Entorpecentes. Em terra tupiniquins, o Congresso
Nacional aprovou a Convenção, através do decreto legislativo nº 5 de 1964, sendo que o
então Presidente da República Castello Branco, através do decreto nº 54.216, de 27 de
agosto de 1964, tratou de promulga-la, incorporando todos os seus dispositivos ao
ordenamento jurídico interno. A aprovação e promulgação da Convenção Única sobre
Entorpecentes são apontadas, por Salo de Carvalho como o momento em que o país
“ingressou definitivamente no cenário internacional de combate às drogas.36
“A partir da década de sessenta, o consumo de drogas,
principalmente drogas psicodélicas, como o LSD e a maconha,
alcança amplitude generalizada e o controle torna-se
extremamente difícil para as agências de poder dos Estados.
Esta época foi marcada pela rebeldia juvenil, pelos protestos
políticos e manifestações de grupos pacifistas. O uso de drogas
ilícitas passou a ter, neste precioso momento histórico, sentido
libertário, adquirindo caráter de manifestação política.
Contrariamente ao que vinha acontecendo em décadas
anteriores, o consumo de drogas sai dos guetos e invade a
34 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 20-21. 35 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 33. 36 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 21.
18
classe média. O pânico criado por este fato solidificará
campanhas de Lei e Ordem, que orientaram a produção
legislativa norte-americana”37
Como, conseqüência a transnacionalização do controle, que chegara para ficar, e
não só caracterizaria todo o período sanitário como subsistiria, com referenciais
distintos, à própria reforma do modelo político-criminal. Já se desenhava o tratamento
da questão como uma luta entre o bem e o mal, que servia como pano de fundo para a
elaboração do discurso médico-jurídico sobre a droga. O discurso médico servia para os
consumidores – compostos pela juventude branca da classe média, além dos redutos
pobres ou negros – que se enquadravam no estereótipo do “doente”. Ao traficante,
incorporado pelos integrantes das classes marginalizadas, cabia o estereótipo do
delinqüente, criado pelo discurso jurídico.
Além da “demonização” da droga e do estabelecimento da ideologia da
diferenciação, outra decorrência do uso dos entorpecentes foi sua visualização, pelas
agências do poder, no que tange à matéria de segurança interna, como “inimigo
interno”.38
A menção ao ano de 1964, contudo não é gratuita. Nilo Batista, vislumbrou no
golpe de Estado ocorrido naquele ano a reunião das condições para que o modelo
sanitário de política criminal de drogas fosse substituído pelo modelo bélico, que
perdura até os dias atuais. Segundo o autor mencionado, a “guerra fria” produziu nos
Estados Unidos da América “uma aliança de setores militares e industriais para a qual a
iminência da guerra era condição do desenvolvimento”. O mundo presenciou gastos
astronômicos com militarização dos dois blocos que dividiam o mundo, assim como a
militarização das relações internacionais, que devia ser operada também no âmbito
interno dos países incorporados a cada uma das áreas de influência dos países
hegemônicos. Como explica Nilo Batista, amparado em Joseph Comblin, “o
instrumental teórico desse projeto foi a doutrina de segurança nacional, elaborada no
Brasil pela Escola Superior de Guerra, fundada em 1949 sob a inspiração do National
War College e com a ajuda de uma missão militar americana”39 Depreende-se do 37 Idem.
38 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 24. 39 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit, p. 28.
19
autoritarismo da doutrina da segurança nacional, expressamente adotada na legislação
de defesa do Estado durante a ditadura militar, o conceito de “inimigo interno”. Este
conceito, intensamente vivenciado pelos operadores policiais, militares e judiciários no
âmbito dos delitos políticos transbordará para o sistema penal em geral e sobreviverá à
própria guerra fria.40
O Brasil, seguindo os passos já trilhados pela Venezuela e Colômbia, edita, em
10 de fevereiro de 1967, o Decreto-lei 159 que iguala aos entorpecentes algumas
substâncias capazes de criarem dependência física e/ou psíquica.41
Apesar do incremento do Decreto-lei nº4.720/42 e da Lei 4.451/64, ainda
vigorava no país o dispositivo do art. 281 do Código Penal, no que concernia ao usuário
e ao traficante.
Em 1968, treze dias depois do Ato Institucional nº5, o qual dilacerou a democracia
representativa e aboliu a um só tempo as garantias individuais, a liberdade de expressão
e o Poder Judiciário, foi publicado o Decreto-lei nº 385. Tal publicação alterou o
referido artigo do estatuto penal, introduzindo alguns verbos no tipo do injusto do
tráfico, que seria “preparar e produzir”, e de sua ampliação para as matérias primas.
No que tange ao artigo 281 do Código Penal, vigorava, até então, a interpretação
jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, cujo o entendimento era de que a referida
norma não abrangia os consumidores, pois em seu parágrafo terceiro previa a punição
do induzidor ou instigador. A exegese era de que, sancionando o induzidor ou
instigador, estaria excluindo o usuário, visto que bastaria a regra geral do artigo 25 do
Código Penal de 1940, para a configuração da co-autoria.
A descriminação do uso, operada pela via jurisprudencial, gerava situação que
suscitava preocupações no âmbito da repressão, logo, o legislador brasileiro optou pela
medida drástica de identificar, na mesma categoria, todos os envolvidos com tóxicos,
independentemente do grau da sua participação.42
Contrariando toda orientação internacional e rompendo com o próprio discurso
oficial fundamentado pela ideologia da diferenciação, o Decreto-lei nº385/68
estabelecia a mesma sanção para traficante e usuário, ainda que o último fosse
dependente.
40 BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 85. 41 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 42. 42 CARVALHO, Salo de. Op. cit, p. 24.
20
A equiparação do usuário ao traficante de drogas provocou alguma reação no
escasso grupo de juristas e magistrados que ousavam insurgir-se contra o regime
autoritário.43 Como corolário, esta legislação vexatória tornou-se inoperante e
inaplicável pelos tribunais, que acabavam por absolver réus primários e/ou dependentes,
ao invés de aplicar-lhes “equilibradas condenações”44
No entanto, a exegese do decreto em questão, feita pelo Supremo Tribunal
Federal, remetia à complementação da norma penal em branco – ao laudo toxicólogo,
que seria o instrumento eficaz para demonstrar a capacidade da droga e sua
potencialidade em causar dependência física e/ou psíquica. Assim, não haveria
necessidade de publicidade, pelo Poder Público, das substâncias proibidas, pois o laudo
toxicológico determinaria a idoneidade lesiva da droga.
Passados estes três anos de verdadeira excrescência legislativa, o Brasil ingressa
na década de setenta de forma exemplar, em perfeita sintonia com a orientação
internacional no que diz respeito às legislações anti-drogas, sendo que a edição da Lei
5.726, de 29 de outubro de 1971, marca total autonomia da disciplina em tela.45
A Lei 5.726/71 renova a redação do artigo 281 do Código Penal e modifica o seu
rito processual, representando real e coerente iniciativa na repressão aos estupefacientes,
chegando a ser considerada exemplar em nível mundial. O fato de não mais considerar o
dependente como criminoso, porém, escondia faceta ainda perversa da Lei, que é de não
diferenciar o usuário eventual ou experimentador do traficante.46
Esta legislação, ainda, preserva o discurso médico-jurídico encontrado na década
anterior e sua notória conseqüência de definir o usuário habitual como dependente –
estereótipo da dependência – e traficante como delinqüente – estereótipo criminoso.
Apesar de trabalhar com esta falsa realidade, distorcida e extremamente maniqueísta ao
dividir a sociedade entre os “bons” e os “maus”, a Lei 5.726 representa real avanço em
relação ao Decreto pretérito e inicia o processo de substituição do modelo repressivo,
que atingirá seu ápice na Lei 6.368/76.47
Contudo, ainda não havia uniformização das leis anti-drogas no Brasil e o
discurso médico se sobrepunha ao jurídico. A necessidade de incrementar a repressão e
43 BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 85. 44 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 26. 45 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 27. 46 CARVALHO, Salo de. Op. cit, p. 28. 47 Idem.
21
criar nova estratégia político-criminal, voltada para a década de oitenta, fomenta o
surgimento da Lei 6368/76, ainda em vigência no país.48
O nosso estatuto antidrogas – Lei 6368/76 – inspirou-se na Convenção Única
sobre entorpecentes de 1961, e também em estudos realizados e divulgados pelo ASEP (
Acordo Sul Americano sobre Estupefacientes e Psicotropicos), firmado em 1973, após a
visita do Grupo de Estudos do Congresso Norte-Americano à América Latina. Porém,
as proposta trazidas pelos Estados Unidos não condizia com o padrão nem com o perfil
do consumidor latino-americano, haja vista que a droga de eleição deste era a maconha,
enquanto na Europa e nos Estados Unidos as principais drogas consumidas eram a
cocaína e heroína. Desta forma, a importação do modelo em nada condizia com o
padrão e o perfil do consumidor latino-americano. Igualmente, os programas, tanto
repressivos quanto preventivos e de tratamento, eram totalmente obsoletos nesta
avaliação empírica.49
A Lei 6368/76 instaura, no final dos anos setenta, novo modelo de controle que
acompanha, novamente as tratativas internacionais. A escassez do discurso médico-
jurídico, no que tange à repressão, dá lugar ao sistema preponderantemente jurídico,
baseado em legislação severa que, ao mesmo tempo que ainda mantém resquícios do
antigo sistema – discurso médico-jurídico – elabora e legitima novo discurso,
enfatizando o jurídico político.
A referida lei no que concerne aos crimes, pouco modificou as estruturas típicas
dos crimes previstos pela Lei 5.726/71. No delito de tráfico de drogas, a nova lei tratou
de agregar ao tipo três novos verbos – “remeter”, “adquirir” e “prescrever” – majorando
sensivelmente a pena, que passou a ser de reclusão, de três a quinze anos, e multa. Em
seguida, contempla as condutas equiparáveis ao tráfico de drogas, às quais são
cominadas as mesmas penas. A posse do maquinário “destinado à fabricação,
preparação, produção ou transformação de substância entorpecente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Também não foi esquecida,
assim como na associação (de duas ou mais pessoas), ambos os crimes apenados com
reclusão, de três a dez anos, e multa. Por fim, três últimos delitos – a prescrição culposa
de substância entorpecente, a posse, aquisição ou guarda dela para uso próprio e uma
modalidade de sigilo dos autos de peças de informação ou inquérito policial – cujas
48 Idem. 49 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 35.
22
penas situam seu processamento e julgamento no âmbito dos juizados especiais
criminais, após a ampliação do conceito de menor potencial ofensivo, operada pela Lei
nº 10.259/01.50
Quanto ao procedimento, a Lei 6368/76 tratou de abrevia-lo, escoimando o
resquício inquisitorial do juizado de instrução, previsto, para as hipóteses de prisão em
flagrante do indiciado, nos artigos 15 e 16 da Lei nº 5.726/71, tornando o novo
procedimento semelhante àquele aplicável aos crimes apenados com detenção.51
Os objetivos da política norte-americana de combate ao tráfico, no governo
Richard Nixon, em 1972, foram: transnacionalização do controle de drogas ilícitas, a
criação dos programas de metadona, eleição das drogas como inimigo interno da nação.
São fatores de derivação direta de toda história do proibicionismo no país, a
manifestação de Nixon trazia uma grande novidade: o perigo social e sanitário
representado pelos psicoativos era um atentado internacional aos EUA. Passam a ser
apontadas, então, regiões e estados dos quais procederiam as drogas para consumidores
na América do Norte. Haveria, desse modo, países produtores e consumidores: os
primeiros agressores, ou seja, os considerados inimigos externos. Já os segundos,
vítimas dos venenos ilegalmente comercializados.52
A solução da transferência ilusória do problema para os países produtores
resulta, para estes, na obrigação de criar guerra interna. A cômoda posição das agências
centrais (EUA) instaura modelo genocida, que no dizer de Rosa del Olmo, criaram
resultados desastrosos porque, sendo importados e impostos, estes discursos alheios não
levavam em conta a diferença entre as drogas e entre os grupos sociais envolvidos.
Aliados a este fato, os Estados Unidos passam a aferir-se o título de polícia mundial
encarregada do controle e repressão de entorpecentes.53
Observa-se, dessa forma, que o Direito Penal foi sem dúvida atingido em cheio
pela globalização, em vários aspectos, forçando, como se nota, o surgimento de
legislação específica. Além e como decorrência do tráfico internacional de drogas, o
nosso legislador procurou acompanhar a legislação criminal de outros países,
principalmente os europeus, tipificando várias condutas.54
50 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 33. 51 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 33. 52 RODRIGUES, Thiago. Op. cit., p. 296. 53 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 30-31. 54 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Globalização e Crime. < www. juspodium.com.br > p.4
23
Podemos apontar como uma das conseqüências desta busca, a edição da Lei de
Lavagem de dinheiro, expressão originada dos EUA quando, na década de 20, a máfia
possuía inúmeras lavanderias que serviam, na verdade, para ocultar o capital provindo
de suas atividades ilícitas, a maioria, proveniente do tráfico de drogas. Verifica-se que
uma atividade está intimamente ligada à outra, pois é sabido que os grandes traficantes
de drogas procuram na lavagem de capitais encobrir o dinheiro sujo oriundo do
comércio clandestino de entorpecentes.55
O legislador constituinte de 1988, ao editar a norma do artigo 5º, XLIII, criando
a categoria dos “crimes hediondos”, bem como o legislador ordinário, ao regulamentar
esse preceito através da Lei 8.072/90, agiram apressada e emocionalmente na linha da
categoria da “law and order”. Essa ideologia, típica da sociedade norte-americana, que
diga-se de passagem, desde da década de 20, vem perdendo a “guerra contra o crime”,
mas especificamente, neste caso, a “a guerra contra as drogas”. Nota-se, dessa forma,
que a lei dos crimes hediondos, obra prima do direito penal simbólico, apenas visou dar
uma satisfação à opinião pública no sentido de intensificar a repressão, bem como ao
sistema de Segurança Pública do Estado responder ilusoriamente aos anseios da
população, sem, contudo, alcançar qualquer resultado prático na redução dos índices de
criminalidade.56Pois, pretender combater a criminalidade contemporânea com a edição
de leis novas mais severas equivale a desconsiderar ou a desconhecer o estágio atual das
investigações criminológicas, segundo as quais o fenômeno do crime é feito de muitas
causas, pelo que não se deixa vencer por armas exclusivamente jurídico-penais.57
Dessa forma, o dispositivo cria aberração normativa de norma constitucional
inconstitucional, eis que o princípio da legalidade é modelador de toda estrutura
constitucional-penal. A Lei 8.072/90 configura reflexo tardio da experiência legislativa
nacional frente ao problema das drogas, que toma o cenário internacional da década de
oitenta.58
A Lei dos Crimes Hediondos foi considerada o suporte legal e político criminal
para a edição da Lei do Crime Organizado, havendo, assim, perfeita harmonia com os
55 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Op. cit., p. 4-5. 56 ALMEIDA, Gevan de carvalho. Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na
legislação brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 2004, p. 116. 57 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos do Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.
25. 58 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 112-113.
24
termos da política-criminal repressiva e da ideologia da lei inspiradora. O
desenvolvimento estratégico de combate às drogas deveu-se á elaboração do programa
nacional de repressão ao crime organizado, ainda no governo de Ronald Reagan.59
Pode-se, também, apontar como decorrência do tráfico internacional de drogas e
da lavagem de capitais, mas não somente por causa deles, o crime organizado que vem
desde de algum tempo se desenvolvendo assustadoramente em todo mundo. Hoje,
apenas para citar alguns exemplos, temos os grandes cartéis das drogas, inclusive na
América Latina, as máfias italiana, japonesa e russa, os traficantes de armas, o
terrorismo, etc., tudo facilitado pela globalização e pelos seus respectivos instrumentos
de atuação. Com efeito, a facilitação dos meios de comunicação e transporte permitem
aos traficantes de drogas transpor as fronteiras das respectivas nações, espalhando o
comércio clandestino por todo mundo.60
Após vinte e seis anos de vigência da Lei 6368/76, acompanha-se a modificação
da visão proibicionista para uma política abolicionista, impulsionada pela falência da
pena privativa de liberdade, relativamente aos delitos relacionados com o uso de
entorpecentes.
Após longa tramitação legislativa, em 11 de janeiro de 2002 é editada a Lei
10.409/02, elaborada no intuito de substituir a anterior. A nova lei em nada inovou,
mantendo o desrespeito aos direitos humanos e a desarmonia com o Direito Penal da
Culpabilidade e, com o direito penal mínimo, nada garantista.61
Em suma, podemos constatar que estamos diante de um direito penal simbólico,
onde os instrumentos utilizados não são aptos para enfrentar a criminalidade real.
Criando, assim, uma política criminal passional, ilusória, simbólica e extirpadora de
direitos e garantias individuais e fundamentais do cidadão, estruturadas no modelo
penal clássico. Sendo, dessa forma, inadequado para alcançar a realidade da
criminalidade moderna.62
Destarte, observa-se, na atualidade, diante dos índices de criminalidades, que o
movimento repressivo caracterizado pela lei penal opressora não resolveu o problemas 59 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 118. 60 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Op. cit., p. 20-21. 61 THUMAS, Gilberto; PACHECO FILHO, Vilmar Velho. Leis Antitóxicos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. XIX. 62 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 128-129.
25
do uso de drogas no Brasil. Pelo contrário, esta ideologia resultou na elaboração e
promulgação de uma quantidade considerável de leis, dando origem a denominada
inflação legislativa no âmbito do Direito Penal, gerando o caos normativo e a desordem
prática, de maneira que não se pode afirmar, qual o pensamento do legislador penal
brasileiro; qual a finalidade do direito penal e, de conseqüência qual a finalidade da
pena no direito.
2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO PROCEDIMENTO DA LEI
10.409/02
A partir da vigência da Lei 10.409/02, tendo em vista a grande quantidade de
artigos vetados pela Presidência da República, em especial todo o Capítulo III, Dos
Crimes e das Penas, muito foi questionado e debatido acerca da aplicabilidade do
procedimento investigatório e judicial, que dispõe sobre a seqüência dos atos
processuais em juízo, e foi descrito, no Capítulo V, com a denominação legislativa de
Instrução Criminal.63
Inicialmente, alguns doutrinadores e julgados, até mesmo dos tribunais
superiores, defenderam a não aplicabilidade do procedimento judicial da Nova Lei
Antitóxicos, porque, conforme preceituado no art. 27, deve ser adotado “para crimes
descritos nesta lei”, e como todos foram vetados, seguiria vigente o narrado na Lei n.
6368/76. Há ainda muita divergência e resistência por parte de alguns tribunais em
relação ao descrito na Lei n. 10.409/02, face a sua impropriedade técnica e falta de
clareza para ter plena aplicabilidade. O Superior Tribunal de Justiça passou por uma
fase de intensa discussão acerca do tema, porque primeiramente, aguardou o
posicionamento dos Tribunais dos Estados como linha para seu próprio entendimento,
inclusive com o irrefletido caminho de que o “procedimento da Lei n. 10.409/02 para
crimes previstos nela, como todos foram vetados, não há de ser aplicado” ·. Depois, de
forma relutante e não muito clara,64passou a manifestar-se no sentido de que a simples
não observação do rito da nova lei não gera a nulidade do processo, justificando na
necessidade de comprovação do prejuízo, uma vez que o sistema processual penal pátrio
63 THUMAS, Gilberto; PACHECO FILHO, Vilmar Velho. Op. cit., p. 177. 64 STJ, Min. Rel. José Arnaldo da Fonseca, EDHC 26195/SP, 17/11/2003.
26
adotou, no art.563 do CPP, o princípio de nullité sans grief, ou seja, a nulidade em razão
da defesa preliminar, deve vir acompanhada de efetivo prejuízo à defesa.65
Porém, a Ministra Laurita Vaz, em mais de uma oportunidade vem mostrando
seu inconformismo com a não aplicação obrigatória do procedimento descrito na Nova
Lei Antidrogas. Seu posicionamento gerou frutos, pois o STJ passou a ver com outros
olhos esta questão, tanto que já se manifestou no sentido de que o problema deve ser
decidido com base no art. 2º da LICC, devendo a Lei n. 10.409/02 ter aplicação
imediata, revogando o que está disposto em contrário.66
Mas, foi com o HC nº 30.543/DF, em que o Superior Tribunal de Justiça, pela
primeira vez, concedeu a ordem para anular o processo em que não havia sido aplicado
o procedimento disposto na Lei 10.409/02, ficando definitivamente sedimentado o
assunto.
O procedimento criminal, aplicável aos delitos dos artigos 12, 13 e 14 da Lei
6368/76, pode ser sintetizado da seguinte forma: uma vez preso em flagrante o
indiciado, o artigo 21 da Lei 6368/76 manda que a autoridade policial remeta os autos,
no prazo de 5 dias (30 dias em caso de indiciado solto, de acordo com o artigo 21,
parágrafo primeiro, da Lei 6368/76), para o juiz competente, que deverá remetê-los ao
Ministério Público, a cujo representante designado incumbe oferecer denúncia,
arrolando no máximo 5 testemunhas e requerendo diligências (art.22). Seguem os autos
conclusos para o juízo de recebimento da denúncia. Recebida a exordial, o juiz
determinará a citação ou requisição do réu para comparecimento ao interrogatório, que
deve se realizar dentro dos 5 dias seguintes (art. 22, parágrafo terceiro). Realizado o
interrogatório, “será aberta vista à defesa, para, no prazo de 3 dias, oferecer alegações
preliminares, arrolar testemunhas até no máximo de 5 e requer as diligências que
entender necessárias” (art. 22, parágrafo sexto). O juiz, no prazo de 48 horas, deve
proferir despacho saneador, designando audiência de instrução e julgamento e, por
derradeiro a prolação de sentença.67
Observa-se, dessa forma, o caráter repressivo da aludida legislação, tanto no
âmbito do direito material, como no direito processual e que o legislador de 1976 não
estabeleceu um rito mais garantidor ao acusado, tendo ainda cominado penas
65 THUMAS, Gilberto; PACHECO FILHO, Vilmar Velho. Op. cit., p.178-179. 66 THUMAS, Gilberto; PACHECO FILHO, Vilmar Velho. Op. cit., p.182. 67 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., 73-74.
27
gravíssimas para os crimes descritos na lei. Adotando, portanto, um procedimento
especial bastante concentrado, no qual se destaca uma preocupação exagerada com a
celeridade, conforme se pode verificar pela exigüidade dos prazos estabelecidos para os
diversos atos processuais. 68
Surge, então, a Lei nº 10.409/02, que renovaria, não tivesse sido ela
abundantemente vetada, a disciplina legal no que tange ao problema das drogas,
conforme já dito. Todavia, analisemos o procedimento penal, que não foi vetado pelo
Presidente da República e, como vimos é o que vigora hodiernamente.
Pode-se resumir o procedimento da nova lei de tóxicos, da seguinte forma:
encerrada a fase inquisitorial – réu preso 15 dias, se solto 30 dias, adimitindo-se uma
prorrogação pelo mesmo período. O Ministério Público, de posse do inquérito policial
tem o prazo de 10 dias para denunciar ou requerer diligências. Caso opte de imediato
pelo oferecimento da denúncia, o indiciado antes do recebimento da mesma tem direito
a defesa preliminar, no prazo de 10 dias. Não apresentando o réu esta, nomeia-se
advogado dativo para ele. Pode o acusado, nesta oportunidade pedir a desclassificação
para o artigo 16 (usuário e não traficante). Posteriormente, cabe ao juiz receber ou
rejeitar a peça acusatória, caso acolha o pedido de desclassificação haverá rejeição e
remeça dos autos aos juizados criminais. Recebendo a peça acusatória irá designar
audiência de instrução, debates e julgamento. Sendo que o interrogatório ocorrerá na
própria audiência. Contudo, é verdade que o artigo 38 da nova lei prevê um outro
interrogatório, antes do recebimento da peça acusatória, o que seria um equívoco,
segundo Luiz Flávio Gomes. Porém, a melhor interpretação do texto legal diz que o
interrogatório é único,69 a corrente que preceitua a existência de dois interrogatórios –
um antes do recebimento da denúncia e o outro, no início da audiência de instrução e
julgamento é o que mais coaduna com os postulados constitucionais e, em particular o
da amplitude de defesa – art. 5º, LV. O interrogatório do acusado, inequivocamente é
um meio de defesa, agrega-se à defesa escrita, no objetivo de convencer o juiz que a
denúncia deve ser rejeitada ou da inocência que ao final da instrução criminal será
confirmada. O interrogatório, previsto no artigo 38, tem por finalidade colher o
68 ALMEIDA, Gevan de Carvalho. Op. cit., p. 307. 69 GOMES, Luiz Flávio. Direito Processual Penal – São Paulo: Revista dos Tribunais: IELF, 2005. p.
305.
28
depoimento pessoal do acusado, cuja prova também poderá servir para embasar o juiz
quanto ao recebimento ou rejeição da denúncia.70
O atual procedimento, cuja aplicabilidade aos processos pela infração aos delitos
dos artigos 12, 13 e 14 da Lei 6368/76 ainda é duvidosa, pois consegue concentrar toda
a fase instrutória apenas num único ato processual. Contudo, possui novidade bem-
vinda foi à instituição da defesa prévia anterior ao recebimento da denúncia. Mesmo
assim, esta inovação legislativa raramente importará em algum benefício real ao
acusado, uma vez que os delitos de tráfico de drogas e assemelhados são praticamente
indefensáveis. Da mesma forma, os réus são normalmente pessoas pobres, que sempre
terão muitas dificuldades em arregimentar provas.71
É significativo o fato de que o procedimento penal relativo aos crimes de drogas
ilícitas tenha, durante anos, paulatinamente sido cada vez mais abreviado, na razão
direta do interesse que a comunidade internacional e a imprensa vêm dedicando ao
assunto. Como explica Dinamarco, “as diferenças de procedimento refletem, somente, o
juízo do legislador sobre forma e intensidade de participação do próprio agente do poder
e das pessoas interessadas”72. Pode-se concluir, que, para o legislador, esta sumarização
significa respostas rápidas à demanda social sobre o crime. Nilo Batista explica que uma
das conseqüências da fé na equação penal – se houve delito tem que haver pena, com
uma condenação de preferência:
“reside no incômodo gerado pelos procedimentos legais que intervêm para a atestação judicial de que o delito efetivamente ocorreu e de que o infrator deve ser responsabilizado penalmente por seu cometimento. Tensões graves se instauram entre delito-notícia, que reclama imperativamente a pena-notícia, diante do devido processo legal, da plenitude de defesa, da presunção de inocência e outras garantias do estado democrático de direito, que só se liberarão quando alcançar o delito-sentença “73.
70 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 78. 71 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 80. 72 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. São Paulo: Malheiros, 2003,
p.17 73 BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no capitalismo tardio, in RBCCrim. São Paulo: Ed. RT, jan-
mar/03, nº 42, p. 245-246.
29
A sumarização do procedimento não é um evento isolado da legislação de
tóxicos brasileira, haja vista a Emenda Constitucional nº 45, que traz a garantia do
processo por prazo razoável, no sentido de que este não deve demorar muito. O que se
questiona é qual seria o limite desta sumarização, até que ponto esta “dromologia”
(expressão usada por Aury Lopes Júnior) não finda por lesionar as garantias do devido
processo legal. O que se busca é a construção de procedimentos adequados e aderentes à
realidade social e que signifiquem simplificação do sistema criminal, sem com isso
afrontar as garantias individuais. Em linhas gerais, nos procedimentos ordinários de
crimes mais graves e com penas mais severas deve-se verificar a máxima expressão das
garantias do devido processo legal, ao passo que quando analisadas as alternativas
adotadas para a simplificação dos procedimentos criminais, constata-se a existência de
restrições à plena manifestação de tais garantias. O moderno e garantista processo penal,
contudo, de acordo com seu posicionamento crítico e metodológico aponta como
solução à utilização do princípio da razoabilidade, devendo o processo ter prazo
razoável e procedimento integral e, conseqüentemente legal. Deve-se equacionar o
equilíbrio entre a tensão decorrente da necessidade de um sistema processual viável,
eficaz e a imprescindibilidade de serem asseguradas as garantias da acusação e da
defesa. A verdadeira eficiência processual é aquela que também engloba a eficiência no
reconhecimento e na observância das garantias processuais, sob pena do procedimento
ser considerado ilegal, mesmo que seja na íntegra cumprido o estabelecido pela lei.
É necessário que o procedimento estabelecido para a apuração de qualquer crime
conte com determinadas fases, que tenham por escopo viabilizar sua defesa da forma
mais ampla possível, ou seja, um procedimento que atenda ao devido processo legal, de
modo a preservar as garantias nele impressas.
O procedimento teria, portanto, valor de penhor da legalidade no exercício do
poder, uma vez que a lei aponta o modelo que deve ser seguido pelos atos do processo,
sua seqüência, seu encadeamento, de maneira a garantir que cada procedimento
realizado em concreto terá conformidade com o modelo preestabelecido. Isso não
significa, contudo, que essa garantia diz respeito tão-somente à mera legalidade, o que
há de ser ressaltado é a estrutura de oportunidades e de respeito a faculdades e poderes
30
processuais, que tanto a Constituição como a lei impõem ao juiz, como forma de
assegurar o devido processo legal.74
Nesse diapasão, deve ficar claro como fator de segurança para as partes e como
advertência para o juiz, a substancial exigência de preservação das garantias
constitucionais fundamentais do processo, expressas no contraditório, igualdade,
inafastabilidade de controle jurisdicional e na cláusula do devido processo legal.
Diante disso, questiona-se o exíguo procedimento da Lei 10.409/02, o qual traz a
vantagem da defesa prévia, sendo esta relativa, uma vez que os denunciados, em sua
maioria, via de regra, são pessoas miseráveis, que terão enormes dificuldades para
reunir testemunhas e documentos. Assim, raramente apresentarão uma peça que consiga
elidir uma denúncia.
Agora, ultrapassada a fase anterior ao recebimento da denúncia, o que se segue é
simplesmente a audiência de instrução e julgamento, na qual deverão ser realizados o
interrogatório do denunciado, a inquirição das testemunhas de acusação e de defesa, os
debates orais e, por fim, a prolação da sentença. Não possui tempo a defesa de
desmentir eventual testemunha que minta em juízo, nem de requerer diligências, cuja
necessidade tenha surgido da prova oral. Tampouco poderá a defesa refletir com
tranqüilidade a respeito de todos os elementos de convicção reunidos ao longo do
processo para expor suas razões defensivas por escrito.75
Indaga-se, portanto, a legalidade do mencionado procedimento, mesmo que tenha sido cumprido na íntegra. Assim sendo, não pode deixar de considerar louvável a instituição do
contraditório anterior ao recebimento da denúncia. Contudo, se o procedimento
observado fosse o ordinário, com audiências separadas, possibilitando-se ao réu mais do
que cinco testemunhas, bem como deduzir suas razões finais de defesa com tempo
suficiente para refletir sobre toda prova produzida. Deveria ser assim, a fim de reduzir a
possibilidade de erros judiciais. Ao não prever a lei nº 10.409/02 estas oportunidades,
em sua fase posterior ao recebimento da denúncia que contempla uma só audiência,
expõe-se o novo estatuto aos riscos de perder sua vigência, através do controle de
74 CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, 13. ed. São Paulo: Malheiros,
1997, p. 131. 75 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 93.
31
constitucionalidade difuso, por violar o princípio do devido processo legal, sob o ângulo
procedimental. 76
Conforme José Carlos Barbosa Moreira “uma justiça lenta demais e decerto uma
justiça má, daí não se segue que uma justiça muito rápida seja necessariamente boa” 77,
portanto, deve-se ter em mente que o desfecho do processo por prazo razoável é uma
garantia do indivíduo, que jamais poderá ser utilizada para desfavorece-lo.
Além, da questão da sumarização, a lei 10.409/02 vem ensaiar um primeiro
passo para a introdução, em nosso ordenamento jurídico, das chamadas “testemunhas
sem rosto” – prevista no art. 55 – “havendo necessidade de reconhecimento do acusado,
as testemunhas dos crimes de que trata esta lei ocuparão sala onde não possam ser
identificadas”, em clara violação ao direito do réu estar presente às atividades de
instrução probatória, produzidas no processo, direito de presença este que integrando a
autodefesa, constitui desdobramento inseparável da garantia da ampla defesa. Além de
contemplar meios invasivos de busca de prova, como quebra de sigilo de dados
pessoais, interceptações de comunicações telefônicas, a escuta ambiental, a observação
à distância. Assim, faz lembrar, mais uma vez, das bruxas e hereges, que deviam se
submeter às torturas da inquisição medieval, para revelar a verdade pela confissão. O
toque mais moderno “civilizado”, apenas substitui a tortura por formas mais científicas
e fisicamente indolores de intervenção sobre a pessoa, mas sempre mantendo o mesmo
objetivo de fazer com que, pelo próprio indivíduo, se revele a verdade sobre suas ações
tornadas criminosas.78
Ao lado destes meios invasivos, instalam-se a ação controlada e a infiltração de
agentes policiais e premia-se a delação, rompendo-se com o mínimo de racionalidade,
com transparência e com o necessário conteúdo ético que hão de orientar qualquer
atividade em um Estado Democrático de Direito. Com a delação premiada, invertem-se
as premissas. Agora, é a traição que aparece como positiva, merecendo até mesmo um
prêmio. Com o elogio e a recompensa á conduta traidora, o que o Estado está fazendo é
exercer um papel deseducador no âmbito das relações entre os indivíduos, acabando por
transmitir valores tão ou mais negativos do que os valores dos “criminosos”, que diz
76 NASCIMENTO, André Filgueira. Op. cit., p. 106. 77 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. In Moreira, J.C.B. Temas de
direito processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 5. 78 KARAM, Maria Lúcia. Políticas de drogas: alternativas à repressão penal, in IIBCCrim. São Paulo:
RT, jan-mar/04, nº 47, p. 371.
32
querer enfrentar. Dessa forma, o maior perigo da criminalidade nas sociedades
modernas não é o crime em si mesmo, mas sim o de que a luta contra este acabe por
conduzir tais sociedades ao totalitarismo.79
Diante do exposto, enquanto não for declarada a inconstitucionalidade do
procedimento da lei 10.409/02, apenas a parte relativa á instrução criminal ( art. 37 ss)
deve ser aplicada. Na parte policial continua a valer a lei 6368/76, sendo que, de
qualquer forma as omissões são supridas pela utilização subsidiária do Código de
Processo Penal.
A Presidência da Republica e o Poder Legislativo, cientes da péssima lei que
juntos criaram, cuidaram de remediar a situação. Estava tramitando nas casas
legislativas o PL nº 6.108/02, de autoria do Poder Executivo, que modifica a lei nº
10.409/02, cujo objetivo é o de inserir novos dispositivos – inclusive os crimes - no
lugar dos que foram vetados, revogando de uma vez por todas e completamente, a lei nº
6368/76. Com um método um pouco diferente, uma Comissão Mista do Senado Federal
elaborou o PL nº 7.134/02, que, se aprovado, disciplinará em sua totalidade a questão
das drogas, com a previsão de crimes, de novo procedimento, revogando expressamente
não só a lei nº 6368/76, como também a própria recém-nascida lei nº 10.409/02.
É patente o vínculo que se instala entre o atual procedimento criminal
antitóxicos e a política bélica de repressão ao tráfico de drogas ilícitas, sendo a primeira
conseqüência da segunda. Conclui-se que essa política criminal genocida e excludente
acaba por extirpar cada vez mais garantias penais e processuais, instalando em nosso
Ordenamento Jurídico um Direito Penal inquisitivo-maximalista, contrariando, assim, a
opção garantista-minimalista, funcionando o processo penal apenas como simulacro de
tutela às garantias constitucionais do indivíduo.
3 POLÍTICAS CRIMINAIS DE DROGAS NO BRASIL: ALTERNATIVAS À
REPRESSÃO PENAL
À primeira vista, gostaria de registrar a concepção do fenômeno criminal,
formulada pelo filósofo e sociólogo francês Émile Durkheim, a fim de entendermos o
crime como algo normal e inevitável a toda e qualquer sociedade humana.
79 KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 372.
33
“Estamos, pois, em presença de uma conclusão assaz paradoxal
em aparência. Mas é necessário não cair em erro. Classificar o
crime entre os fenômenos de sociologia normal não é apenas
dizer que constitui fenômeno inevitável, embora lamentável e
devido à maldade incorrigível dos homens; é afirmar que é um
fator de saúde pública, uma parte integrante da sociedade sã.
Este resultado é, à primeira vista tão surpreendente que nos
desconcertou durante muito tempo. Todavia, uma vez
dominada a primeira impressão de surpresa, não é difícil
encontrar as razões que explicam esta normalidade e,
concomitantemente, a confirmam.
Em primeiro lugar, o crime é normal porque seria inteiramente
impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele.
O crime é, pois necessário; ele se liga às condições
fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, tem sua
utilidade; pois estas condições de que é solidário são, elas
próprias, indispensáveis à evolução normal da moral e do
direito”.80
A explicação etiologia acerca do fenômeno criminal enunciada acima, tem como
corolário, neste precioso momento, quebrar preconceitos e transformar mentalidades.
De modo a romper com a globalizada política proibicionista, ditada pelos Estados
Unidos da América, e assegurar a prevalência lógica e uma racionalidade cujos centros
de referência se situem na dignidade e no bem-estar de todos os indivíduos, no respeito
à liberdade e na garantia de efetividade das normas fundantes do Estado Democrático de
Direito.
Em face de nossa atual conjuntura sócio-econômica, podemos vislumbrar no
crime, além de uma tendência inerente ao ser humano, um meio de sobrevivência, para
os excluídos do programa neoliberal. Nesse particular, possui como fatores
determinantes a miséria, a péssima distribuição de renda e o desemprego. Em
contrapartida vem a fecundidade prodigiosa da máquina legislativa, que a cada dia 80 DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 7.ed. Rio de Janeiro: Nacional, sd, p. 58 e
61.
34
produz novos tipos penais, que seria o fenômeno da “maximização” do Direito Penal ou
“panpenalismo”, que finda por criminalizar os meios de sobrevivência e os tratos
sociais.
Na realidade se cada cidadão praticasse um rápido exame de consciência,
comprovaria que várias vezes em sua vida infringiu as normas penais: não devolveu um
livro emprestado, levou a toalha de um hotel, apropriou-se de um objeto perdido etc.
Em consciência cada de um de nós tem volumoso prontuário.81
O sistema penal não se destina a punir todas as pessoas que cometem crimes,
nem poderia fazê-lo, sob pena de processar e punir, por várias vezes, toda a população.
Qual de nós poderia dizer que nunca cometeu um crime? ·82
Feitas todas essas considerações acerca do crime, como fenômeno inevitável e
inerente a toda e qualquer sociedade humana, cabe, agora, adentrar ao tema,
propriamente dito, objeto do presente trabalho, qual seja: através de um olhar crítico
dogmático perquirir a existência ou não de uma política criminal antidrogas no Brasil.
Tendo em vista, a globalizada opção política pelo proibicionismo, pautada na
transnacionalização do controle social, a influência dos movimentos de “Lei e Ordem”,
a doutrina da defesa social e o apego subsidiário à ideologia da Segurança Nacional,
estabelecidos pelos programas de segurança pública.
Para configurarmos a Política Criminal brasileira de entorpecentes, partiremos
da máxima de qualquer passo que possamos dar para minimizar o processo de
criminalização, ainda que restrita somente a um indivíduo, deve ser tomado, quando
realmente inspirado no interesse pelos direitos e garantias do homem e advindo de
vontade de mudança radical e humanista, e não de um reformismo tecnocrático cuja
finalidade e funções sejam relegitimar o sistema e instituições penais.83
Primeiramente, é mister ressaltar, que em relação ao uso de entorpecentes,
ocorre no Brasil um processo de descarcerização. O usuário brasileiro de drogas ilícitas
não é mais preso, hoje em dia, em decorrência da Lei dos Juizados Federais (Lei
10.259/01). O que não significa dizer que não é mais apenado com pena de prisão. A
Lei 6.368/76, que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico, no seu
81 PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. São
Paulo: RT, 1997, p. 58. 82 JESUS, Damásio Evangelista. Temas de direito criminal. São Paulo: Saraiva,1998, p. 11. 83 CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 159.
35
artigo 16, considera criminoso o usuário que adquirir, guardar ou trazer consigo droga
ilícita, prevendo pena privativa de liberdade (prisão) de 6 meses a 2 anos.
A Lei dos Juizados Especiais Federais não alterou essa definição legal. O
usuário continua sendo considerado criminoso. A novidade, no aspecto jurídico-penal,
decorre do parágrafo único, do artigo 2º, daquela lei. Pelo novo dispositivo, todo crime
com pena máxima não superior a 2 anos é considerado infração de menor potencial
ofensivo.
Isso significa dizer que, atendendo determinados requisitos (não ter condenação
anterior, não ter sido beneficiado anteriormente, bem como os antecedentes, a conduta
social, a personalidade do usuário e, ainda, os motivos e as circunstâncias indicarem), o
Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou
multa que, sendo aceita, será aplicada pelo juiz. Também significa que, se for preso em
flagrante, deverá se encaminhado imediatamente ao Juizado Especial Criminal ou,
assumindo o compromisso de a ele comparecer, não se lavrará a auto de prisão em
flagrante, nem se exigirá fiança.
Aliás, a possibilidade de substituição da prisão por outra medida penal para o
usuário não é novidade no nosso ordenamento legal. Ela já ocorre com a suspensão
condicional do processo, da pena e substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos ou multa.
Portanto, não ocorreu no Brasil uma mudança na política antidrogas, como está
ocorrendo no mundo afora. Continuamos seguindo o slogan norte-americano, lançado
no início dos anos 80: “Guerra às drogas, sem fronteira”, apesar do visível fracasso da
abordagem punitiva para a solução do terrível problema das drogas.
No que tange ao usuário, há, ainda, quem não se contente com o atual tratamento
dado a eles (Maria Lúcia Karam). Alegando que faz parte da liberdade, da intimidade e
da vida privada a opção por fazer coisas, que pareçam para outros – ou que até,
efetivamente, sejam – erradas, “feias”, imorais ou danosas a si mesmo. A dignidade da
pessoa humana, reconhecida desde das origens do Estado democrático de Direito,
impede a transformação forçado do indivíduo. Enquanto não afete direitos de terceiros
pode ser e fazer o que bem lhe aprouver. Sendo assim, condutas privadas, em que
ausente a concreta afetação de bem jurídico de terceiros, não podem ser objeto de
intervenção do Estado sobre os indivíduos que as realiza.84
84 KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 362.
36
Tratando-se da simples posse de drogas qualificadas de ilícitas para uso pessoal
ou de consumo em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual, a sujeição
obrigatória a tratamento médico, qualquer que seja este, sob o pretexto de uma dita
dependência, já tem sua incompatibilidade com princípios e regras constitucionais
revelada na já apontada violação da liberdade individual, da intimidade e da vida
privada. Mas, além disso, a sujeição obrigatória a tratamento médico sob o pretexto de
uma dita dependência, em quaisquer circunstâncias, implica, ainda, violação do
princípio da culpabilidade e, conseqüentemente, da própria norma constitucional, que
aponta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil.85
O princípio da Culpabilidade, como é sabido, diz respeito à capacidade de
escolha da pessoa humana e, assim, diretamente se relaciona com o conhecimento de
sua dignidade. Impedindo qualquer reprovação por uma escolha que a pessoa não pôde
fazer ou impedindo que se reprove quando não pode exercitar sua capacidade de
escolha, o princípio da culpabilidade integra-se aos princípios limitadores do poder do
Estado de punir, gerados pela função maior do ordenamento jurídico no Estado
Democrático de Direito de proteção da dignidade e dos direitos de cada indivíduo. 86
Já, no que diz respeito ao traficante, a posição político criminal é muito mais
delicada, visto que está inserido no processo de militarização da Segurança Pública.
Exigindo, dessa forma, aparelhos de repressão penal rígidos, os quais estão conexos
com as formações econômico-sociais de uma sociedade, onde se pode afirmar com
Foucault que a prisão para eles é uma máquina de seletividade penal.87Tal situação
encontra íntima relação com o capitalismo tardio, gerador de índices crescentes de
violência e criminalização, , hoje isto pode ser comprovado estatisticamente em todos os
países que incorporaram o consenso de Washington e suas políticas criminais. O
desmonte do Estado Previdenciário abriu caminho para a construção de gigantesco
Estado Penal, como demonstrado por Loic Wacquant ao analisar a nova gestão da
miséria nos Estados Unidos. Ele comprova o deslocamento da população desasistida
pela destruição dos programas assistenciais e sua recolocação no sistema penitenciário.
A clientela desse sistema penal são os inimigos cômodos, afro-americanos e hispânicos
85 KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 363. 86 Idem. 87 FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
37
na América, árabes e africanos na Europa, camponeses pobres e favelados na América
Latina.88
O ponto principal não é que a miséria produza criminalidade, mas que esta esteja
sendo criminalizada e brutalizada. A falta de oportunidade, a carência de valores, que se
exerce através da família, da educação, da medicina, da religião, dos partidos políticos,
dos meios de massa da atividade artística e da investigação científica está diretamente
ligada à entrada da população pobre na criminalidade, como meio de sobrevivência89. O
que finda por gerar um diagnóstico de exclusão desta parcela de brasileiros, que se
encontram em situação de calamidade, já massacrados pela miséria, pelo preconceito e
pela falta de oportunidades. Somando-se a isso, um Poder Público ausente e uma
sociedade desinformada contribuindo, juntamente, com a exclusão social, violência e
para o genocídio dessa camada excluída. Registrando, por derradeiro, a assombrosa
capacidade da sociedade se acostumar com isso.
A atual “guerra contra as drogas” cai como uma luva neste cenário. Imposta
pelos Estados Unidos da América como a política econômica, ela fracassa em tudo que
se propõe combater: produção, distribuição, dependência química, violência, corrupção.
Mas é funcional ao produzir um gigantesco processo de criminalização e
despotencialização da juventude pobre, criando medo, desesperança e despolitização.
Esta guerra importada, que transformou os países andinos em campos de batalha,
produziu uma mudança histórica nos sistemas penais contemporâneos . Desde a
consolidação da prisão como principal pena do mundo ocidental, na virada do século
XVIII para o século XIX, as estatísticas criminais apontam para uma grande maioria de
presos por crimes contra a propriedade. Nossas insanas políticas criminais anti-drogas
conseguiram inverter este dado histórico. Em pesquisa realizada sobre criminalização
por drogas no Rio de Janeiro, constatou-se que em 1968 8% dos adolescentes eram
envolvidos em atos infracionais relativos a drogas, em 1983 esse número já dobrava
para 16%, hoje as autuações por drogas são mais de 50 % do número total de jovens
encaminhados para o sistema.90
88 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 2001. 89 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 1998, p.61. 90 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.
38
Essa política criminal com derramamento de sangue fracassa em tudo que se
propõe combater ela é, um sucesso na criminalização e barbarização das periferias
brasileira. Formada por lógica consumista e performática, essa forma de combate
combina esquizofrenicamente com uma sociedade que precisa se drogar intensamente,
com a brutalização dos jovens pobres que emprestam suas vidas baratas e descartáveis
para os difíceis ganhos fáceis da comercialização varejista dos gozos neoliberais. Que
são culpabilizados por serem negros, pobres, desempregados e sem esperança, por
serem levados aos bicos dos tráficos, os jovens brasileiros superlotam as prisões e vão
se juntar aos esteriótipos globais na construção do que o jovem Bush denominou de
“eixo do mal”. 91
Este discurso e este modelo penal, vem junto com o sistema econômico que nos
é imposto, qual seja o neoliberal, que também fracassou em quase tudo que se propôs,
soma-se, ainda, ao capitalismo tardio vivenciado por nosso país.
Contrapondo-se à repressão penal, tem-se importante alternativa na linha
terapêutica-assistencial seguida pelos programas e ações de redução de danos
eventualmente causáveis por um consumo excessivo, descuidado ou descontrolado das
substâncias psicoativas. Aceitando as evidências de que as pessoas não deixarão de
consumir tais substâncias e que a atitude mais racional e eficaz para minimizar as
conseqüências adversas do consumo de drogas – lícitas ou ilícitas – está no
desenvolvimento de políticas de saúde pública, que possibilitem que este consumo se
faça em condições que ocasionem o mínimo possível de efeitos danosos para o
indivíduo consumidor e para a sociedade, os programas de redução de danos contém um
claro questionamento à uniformização do enfoque negativo dado às drogas tornadas
ilícitas, ao romper com as generalizadas premissas demonizadoras destas substâncias e
das pessoas que com ela se relacionam.92
Desde logo, cabe ressaltar que troca de seringas, a distribuição de cachimbos
para o uso de crack, a substituição de substâncias psicoativas, a manutenção de locais
para consumo seguro e outras ações igualmente informadas pela linha terapêutico-
assistencial dos programas de redução de danos, longe está de ser objeto de repressão
penal, pois tais ações não são afetadoras da saúde pública, sendo, ao contrário, redutoras
dos riscos àquele bem jurídico, o que as faz permanecer fora do campo de eventuais
91 Idem. 92 KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 366.
39
proibições legislativamente expressas. Na realidade, é dever do Estado promover os
programas e ações de redução de danos, como decorre, especialmente, da regra do art.
196 da CF/88. Remarque-se que, nas hipóteses de consumo abusivo de drogas ilícitas, o
controle social formal se faria por meio da própria intervenção do sistema penal, sem
que isso afetasse a legalidade da produção, da distribuição ou do consumo não-abusivo
daquelas substâncias psicoativas.93
A severa criminalização do tráfico de drogas não está a serviço da saúde pública.
Qualquer estatística disponível demonstra que o número de mortes causadas pelo abuso
das substâncias psicoativas proibidas é ínfimo, se comparado com o número de mortes
causadas por drogas lícitas (tais como tabaco, álcool, antidepressivo, remédios para
emagrecimento e etc.)94. Esta criminalização deve ser lida no contexto econômico e
social nacional, que não difere substancialmente da realidade latino-americana, embora
apresente algumas particularidades. Dessa leitura exsurgirá a conclusão de que a
criminalização está a serviço do Estado neoliberal, pois propicia o encarceramento e o
sepultamento em vida de grandes contingentes da população excluída e até mesmo seu
extermínio impune.
Este tem sido o panorama europeu, neste particular, o que não significa estímulo
ou negligência com o uso de drogas. Ao contrário, constata-se que o modelo punitivo
norte-americano, hegemônico nas últimas duas décadas, está sendo substituído por
programas de redução de danos; ou seja, o uso de drogas está deixando de ser
enfrentado como um problema policial, para ser uma questão de saúde pública, com
visível vantagem para a sociedade.
Podemos usar como exemplo, o que aconteceu nos Estados Unidos com a
proibição do álcool, no começo do século passado. A legalização da produção e do
consumo de álcool não reduziu o número de pessoas que bebiam. Na realidade, no
primeiro período após a legalização, o consumo aumentou. E o mesmo aconteceria com
as drogas.
Constata-se que o tratamento penal dado ao tráfico de drogas marca o encontro
de todos os discursos repressivos, não sendo gratuito o sucesso que doutrinas totalitárias
como “tolerância zero” e “ vidraças quebradas” vêm alcançando no seio das elites de
muitos países. A imprensa, nesse particular, desempenha papel fundamental, ao difundir
93 KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 368. 94 Veja, por exemplo, boletim nº 44 (mar/abr/mai 2001) do Centro brasileiro sobre drogas psicotrópicas.
40
diariamente pânico e terror com notícias sobre criminalidade. Sua incidência ascendente
é retratada como uma ameaça à ordem, à normalidade, induzindo todos a pensar que a
repressão penal é a única solução. O que, ao contrário do que pensa a sociedade, é uma
medida inócua, pois repressão com mais repressão só vai gerar mais mortes, mais
crimes, mais gente presa, sem diminuir minimamente a sensação de insegurança. A
onda de ação e reação não resolve. Penas mais rigorosas, mais armamentos para
policiais, mais restrições aos presos, mais limites à liberdade dos cidadãos não tem o
condão de exterminar a violência e a criminalidade no país. É a barbárie contra a
barbárie, truculência contra truculência, poder de fogo contra poder de fogo. Por esse
caminho semeia-se, única e exclusivamente, o caos e a tragédia social. Para enfrentar o
problema do tráfico de drogas, hoje, precisa-se de medidas compatíveis com o Estado
Democrático de Direito consagrado em nossa Constituição. Registra-se, também, que
essa inflação legislativa de nada adianta, uma vez que o cerne da questão não é jurídico
e sim político, sendo oriundo de um processo cumulativo, cujo combustível é a extrema
desigualdade social do país. Enquanto esse problema não for atacado seriamente pela
sociedade brasileira, será impossível livrar nosso cotidiano da violência. O que a
cidadania não pode é deixar-se levar pela insolvência e pela agressividade dos que
advogam a barbárie e abdicar dos princípios do direito. O que pode derrotar a barbárie é
a civilização, não a truculência, tendo em vista que a espiral de violência se retro-
alimenta e o crime acaba vencendo, na medida em que o Estado renuncia ao Direito e
imita seus inimigos.
Conclui-se, por derradeiro, que o modelo político criminal antidrogas brasileiro
de controle e combate às drogas, finda por viabilizar uma Política Criminal bélica –
genocida . Tal política advém de processo de transnacionalização do controle social e
potencializa-se, no país, por tríplice base ideológica: Defesa social e Segurança
Nacional, enquanto ideologias em sentido negativo, e pelos movimentos de “Lei e
Ordem”, entendidos como ideologia em sentido positivo. O que afronta o viés do
Direito Penal mínimo garantidor, oriundo da Escola Clássica, aliado ao garantismo sob
a acepção do Estado Democrático de Direito. Soma-se, a essa esdrúxula política
criminal antidrogas, a absoluta incapacidade institucional do país para enfrentar os seus
problemas sociais, os quais acabam por gerar e aumentar a criminalidade. O tráfico de
drogas e a informalidade, funcionam na maioria das vezes, como estratégia de
sobrevivência para os excluídos do sistema neoliberal. Verifica-se, assim, uma contínua
conversão das mazelas sociais de extrema complexidade para a associação fatal crime-
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pena, quando deveriam ser concebidos e resolvidos no espaço da cidadania. Registre-se,
também, paradoxalmente e absurdamente, que o medo e a insegurança, no atual período
democrático, permitem ao Estado medidas simbólicas cada vez mais autoritárias,
percebidas especialmente, pela edição de leis penais cada vez mais severas e
legitimadas por demandas sociais de proteção, principalmente, da elite. O resultado
disso é uma justificação da dominação autoritária com o isolamento gradativo e
voluntário das prováveis vítimas desse modelo econômico. Esta base econômica é tão
perversa que desmoralizou as democracias representativas, construindo estatísticas de
encarceramento, tortura e extermínio infinitamente superiores aos do período da
ditadura militar no Brasil. Essa forma contemporânea do poder penal se encontra com
nossa herança escravista, com a tragédia dos povos indígenas, com o massacre
fundacional da República, nossa história de colônia vai-se reproduzindo por si mesma.
Nós permitindo assistir, atualmente, ao espetáculo do crescimento dos dispositivos
penais; a transformação do Estado Previdenciário no Estado Penal, em razão do
Neoliberalismo. É em virtude da questão criminal que está ocorrendo a principal luta
política; a discusão da segurança pública é o grande palco da construção do poder,
porque é aí que o neoliberalismo faz água e que incide a contradição fundamental, como
dizia o imprescindível Karl Marx. Assim, passa-se a legitimar toda e qualquer prática
penal, processual e penitenciária em nome da dita Segurança Pública, mesmo que isto
venha a sacrificar os pilares do Estado Democrático de Direito consagrado em nossa
Carta Política, que em seu atual estágio não admite regressão. Sendo eloqüente o
desvirtuamento e a inaptidão de efeitos das medidas legislativas tomadas. Em razão da
vulnerabilidade que se encontra todos os setores da sociedade, sendo, facilmente, todos
corrompidos, pelo simples fato disso lhe oportunizar gozar de melhores condições de
sobrevivência, mesmo que isso lhe importe infringir normas jurídicas. Mais penoso que
essa carga pecaminosa na consciência é a falta de condições dignas de subsistência para
si e seus familiares, que, muitas das vezes nem assim são alcançadas. Por essas e outras
razões, os papéis estão se invertendo, os criminosos estão ganhando a guerra, modernos,
eles atuam em sistema de rede e conexões, unidos sob um comando centralizado. Já a
União e os Estados ficam se acusando de cortar verbas do combate à violência, e não
conseguem se unir em torno de um projeto comum e articulado, de um sistema único de
segurança pública, resultando na inércia estatal, culminando numa efetiva crise no
Direito, que se manifesta sobre a:
42
“inflação legislativa provocada pela pressão de interesses
setoriais e corporativos, na perda de generalidade e abstração
das leis-providência, no processo de descodificação e no
desenvolvimento de uma legislação avulsa, até em matéria
penal, sob o signo da emergência e da exceção”95.
De todo o exposto percebe-se, que o problema não se resolve com a cômoda
situação de editar leis repressivas, ou seja, com essa esteria punitiva. O Poder Público
deve atuar de forma preventiva e não curativa, esperando que o caos se instale para
inserir-se nas “legislações de pânico”, que acabam por agravar a situação de medo e
insegurança que assola o país, na atualidade. O fato é que os governos, empenhados em
combater o terrorismo que se instalou, acabam se arrogando de poderes excepcionais e
utilizando-os até mesmo contra os próprios cidadãos, pondo em “Tábua rasa” direitos e
garantias constitucionalmente consagradas. “A população desesperada, totalmente
incrédula, sem ter a mínima idéia da quantidade enorme de fatores que contribuem para
a impunidade e sem ter a mínima idéia de como combate-los, pede o irracional (pena de
morte), o inconstitucional (prisão perpetua), o absurdo (agravamento de penas, mas
rigor na execução) e o aberrante (diminuição da maioridade penal). Percebe-se a anomia
e pede mais leis! Percebe-se que o Direito Penal não funciona, mas crê que o problema
está na pena que foi insuficiente. E, concomitantemente o Poder Público, por seu turno,
atende (Lei dos Crimes Hediondos, por exemplo) ou faz gestos de que vai atender a
todos ou alguns desses atávicos reclamos sociais”96. Deve-se, portanto, ter uma visão
política do Direito, em sentido amplo, para não incorrer em erro, uma vez que nem
sempre a solução estará na seara jurídica. ‘O cerne da criminalidade e da sua
impunidade é muito mais complexo do que o imaginário popular alcança enxergar, é
muito mais profundo do que o simbolismo e a simplicidade das medidas legais. Até
quando perdurará a ignorância? Até quando os que detêm o poder abusarão da nossa
paciência?”97.
95 FERRAJOLI, Luigi. “O Direito como sistema de garantias”, publicado in: O Novo em Direito e
Política, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 90. 96 GOMES, Luiz Flávio. A impunidade no Brasil: De quem é a culpa?. R. CEJ, Brasília, n.15, p. 35-50,
set/dez 2001, p. 49. 97 Gomes, Luiz Flávio. Op. cit., p. 35-50, set/dez, 2001, p. 50.
43
CONCLUSÃO
Este trabalho permitiu constatar a inocuidade da Política Criminal de drogas
brasileira, que fracassa em tudo que se propõe combater, sendo somente eficaz no
sentido de formar um gigantesco sistema penal em substituição ao Previdenciário, tendo
em vista seus escopos ocultos - criminalizar a população marginalizada e os conflitos
sociais. O aludido modelo penal é importado dos EUA, porém, sem que se dê atenção as
peculiaridades latino-americanas, prevalecendo os interesses norte-americanos em terras
tupiniquins, fazendo-nos comportar como verdadeiros réus, visto que na realidade não
estão preocupados com a saúde dos jovens brasileiros ou segurança de nosso país e, sim
em manter sua interferência política, na medida em que vivemos o holocausto da
globalização.
O discurso bélico norte-americano de “ameaça à segurança nacional”,
protagonizado pelo inimigo interno, há décadas vêm sendo praticado no âmbito da
segurança pública brasileira, tendo se sedimento nos anos 60 e 70, no que Salo de
Carvalho denominou de “fusão dos horizontes da punibilidade”, aplicando sem
cerimônia as táticas de repressão militar. Esta política criminal antidrogas se baseia em
três instâncias da ideologia punitiva: transnacionalização do controle, doutrina da defesa
social e nos movimentos de Lei e Ordem, devidamente legitimados pela mass media, o
diagnóstico dessa aliança é o Direito Penal do Inimigo, para dar conta do que Bush filho
chamou de eixo do mal: terroristas e traficantes. Soma-se a este perfil criminal bélico e
genocida o medo, arma capaz de incutir na população a idéia de que a única solução
para a sua segurança existencial se resume à segurança individual, cuja maior ameaça é
o crime, dessa forma, toda e qualquer prática penal, por mais arbitrária e menos
garantista que seja, é tolerada e permitida tudo em nome da Segurança Pública, sem
perquirir a ponderação dos interesses em jogo.
Ante o exposto, patente é a absoluta incapacidade institucional do país para
enfrentar os seus problemas sociais, os quais acabam por gerar e aumentar a
criminalidade e a informalidade, que funcionam, na maioria das vezes, como forma de
sobrevivência para os excluídos do perverso sistema neoliberal. Verifica-se, assim, uma
contínua conversão dos problemas sociais de extrema complexidade para a associação
fatal crime-pena, quando deveriam ser concebidos e resolvidos no espaço da cidadania.
Registre-se, por derradeiro, paradoxalmente, o medo e a insegurança, no atual período
democrático, permitem ao Estado medidas simbólicas e autoritárias, percebidas
44
especialmente, pela edição de leis penais cada vez mais severas e legitimadas por
demandas sociais de proteção, principalmente, da elite.
Neste universo o tráfico de drogas assumiu um protagonismo natural, da
atividade a ser reprimida, pois dela emanam todas as outras, típicas do crime
organizado: tráfico de armas, roubos, seqüestros, lavagem de dinheiro, dentre outras,
fazendo com que a partir dos anos 80 do século XX, nossa legislação penal aperfeiçoa-
se seu potencial bélico. Com a Lei de Crimes Hediondos institui-se um oceano de
criminalização sem perspectivas, projetos de exclusão, preconceito e falta de
oportunidades. Acrescente-se a Lei de Crime Organizado e o cenário econômico-
transnacional que institui uma nova geopolítica, a do aparthaid: de um lado a
supremacia ocidental consumista e performática; de outro, os criminalizáveis,
produtores de petróleo e cocaína, terroristas e narcotraficantes.
O resultado disso é uma justificação da dominação autoritária com o isolamento
gradativo e voluntário das prováveis vítimas da incessante acumulação de capital,
fazendo com que esses excluídos do neoliberalismo sejam relegados a condição de
dejetos humanos, em verdadeiro processo de demonização, permitindo políticas sociais
genocidas a pretexto do combate ao tráfico ilícito de drogas. Muitas pessoas perdem
suas vidas, em razão disso, ou melhor, da guerra contra as drogas, como demonstram as
estatísticas oficiais sobre homicídios praticados pela polícia.
Creio que seria demais exigir educação e respeito dessa parcela da população às
leis, se delas só receberam a morte, o cárcere e a cadeira-de-rodas. Jamais surtirá efeito,
debruçada nesses dogmas a Política Criminal Antidrogas brasileira será ad eternum
ineficaz, salientando cada vez mais as desigualdades socias, o caos e a barbárie. Caso a
solução fosse a estéria punitiva, a expansão do Direito Penal do Inimigo, hoje, não
estaríamos discutindo a questão da Segurança Pública, pois esta seria perfeita, sendo
assim pugnamos pela substituição do estado penal maximalista-inquisitivo para o
minimalista-garantista antitóxicos.
Neste compasso, a produção legislativa antitóxicos seguindo esta tendência de
transformar o estado de emergência em regra, com leis marcadamente repressivas e
contraditórias as garantias constitucionais processuais, instala verdadeiro processo de
sumarização dos procedimentos antitóxicos, alcançando seu ápice na Lei 10.409/02,
vítima de intensa dromologia, motivada pelas insanas ideologias da Política Criminal
Antidrogas. Na referida legislação há gritante concentração dos atos processuais, que se
mostra tão latente a ponto de afrontar o devido processo legal e suas garantias
45
constitucionais contraditório e ampla defesa, indispensáveis para que o processo penal
possa atingir, devidamente, sua finalidade resolutória de conflito de interesse de alta
relevância social. De acordo com Barbosa Moreira “uma justiça lenta demais é decerto
uma justiça má, daí não se segue que uma justiça rápida seja necessariamente boa”. 98
Nem tudo, porém, na Lei 10.409/02, é ruim. A instituição da defesa preliminar
anterior ao recebimento da denúncia constitui inovação importante, na medida em
que propicia ao réu a oportunidade de demonstrar ao juiz a ilegalidade da instauração
da ação penal.
A face deste procedimento é resultante dos efeitos dos movimentos de “Lei e
Ordem”, que consente que se realize o processo penal apenas como simulacro de tutela
às garantias constitucionais do indivíduo.
Por derradeiro, registre-se que o objetivo principal deste trabalho foi demonstrar
que as variações do sistema penal estão intimamente relacionadas com as fases do
desenvolvimento econômico, motivo pelo qual a punição não deve ser entendida como
simples conseqüência do crime, mas sim como fenômeno ligado a outras esferas de
poder do Estado, sempre recondutíveis à política econômica. Dessa forma, é necessário
retirar da consciência popular a idéia de que a criminalização dos conflitos sociais é o
caminho a ser seguido, injetando-lhes uma dose de conscientização política e uma visão
crítica acerca dos fenômenos sociais e da dogmática penal.
98 MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. O futuro da justiça: alguns mitos. In Moreira, J.C.B.
Temas de direito processual- 8ª série. São Paulo, 2004, p. 5.
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