faculdade cÁsper lÍbero mestrado em comunicaÇÃo … · 2020-01-06 · 210 f. 2015....

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1 FACULDADE CÁSPER LÍBERO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO PEDRO ROBERTO RODRIGUES REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS EM DOCUMENTÁRIOS SOBRE A COMUNIDADE BOLIVIANA DE SÃO PAULO: O TRABALHO E A FESTA PEDRO ROBERTO RODRIGUES São Paulo 2015

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

PEDRO ROBERTO RODRIGUES

REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS EM DOCUMENTÁRIOS SOBRE

A COMUNIDADE BOLIVIANA DE SÃO PAULO: O TRABALHO E A FESTA

PEDRO ROBERTO RODRIGUES

São Paulo

2015

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PEDRO ROBERTO RODRIGUES

PEDRO ROBERTO RODRIGUES

REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS EM DOCUMENTÁRIOS SOBRE

A COMUNIDADE BOLIVIANA DE SÃO PAULO: O TRABALHO E A FESTA

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado da Faculdade Cásper Líbero para a

obtenção do grau de Mestre em Comunicação

na Contemporaneidade. Linha de Pesquisa:

Produtos Midiáticos, Jornalismo e Entreteni-

mento, sob orientação da Profª. Drª. Dulcília

Helena Schroeder Buitoni.

São Paulo

2015

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Rodrigues, Pedro Roberto

Representações audiovisuais em documentários sobre a comunidade

boliviana de São Paulo: O trabalho e a festa. Pedro Roberto Rodrigues. São Paulo, 2015.

210 f.: 30 cm. Orientadora: Profª. Drª. Dulcília H. S. Buitoni Dissertação (Mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de

Mestrado em Comunicação. 1. Representação Audiovisual. 2. Documentário. 3. Imaginário.

4. Comunidade Boliviana. 5. Trabalho e Festa. I. Buitoni, Dulcília H. S. II. Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação. III. Título.

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ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

PEDRO ROBERTO RODRIGUES

REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS EM DOCUMENTÁRIOS SOBRE

A COMUNIDADE BOLIVIANA DE SÃO PAULO: O TRABALHO E A FESTA

Data da Defesa: 1º de junho de 2015

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À minha mãe, que com todos os problemas que tivemos desde

quando eu comecei o mestrado e agora, mesmo longe,

é o meu alicerce e o motivo maior para eu viver.

Ao meu pai que não viveu para ver o meu êxito.

Meus nove irmãos. Thereza, Nair, José, Baptista, Maria de Lourdes, Dirceu,

Eugênio, Luiz Carlos e Flávio, que não estudaram o quanto deviam,

mas que, com certeza, tem orgulho da minha trajetória

acadêmica e profissional.

A você, Juninho, nosso anjo de luz que partiu tão cedo

e que dizia que juntava dinheiro para fazer a faculdade.

Força e Fé, meu sobrinho Ricardo e a sua esposa Nilce,

nesse momento de tanta dor.

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AGRADECIMENTOS

Meu agradecimento maior a minha orientadora, a professora doutora,

Dulcília Buitoni que, com paciência, e olha que foi com muita

paciência mesmo, e incansável orientou esta dissertação.

Ao também professor doutor Juan Guillermo Droguett

que deu muitas dicas preciosas para a minha pesquisa

e emprestou vários livros que estão neste trabalho.

Ao professor doutor Claudio Novaes Coelho que, assim como o professor Juan

fez parte da minha banca de qualificação e deu orientações significativas para o

desenvolvimento desta pesquisa.

Aos professores José Eugênio, Dimas Kunsch e Simonetta Persichetti,

da Faculdade Cásper Líbero, que contribuíram com os seus

conhecimentos para a minha formação acadêmica.

E as professoras Adriana Alves Santos e Debora Cristine Rocha

pelo incentivo nesses anos de mestrado.

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Sólo le pido a Dios

(León Gieco)

Sólo le pido a Dios Que el dolor no me sea indiferente Que la reseca muerte no me encuentre Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente

Sólo le pido a Dios Que lo injusto no me sea indiferente Que no me abofeteen la otra mejilla Después que una garra me arañó esta suerte

Sólo le pido a Dios Que la guerra no me sea indiferente Es un monstruo grande y pisa fuerte Toda la pobre inocencia de la gente Es un monstruo grande y pisa fuerte Toda la pobre inocencia de la gente

Sólo le pido a Dios Que el engaño no me sea indiferente Si un traidor puede más que unos cuantos Que esos cuantos no lo olviden fácilmente

Sólo le pido a Dios Que el futuro no me sea indiferente Desahuciado está el que tiene que marchar A vivir una cultura diferente Sólo le pido a Dios Que la guerra no me sea indiferente Es un monstruo grande y pisa fuerte Toda la pobre inocencia de la gente Es un monstruo grande y pisa fuerte Toda la pobre inocencia de la gente

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RODRIGUES, Pedro Roberto. Representações audiovisuais em documentários sobre a comunidade boliviana de São Paulo: O trabalho e a festa. 210 f. 2015. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, 2015.

RESUMO

O documentário como gênero cinematográfico pode ter um caráter antropológico e

um dos “modos” de documentário é o reflexivo. Pensar a questão da comunidade boliviana

que vive na cidade de São Paulo, a partir do momento em que ela faz parte da nossa sociedade

é a uma maneira de ver o “outro” e entender a importância dessa gente. A reflexão sobre a

representação dos bolivianos em São Paulo se insere na Linha de Pesquisa Produtos

Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento, do PPG de Comunicação na Contemporaneidade.

O objetivo desta dissertação, portanto, é compreender como essa comunidade é

retratada nos documentários paulistanos ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo de

Marcel Buono, Victor Lombardi, Vinícius Victorino e Vitor Valencio; 100% Boliviano, Mano

de Luciano Onça e Alice Riff e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de Diego Arraya. Foi

utilizado um referencial sobre documentário, com elementos de antropologia, estudo sobre

imaginário e de análise de imagem de autores como Christian Metz, Mircea Eliade, Gilbert

Durand, Edgar Morin, Josep M. Català, Bill Nichols, Margarita Ledo, Juan Droguett, Dulcília

Buitoni entre outros.

Trouxe ainda questões relativas à realidade vivida pelos bolivianos no trabalho, nas

oficinas de costura, e nas festas, na dança diablada, nos espaços onde eles costumam se reunir

e discutiu as representações simbólicas dos mitos e dos ritos do imaginário dessa comunidade

residente na cidade de São Paulo.

Palavras-chave: 1. Representação Audiovisual. 2. Documentário. 3. Imaginário.

4. Comunidade Boliviana. 5. Trabalho e Festa.

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RODRIGUES, Pedro Roberto. Audiovisual representations in documentaries about the Bolivian community in São Paulo: The work and the party. 210 f. 2015. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, 2015.

ABSTRACT

The documentary as film gender can have an anthropological character and one of

the "modes" of documentary is reflective. Reflect about the Bolivian community living in the

city of São Paulo, from the moment it is part of our society is a way to see the "other" and

understand the importance of these people. The reflection on the representation of Bolivians

in São Paulo is included in the Research Line Products Media: Journalism & Entertainment,

the Communication PPG in Contemporary.

The objective of this thesis, therefore, is to understand how this community is portrayed in

São Paulo ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo Marcel Buono, Victor Lombardi,

Vinicius Victorino and Vitor Valencio; 100% Boliviano, Mano Luciano Onça and Alice Riff

and Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo of Diego Arraya. A reference on documentary

was used to Anthropology elements, study of imagery and image analysis of authors such as

Christian Metz, Mircea Eliade, Gilbert Durand, Edgar Morin, M. Josep Català, Bill Nichols,

Margarita Ledo, Juan Droguett, Dulcília Buitoni among others.

Brought even questions concerning the reality experienced by the Bolivian at work in

sewing shops, and at parties, in diablada dance, in settings where they often gather and

discuss the symbolic representations of myths and rites of this imaginary community resident

in the city of São Paulo.

Keywords: 1. Audiovisual Representation. 2. Documentary. 3. Imaginary.

4. Community Bolivian. 5. Work and Party.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11 CAPÍTULO 1. AUDIOVISUAL

1.1. Audiovisual .............................................................................................................. 16

1.1.2. Imagem e Som ............................................................................................... 17

1.2. Documentário ........................................................................................................... 24

1.2.1 Subgêneros ou Modos de documentários ....................................................... 39

1.2.2. Documentário Antropológico ou

As temáticas dos documentários ................................................................... 48

CAPÍTULO 2. O IMAGINÁRIO BOLIVIANO

2.1. O imaginário... e depois o cinema ............................................................................ 62

2.2. O cinema e o imaginário em seus diferentes aspectos

(Antropologia, Sociologia, Linguagem e Comportamento) .................................... 69

CAPÍTULO 3. BOLÍVIA EM SÃO PAULO

3.1. Comunidade boliviana em São Paulo: Espaços híbridos ....................................... 120

3.2. O trabalho e a Festa ................................................................................................ 138

3.3. Representações simbólicas sobre a comunidade boliviana de São Paulo .............. 153

Considerações Finais .................................................................................................... 163

Referências Bibliográficas ............................................................................................ 172

Anexos .......................................................................................................................... 176

Documentários

Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo ................................................. 176

100% Boliviano, Mano .......................................................................................... 187

Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo ............................................................... 192

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INTRODUÇÃO

A pesquisa com representações audiovisuais é um campo que permite aprofundar os

estudos sobre comunicação contemporânea e busca compreender as representações

audiovisuais da comunidade boliviana de São Paulo, no trabalho e na festa, a partir da análise

dos documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo de Marcel Buono, Victor

Lombardi, Vinícius Victorino e Vitor Valencio; 100% Boliviano, Mano de Luciano Onça e

Alice Riff e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de Diego Arraya. Desta forma, foi

preciso buscar um referencial sobre documentário com elementos antropológicos e de análise

de imagem.

A escolha dos documentários resultou de uma pesquisa na internet sobre a população

boliviana residente na cidade de São Paulo, sem a pretensão de buscar traços em comum entre

eles. Entretanto, ao assisti-los percebe-se que algumas temáticas são compartilhadas nos três

filmes. Outro aspecto que foi levado em consideração é que eles deveriam ser produções

paulistanas e que não fossem, necessariamente, exibidos em salas de cinema comerciais.

Assim cheguei a estes três documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São

Paulo é um trabalho de conclusão do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, de

2012, produzido pelos alunos Marcel Buono, Victor Lombardi, Vinícius Victorino e Vitor

Valencio. Já 100% Boliviano, Mano de Luciano Onça e Alice Riff é um mini documentário

produzido pela Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo em parceria com

a Grão Filmes e contemplado pelo 4º edital Sala de Notícias do Canal Futura.

E por fim, Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de Diego Arraya, diretor,

produtor de TV, documentarista e fotógrafo. Este documentário foi produzido pela Mosaico

Filmes e TV Cultura e exibido em comemoração aos 60 anos da Carta Universal dos Direitos

Humanos e exibido também na Sobornne Paris IV.

Compreender a representação audiovisual da comunidade boliviana de São Paulo

requer um entendimento de quem está se falando: a comunidade boliviana residente em São

Paulo e qual a imagem que faz dela, a partir dos documentários. E ainda, as questões relativas

à realidade vivida pelos bolivianos no trabalho, nas oficinas de costura e na festa, na dança

diablada, nos espaços onde eles costumam se reunir. É fundamental também discutir as

representações simbólicas do imaginário desta comunidade.

O fluxo migratório boliviano não é recente, começa nos anos de 1950, quando em

parceria com o governo brasileiro, jovens vinham estudar no Brasil e acabavam ficando por

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aqui. Nos anos de 1960 e 1970, os motivos eram, principalmente, políticos, muitos países

latino-americanos viviam sob a ditadura e as pessoas saíam de seus países em busca de

melhores condições de vida. No entanto é a partir da década de 1990, também por questões

político, social e, sobretudo, econômico que esse fluxo se torna cada vez mais massivo.

Hoje, a maior imigração latino-americana é da comunidade boliviana e se concentra

principalmente em São Paulo. O número de bolivianos que vivem nesta cidade é bastante

incerto, devido ao fato de que muitos estão morando aqui de forma irregular. Segundo, o

Padre Mário Geremia da Pastoral do Migrante de São Paulo, a estimativa é de que há mais de

100 mil bolivianos morando na capital paulista.

Esta irregularidade na permanência dessa comunidade se dá principalmente pela falta

de documentos exigidos para que eles fixem residência no Brasil e possam exercer suas

funções conforme as leis trabalhistas do país. A dificuldade na obtenção dos documentos

acaba fazendo com que eles trabalhem, muitas vezes, em oficinas de costura em condições

análogas ao de escravo, tema bastante difundido pelos meios de comunicação do Brasil e

também estão presentes nos documentários analisados aqui.

No entanto, segundo Verônica Yujra, organizadora do Projeto ¡Si, yo puedo!

retratado no documentário ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo de Marcel

Buono, Victor Lombardi, Vinícius Victorino e Vitor Valencio, eles mesmos não consideram

essa hipótese, uma vez que, também na Bolívia a carga horária de trabalho é exaustiva. Nas

oficinas de costura os bolivianos costumam trabalhar de 12 a 14 horas por dia, sendo que nas

palavras de Verônica o diferencial seria o fato de que aqui eles podem consumir mais.

Esta possibilidade de poder de consumo é um atrativo bastante forte quando se trata

da comunidade boliviana, uma vez que a Bolívia é o mais pobre da América do Sul e cuja

população predominantemente é de origem indígena, aimarás, quéchuas, guaranis. Uns dos

motivos pelos quais essa comunidade sofre preconceito no Brasil, conforme declaração de

Angela Nadir, também no documentário ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo.

Embora os dois depoimentos citados acima façam referência ao mesmo

documentário, a presente dissertação analisará também os filmes 100% Boliviano, Mano de

Luciano Onça e Alice Riff e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de Diego Arraya. No

entanto, e embora os bolivianos tenham uma carga horária que excede a jornada normal de

trabalho estabelecida pela legislação brasileira que seria de 8 horas, muitas vezes, esses

trabalhadores moram nas mesmas oficinas de costura nas quais eles trabalham, corroborando

com a ideia de trabalho escravo.

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Porém, os bolivianos de São Paulo veem na festa uma válvula de escape para

extravasar o cansaço do dia a dia do trabalho. E, neste quesito, a comunidade boliviana tem

algumas opções bastante interessantes como a feira da Rua Coimbra, a Praça Kantuta e a festa

em comemoração a independência da Bolívia no Memorial da América Latina que acontece

todos os anos no primeiro final de semana do mês de agosto, onde a dança diablada faz parte

do calendário das comemorações.

A Diablada é uma dança boliviana que representa em forma de drama teatralizado a

luta entre o bem e o mal do Arcanjo Miguel e uma legião de diabos que tentam impor a força

do mal sobre a Terra. Esta narrativa relata que em uma mina vivia um ladrão chamado

Anselmo Selarmino – o Nino Nino ou Chiru Chiru – que roubava para repartir entre os

pobres. Em uma noite o ladrão foi ferido por um trabalhador e agonizando foi levado por uma

mulher virgem do povo até onde morava.

No dia seguinte, no lugar onde Anselmo Selarmino foi encontrado morto os mineiros

que trabalhavam naquela região encontraram, com grande surpresa, a imagem da Virgem da

Candelária à cabeceira de sua cama. A partir desta descoberta as pessoas resolveram rezar

para ela durante três dias e três noites ao ano desde o sábado de carnaval usando disfarces

semelhantes ao diabo e ao ritmo de músicas.

Quando os espanhóis começaram suas conquistas na América, encontraram na região

os índios com seus costumes pagãos e sua religião na qual cultuavam diversos deuses. A

imposição da religião católica e a concepção de religiões diferentes ou as influências

exercidas por uma religião sobre outras práticas resultou num sincretismo religioso e uma

mistura de ambos.

A cultura boliviana é bastante rica e diversa e toda essa diversidade é possível de ser

vista nas festas que acontecem, por exemplo, no Memorial da América Latina. A diablada é

uma dança que apresenta uma estética visual muito atrativa e significativa, cujas máscaras,

adereços, roupas são de extrema importância dentro do contexto da dança. E toda poética e

estética dessa manifestação cultural assim como das relações de trabalho são narrativas que

apresentam elementos sagrados e profanos, que nesta dissertação terá um embasamento

teórico à luz de Mircea Eliade.

Para Eliade o que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição entre este

espaço sagrado, como um território habitado, conhecido do Cosmos e um espaço

indeterminado, desconhecido, um outro lugar, um espaço estrangeiro onde habitam espectros,

demônios, “estranhos” do Caos. No Cosmos a obra dos deuses está em conexão, comunicação

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com o mundo interiorizado do sagrado, um momento religioso, por exemplo, é um momento

cosmogônico, de ordem cósmica.

Os ritos são uma evocação ao sagrado, portanto, uma reatualização cosmogônica.

“Não precisa permanecer na esfera da recordação através da tradição oral ou da narrativa

escrita, mas pode ser submetido à renovação ritual em um culto”. A diablada é um exemplo

de reatualização e evocação do sagrado que num espaço de festa também se coloca como um

espaço sagrado, como um Centro, um Centro do Mundo Cosmogônico. (ELIADE, 2011, p.

49).

O trabalho, na concepção de Eliade, assim como a festa encontra-se na dimensão do

sagrado. As pessoas “saem” do seu tempo histórico e profano e experimenta o tempo mítico e

sagrado retornando ao tempo de origem, atemporal, dada pela narração da criação do mito e a

“função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares de todos os ritos e de

todas as atividades humanas significativas” (ELIADE, 1992, p. 51).

Como pudemos ver, o trabalho é sagrado, porém se voltarmos a pensar na questão da

comunidade boliviana de São Paulo e verificarmos que, conforme Eliade, numa sociedade

dessacralizada torna-se profano dado o seu caráter econômico e, neste caso específico, na qual

este trabalho está relacionado, segundo os documentários, ao trabalho análogo ao de escravo

toda essa concepção cai por terra.

Este trabalho nas oficinas de costura, portanto, tem um caráter profano, pois é

destituído de simbolismo religioso, de um modelo mítico. Neste caso o objetivo é de

exploração e proveito econômico. “Tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade

criadora – pertence à esfera do sagrado e, por consequência, participa do Ser. Em

contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico,

pertence à esfera do profano” (ELIADE, 1992, p. 51).

Registros fotográficos e cinematográficos foram importantes fontes para a

antropologia. Documentários antropológicos possibilitaram compreender as relações sociais

entre todos os envolvidos neste contexto. Sendo assim, os cineastas ao qual esta pesquisa faz

menção, com suas teorias e técnicas auxiliarão no entendimento dessas relações com o

“Outro”, os atores sociais.

As imagens, assim como a narrativa, existem desde que o homem existe. Das figuras

desenhadas nas paredes das cavernas até as mais complexas imagens do cinema, da televisão,

dos computadores, do vídeo servem para criar as nossas metáforas visuais. As imagens,

segundo Català “não tem nada de natural nem estas possuem algum tipo de vínculo básico

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com a realidade”, uma vez que a nossa visão, emoção, comunicação são estabelecidas por

meio de representações (CATALÀ, 2011, p. 11).

No entanto, as imagens são indiciais, elas fixam nos suportes algo que, pelo menos

esteve ali, naquele momento, assim como os registros antropológicos. Desta forma, se elas

são representações, elas estão relacionadas à imaginação, portanto podem ser subjetivas e

complexas, por isso temos que entendê-las, pensar as imagens e com as imagens, pois elas

podem ser muitas coisas ao mesmo tempo e vão além das suas funções primárias (CATALÀ).

A primeira função da imagem é a informativa, ou seja, ela constata aquilo que vemos

e descrevemos, elas podem ser reproduzidas, enquanto a comunicativa tem a função de

representar, estabelecendo uma relação direta com as pessoas, induzindo-a a uma ação, toda

imagem tem uma função comunicativa. Já a função reflexiva traz a intenção de quem à fez,

expõe o pensamento do autor, é uma reflexão externa, num processo reflexivo, assim como o

modo reflexivo de documentário.

Portanto, é possível verificar através desses elementos estruturais da narrativa

audiovisual como o discurso foi elaborado. A partir das imagens como informativas, como as

vemos, como comunicativas, suas representações, reflexivas como os documentaristas

externaram seus pensamentos e como função emotiva resultado do experimentar o real através

da emoção. Enquanto retórica visual, como estas imagens foram estruturadas a partir das

metáforas e como foram transpostas num discurso persuasivo traços da realidade no

imaginário da comunidade boliviana de São Paulo, a partir dos documentários ¡Si, yo puedo! -

O sonho boliviano em São Paulo, 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São

Paulo.

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CAPÍTULO 1. AUDIOVISUAL

1.1. AUDIOVISUAL

Para Montoro, a etimologia da palavra audiovisual tem origem no latim, audire,

ouvir, som e videre, ver. As artes audiovisuais envolvem as imagens em movimento, que

podem ou não vir acompanhadas de som e eventualmente da escrita envolvendo todas as

linguagens, na qual a comunicação audiovisual apela para todos os sentidos. As mensagens

audiovisuais compreendem também projeções de slides com vídeo, videoarte, videoclipes

entre outros (apud MARCONDES FILHO, 2009, p. 31, 32). À luz de Droguett e Pompeu

(2012), o termo “audiovisual” se refere aos meios de comunicação que se valiam desse duplo

estímulo sensorial (visão e audição): notadamente o cinema e a televisão.

Audiovisual. Adjetivo e, no mais das vezes, substantivo, que designa (de modo bem vago) as obras que mobilizam, a um só tempo, imagens e sons, seus meios de produção, e as indústrias ou artesanatos que as produzem. O cinema é, por natureza, “audiovisual”; ele procede de “indústrias do audiovisual”. Todavia, esse não é seu caráter mais singular, nem o mais interessante. Do ponto de vista teórico, esse termo serviu mais para confundir. E a teoria, a princípio, se empenhou em contestá-lo e torná-lo claro (AUMONT e MARIE, 2003, p. 25, 26).

O audiovisual, para Metz (1980), é composto por grupos cujas linguagens estão

próximas como: cinema, televisão, histórias em quadrinhos, desenhos animados, fotografias,

gravações sonoras entre outras e embora sejam distinguíveis no seu centro, torna-se

indeterminado na sua periferia (televisão e imagem de radar). Inclusive, ele coloca a televisão

e o cinema na mesma posição de audiovisuais, “cinema-televisão: imagem obtida

mecanicamente, múltipla, móvel, combinada com três tipos de elementos sonoros (falas,

música, ruídos) e com menções escritas” (apud GODOY, 2002, p. 52).

A linguagem audiovisual teve sua gênese na fotografia, com a captação da imagem, e

do cinema na qual era utilizada a imagem em sequência em uma velocidade de décimos de

segundo dando a sensação de movimento. Portanto, essa linguagem está diretamente ligada à

realidade no seu espaço e tempo. Essa introdução ao conceito de audiovisual tem o objetivo

mostrar o documentário, sobretudo o antropológico, como gênero cinematográfico.

Desta forma, é preciso levar em consideração a imagem e o som, que no

documentário parecem compartilhar o mesmo mundo histórico, porque a primeira ideia é de

que eles não foram produzidos para aquele filme, mas a capacidade da imagem fotográfica e

da gravação do som é que corrobora para considerar que essas são as características daquilo

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que foi registrado. Para Ledo (1998) a fotografia nasce como um documento, como um

registro dos acontecimentos, mantendo sua iconicidade e semelhança com o referente.

Os instrumentos de gravação (câmeras e gravadores) registram impressões (visões e sons) com grande fidelidade. Isso lhes dá valor documental, pelo menos no sentido de documento como algo motivado pelos eventos que registra. A ideia de documento é aparentada à ideia da imagem que serve como índice daquilo que a produziu. A dimensão indexadora de uma imagem refere-se à maneira pela qual a aparência dela é moldada ou determinada por aquilo que ele registra (NICHOLS, 2012, p. 64, 65).

A imagem e o som têm uma relação indexadora com sua fonte que está presente no

documentário e que não existe na ficção, embora isso pareça um tanto quanto impreciso ou

vago, existe uma crença na sua realidade. Supõe-se que “no campo das práticas audiovisuais,

o documentário, repetidas vezes, foi codificado enquanto um domínio dos mais propícios à

manifestação da “vida como ela é””. No entanto, essa questão será discutida mais adiante, o

foco agora é a relação da imagem e do som e a sua importância nos documentários

(TEIXEIRA, 2004, p. 13).

1.1.2. IMAGEM E SOM

“As imagens são lugares complexos nos quais se reúne o real, o imaginário, o

simbólico e o ideológico, e nos quais, portanto iniciam-se constelações de significados”, isso

é o que Català chama de cultura visual. No entanto as imagens não são naturais e nem se pode

dizer que têm uma relação com a realidade. A tendência é vê-las como natural ou real e

atribui-la semelhança à realidade ou até mesmo se confundindo com ela e em contrapartida

um olhar para a imagem como cópia da realidade. (CATALÀ, 2011, p. 8).

De todas formas, no deja de ser verdad, que la ideologia tiende a convertir en natural lo que no son más que construcciones interesadas de la realidad: tenemos ejemplos de ello todos los dias. Por lo tanto quizá podríamos decir que el concepto de cultura visual se refiere a uma fenomenologia surgida en el interior de uma construcción ideológica tan naturalizada que es capaz de producir formaciones culturales de segundo grado que ignoran la artificialidad de sus fundamentos (CÀTALA, 2005, p. 42).

As imagens, assim como a narrativa, existem desde que o homem existe. Das figuras

desenhadas nas paredes das cavernas até as mais complexas imagens do cinema, da televisão,

dos computadores, do vídeo servem para criar as nossas metáforas visuais. As imagens, para

Català “não tem nada de natural nem estas possuem algum tipo de vínculo básico com a

realidade”, uma vez que a nossa visão, emoção, comunicação são estabelecidas por meio de

representações (CATALÀ, 2011, p. 11).

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A pluralidade das imagens está incluída nessa ecologia das imagens na qual nossa

imaginação submerge num mundo perceptivo obsoleto ocupando-se de uma imagem por vez.

A visão como representação imagética aparecia aos nossos olhos e mentes de forma isolada,

porém as imagens têm um conteúdo mais extenso e significativo na forma como elas se

mostram, elas passam por um processo de cognição e podem ser penetradas, já não são mais

superficiais, são imagens complexas (CATALÀ), comum a partir do advento do cinema.

O fato é que para decifrarmos as imagens complexas, temos que entendê-las, pensar

as imagens e pensar com as imagens, vê-las depois do primeiro contato, dar outros sentidos,

fazer pensar, interagir, porque “as imagens podem ser muitas coisas ao mesmo tempo, e quase

sempre o são”, por isso é preciso entender as modalidades da imagem, entendendo suas

diferentes funções primárias. O visual é um fenômeno complexo que circula em diferentes

plataformas e níveis de significação. As funções das imagens podem ser informativas,

comunicativas, reflexivas e emocionais (CATALÀ, 2011, p. 23).

Para começar, todas as imagens comunicam (comunicativas), pois elas representam

algo ou alguma coisa estabelecendo com isso uma relação direta com as pessoas, e dessa

forma, induz a uma ação. Elas constatam o que vemos e descrevemos e podem ser

reproduzidas (informativas) e sempre trazem as intenções e o pensamento de quem as produz,

num processo reflexivo (reflexivas). As imagens também convergem o real e as emoções

(emocionais) a partir do resultado da experimentação do real através da emoção.

A retórica visual está relacionada aos estudos visuais, as formas retóricas são

figurativas, assim estão relacionadas à persuasão, portanto, alheias à verdade. “Na realidade, a

metáfora, como toda forma retórica, não é tanto um artifício agregado à linguagem com

finalidades ornamentais ou persuasivas, apesar de também o ser, mas uma estrutura

fundamental de nosso pensamento”. (CATALÀ, 2011, p. 213).

Uma vez que a metáfora afasta a linearidade do texto linguístico, ela ilustra o texto

com imagens mentais (umwelt), ou seja, ela está relacionada diretamente com a subjetividade,

a representação. Ledo (1988), por exemplo, fala de uma visualização direta ou metafórica,

coisas que falam através de outras e exemplifica como direta Nan Golding ao mostrar as

intimidades de seus amigos, e metafórico como no caso de Cindy Sherman quando mostra os

estereótipos que organizam a nossa mentalidade, inventando assim a realidade cotidiana.

Ambas são fotógrafas estadunidenses.

“Uma imagem é a transposição do real a outro campo que modifica os traços dessa

realidade, esse contato entre pelo menos dois mundos, o real e o representativo, ocorre a partir

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de um mecanismo basicamente metafórico”. Neste contexto, o cinema se configura como a

arte do imaginário, porém essa questão será abordada no segundo capítulo e com maior

profundidade. (CATALÀ, 2011, p. 216).

No cinema, as estruturas espaço temporais são dadas pelo plano, pela cena e pela

sequência constituindo assim a arquitetura cinematográfica. Os espectadores consideram o

filme inteiro num só plano ganhando com isso um sentido verdadeiro e a cena como um

espaço homogêneo e contínuo, ao passo que “as sequências englobam um conjunto de cenas

com uma mesma unidade narrativa, um mesmo tema e, portanto, uma mesma finalidade”

(CATALÀ, 2011, p. 209).

O dispositivo cinematográfico funciona, portanto, em coalizão com os poderes fisiológicos e cognitivos do ser humano, de modo que não existiria sem eles... o cinema, ao contrário, não pode prescindir dele: sobre a tela de uma sala de cinema vazia não se projeta um filme – imagens em movimento – mas uma sucessão de fotos fixas e intervalos de escuridão... embora tenham seu primeiro fundamento em uma visualidade objetiva, articulada temporalmente, adquirem todas as suas dimensões pelo trabalho subjetivo da memória e da imaginação do espectador (CATALÀ, 2011, p. 203).

Imagens e narrativas têm em comum o fato de poderem ser miméticos, tanto uma

como outra podem significar aquilo que o espectador quiser que signifique. “Decorre do fato

de os elementos adquirirem significação pela sua inserção num conjunto, num contexto, que

essa significação nunca é precisa, delimitada, mas, ao contrário, sempre envolta numa certa

ambiguidade”. Como um modelo de representação elas ganham conotações ideológicas, entre

elas pode haver outros recortes que juntadas a uma sequência tanto nas imagens quanto nas

narrativas (catálises) podem contar outras estórias (BERNARDET, 2006, p. 41).

Além da imagem outro elemento importante para o audiovisual é o som. Nos estudos

sobre comunicação privilegiou-se a ciência das imagens e menos a ciência do som, mais por

uma questão metodológica e histórica do que por qualquer outro motivo. As imagens são

registros proporcionados pela visão, portanto presentes desde a pré-história, ao passo que a

fixação do som é bem posterior à invenção da escrita. “Ainda assim, a escrita se restringe a

fixar as sensações sonoras vinculadas à língua, mas se revela um instrumento limitadíssimo

para fixar outros tipos de som” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 273).

“No domínio do som, foi em volta da irrealidade musical que primeiro se formou o

complexo de realidade e de irrealidade”. A música já companha o filme mudo e se integra à

banda sonora situando-se do lado oposto da objetividade, o que não deixa de ser uma

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contradição entre a visão e a audição, visto que o ouvido se deixa embalar pelo que a visão

renega (MORIN, 1997, p. 188).

No cinema, a voz não sai da boca dos personagens ela sai por um microfone exterior

ao ecrã. Esta adequação das vozes ao movimento da boca é rompida por uma sincronização

posterior e pela dublagem. “Mas, o arbitrário da convenção linguística é que nunca é sentido,

tal como a música, que está fora da realidade sem que essa traição perturbe a sensação de

realidade”. Concorrendo com a dialética que converte em subjetividade a objetividade, a

subjetividade da música aumenta e converte esta mesma objetividade, na qual real e irreal

envolve a irrealidade que é a música (MORIN, 1997, p. 189).

Quando o som no cinema se industrializou (a partir de 1928, depois do lançamento do filme americano O Cantor de Jazz), foi imediatamente absorvido por essa estética: tornar o cinema ainda mais “real”, ainda mais reprodução da realidade: as personagens falam como na vida; sapatos fazem barulho ao pisar na calçada ou no caminho de pedregulho, portas que batem fazem ruído (BERNARDET, 2006, p. 46).

Com o naturalismo do século XII até o século XIX, principalmente na pintura e o

conhecimento sobre as sensações visuais e as técnicas de reprodução e a criação das unidades

de comprimento, de medida e de superfície as imagens puderam ser analisadas de forma

objetiva, o som, no entanto, flui e se esvai no tempo impossibilitando sua análise objetiva,

mas a partir do século XX, com o auxílio da informática isso se tornou possível através da

sonografia e da espectrografia, mas por especialistas e máquinas com essa finalidade.

Segundo Rodriguez (2006), algumas questões sobre a predominância visual sobre o

auditivo são passíveis de serem contestadas. Um exemplo é de que as pessoas assimilam mais

pela visão do que pela audição; de que o sistema auditivo é comandado pela visão e de que a

dimensão da visão é simultânea ao passo que a da visão é plana e linear. No entanto, o ouvido

humano realiza três funções diferentes e analisa: 1) a complexidade frequencial (timbre), 2)

evolução da dinâmica (variações de intensidade) e 3) a evolução do tom (entonação e

melodia) de maneira simultânea e estrutural. Portanto, não dá para priorizar um em detrimento

do outro, ambos são complementares.

Para Chion (1993) a contribuição do som para o audiovisual tem um valor agregado

“por valor agregado designamos o valor expressivo e informativo com o qual um som

enriquece uma imagem dada” (apud RODRÍGUEZ, 2006, p. 276). A concepção de Rodríguez

é mais radical, ele entende que desta forma como descreve Chion, o som ainda continua

relegado em segundo plano como um suporte à imagem. Mas na linguagem audiovisual, o

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som modifica a percepção totalizante do receptor e ambos se complementam de maneira

coerente na produção de informação.

O som deve assumir na produção audiovisual um papel de destaque dado a sua

importância, pois o documentário sem o som pode se tornar incompreensível e sua atuação

“na narrativa audiovisual deve seguir a três linhas expressivas bem definidas: 1. Transmite

sensações espaciais com grande precisão; 2. Conduz a interpretação do conjunto audiovisual e

3. Organiza narrativamente o fluxo do discurso audiovisual” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 277).

Quanto à transmissão de sensações espaciais na análise acústica e na manipulação do

som Rodríguez opõe-se a Michel Chion (compositor francês) que restringe a percepção das

relações espaciais à visão, ignorando a capacidade que o ouvido tem de identificar formas e

volumes espaciais e os reflexos do som. O rádio e o cinema, através do som, introduzem o

espectador onde eles quiserem com ajuda de técnicas de surround (distribuição do som a

partir de alto falantes dispostos nas paredes laterais e posterior da sala de cinema) e Dolby

Stereo privilegiando dessa forma a narrativa sonora.

A interpretação audiovisual está relacionada à simbiose entre o som e a imagem e a

configuração de uma nova mensagem a partir de ambas, que é diferente quando se apresentam

isoladamente, isso leva o espectador a uma interpretação correta. Já a organização narrativa

do fluxo audiovisual, a partir do princípio de regularidade na qual “as séries ou fluxos de

eventos sonoros que emanam de uma mesma fonte sonora não tendem a se transformar

repentinamente”, os sons são agrupados ou separados de maneira que a percepção entenda

como sequências coerentes conforme a manipulação do som (RODRÍGUEZ, 2006, p. 196).

A percepção espacial que se tem a partir do som é importante e complexo e serve

como referência para o ser humano se localizar no espaço, de maneira que a narrativa

audiovisual procura reconstruir, imitar e até criar a sensação de espaço sonoro. O cinema

reconstrói esse espaço sonoro e embora essa criação seja intuitiva, corre o risco de tornar-se

técnico, principalmente hoje, com o auxílio de novas tecnologias e a possibilidade de

manipulação do áudio, por isso a necessidade de se elaborar uma teoria do espaço sonoro.

Já está incutido na memória das pessoas, a partir de uma experiência associativa e

lógica que a distância, a aproximação, a intensidade ou a direção do som, assim como o eco, o

volume e a reverberação estão relacionados com a questão espacial. No entanto, essa

fenomenologia se complica quando se reproduz nas narrações audiovisuais para dar uma

sensação de realismo, pois há um problema com relação ao posicionamento do microfone e a

narração visual, tanto na televisão quanto no cinema, que deve ser considerado.

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Para contar uma mesma situação, intercalam-se continuamente planos curtos e próximos com planos gerais e distanciados; tomadas fixas com a câmera parada e tomadas em movimento circular ou com movimentos ascendentes e descendentes; travellings que deslocam o ponto de vista junto com uma situação em movimento, com tomadas da câmera parada contemplando esse mesmo movimento de um ponto fixo. A reconstrução sonora dessas mudanças de ponto de vista, de modo que soem como as escutaria um ser humano que observa passando pelas mesmas variações de posição que a câmera, supõe tantas alterações da paisagem sonora quanto as mudanças que houver de plano visual (RODRÍGUEZ, 2006, p. 281).

Surge, então, o problema de onde colocar o microfone, se junto à câmera ou não?

Num primeiro momento verificou-se uma simplificação dos movimentos do ponto de vista -

audição, principalmente por uma variação grande de sincronia entre imagem e som,

sobretudo, no cinema da década de 1930 na qual a lógica narrativa era naturalista e as

alternâncias de planos próximos e distantes eram pouco relevantes. Depois se verificou que

quanto mais próximo da situação o microfone ficasse, melhor a sua compreensão, mesmo a

câmera em movimento, como no cinema antropológico.

Enquanto produtor, a independência entre imagem e som proporcionada pela

tecnologia conduz a duas linhas de narrativa, uma de áudio e a outra de vídeo e juntas mantém

o efeito integral da percepção humana. A partir daí, a narração audiovisual pode explorar

outras possibilidades de acusmatização, dissociação do som de sua fonte original, dando

maior liberdade à montagem visual para criar novas narrativas, “na qual é imprescindível

conhecer a fundo a lógica espacial do sistema auditivo para que se possam associar sons e

imagens que, em princípio, não tem nada a ver entre si” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 282).

Este é um breve processo histórico, pois hoje a tecnologia e as técnicas de produção

industrial faz com que o narrador trabalhe separando o visual do sonoro para depois serem

montados. Entretanto, essa fragmentação acaba causando muitas confusões tanto no aspecto

da produção quanto no aspecto narrativo. Para Rodriguez (2006), do ponto de vista produtivo,

as situações reais que servem como fontes para as narrações audiovisuais, geralmente, se

utilizam de sons já gravados, ou seja, não tem nenhum vínculo, são totalmente independentes

da fonte original.

Já do ponto de vista narrativo, tanto a imagem como o som são sistemas narrativos

que possuem lógicas diferentes, quando montados devem obedecer a uma coerência baseada

na sincronia e lógica perceptivas. Sendo assim, imagem e som precisam se complementar na

narrativa audiovisual, logo o som, normalmente, é utilizado como instrumento de coesão no

sentido de neutralizar a dissolução perceptiva da montagem audiovisual.

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A sensação espacial está relacionada à memória e a experiência auditiva que permite

que (1º) se reconheça as distâncias entre quem produz o som e quem ouve (2º) que se

reconheça de onde vem o som e que (3º) se perceba a dimensão do volume espacial do lugar a

partir de quem produz o som. Estas três características fornecem uma informação auditiva de

localização espacial, ou seja, de espaço sonoro.

É importante destacar a diferença entre espaço sonoro (RODRÍGUEZ) e paisagens

sonoras (MOLES). Rodriguez define “espaço sonoro como a percepção volumétrica que surge

na mente de um receptor, conforme vai processando sincronicamente todas as formas sonoras

relacionadas com o espaço”, ou seja, como o som chega aos ouvintes como parte da

informação acústica pelo sistema auditivo (RODRÍGUEZ, 2006, p. 285).

Para Abraham Moles (1981, apud RODRÍGUEZ), paisagem sonora é qualquer

conjunto sonoro que o ouvinte detecta que pode ou não reconstituir um espaço, isso é bastante

comum nos programas informativos, pois a ideia é eliminar todas as impurezas sonoras

relacionadas ao espaço, a menos que essas gravações sejam externas e se conserve os sons

daquele espaço, o que pode criar espaços sonoros.

Para a narração audiovisual é importante essa diferenciação, pois neste contexto é

possível dominar o espaço sonoro e desta forma dominar e até mesmo construir

artificialmente a percepção auditiva espacial do receptor, sem a necessidade do espaço

referencial e reconstruir de maneira eficaz qualquer efeito acústico espacial, pois algumas

formas sonoras são índices sígnicos tão fortes quanto realistas. No caso dos documentários

antropológicos, a gravação do som simultaneamente às imagens era uma prática comum,

principalmente para dar maior realismo aos filmes.

A soma sincronia da imagem com o som leva a delimitação de dois fenômenos “1. A

tendência natural do receptor à coerência perceptiva e 2. A busca e a construção, por parte do

narrador, de relações formais entre o material visual e o material sonoro”. Sendo assim, o

discurso audiovisual se dá quando o receptor consegue conectar simultaneamente as formas

perceptivas sonoras e visuais (RODRÍGUEZ, 2006, p. 317).

No entanto, embora o som, incluindo música e ruídos, e a imagem sejam

imprescindíveis no audiovisual o conteúdo semântico do discurso linguístico é fundamental

para que haja uma compreensão do discurso. “O texto oral é capaz de estruturar tanto a visão

como a audição, e em geral são seus conteúdos que determinam, em última instância, que tipo

de decodificação será feito por nossos sentidos” e desta forma tudo o que está incutido no

discurso dos audiovisuais. (RODRÍGUEZ, 2006, p. 334).

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Após essa breve explanação sobre a imagem e o som, principalmente para

entendermos melhor sua relevância no estudo dos audiovisuais, a presente dissertação volta-

se, agora, para o conceito de documentário, o documentário antropológico, as interações

mediadas pelo cineasta, os atores sociais e os espectadores. Assim como os modos de

documentário, documentaristas, teóricos e técnicas, para depois se ter uma visão mais

abrangente sobre o tema deste estudo, sobretudo no que diz respeito à questão do imaginário e

das representações da comunidade boliviana de São Paulo na análise dos filmes ¡Si, yo puedo!

- O sonho boliviano em São Paulo; 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em

São Paulo.

1.2.DOCUMENTÁRIO

A aposição “documentário/ficção” é uma das grandes divisões que estrutura a instituição cinematográfica desde suas origens. Ela governa a classificação das “séries” nos primeiros catálogos das firmas de distribuição que distinguem as “vistas ao ar livre”, as “atualidades”, os “temas cômicos e dramáticos”. Chama-se, portanto, documentário, uma montagem cinematográfica de imagens visuais e sonoras dadas como reais e não ficcionais. O filme documentário tem, quase sempre, um caráter didático ou informativo, que visa, principalmente, restituir as aparências da realidade, mostrar as coisas e o mundo tais como eles são (AUMONT e MARIE, 2003, p. 86).

Para Nichols (2012), todo filme é um documentário, pois nele está impregnada a

aparência das pessoas que dele participou. Godoy diz que “documentário é um instrumento

legítimo para a investigação da realidade dificilmente é compreendida através das

formulações racionais” e aponta a imprecisão do fazer documentário na definição dos termos

filme não ficcional em referência ao documentário e em oposição ao ficcional, enquanto

Nichols se refere ao primeiro como documentários de representação social e ao segundo como

documentários de satisfação de desejos (GODOY, 2001, p. 15).

“Os documentários de satisfação de desejos são os que normalmente chamamos de

ficção” e estão relacionados aos nossos desejos e anseios, frutos da nossa imaginação,

subjetivos, e que podem, inclusive, transmitir verdades se assim desejarmos, ao passo que os

documentários de representação social, geralmente chamados de não ficção se ocupam de um

mundo do qual participamos e compartilhamos expressando nossa compreensão pela

realidade e também transmitindo verdades se assim quisermos (NICHOLS, 2012, p. 26).

A questão da verdade dos filmes de ficção e não ficção está relacionada à

interpretação na forma de organização destes através de seus significados e valores. Nos

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documentários essa crença é frequente, pois eles procuram exercer um impacto no mundo

histórico, no sentido de convencer e persuadir a partir de um ponto de vista ou enfoque

direcionado para aceitar o mundo como real e na crença de solução dos problemas sociais,

corroborando com a retórica do documentário e seu propósito estético e social, principalmente

no vínculo estreito e forte o mundo histórico e o documentário.

A definição de documentário é sempre relativa ou comparativa, é um conceito vago e

aparece primeiro em oposição ao filme de ficção ou filme experimental ou de vanguarda.

Documentário também não é a reprodução da realidade, cópia ou réplica do que já existe, mas

é, segundo Nichols (2012), a representação do mundo em que vivemos, uma visão do mundo

que talvez possa ou não nos ser familiar. Não adotam conjuntos de técnicas, questões, formas

ou estilos, portanto, não precisa ter características comuns.

O documentário surgiu a partir do desejo de cineastas e escritores de compreender os

rumos que as coisas estavam tomando e abrir um caminho para o desenvolvimento do

documentário, a partir de um discurso a respeito do mundo na defesa de uma causa ou

argumento, “voz”, que até então não existia através da “exploração dos limites do cinema, a

descoberta de novas possibilidades e de formas ainda não experimentadas” com o objetivo de

documentar a realidade (NICHOLS, 2012, p. 116,117).

A ascensão do documentário se deu pela capacidade desse gênero cinematográfico de

captar a realidade, tal como ela é, e assim como a fotografia, que segundo Ledo mantém sua

iconicidade pela semelhante com o referente, o cinema conseguiu imprimir as imagens de

maneira tão fidedigna como nunca visto antes, tanto quanto ao tema retratado quanto a

sensação convincente do real, e são essas características de registro da imagem fotográfica

que o torna um documento, um “portador de informação, que traz em si a inscrição, o registro,

descreve um fato, de uma realidade observável e verificável” (LEDO, 1988, P. 35).

A sensação de fidelidade da imagem está presente nos filmes dos irmãos Lumière, no

fim do século XIX, como Saída dos trabalhadores das fábricas Lumière, A chegada do

comboio à estação, O regador regado e O almoço do bebê todos apresentam características do

documentário, embora sejam cenas curtas e em um único plano. Segundo Nichols, os filmes

de ficção é como se olhássemos para um mundo privado do ponto de vista externo enquanto o

documentário é como se olhássemos para fora, por uma janela deste mesmo mundo histórico.

Os filmes de Lumière pareciam registrar o cotidiano conforme este se apresentava

dando “origem” assim ao documentário, principalmente, por manter a “fé na imagem”. Estes

eram filmados sem adornos, ou rearranjo de montagem parecendo com isso reproduzir o

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acontecimento, isso tudo é que conservava o mistério dos acontecimentos e a admiração pelo

cinema, pois este não precisa de exageros ou espetáculos (NICHOLS).

Para Nichols, existem três formas de representação no documentário: 1º) capacidade

da fotografia de representar o mundo, poder de reproduzir o que está diante da câmera,

embora ela não dê conta do seu entorno e possa ser manipulada convencionalmente ou

digitalmente; 2º) os documentários também atendem aos interesses dos outros, tanto no seu

significado quanto na sua representação (público, agências patrocinadoras, instituições ou

mesmo os sujeitos do tema, e 3º) os documentários podem representar o mundo a partir de um

ponto de vista intervindo em um assunto e influenciando opiniões.

Diante disto, como pensar a questão ética no documentário? O que fazer com as

pessoas na filmagem de um documentário? No caso dos filmes de ficção, os atores obedecem

às performances estabelecidas pelo diretor, no caso dos filmes de não ficção, o uso de não

atores, ou seja, os atores sociais se comportam diante da câmera como pressupõe se

comportam na vida cotidiana. Desta forma, o comportamento e a personalidade desses atores

é que servem às necessidades do cineasta.

A questão Ética, do ponto de vista da Filosofia, por si só, já possui suas próprias polêmicas internas. Todavia, do ponto de vista do Realismo, parece que se dá, neste campo, o espaço da resolução das dificuldades colocadas pelas acusações de manipulação, que são feitas pela maioria dos autores que discordam das possibilidades epistemológicas do documentário (GODOY, 2001, p. 274, 275).

A alteração, por inibição ou modificação, no comportamento e na personalidade das

pessoas na hora da filmagem, pode deturpar ou distorcer, em um sentido, e no outro

documentar “como o ato de filmar altera a realidade que pretende representar”, acrescentando

um elemento ficcional nesse processo. Sendo assim, a responsabilidade dos cineastas é

diferente na forma como representa os outros e na forma como são representados os seus

personagens, neste caso a ética é menos importante na ficção (NICHOLS, 2012, p. 31).

As características apontadas acima revelam os efeitos sobre aqueles que são

representados no documentário, pois se os cineastas representam pessoas que não conhecem

ou problemas e assuntos que os envolvem, correm o risco de explorá-las, quando os cineastas

resolvem só observá-las, sem interferência, podem mudar seus comportamentos e

acontecimentos e ainda serem questionados sobre sua sensibilidade, ao passo que quando

trabalham com pessoas conhecidas devem se preocupar em representá-las de uma forma

responsável, sem emitir opiniões em favor de um ou de outro.

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Desta forma cria-se um impasse, pois muitos cineastas responsáveis por representar

as pessoas e as instituições que os patrocinam, mas que não são membros de suas

comunidades, entra em choque com os que são representados, principalmente porque os

desejos que envolvem os cineastas e a maneira com que estes são representados devem ser de

respeitado em seus direitos e dignidade. “Desenvolver respeito ético passa a ser parte

fundamental da formação profissional do documentarista” (NICHOLS, 2012, p. 40).

A maneira com que falamos das pessoas filmadas está relacionada com a forma que

os cineastas escolhem para representar o outro, nesse aspecto é entender a relação e interação,

segundo Nichols, entre cineasta, temas ou atores sociais e o público ou espectador a partir de,

como o cineasta fala dos temas ou atores sociais para o público (Eu falo deles para você);

como o público fala deles ou de algum tema para nós (Ele fala deles ou de alguma coisa para

nós) e por fim, o cineasta ou os atores sociais falam deles ou de um tema para os espectadores

(Eu falo ou nós falamos de nós para nós).

Para Nichols (2012), cada categorização tem suas especificidades. Na relação Eu falo

deles para você trata-se, do ponto de vista do cineasta, de uma pessoa ou narrador que não

aparece, mas se ouve a voz, apresenta um argumento e propõe solução, geralmente, o próprio

cineasta fala diante da câmera, emite uma opinião, é persuasivo, portanto subjetivo, cujas

informações são relatos sociais e históricos. Quanto ao tema ou atores sociais, há uma

separação entre quem fala de quem se fala, se apresenta como indivíduo com psicologias

complexas com o objetivo de convencer sobre situações do mundo, tendência dos

documentários observativos.

No que se refere ao público ou espectadores a relação é de uma pessoa que fala e a

outra escuta. O cineasta assume um papel e identidade próprios, distinto de como ele se

apresenta na sociedade a partir de experiências reais que podem ser iguais ou não daqueles

que são retratados, direcionada ao público em geral ou elementos em específico, apresenta

uma estrutura institucional, na qual há uma separação entre o ato de representação e o que é

representado em tempos e espaços sociais diferentes, além de ativar a percepção dos

receptores através da retórica.

Quando se trata da categoria Ele fala deles ou de alguma coisa para nós, do ponto de

vista do cineasta há uma separação entre quem fala e o público, e uma função mais

demográfica do que da coletividade. Quanto ao tema ou atores sociais, provem de fonte que

carece de individualidade, cujo discurso institucional é através de voz-over ou de um narrador

que fala do mundo de uma maneira impessoal e fidedigna transmitindo informações que

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instigam ações. No que tange o público ou espectadores, parece falar para nós, mas dirige-se a

um público indiferenciado, abstrato, numa tentativa de senso de comunidade.

Por fim, a categoria Eu falo ou nós falamos de nós para nós. Na relação quanto ao

cineasta há uma separação da posição dele daquele que representa para uma posição de

unidade e a voz é na primeira pessoa. Quanto ao tema ou atores sociais, ambos pertencem ao

mesmo grupo, criando assim certa intimidade. Nessa relação que envolve o cineasta e quem

está sendo retratado e o público deve haver uma negociação e consentimento, porque há uma

tendência de influenciar as pessoas. Estas são algumas características do cinema

antropológico – autoetnográfico.

Quanto a estas categorizações é possível verificar como as relações de interação

entre o cineasta, o tema ou atores sociais e o público, se dão nos três documentários

analisados nesta dissertação. Em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo tem-se

primeiro a presença de depoimentos de pessoas envolvidas diretamente com o tema, Alfonso

Hinojosa, pesquisador boliviano, Padre Mário Geremia, brasileiro, ligado às questões da

migração na América Latina, Rubén Vargas, editor do Jornal La Razón e Marcel Biato, hoje,

ex-embaixador brasileiro na Bolívia.

Em seguida, em voz-off, o narrador fala do Brasil e da Bolívia alternando

depoimentos entre ele e os diversos personagens. A respeito do tema ou atores sociais, o

documentário os apresenta desde o início do filme quando traz o texto: “Neste filme, você não

verá máquinas de costura ou ouvirá flautas andinas. O povo boliviano é muito mais do que

isso”, portanto não há separação entre quem fala e de quem se fala. Sobre o público, a relação

é de pessoas que falam para espectadores em geral incluindo a própria comunidade boliviana.

Sendo assim, a categoria mais próxima é a “Eu falo ou nós falamos de nós para nós”.

No documentário, 100% Boliviano, Mano, a relação entre o cineasta, o tema ou

atores sociais e o público se apresenta de maneira diferente. Tem-se, primeiro, o depoimento

de Denílson Mamani, personagem principal, e de sua mãe Carmen, em seguida, alternância de

falas de outros atores sociais e, quase no fim, ouve-se em voz-off uma pessoa que faz uma

pergunta e finaliza com conversas entre o rapaz e outros personagens. Desta forma, há uma

separação do cineasta de quem fala, pois é praticamente Denílson quem conduz toda a

narrativa sempre na primeira pessoa.

O tema ou os atores sociais são apresentados desde o início do filme numa relação de

negociação e consentimento entre cineasta e o público, conforme Nichols (2012). Sendo

assim, também, neste caso, a categoria que melhor retrata o documentário é a relação “Eu falo

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ou nós falamos de nós para nós”, neste caso seria melhor empregar o “Eu”, não na figura do

cineasta, mas de Denílson Mamani, falamos de nós, comunidade boliviana, para nós, embora

também o filme possa falar para qualquer espectador.

O documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo começa com muitas

imagens da Bolívia e de bolivianos em diferentes espaços públicos permeada por uma trilha

sonora culminando com a ilustração de uma bandeira na qual se tem metade a bandeira do

Brasil e a outra metade a bandeira da Bolívia. A partir daí, começam alguns depoimentos de

pessoas ligadas à comunidade boliviana como o Padre Mário Geremia e Roque Patussi,

ambos da Pastoral do Migrante, do antropólogo Sidney Antônio Silva e da advogada Ruth

Camacho.

Estes depoimentos são alternados com os de Sérgio Suyama, do Ministério Público

Federal e Cristina Ribeiro, do Ministério Público do Trabalho e depoimentos de bolivianos

residentes na cidade de São Paulo. O cineasta, então, começa a participar fazendo perguntas

aos atores sociais. Desta forma, pode-se perceber que a relação estabelecida neste

documentário, também é a de “Eu falo ou nós falamos de nós para nós”, ou seja, o cineasta e

os depoentes se configuram como sendo o “Eu” ou “Nós”. O tema e os atores sociais são

apresentados desde o início do documentário e o público, além de ser a comunidade boliviana,

pode ser o espectador de forma geral.

Portanto, nos três documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo,

100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, as características

apresentadas são de documentário antropológico ou autoetnográfico, porém sobre isso a

presente dissertação tratará melhor num outro momento. Desta forma, o objetivo era fazer um

levantamento sobre a qual destas categorias de documentário e suas relações de interação

entre cineasta, tema ou atores sociais e públicos ou espectadores, os filmes mencionados estão

inseridos. Nos três casos trata-se da categoria “Eu falo ou nós falamos de nós para nós”.

Sendo assim, além da imagem e sua notável fidelidade como representação

fotográfica daquilo que a câmera registrava e o fascínio por esse registro do que aparecia

diante da câmera e, sobretudo a apresentação do resultado deste produto para o público em

uma tira de filme, repetidas vezes, como prioridade sobre as sutilezas da narrativa ou dos

personagens, outro aspecto importante nessa relação é a presença do cineasta, como

verificado nos exemplos dos documentários analisados nesta dissertação.

Temos, então, duas histórias: 1) capacidade incomum das imagens cinematográficas e das fotografias de exibir uma cópia física daquilo que

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registram com precisão fotomecânica sobre uma emulsão fotográfica, graças à passagem da luz através de lentes, combinada com 2) a compulsão gerada nos pioneiros do cinema pela exploração dessa capacidade. Para alguns, essas histórias formam a base do desenvolvimento do documentário. A combinação da paixão pelo registro do real com um instrumento capaz de grande fidelidade atingiu uma pureza de expressão no ato da filmagem documental (NICHOLS, 2012, p. 118).

Estes dois aspectos da história do cinema conduziu a um requinte narrativo que

Robert Flaherty levou para Nanook, o esquimó (1922) e que John Grierson, com habilidade

comercial estabeleceu como base institucional no fim da década de 1920, ao conhecido

cinema documentário. Este dissentimento comercial de Grierson promoveu patrocínios,

inclusive, governamental para a produção de documentários, na Inglaterra nos anos 30, assim

como Dziga Vertov faria na União Soviética nos anos 20 e Pare Lorentz faria nos Estados

Unidos nos anos 40.

A contribuição de Vertov e do cinema soviético foi valioso, porém Grierson foi

decisivo na manutenção relativamente estável para a produção de documentários. “Esses

avanços propiciaram a um grupo de profissionais, uma estrutura institucional, uma massa de

filmes com características comuns e, provavelmente, um público atento a essas qualidades

distintas”, no entanto não foram suficientes para contar os primórdios do documentário, pois

necessitaria entender as origens do cinema (NICHOLS, 2012, p. 119).

A capacidade fílmica de que o que aparece diante da câmera serve como

documentação leva a duas direções: ciência e espetáculo e ambos contribuíram para o avanço

do documentário. Primeiro pela capacidade indexadora da imagem e depois da trilha sonora

de responder aos aspectos do original como forma científica de representação, a característica

indexadora da imagem fotográfica está diretamente relacionada com o seu referente.

“O índice se relaciona com a impressão física de um objeto real – singular,

individualizado – que estava diante da câmera num determinado momento do tempo”,

atestando e certificando que existe uma relação física com o objeto naquele instante. Para

André Bazin, teórico do cinema, a fotografia é uma réplica do real, de natureza indicial,

estabelecendo uma relação de contiguidade entre a imagem e o seu referente (BUITONI,

2011, p. 23).

O documentário adquire uma voz própria que permite que a imagem crie essa

autenticidade. No entanto, a fotografia e o documentário podem ser “modificados”. Um

exemplo disto está em Nanook, o esquimó, que segundo Ledo (1998), é uma representação

para a câmera, com planos únicos, sem montagem, na qual as personagens são selecionadas

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em função das necessidades da filmagem criando uma atmosfera realista, além da trilha

sonora que é um componente que serve para produzir efeitos sobre o público.

Para o cineasta, gerar confiança, levar-nos a afastar a dúvida ou a incre-dulidade, pela transmissão de uma impressão de realidade, e, portanto de autenticidade, corresponde mais às prioridades da retórica do que as exigências da ciência. É com algum risco que aceitamos como dogma o valor de evidência das imagens (NICHOLS, 2012, p. 120).

O uso científico das imagens levou o historiador de cinema, Tom Gunning, a

denominar o “cinema de atrações” referindo-se às atrações circenses e aos seus fenômenos

incomuns para satisfazer o público. Esse exibicionismo diferia do mundo privado e do fictício

e principalmente do documental como prova científica, pois as imagens tinham o objetivo de

apelar para o espectador e apresentar o exótico e as representações corriqueiras. Ainda hoje

subsistem aspectos do cinema de atrações e o uso científico da imagem como nos diários de

viagem e nos reality shows.

O documentário só se firma como tal, na década de 1920, pois nem o cinema de

atrações, exibicionista, nem a documentação científica, reunião de provas servem como base

para o documentário. O cineasta ainda não encontrou sua voz oratória nestas tendências do

cinema primitivo. Para se falar em documentário e o surgimento desse gênero, além de levar

em conta a exibição e a documentação, era preciso pensar, segundo Nichols, em uma

experimentação poética, um relato narrativo de histórias e uma oratória retórica.

O reconhecimento do documentário como forma cinematográfica tem menos a ver

com a origem ou evolução desses elementos, experimentação poética, narrativa de histórias e

oratória retórica, mas principalmente da combinação destes num momento histórico a partir

da década de 1920 e começo de 1930, impulsionados de forma contundente pelos movimentos

vanguardistas nas artes em geral, do século XX.

Portanto, a experimentação poética no cinema é resultado “do cruzamento do cinema

com as diversas vanguardas modernistas do século XX”, contribuindo de maneira decisiva

para o “surgimento de uma voz do documentário”, algo totalmente fora de cogitação do

chamado “cinema de atrações” na qual a fala poética sucumbiu diante da exibição e também

da criação de mundos fictícios (NICHOLS, 2012, p. 123).

Essa voz do documentário se dá por um ponto de vista ou uma voz diferentes,

embora se utilizasse muitas vezes a fotografia como imagem da realidade cotidiana, a maneira

de o cineasta ver as coisas é que se priorizou diante da habilidade da câmera de registrar com

fidelidade tudo o que via, tornando-se um empecilho, porque acabou de certa forma tolhendo

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os impulsos e a maneira de ver e perceber dos cineastas. Nas obras modernistas a voz passou

para o primeiro plano, principalmente pelas ideias de fotogenia1, de Epstein citado por

Nichols, e de montagem.

A teoria impressionista francesa, nos anos 20, celebrava o que Jean Epstein chamou de fotogenia, ao passo que a teoria soviética do cinema defendia o conceito de montagem. Ambas eram maneiras de suplantar a reprodução mecânica da realidade para construir algo novo de uma forma que só o cinema poderia conseguir (NICHOLS, 2012, p. 123).

Assim, a fotogenia está relacionada aos complementos ou detalhes que podem ser

dados à imagem cinematográfica proporcionando uma experiência única ao assistir a um

filme, pois esta proporciona um olhar diferente sobre a realidade. A fotogenia é importante

para o cinema assim como as cores para a pintura. “A vanguarda floresceu na Europa e na

Rússia na década de 1920. Sua ênfase em ver as coisas de outra maneira, pelos olhos do

artista ou cineasta, teve um imenso potencial libertador” (NICHOLS, 2012, p. 126).

O relato narrativo de histórias, segundo elemento na construção do documentário e

de sua voz e ausente do cinema de atrações e da observação científica, se desenvolve após

1906 com a voz poética, principalmente pelo refinamento das técnicas de narração de

histórias a partir de diferentes perspectivas podendo ser aplicadas ao mundo histórico e

também ao imaginário. Para Nichols, as narrativas resolvem conflitos e estabelecem ordem,

estruturam problemas e soluções propiciadas no início e resolve-os no fim.

O documentário usa tanto as técnicas narrativas quanto da retórica. As técnicas de

montagem, por exemplo, possibilitou um refinamento da narrativa pela continuidade

possibilitando a sensação de tempo e espaço contínuos e coerentes às atuações dos

personagens, mesmo na montagem de evidência, a narrativa é sustentada pela lógica das falas

dos atores e nas suas relações entre si, quanto na reunião de materiais de outras épocas e

lugares que combinadas possibilitam o fluxo de uma imagem para outra “combinando

continuidade no movimento, ação, ângulo de olhar e escala de um plano para outro”

(NICHOLS, 2012, p. 127).

Ao pensar em fotografia, pensa-se em realidade e verdade, porém com o surgimento

da imagem técnica no século XIX e da ciência foi preciso repensar e refletir sobre a questão

1. A fotogenia é essa complexa e única qualidade de sombra, reflexo e duplo que permite às potências afectivas próprias da imagem mental fixarem-se na imagem fotográfica pela reprodução fotográfica. Outra definição possível: a fotogenia é a resultante: a) da transferência, para a imagem fotográfica, das qualidades próprias da imagem mental; b) da implicação das qualidades de sombra e de reflexo na própria natureza do desdobramento fotográfico (MORIN, 1997, p. 53).

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da realidade. Talvez fosse mais correto o emprego da palavra real. Neste sentido Nichols diz

que a sensação de realismo fotográfico, não é uma verdade, e sim um estilo, portanto a

verdade “não se aplica às relações entre o mundo sensível e sua duplicação fotográfica” é uma

questão de ética e trabalha em outros campos de significação. Assim o termo realismo tem

importância para o documentário nestas três formas (BUITONI, 2011, p. 16).

Realismo fotográfico, também designado realismo físico ou empírico. Gera um realismo de tempo e lugar, por meio da fotografia de locação, da filmagem direta e da montagem em continuidade, em que são minimizados os usos distorcidos e subjetivos da montagem defendidos pela vanguarda. Realismo psicológico implica a transmissão dos estados íntimos de personagens e atores sociais de maneira plausível e convincente. Ansiedade, felicidade, raiva, êxtase etc. podem ser retratados e transmitidos realisticamente. Consideramos realística a representação desses estados quando sentimos que a vida interior de um personagem foi transmitida de modo eficiente, mesmo se, para isso, o diretor teve de recorrer à inventividade, prolongando um plano mais do que o usual, adotando um ângulo revelador, acrescentando uma música sugestiva ou sobrepondo uma imagem ou sequência à outra. Realismo emocional diz respeito à criação de um estado emocional adequado no espectador. Um número musical exótico pode gerar um sentimento de exuberância no público, embora haja pouca profundidade psicológica nos personagens e o cenário seja obviamente fabricado. Ainda assim, reconhe-cemos uma dimensão realística na experiência: é como outras experiências emocionais que tivemos. A emoção em si é familiar e sentida de maneira genuína (NICHOLS, 2012, p. 128).

Por fim, o último elemento é o que se refere à oratória retórica. A voz da oratória

procurou apresentar as singularidades do mundo histórico, no sentido de convencimentos e

predisposições às ações ou à adoção de sensibilidades e valores de uma forma ou de outra em

relação ao mundo em que vivemos. Se a exibição era a tradição do “cinema de atrações”, o

relato do cinema narrativo, a forma poética do cinema de vanguarda, no documentário é a

oratória, comum também aos outros gêneros.

Para compreender o documentário e melhor defini-lo é preciso abordá-lo sob quatro

ângulos diferentes: 1º) das instituições, 2º) dos profissionais, 3º) dos textos (filmes e vídeos) e

4º) do público. Sob o aspecto das instituições “os documentários são aquilo que fazem as

organizações e instituições que os produzem. Se John Grierson chama Correio noturno de

documentário ou se a Discovery Channel chama um programa de documentário, então, esses

filmes já chegam rotulados como documentários” (NICHOLS, 2012, p. 49).

A estrutura institucional, primeira a caracterizar o documentário em referência ao

mundo histórico e não ao mundo imaginado pelo cineasta, vai encontrar limitações ou

convenções porque devem atender aos seus patrocinadores. Essa ironia depende,

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principalmente de como isso induz na crença de que se assiste a um documentário só porque

alguém disse que se trata de um documentário.

Lembrar os telespectadores que o documentário é uma construção da realidade, como

nas palavras de Grierson, ao se referir como “tratamento criativo da realidade” (LEDO, 1998)

acaba pondo em xeque a autenticidade e a verdade características do documentário e do qual

ele depende. Por que se as imagens são testemunhas do que vemos, de um recorte do mundo

histórico, como entender a complexidade da relação entre realidade e representação? A

estrutura institucional do documentário deixa implícito que os documentários têm acesso ao

real, no entanto, por outro lado, isso funciona como um atrativo do gênero, segundo Nichols.

Os profissionais têm suas expectativas e propósitos assim como as instituições.

Embora a estrutura institucional imponha algumas condições os cineastas não precisam acatá-

las, além de compartilhar o fato de representar o mundo histórico, de estabelecer relações

éticas dando a sensação de compartilharem propósitos. A compreensão do que é documentário

muda a partir da ideia dos documentaristas quanto ao que fazem.

A partir do corpus de textos é definido o gênero, no caso do documentário, segundo

Nichols, faz-se o uso da voz de Deus (do narrador), entrevistas, gravação de som direto, cortes

para introduzir imagens que ilustrem ou compliquem a situação mostrada numa cena e uso de

atores sociais, ou de pessoas em suas atividades cotidianas. Além de uma lógica informativa

responsável pelas representações do mundo histórico na solução de problemas ou soluções

conclusivas. Toda essa lógica sustenta o argumento do documentário e suas particularidades.

Estas características e a montagem em continuidade que tornam invisíveis os cortes

na ficção não são prioridades no documentário, mas sim, a história e as situações temporais e

espaciais e suas ligações reais, históricas. A continuidade não dá a credibilidade ao

documentário, mas um conjunto amplo de tomadas e cenas diversificadas centradas na

retórica ou argumento. Outro componente importante são os personagens ou atores sociais

testemunhais, eles oferecem provas, além de lugares ou coisas que podem aparecer ou

desaparecer sustentando um ponto de vista ou perspectiva do filme.

Em vez da montagem em continuidade, poderíamos chamar essa forma de montagem de “montagem de evidência”. Em vez de organizar os cortes para dar a sensação de tempo e espaço únicos, unificados, em que seguimos as ações dos personagens principais, a montagem de evidência organiza-os dentro da cena de modo que se dê a impressão de um argumento único, convincente, sustentado por uma lógica (NICHOLS, 2012, p. 58).

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Outro componente persuasivo do documentário é a trilha sonora. Embora a nossa

identificação com os personagens do mundo fictício se dê em nível das imagens que temos

deles, nos documentários, o argumento exige uma lógica verbal que só as palavras são

capazes de transmitir, mais que as imagens. “O discurso dá realidade a nosso sentimento do

mundo. Um acontecimento recontado torna-se história resgatada” (NICHOLS, 2012, p. 59).

Documentaristas europeus e latino-americanos, por exemplo, trabalhavam formas

mais subjetivas e retóricas (Terra sem pão, de Buñuel ou Sans Soleil (1982), de Chris

Marker), enquanto os britânicos e os estadunidenses eram adeptos as formas mais objetivas e

observativas, bem ao estilo das reportagens jornalistas. Frederick Wiseman tinha um enfoque

não intervencionista como nos filmes: A escola (1968), Hospital (1970) e Modelo (1980).

Os documentários assim como qualquer outro gênero têm suas especificidades,

porque possuem suas fases ou períodos, regiões e países diferentes, estilos e tradições. Assim

filmes que compartilham os mesmos pontos de vista, a mesma ótica e isso é feito em

manifestos ou declarações, tem seus movimentos. Exemplos disso são “Nós: Variação do

manifesto” e “Cine-olho” de Dziga Vertov que era contrário aos filmes roteirizados e com

atores. Lindsay Anderson atribuiu ao documentário um sentimento de compromisso social.

Outra especificidade além dos movimentos são os períodos. Na década de 1930 os

documentários tinham uma característica de jornal cinematográfico, muito em função da

época da Depressão e de uma política voltada para questões sociais e econômicas. Nos anos

de 1960 a utilização das câmeras portáteis leves e com som acoplado permitiram maior

mobilidade e receptividade e o acompanhamento dos atores sociais, predominando um cinema

observativo e muito participativo.

Nos anos de 1970 há uma volta ao passado e os documentários se utilizavam de

imagens de arquivo e entrevistas contemporâneas para refletir sobre acontecimentos passados

que conduzissem às questões atuais, algo incomum no cinema observativo e participativo.

Outra tendência, resgatada dos anos 60, foi privilegiar histórias de pessoas comuns como a

força de trabalho da mulher, lutas sindicais em vez das histórias das classes dominantes.

O documentário se distingue de outros filmes também pelos modos que assim como

os movimentos também tem seus defensores, princípios e objetivos. Outros movimentos

podem surgir de um modo e adquirir importância no tempo e lugar e geralmente o faz por

limitações percebidas em outros modos, misturando-se e sobrepondo-se. Conforme Nichols

(2012), ele identifica seis modos principais de fazer documentário: poético, expositivo,

observativo, participativo, reflexivo e performático que veremos mais adiante.

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Os textos do corpus a que denominamos documentário compartilham certas ênfases que nos permitem discuti-los como partes de um gênero (caracterizado por normas e convenções como lógica de organização, montagem de evidência e papel de destaque para o discurso voltado para o espectador) que, por sua vez, dividem-se em movimentos, períodos e modos diferentes. Nestes termos o documentário mostra-se um dos gêneros mais duradouros e variados, com muitos enfoques diferentes para o desafio de representar o mundo histórico (NICHOLS, 2012, p. 63,64).

Outra consideração quanto ao documentário é a sua relação com o público, quem

patrocina o documentário também patrocina os filmes de ficção. Desta forma, um filme

documentário está na mente do espectador quanto no seu contexto ou na sua estrutura. O

público espera ver no documentário o objeto histórico e saber mais sobre o mundo, pois o

documentário recorre às provas transmitidas pela força retórica ou persuasiva, à poética

comovente, à lógica informativa, além de promover a informação e o conhecimento,

descobertas e consciências, estimulando a epistefilia - desejo de saber do público.

Mais uma característica importante que envolve o documentário e o público está

relacionada à suposição de que os sons e as imagens não foram produzidos exclusivamente

para o filme e que ambos estão compartilhados no nosso mundo histórico dado a capacidade

da imagem fotográfica e da gravação de som de reproduzir o que foi registrado com fidelidade

por sua capacidade indexadora, pois “sons e imagens cinematográficas usufruem de uma

mesma relação indexadora com o que registram” (NICHOLS, 2012, p. 65).

Desta forma, o documentário adquire uma voz própria, um estilo. Uma vez que ele

não reproduz a realidade, mas representa, o documentário tem uma visão singular do mundo.

Sendo assim, essa voz pode persuadir ou convencer pelo seu argumento, por uma causa ou

por um ponto de vista sobre o mundo histórico tanto em termos visuais quanto ao tema do

filme. Essa voz também está relacionada a uma lógica informativa de organização do

documentário que difere da ficção que apresenta um mundo imaginário e distinto.

Essa voz do documentário relacionada à lógica de organização do filme na seleção e

arranjo de som e imagem envolve também uma questão ética, uma vez que transmite o ponto

de vista do cineasta no momento de sua criação. Portanto, não são apenas as vozes dos

narradores, autoridades, atores sociais, aqueles de quem falam os filmes ou falam pelos

filmes, mas também pelos meios e aparatos que estão disponíveis para fazer o documentário.

Isso acarreta no mínimo, estas decisões: 1) quando cortar ou montar, o que sobrepor como enquadrar ou compor um plano (primeiro plano ou plano geral, ângulo alto ou baixo, luz artificial ou natural, colorido ou preto e branco, quando fazer uma panorâmica, aproximar-se ou distanciar-se do elemento filmado, usar travelling ou permanecer estacionário, e assim por

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diante); 2) gravar som direto, no momento da filmagem, ou acrescentar posteriormente som adicional, como traduções em voz-over, diálogos dublados, música, efeitos sonoros ou comentários; 3) aderir a uma cronologia rígida ou rearrumar os acontecimentos com o objetivo de sustentar uma opinião; 4) usar fotografias e imagens de arquivo, ou feitas por outra pessoa, ou usar apenas as imagens filmadas pelo cineasta no local; e 5) em que modo de representação se basear para organizar o filme (expositivo, poético, observativo, participativo, reflexivo ou performático) (NICHOLS, 2012, p. 76).

Uma vez que o documentário se apoia nos meios disponíveis e não somente nas

palavras faladas faz com que ele seja mais ou menos explícito, embora as palavras faladas ou

escritas ainda representem o ponto de vista do filme através do comentário com “voz de

Deus” ou “voz da autoridade” ele pode ser parcial ou imparcial. No jornalismo, por exemplo,

ele deve ser imparcial, mas em alguns documentários, mesmo no modo poético, nem sempre o

comentário é claro ou explicativo o que torna o ponto de vista implícito.

O argumento e a voz do filme presentes em todos os meios de representação é menos

explícito no comentário, contrastando com a voz da perspectiva cujas decisões são tomadas na

seleção e no arranjo de sons e imagens. Entretanto, o argumento se dá por implicação a partir

“de uma lógica informativa e de uma organização” diferindo assim “o documentário da

simples filmagem ou dos registros fotográficos.” Então, mesmo que o filme tenha uma

postura acrítica ou imparcial ele opina sobre o mundo (NICHOLS, 2012, p. 79).

A oratória é com frequência a voz do documentário quando o cineasta tende a se

posicionar sobre aspectos do mundo histórico e requer uma forma diferente da lógica ou da

narração de histórias. A retórica propicia uma maneira de falar com o objetivo de instalar um

determinado ponto de vista acerca de questões controversas, assim o pensamento retórico

clássico se divide em cinco partes: invenção, disposição, elocução, memória e pronunciação e

que segundo Nichols (2012), se transferem para o documentário.

1) Invenção: Indícios ou “provas” sustentam uma posição ou argumento. Na retórica

e no documentário “prova” sugere aspectos da experiência humana, relacionada a regras e

convenções sociais na qual a prova científica é inacessível. Essas provas podem ser:

inartísticas (não artificiais) fatos ou indícios (testemunhas, documentos, confissões,

impressões digitais etc.) e artísticas (artificiais) indícios fora do poder artístico criador do

orador ou do cineasta, mas ao alcance do seu poder de avaliação ou interpretação. Importante

nos vídeos e nos documentários, Aristóteles divide essas provas artísticas em três.

Ético: que dá a impressão de bom caráter moral ou credibilidade;

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Emocional: que apela para as emoções do público para produzir o humor desejado; que coloca o público na disposição de ânimo correta ou que estabelece um estado de espírito favorável a um determinado ponto de vista; Demonstrativo: que usa raciocínio ou demonstração real ou aparente; que comprova ou dá a impressão de comprovar a questão (NICHOLS, 2012, p. 81).

Estas estratégicas éticas, emocionais e demonstrativas requerem dos cineastas e

oradores honrar os princípios do discurso retórico de ser verossímil, convincente e

comovente. Desde 1970 há uma mudança no foco dessas estratégicas passando de

“representações do mundo histórico” para “representações que transmitem perspectivas mais

pessoais, mais individuais”. No sentido de que haja mais credibilidade e convicção seria

importante a união de “relatos pessoais com ramificações sociais e históricas” (NICHOLS,

2012, p. 82).

2) Disposição: a forma mais usual de ordenar as partes do discurso de um filme é a

estrutura problema / solução e a maneira de fazer esta disposição mais abrangente é a partir

de: 1º) captar a atenção do público; 2º) esclarecer um fato, algo controverso, uma declaração

ou mesmo elaboração de uma questão; 3º) argumentar em favor de uma causa, um ponto de

vista; 4º) contestar rejeições que contraponham argumentos já esperados e 5º recapitular o

caso de maneira que o público aja de uma determinada maneira.

Estas partes podem ser subdivididas aperfeiçoando o discurso retórico e mantendo

ainda duas características: 1º) alternância de argumentos levando a retórica tradicional a

questões como isso ou aquilo, certo ou errado, prós e contras favorecendo assim a questão

problema / solução e 2º) as várias formas de subdivisão alternam recursos às provas e ao

público, ao fato e à emoção, já que os assuntos sempre envolvem questões de valor e crença,

assim como provas e fatos isso permite tanto ao discurso como a voz do documentário

acrescentar matéria aos fatos de maneira que os argumentos não fiquem somente na abstração

lógica, na impessoalidade, mas na experiência personificada e na ocorrência histórica.

3) Elocução: a tonalidade do discurso é dada pela elocução ou estilo com o uso de

figuras de linguagem. Outros elementos de estilo cinematográfico são: câmera, iluminação,

montagem, representação, som entre outros, nas formas de diário, ensaio etc. e nos modos,

principalmente expositivo e reflexivo que são os mais típicos do documentário.

4) Memória: pode-se recorrer a memória no calor das discussões, por exemplo,

através de um discurso memorizado “pela simples força de vontade ou desenvolver um “teatro

da memória””. Essa imagem mentalizada recupera componentes do discurso na medida em

que o orador se “move” no espaço recuperando argumentos deixados ali. Nos filmes, a

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memória recorre às coisas que já foram ditas e feitas como se fossem vividas num

determinado tempo e espaço. Mas também a partir dos espectadores que se servem do que já

viram a partir de acontecimentos anteriores recuperando o passado e o presente para

interpretar o filme (NICHOLS, 2012, p. 90).

5) Pronunciação: a princípio se dividia em voz e gesto, algo como comentário e

perspectiva para apresentar um ponto de vista, um argumento. Ou ainda, eloquência, como

forma de clareza de um argumento e de um apelo emocional e decoro eficácia do argumento

ou voz que represente um público ou cenário, ambos têm o objetivo de verificar o que

funciona e o que não funciona a partir dos efeitos ou resultados práticos num determinado

contexto histórico dando ao documentário uma voz própria.

Portanto, no que diz respeito à voz dos documentários a partir da retórica, pode-se

verificar que em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo, 100% Boliviano, Mano e

Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo tem-se as cinco partes do pensamento retórico. Nos

três documentários analisados há indícios e provas (invenção) que sustentam o argumento dos

atores sociais, no caso, da comunidade boliviana a partir de provas inartísticas através de

depoimentos verossímeis, convincentes e comoventes.

Assim como uma ordenação do discurso (disposição), porque capta a atenção do

público, esclarece fatos, argumenta em favor das causas dessa comunidade envolvendo

questões de valor e crença de maneira objetiva. O tom do discurso é dado por metáforas e

metonímias, além de elementos como montagem, iluminação, representação, som entre outros

(elocução). Algo comum nesses documentários é a utilização de recordações (memória) sobre

coisas e fatos vividos no passado.

Para finalizar, outra questão importante são os argumentos (pronunciação) que

apresentam pontos de vista eloquentes, claros, sobre argumentos, apelos emocionais e eficácia

na representação da comunidade boliviana. Desta forma, a partir das características e das

especificidades que cada documentário apresenta ele pode ser de um ou de outro ou até mais

subgêneros, conforme Nichols. Vale ressaltar também que para isso é preciso levar em

consideração tudo o que está envolvido e quem está envolvido na produção do documentário.

1.2.1 SUBGÊNEROS OU MODOS DE DOCUMENTÁRIOS

As diferentes vozes do documentário serviram como uma assinatura porque, de certa

forma, retrata o pensamento do cineasta, do diretor ou até mesmo de um patrocinador. “No

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cinema, as vozes individuais prestam-se a uma teoria do autor, ao passo que as vozes

compartilhadas, a uma teoria do gênero”. As características em comum dos filmes ou

cineastas é que levam a um estudo dos gêneros. No caso do documentário, essas

especificidades levam a seis subgêneros ou modos, conforme Nichols: poético, expositivo,

participativo, observativo, reflexivo e performático (NICHOLS, 2012, p. 135).

Estes modos são estruturados principalmente por convenções adotadas no filme

criando desta forma, modelos que expressam características em comum e podem ser

superados quando outros cineastas, com outras vozes, dão vazão a outros pontos de vista.

Esses seis modos obedecem a uma ordem cronológica e a identificação com um ou outro não

se dá, necessariamente, na sua totalidade. Por exemplo, um documentário performático pode

trazer características de um documentário poético.

Um modo de representação, geralmente, é superado por outro quando os cineastas

começam a ficar insatisfeitos com o modo anterior gerando com isso uma sensação de

história do documentário. O modo observativo surge com a insatisfação ao documentário

poético, por ser muito abstrato e o expositivo, por ser didático demais e pela portabilidade

das câmeras de 16 mm e gravadores magnéticos. Entretanto, o documentário observativo

tem em comum com o poético e o expositivo o fato de esconder a presença do cineasta e a

sua influência no filme.

A aparente neutralidade e o atributo “entenda como quiser” do cinema observativo surgiram no fim dos calmos anos 50 e durante o auge das formas descritivas da sociologia, baseadas na observação. Eles florescem, em parte, como concretização de um suposto “fim da ideologia” e de um fascínio pelo corriqueiro, mas não necessariamente da afinidade com a situação social difícil ou ódio político daqueles que estão às margens da sociedade (NICHOLS, 2012, p. 137).

O modo participativo surgiu da percepção dos cineastas de que eles não precisam

disfarçar sua relação com os temas na hora de contar uma história ou mesmo na observação

dos acontecimentos, porque é como se eles não estivessem ali. O modo performático se voltou

às questões de comunidade, a uma política de identidade, a características sociais de grupos

marginalizados de maneira emocional e subjetiva, ou seja, foram as circunstâncias e o desejo

de representar o mundo de outras maneiras que formaram cada modo. A seguir, esses modos

ou subgêneros de documentário serão detalhados, conforme Nichols (2012).

O modo poético (anos 20) renuncia da montagem em continuidade e sua relação

tempo e espaço e explora outros padrões de ritmo temporal e de justaposições espaciais. Os

atores sociais não têm a força dos personagens complexos psicologicamente e uma visão

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definida do mundo, além de estarem nas mesmas condições de igualdade com os objetos. Este

modo possibilita “formas alternativas de conhecimento para transferir informações

diretamente”, dá continuidade a um argumento ou ponto de vista, propõe soluções para

problemas, a partir de um estado de ânimo, tom ou afeto do que pelo conhecimento ou

persuasão (NICHOLS, 2012, p. 138).

O mundo histórico, geralmente, é a fonte documental deste modo, embora alguns

filmes de vanguarda utilizassem formas e cores abstratas ou animações pouco tradicionais

prevalecendo a imaginação do artista na representação de um mundo de diferentes maneiras.

A representação da realidade é fragmentada, subjetiva, incoerente a partir de associações

vagas, principalmente pelo contexto daquela época de industrialização e dos efeitos da

Primeira Guerra Mundial.

O acontecimento modernista já não parecia fazer sentido em termos realistas e narrativos tradicionais. A divisão do tempo e do espaço em múltiplas perspectivas, a negação de coerência a personalidades sujeitas a mani-festação do inconsciente e a recusa de soluções para problemas insuperáveis cercavam-se de uma sensação de sinceridade, mesmo quando criavam obras de arte confusas ou ambíguas em seus efeitos. Embora alguns filmes explorem concepções mais clássicas do poético como fonte de ordem, integridade e unidade, essa ênfase na fragmentação e na ambiguidade continua sendo um traço importante em muitos documentários poéticos (NICHOLS, 2012, p. 140).

O modo expositivo (anos 20) reúne fragmentos da história de forma argumentativa

ou retórica dirigindo-se aos espectadores com legendas ou vozes com comentários com voz de

Deus tradicionalmente masculina, treinada, em diferentes tonalidades e timbres. Neste modo

as imagens ficam em segundo plano e é enfatizada a lógica informativa transmitida

verbalmente. Os comentários sobrepõem-se às imagens, até porque são os comentários que

representam a perspectiva ou argumento do documentário e as imagens os ilustram.

A montagem, no modo expositivo, tem o objetivo de manter a continuidade do

argumento ou perspectiva verbal, montagem de evidência, sacrificando a continuidade

espacial e temporal em detrimento às imagens na composição do argumento. Neste modo, o

cineasta tem mais liberdade de selecionar e arranjar as imagens que o cineasta de ficção,

transmitindo mais objetividade e um argumento melhor. A voz-over é utilizada para julgar

ações no mundo histórico sem que haja um envolvimento. O tom do narrador dá a sensação de

credibilidade, como característica de distanciamento, neutralidade, indiferença e onisciência.

Há também a facilitação à generalização e a argumentação mais abrangente, pois as

imagens dão sustentabilização ao argumento geral em vez de construir ideias particulares,

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propiciando “uma economia de análise, já que as argumentações podem ser feitas, de maneira

sucinta e precisa, em palavras”. O fato de o modo expositivo transmitir mais informações

propicia maior conhecimento, embora não categorize a organização do conhecimento. O bom

senso é a base para essa reprodução do mundo, porque a retórica está sujeita mais às crenças

do que a lógica, sendo assim em alguns filmes expositivos o argumento parece ser datado,

pois pode mudar significativamente (NICHOLS, 2012, p. 144).

Diferentemente dos modos poético e expositivo o modo observativo (anos 60)

privilegia o ato de filmar as pessoas reunindo a matéria prima que se precisa para dar forma a

uma reflexão, uma perspectiva ou um argumento. Há uma sincronização do discurso com as

imagens sem a utilização de grandes equipamentos ou cabos de gravadores e câmeras, a

gravação era simultânea a espontaneidade das pessoas. Não há comentários com voz-over,

nem música ou efeitos sonoros, entrevistas, legendas, reconstituição histórica. Os atores

sociais se inter-relacionam sem se preocupar com os cineastas.

Assim como na ficção no modo observativo as cenas revelam traços de caráter e

individualidade, o comportamento é baseado nas conclusões tiradas das interferências e do

que se ouve. O espectador assume um papel mais ativo sobre o que é dito e o que se faz,

devem-se levar em consideração as questões éticas, observar o que os atores sociais estão

fazendo, pois são experiências reais que são testemunhadas, é preciso passar a ideia de que

não há intervenção no comportamento dos atores sociais que exercem fascínio sobre os

espectadores, é preciso contextualizar para que não pareça com um “cinema de atrações” e

não científico, portanto possui um caráter etnográfico.

Os filmes observativos mostram uma força especial ao dar uma ideia da duração real dos acontecimentos. Eles rompem com o ritmo dramático dos filmes de ficção convencionais e com a montagem, às vezes apressada, das imagens que sustentam os documentários expositivos ou poéticos (NICHOLS, 2012, p. 149).

No modo participativo (anos 60) o pesquisador vai a campo e participa interagindo

na forma de vida das pessoas, em seu contexto, absorvendo ao máximo e refletindo sobre suas

experiências como fazem a antropologia e a sociologia. Não que ele seja um nativo, mas é

preciso um distanciamento para se escrever sobre quem se observa. Os documentaristas como

os pesquisadores vão a campo, compartilham suas experiências, no entanto essa prática de

observação participativa não se tornou um modelo, na ciência social há uma tendência da

retórica de comover e persuadir. No documentário participativo a ideia é de que o cineasta se

envolva numa situação e como essa situação se altera.

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Neste modo de documentário o que se espera é que o cineasta engaje e testemunhe o

mundo como foi representado, não use o comentário em voz-over e de certa forma se torne

um ator social diferenciando dos outros pelo fato de trazer consigo uma câmera e assim um

poder e um controle sobre o acontecimento, dando a sensação de que o cineasta está “na cena”

no momento em que as coisas estão acontecendo, estabelecendo uma interação e mensurando

as relações entre ambos, sobretudo porque o que se vê através da câmera ou cineasta é porque

ele está no nosso lugar, é como se ele fosse um investigador ou repórter investigativo.

Em outros casos, distanciamo-nos da postura investigativa para assumir uma relação mais receptiva e reflexiva com os acontecimentos que se desenrolam e que envolvem o cineasta. Esta última escolha nos leva em direção ao diário e ao testemunho pessoal. A voz na primeira pessoa predomina na estrutura global do filme. É o engajamento participativo do cineasta no desenrolar dos acontecimentos que prende nossa atenção (NICHOLS, 2012, p. 158).

Os cineastas no modo participativo ora representam seus próprios encontros com o

entorno, ora buscam representar questões sociais mais abrangentes e perspectivas históricas a

partir de entrevistas e imagens de arquivo. Para o espectador fica a ideia de que há um diálogo

entre o cineasta e o participante, os atores sociais e a relação entre eles na representação do

mundo histórico de uma maneira específica tanto incerta quanto comprometida.

No modo reflexivo (anos 80) o processo de negociação entre o cineasta e o

participante é que chama a atenção, não só no que diz respeito ao mundo histórico, mas sobre

questões e problemas que envolvem a representação. De modo geral, o espectador do

documentário é avesso à sua situação real como se o que foi mostrado na tela só exigisse

interpretação e não o filme. O modo reflexivo questiona o conteúdo, se este é ou não

convincente.

Os documentários do modo reflexivo procuram conscientizar sobre os “problemas de

representação do outro, assim como tentam nos convencer da autenticidade ou da veracidade

da própria representação”. Trata também do realismo “físico, psicológico e emocional por

meio de técnicas de montagem de evidência ou em continuidade, desenvolvimento de

personagem e estrutura narrativa” (NICHOLS, 2012, p. 164).

Alguns documentários do modo reflexivo por meio da montagem dão a falsa

impressão de tratarem da realidade. No entanto, cenas são forjadas, atores atuavam no lugar

de atores sociais, há um questionamento quanto a representação e a relação entre o espectador

e o documentário. Desta forma, o documentário reflexivo ao invés de acrescentar

conhecimento, assume um sentido formal ou político. No sentido formal a atenção é desviada

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para suposições e expectativas do documentário em si, no sentido político a reflexão é para

questões que envolvem o mundo que nos cerca.

Desde los años veinte y hasta que perduren proyectos que traten de relacionar diferentes redes de significado, y que además de la consciência del espectador ante y em sus relaciones com la obra trabajen sobre la obra y su relación com lo que representa, estaremos em presencia de lo que algunos llaman modalidade reflexiva (LEDO, 1998, p. 50, 51).

O modo performático (anos 80) provoca questionamentos a respeito do que é o

conhecimento e propicia a compreensão de como funciona a sociedade a partir da experiência,

da memória, de valores e crenças, de compromissos e princípios, do emocional diante da

complexidade do conhecimento do mundo porque salienta a subjetividade e a afetividade.

Nesse modo, real e imaginário se combinam, há espaço para licenças poéticas, as narrativas

são menos convencionais e a representação é mais subjetiva. O documentário deixa sua

característica referencial e passa a ser expressiva situada no sujeito, inclusive no cineasta.

Mas esse modo de filme conta uma história linear de maneira emocional e

significativa e não o mundo objetivo. Cineasta e espectador se envolvem na representação do

mundo histórico, embora de forma indireta, mas através da afetividade do filme e a maneira

como o cineasta o faz, deslocando-o para um campo subjetivo, que pode ser inclusive, social,

na qual se retratou os excluídos numa tendência de reequilíbrio e de correção com a

autoetnografia, sobretudo nos “filmes em que “nós falamos sobre eles para nós”. Em vez

disso, eles proclamam “nós falamos sobre nós para vocês” ou “nós falamos sobre nós para

nós”” (NICHOLS, 2012, p. 172).

O documentário performático mistura técnicas expressivas com técnicas oratórias, ou

seja, números musicais, fotogramas congelados, planos de ponto de vista, representações

subjetivas da mente, características típicas da ficção com questões sociais não resolvidas pela

ciência ou pela razão. Neste modo o documentário se aproxima do cinema de vanguarda ou

experimental cuja representação aproxima-se do mundo histórico em busca de significado,

principalmente, nas pessoas e nos lugares.

Outra particularidade do modo performático é o comentário em voz-over e imagens

ilustrativas que embora possa conduzir para o modo expositivo, é uma característica forte do

performático. “O documentário performático restaura uma sensação de magnitude no que é

local, específico e concreto. Ele estimula o pessoal, de forma que faz dele nosso porto de

entrada para o político” (NICHOLS, 2012, p. 176).

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Depois desta explanação sobre os subgêneros ou modos de documentários, faz-se

necessário, agora, analisar a qual destas modalidades os documentários ¡Si, yo puedo! - O

sonho boliviano em São Paulo, 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São

Paulo pertencem para melhor compreender suas relações com o objetivo desta dissertação que

é analisar como estes filmes representam o imaginário da comunidade boliviana residente na

cidade de São Paulo nas narrativas audiovisuais nos ambientes do trabalho e da festa.

O que é possível verificar de imediato é que nos três documentários não há presença

do cineasta em cena, sendo assim, eles podem ser tanto do modo observativo, poético, como

do expositivo. Entretanto, é necessário comparar outras características para, de fato, se chegar

com mais clareza e objetividade a modalidade ou modalidades em que eles se enquadram,

visto que os filmes podem pertencer a mais de um subgênero.

O documentário ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo tem características

do modo observativo, pois relata experiências reais que podem ser testemunhadas e

contextualizadas e também não há interferência do cineasta sobre os atores sociais, além de

possuir um caráter etnográfico do documentário antropológico. Do modo reflexivo é

importante destacar a maneira como os atores sociais são representados no sentido que o

público reflita sobre o tema. Elementos do modo performático também podem ser vistos em

¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo como questionamentos que levam a uma

compreensão do funcionamento da sociedade.

Estes questionamentos se dão, inclusive, de maneira subjetiva e afetiva a partir de

experiências, de crenças e valores, de princípios, da memória, do emocional, sendo assim, real

e imaginário se misturam neste modo e o documentário de referencial pode passar a ser

expressiva voltada para o sujeito, os atores sociais ou até mesmo o cineasta. Embora a

narrativa seja bastante linear ela abre espaços para as licenças poéticas, metáforas, retratando

questões sociais na qual podem estar envolvidos os cineastas e os espectadores.

Ao retratar os excluídos como forma de reequilibrar e corrigir a autoetnografia este

documentário, como já analisado antes, é da categoria “Eu falo ou nós falamos deles para

nós”. No modo performático, além de técnicas oratórias é possível constatar técnicas

expressivas o que o aproxima das ficções, embora a busca seja pelo mundo histórico e no

significado que está nas pessoas e nos lugares. É característica deste modo, também, a

utilização de imagens ilustrativas.

Em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo nota-se que os cineastas

estiveram, in loco, na Bolívia e em São Paulo colhendo depoimentos e mostrando a realidade

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dos bolivianos em diferentes momentos de suas vidas, além de conversar com o embaixador,

a diretora geral do Ministério da Migração, um sociólogo, um jornalista, assim como com

alguns brasileiros que moram ou estudam naquele país.

Nota-se com a presença dos cineastas, embora eles não apareçam, do referido

documentário, que há uma participação efetiva para mostrar a realidade da Bolívia no sentido

de ajudar a compreender este fluxo migratório, que a partir dos anos de 1990 se intensificou

no Brasil, principalmente na cidade de São Paulo, mas não a ponto de fazer com que eles,

cineastas, consigam mudar o percurso da história, mas principalmente para uma reflexão

sobre o assunto.

As problemáticas sociais, econômicas, políticas, culturais também estão evidentes

no documentário ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo nos vários depoimentos

entre os cineastas e os entrevistados, corroborando com a ideia de diálogo entre as partes.

Há uma valorização destas questões recorrendo a uma oratória persuasiva, mas em alguns

momentos de forma subjetiva, misturando o real e o imaginário, recorrendo inclusive, às

ilustrações, sem perder, no entanto, seu caráter reflexivo para as questões que envolvem

seus atores sociais.

No caso do documentário 100% Boliviano, Mano os modos ou subgêneros são

basicamente os mesmos. São relatos de experiências reais e testemunhais sem a intromissão

no comportamento dos atores sociais, neste caso, são os próprios atores sociais, que assumem

a cena e protagonizam suas histórias, sobretudo na figura de Denílson Mamani (modo

performático), trata-se de uma narrativa linear dando a impressão de uma duração real dos

acontecimentos (modo observativo). Neste documentário as questões também são de ordem

social, econômico, político e cultural e, assim como em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano

em São Paulo, há uma preocupação em conscientizar os espectadores sobre os problemas de

representação da comunidade boliviana de São Paulo (modo reflexivo).

Outras características do modo performático no documentário 100% Boliviano,

Mano são os questionamentos acerca do conhecimento e a compreensão do funcionamento da

sociedade através das experiências, da memória, das crenças e dos valores, dos compromissos

e dos princípios, do emocional sobre a complexidade dos fatos históricos, algo presente

também neste filme são as informações trazidas em várias legendas, onde cineasta e

espectador se envolvem na representação do mundo, mesmo que de forma indireta, portanto

subjetiva, na qual estão inseridos os excluídos atores sociais, a comunidade boliviana.

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Já no documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo as particularidades

dos modos presentes nos outros dois filmes analisados são as mesmas. Vale ressaltar que o

modo performático se apresenta aqui, logo no começo, com ilustrações em movimento

mostrando o percurso feito pelos bolivianos até chegarem a São Paulo e o trabalho nas

oficinas de costura, finalizando com uma bandeira cuja metade é a bandeira do Brasil e a

outra metade a bandeira da Bolívia. Assim como em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em

São Paulo e 100% Boliviano, Mano não há presença no cineasta em cena, mas é possível

percebê-lo nos locais.

Ainda como nos outros documentários, neste, o modo observativo privilegia a

filmagem das pessoas que dão os depoimentos que servem como base para a reflexão sobre os

diversos assuntos que envolvem a comunidade boliviana da cidade de São Paulo e uma

sincronização do discurso com as imagens sem a utilização de grandes aparatos técnicos. São

experiências reais, testemunhos dos atores sociais que exercem fascínio nos espectadores.

Voltando a algumas características do modo performático ainda em Nação Oculta:

Bolivianos em São Paulo existe um questionamento sobre a sociedade e os problemas que

envolvem os bolivianos de São Paulo nas suas diferentes esferas, sobretudo no campo do

trabalho, nas oficinas de costura, retratado nos três documentários. Sendo assim, é possível

verificar as marcas indiciais dos problemas sociais nos modos destes documentários e na sua

voz de como “Eu falo ou nós falamos deles para nós” típicos dos documentários

antropológicos.

Depois desta breve explanação, uma vez que esta análise não é o principal objetivo

da presente dissertação, o que se pode verificar é que o modo participativo não foi encontrado

em nenhum dos documentários, embora características deste modo como: interações e

mediações entre os atores sociais e o cineasta nos mesmos contextos trocando experiências e

refletindo sobre as problemáticas apresentadas no filme, porém sem o envolvimento do

cineasta na retórica, mas na própria situação na esperança de que haja um engajamento sobre

as questões levantadas estejam no âmago no documentário antropológico.

Os documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo e Nação Oculta:

Bolivianos em São Paulo apresentam muitas características do modo expositivo, ambos falam

mais sobre a realidade vivida pela comunidade boliviana de São Paulo, sendo assim, estes

filmes estão mais próximos dos documentários tradicionais. Já 100% Boliviano, Mano possui

aspectos que o identifica com o modo reflexivo.

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1.2.2. DOCUMENTÁRIO ANTROPOLÓGICO OU AS TEMÁTICAS DOS DOCUMEN-

TÁRIOS

Foi a partir da primeira guerra mundial (1914-1918) que o cinema ganhou novas

perspectivas como ferramenta de registro das curiosidades do mundo. Por um lado como

forma de divertimento, como uma extensão do sonho a partir de Meliès, mas que não é objeto

de estudo desta dissertação e por outro, novas perspectivas cinematográficas marcaram os

documentários nas figuras do russo Dziga Vertov e do estadunidense Robert Flaherty. Vertov

contrapunha a encenação e Flaherty foi referência para o documentário em geral e também

para a vertente etnográfica, além de outros cineastas apresentados nesta pesquisa.

O cinema e a pesquisa antropológica nascem no século XIX na busca por novas

terras, novas descobertas, novas culturas e mercados. Foram viajantes, exploradores e

pesquisadores e um desejo de registrar os hábitos e costumes de novos povos os quais eles

não conheciam que nasce o filme etnográfico, gênero geralmente ligado ao cinema

documentário. A partir destes relatos de viagens e imagens surge o interesse dos antropólogos

de descrever e observar estas sociedades (MONTE-MOR, 2004).

Constitui-se, então uma antropologia audiovisual marcado por três momentos: 1)

riqueza etnográfica registrada nas imagens fixas ou em movimento e a introdução de

instrumentos na captação dessa informação, 2) crescimento da utilização desses instrumentos

nas pesquisas antropológicas, discussão sobre a objetividade audiovisual e a adequação aos

estudos antropológicos, além de diferenciações entre filme etnográfico, filme de pesquisa,

filme documentário, filme de observação e cinema vérité e 3) caráter científico das

informações audiovisuais e a criação de espaços e instrumentos para fomentação do tema

(PEIXOTO, 1999).

Antes mesmo da invenção do cinematógrafo dos irmãos Lumière (1895) outros

experimentos foram utilizados com o objetivo de divulgar os registros visuais, uma

antropologia visual que não leva só em consideração os aparatos audiovisuais, “mas também

o estudo da cultura material, da arte, a investigação de gestos e expressões faciais ou dos

aspectos espaciais do comportamento e interação corporal”, em expedições que marcaram o

desenvolvimento das pesquisas científicas. A ideia aqui não é discorrer historicamente esse

percurso, mas fazer considerações acerca do assunto (RAPAZOTE, 2007, p. 84).

Felix-Louis Regnault (1923), considerado por muitos o fundador do filme

etnográfico acredita que:

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Até agora, a sociologia – ramo supremo e fundador da antropologia – pecou pela documentação. Pois seus documentos, por mais honestos que sejam os pesquisadores que os forneceram, ainda são subjetivos e só têm, assim, um valor relativo. Até o presente, a sociologia só dispôs de documentos subjetivos (...) para uma ciência exata, é preciso documentos objetivos nos quais o fator pessoal desaparece. Não há dúvida de que já existem nos museus de etnografia, instrumentos, objetos utilizados pelos povos. Mas são documentos incompletos. Pois, não basta conhecer um objeto, é preciso saber como é usado. Toda a descrição deste uso é subjetiva. As fotografias, mesmo numerosas, não podem analisar completamente essa prática. Só o cinema fornece em abundância os documentos objetivos (REGNAULT, 1923a, p. 880 apud PEIXOTO, 1999, p. 92, 93).

Desta forma, a exatidão no registro objetivo das práticas sociais está nos trabalhos

dos cientistas da época marcados pela ideologia positivista. Consequentemente, a utilização

de instrumentos de medição e de observação das diferentes sociedades e culturas ganha

caráter objetivo e científico com a antropologia. Portanto, as câmeras fotográficas e

cinematográficas dão à imagem uma veracidade sem igual. “São imagens do “exótico”, em

gestos e comportamentos, que retratam o outro, imagens que podem viajar no espaço e no

tempo para posterior pesquisa e divulgação” (MONTE-MOR in TEIXEIRA, 2004, p. 99).

Sendo assim, o trabalho dos antropólogos foi determinante para a compreensão e

desenvolvimento do documentário antropológico e merece destaque a colaboração de Franz

Boas, americano de origem alemã, que descreveu e analisou as práticas culturais a partir de

registros de imagens, não com a intenção de fazer cinema antropológico, mas de criar uma

metodologia de pesquisa, influenciando colegas e alunos a fazerem o mesmo. Os anos 20 e 30

“foram célebres pelas grandes expedições científicas e explorações colonialistas que muito

contribuíram para a expansão do filme documentário” por meio do registro visual (PEIXOTO,

1999, p. 94).

Ainda nos anos 20 merece também destaque os trabalhos do antropólogo polonês

Bronislaw Malinowski, que se não foi o primeiro a viver com as populações estudadas, “a

recolher seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por dentro, e para isso,

procurou romper ao máximo os contatos com o mundo europeu”. Este trabalho etnográfico de

descrição da cultura do povo das Ilhas Trobriand foi uma imersão com base na observação e

participação e a fotografia foi fundamental no registro e na noção do “eu estive aqui”

característica da antropologia e que o cinema se apropriou (LAPLANTINE, 1988, p. 80).

O que se verifica é que a antropologia e o cinema documentário tem em comum o

estudo das relações do homem na sociedade, tratam de questões sociais e políticas, portanto é

preciso levar em consideração as questões éticas, políticas e ideológicas e como as pessoas

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são retratadas nestes filmes, pois os documentários têm uma voz própria, mas que não é

necessariamente política ou social. Nos documentários patrocinados, por exemplo, os atores

sociais são vistos conforme o enfoque dado a eles. Mas não se pode esperar que os

documentários fizessem o papel que deveria ser de outras esferas, eles devem discutir os

problemas, mas não resolvê-los.

Portanto, o cinema está diretamente relacionado com as questões revolucionárias,

questões estas que tendem para a universalidade, gerando com isso uma contradição, pois ao

mesmo tempo em que atende as necessidades das massas, deve atender também as

necessidades da indústria capitalista. Desta forma, “nos põe em contato com o mais íntimo da

antropologia genética, uma vez que esta considera o homem que se realiza e se transforma no

seio da sociedade, o homem que é sociedade e história” (MORIN, 1997, p. 242).

Nestas articulações entre o cinema antropológico com a sociologia e a história é

preciso atentar, por um lado, para as relações, como um espelho, de um cinema de

participações e as realidades humanas como algo próprio deste século e por outro, com a

gênese do cinema num conjunto onto-filogenético, como ela se originou e evoluiu a partir das

suas transformações e como o desenvolvimento do cinema corroborou para restabelecer o

espírito humano, mesmo diante de tantas determinações do meio. Sendo assim, a máquina de

transformar o mundo transformou-se em máquina de imitar o espírito (MORIN).

Todas estas questões estão na origem dos documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho

boliviano em São Paulo, 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo,

pois neles verificam-se as problemáticas que envolvem a comunidade boliviana na cidade de

São Paulo. São registros de imigrantes com dificuldades nas suas relações sociais,

econômicas, políticas e culturais frente a uma sociedade com tantos contratempos, onde os

abismos são cada vez maiores até mesmo entre os que são nascidos aqui.

Portanto, para entender a temática dos documentários é preciso levar em

consideração as relações entre o cineasta, o filme e o público, que mensagem o cineasta quer

transmitir, o contexto da produção do filme, suas intenções, os motivos que o levaram a fazê-

lo desta ou de outra maneira, como o público vai interpretar, quais os efeitos, como o

espectador vai entender as intenções do cineasta. Quanto ao texto, sobre o que fala o filme,

qual a interpretação se pode fazer desta história, como compreendê-la. Cada espectador tem

suas experiências de vida, então, como tudo isso vai interferir nas suas relações.

Sendo assim, segundo Morin, tanto o cinema como o documentário são

indeterminados e abertos como o próprio homem, desta forma, a antropologia não opõe o

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homem à contingência do momento, pelo contrário, a antropologia leva o homem no âmago

da atualidade histórica e como um espelho antropológico ele reflete as realidades práticas e

imaginárias. E se são imaginárias, o cinema tem uma essência estética e uma evidência

relativa à magia. O cinema está inserido numa dialética na qual se opõem a objetividade da

imagem e a participação subjetiva do espectador, pois a realidade ultrapassa a subjetividade.

Assim, os diversos complexos de magia, de afetividade, de razão, de real, que compõem a estrutura molecular dos filmes, nos conduzem aos complexos sociais contemporâneos e aos seus componentes, aos progressos da razão no mundo, à civilização da alma, às magias do século vinte, herança das magias primitivas e fixação fetichista da nossa vida individual e coletiva (MORIN, 1997, p. 240).

Diferentemente dos filmes de ficção o valor documental dos filmes de não ficção está

em como as coisas são representadas visualmente e auditivamente, de maneira que a escrita e

a fala forneçam conceitos. No entanto, as imagens fotográficas não fornecem esses conceitos,

servem para exemplificar precisando do comentário falado para que o espectador faça uma

interpretação destas imagens. Nos documentários mais do que impressões, estas imagens

fotográficas representam qualidades e conceitos abstratos, estas, inclusive, são algumas

características do modo expositivo de fazer documentário.

Generalizações e especificações é que criam as tensões no documentário e se não

fossem as generalizações seriam apenas abstrações, registros de acontecimentos e

experiências específicas. “A combinação das duas coisas, dos planos e cenas individuais é que

nos colocam num determinado tempo e lugar, e a organização em um todo maior” é o grande

fascínio dos documentários, portanto temas como guerra, sexualidade, violência, etnicidade

são abstrações de experiências específicas, mas não idênticas a elas (NICHOLS, 2012, p. 99).

Os conceitos e as questões mais abordadas nos documentários geralmente são as de

interesse social ou debate, aquelas ligadas às práticas sociais, valores alternativos, assuntos

controversos e que ganham força pelo poder da persuasão no sentido de direcionar para algo,

adotar uma posição diante de alguma coisa nos seus diferentes usos da linguagem escrita e

falada. Segundo Nichols são categorizadas em poética e narrativa (conta histórias, evoca

disposições de ânimo), lógica (espírito de investigação científica e filosófica) e retórica (cria

consensos, chega a acordos sobre questões abertas a debates) como propõem os três docu-

mentários analisados nesta dissertação.

Então o documentário objetiva o convencimento, a persuasão ou predisposição a uma

visão de mundo real na qual se vive. O documentário não recorre somente à estética, ele pode

divertir e agradar, mas o faz principalmente por um esforço retórico ou persuasivo, não só

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ativando nossa percepção estética, mas instigando a consciência social para as práticas

sociais. Assim, a retórica ou a oratória faz uso de uma linguagem que interessa ao

documentário.

Para Nichols (2012), isto se dá a partir de três tipos de questão da retórica: 1º)

legislativa ou deliberativa, na qual as questões de política social servem para encorajar ou

desencorajar, induzir ou não ações coletivas, um olhar para o futuro no sentido de propor

questões sobre o que fazer. Além de questões relacionadas à identidade nacional; 2º) judicial

ou histórica, faz avaliações prévias sobre fatos e interpreta-os quanto à lei, verdade ou

falsidade históricas sobre assuntos que exigem soluções definitivas.

Tanto na retórica judicial, quanto na deliberativa as questões são abertas às discus-

sões, assim como questões coletivas de moralidade e tradição, crenças e valores são tratados

coletivamente, a partir de argumentações e pontos de vista dos historiadores conforme nossos

julgamentos e 3º) cerimonial ou panegírico, poderia também ser chamada de retórica

biográfica, ensaísta ou poética, elogia e evoca as qualidades das pessoas e suas realizações. Os

lugares e as coisas são apresentados de maneira agradável ou desagradável e as pessoas

podem ser estimuladas e respeitadas como também demonizadas ou rejeitadas. Este tipo de

retórica complementa as outras duas acentuando o peso moral de um argumento.

Então, a partir destas três questões da retórica pode-se verificar que os documentários

¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo, 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta:

Bolivianos em São Paulo cumprem suas funções, pois leva a uma reflexão sobre as

indagações sociais, no sentido de fazer com que a comunidade boliviana pense em ações

coletivas para solucionar seus problemas no que tange os aspectos de trabalho, assim como

são participativos nos seus momentos de festividades (deliberativa).

Os assuntos que envolvem a moralidade, a tradição, as crenças e os valores são

debatidos coletivamente, como se verifica nos documentários em espaços, nos quais todos

podem participar, argumentando e mostrando seus pontos de vista (judicial), assim como

apresenta qualidades e realizações, principalmente, quando o assunto são as festas da

comunidade realizadas no Memorial da América Latina, na Praça Kantuta ou na Rua

Coimbra, pontos de encontro dos bolivianos que moram em São Paulo e como eles se

apresentam no imaginário coletivo (panegírica).

Outra discussão acerca dos temas dos documentários é que os conceitos e as questões

precisam de metáforas para serem descritos com clareza e que esses relatos sejam lineares e

os argumentos persuasivos. A metáfora como figura de linguagem, auxilia a compreensão e

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dá uma “coloração moral, social e política” funcionando como forma de comparação por

semelhança, ajudando a definir ou compreender as coisas com as quais elas se parecem e

orientando espacialmente atribuindo valores aos conceitos sociais (NICHOLS, 2012, p. 107).

O documentário, como sequência organizada de sons e imagens, constrói metáforas que atribuem, interfere, confirmam ou contestam valores que cercam as práticas sociais sobre as quais nós, como sociedade, continuamos divididos. Usam a retórica deliberativa, judicial e panegírica, entre outras estratégias para persuadir-nos de sua orientação, de seu julgamento ou de um argumento em particular (NICHOLS, 2012, p. 107).

É a partir do documentário que se podem estabelecer relações de proximidade, de

identidade, ligações íntimas e particulares com pessoas de diferentes localidades, assuntos

relacionados à intimidade sexual, de pertença social, pois ele oferece representações de como

todas estas coisas acontecem, pois o documentário fala do mundo histórico de uma maneira

elaborada com o objetivo de comover ou persuadir despertando a compreensão e o

envolvimento neste mundo de uma maneira bastante significativa.

Agrupamentos de planos expondo aspectos do mundo visível e a voz do cineasta

ultrapassam a exibição de “atrações” e as observações científicas, mas o cinema continua

reconhecendo a necessidade de representar o mundo histórico com a fidelidade da imagem

fotográfica. A montagem rearranjava os acontecimentos em fragmentos, sobrepondo os

planos que não harmonizavam “naturalmente” construindo novas percepções e impressões.

Para Eisenstein, no realismo da fotografia tradicional também havia ideologia impositiva.

O documentário é um gênero que contribui para a discussão da questão da construção

de identidades nacionais e ao sentimento de comunidade a partir de valores e crenças, de

compartilhamento de tradição, de uma cultura e objetivos em comum, mas que deve atentar

para uma representação ideológica que não desvie ou altere as condutas das comunidades

retratadas, embora essa declaração tenha sido desmentida por grande parte daqueles “que

teriam sido as supostas “vítimas” da tradição documental – mulheres, minorias étnicas, gays e

lésbicas, povos do Terceiro Mundo” (NICHOLS, 2012, p. 181).

Algumas temáticas deram essa voz ao documentário como, por exemplo, culturas

diferentes, povos nômades, construção de ferrovias, diferenças de classes, combinando várias

“atrações” com narrativas coerentes, linguagem poética às cenas, voz oratória, tudo no sentido

de mostrar o mundo histórico. Esses avanços acabaram por sufocar um período artístico de

experimentações, na União Soviética, dando lugar a um cinema “oficial” estatal em meados

da década de 1930. No entanto, vale ressaltar a importância de Dziga Vertov que defendia a

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reconstrução poética captada pela câmera, a montagem e o intervalo (transição de planos)

criando o cinema-olho, cujo objetivo era apresentar a realidade como ela era.

Entretanto, o cinema soviético de 1920 que dependia do apoio do governo depois da

revolução de 1917 tinha como característica servir aos interesses dominantes adotando um

discurso retórico forte. Para Eisenstein e Vertov (apud BERNARDET, 2006, p. 48) a

“montagem não é reconstrução real imediato, mas construção de uma nova realidade”. No

entanto, Eisenstein a partir da montagem de justaposição de imagens ou planos objetivava

despertar no espectador novas descobertas utilizando atores e roteiros. Considerado, inclusive,

um cineasta de ficção por gerações posteriores, procurou mostrar comunidades em formação,

grupos de pessoas com os mesmos objetivos, ou seja, temáticas sociais.

Eisenstein não só elaborou uma teoria da montagem como também desenvolveu

reflexões sobre a própria função do cinema como arte. Suas ideias complexas revelam uma

dupla posição quanto às funções e objetivos do cinema, na qual por um lado é um “poderoso

veículo de persuasão retórica, e por outro um meio superior, quase místico, de conhecer o

universo”. Para ele, a realidade podia ser moldada conforme as necessidades, denominada

neutralização, tornando-a abstrato (ANDREW, 1989, p. 54 apud GODOY, 2002, p. 39).

A intenção de Eisenstein era criar, no espectador, uma impressão psicológica forte,

para isso teria que fugir do realismo. A partir de sua teoria das atrações na qual os elementos

do espetáculo cinematográfico (iluminação, composição, interpretação) combinados criariam

essa atmosfera e estimulariam os espectadores através da transferência, combinação de vários

elementos para um único efeito ou mesmo o conflito entre esses elementos para criar outro

efeito necessário, e da sinestesia, quando vários elementos combinados promovem no

espectador uma experiência multissensorial.

A atração é “todo elemento que submete o espectador a uma ação sensorial ou psicológica [...] com o propósito de nele produzir certos choques emocionais [...] para tanto os discursos disponíveis são todas as partes constitutivas do aparato teatral [...] tanto na falação do ator quanto a cor da malha da prima-dona, tanto um toque de tímpano quanto o solilóquio de Romeu, tanto o grilo na lareira quanto o espocar de fogos sob a poltrona dos espectadores”. Trata-se de uma visão neutralizadora no sentido de igualar todos os componentes de um espetáculo, colocando-os como passíveis de produzir um determinado efeito (GUIOMAR RAMOS in TEIXEIRA, 2004, p. 124).

A ideia da teoria das atrações (ou choque) revela a relação entre a mente e o tema

que está sendo desenvolvido a partir das influências do teatro japonês, da poesia e das escritas

chinesa e japonesa. A montagem “representaria um sistema semelhante à constituição dos

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ideogramas, onde existem conflitos que interagem e geram o significado” existente também

nas atrações acessíveis ao cineasta “na forma de conflitos gráficos, de volumes de escuridões

e claridades”. Sendo assim, são esses conflitos que dão expressividade às montagens

(GODOY, 2002, p. 41).

Nos anos 1920, Eisenstein percebeu que as atrações individuais nunca poderiam ser responsáveis pelo significado do cinema e então introduziu o conceito unificador e dinâmico de montagem. No final daquela década e durante toda a década de 1930, ele empenhou-se em ultrapassar a montagem simples para chegar ao nível da forma cinematográfica, pois se tornara claro que, apesar da energia vivificadora da justaposição de planos, a mera justaposição por si mesma nunca determinará o impacto de um filme. A montagem é responsável pelo significado no nível local, mas não pelo significado total (ANDREW, 2002, p. 57).

Para Eisenstein (1990) é a montagem que possui o poder criativo do cinema, quando

as partes isoladas são juntadas a montagem se torna um conjunto vivo e o som reforçaria a

ilusão de realidade, mas não na sua totalidade. Seria preciso uma polifonia para o

desenvolvimento e aperfeiçoamento da montagem, e uma não sincronização entre imagem e

som “dará a palpabilidade necessária que mais tarde levará à criação de um contraponto

orquestral das imagens visuais e sonoras” (1990, p. 218 apud GODOY, 2002, p. 41).

Na visão de Eisenstein e em consonância com o pensamento de Piaget que diz que a

criança tem um “discurso interno” como forma de pensamento próprio e que vai se

modificando na medida em que ela se confronta com a realidade, a montagem das atrações

desencadearia esse discurso interior, rompendo com a lógica e ocorrendo uma comunicação

imediata. Surge então em 1920, baseado na teoria literária de Jakobson, a ideia de dominante,

na qual uma atração dominante e as outras paralelas vão determinar a justaposição da

montagem como forma de experiência total através de uma montagem polifônica.

O cinema de Dziga Vertov nasce logo após a Revolução de Outubro de 1917, quando

um grupo de artistas iniciaram vários debates acerca do papel da arte na revolução e nos

movimentos sociais daquele período. Destes debates surgiu a Frente Esquerdista de Arte ao

qual Vertov se filiou em 1923 e que compreendia as vanguardas artísticas russas, o

Construtivismo. Neste contexto, Vertov começa sua carreira no cinema que culmina com a

publicação de vários manifestos com suas teorias sobre cinema e a teoria da montagem.

Os intervalos (passagens de um movimento para outro), e nunca os próprios movimentos, constituem o material (elementos da arte do movimento). São eles (os intervalos) que conduzem a ação para o desdobramento cinético. A organização do movimento é a organização de seus elementos, isto é, dos intervalos na frase. Distingue-se, em cada frase, a ascensão, o ponto culminante e a queda do movimento (que se manifesta nesse ou naquele

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nível), Uma obra é feita de frases, tanto quanto estas últimas são feitas de intervalos de movimentos (XAVIER, 1983, p. 250).

Dziga Vertov como os cineastas observativos evitou encenações, roteirização,

atuações, sua ideia era flagrar a vida ao natural e depois montar com base na nova sociedade

que surgia rompendo com formas teatrais e literárias para cinema, pois estes dependiam de

uma estrutura narrativa que prejudicava o cinema de construir uma nova realidade visual e

assim uma nova realidade social. Essa maneira de fazer cinema ficou conhecida como

kinopravda, cinema verdade. O cinema poderia ser um mundo invisível para o olho do

homem, um cine-olho, aquilo que o olho do homem não consegue ver.

O cinema vérité (cinema verdade) de Vertov surgiu nos anos de 1920 e mudou a

relação do filme etnográfico, porque estabeleceu uma nova maneira de interação entre o

cineasta, os atores sociais e o espectador dando voz à pessoa filmada. “Mas ele só veio a ser

adotado como uma nova metodologia de filmagem por volta de 1960, com o surgimento das

câmeras sonoras portáteis (16 mm) que além de registrar sons e gestos em sincronia davam ao

cineasta maior agilidade” (PEIXOTO, 1999, p. 102).

Foram muitos os cineastas que se dedicaram ao cinema etnográfico e antropológico,

mas os documentaristas mencionados aqui são bastante representativos. Cada qual representa

um momento, um país e um jeito de fazer e teorizar cinema, como Eisenstein e Vertov (União

Soviética), Flaherty (Estados Unidos) e para finalizar esta etapa discorrerei sobre Grierson

(Escócia) e Jean Rouch (França). No entanto, entendo que muitos outros poderiam ser citados,

mas compreendo que este não é o principal objetivo desta pesquisa.

John Grierson, primeiro a usar o termo documentário (1926), fez com que o governo

britânico (1930), a exemplo do governo soviético fizera (1918) uma maneira de despertar uma

consciência de nacionalidade, de identidade nacional, dando ao documentário uma base

institucional. Ele definia seu ponto de vista sobre questões do mundo contemporâneo em

oposição ao idealismo romântico de Flaherty. Grierson primava por “uma abordagem racional

de nacionalismo e comunidade”, enquanto Flaherty reivindicava “as qualidades do mundo de

outrora e uma visão mítica de parentesco e afinidade” (NICHOLS, 2012, p. 187).

Embora Grierson desse um enfoque mais prático e realista às questões sociais esse

enfoque não era mostrar o potencial revolucionário dos camponeses ou operários do mundo,

mas exaltar a democracia parlamentarista e a intervenção do governo para amenizar as

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questões sociais, isso contribuiu para a “tradição da vítima”2 descrita por Brian Winston.

Grierson também criticou o domínio econômico do cinema de ficção em detrimento ao

documentário que segundo ele eram cineastas de virtude e consciência social.

Para Grierson o documentário tinha objetivos sociais e políticas públicas dando a ele

notoriedade e respeitabilidade, ao passo que para Vertov, do cine-olho, tinha um conceito

mais abrangente “como o elemento essencial de todo cinema verdadeiro, não só do

documentário” (apud NICHOLS, 2012, p. 188). Outros cineastas entendiam que o sentimento

de comunidade devia ser a partir de ações e mudanças, no entanto os governantes não tinham

essa mesma visão e os filmes, então, se opunham a essas políticas. Os cineastas deste

segmento instituíram a vanguarda política do cinema documentário.

Esse era um cinema que dava poder de participação, que buscava contribuir com os movimentos sociais radicais da década de 1930 e construir a comunidade com base no povo e na oposição, e não de cima para baixo, orquestrada pelo governo (NICHOLS, 2012, p. 189).

A questão da identidade nacional fosse para compactuar com governos ou opor-se a

eles já fazia parte dos documentários nas primeiras décadas. As primeiras obras do cinema

etnográfico que surgem no século XIX junto às pesquisas antropológicas nascem “em meio a

descobertas de novas terras, novos mercados e na ânsia por novos experimentos, registrando e

apresentando os muitos encontros entre povos e culturas”, a partir de registros e relatos de

viagens (MONTE-MOR apud TEIXEIRA, 2004, p. 97).

Junto a essa política de identidade que era motivo de orgulho e uma maneira de

integrar grupos marginalizados ou excluídos a voz do documentário contribuiu de forma

determinante para “culturas e histórias ignoradas ou reprimidas por valores e crenças

dominantes na sociedade” dando visibilidade, revelando histórias e identidades que as

ideologias de uma unidade nacional insistiam em negar. A maioria dos filmes com essa

característica evitava comentários com especialistas ou autoridades de fora, a ideia era de uma

autodescrição e autopercepção feitas pelos membros daquela comunidade que era tema do

filme (NICHOLS, 2012, p. 193).

A dimensão política de documentários sobre questões de sexualidade e gênero, ou outros temas, une um modo enfaticamente performático de

2. O documentário encontrou o seu tema na primeira década do som, e no final dos anos trinta, estava estabelecido o desfile agora familiar dos desfavorecidos cujo desvio era suficientemente interessante para atrair a nossa atenção... a vítima da sociedade está pronta e à espera para ser também a “vítima” dos meios de comunicação social (Penafria, Manuela. Tradição e Reflexões, p. 58 disponível em www.livroslabcom.ubi.pt. Acessado em 21/5/2014 as 20h57).

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representação documental às questões de experiência pessoal e desejo que se expandem, por implicação, para questões mais abrangentes de diferença, igualdade e não discriminação. Como muitas outras obras, eles contribuem para a construção social de uma identidade comum entre membros de uma dada comunidade. Dão visibilidade social a experiências antes tratadas como exclusiva ou principalmente pessoais; atestam uma comunhão de experiência e as formas de luta necessárias para superar o estereótipo, a discriminação e a intolerância. A voz política desses documentários encarna as perspectivas e visões de comunidades que compartilham uma história de exclusão e um objetivo de transformação social (NICHOLS, 2012, p. 201).

Outra questão ligada à política de identidade diz respeito às subculturas, grupos e

movimentos e suas relações de identidade parcial ou híbridas para a construção de uma

identidade nacional, mas no mesmo sentido que cria uma identidade pode por outro lado

provocar uma falsa sensação de conforto. “Consequentemente, existe tensão entre a ênfase no

hibridismo, na diáspora, no exílio e no deslocamento e os contornos mais claramente

definidos de uma política de identidade” (NICHOLS, 2012, p. 201).

Tão importante quanto os cineastas já mencionados, Jean Rouch, seguindo os passos

de seu professor Marcel Griaule e as técnicas de filmagem de Vertov e Flaherty se torna o

mais importante representante do cinema etnográfico da França. Nas suas incursões pela

África ele estabeleceu um diálogo entre o observador e o observado propondo uma

“antropologia partilhada” e também “etnoficções” juntamente com seus atores sociais. Esta é

uma maneira de aproximar o documentário da realidade, pois o cinema permitia essa

aproximação entre etnógrafo e o seu objeto de pesquisa (MONTE-MOR, 2004).

Sem qualquer artifício, maquiagem, ambientes que não sejam reais, baixo custo, uma

câmera na mão (Cinema Novo, no Brasil), o cinema verdade foi muito importante para

mostrar o homem, o seu rosto e os seus gestos. Surgiu, ainda, na França (Cinema Vérité), nos

Estados Unidos (Cinema Direto), no Canadá (Cinema do Vivido) com isso o documentário foi

ganhando uma linguagem própria, fez escolas e aproximou cada vez mais o cineasta de outras

culturas, assim como faz o antropólogo.

O primeiro filme europeu a utilizar a câmera na mão foi Chronique d’un été (crônica

de um verão) de 1961, de Jean Rouch e Edgar Morin. Antes, nos Estados Unidos, Richard

Leacock já havia utilizado, para ele “a câmera deveria assumir uma postura não interventiva,

observacional, neutra e quase ausente, de recuo diante da vida que transcorre através das

lentes da câmera”. Mas o cinema vérité pôs em xeque à questão da verdade, quando o

documentarista francês propôs, então, o cine-minha verdade, a partir do ponto de vista

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daquele que observa. Portanto, nas palavras de seus praticantes “se o material não era

espontâneo [...] como pode ser verdade?” (WINSTON, 1993 apud COELHO, 2012, p. 759).

Para Jean Rouch, seu parceiro Edgar Morin e Chris Marker, no cinema verdade a câmera deveria assumir uma presença interventiva, participativa e reflexiva, uma presença assumida e declarada. ... Sua metodologia insere na narrativa os depoimentos e as reflexões dos próprios autores além da realização de entrevistas, sendo considerado o primeiro documentário a utilizá-las. Nele as pessoas não só falam, mas participam do processo de produção do filme, fazendo críticas e sugestões (COELHO, 2012, p. 759).

Sendo assim, é importante para finalizar fazer uma breve referência às temáticas

apresentadas nos documentários sobre a representação histórica social, embora em outros

momentos já o tenha feito, assim como a representação do retrato pessoal. Desta forma,

entender melhor porque, agora, os filmes analisados nesta dissertação são documentários

antropológicos e quais são as relações entre o que foi apresentado e a representação dos atores

sociais no imaginário dos espectadores a partir da análise dos filmes.

Por isso, as temáticas que envolvem a representação histórica social no documentário

não mudam apenas com as pressões internas, mas principalmente com o contexto histórico,

estes temas não surgem com o documentário, eles estão presentes na vida das pessoas. Sendo

assim, não se trata de enfatizar somente as questões sociais, mas também, o retrato pessoal.

Quanto às questões sociais o documentário irá considerar as questões coletivas sob uma ótica

social e está relacionado com o modo expositivo enquanto a de retrato social também

considera as questões sociais, mas a partir do individual e se relaciona com os modos

observativo e participativo, como já analisados anteriormente nos documentários.

Os documentários que envolvem a questão social, geralmente, entendem que as

questões coletivas chamam mais atenção por seus próprios méritos, já a de cunho pessoal

continua privado ou fora dos limites a menos que o eu público se volte para alguma questão

que está sendo debatida. Tanto um quanto outro, através da oratória, deve levar a uma reação

por parte de quem os assiste no sentido de um posicionamento sobre aspectos do mundo a

partir de representações convincentes, comoventes e verossímeis, suscitando questões éticas e

engajamento político, mas com um olhar distinto. Ambas, no aspecto individual ou da

sociedade devem se inter-relacionar.

Alguns documentários procuram desvendar aspectos do mundo, analisando

problemas e apontando soluções através das representações no sentido de tornar

compreensíveis coisas do mundo histórico com o intuito de levar a um posicionamento.

Outros procuram compreender o mundo histórico de forma mais completa, observando,

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descrevendo ou evocando poeticamente situações e interações para entender as consequências

e as implicações do que se faz, “abordando questões, examinando situações, envolvendo os

espectadores de formas as quais continuarão a instruir e agregar, comover e convencer”

(NICHOLS, 2012, p. 209).

Desta forma os documentários, segundo Nichols, apresentam duas ênfases uma diz

respeito aos documentários de questão social e a outra aos documentários de retrato pessoal.

Os que envolvem questões sociais, por exemplo, têm como características apresentarem a voz

do cineasta ou do patrocinador, além das vozes de testemunhas e especialistas, há uma

interação fundamentada na retórica, na qual o estilo é secundário ao conteúdo, num discurso

sóbrio sobre o mundo real, baseado na objetividade, no conhecimento dos fatos históricos,

principalmente em se tratando de questões coletivas.

Além de uma profundidade psicológica mínima dos personagens, os indivíduos são

representados como típicos ou representativos e mesmo vítimas, há uma atenção máxima às

questões sobre sexismo, desemprego, doenças entre outros temas e uma ênfase na missão do

cineasta, que é onisciente e transcendental, separado dos temas ou no propósito social em

detrimento da expressividade ou estilo. Frequentemente sua estrutura é baseada em

explicações possíveis e recorrência de problemas e soluções.

Já os documentários de retrato pessoal têm como características apresentar voz de

atores sociais, que falam por si mesmos, ou do cineasta interagindo com outras pessoas para

negociar o relacionamento e pode estar fundamentado tanto no estilo quanto no conteúdo, traz

um discurso poético ou subjetivo, na qual apresenta o mundo de uma perspectiva diferente e

em momentos específicos e privados, cujo direito à privacidade é uma reflexão consciente de

indivíduos únicos, distintos e míticos, como se pode observar em ¡Si, yo puedo! - O sonho

boliviano em São Paulo e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo (questões sociais) e 100%

Boliviano, Mano (retrato pessoal), embora em ambos se tenha as questões sociais.

Além disso, os documentários de retrato pessoal pretendem uma profundidade

psicológica, as questões maiores estão implícitas, os problemas subjacentes são

apresentados indiretamente, recorrência de uma forma dramática familiar para problemas

específicos como: crise, catarse, descobertas. Desta forma, as soluções não são claras

abrindo convite às interpretações. Há uma ênfase na expressividade e no estilo do cineasta

em detrimento do propósito social, embora ele esteja no mesmo domínio histórico-social

que os temas.

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Diante do que foi explanado sobre documentário antropológico e etnográfico, o papel

da antropologia, alguns de seus representantes e a importância deles no fazer cinema, além de

suas teorias e técnicas, o que não se pode esquecer é o que estes documentários retratam e

quem são os retratados, e principalmente, como esses atores sociais são representados. Sendo

assim, fica mais fácil depois entender como a comunidade boliviana de São Paulo é

representada nos documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo, 100%

Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo.

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CAPÍTULO 2. O IMAGINÁRIO BOLIVIANO

2.1. O IMAGINÁRIO... E DEPOIS O CINEMA

Estamos diante de um pensamento fundamentado em imagens, mas o astrônomo (Johanes Kepler) estabelece uma distinção entre “o jogo da imagem” e a “imagem objetiva”. Por meio desta última, os objetivos do mundo são representados diretamente na alma: assim, a visão, diz ele, é produzida por meio de uma imagem formada na superfície côncova da retina. Ou seja, a realidade destila uma imagem formada e essa imagem é observada pela alma. A partir daqui, vê-se claramente de que forma nasce a ideia da representação como substituta da imagem retiniana e, por conseguinte, como cópia da realidade (CATALÀ, 2011, p. 13).

O dia, exatamente, não saberia precisar. O fato é que desde que vi pela primeira vez

aquela imagem, ainda guardada nas minhas retinas e na minha memória, não consigo deixar

de me interessar pela cultura daquele povo que se encontrava ali. Aquelas mulheres com suas

roupas coloridas e suas danças coreografadas, aqueles instrumentos, aquela gente com traços

indígenas, toda a atmosfera compactuando com uma tarde ensolarada onde o sol no horizonte

já adormecia são as imagens que hoje servem de referencial para esta pesquisa.

As imagens nas cavernas, as inscrições nos papiros, as imagens impressas pelos tipos

móveis de Gutemberg, os primeiros registros fotográficos, cinematográficos, as imagens da

televisão, do computador, as imagens de alta resolução proporcionadas pelas novas

tecnologias, sempre exerceram e exercerão fascínio nas pessoas. São representações que

ficarão como uma maneira de registro e que depois, mesmo passado muito tempo, ficarão na

nossa memória, no nosso imaginário.

Imaginário deriva do latim imago (imagem) na filosofia e na psicologia é empregado

como substantivo “para designar aquilo que se relaciona com a imaginação, isto é, com a

faculdade de representar coisas em pensamento, independentemente da realidade”

(ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 371).

A noção de imaginário manifesta claramente esse encontro entre duas concepções da imagística mental. No sentido corrente da palavra, o imaginário é o domínio da imaginação, compreendida como faculdade criativa, produtora de imagens interiores eventualmente exteriorizáveis. Praticamente é sinônimo de “fictício”, de “inventado”, oposto ao real (até mesmo às vezes ao realista). Nesse sentido banal, a imagem representativa mostra um mundo imaginário, uma diegese (AUMONT, 2002, p. 118).

O olho é o órgão da visão responsável por ver as imagens e “as imagens são feitas

para serem vistas”, no entanto, o olhar nunca é neutro ligado ao cérebro ele intervém na

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relação que se estabelece entre o olhar e o que é olhado, ou seja, um espectador do sujeito, do

objeto. Enfim, há um jogo na qual entram saberes, crenças, afetos que devem ser levados em

consideração na imagem mental que se faz de qualquer “coisa” (AUMONT, 2002, p. 77).

O espectador constrói uma imagem tanto quanto uma imagem constrói o espectador.

Identificar alguma coisa na imagem significa reconhecer, em parte, que o que é visto na

imagem pode ser visto no real. Este reconhecimento pode ter codificações muito abstratas,

não implica, necessariamente, a constatação de uma semelhança, mas a invariação da visão já

estruturado (AUMONT, 2002). A imagem é construída a partir de uma relação com o outro

(LEDO, 1998).

Lo que vemos no es um puro y simple código de estructuras lumínicas enfocadas em la retina sino que, entre ésta y el córtex, el flujo de señales se modifica para facilitarnos información, insiste Bergin, para concluir el sentido de las cosas que vemos se construye a través de intercâmbios complejos entre varios registros de repesentación, deduciendo que los efectos sociales de uma fotografia son um produto en que implican la vida familiar, el erotismo, la competitividade y otros factores como la formación. El mundo, para Burgin, depende em gran manera de su descripción y em este orden de cosas sus preocupaciones se centran em los estereótipos y en el receptor (LEDO, 1998, p. 58).

As imagens se tornam compreensíveis e legítimas que podem ser percebidas pela

visão que se encarrega de proporcionar experiências imediatas. São “padrões preconcebidos

que delimitam, filtram e adjetivam o que vemos e, portanto, também estruturam em grande

medida a maneira como representamos aquilo que vemos. Esses padrões formam o nosso

imaginário” e são divididos em imaginário pessoal, imaginário social, imaginário cultural e

imaginário antropológico (CATALÀ, 2011, p. 252).

Segundo Català, o imaginário pessoal é uma cultura visual particular, são imagens

que conhecemos e que nos afetam, variam de pessoa para pessoa e estão interconectados com

outros imaginários. O imaginário social é a visualidade da sociedade, na qual estamos

mergulhados, desde o entorno social mais próximo até as estruturas mais complexas, as

classes sociais. Mesmo com a homogeneização das imagens, ainda existem diferenças

profundas pessoais, sociais e de classe dadas às questões psicológicas e ideológicas.

O imaginário cultural é ditado pela cultura das sociedades que estabelece o que se

pode ver e como ver, enquanto o imaginário antropológico corresponde a estruturas arraigadas

onde formam as imagens que vão do inconsciente (FREUD), aos arquétipos (JUNG) até os

temas de enquadramento (BIALOSTOCKI), que na visão de Català se sustentam no

pensamento de Jung e apresentam uma estrutura do imaginário mais simples.

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As imagens arquetípicas são a expressão dos fatos mais importantes da existência humana. O mal é expresso por meio de um dragão, uma serpente ou qualquer outro animal monstruoso; os conflitos entre potências humanas e inumanas, por meio de um homem que luta com um monstro (Mitra, Hércules, Perseu, São Jorge); a imagem da noite e do dia, travestida no mito dos heróis agonizantes e ressuscitados: todos eles e muitos mais são os motivos básicos arquetípicos mais geralmente difundidos. Essas imagens representam experiências concretas da humanidade, conservadas no inconsciente, que são transformadas em uma linguagem geral de símbolos. Jung destaca com frequência que quando diz “arquétipos” não quer dizer “imagens herdadas”, mas transformações contínuas da psique, que cria imagens análogas, partindo de matéria conservada na lembrança humana, que corresponde aos “princípios reguladores” existentes no inconsciente (JAN BIALOSTOCKI, 1973, p. 117 apud CATALÀ, 2011, p. 253).

Sendo assim, no campo da cultura visual onde as relações de identidade e imagem se

inter-relacionam, as formas e os conteúdos criam uma unidade que dificilmente são

separados. Existe um agravamento, se pensarmos na relação identidade e subjetividade, pois

questões como gênero, identidades nacionais, raça, classes sociais, “são expressas nas

imagens principalmente por meio de sua figuração, e que essa figuração cai em cheio dentro

do território da forma”. No entanto, não são as formas (linhas, planos, volumes e cores) que

vão construir as identidades (CATALÀ, 2011, p. 241).

Para Gombrich (apud AUMONT, 2002, p. 86), “a percepção visual é um processo

quase experimental, que implica um sistema de expectativas, com base nas quais são emitidas

hipóteses, as quais são em seguida verificadas ou anuladas”. As perspectivas que se tem são

baseadas no conhecimento do mundo e das imagens, assim a nossa compreensão das imagens

pode ser abandonada dependendo das nossas percepções.

O encantamento pela imagem sempre existiu, mas a presença da tecnologia ajudou

de maneira substancial. Desde Thomaz Edson que já havia animado a fotografia e

Émile Reynaud que projetou imagens animadas no ecrã e dessa relação entre a fotografia

animada e a projeção o cinematógrafo pode ampliar a impressão de realidade que as imagens

ganharam força, sobretudo porque “restituiu aos seres e às coisas, o seu movimento natural, e,

por outro lado” os libertou da película, amplificando o imaginário humano (MORIN, 1997, p.

31).

O cinematógrafo dispõe do encantamento da imagem, ou seja, renova ou exalta a visão das coisas banais e quotidianas. A qualidade implícita do duplo, os poderes de sombra e uma certa sensibilidade à fantasmagoria das coisas, reúnem os seus prestígios milenários no seio da ampliação fotogênica, e atraem as projeções-identificações imaginárias melhor, muitas vezes, que a própria vida prática (MORIN, 1997, p. 116).

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Foi o progresso técnico da reprodução de imagens e os meios de transmissão que

fizeram com que o século 20 se tornasse “a civilização das imagens”, mudando com isso a

forma de pensá-las. Não importa se são as imagens mentais (a imagem perceptiva, das

lembranças, das ilusões, do sonho etc.) ou as icônicas (a pintura, o desenho, a escultura, a

fotográfica). Tudo isso “possibilitou o estudo dos processos de produção, transmissão e

recepção, o “museu” – que denominamos o imaginário – de todas as imagens passadas,

possíveis, produzidas e a serem produzidas” (DURAND, 2011, p. 5,6).

A sociedade da informação é baseada nas imagens visuais e neste contexto a imagem

é ambivalente, por um lado tem-se uma relação de idolatria dado o progresso de produção e

reprodução das imagens e por outro lado uma relação de desconfiança, quase iconoclasta, na

qual a imagem se abre a uma infinita contemplação. Desta forma, o imaginário provoca “um

pluralismo das imagens, e uma estrutura sistêmica do conjunto dessas imagens infinitamente

heterogêneas, mesmo divergentes” (DURAND, citado por ARAÚJO e TEIXEIRA, 2009).

A imaginação tem uma função simbólica que é importante para o equilíbrio

psicossocial. A imaginação é a negação do nada, da morte e do tempo, assim a função da

imaginação é de eufemização, ela suaviza e equilibra biológica, psíquica e sociologicamente

os indivíduos e a sociedade diante da tecnocracia e da iconoclastia. Assim, a ideia de

imaginário para Durand, na visão de ARAÚJO e TEIXEIRA (2009), pertence ao campo

antropológico.

Desta forma, o enfoque de Durand se volta para os estudos do imaginário criador,

pois o homem (homo sapiens) tem uma virtude simbolizadora (homo symbolicus) na sua vida

social e cultural e para interpretar os símbolos e as imagens que estão no inconsciente coletivo

ele propôs uma classificação das imagens do sistema antropológico. As imagens simbólicas

tem um papel importante de mediação que se manifesta no psiquismo humano e interfere na

percepção e nas ideias racionais (MARQUES, 1999-2003).

Imagens como mensagens que afloram do fundo do inconsciente do psiquismo recalcado para o consciente. Qualquer manifestação da imagem representa uma espécie de intermediário entre um inconsciente não manifesto e uma tomada de consciência ativa. Daí ela possuir o status de um símbolo e constituir o modelo de um pensamento indireto no qual um significante ativo remete a um significado obscuro (DURAND, 2011, p. 36).

Ainda sobre o pensamento de Durand, o imaginário constrói formas de pensar, agir e

sentir e enquanto função simbólica a imaginação se apresenta a partir de três dominantes:

1) dominante postural remete ao imaginário de luta, purificação, combate, análise cujos

simbolismos são representados pela luz, asa, espada, cume, flecha etc.; 2) dominante digestiva

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remete ao imaginário de repouso, intimidade, aconchego, união, refúgio etc., que são

simbolizados pela água, caverna, noite, mãe, morada entre outros. e; 3) dominante copulativa

remete ao imaginário de reconciliação de intenções entre a luta e o aconchego expressando

dualidade e são representados pela roda, árvore, cruz, lua etc. (ESTRADA, 2003).

As representações que correspondem às dominantes ao entrar em contato com o meio

natural, social e cultural se concretizam em arquétipos. Para Durand (2000 apud ESTRADA,

2003) a estrutura do imaginário oscila entre três matrizes: separar (heroico), incluir (mística) e

dramatizar (sintético ou disseminatório). E estas estruturas se ajustam a dois regimes de

imagens: o regime diurno e o regime noturno.

As imagens do regime diurno representam concepções de verticalidade, heroísmo,

ascensão, masculinidade, exibição, dominação, ação, agressividade, liberdade, poder paterno,

iluminação, racionalidade, objetividade. Desta forma, o aspecto diurno da imaginação é

caracterizado por ideias que remetam a clareza, a razão e a objetividade e são símbolos de

purificação, desfeminização, separação e especificamente representados por cabeças, céu,

fogo, dentes, cavalo, rei, guerreiro, animais ferozes etc. (ABELLA E RAFAELLI, 2012).

Já as imagens do regime noturno são próprias das ideias de descida, profundidade,

trevas, nutrição, refúgio, repouso, intimidade, transformação, eterno retorno, devir, o materno

e são caracterizados pela subjetividade, o feminino, a obscuridade e representados por

imagens como: noite, sombras, monstros, abismos, serpentes, natureza, terra, flores, peixe,

árvores, entre outros (ABELLA E RAFAELLI, 2012).

“Assim todo o pensamento humano é uma re-presentação, isto é, passa por

articulações simbólicas”, portanto o imaginário é uma conexão para a formação de qualquer

representação humana. Desta forma, o imaginário se apresenta e se manifesta nas mais

diversas realizações como nas artes, na pintura e na psicanálise como neste breve resgate a

seguir (DURAND, 2011, p. 41).

Portanto, vale recorrer ao pensamento de Panofsky e o seu sistema iconográfico que

também encontra problema com relação à representação e procura resolvê-lo a partir da forma

e do conteúdo. Para ele, iconografia é o tema ou mensagem, ou seja, o conteúdo das artes

visuais em detrimento à sua forma, ao passo que iconologia é uma interpretação que advém da

síntese, mais do que da análise. Desta forma, o primeiro seria o conjunto das imagens (forma)

e o segundo o significado delas (conteúdo) (PANOFSKY, 2002).

Panofsky (2002), dentro deste sistema iconográfico, acaba se opondo a ideia de

forma e conteúdo e flerta com a psicologia da Gestalt, entretanto ele verificou o mesmo

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problema, ou seja, as impressões chegavam de maneira desordenada aos nossos sentidos e em

seguida teriam que ser reunidos em nosso cérebro. Mas a crença era em uma unidade de

percepção para organizar a realidade, embora isto também estivesse totalmente ligado à

questão do conteúdo, era desta forma que se chegaria à representação de uma imagem.

Se prestarmos atenção a essa abordagem, nos daremos conta de que o método de Panofsky desconsidera o âmbito específico no qual a imagem se expressa por suas próprias características visuais, já que por um lado restam os elementos abstratos e, por outro, formas que, mesmo sendo visuais, são contempladas pela perspectiva de sua semelhança com suas contrapartidas reais... Não leva em conta de modo algum a construção visual desses elementos, sua inclusão numa estrutura organizada visualmente... essas imagens se expressam e só consideram o que as imagens informam sobre a realidade que representam (CATALÀ, 2011, p. 242).

O pensamento de Panofsky (2002) acerca da análise iconográfica ainda carecia de

um estudo que ele chamou de iconológico, que seria entender o significado das formas e

estruturas para além de sua iconicidade, ou seja, como as imagens e suas combinações são

apresentadas. Portanto, agora, não é o caso de ver uma comunidade estrangeira que vive em

São Paulo, mas ver que se trata da comunidade boliviana. Há uma especificidade que conduz

a uma visualidade concreta, é por aí que os estudos visuais deveriam caminhar para estudar a

construção da identidade a partir das imagens.

Durante muito tempo o retrato pictórico foi responsável por representar a identidade

através das imagens até a chegada da fotografia. Era uma maneira de se ver, como num

espelho, na perspectiva do outro. Os pintores conseguiam captar a essência do retratado, algo

como um psicólogo visual, no entanto, a fotografia, por ser técnica, não consegue esse

aprofundamento psicológico. A imagem técnica é objetiva, porque parte da realidade,

portanto tem um poder representativo baseado no real, diferente da pintura.

A pintura parte da imagem mental combinada com a imagem real, sendo assim, parte

da imaginação e da visão, é um olhar do outro sobre o Outro representado. No caso da

fotografia ela “codifica o corpo através da retórica da postura, do gesto, da posição no espaço,

e o faz em relação a um espectador. Posiciona o corpo em uma representação, que é como

dizer que produz um corpo para a representação”. Portanto, ao fazer isto ela esta construindo

uma identidade, aumentando o realismo e o poder de sedução e se autorrepresentando

(CATALÀ, 2011, p. 246).

Para auxiliar nesta compreensão, é importante o pensamento do psicanalista Jacques

Lacan, para quem, as crianças passam por um processo de transferência psicológica quando se

veem no espelho. Lacan retoma o mito de Narciso e denomina isso como a fase do espelho,

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pois quando as crianças enxergam sua imagem externa refletida no espelho, elas acreditam

que aquele reflexo no espelho são elas, é a representação mental do “Eu”, a sua identidade.

No entanto, para o psicanalista, no espelho não reside o real, mas o imaginário.

Para Lacan, a fase do espelho torna o ego fundamentalmente dependente de objetos externos, de outro (como reflexo ideal de si mesmo). A dialética entre esse outro (que é parte imaginária de si mesmo) e o Outro (representante de tudo que não é a própria pessoa) configura a identidade pessoal. Essa identidade tem, para nós, um ponto de partida fenomenológico muito concreto que nos transforma em espectadores subjetivos de uma realidade externa e objetiva... relação ideal entre o Eu e o Outro” (CATALÀ, 2011, p. 246-247)

O que se pode perceber a partir da ideia de Lacan é que a identidade se situa entre o

olhar pessoal subjetivo e o olhar objetivo do Outro. Desta forma, essa identidade idealizada é

uma imagem construída pelo olhar do autor de si mesmo para o outro que o julga, esperando

que este olhar objetivo do outro o revele como um “Eu ideal”, autêntico. Sendo assim, essa

identidade não é mais que um jogo entre o “Eu ideal”, do outro, e uma representação dada

pela nossa visão.

Se esse “Eu ideal” é um “Eu imaginado” representado nas imagens, desaparece,

então, o conceito de “Eu autêntico”, esse desdobramento da personalidade Jung chamou de

“sombra”. Já no século XIX, a expressão alemã “doppelgänger” trazia a ideia de duplo como

sombra da própria identidade. Desta forma, o que temos é uma identidade fragmentada, como

o espelho de Narciso que se quebrou em mil pedaços e que já não é possível restaurar, por

isso a imagem está em crise e a identidade representada no inconsciente é subjetiva.

Portanto, o imaginário, nas suas manifestações mais típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação etc.) e em relação à lógica ocidental desde Aristóteles, quando não a partir de Sócrates, é alógico. A identidade não localizável, o tempo não assimétrico e a redundância e metonímia “halográfica” definem uma lógica “inteiramente outra” em relação àquela, por exemplo, do silogismo ou da descrição eventualista (DURAND, 2011, p. 87).

Por isso, para se chegar a uma compreensão das representações audiovisuais da

comunidade boliviana de São Paulo nos documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em

São Paulo; 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo e o imaginário

boliviano no trabalho - nas oficinas de costura - e na festa - na dança diablada -, a presente

pesquisa deverá levar em consideração os vários aspectos que envolvem as relações sociais,

econômicas, políticas e culturais apresentadas nos filmes que serão vistos no terceiro capítulo.

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Estes conceitos apresentados até agora, sobretudo, a questão do duplo, a questão do

imaginário e da representação do Outro serão abordados agora levando em consideração suas

relações com o cinema e o imaginário, sob diferentes perspectivas e diferentes autores como:

Edgar Morin, Christian Metz entre outros que possam se fazer necessários. Pois, estes são

alguns autores que trabalharam e desenvolveram pesquisas acerca do assunto e que nesta

dissertação é primordial para a compreensão do tema.

2.2. O CINEMA E O IMAGINÁRIO EM SEUS DIFERENTES ASPECTOS

(ANTROPOLOGIA, SOCIOLOGIA, LINGUAGEM E COMPORTAMENTO)

Para Morin, o cinema é o resultado de um diálogo entre a verdade objetiva da

imagem e a participação subjetividade do espectador, na qual uma enriquece a outra, tanto no

que diz respeito à presença objetiva do espectador diante do ecrã, tanto quanto nas suas

participações, ou seja, na objetividade presencial. Portanto, a realidade transcende a

objetividade. “As participações subjetivas, ao fixarem-se na imagem objetiva, dão-lhe uma

alma e uma carne: a presença objetiva” (MORIN, 1997, p. 174).

Portanto, como querer entender as razões e os motivos pelos quais bolivianos

chegam todos os dias à cidade de São Paulo a procura de novas oportunidades, se mal

conhecemos o povo deste país vizinho que faz limite com o Brasil e que pouco sabemos desta

cultura e sociedade complexas, miscigenada. Na verdade o que move esta imigração,

podemos até saber, a questão econômica, mas sempre iremos procurar algo para poder

explicar o que talvez fuja às explicações lógicas.

No cinema, as primeiras imagens que chamaram a atenção do grande público foram à

saída de trabalhadores de uma fábrica e a chegada de um trem na estação, mas o fascínio de

ver aquelas imagens não estava simplesmente na saída das pessoas da fábrica e nem na

chegada do comboio à estação, “mas uma imagem do comboio, uma imagem da saída da

fábrica. Não era pelo real, mas pela imagem do real que a multidão se comprimia às portas do

Salon Indien”. Lumière, então, proporcionou esse fascínio pela imagem cinematográfica,

como um espelho da realidade (MORIN, 1997, p. 33).

O cinema é uma técnica do imaginário. No sentido de Edgar Morin, para quem os

filmes são relatos ficcionais e no qual os filmes repousam no imaginário, a partir do

significante, primeiro da fotografia e depois da fonografia e no sentido de Lacan em que o

imaginário, oposto ao simbólico, mas imbricado a ele, logra o Eu, como o “espelho que aliena

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o homem ao seu próprio reflexo e dele faz o duplo do seu duplo... núcleo inicial do

inconsciente”, portanto está na vertente do imaginário (METZ, 1980, p. 10).

A questão do imaginário não está somente no cinema, mas também no espectador,

desta forma não está apenas em relação à metáfora, na qual o espectador se espelha no filme,

mas está também na relação de metonímia e complementaridade, ou seja, na vontade de ir ao

cinema como uma espécie de reflexo fomentada pela indústria do filme. O imaginário,

portanto, está nestas duas vertentes. O simbólico apresenta um discurso que é evocado pelo

imaginário e do qual tira proveito.

O objeto real (neste caso, o filme que agradou), e o discurso verdadeiramen-te teórico através do qual esse objeto poderia ser simbolizado, encontram-se mais ou menos confundidos com o objeto imaginário (= o filme tal como agradou, isto é, qualquer coisa que deve muito ao fantasma do seu espectador), e, por projecção, as virtudes deste último são conferidas ao primeiro (METZ, 1980, p. 17).

Algo que deve ser registrado, também, refere-se ao fato de que tanto a linguística

como a psicanálise são ciências do simbólico, portanto são fontes da semiologia da qual parte

do discurso envolve o saber do homem, e na qual a evolução das tecnologias e as relações

sociais acabam influenciando no simbólico como, por exemplo, a ordem dos planos ou o som

off na linguagem cinematográfica. Não é somente o homem que faz o símbolo, mas o símbolo

que faz o homem são lições da psicanálise, da antropologia e da linguística (METZ).

Os códigos cinematográficos servem para comunicar o argumento tornando-o um

significado. “Significado que se define como o conjunto dos temas aparentes do filme, como a

sua dimensão mais literal (= denotação circunstanciada)”. Embora não seja o elemento mais

importante do filme, o significado é fundamental para o estudo psicanalítico do argumento

que o transforma em um significante, além de revelar significações menos aparentes. Na vida

normal, o conteúdo é manifesto (consciente), portanto imaginário, enquanto uma análise

psíquica e psicológica decifra o conteúdo latente (inconsciente), como, por exemplo, o cinema

(METZ, 1980, p. 35).

Um código nada mais é que a relação lógica que permite que uma mensagem seja entendida. Códigos não existem em filme; em vez disso, eles são as regras que permitem as mensagens de um filme. São de fato construções dos semióticos que, depois de estudar grupos de filmes, formulam as regras em ação (os códigos) nesses filmes, Assim, os códigos têm uma existência real que não é uma existência física. Os códigos são o oposto dos materiais de expressão. São as formas lógicas imprimidas nesse material para gerar mensagens ou significados... O cineasta usa códigos para fazer falar ao espectador. O semiótico trabalha na direção oposta, usando as mensagens de

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um filme para ajudá-lo a construir códigos que transcendem essas mensagens (ANDREW, 2002, p. 179).

Os códigos são elementos importantes para a análise do argumento, argumento que é

um elemento do sistema textual e procura ir além do sentido do nível manifesto incluindo os

personagens, a posição social, as épocas, os lugares diegéticos3 entre outras características que

ultrapassam as ações. O argumento oscila por um lado para o significante, “uma vez que

deixou de ser referida aos códigos de expressão que a comunicam, mas para as interpretações

a que dá acesso”. No caso do filme, é no argumento que pode ser encontrado os índices

correspondentes (METZ, 1980, p. 37).

Em se tratando de códigos vale lembrar uma das dificuldades encontradas pelos

bolivianos no Brasil, o idioma. A Bolívia foi colonizada por espanhóis, assim a língua oficial

falada por eles é o espanhol, sem contar que, ao espanhol juntam-se alguns dialetos entre eles

o aimará. Enquanto o Brasil, colonizado por portugueses, fala o português. Não é por acaso

que muitos imigrantes acabam aprendendo a falar o nosso idioma, para que possam se

comunicar e se tornarem mais compreensíveis.

Do ponto de vista psicanalítico, o argumento constitui-se em significante tal como no

sonho que enquanto manifesto, trata-se do conteúdo do sonho, o sonho simplesmente,

(FREUD) que em oposição ao pensamento do sonho é um significante para a interpretação e

que não podendo ser contado não pode estabelecer-se de maneira plena porque não se pode

perceber na sua amplitude a não ser como significado a partir de diferentes códigos. Sendo

assim, não haveria sonho manifesto, e consequentemente interpretação.

O imaginário necessita de se simbolizar. Para Freud, sem códigos não haveria sonho,

porque o processo secundário, ou seja, o que está associado ao pré-consciente que é uma ação

interiorizada, o processo racional do pensamento é que dá condições de acesso à consciência.

Desta forma, as análises de argumento não podem ser estudadas somente do ponto de vista do

significado, mas também do significante.

Quanto ao argumento, acontece que se confundam duas coisas diferentes: o seu lugar no texto, no filme (instância manifesta de parte a parte), onde ele é o significado aparente de significantes aparentes, e o seu lugar no sistema

3. Diegese é a instância representada do filme, ou seja, o conjunto da denotação fílmica: a própria narrativa, mas também o tempo e o espaço ficcionais implicados na e por meio da narrativa e com isso as personagens, a paisagem, os acontecimentos e outros elementos narrativos, porquanto sejam considerados em seu estado denotado (Metz). O interesse dessa acepção filmológica é acrescentar à noção de história contada e de universo ficcional a ideia de representação e de lógica suposta por esse universo representado. O próprio do cinema é, com efeito, que o espectador constrói um pseudo-mundo do qual ele participa e com o qual se identifica, o da Diegese. (Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Aumont, Jacques e Marie, Michel, 2003, p. 78).

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textual, instância não manifesta de que ele é o significante aparente (ou pelo menos um dos significantes aparentes) (METZ, 1980, p. 38).

No caso dos filmes, se quiser um aprofundamento razoável e uma aproximação do

latente, sobre o sistema textual, a interpretação, este estudo deve partir do conjunto fílmico

manifesto, ou seja, do significante e do significado e não só do significado manifesto do

argumento, pois o filme inteiro se constitui em significante. Portanto, o sistema textual deve

levar em consideração o significante (sintagmático), o argumento, o texto (conteúdo), como

também, o significado (paradigmático), a maneira como o filme é montado, a forma.

No cinema, não é o imaginário que pode representar e sim o significante, assim a

percepção nele é real, mas o que se percebe não é o objeto e sim “a sua sombra, o seu

fantasma, o seu duplo”, uma série de efeitos de espelho, organizados em cadeia. O filme é

como se fosse um espelho na qual a criança vê sua própria imagem o que contribui com a

identificação primária (FREUD), na formação do seu Eu, entretanto a criança se vê como um

Outro e ao lado de um Outro (METZ, 1980, p. 55).

A formação do Eu da criança se dá, ao mesmo tempo, nos sentidos metonímicos e

metafóricos, por uma identificação com o seu semelhante. No sentido metonímico, pelo

reflexo do seu corpo no espelho, sua própria imagem e no sentido metafórico, porque aquele

corpo refletido no espelho, para ela, não é o seu corpo, mas um semelhante. Assim a

identificação da criança com ela mesma é dada como um objeto. No cinema, há o simbólico, o

espectador sabe que existem objetos e ele próprio é um sujeito visto como objeto por outro.

O que se pode verificar, então, é um jogo de identificação entre o eu e o tu

permanente e contínuo o que possibilita a vida social (LACAN) e o sentimento social

(FREUD), isso pode fazer com que o espectador se identifique com um personagem nos

filmes narrativo-representativos, mas não na “constituição psicanalítica do significante do

cinema como tal”. Diferentemente da criança que se vê no espelho, o espectador não se

identifica com ele mesmo como objeto, mas só com objetos que existem sem ele, portanto o

ecrã, neste caso, não é um espelho (METZ, 1980, p. 57).

Sendo assim, o imaginário percebido se aproxima do simbólico, dos jogos do

imaginário (projeção-introjeção, presença-ausência) instaurando-se como significante. O

espectador se identifica com ele mesmo, como um sujeito transcendental preso a imaginação,

ao duplo e numa ambivalência perceptiva do real, na qual o espectador sabe que está fora do

espelho ao passo que a criança se vê simultaneamente no espelho e a frente dele, ou seja, ele

se encontra tanto na subjetividade quanto na objetividade.

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Encontra-se no duplo, imagem-espectro do homem. A tal ponto a imagem é projetada, alienada, objectivada, que se manifesta como ser ou espectro autônomo, estranho, dotado duma realidade absoluta. Esta realidade absoluta é ao mesmo tempo uma super-realidade absoluta: o duplo concentra-se em si, como se aí se realizassem, todas as aspirações do indivíduo e, em primeiro lugar, o seu anseio mais loucamente subjectivo: a imortalidade (MORIN, 1997, p. 44).

O duplo é um mito humano, universal e primitivo (reflexo no espelho e na água) que

possui uma força mágica, dos sonhos que se liberta para tornar-se um espectro e que em

última instância torna a projeção da individualidade humana numa imagem que lhe é externa.

O homem fixou no duplo sua onipresença, sua capacidade de transformações, sua onipotência

mágica e, sobretudo, sua imortalidade, não apenas no sentido das alucinações, mas também

sobre imagens e formas materiais como nas imagens mentais que são subjetivas e objetivas.

No caso do cinema, o duplo constitui a sombra. “A decadência do duplo veio atrofiar

o prestígio da sombra. Ainda perduram, contudo, essas reservas mágicas que são os folclores,

o ocultismo e a arte”. O cinema, por exemplo, soube explorar a sombra como se vale também

do encanto do espelho. Muitas crenças se sobrepuseram e misturam-se no duplo como na

angústia e libertação, assim como na vitória sobre a morte e na vitória da morte (MORIN,

1997, p. 48).

Essa qualidade de redução ou de ampliação, que lhe advém do desdobramento, pode apresentar-se atrofiada ou adormecida devido ao próprio estado atrofiado ou adormecido do duplo; mas não deixa, por isso, de se encontrar potencialmente em todo e qualquer ser, em toda e qualquer coisa, mesmo no próprio universo, desde que eu seja através do espelho, do reflexo ou da recordação. A imagem mental e a imagem material ampliam ou reduzem potencialmente a realidade que dão a ver; irradiam a fatalidade ou a esperança, o nada ou a transcendência, a amortalidade ou a morte. (MORIN, 1997, p. 48, 49).

Esta projeção da individualidade humana numa imagem tem a ver, embora aqui a

relação seja diretamente com o cinema, no caso da comunidade boliviana com a projeção

naqueles que vem ao Brasil e que o fazem porque se espelham, se projetam em familiares,

amigos, conterrâneos que estão em São Paulo a mais tempo e tem seu emprego, sua moradia,

e de certa forma, estão em uma condição melhor que a deles.

Tanto a imagem como o duplo possuem duas vertentes da realidade e entre elas uma

zona sincrética dominada pelo sentimento da alma ou do coração. A imagem tem a qualidade

mágica do duplo (duplo mágico), interiorizada, subjetiva, ao passo que o duplo tem uma

qualidade psíquica (imagem emoção), afetiva, no entanto alienada e mágica, mesmo porque a

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magia, segundo Metz, é uma alienação reificadora e fetichista dos fenômenos subjetivos,

inclusive como forma de presença e sobrevivência.

Ao assistir a um filme, por exemplo, verifica-se uma imbricação complexa de

funções que envolvem o imaginário, o real e o simbólico e que também se faz necessário nas

relações sociais. No caso de um filme de ficção, por exemplo, quando se julga ser um

personagem (= processo imaginário) a partir do que se traz consigo e não julgar ser ela (=

regresso ao real) de modo que a ficção se estabeleça como tal (= como simbólico) é o que

parece real (METZ).

Sobre a questão da afetividade da imagem, Morin diz que essa afetividade torna-se

mágico em um sentido e o que é mágico torna-se afetivo em outro sentido. Sendo assim,

pode-se relacionar fotografia e cinematógrafo com uma qualidade fotogênica, a fotografia

possui uma qualidade psíquica própria do reflexo e da sombra, como no espelho. Pois, a

fotografia materializa as sombras e são elas que dão a impressão de realidade e uma qualidade

latente do duplo.

A fotografia envolve a antropologia porque parte do princípio da recordação para

acabar no fantasma, não existe limite entre a vida e a morte, ao mesmo tempo em que é

diferente da imagem mental, do reflexo e da sombra. “A morte não é senão a vitória do

tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração:

aprumá-lo para a vida”, desta forma a fotografia embalsama o tempo, é um produto mental

(imagem mental) e também do mito (duplo), portanto imagem e mito estão na sua gênese

(BAZIN, 1991, p, 19).

Tanto a fotografia como o cinematógrafo possuem particularidades, pois aquele que

frui de um filme, por exemplo, não pode ser considerado proprietário da imagem,

diferentemente daquele que frui de uma fotografia. “A projeção e a animação acentuam,

conjuntamente, as qualidades de sombra e de reflexo implícitas na imagem fotográfica”, ao

passo, que, “a imagem do ecrã se tornou impalpável e imaterial, também adquiriu, ao mesmo

tempo, uma maior corporalidade”, face ao movimento, assim como a cor deu outro

encantamento (MORIN, 1997, p. 55).

Na ontogênese do cinema, ou seja, no período de seu desenvolvimento, Meliès

provocou uma revolução com a trucagem e o fantástico. Ao realismo de Lumière surge o

irrealismo de Meliès cuja síntese fez surgir o cinema, revelando o fantástico encantamento da

imagem. O duplo, então, serviu à sobreimpressão, truques de aspecto fantástico, mas que

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depois se tornou expressão realista, após o retrocesso do fantástico se tornou retórica essencial

e elementar de qualquer filme.

Os truques de prestidigitação, capacidade de iludir com as mãos, ilusionismo, efeitos

especiais que Meliès dava às fotografias para criar mundos fantásticos, se tornaram em

técnica da arte do filme, principalmente dos documentários. “A sobreimpressão, o grande

plano, a fusão e o encadeado” (escurecimento progressivo de uma imagem para dar lugar à

imagem seguinte) “são, por assim dizer, produtos decantados das invenções da Star Film4” de

Meliès (MORIN, 1997, p. 72).

Estes efeitos mágicos e fantásticos proporcionados pelo cinema de Meliès, também

revelou uma visão mágica do mundo. Não são apenas as sombras e os fantasmas que povoam

o universo mágico, mas “tudo o que é fantástico tem, no fundo, que ver com o duplo e com a

metamorfose. A metamorfose triunfa da morte e torna-se renascimento”, como uma segunda

imortalidade, e é isso que dá sobrevivência ao duplo (MORIN, 1997, p. 73, 74).

Todas as técnicas do cinema – diferenciação de planos segundo a distância da câmara ao objeto, movimentos da câmara, utilização de cenários, efeitos especiais de iluminação, fusões, encadeados, sobreimpressões, etc. – se unem, ou melhor, se conjugam e adquirem um sentido, na técnica suprema que é a montagem (MORIN, 1997, p. 77).

Com isso, as fotografias animadas se dividem em várias outras fotografias

heterogêneas ou planas ao mesmo tempo em que cria um sistema de fotografias animadas,

mas com uma particularidade, ganham novas dimensões espaciais e temporais. E, se no

cinematógrafo o tempo era cronológico real (sintagmático), no cinema, essa cronologia é

depurada e compartimentada (paradigmático). Entretanto, estabelece-se uma concordância e

um raccord, para dar continuidade à ação tornando-a imperceptível a descontinuidade das

filmagens, a mudança dos planos (BAZIN).

A montagem, então, é que dá a continuidade, porque une e ordena os fragmentos

temporais, numa sucessão de descontinuidade e heterogeneidade dos planos, criando um ritmo

que vai reconstituir um tempo novo e fluido submetido a compressões e alongamentos

(dilatação) em diferentes velocidades. “Compressão e dilatação do tempo são princípios e

4. A Star Film, produtora de Méliès, produziu centenas de filmes entre 1896 e 1912, mantendo escritórios de distribuição em Nova York e várias cidades da Europa. Mas seus filmes passaram a perder público quando o cinema encontrou uma forma narrativa própria, na segunda década, e Méliès foi à falência em 1913. (Disponível em http://sesc-se.com.br/cinema/historia+do+cinema+mundial.pdf – Acessado em 12/01/2015 as 9h30).

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efeitos gerais do cinema que, mesmo na velocidade com que a imagem é captada, estão

presentes” (MORIN, 1997, p. 78).

Outros efeitos são importantes para o cinema como, por exemplo, o avanço do tempo

provocado pela longa fusão em negro ou fusão-encadeado que antecede a recordação,

voltando o tempo para trás, assim como flash back e os cut back. Essa fusão, para Bela

Balazs, (apud MORIN, 1997, p. 79) “leva o espectador a crer que lhe mostram, não objetos

reais, mas imagens mentais”, desta forma tanto o passado como o presente se confundem no

cinema.

Entre a qualidade subjectiva da imagem-recordação e a qualidade alienada da sobrevivência dos espectros, insinua-se um mito, mito que irá desenvolver no romance de antecipação moderno: o da procura do tempo perdido... Levado aos seus últimos limites, o tempo do cinema, por conseguinte, desemboca na magia do duplo e das metamorfoses (MORIN, 1997, p. 81).

Assim como o tempo, o espaço passou por metamorfoses. A câmera em movimento,

agora pode estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares, trazendo mobilidade com

imagens panorâmicas e travellings, além dos planos: geral, médio, americano, grande plano,

campo, contracampo entre outros que se relacionam com o espaço, postergando a unidade o

lugar. “Tanto à escala do plano como à escala de conjunto da montagem, o filme é um sistema

de ubiquidade integral, que permite transportar o espectador a qualquer ponto do tempo e do

espaço” (MORIN, 1997, p. 83).

A metamorfose é percebida nos filmes fantásticos (metamorfose manifesta), já nos

filmes realistas (metamorfose latente) ela não é percebida, porém, em ambos há uma relação

quanto ao encadeamento que comprime o espaço, assim como a fusão comprime o tempo. O

encadeamento dá continuidade a algo onde a priori há uma ruptura, unindo os planos. “A

transformação do espaço operada pelo cinema vem também desembocar, como a do tempo,

no universo mágico das metamorfoses” (MORIN, 1997, p. 84).

No cinema, os objetos inanimados, os cenários, ganham alma e tudo tem uma fluidez

particular, o que é imóvel ganha movimento, dilatam, condensam, excitam dando a impressão

de vida. E se não corrompem se disfarçam de sombras e luzes avivando-os. Assim, “as coisas,

os objetos, a natureza, por influência conjugada do ritmo, do tempo, da fluidez, do movimento

da câmera, dos grandes planos e dos jogos de sombra e luz, ganham uma qualidade nova”

(MORIN, 1997, p. 87).

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A alma, neste caso, é em sentido metafórico. Trata-se da alma do espectador, pois os

objetos não tem vida, é algo subjetivo e essa subjetividade está tanto para o primitivo como

para a criança. Para Morin, o cinema absorve sentimentos difusos e desencadeia uma vida

especial, na qual o sentimento do espectador tende ao animismo, onde tudo o que não é

humano, ganha alma.

Nos documentários analisados, sobretudo, nos que enfatizam as oficinas de costura e

embora este seja uns dos motivos que colocam os imigrantes bolivianos no centro das

discussões quando se trata do trabalho em condições análogas ao do escravo, a máquina de

costura ganha está conotação animista, no sentido de que é ela a responsável pelo sustento

daquele que a manuseia, ela seria “a alma do negócio”, por isso pode até estabelecer uma

relação de amor.

“O exercício do cinema não é possível senão através das paixões perceptivas”. A

partir da pulsão escópica, voyeurismo (FREUD), onde há separação entre o objeto olhado e o

olho, “preencher essa distância é correr o risco de satisfazer o sujeito, de levá-lo a consumir o

objeto” e o desejo de ver e a pulsão invocante, o desejo de ouvir, ambos em sentido de

distância e que resultam na pulsão percepcionante. Estas pulsões assentam mais na carência

do lado do imaginário (METZ, 1980, p. 70, 71).

Então em que é que se pode dizer que as pulsões visual e auditiva mantêm uma relação mais forte, ou mais particular, com a ausência do seu objeto, com a procura infinita do imaginário? É que a “pulsão percepcionante” – se agrupar com este nome a pulsão escópica e a pulsão invocante –, contrariamente a outras pulsões sexuais, figura concretamente a ausência do seu objeto por meio da distância a que o mantém e que faz parte da sua própria definição: distância do olhar e distância da escuta (METZ, 1980, p. 71).

No cinema, essa distância estabelecida pelo olhar transforma, segundo Metz, o objeto

em um quadro (um quadro vivo) que mesmo presente é empurrado para o imaginário

restabelecendo no espaço escópico a ilusão de que a relação do objeto necessita de algo

diferente do imaginário pela ausência física do objeto visto, por exemplo, a ausência do ator

na presença do espectador, ou a presença do ator quando o espectador não está (= projeção),

está relação voyeurista, no cinema, carece de consentimento por parte do objeto, é uma

relação unilateral.

No entanto, algumas questões que envolvem o cinema, devem ser levadas em

consideração em se tratando dessa relação: 1º) escuridão, entre aquele que olha e o ecrã, como

se fosse um buraco de fechadura, principalmente pela solidão do espectador, que mesmo entre

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muitas pessoas, ainda é solitário; 2º) o objeto visto, no cinema, ignora totalmente o espectador

e; 3º) segregação de espaços, o espaço do filme é heterogêneo ao espaço da sala de cinema, o

primeiro é real e o segundo é perspectivo. Desta forma, para a maioria do público, o cinema

se aproxima do sonho, pois é como se houvesse algo que os separasse da vida social.

No cinema como no teatro, o representado é por definição imaginário; é o que caracteriza a ficção como tal, independentemente dos significantes utilizados. Mas a representação, no teatro, é inteiramente real, enquanto no cinema é imaginária, o material já é um reflexo. Deste modo, a ficção teatral é mais sentida como um conjunto de comportamentos reais activamente orientados para a evocação do real [...] enquanto que a ficção cinemato-gráfica é sentida de preferência como a presença quase real desse próprio irreal; o significante, já imaginário à sua maneira, é menos sensível na sua materialidade própria, joga mais em benefício da diegese, tende mais a submergir-se nela, a ser depositado na sua conta pela crença espectatorial. O equilíbrio estabelece-se um pouco mais perto do representado e um pouco mais longe da representação (METZ, 1980, p. 79).

Outra maneira pela qual o cinema se consolida no inconsciente é pelo fetichismo que

segundo a psicanálise está ligada à castração (FREUD) e ao que ela pode inspirar. A castração

aparece primeiro na figura da mãe (LACAN), e as crianças a percebem quando constatam as

diferenças entre os sexos e acreditam que todos têm, na sua origem, um pênis. Desta forma, o

menino compreende aquilo como uma mutilação e um medo reduplicado de lhe acontecer o

mesmo, e no caso da menina de que isso já lhe tenha acontecido.

Para Lacan, a castração não é um drama fundamentalmente simbólico, que por meio

de metáfora é recuperada, mas de perdas reais e imaginárias que a criança sofreu. Diante desta

revelação de carência (que aproxima do significante de cinema), a criança, para não ficar

angustiada “terá de desdobrar a sua crença (outro traço cinematográfico)” e acreditar nestas

duas opiniões antagônicas (METZ, 1980, p. 82).

A criança vai ater-se naquilo que julga se tornar fetiche, uma peça de roupa, por

exemplo, e “a fixação neste ‘exatamente antes’ é, pois uma outra forma de negação, de recuo

perante o percebido, embora a sua própria existência venha dialeticamente testemunhar que o

percebido já foi percebido”. O fetichismo, geralmente, está relacionado à perversão e no

evitamento da castração (METZ, 1980, p. 82).

O fetiche representa sempre o pênis, é sempre o seu substituo, quer seja por metáfora (= encobre a sua ausência) ou por metonímia (é contíguo ao seu lugar vazio). Em conclusão, o fetiche significa o pênis na sua qualidade de ausente, é o seu significante negativo, o suplente, ‘enche’ o lugar da carência, afirmando também assim essa carência. Resume em si a estrutura da negação e das crenças múltiplas (METZ, 1980, p. 83).

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Certas sociedades e populações acreditavam em máscaras que iludiam as crianças de

diferentes épocas, embora essa crença ainda exista, em crianças na sua totalidade e em adultos

numa crença de antigamente. Hoje, essa descrença se dá por denegação ou mesmo por

delegação desta crença à criança. No cinema, alguns subcódigos associam a negação não

somente aos sonhos dos personagens, mas também por sequências de comentários em voz off

de personagens ou do narrador, essa voz demonstra a proteção na descrença de ilusão da ação,

ao mesmo tempo tranquilizado por essa proteção.

É possível verificar nos documentários que o contingente de imigrantes que vêm

trabalhar no Brasil, o faz por um sonho, um sonho de mudar de vida e poder oferecer

melhores condições de vida aos seus familiares, um sonho de montar sua própria oficina de

costura, sonho de que os filhos possam estudar e exercer outras profissões. No entanto, muitos

destes sonhos não se realizam isto de certa forma é uma espécie de castração.

Talvez o fato de eles participarem das festas, se fantasiarem, dançarem, muitos,

inclusive, usando máscaras, na diablada, assim como se sujeitar a trabalhar 12, 14 horas e

ganhar pouco por peça produzida, muitas vezes ter que morar em casas onde funcionam as

oficinas de costura seja uma maneira libertadora de exorcizar os maus presságios a partir do

fetichismo.

Esse fetiche, no cinema, produz uma sensação de prazer, algo que nega uma carência

e ao mesmo tempo o afirma, é um objeto e a sua ausência é substituído pelo seu reflexo

estabelecendo ainda assim seu poder de fruição. “O fetiche é o cinema no seu estado físico.

Um fetiche é sempre material: na medida em que se é capaz de suprir isso apenas por meio

das forças do simbólico, é porque, precisamente, já se não é fetichista” (METZ, 1980, p. 86).

O fetiche possui, além de um valor de negação, também um valor de conhecimento

das técnicas cinematográficas e uma preocupação com o significante dado por esse conhe-

cimento. Sendo assim, o fetichismo não só ocorre no significante, mas nos enquadramentos e

certos movimentos de câmera como, por exemplo, nos filmes de temática erótica. “A

psicanálise não esclarece apenas o filme, mas também as condições de desejo daquele que se

torna teórico de cinema” (METZ, 1980, p. 91).

A ideologia, também merece ser estudada, até porque ela não está relacionada

somente ao espectador ou ao filme, mas ao desejo, por isso é simbólico. Para Benveniste,

(apud METZ, 1980, p. 95) “o filme tradicional apresenta-se como história e não como

discurso”. Conforme a intenção do cineasta ou a influência exercida no espectador, esse

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discurso pode ser bastante eficaz a ponto de “apagar as marcas de enunciação e disfarçar-se

em história”.

O filme é exibicionista, tanto quando o assisto, enquanto duplo (ser-testemunha)

como o ajudo (ser-adjuvante), além de ser voyeurista. Esse exibicionismo está relacionado a

um jogo de trocas de identificações entre o eu e o tu, portanto é sempre bilateral, além da

materialidade das ações, desta forma é da categoria do discurso e não da história. Ator e

espectador estão um para o outro como num jogo, numa troca de papéis, um duplo

consentido.

Por outro lado, o filme não é exibicionista porque ele não me vê no mesmo momento

em que eu o vejo e isso foi uma característica do cinema clássico dentro da história, apagando

assim o seu discurso e fechando-se para a fruição. “Durante a rodagem, em que, o ator estava

presente, é o público que está ausente. Deste modo, o cinema encontra o meio de ser

simultaneamente exibicionista e segredista” (METZ, 1980, p. 98, 99).

No entanto, o filme implica uma relação complexa na qual “ao antropomorfismo, que

tende a carregar de presença humana as coisas, vem juntar-se, mais fraca e obscuramente, o

cosmomorfismo, ou seja, a tendência para carregar o homem de presença cósmica”, mas o

cinema só vai ser cosmomórfico, a partir do momento em que, além do filme o espectador

estiver embebido de alma, de universos. Sendo assim, o rosto está na ação que se desenvolve

fora de campo, como uma paisagem (MORIN, 1997, p. 91).

Porque, no ecrã, o rosto se torna paisagem e a paisagem rosto, isto é, alma. As paisagens são estados da alma, e os estados de alma, paisagens. Muitas vezes, o tempo que faz o ambiente, o cenário são imagens dos sentimentos que animam as personagens: veem-se então os planos da natureza alternarem-se com os planos humanos, como se uma simbiose afetiva ligasse, necessariamente, o antropo e o cosmo. Homens cosmomórfico e objetos antropomórficos são função uns dos outros, tornando-se símbolos uns dos outros, segundo a reciprocidade do microcosmo e do macrocosmo (MORIN, 1997, p. 92).

Sendo assim, a visão mágica que se tem do mundo se dá, em sua essência e

integridade, segundo Morin, por características como fluidez (o espaço e o tempo são

circulares e reversíveis), metamorfoses (e seu negativo ubiquidade, onipresença), pela

transferência do homem microcosmo para macrocosmo, pelas qualidades do duplo (na morte-

renascimento), e pelo antropomorfismo e cosmomorfismo.

Para L. LÉVY-BRUHL, citado por MORIN (1997), as metamorfoses envolvem um

universo fluído, elas participam de uma unidade cósmica em movimento, pois não são rígidas

em sua identidade. “Essa fluidez explica e testemunha a reciprocidade existente entre o

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homem microcosmo e o macrocosmo”. É como se o homem girasse pelo cosmo, como um

prato giratório, “articulando magicamente a fluidez do universo e o antropocoscomorfismo”

(MORIN, 1997, p. 94).

O universo já passou por uma fase de animismo, na qual durante sua evolução se viu

povoado por espíritos alojados em todas as coisas. Esse processo foi importante para o

homem sentir e reconhecer a natureza e se projetar nela (antropomorfismo). “A linguagem

primitiva, os comportamentos, as máscaras, os trajes, os fenômenos de possessão” mostra que

o homem ao mesmo tempo em que sabe que é homem se sente habitado e possuído, quer seja

por uma planta, quer seja por um animal, isto é, por forças cósmicas (MORIN, 1997, p. 95).

Estas relações de antropomorfismo e cosmomorfismo podem ser verificadas também

nos documentários. O antropomorfismo aparece na dança diablada, por exemplo, pois os

bailarinos se vestem com roupas e usam acessórios que remetem às divindades, a figura do

diabo, do Arcanjo Miguel faz reverência a Nossa Senhora de Copacabana e, por outro lado, os

espaços nos quais as festas acontecem, são pontos fixos, estão no centro do Cosmos, eles são

a própria natureza, portanto, cosmomorfismo.

“O cosmomorfismo, pelo qual a humanidade se sente natureza, vem dar resposta ao

antropomorfismo, pelo qual a natureza é sentida sob uma aparência humana. O mundo existe

no interior do homem e o homem existe por toda a parte, espalhado pelo mundo”. É nessa

relação antropocosmomorfista que o homem se sente mundo e o mundo humano que se

estabelece o universo mágico presente, sobretudo, nos documentários (MORIN, 1997, p. 95).

A escolha pela cidade de São Paulo, também, pode ser analisada como sendo um

espaço cosmomórfico. A cidade, na visão dos imigrantes bolivianos, inclusive nas palavras do

Padre Mário Geremia, é a América, e nas palavras de Luis Ortega, é a terra prometida. É aqui,

nesta cidade, que a comunidade boliviana acredita ser o lugar onde eles conseguiriam levar

uma vida melhor do que a vida que eles levam na Bolívia.

Segundo Morin, o imaginário está nas aspirações, nos desejos, receios e terrores,

atraindo e formando a imagem, no sentido de ordenar sua lógica, sonhos, mitos, religiões,

crenças, e nas quais “mitos e crenças, sonhos e ficções, são os embriões da visão mágica do

mundo”, pondo em ação o duplo e o antromomorfismo. “O imaginário é a prática mágica

espontânea do espírito que sonha” (MORIN, 1997, p.98).

A imagem é o estrito reflexo da realidade, a sua subjetividade está em contradição com a extravagância imaginária. Porém, esse reflexo é já, ao mesmo tempo um ‘duplo’. A imagem já se encontra embebida de poderes subjetivos que a vão deslocar, deformar e projetar para a fantasia e para o

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sonho. O imaginário enfeitiça a imagem, porque esta é já uma feiticeira em potência. O imaginário prolifera sobre a imagem como seu cancro natural; vai cristalizar e revelar as humanas necessidades, mas sempre em imagens; é o lugar comum da imagem e da imaginação... É, pois, segundo uma mesma continuidade que o mundo dos duplos passa ao das metamorfoses, que a imagem se exalta no imaginário, que o cinema desenvolve as suas próprias potencialidades nas técnicas e na ficção do cinema (MORIN, 1997, p. 98).

O cinema dá a impressão de realidade a partir das participações afetiva e perceptiva

do espectador quando, geralmente, ele se manifesta favorável ou não aos personagens do

filme. Há, portanto, uma confusão entre o filme e a realidade, uma ilusão, mas rapidamente

ele retoma a condição de sujeito, espectador, determinado pela condução da narrativa

ficcional que entra em ação e o desperta dessa espécie de sono do qual ele se encontrava. O

espectador sabe que se trata do imaginário e desperta do sono, que também é sonho,

diferenciando o que é impressão de realidade do que é ilusão de realidade.

Para Metz, “o estado fílmico e o estado onírico tendem a juntar-se quando o

espectador começa a adormecer (embora a linguagem corrente, neste grau, não fale de

‘sono’), ou quando o sonhador começa a despertar”. A dinâmica do filme e a do sonho rompe

o espaço e o tempo dilatando os objetos com os efeitos macroscópico e microscópico do

sonho (MORIN). Embora tanto no filme como no sonho as imagens não se confundem e

exprimem desejos e temores latentes (METZ, 1980, p. 112).

Diferentemente dos sonhos o cinema é impregnado de música, sobretudo quando o

cinema vai se libertando do cinematógrafo, antes mesmo do filme sonoro (MORIN). Portanto,

“a percepção fílmica é de uma percepção real (é realmente uma percepção) não se reduz a um

processo psíquico interno. O espectador recebe imagens e sons que se apresentam como a

representação de outra coisa que não eles”, no entanto são imagens e sons verdadeiros dentro

deste universo diegético.

Desta forma, para Morin, a música se tornou uma imagem-recordação como na

sobreimpressão ou no flash back. Sendo assim, uma coisa são as imagens fílmicas, na qual se

tem imagens reais e a outra coisa são as imagens mentais, ou seja, há uma diferença na

relação entre percepção, imagens fílmicas e imaginação, imagens mentais, imagem

recordação. Para Metz, em termos behavioristas, a percepção fílmica comportaria um

estímulo, o que não acontece com a percepção onírica.

Uma segunda diferença, para Metz, entre o estado fílmico e o estado onírico,

enquanto realização alucinatória do desejo está no fato de que na ficção ele é menos seguro

que no sonho, pois o sonho “responde ao desejo com mais exatidão e regularidade” e não se

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choca com a realidade, ao passo que o filme de ficção “não é alucinatório, assenta em

percepções verdadeiras que o sujeito molda a seu bel-prazer, em imagens e sons que lhe são

impostos do exterior” (METZ, 1980, p. 116).

Ainda dentro da questão da alucinação há a repressão, que de forma geral, não é

possível a não ser no sono, pois o espectador do filme, que não dorme, não alucina mesmo

quando seu desejo é reativado. Um cavalo a galope, por exemplo, no filme é representado por

um cavalo a galope e não por manchas de luz em movimento.

Mais fundamentalmente, é a própria impressão de realidade, e, por conse-guinte a possibilidade de certa saciedade afetiva através da diegese, que pressupõe um começo de regressão, visto que ela não é outra coisa senão uma tendência geral (segundo os casos: nado morta ou mais desenvolvida) para perceber como verdadeiras e exteriores os acontecimentos e heróis da ficção e de modo nenhum as imagens, e os sons da instância puramente ecrânica, aliás a única real: uma tendência, em suma, a perceber como real o representado e não o representante (METZ, 1980, p. 119).

Existem diferenças e semelhanças entre o filme de ficção e o sonho a partir de três

“fatos que derivam da diferença entre vigília e sono: desigual saber do sujeito” quanto o que

fazer; presença ou ausência de material perceptivo real, e por fim uma característica do

próprio conteúdo textual do filme ou do sonho. O filme diegético é mais lógico e construído

que o sonho, assim como os fantásticos ou maravilhosos são irreais. Cada gênero obedece a

uma lógica (METZ, 1980, p. 125).

Outra diferença é a absurdidade real a partir dos nossos sonhos ou dos relatos de

sonhos cujas impressões e reconhecimento entram simultaneamente: a confusão de elementos

e suas ligações, ofuscação do desejo, fracasso e a escuridão das regiões quase esquecidas,

sentimento de uma tensão e de moleza, urgência de uma ordem disfarçada e a evidência de

incoerência.

O psicólogo Rene Zazzo, citado por METZ (1980), relata sobre uma observação de

Freud, que “o conteúdo manifesto de um sonho, se fosse transposto para o ecrã, daria um

filme inteligível”. Para Metz, compreender os filmes de vanguarda e de pesquisa é a melhor

maneira de não os compreender. “Estes filmes – cuja função social objetiva, pelo menos em

certos casos, consiste principalmente em responder ao desejo ingenuamente perdido de não

ingenuidade que possuem certos intelectuais –” (METZ, 1980, p. 126) para quem a própria

inintegibilidade é inteligível.

O que se pode notar é que o conteúdo manifesto do processo primário (FREUD), o

significante, ou seja, aquilo que se fala do sonho se torna compreensível se fosse levado ao

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cinema, embora não atinja na sua totalidade a absurdidade verdadeira, o incompreensível. Não

é a toa que não há muita credibilidade a sequência de sonhos dos filmes narrativos.

Por outro lado, verifica-se um problema em relação à elaboração do processo

secundário. Até mesmo Freud não conseguiu verificar o momento exato em que a elaboração

secundária intervém no processo completo do sonho (= trabalho do sonho). Talvez aconteça

no fim, “depois das condensações, deslocamentos e ‘figurações’ diversas, e que tem como

função revestir apressadamente com uma fachada lógica de última hora os produtos ilógicos

do processo primário” (METZ, 1980, p. 126).

Às vezes, esse processo secundário pode acontecer num nível acima do outro, do

próprio pensamento do sonho, ou fora do tempo desse pensamento, outras vezes, e mais

provavelmente, segundo Freud, numa alinearidade, numa quase cronologia, na qual o sonho

manifesto se entrelaça simultaneamente de maneira alternativa, sucessiva e simultânea.

“Portanto um objeto mental por definição secundário é integrado tal e qual ao sonho

manifesto” (METZ, 1980, p. 127).

O processo primário assenta no princípio do prazer ‘puro’, não corrigido pelo princípio de realidade e, a este título, visa a descarga máxima e imediata das excitações psíquicas (afetos, representações, pensamentos, etc.) Todos os itinerários de escoamento da energia são, pois bons para ele, e é o fundamento das condensações e deslocamentos que são trajetos e ‘não ligados’; no deslocamento, por exemplo, toda a carga psíquica se transporta de um objeto para outro, sem estar ligada pelas coações de realidade que fazem deles dois objetos substancialmente distintos e não suscetíveis de equivalência total. O processo secundário, que, pelo contrário, obedece ao princípio de realidade, consiste sempre em fixar certos trajetos de pensamento (= energia ligada) e em impedir que as impressões se descarreguem, segundo outros percursos (METZ, 1980, p. 127).

O processo primário é específico do consciente e suas operações são deduzidas de

observações diretas, não se pode conhecer e nem se ter uma ideia delas, a não ser em casos

como o lapso, o sintoma, os atos falhos e o acting (retorno repentino de um conteúdo

reprimido), etc. e cujos resultados se tornam conscientes e manifestos. A lógica resulta, por

exemplo, no sonho, portanto no sono. E é no sono que a realidade é adiada até porque o

sujeito está adormecido.

No entanto, quando acordado (quando se assisti a um filme, por exemplo) o processo

secundário cobre os esforços psíquicos, os pensamentos, os sentimentos e os atos, tanto que o

processo primário deixa de conduzir a resultados observáveis, até porque antes eles transitam

pela lógica secundária, pelo inconsciente. No cinema, tudo se passa na elaboração secundária,

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na produção e percepção do filme, na “força dominante, omnipresente, aquela que tece o meio

mental, o meio e o lugar em que o filme se dá e se recebe” (METZ, 1980, p. 128).

A absurdidade real acontece porque o inconsciente é dominado pelo processo

primário que exposto ao consciente é transplantado, extraído para outro meio provocando o

sentimento consciente de absurdidade. Sendo assim, o filme que é produzido por um homem

acordado e apresentado para um homem acordado é lógico, portanto sentido. Contudo, o fluxo

do filme se assemelha mais ao fluxo onírico do que outros produtos da vigília como o

fantasma, o devaneio, ou o próprio filme.

Seu significante (imagens sonoras e em movimento) possui afinidades com o sonho

coincidindo com o significante onírico por imagens, pela figurabilidade, imagens mentais

(FREUD) tão ligadas e secundárias como as da língua. “O inconsciente não pensa, não

discorre, figura-se em imagens” vulneráveis à atração e desigual como nos casos “do processo

primário e das suas modalidades características de encadeamento” (METZ, 1980, p. 129).

O filme é uma história contada, recoberta por uma narrativa, enquanto o sonho é uma

história pura na qual não há narração e que não é formada ou deformada por nenhuma

narrativa. Entretanto, nem no sonho e nem no filme há somente imagens, mas uma profusão

confusa ou não de imagens numa sucessão de lugares, ações, momentos e personagens.

Duas operações primárias perduram na secundaridade discursiva fílmica como

figuras específicas do cinema e suas relações com a vigília e o sono (FREUD), de maneira

técnica e pontual: condensação e deslocamento e se relacionam com eles a sobreimpressão e o

fundido encadeado, uma passagem de um plano a outro na qual a imagem posterior vai

surgindo antes de desaparecer a anterior, num determinado momento as duas imagens se

sobrepõem, a partir de códigos (sinais) de pontuação5 de demarcação o que possa ser estranho

à mente, apagando-os assim da ordem primária, do consciente.

O característico da sobreimpressão é de operar uma espécie de equivalência entre dois objetos distintos: equivalência parcial, simplesmente discursiva e metafórica (‘aproximação’ provocada pela enunciação), durante tanto tempo quanto ao espectador, num processo que se parece com a racionalização, a secundarizar no preciso momento em que a lê (em que a liga). Equivalência mais profunda, equivalência verdadeira, num sentido total, na medida em

5. Códigos ou Sinais de pontuação: Utiliza-se nas mais das vezes, na época clássica, trucagens ópticas que funcionavam como sinais de pontuação: escurecimentos, fusões, fechamentos da íris etc. A demarcação podia também ser implícita: era uma mudança no desenrolar narrativo que fazia o espectador compreender que se estava passando para outro momento da história. É considerada como fenômeno de pontuação qualquer mudança de plano, de cena ou de sequência particularmente marcada. (Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Aumont, Jacques e Marie, Michel, 2003, p. 74,238).

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que o espectador também a receba de maneira mais imediatamente afetiva (METZ, 1980, p. 131).

Entre as recepções contraditórias e simultâneas da sobreimpressão e do fundido

encadeado há uma relação de complementaridade e de negação, na qual o espectador vê na

sobreimpressão algo mais conhecido e neutro do discurso fílmico, ele acredita ser real a

sobreposição do que é apresentado no ecrã ou pelo menos numa transição mágica de uma

coisa para outra, algo como um misto de condensação e de deslocamento.

No caso do fundido encadeado essa sobreimpressão é mais extensa e consecutiva na

substituição de uma imagem por outra, o que na equivalência primária está mais próximo do

deslocamento do que da condensação. Por isso, entre um e outro, há um jogo de transferência

de uma carga psíquica de um objeto para outro. Sendo assim, essas trucagens seria uma

transferência de crédito, espécie de compromisso entre o filme e o espectador “num grau de

secundarização idêntico ou vizinho”, onde o filme se assemelha ao sono e ao sonho (METZ,

1980, p. 133).

Nas relações entre os estados fílmico e onírico encontram-se o sono ou sua ausência,

além do devaneio, fantasias (estado da vigília), um fantasma consciente e coerente à sua

maneira, mas às vezes breve, instantâneo e fugitivo na sua intensidade dada sua

compulsividade. O devaneio prolonga “artificialmente a emergência por mais alguns

instantes, graças a uma amplificação retórica e narrativa que pelo seu lado é inteiramente

desejada e releva já da composição diegética” (METZ, 1980, p. 136).

O devaneio acordado, fantasma consciente (FREUD), mas também pode ser

inconsciente, acaba perdendo características do fantasma e ganha-as do sonho numa relação

entre as elaborações secundárias (pré-consciente) e as operações primárias (consciente). O

filme e o devaneio são produtos conscientes cuja semelhança relativa está nos modos de

produção, embora esses modos de produção apresentem diferenças, eles acabam se juntando,

principalmente, no que diz respeito às coerências secundárias.

O filme é uma construção lógica, pois são operações mentais do consciente e do pré-

consciente de cineastas e espectadores, porém sua fabricação e recepção são da ordem do

inconsciente. Os espectadores, em termos psíquicos, são os produtores do filme, embora a

fabricação e recepção sejam da ordem inconsciente existem diferenças entre o sintoma e o

sonho, “em que os mecanismos primários jogam num relativo descampado e aqueles em que,

pelo contrário, eles se encontram mais completamente cobertos” (METZ, 1980, p. 135).

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Consciente ou inconsciente, o fantasma é agrupado e enraizado no inconsciente de

forma direta e segue um circuito mais curto, pois pertence ao inconsciente, portanto mais

próximo do representante-representação da pulsão do representante-afeto. Esta ligação com as

pulsões está no próprio fluxo fantasmático tanto que se pode verificar uma produção do

inconsciente numa lógica interna intrínseca do pré-consciente do processo secundário.

O fantasma organiza-se numa história coerente “com encadeamentos de ações,

personagens, lugares, por vezes momentos, que a lógica das artes narrativas ou representativas

não renegaria”. O fato de o conteúdo fantasmagórico estar próximo ao inconsciente e o

fantasma consciente ser uma interpretação mais distante traz a ideia do pré-consciente na sua

composição e construção formal, é por isso que Freud via nisso uma espécie de híbrido.

Esta dualidade interna caracteriza tanto as manifestações conscientes como as manifestações inconscientes de um mesmo tronco de imulsão fantasmática, mas é evidente que o grau de secundaridade tem tendência a aumentar quando uma das germinações ultrapassa o limiar da consciência e se torna assim disponível ao devaneio [...] O fluxo fílmico é mais explícito que o do devaneio [...] o filme implica uma fabricação material que obriga a escolher cada elemento em todo o pormenor do seu aspecto perceptivo, ao passo que o devaneio, fabricação puramente mental, pode permitir-se mais incertezas e ‘vazios’” (METZ, 1980, p. 136, 136).

Tanto no filme como no devaneio a percepção do imaginário é sentida da mesma

forma, o espectador sabe que se trata de um filme como o devaneio sabe que é devaneio, em

ambos a regressão minimiza a percepção. As imagens não são confundidas com a percepção,

elas continuam sendo representações mentais no devaneio e no filme são fictícias a partir de

percepções reais. O espectador, às vezes, sente dificuldade em distingui-las da diegese, pois o

imaginário aí é bastante semelhante. O filme e o fantasma pertencem à vigília, os dois

resultam da contemplação e não da ação.

O filme se apresenta ao devaneio através da secundarização e da vigilância, mas se

separa dele a partir da materialização das imagens e dos sons que não existem no devaneio,

mas na ordem do fantasma. O devaneio, como representação mental, ao lado do sonho se

opõe ao estado fílmico, portanto o sujeito não pode perder as imagens quando passam do

sonho para o estado fílmico, embora sejam objetivas estas são lhe agradam. Desta forma, sua

crença nas imagens é menor do que sua crença nas imagens dos seus sonhos, cuja ilusão era

verdadeira e que, em termos, de realização de desejo, o filme é inferior ao sonho, pois é

considerado menos verdadeiro.

O sujeito se satisfaz mais com os devaneios que cria do que com os filmes que

assiste. No entanto, as imagens fílmicas lhes parecem mais reais, com maior precisão

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perceptiva, portanto com maior poder de encarnação, etc., o que de certa forma lhes

compensam uma origem de início estranha. “É a alegria específica que existe em receber do

exterior imagens habitualmente interiores, imagens familiares ou que não desassemelham

muito disso, em vê-las inscritas num lugar físico (o ecrã)” (METZ, 1980, p. 140).

Atualmente na nossa sociedade, os filmes de ficção competem com a função do

devaneio. Enquanto o sonho está relacionado ao desejo puro, a loucura original, o filme tem

um compromisso de satisfação. Filme e devaneio estão em concorrência mais que o filme e o

sonho, pois nos dois há uma adequação quanto à realidade ou um ponto de regressão que são

semelhantes na sua ontogênese. Para Metz, o sonho está ligado à infância e a noite, enquanto

o filme e o devaneio ao adulto e ao dia.

O cinema como um fato social e também o estado psicológico do espectador podem

envolver aspectos diferentes daqueles que estamos acostumados, pois o cinema possui

mecanismos sociológicos e psíquicos, e dentro deste último, a impressão de realidade, de

natureza perceptiva do significante cinematográfico, sobretudo, por conta da fidelidade das

imagens fotográficas, além do som e do movimento que no ecrã acentua as sensações. Tanto

no cinema como fora dele a impressão de realidade está relacionada diretamente com as

semelhanças objetivas entre eles.

Entretanto, não é só a semelhança de estímulos que explica tudo, até porque a

impressão de realidade é um jogo do imaginário e não do estímulo. Essa impressão de

realidade não deve levar em consideração somente à percepção, mas também a percepção

ficcional que tirando as artes de representação são o sonho e o fantasma. Se as narrativas

cinematográficas possuem certa credibilidade e se impôs à observação é porque simultânea e

contraditoriamente comportam traços da realidade, do devaneio e do sonho, no entanto,

também possuem falsos atributos.

A impressão de realidade ligada aos traços perceptivos do significante caracteriza

todos os filmes a partir do efeito ficção característicos dos filmes narrativos. Diante destes

filmes, o espectador adota uma consciência particular diferente do sonho, do devaneio, da

percepção real, mas que, no entanto depende dos três, estabelecendo novas relações. “A

diegese possui qualquer coisa do real visto que o imita e qualquer coisa do devaneio e do

sonho visto que estes imitam o real” (METZ, 1980, p. 146).

Desta forma, o cinema possui uma alma, uma magia carregada de ilusão na qual o

antropomorfismo e cosmomorfismo introduzem “a humanidade no mundo exterior e o mundo

exterior no homem interior” revelando-se em projeções e identificações. Para Morin, “a

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projeção é um processo universal e multiforme. As nossas necessidades, aspirações, desejos,

obsessões, receios, projetam-se, não só no vácuo em sonhos e imaginação, mas também sobre

todas as coisas e todos os seres” (MORIN, 1997, p. 107).

Sendo assim, a projeção está totalmente ligada as nossas percepções e passa por um

processo que inclui o automórfico, o antropomórfico e o desdobramento que, para Morin, tem

as seguintes características: 1º) automórfico: atribuição a alguém as disposições que nos são

próprias (FULCHIGNONI apud MORIN, 1997); 2º) antropomórfico: fixação “nas coisas

materiais e nos seres vivos traços de caráter ou tendências propriamente humanas” e 3º)

desdobramento: “projeção do nosso próprio ser individual numa visão alucinatória em que

nosso espectro corporal nos aparece” (MORIN, 1997, p. 108).

Como já mencionado, além da projeção existe a identificação, que para Morin, o

sujeito é absorvido pelo mundo de tal maneira que incorpora o meio ambiente, integrando-o

afetivamente (CRESSEY apud MORIN, 1997). Essa identificação com o outro pode resultar

na possessão do sujeito por um animal, feiticeiro ou até mesmo por um deus

(antromomorfismo), onde o mundo pode ampliar-se a um cosmomorfismo, mesmo este se

sentindo e acreditando ser um microcosmo, numa relação de “eu me ponho no seu lugar”.

Como se pode verificar, tanto na projeção como na identificação, há uma complexi-

dade de interconexões que envolvem a relação do eu com o outro e de transferências

recíprocas – projeção-identificação-transferência –, assim como no “complexo dos fenômenos

mágicos: o duplo, a analogia, a metamorfose” que significa em outras palavras que: (MORIN,

1987, p. 109):

O estado subjetivo e a coisa mágica são dois momentos da projeção-identificação. Um é o momento nascente, fluido, vaporoso, ‘inefável’. O outro é o momento em que a identificação é tomada à letra, substancializada; o momento em que a projeção alienada, desgarrada, fixada, fetichizada, se coisifica: em que se crê verdadeiramente nos duplos, nos espíritos, nos deuses, no fetiche, na posse, na metamorfose. O sonho vem nos mostrar que não há solução de continuidade entre a subjetividade e a magia [...] Até acordarmos, as projeções parecem-nos reais [...] A essência do sonho é a subjetividade. O seu ser é a magia. É que o sonho é projeção-identificação em estado puro (MORIN, 1987, p. 109).

A magia é um sentimento que deixa de ser real para se tornar imaginário. Assim a

magia efetiva a subjetividade como a subjetividade alimenta a magia, desta forma, torna-se

um sentimento, na qual o antropocosmomorfismo desapega do real para flertar com o imagi-

nário. Depois da etapa da magia sucede a da alma, na qual a magia, em fragmentos subsiste as

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etapas da alma integrando-as. “A intensidade da vida subjetiva ou objetiva vem ressuscitar a

antiga magia, ou antes, suscitar uma nova magia” (MORIN, 1987, p. 111).

Assim a nossa vida, envolta a tantos sentimentos, receios, desejos, amor, amizade

desenvolve uma categoria de fenômenos de projeção-identificação na qual os sujeitos se

identificam e se projetam e cuja participação afetiva leva com ele resquícios de magia, de

profundidade de alma e de vida subjetiva num emaranhado complexo que traz luz a uma zona

de sombra onde só há razão.

A Bolívia é um país de uma cultura riquíssima e ancestral e que assim como muitos

países pobres sofre com influências da cultura ocidental. Teve um passado marcado por

muitas perdas e hoje sofre uma turbulência política e social. Sempre relacionado com coisas

ruins, como o narcotráfico, por exemplo, sua população crê em dias melhores como se

verifica em alguns depoimentos no documentário ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano.

Mas, a cultura indígena já se faz mais presente segundo a socióloga Gabriela

Zambrana e os abismos sociais estão sendo controlados, é possível verificar uma maior

participação dos povos indígenas na política. Entretanto, ainda a imigração se faz forte e o

desejo de uma nova vida, com trabalho e mais fartura, seja o grande motivo da procura por

novas oportunidades, em outros lugares, apesar dos infortúnios que isto acarreta (¡Si, yo

puedo! – O sonho boliviano).

A projeção numa nova forma de vida, longe do país de origem e a possibilidade de

que os sonhos se tornem realidade estão no inconsciente dessa comunidade que procura a

cidade de São Paulo para realizá-los. São projeções e identificações e muitas vezes

adaptações, por conta do idioma e uma cultura diferentes, que se crê que estes sonhos possam

se realizar.

No trabalho e nas festas estas projeções e identificações estão presentes. A projeção

que se faz no trabalho é, principalmente, no sentido de que o que se ganha com o trabalho é

sagrado e nas festas há, também, uma projeção nas divindades e uma reatualização na crença

que a dança exorciza os fantasmas e o mal e o bem triunfam sobre o mundo cosmogônico.

Assim, estas projeções e identificações não ficam somente no campo do real, na vida do dia a

dia, mas também no campo da magia, dos sonhos, do cinema.

As estruturas mágicas “indicam-nos que todos os fenômenos do cinema tendem a

conferir as estruturas da subjetividade à imagem objetiva; que todos eles põem em causas as

participações afetivas” e que as projeções-identificações se desenvolvem tanto no cinema

como na vida. Tudo o que fazemos na vida são representações diante dos outros e de nós

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mesmos, tudo o que vestimos, o que falamos, todos os nossos sentimentos fazem parte das

nossas projeções-identificações-imaginárias.

Na medida em que identificamos as imagens do ecrã com a vida real, as nossas projeções-identificações próprias da vida real põem-se em movimento. Em certa medida, vamos lá encontrá-las, efetivamente, o que parece desfazer a originalidade da projeção-identificação cinematográfica, mas, de fato, a revela. Realmente, por que razão as iríamos lá encontrar? No ecrã há apenas jogos de sombra e luz; só num processo de projeção é possível identificar as sombras com coisas e seres reais e atribuir-lhes essa realidade que tão evidentemente lhes falta, quando refletimos, mas não quando olhamos. Um primeiro e elementar processo de projeção-identificação vem, pois, conferir às imagens cinematográficas realidade suficiente para que as vulgares projeções-identificações possam agir (MORIN, 1987, p. 113).

Desta forma, a identificação que os espectadores têm com as imagens

cinematográficas e o poder de projetá-los para o imaginário faz com que a sua subjetividade

atraia consigo as projeções-identificações e quando não há uma participação prática há uma

participação afetiva acentuada, ocorrendo transferências entre a alma do espectador e o

espetáculo do ecrã. Análogo a isso, tanto a passividade como a impotência do espectador,

colocam-no num estado de regressão. “O espetáculo serve de ilustração a uma lei antropo-

lógica geral: todos nós nos tornamos sentimentais, sensíveis e lacrimejantes logo que nos

vemos privados dos nossos meios de ação” (MORIN, 1987, p. 117).

Sob esse efeito de regressão, o espectador se infantiliza como num processo de

neurose artificial, de transferência (FREUD), na ou para qual ele transfere alguma coisa que

não existe, é por isso que no espetáculo tudo passa de um grau de afetividade para um grau

mágico como no sono se ampliam as projeções-identificações dos sonhos. No espetáculo uma

forma de excitação da projeção-identificação tem a ver com a obscuridade, que isola o

espectador e o ‘embrulha em negro’ (EPSTEIN) para acabar com as resistências diurnas e

enfatizar o encanto pela sombra.

O espectador relaxado está propício à desconcentração, o que favorece ao devaneio.

Na sala escura do cinema, então, é um sujeito passivo em seu estado puro, que pacientemente

suporta tudo, pois tudo está fora do seu alcance. Envolvido num invólucro, “na placenta dupla

de uma comunidade anônima e da obscuridade, quando os canais da ação se fecham, abrem-se

então as comportas do mito, do sono e da magia”. A invasão do imaginário no filme, uma

obra estética, revela a ampliação das participações-afetivas, mesmo o espectador sabendo da

ausência de realidade prática do que está sendo representado (MORIN, 1987, p. 119).

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As técnicas do cinema contribuem efetivamente para as projeções-identificações no

sentido em que elas, a partir de movimentos de câmera, acelerações, mobilidade, enquadra-

mentos, ritmos da ação e da montagem, aceleração ou dilatação do tempo, dinamismo musical

provocam a cinestesia, sobretudo quando estes recursos são utilizados como um elemento de

emoção, angústia, reflexão, afetividade etc., onde o fluxo de imagens desperta a consciência e

o dinamismo cenestésico. No cinema, há uma simbiose entre o espectador e o filme.

O cinema não só está a serviço das imagens como aguça a participação no momento

certo, pois possui uma gama antropológica de projeções-identificações que são suscitadas e

excitadas, desde algo mais simples e observável que é a identificação extrema ou falso

reconhecimento, como aqueles verificados em primitivos, crianças e neuróticos.

O espectador tende a incorporar nele próprio as personagens do ecrã em função de semelhanças físicas e morais que nelas encontre. É por isso que, segundo as investigações de Lazarsfeld, os homens preferem os heróis masculinos, e as mulheres as vedetas femininas e as pessoas de idade, as personagens maduras. Mas, tudo isso não é mais do que um aspecto dos fenômenos de projeção-identificação – e não o aspecto mais importante (MORIN, 1987, p. 126).

Para Morin, o mais importante é a consolidação de tendências nas personalidades –

stars – que é um “sistema permanente de personagens propícios à identificação”, o

fundamental são as projeções-identificações polifórmicas na qual os espectadores se espelham

nas personalidades do cinema e cujo poder de identificação é ilimitado, inclusive, com

pessoas comuns da vida cotidiana. O contrário também é possível, ou seja, uma identificação

com o estranho, o que rompe com as participações da vida real. O cinema, o imaginário e o

sonho suscitam identificações mais secretas.

Esse caráter polifórmico de identificação confere à sociologia a diversidade de filmes

e gostos de um mesmo espectador, tanto de filmes mais inverossímeis até os mais realistas.

Tudo isso com o auxílio das técnicas cinematográficas, na qual a participação polifórmica

acaba abarcando e unindo vários personagens num verdadeiro complexo antropocosmomór-

fico e micromacrocósmico, onde o antropocosmomorfismo difundiu seu poder afetivo nas

projeções-identificações.

A magia é a alma do cinema nas suas participações afetivas e os planos um

componente técnico valioso. “O grande plano fixa no rosto a representação dramática, foca

nele todos os dramas, todas as emoções, todos os acontecimentos da sociedade e da natureza”.

Embora a alma do cinema esteja cheia, o cinema ainda atende às necessidades do imaginário,

do devaneio, da magia, da estética, já que na vida prática elas não são satisfeitas. Há uma

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necessidade de se fugir e buscar refúgio nas imagens desse duplo imaginário que se projeta e

coloca o espectador em milhares de vidas, nas quais eles mesmos se projetam em busca da

magia das identificações afetivas (MORIN, 1987, p. 130).

O encanto da imagem e a imagem do mundo ao alcance da mão deter-minaram um espetáculo, o espetáculo excitou um prodigioso desenvolvi-mento imaginário, imagem-espetáculo imaginário excitaram a formação de novas estruturas no interior do filme: o cinema é o produto deste processo. O cinematógrafo suscitava a participação. O cinema excita-a e, assim, as projeções-identificações se expandem e exaltam no antropocosmomorfismo (MORIN, 1987, p. 135).

Assim, magia, afetividade e estética são meios do processo de participação. Desta

forma, ao mesmo tempo em que o cinema é mágico e estético, pois possuem a linguagem da

emoção, é também estético e afetivo. No momento “em que a civilização conservou o seu

fervor pelo imaginário, tendo embora perdido a fé na sua realidade objetiva, a estética é a

grande festa onírica da participação”, na qual alma, participação e fantasma se unem à magia

e afetividade no ato antropológico da participação (MORIN, 1987, p. 136).

Desta forma, para Morin, o cinema se apresenta como um complexo de sonho e de

realidade, já que as participações subjetivas quando se fixam numa imagem lhe dão alma e

carne, ou seja, uma presença objetiva, na qual o universo onírico subterrâneo do espectador

submerge de um momento para outro no universo objetivo. “Se o universo objetivo se

sobrepõe ao universo onírico, até quase o apagar, também é um fato que sofre a sua

radioatividade, que nunca o anula totalmente”, pois a simbiose não apaga essa dualidade

(MORIN, 1997, p. 176).

O filme possui uma realidade que é exterior ao espectador, uma materialidade

deixada impressa na película, mas que mesmo sendo “reflexo de formas e movimentos reais,

o filme é tido como irreal pelo espectador, ou seja, é tido como imaginário”. O cinema é um

conjunto de realidade e irrealidade que sobreposto entre a vigília e o sono se torna um estado

misto e segregado entre o sonhador e a sua fantasia vai além do sono. A percepção prática

implica, mesmo que debilitado, os processos imaginários ainda que determinados por eles

(MORIN, 1997, p. 177).

Desta forma, o que dificulta a verdade objetiva do filme e a sua integração na prática

é a consciência estética que é uma consciência desdobrada, em face de ser uma “conjunção do

saber racional e da participação subjetiva”. É a decifração da visão afetiva que coloca a

realidade a parte, confundindo o espectador e o espetáculo quando na prática acaba por

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dissociá-los. Sendo assim, é vigilante, pois se trata de uma estética que subjetiviza a magia do

cinema diferenciando-o do sonho e da visão primitiva (MORIN, 1997, p. 181).

Por outro lado, é sonhadora, pois desvia do campo prático para o imaginário e para a

afetividade, a percepção vigilante. Sendo sonhadora e vigilante é a estética que une o sonho e

a realidade diferenciando o cinema e o afastando simultaneamente do sonho e da realidade. Já

o espectador que racionaliza a percepção do filme e irrealiza conjuntamente a realidade que

produziu situa-a na observação, na afetividade não interiorizando suas respostas, quando o

deveria externá-las em atos. No entanto, ele sabe que é uma realidade aparente.

A subjetividade e a objetividade não se justapõem, elas renascem uma da outra. A

imagem subjetiva é como se fosse um espelho da subjetividade. Para Méliès (apud MORIN,

1997) era preciso dar um aspecto de verdade para as coisas fictícias, pois o cinema precisa de

objetos e um meio ambiente supostamente autênticos. No cinema, a objetividade das coisas e

dos seres está cercada pela subjetividade das luzes e das sombras.

O antropocosmomorfismo é penetrado pelas formas objetivas, pois os objetos ga-

nham alma e vida, como no realismo se desenvolve o animismo. Sendo assim, as formas

objetivas vão se convertendo num complexo de realidade e irrealidade. “Uma incessante

dialética liga estes vários estados da realidade e da irrealidade até à completa reversibilidade,

em que o objeto se torna alma” (MORIN, 1997, p. 187, 188).

Necessidades afetivas e necessidades racionais entre-arquiteturam-se a fim de constituírem complexos de ficção. Essas características são diversamente determinadas, segundo as idades da vida e da sociedade, as classes sociais, etc. Paralelamente, as tendências dominantes da ficção aparecem-nos como outras tantas linhas de força culturais, Passamos, insensivelmente, do plano antropológico para o plano histórico e sociológico (MORIN, 1997, p. 189, 190).

Desta forma, o fantástico que fazia parte da infância da criança, assim como da arte,

a partir dos dez, doze anos começa a dar lugar à racionalização e a objetivação e nessa con-

frontação a criança se depara com as intrigas realistas substituindo o fantástico e o sonho

pelas coisas reais. Porque, segundo Morin, a infantilidade adulta se esconde no realismo, mas

o cinema, ainda sempre abrigou a imaginação.

O fantástico, então, começa a substituir o cômico, a loucura, a alucinação e entra no

âmbito racional. Sendo assim, tudo o que antes “era” passa a ser uma visão do que “era”, ou

seja, a fantasia se racionaliza no fantástico e quanto maior essa racionalização mais realista é

o filme. Portanto, o mito ganha contornos de objetividade ou pelo menos ganha aparência de

verdade, não obstante vê-se uma espécie de destruição ou camuflagem, que em estado de

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vigília propicia a entrada no sonho. A fantasia, então, domina o cinema num complexo jogo

entre o real e o imaginário levando a criação de estereótipos.

Este movimento de real e de irreal se cristaliza, o que permite a captação sociológica

do filme, pois “qualquer sistema de ficção é, por si próprio, um produto histórico e social

determinado”. Desta forma, se à luz da sociologia o mais importante é a determinação dos

sistemas, na visão antropológica, o essencial é a possibilidade ilimitada do diálogo entre o real

e o irreal. O cinema, ao abrir espaço para o sonho e a vigília mudou completamente a relação

com o cinematógrafo possibilitando novas complementaridades (MORIN, 1997, p. 195).

Ainda aqui se pode verificar a pureza antropológica do cinema. O cinema, não só abarca todo o campo do mundo real, que nos põe ao alcance da mão, como também todo o campo do mundo imaginário, pois tanto participa da visão do sonho como da percepção própria do estado de vigília. O ‘campo’ da câmera compreende, visualmente, o campo antropológico que vai do seu objeto (o duplo) ao seu objetivo (consciência de si, alma), do mundo subjetivo (antropocosmomorfismo) ao mundo objetivo (percepção prática) (MORIN, 1997, p. 196).

Consequentemente, o cinema possui os domínios mágicos e objetivos tornando-o

uma fonte arquetípica onde se encontra o embrião de todas as visões do mundo. No entanto, o

cinema se afasta da prática e compreende a estética. Os filmes elegem e determinam as

necessidades humanas a partir da sua visão dominante, na qual prevalece o complexo do real

e do irreal e mais uma vez a antropologia leva à história.

A partir daí, o cinema começa a se configurar e a ter uma linguagem. O cinema-

tógrafo com sua imagem única abre espaço para uma eclosão de imagens simbólicas, o plano

do cinema carrega uma carga simbólica de alta tensão que se torna dez vezes maior, não só no

sentido afetivo, mas no poder significativo da imagem. Toda essa energia faz com que todos

os vazios sejam preenchidos de plano para plano inserindo uma série de símbolos e criando

uma narrativa.

“A sucessão dos planos tende a formar um discurso no seio do qual o plano particular

desempenha o papel de sinal inteligível. Quer dizer: o cinema desenvolve, por si mesmo, um

sistema de abstração, de discursão, de ideação”. Assim, o cinema ganha uma razão, nasce,

então, uma magia e uma alma. Desta forma, as técnicas de câmera, montagem como os planos

carregados de afetividade sinalizam para uma inteligibilidade racional. Contudo, não só a

magia cedeu espaço para a participação afetiva como esta se transformou em abstração

(MORIN, 1997, p. 199).

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Desta forma, a sobreimpressão e o efeito mágico (fantasmas, desdobramento) se

transformam em simbólicos afetivos (sonho, recordação) e depois se tornam exclusivamente

indicativas. Não só a fusão, mas o encadeado e a sobreimpressão são símbolos que acabam

dissecados em sinais pela repetição. As figurações que condensam a duração acabam se

tornando símbolos que depois passam.

Assim, o que é sinal passa a ser símbolo o que é símbolo se torna sinal e nesse

complexo simbólico a afetividade se torna abstrato. Certas imagens no cinema tendem a

organizar-se em instrumentos gramaticais (encadeado, fusão, sobreimpressão) ou retóricos (a

própria retórica, as elipses, as metáforas). Tudo isto resulta numa estilização gramatical que

conduz as “imagens símbolos para um significado discursivo” (MORIN, 1997, p. 200).

As técnicas cinematográficas colocam em ação a abstração e a racionalização. A

câmera, por exemplo, pode selecionar algo que não está próximo ou esconder alguma coisa a

partir de um jogo estimulante. Pode utilizar outros recursos também, como a lateralidade e a

profundidade, permitindo que o cinema seja menos abstrato, menos afetivo, no entanto, mais

comovente. O cinema, com isso, introduz uma narrativa semelhante à do romance.

É por isso que o cinema, depois que se libertou do cinematógrafo e através das suas

técnicas trouxe à tona a magia até a racionalidade do discurso, a música, por exemplo, pode

anunciar algo que a imagem ainda não mostrou. Ela pode desempenhar o papel de legenda e

dar significados como: recordação, meditação, sonho, sono etc., como também pode convidar

o espectador a uma participação, transformando-se em uma linguagem.

Um exemplo disto pode ser visto no documentário 100% Boliviano, Mano no

momento em que dona Carmen, mãe de Denílson Mamani, o personagem que conduz a

narrativa, se encaminha para a festa no Memorial da América Latina. Antes mesmo de

mostrar a imagem dela na festa já é possível ouvir o som da música que, inclusive, se torna

mais alta a partir da imagem dela no evento.

Ao invés da música, e apesar de esta ser apenas um dos seus aspectos, o som é, em princípio realista. Os ruídos e as vozes que se fixam na película são, de início, os ruídos e as vozes reais. O som não é imagem: conquanto se descobre, não é nem sombra nem reflexo do som original mas sim a sua gravação. É neste sentido que os ruídos e as palavras orientam o filme para um maior realismo (MORIN, 1997, p. 204).

Esta técnica é utilizada nos três documentários como elemento de coesão e de partici-

pação afetiva, pois oferece uma percepção mais realística. É possível, por exemplo, ouvir as

vozes dos cineastas, o que dá uma sensação maior de que eles também fazem parte da história

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que está sendo contada, na verdade eles estão presentes no momento, mas não fazem parte do

enredo do filme, não há uma interferência na narrativa por conta disso, mas uma sensação

maior de realismo.

Mas a sonoridade traz às vozes narradoras um triplo registro, segundo Morin. Elas

trazem as narrativas do passado, manuseiam o tempo e os misturam numa temporalidade

imaginária, além de acelerar o ritmo das imagens o que acaba tornando a participação

dinâmica. Sendo assim, o discurso verbal pode substituir a lógica do discurso das imagens.

Estes esquemas tendem a uma interpenetração e a arquitetar-se entre si. Alguns elementos da

linguagem do cinema, como as palavras, ruídos e músicas têm a função de dar continuidade

ao filme (raccord).

“A linguagem conceitual tem tendência para tornar-se o cimento da montagem”, no

cinema, a fala elabora o filme e o configura em discurso, como pode finalizá-lo por um

discurso, além de exprimir ideias no filme. A seleção sonora é maior que a seleção visual

(montagem), na qual os “processos que abstraem a nossa atenção se encontram literalmente

em atividade, para a obtenção de verdadeiros close up e flous sonoros”, assim o filme elimina

ruídos extras, seleciona ruídos que são essenciais e aumenta-os (MORIN, 1997, p. 206).

Desta forma o filme tende a razão, uma vez que a imagem é simbólica por natureza

ela se destina a um significado e concomitantemente a uma participação afetiva, entretanto

algumas imagens levam a estereotipia e essa estereotipia pode levar a cristalização gramatical.

E, por outro lado, o filme possui um sistema narrativo, argumentação, planificação e enredo

que pode, a partir de sua composição se tornar um discurso lógico e demonstrativo.

A desintegração que acontece com as ciências do homem impede que se perceba a

existente continuidade entre magia, sentimento e razão, sobretudo quando esta dificuldade

está no seio da antropologia, ela parece não ter solução, mas quando o cinema se torna magia,

sentimento e razão, é porque existe uma coesão entre eles, não é a toa que na participação há

o princípio da abstração.

Reciprocamente, a participação está implícita na inteligência, por isso a importância

de se identificar com o que foi projetado, porque a inteligência é projetada por padrões

abstratos e por identificação com esses padrões que prolongam a percepção. Sendo assim, se

esta reificação utilitária não se opuser à coisificação mágica conforme se volte à prática ou a

afetividade, este movimento se torna poético ou racional. Não obstante, é pelo fato de toda

imagem ser simbólica que o cinema engloba o espírito humano.

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O símbolo está ligado ao sentimento escolástico, quer dizer, ao sentido mágico do termo, à coisa simbolizada, da qual fixa a presença afetiva. É, em conclusão, um sinal abstrato, um meio de reconhecimento e um meio de conhecimento. O símbolo está na origem de todas as linguagens, que mais não são que um encadeamento de símbolos que efetuam a comunicação, ou seja, a evocação de uma qualidade total, por fragmentos, convenções, abreviaturas ou acessórios (MORIN, 1997, p. 209).

Como já mencionado o cinema possui uma linguagem e a linguagem não está somen-

te no campo cognitivo, ela pode ser afetiva como pode estar relacionada ao conhecimento, sua

primeira função não é definir os objetos ou refletir sobre eles, mas lhes conferir uma carga

afetiva secundária. Sendo assim, a linguagem não é apenas sinais arbitrários, mas as palavras

também são símbolos ricos em presença afetiva. Portanto, as palavras “são intermediários

antropocosmomórficos, projeções humanas a condensarem fragmentos do cosmos” (MORIN,

1997, p. 213).

Desta forma, a linguagem do cinema é tão coerente quanto a linguagem das palavras.

A linguagem do cinema se equipara a linguagem primitiva, na qual a primeira é feita de

imagens e a segunda se expressa por imagens, porém ambas estão em jogo com os processos

antropocosmomórficos. O cinema, por exemplo, possui um vocabulário convencional, seus

sinais são símbolos estereotipados, “de metamorfoses e desaparições, transformadas em

vírgulas e em ponto finais (encadeado, fusão)” (MORIN, 1997, p. 214).

No entanto, existe uma fluidez que diferencia o cinema da linguagem das palavras e

que o aproxima da música, pois tanto a música como o cinema pode dispensá-las e mesmo

assim não deixa de ser encantadores. No entanto, a música não representa objetos, não atinge

a objetividade, ao passo que o cinema chega à alma por causa dos objetos. Desta forma é o

objeto que diferencia um do outro, assim como da linguagem das palavras, pois estas possuem

apenas sinais convencionais.

Portanto, o cinema está entre as palavras e a música, mas o som não abalou a caracte-

rística do cinema, ao contrário abriu outras possibilidades, ele deixou de ser mudo e não

perdeu sua linguagem própria. “A linguagem do cinema é, no seu conjunto, fundada, não em

reificações particulares, mas em processos universais de participação. Os seus sinais

elementares são condensados de magia universal (metamorfoses, desdobramentos)” (MORIN,

1997, p. 216).

Mas a linguagem do filme encontrou dificuldades, pois se situa num nível de

abstração ainda não atingido pelo espectador, todo o desenvolvimento e evolução do cinema

também é resultado de uma evolução sociológica, onde há uma tela de cinema há uma

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aculturação. Entretanto, a linguagem do cinema oferece uma compreensão do mundo e das

coisas que antecede à compreensão abstrata, trata-se de uma compreensão do espírito

humano, daí a afetividade e efetividade do cinema, no campo do imaginário.

O filme é um momento onde se encontram dois psiquismos, o que está incorporado

na película (ecrã) e o do espectador, numa relação de simbiose, na qual o espírito do

espectador é tão ativo quanto o do cineasta. E é no filme que se encontra o germe da projeção-

identificação, pois o cinema aniquila a atividade perceptiva e o substitui pela sua, desta forma

ela não só fabrica a percepção do real como a aparta do imaginário, não à toa, “o filme, ao

mesmo tempo em que representa, significa. Abarca o real, o irreal, o presente, o vivido, a

recordação e o sonho, a um nível mental idêntico e comum” (MORIN, 1997, p. 230).

O cinema é montagem, por isso ela pode deformar (trucagem) as imagens e

transformá-las em mentiras ou verdades. Embora no cinema possa haver fotos históricas, não

significa que ele seja um reflexo da história, pode sim, contar histórias que fiquem na

História. O cinema amplia ou reduz o campo mental, não é a toa que a linguagem do cinema

assemelha-se ao da psicologia como nos casos de projeção, representação, campo, imagens. O

cinema é construído às bases do nosso psiquismo.

O cinema compartilha da fotografia e da pintura não realista unindo-os integralmente

e respeitando a realidade óptica, além de “mostrar as coisas separadas e isoladas pelo tempo e

pelo espaço”. Além disso, o cinema é um mundo meio absorvido pelo espírito humano tal

como o próprio espírito humano, no entanto ele é projetado no mundo. Desta forma, nesse

jogo subjetivo e objetivo ele desvenda o espírito humano no mundo (MORIN, 1997, p. 232).

Porém, o cinema vai mais longe, pois tudo o que é projetado já foi selecionado,

saturado, amassado e absorvido pelas nossas mentes, na qual o tempo e o espaço já não

encontram barreiras para fundirem-se. Desta forma, “as imagens infiltram-se entre o homem e

a sua percepção, permitindo-lhe ver o que pensa ver. A substância imaginária confunde-se

com a nossa vida anímica, com a nossa realidade afetiva” (MORIN, 1997, p. 235).

Não obstante, a individualidade humana vai se perdendo dos instintos específicos

que vão se atrofiando, surgindo com isso o duplo e originando assim a visão mágica do

mundo, mas na prática a individualidade não detém os poderes do duplo e nem abrange a

totalidade cósmica, portanto, nessa relação entre o ‘eu’ que é outro e os outros que há no ‘eu’

da “consciência subjetiva do mundo e a consciência objetiva do eu” é que o duplo “se atrofia

e se espiritualiza em alma” (MORIN, 1997, p. 236).

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No decorrer de todas estas transferências imaginárias, o homem vai-se enriquecendo geneticamente; o imaginário é o fermento do trabalho do eu sobre si próprio e sobre a natureza, através do qual se constrói e desenvolve a realidade do homem [...] Assim, não se pode dissociar o imaginário da ‘natureza humana’ – do homem natural. Ele é sua parte integrante e vital. Contribui para a sua formação prática. É o verdadeiro alicerce de projeções-identificações, a partir da qual o homem, ao mesmo tempo em que se mascara se conhece e se constrói (MORIN, 1997, p. 236).

Assim, o homem não existe na sua totalidade ele é tanto imaginário como prático.

Por isso, quando há substituição de um pelo outro surge o racional. E desta contradição surge

à necessidade de onde nascem as imagens compensadoras. Sonho e ferramenta caminham no

mesmo sentido. “Ao antropocosmomorfismo do imaginário corresponde o antropocosmo-

morfismo da prática, à alienação e à projeção da substância humana nos sonhos corresponde a

alienação e a projeção nas ferramentas e no trabalho”, tudo para fazer o homem o sujeito no

mundo (MORIN, 1997, p. 237).

Desta forma, o imaginário mistura o real e o irreal e encaminha o sonho para a noite

e o trabalho para o dia, no entanto, não dá para separar a técnica do imaginário. Assim se

entrecruzam o fantástico e o material da natureza e do homem e brotam o sonho e a ferra-

menta, como no trabalho e na festa da comunidade boliviana da cidade de São Paulo, “ou seja,

o trabalho de produção do homem pelo homem, através da humanização do mundo e da

cosmicização do homem” (MORIN, 1997, p. 239).

Vale ressaltar que a dinâmica é diferente nesta relação entre sonho e trabalho,

quando se trata dos trabalhadores bolivianos, nas oficinas de costura, na cidade de São Paulo.

Pois, o imaginário real e irreal, nesta situação prática estão invertidas, o sonho está mais para

o dia, sobretudo, nas festividades que acontecem no Memorial da América Latina e o trabalho

está mais para a noite, dada as condições de trabalho, a qual eles se submetem. Mas como se

trata de uma relação complexa, tanto o real como o irreal, parecem estar imbricados.

O cinema, assim como o homem é tão indeterminado que essa característica antropo-

lógica não omite o homem da história ou da sociedade, até porque a antropologia não opõe o

homem eterno ao momento e nem a realidade histórica ao homem abstrato. Assim a

antropologia conduz o cinema à história e, segundo Morin, o cinema por ser um espelho

antropológico reflete as realidades imaginárias e práticas.

Assim, os diversos complexos de magia, de afetividade, de razão, de real, que compõem a estrutura molecular dos filmes, nos conduzem aos complexos sociais contemporâneos e aos seus componentes, aos progressos da razão no mundo, à civilização da alma, às magias do século vinte, herança

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das magias primitivas e fixação fetichista da nossa vida individual e coletiva (MORIN, 1997, p. 240).

O cinema conseguiu reunir em um só lugar uma profusão de potências psíquicas

como o sentimento, a ideia, a razão, a alma e as transformou em imagens cinematográficas e

com isso o mundo foi se humanizando e assim trouxe ao espectador uma excepcional produ-

ção inconsciente mantido num processo histórico do homem. As profundidades inconscientes

é que nos apresenta à consciência, assim, a projeção-identificação faz com que haja uma

ligação entre as “coisas estáticas e as essências conceituais aos seus processos humanos”

(MORIN, 1997, p. 244).

Assim, a participação é o clichê da sociedade, tanto no aspecto biológico, afetivo

como intelectual e o desdobramento, a magia, o espírito, surge como elemento da projeção e o

antropocosmomorfismo é por sua vontade a projeção-identificação que permite essa imersão

no cinema. Desta forma, antes de firmar o papel social do cinema tem de se levar em conta o

conteúdo dos filmes e como estes se apresentam na realidade antropológica, social e histórica

a partir da projeção-identificação.

Os documentários analisados ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo,

100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo retratam, essencialmente,

problemas sociais que são resultados de questões econômicas, a voz destes filmes é bastante

contundente e mostra uma realidade de muito esforço, trabalho, mas que também encontra nas

festas, uma maneira de se reatualizar e se fortalecer, sagrado e profano se misturam nas

imagens que representam a comunidade boliviana de São Paulo.

Portanto, desde a pré-história o homem alienou suas imagens como fez o cinema, a

partir das representações sagradas e profanas, dos mitos, das lendas, não a ponto de encarnar a

realidade de forma tão natural. O cinema exteriorizou os processos imaginários, os sonhos e

os conduziu ao real, por isso, “há que interrogá-los – isto é, reintegrar o imaginário na reali-

dade do homem” (MORIN, 1997, p. 246).

O cinema é uma instituição social cuja significação psicanalítica do significante

enraíza figuras antropológicas e os estudos de Freud contribuíram para o entendimento das

relações cinematográficas com as questões do espelho, do desejo, do voyeurismo etc. No

entanto, é importante também atentar para os processos de figuração, as metáforas e as

metonímias do filme, pois os processos primário e secundário intervêm nas condensações e

deslocamentos textuais do filme, a partir dos estudos dos graus de secundarização.

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Para Metz, os percursos primários do consciente de uma pessoa são livres e ela-

borados desde a infância. Sendo assim, tendem a se reproduzir e manifestar-se por caminhos

associativos e mais ou menos fixos, a partir da repetição (FREUD). É no inconsciente que se

organizam os afetos e as representações e onde eles se deslocam no tempo e no espaço.

Para Lacan (apud METZ, 1980), a metáfora se inicia na condensação e a metonímia

do deslocamento, elas não oscilam, uma está ao lado da outra, ao passo que, para Freud (apud

METZ, 1980) a condensação e o deslocamento são matrizes da metáfora e da metonímia.

Ambas são figurações da ordem simbólica, tanto para a linguagem como para o inconsciente.

“Os dois termos do par marcam profundamente a língua e o discurso, instâncias bastante

secundárias, tanto como o sonho, nitidamente mais primário” (METZ, 1980, p. 169).

A metáfora e a metonímia em que pensa Lacan são ‘seres’ cujo grau de generalidade – o poder de agrupamento, numa atividade taxinômica, ou de ‘dominância’ numa perspectiva gerativa, se se quisesse deduzir as figuras – é da mesma ordem que o da condensação e deslocamento, e é por isso que a ideia homológica pode com toda a legitimidade vir ao espírito. Na ‘retomada’ jakobsoniana da herança retórica, metáfora e metonímia são uma espécie de superfiguras, categorias de reunião: de um lado as figuras da similaridade, do outro as da contiguidade (METZ, 1980, p. 170).

Às metáforas e às metonímias somam-se duas características: o abstrato e o concreto

que se tendem a fundir e resultar numa nova interpretação metafórica que na análise das

figuras de retórica, que são múltiplas e minuciosas, são repensadas a partir da bipartição

recente da linguística: “esta modelagem retroativa faria surgir cada uma das ‘pequenas’

figuras antigas como um subcaso de metáfora ou de metonímia, ou dos dois juntos” (METZ,

1980, p. 171).

A partir do momento em que se começou a estudar a oposição metáfora-metonímia a

preocupação ficou por conta da confusão na tendência de igualar o paradigma pela metáfora e

o sintagma pela metonímia, reduzindo-os a um e no qual o linguístico se perde no retórico.

Tem-se, então, um correlato ao qual a metáfora e o paradigma assentam na similaridade e a

metonímia e o sintagma na contiguidade.

Roman Jakobson (apud METZ, 1980) emprega os termos paradigma

(metáfora/condensação) e sintagma (metonímia/deslocamento) apoiando-se em dois grandes

eixos da linguagem: seleção e combinação, substituição e contextura e alternação e

justaposição, escolha e disposição. E a predominância das considerações paradigmáticas em

morfologia, estrutura, formação e classificação das palavras e sintagmáticas em sintaxe, que

seria as disposições das palavras.

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Ainda é preciso levar em consideração que metonímia (sintagma) estabelece uma

relação de contiguidade “chegando a pôr uma palavra no lugar de outra em virtude de

qualquer laço de proximidade ou de vizinhança entre os dois referentes” e que metáfora

(paradigma) é, pois, a “oposição, que sugere a contrariedade mais do que a semelhança” como

na relação bem e mal. Assim, pode-se relacionar a dança diablada como pertencendo ao eixo

paradigmático, pois a mesma tem como foco a luta do bem contra o mal, mas este assunto

será desenvolvido no próximo capítulo (METZ, 1980, p. 178,181).

Mas há na relação de contrariedade uma base de semelhança mais profunda que

presume que dois termos sejam comparáveis numa relação como, por exemplo, de

temperatura (Frio/Quente), de sonoridade presente ou ausente (Surdo/Sonoro) etc. Esse

princípio é dos “eixos semânticos” de Greimas, ou da teoria fonológica dos ‘traços’ e também

se refere a um princípio da psicanálise, que é a ambivalência. O fato é que a linguística

sempre estimulou a aproximação da semelhança e do contraste no princípio de comparabi-

lidade, em oposição à contiguidade.

Uma discussão de cunho semiológico põe a montagem como um resultado da

metonímia, entretanto em algumas montagens, “o conteúdo das imagens montadas, são

realmente metonímicas”. Sendo assim, pelo princípio da montagem (de toda montagem)

consiste numa ideia de sintagma e não de metonímia, já que ela aproxima e combina

elementos do discurso no filme, mesmo esses elementos não tendo uma relação metonímica

com o referente, ou seja, com a realidade, ou melhor, com a realidade imaginária diegética

(METZ, 1980, p. 185).

Para Jakobson, citado por Metz (1987), o princípio de similaridade (semelhança) e de

contiguidade (proximidade) pode fundar-se sobre dois eixos, o posicional que é da série

discursiva, sintaxe e o semântico, dos significados ou referentes, ou seja, o assunto do

discurso. No aspecto posicional, trata-se do sintagmático, de vários componentes

característicos do enunciado na linguagem e nas contiguidades temporal e espacial, como no

cinema.

A cadeia fílmica, tal como as outras, é contiguidade (antes de qualquer metonímia eventual), não é outra coisa senão uma longa sucessão de contiguidade: é o “efeito montagem” no seu sentido mais largo, quer se processe por colagem, por movimento de câmera ou por evoluções do objeto filmado, quer se estabeleça na consecução (de plano a plano, de sequência a sequência) ou na simultaneidade, entre motivos do mesmo plano, etc. O conjunto destas justaposições (= contiguidades posicionais) faz o filme no seu conteúdo mais literal, na sua matéria textual: qualquer filme (qualquer discurso) é uma vasta extensão sintagmática (METZ, 1980, p. 186).

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A similaridade posicional é constitutiva do paradigmático, na qual, cada palavra,

imagem, som etc. adquire sentido em relação às outras que podiam estar no seu lugar, este

princípio, inclusive, não tem nada de metafórico. Portanto, metáfora e metonímia se realizam

tanto na contiguidade como na similaridade e percebidas ou sentidas entre os referentes das

duas unidades, ou seja, nas similaridades e contiguidades semânticas.

Já a similaridade referencial (semântica) pode derivar da similaridade discursiva

(posicional), embora não se misture a ela. Portanto, a metáfora no cinema não é paradigma,

embora possa o criar. Em relação à contiguidade, da metonímia e do sintagma, ambos, podem

estar na ordem do posicional e do semântico, no entanto, a interação entre eles, em sentido

contrário, pode fazer com que a contiguidade fílmica crie a impressão regressiva de uma

contiguidade antecedente, resultando na ilusão referencial (ficção) e a impressão de realidade.

Resumindo, o sintagma produz a metonímia “entre os referentes das imagens

combinadas pela montagem”, essa ilusão referencial conduz a uma distinção conceitual entre

a contiguidade posicional do sintagma e a contiguidade semântica da metonímia. A confusão

entre os conceitos discursivos (paradigma e sintagma) e referenciais (metáfora e metonímia) é

que uma coisa provoca a outra.

“As associações entre referentes, quer se processem por similaridade ou por

contiguidade, podem ser sempre enunciadas, e uma vez que o são tornam-se por sua vez o

princípio e o motor de diversos encadeamentos discursivos”. Desta forma, o discurso

atravessa as duas categorias de similaridade e contiguidade, “as que lhe são próprias e o

constituem em objeto formal (paradigmas e sintagmas)” e as que se inserem entre o objeto e o

seu outro (metáforas e metonímias) (METZ, 1980, p. 188).

No enunciado “Este homem é um urso”, por exemplo, têm-se o eixo paradigmático

(dois substantivos: homem e urso) e sintagmático (sujeito, verbo de ligação e predicado),

desta forma, verifica-se um conjunto de similaridades e contiguidades posicionais: 1º)

contiguidade: conjunto de códigos da língua portuguesa (sintagma), 2º) similaridade: a partir

da palavra ‘urso’ que é uma metáfora (referente), mas que apesar disso se encontra no

discurso e 3º) similaridade: entre o animal ‘urso’ e um homem ‘grosseiro’.

Todavia, a semelhança, apesar de forjada pela língua, incide (em espírito) sobre os objetos. É precisamente por isso que ela tende de novo a depositar-se no discurso, noutros discursos, e assim sucessivamente: é o círculo do discurso e da referência, sendo cada um o imaginário do outro – o outro do outro [...] a ordem do discurso e a ordem do referente apresentam cada uma, de maneira bastante nítida, as suas similaridades e contiguidades (METZ, 1980, p. 189).

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Metz, ao contrário de Jakobson, prefere o termo referencial a semântico, ele entende

que semântico é um termo mais genérico e refere-se a tudo que é sentido, podendo aplicar

assim aos paradigmas e sintagmas, pois ambos produzem sentido. Entretanto, o que difere os

dois de metáfora e metonímia é a oposição às leis internas do discurso quanto ao efeito de real

ou imaginário de referência a uma exterioridade mais que oposição, entre a ordem das

posições e significações.

A comparabilidade substitui a similaridade em detrimento à contiguidade. Assim,

convém tanto à similitude, do lado referencial como ao contraste do lado discursivo,

paradigma, “ao núcleo comum como ao elemento diferencial”. Desta forma, em termos

cinematográficos, elementos fílmicos, há quatro tipos de encadeamento, que segundo Metz, se

dão assim:

1) Comparabilidade referencial + contiguidade discursiva – a metáfora é realizada no

sintagma, quando dois elementos em série, por exemplo, duas imagens, dois

motivos da mesma imagem, duas sequências inteiras, uma imagem e um som, um

ruído e uma palavra etc., associam-se por semelhança ou contraste (ou quando

criado através de sua associação).

2) Comparabilidade referencial + comparabilidade discursiva – a metáfora é

realizada no paradigma, associam-se, também, por semelhança ou contraste (ou

quando criado através de sua associação), mas por uma escolha, e nessa série um

substitui o outro ao mesmo tempo que o invoca, sendo que apenas um figura na

série, quando o termo metaforizante já não conduz ao metaforizado, afastando-o.

3) Contiguidade referencial + comparabilidade discursiva – metonímia realizada em

paradigma. Um elemento afasta o outro, mas associam-se em decorrência de sua

contiguidade real ou diegética e não por causa de sua semelhança ou contraste, a

não ser que o paradigma crie ou reforce esta impressão de contiguidade.

4) Contiguidade referencial + contiguidade discursiva – metonímia realizada em

sintagma, e associam-se em decorrência de sua contiguidade real ou diegética e

não por causa de sua semelhança ou contraste, a não ser que o paradigma crie ou

reforce esta impressão de contiguidade, mas eles figuram no filme ou num

segmento dele e nele se combinam.

Jakobson (apud METZ, 1980) faz uma referência ao cinema na concepção

metafórico-metonímico mencionando a figura da sinédoque ao grande plano e compara as

montagens metonímicas com a sobreimpressão e o encadeado atribuindo-lhes ao princípio

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metafórico. Já Metz entende que no discursivo a sobreimpressão e o encadeado são

sintagmáticas, sintagma simultâneo (sobreimpressão) e sintagma consecutivo (encadeado). “A

relação é metafórica se uma das duas imagens é extradiegética”, se algo se coloca fora,

exterior à história, “metonímica se se trata de dois aspectos de uma mesma ação (ou de um

mesmo espaço, etc.) e dupla se um desses aspectos se assemelha ao outro”, a sobreimpressão

e o encadeado não podem ser atribuídos ao metafórico, pois nem todos tem valor comparativo

(METZ, 1980, p. 196).

O pensamento de Jakobson variou um pouco, e agora ele coloca a ‘montagem

metonímica’ como não sendo nem metafórica e nem metonímica, mas sintagmática. Para ele o

cinema ‘transforma o objeto em signo’ e o filme mobiliza ‘fragmentos do mundo’ fazendo

disso um discurso através da montagem e operando sob dois princípios associativos, o da

metáfora e o da metonímia, na qual “a montagem metafórica (por semelhança ou por

contraste) é mais rara” e a montagem metonímica é linear com contiguidades referenciais de

tempo e espaço (METZ, 1980, p. 196).

Na montagem metonímica predomina o realismo, sobretudo, nos filmes americanos,

soviéticos e documentários, no qual o autor desliza do eixo discursivo para o eixo referencial.

Mas, uma das maneiras mais importantes para transformar o objeto em signo surge a partir do

princípio da sinédoque, é o grande plano, que objetiva o uso do todo pela parte, possibilitando

ao cineasta escolher o melhor modo de representação. “O cinema sonoro e falado oferece

vários eixos sinedóquicos para cada dado: pode-se ouvi-lo sem o mostrar, ou o inverso, etc.”

A sinédoque tem aqui um sentido amplo: “no limite, é a própria escolha dos materiais

textuais” (METZ, 1980, p. 197).

No filme a metonímia pura põe em contato imagens e sons em relação com o tempo,

o lugar, o espaço etc. em proximidade à diegese, caso o filme o tenha, mas principalmente

pela experiência social que antecede ao filme. Já a metáfora pura, sem nenhuma relação

metonímica, é a imagem ou o som extradiegético, algo bastante raro, inclusive nas produções

de vanguarda.

A metonímia expressa um princípio sintagmático cujo encadeamento das ideais e das

coisas no discurso se unem à experiência mental. Por isso, existe uma dupla contiguidade, na

enunciação e no espírito, na qual elementos podem coexistir sem que se organize uma

configuração particular, “como nessas sequências fílmicas que se contentam em nos mostrar

sucessivamente certas fases sucessivas de um processo qualquer. A metonímia pressupõe a

contiguidade, mas nem toda a contiguidade é metonímica” (METZ, 1980, p. 201).

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As metonímias não são encontradas a cada passo do filme, elas podem ocorrer numa

parte considerável, assim como pode não chegar até o fim. As imagens, por exemplo, podem

se tornar análogas ao personagem por meio de uma associação. No entanto, as metáforas

fílmicas podem se apoiar tanto nas metonímias como nas sinédoques através de um jogo da

montagem e da composição, na qual algum elemento do filme pode se tornar o símbolo de

outro (= metonímia), onde o significante do filme destaca um motivo visual ou sonoro, ou um

conjunto fílmico mais amplo (= sinédoque), ambos pertencem ao referencial do filme.

Dificilmente a metáfora faz parte da metonímia, pois a metáfora não cria a

metonímia e sim o sintagma que aproxima as partes do discurso. A metonímia é mais

frequente que a metáfora que acaba causando “uma idêntica dissimetria – não semelhante: é a

mesma – entre a condensação e o deslocamento no campo analítico” na qual o deslocamento e

a metonímia favorecem a censura (LACAN apud METZ, 1980) e justifica a sua desenvoltura.

A dissimetria da figura explica no cinema, “as aparentes irregularidades distribucionais que

marcam as diversas combinações do processo metafórico e do processo metonímico ao nível

de uma figura única” (METZ, 1980, p. 205, 206).

Paradoxo da dissimetria: o poder de evidência característico da contiguidade intervém simultaneamente na ‘probabilidade’ de uma base metonímica para a metafórica (= raridade das metáforas puras) e na probabilidade de uma metaforização das metonímias (= raridade das metonímias puras) (METZ, 1980, p. 207).

No cinema sempre quando uma música ou algo, por exemplo, acompanha ou

substitui um personagem importante e irrelevante que apresenta certas particularidades, a

metonímia realiza-se em sintagma. Desta forma, a “metonímia tanto mais pura quanto o traço

escolhido está desprovido de afinidade intrínseca com o herói, tornando-se ‘característico’

apenas devido à constância em escoltá-lo” (METZ, 1980, p. 208).

Sendo assim, a ideia de substituição pela metáfora gera uma confusão quanto ao eixo

discursivo (paradigma/sintagma), na qual a sentença se verifica efetivamente e ao eixo

referencial cuja definição não se realiza igualmente. Do mesmo modo, uma montagem

alternada de cinema (outro tipo de sintagma) se destruiria se se tivesse que escolher uma entre

duas séries de imagens pela relação de seleção. O mesmo não aconteceria com o metafórico e

o metonímico já que eles “não se definem diretamente em relação à cadeia do discurso, mas

em relação a um horizonte referencial, real ou imaginário” (METZ, 1980, p. 212).

Para Metz, a linguagem cinematográfica diferente da língua que comporta palavras,

não possui léxico, pode até possuir uma gramática, mas não um vocabulário. Desta forma, no

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imaginário atual, mesmo que não consciente a metáfora e a metonímia estão unidas à

representação da palavra, daí a dificuldade em manipulá-las no cinema, já que se trata de uma

linguagem sem palavras.

Em retórica, é inconcebível a metáfora não tropo, aquela que transfere, muda ou

substitui o sentido real da palavra para outro, entretanto no cinema a metáfora (ou

condensação freudiana) é, na maioria das vezes, metáforas não tropos e é aqui que reside o

problema da textualidade. A retórica acabou se tornando uma teoria geral do discurso e um

catálogo das figuras de palavras (= tropos).

Já o texto fotográfico ou fílmico não conduz elementos que combinam com a palavra

ou figuras de retórica, definem-se quase todas em relação à palavra: “quer diretamente (=

tropos), quer por aliança de várias palavras, quer negativamente (quando a definição exige

que a operação não incida sobre a palavra)”. Se a metáfora e a metonímia combinar com a

oposição do paradigma e sintagma, uma figura fílmica pode se caracterizar pelo metafórico

(similaridade referencial) e sintagmático (contiguidade discursiva) (METZ, 1980, p. 221).

A concepção metaforometonímica apresenta, além disso, a vantagem, que evidentemente a retórica é incapaz de oferecer, de ter sido desde o início elaborado na perspectiva (simplesmente virtual, mas que se pode tentar atualizar) de uma semiologia geral que ultrapassa a língua e pode englobar as imagens, etc. E também apresenta a vantagem de autorizar uma articulação (mesmo que menos direta do que habitualmente se pensa) com o trabalho psicanalítico e as noções de condensação e deslocamento: operação que seria ainda mais difícil (e sem dúvida impossível) se se partisse da retórica (METZ, 1980, p. 223, 224).

A palavra contribui para cobrir o parentesco entre a metáfora e a condensação e a

metonímia e o deslocamento e vem das imagens e das palavras escritas. Para Freud, os

deslocamentos e as condensações são transferências psíquicas, movimentos e trajetos próprios

do inconsciente que só conhecem as representações das coisas e não as representações das

palavras e Lacan considera que o inconsciente obedece aos processos linguísticos.

Para Freud, o isolamento é um mecanismo de defesa que objetiva cortar os laços

entre representação, em impedir as associações, em separar uma coisa de outra, e pertence à

obsessão (mas não necessariamente neurótica). Na obsessão dão-se as representações

desejáveis (ansiosas), ou substitutos acessíveis à consciência, mas não se unem aos sintomas

reparadores (ritos) e nem à angústia. Desta forma, o recalque recai mais sobre as

representações proibidas que sobre a associação com as condutas manifestas (LACAN apud

METZ, 1980).

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O isolamento faz parte da defesa, além do recalque, embora em alguns aspectos seja

uma nuance do mesmo ele também é importante na vida, principalmente quando se perde algo

desejado ou para a concentração intelectual numa tarefa. Então, a classificação sempre foi

importante, inclusive para os retóricos, seja em pequeno ou grande número de categorias,

isolamento desmultiplicado, e só a obsessão é capaz de arrumar. As figuras de palavras,

mudam, substituem, transpõem o sentido real da palavra (= tropos) e suas ligações com o

movimento figural da frase e incita o não reconhecimento da condensação e do deslocamento.

A leitura que Lacan faz de Freud refere-se à impressão de haver uma barreira, um

buraco que separa o inconsciente do consciente, o processo primário do processo secundário

(e no fim a negação da censura). Para Lacan (apud METZ, 1980), “o inconsciente está

estruturado como uma linguagem, aproxima a condensação e o deslocamento da metáfora e

da metonímia (linguísticas)” (METZ, 1980, p. 234).

Já para Freud (apud METZ, 1980), condensação e deslocamento são operações

irracionais não discursivas e que são próprias do inconsciente, instintos impulsionais (Id) que

evacuam como uma energia livre, não havendo um desligamento e estabelecendo, com isso,

uma identidade de percepção incapaz de pronunciar um discurso, apenas alterando-o,

deformando-o e o tornando irreconhecível.

Sendo assim, a condensação e o deslocamento, tal como o conjunto das operações

primárias e longe de serem colocadas na base do simbólico “seriam os verdadeiros contrários

de todo o pensamento: verdadeiras operações de antipensamento”. Lacan, “convida a procurar

nos movimentos do inconsciente diversas orientações de tipo discursivo, e, inversamente, a

encontrar a marca do inconsciente em todos os discursos conscientes”. Desta forma, nenhuma

ação fica fora do inconsciente (METZ, 1980, p. 235).

Se regularmente a censura fosse barreira, uma concepção não dialética, tanto o

processo primário como o processo secundário estariam afastados, divididos como a

semiologia e a psicanálise ou o texto do filme e os seus movimentos de figuração. No caso do

filme, ele combina em si o discursivo e o figurado, assim como “‘representações de palavras’

e ‘representações de coisas’, matéria diretamente perceptiva e ordenações relacionais”. Desta

forma, trata-se de uma questão complexa, onde há ligações das noções de condensação e

deslocamento e de metáfora e metonímia. (METZ, 1980, p. 236).

Freud se interessava mais pelos fenômenos, sobretudo pelos deslizamentos pro-

gressivos (condensação e deslocamento) do que pelas denominações, daí as diferenças de

vocábulos para Lacan, que entendeu que faltou à Freud uma referência linguística. À luz de

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Freud, as relações energéticas (carga e descarga) correspondem aos percursos significa-

cionais, aos trajetos do pensamento. Os itinerários de descarga evoca o impulsionamento, mas

a descarga se abre, também, para cadeias semânticas.

Freud considerou constantemente que o pensamento, mesmo que secun-darizado, não era mais do que uma outra forma, mais ou menos ‘ligada’ segundo os casos, do saciamento alucinatório do desejo. E inversamente, um dos pontos que ele repetiu com mais vontade e que ele assentou mais cedo, foi o de que o ‘processo de pensamento’ (do pensamento corrente, vigília) é um exemplo particularmente típico do que é necessário entender por ‘energia ligada’: eu insisto em ‘energia’ (= o pensamento é energia), a fim de tornar sensível esta espécie de sobreposição, existente em qualquer texto freudiano, entre a dimensão da força e a da significação: sobreposição um pouco incerta nas palavras, permanente e decidida no gesto [...] O dinâmico e o simbólico, a impulsão e o sentido estão muito longe de se excluírem (no fundo) são idênticas (METZ, 1980, p. 238, 239).

Embora já tenha mencionado amiúde os termos condensação e deslocamento na

presente dissertação, há que se voltar novamente aos conceitos, desta vez, para melhor

fundamentá-los. Por uma questão didática as duas definições serão apresentadas

separadamente, no entanto, a condensação não deve ser separada do deslocamento e a

recíproca é verdadeira e aqui será feita de uma maneira provisória.

Nos escritos de Freud, alguns elementos na definição de condensação são confusos,

segundo Metz, quanto sua relação com a metáfora e a construção de linguagem. Trata-se de

uma operação primária, uma busca pela convergência que não contribui para criar ou formar a

significação de um sonho, mas deformá-lo por meio de uma invasão de princípios sem

equivalentes do discurso da vigília. “Para compreender o sonho não será preciso descondensá-

lo: desenlaçar aquilo que a condensação enlaçou” (METZ, 1980, p. 240).

A condensação é diferente da dimensão, da extensão – quase de “lugar” (LYOTARD

apud METZ, 1980) – “entre o ‘conteúdo do sonho’ (manifesto) e os ‘pensamentos do sonho’

(latentes)”. No entanto, no caso do conteúdo do sonho parece que existe um estreitamento de

lugar frente ao espaço do pensamento do sonho, ou seja, uma retrabilidade que também é

característico da condensação lhe conferindo poderes semânticos que o ajuda a explicar e o

definir (METZ, 1980, p. 240).

Assim como outros processos primários a condensação serve para interpretar os

sonhos (FREUD). Ao expor as ideias de Lacan sobre transposição, Metz nos diz que a

transposição é uma passagem de um texto para outro (termo freudiano) do latente para o

manifesto. É próprio da condensação a redução da superfície, como causa ou consequência,

de associações específicas cuja vigília manifesta, explica e coloca lado a lado aumentando de

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volume. Na energia primária da condensação há uma base simbólica que leva a dizer as coisas

mais depressa por itinerários de descarga.

Partindo da vigília, ou seja, do devaneio, do fantasma e até do filme e não do sonho,

há uma possibilidade de contração do texto, um resumo que não é onírico, mas que é uma

transposição de significantes produzindo um texto curto a partir de um texto longo. Uma

metáfora poética é uma espécie de resumo e para Lacan uma condensação. Freud associa a

sobredeterminação como condensação (manifesto) porque só algo sobredeterminado conduz a

representações latentes. Se a condensação prolongasse só uma série de associações, não seria

condensação.

Desta forma, há um grau de sobredeterminação como critério para uma secun-

darização, na qual a condensação onírica atualiza ao redor do elemento manifesto várias

valências (conjunto de argumentos na construção de um sintagma) que estão presentes

também na consciência que a partir de articulações formam o conteúdo onírico. A

multiplicidade das palavras na linguística procede da mesma maneira, sendo assim, toda

palavra é uma condensação, de múltiplos sentidos.

Os linguistas, por exemplo, atribuem à multiplicidade das palavras, a polissemia, ao

fato de que existem mais pensamentos possíveis do que palavras acessíveis. Já para Lacan, a

palavra não é signo, mas um entrelaçamento de significação. Portanto, “a palavra surge como

um depósito secundarizado – é o momento do código – constantemente situado entre duas

atrações primárias”, uma que antecede a história da língua e outra que pode surgir a qualquer

momento, fazendo mover-se com relação ao primário e ao secundário num dinamismo

dialético de interações complexas e constantes.

A condensação está ligada desde o início ao sono o que de certa forma limita sua

área de ação e a impressão de uma separação entre o primário (noturno/sonho) e o secundário

(vigília/devaneio/fantasma/filme etc.). Freud, portanto, encontra a condensação nos lapsos e

atos falhos e concomitantemente como uma espécie de figura, como resultado final e de

movimento como um princípio produtivo podendo ser percebido em diversos campos

semiológicos.

Matriz de confluência semântica suscetível de fazer “jorrar” na consciência (no texto manifesto), na interseção de vários trajetos que se revelam distintos desde que acompanhamos cada um deles suficiente, qualquer espécie de segmento-significante no qual tudo vem reunir-se: palavra, frase, imagem fílmica, imagem onírica, figura de retórica, etc. Sendo um fenômeno energético devido ao fato do jorro (da ‘adição’), a condensação é também um grande princípio simbólico: curto-circuito (faísca), mas igualmente

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circuito curto (sendo por isso ‘primário’, mesmo nas suas manifestações secundarizadas), uma vez que a sobreposição nunca é explícita e ostenta: assim curvatura específica do percurso significante. Acumulação de intensidades para quem se interessa pela dinâmica do psiquismo; configuração significante aos olhos de uma semiologia atenta ao sentido como operação (METZ, 1980, p. 247).

Para Metz, “Lacan nunca disse que toda a condensação ‘era’ uma metáfora (mesmo

no sentido de Jakobson), ou que toda a metáfora era uma condensação”. Nos diferentes textos

haverá, com certeza, confluências semânticas principalmente quando seus pontos de contatos

(nós) estão sobre as contiguidades mais do que sobre as similaridades, tem-se, então, as

condensações-metonímias, possíveis também no cinema.

Quando as imagens fundem-se e são recobertas completamente elas trazem uma ideia

de ausência tanto para o personagem como para o espectador a partir de uma “identidade do

pensamento”, no entanto, estão presentes no ecrã sugerindo desta forma uma “identidade de

percepção” e uma satisfação do desejo. Esse fundido - condensação-metonímia -, no sentido

de Freud, é que constitui o processo cinematográfico. Há vários casos em que a condensação

não é metáfora, ou não necessariamente. Os textos também combinam, à sua maneira,

matrizes produtivas.

Um deslocamento puro com a metonímia pura pode deixar dúvidas quanto às

conexões aparentes. No entanto, na convergência dos deslocamentos e na sobredeterminação

configura-se a condensação, as coisas começam a se sobrepor criando novas relações, como

acontece no metafórico. Não obstante, o processo condensatório se origina em metáforas no

sentido de Jakobson, porém, ele não tem a necessidade de resultar nisso para trazer em si a

metaforicidade.

A condensação e o deslocamento não são essencialmente manifestações do processo

primário, a não ser que ele esteja em oposição ao trabalho do sonho, ou seja, a passagem do

latente ao manifesto, transformar o pensamento latente de conteúdo inconsciente em conteúdo

manifesto, de maneira disfarçada para o consciente do sonhador. O trabalho do sonho e o

processo primário não são sinônimos até porque ele comporta a elaboração secundária: “o

trabalho do sonho pressupõe as condições econômicas do sono, ao passo que o processo

primário é ativo em permanência, e ainda por cima durante o dia” (METZ, 1980, p. 252).

O conteúdo do sonho não tem nada de onírico. O coeficiente propriamente onírico é o trabalho do sonho, que não chega a criar um significante, mas a destruí-lo ou estropiá-lo. O papel da censura, no sonho, é sobretudo negativo (é mesmo o que evoca a palavra): baralha tudo para que não nos reconheçamos nele. Certa sequência do sonho manifesto parecerá absurda por resultar de uma condensação, mas logo que a interpretação a tiver

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suficientemente decomposto nas suas constituintes (= descondensação), cada uma das cadeias de pensamento será clara e fácil de compreender, fácil de recolocar na biografia do sonhador (METZ, 1980, p. 254, 255).

A condensação e o deslocamento são princípios de ininteligibilidade, pois ambos

derivam da censura no seu estado bruto de supressão, mutilação, manifestando sua virtude

deformadora e desfigurante, no entanto “não são acidentes tardios ou laterais, fatores de

desvio, mas sim itinerários imanentes e definitórios: não deformações, mas formações (daí a

noção freudiana de “formação do inconsciente”)” (METZ, 1980, p. 256).

A censura entre o inconsciente e o pré-consciente não é, exatamente, um entrave para

os processos primário e secundário, pois se o fosse, não haveria uma interação e cada um

deles estaria separado. Sendo assim, ter-se-ia de um lado, o processo primário (condensação e

deslocamento) e de outro lado, o processo secundário (metáfora e metonímia), portanto, uma

semiologia de inspiração psicanalítica (primário) e outra de inspiração linguística

(secundário).

A censura é como uma barreira, mas que constantemente é revirada que como no

psiquismo deixa-se aparecer frequentemente, de operação consciente em operação consciente

não deixando lacunas. Entretanto, às vezes, prevê soluções de continuidade que

recorrentemente coloca a censura como uma consciência do inconsciente, desta forma, é

preciso que haja um ajuste de passagens não censuradas para lhe dar uma coerência lógica,

isso é o que define, também, a elaboração secundária do sonho e as racionalizações.

A censura não é linear, sendo assim não há trajeto associativo que fuja à sua ação, e

nem ação que acabe com nenhum trajeto associativo. Ela está inserida na topologia das

refrações, portanto ela é separação, modificação cujo resultado é o que se sabe dela. “Se se

considera a conduta manifesta, chamar-se-á censura àquilo que a diferencia do (e a une ao)

substrato que se tem de reestabelecer a fim de compreendê-la” (METZ, 1980, p. 264).

Por outro lado, o inconsciente é carregado de imagens de desejo, habitação do medo,

visões evocativas, etc. O inconsciente está entre dois conscientes e não aparece, senão, pelo

consciente. O que o une também o desune, como no paradigma que é semelhante à metáfora.

A censura obedece aos mesmos princípios e opera também nos dois sentidos ao mesmo

tempo, “é claro que há a ‘interpretação’, que vai do consciente ao inconsciente, mas qualquer

interpretação é também uma reconstrução que se esforça por nos ‘mostrar’ a passagem do

inconsciente para o consciente” como no sonho, condensação (METZ, 1980, p. 265).

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Os contornos da censura, condensação e deslocamento, realizam uma dialética de

duas operações confundidas e contrárias, cujo coeficiente é a transposição que é mais

importante na condensação que no deslocamento. Outro coeficiente é do ladeamento,

penetração ligada à confluência energética, uma fuga do lugar, uma não travessia que neste

caso é mais importante ao deslocamento que à condensação.

Para Lacan, a metáfora como sobreimposição dos significantes, tende um pouco mais

ao simbólico, a partir de uma revelação, portanto se relaciona a condensação, ao passo que a

metonímia, transferência de significação tende mais ao imaginário, a partir do disfarce e

relaciona assim ao deslocamento, embora ambos sejam essencialmente simbólicos, não há

revelação sem disfarce e nem disfarce que não se revele.

O primário também é uma dialética da secundarização e o seu contrário, é o seu

limite e o orgulho de ser ao mesmo tempo sua obra e sua criação, além do nome que a

secundarização dá aos seus buracos, lacunas. Já o secundário carrega em si a ruptura e a

demência (desligamento para Freud) prevalecendo sobre qualquer encadeamento.

“Contraditoriamente, as nossas operações de pensamento mais razoáveis alimentam-se

permanentemente numa fonte primária mais ou menos longínqua” (METZ, 1980, p. 269).

Tanto o primário como o secundário não existem em estado puro, eles tendem a

exceder a partir do compromisso dos processos psíquicos, do consciente e do inconsciente,

que levam a hipostasiar, ou seja, atribuir existência substancial ou real ao que é ficção ou

abstração às figuras míticas e reais, sendo assim, não existe primário ou secundário, mas

secundarizações em diferentes graus e modalidades. Desta forma, encerra-se assim o assunto

condensação voltando-se, agora, à questão do deslocamento.

O deslocamento é o princípio geral da operação psíquica, expressão energética e

econômica do pensamento analítico que tem disposição para transitar de uma coisa à outra,

seja uma ideia, uma imagem, um ato etc., e que está recoberto, obscurecido pelo próprio

deslocamento. O deslocamento não é somente um deslizamento de sentido entre elementos

oníricos, mas um descompasso, uma discrepância de centragem, de distribuição de intensi-

dades, que é característico da passagem do pensamento latente ao conteúdo manifesto.

O processo primário e o processo secundário são concebidos ambos como deslocamentos da energia (energia neurônica, no texto), o que não é estranho ao seu próprio nome de processo. A diferença está em que o processo secundário desloca apenas quantidades de carga restritas e controladas (necessárias, contudo para passar de uma ideia à seguinte em qualquer discurso), ao passo que o processo primário, pelo menos fundamentalmente,

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desloca a cada um dos seus passos a totalidade da energia disponível, daí a total transitividade dos deslocamentos primários (METZ, 1980, p. 275).

A virtude do deslocamento está no seu favorecimento à condensação que implica o

deslocamento, ao passo que o contrário não ocorre. O deslocamento é uma operação mais

generalizada e permanente que a condensação que exige sempre pelo menos dois desloca-

mentos, “ela quer que uma representação se instale na confluência de várias outras e é,

portanto necessário que estas, de tal maneira, de ‘desloquem’ todas em direção daquela”

(METZ, 1980, p. 276).

A condensação é um conjunto orientado de deslocamentos, por isso é possível

chamá-lo de condensação, principalmente pela convergência dos deslocamentos, mais do que

os deslocamentos em si. Concomitantemente a isso, existe uma disposição em dizer ‘deslo-

camento’, mesmo quando este não está acompanhado por um reagrupamento condensatório,

ou interinamente, ou uma convergência com outros numa relação singular em que cada uma

das vias é irreversível, num duplo sentido único.

No deslocamento há uma substituição que separa um objeto do outro, no entanto,

eles tendem a assimilá-los, a identificá-los e a identificação para Freud é de certa forma, uma

condensação (duplo sentido único). O deslocamento recusa esta identificação tanto quanto o

elege e neste jogo de recusa e fuga o impulsiona para um deslocamento mantendo uma

distância da verdade do inconsciente através de substitutos.

Quando se trata de deslocamento, a possibilidade condensatória que subsiste é

recusada para a identificação e o deslocamento aparece como o transporte desta recusa.

“Quando se invoca a condensação, é porque a confluência identificatória dos trajetos é mais

importante do que esses trajetos” (METZ, 1980, p. 277).

A condensação se faz presente no sonho e no texto a partir de cadeias de

pensamentos e um único elemento manifesto, mas numa pluralidade de sentidos, nenhuma

frase ou imagem diz tudo o que nela está contida. Qualquer enunciação se parece com uma

centelha, um breve instante verdadeiramente produtivo dado suas diversas impressões

distintas. Desta forma, a condensação é um conjunto amplo de deslocamentos.

Assim, o deslocamento e a condensação (FREUD) não são caracteres e muito menos

processos de significação. Eles são as próprias significações, na qual o deslocamento é uma

fuga diante do sentido e a condensação é como se fosse o sentido brevemente reencontrado na

sua horizontalidade e verticalidade. A condensação traz em si a metaforicidade, de um lado

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ela conduz a metáfora (JAKOBSON) conservando-o e conduz a metonímia, daí a ideia de

condensação-metonímica.

O deslocamento pode ser observado na metonímia (sobre os quatro tipos de

encadeamento, ver págs. 91 e 92), porém também faz parte da metáfora. Estas defasagens em

nada surpreendem visto que a metáfora e a metonímia estão do nível consciente (manifesto)

“e pela relação lógica de dois termos (relação estática) mais do que pelo movimento que os

une” (METZ, 1980, p. 278, 279).

No cinema o deslocamento metafórico acontece quando o texto fílmico, ao avançar

em um ato de passagem, um encadeamento, desloca-se de um lado para outro como um

movimento de translação e não como uma convergência ou encontro potencial, e que ambos

se convocam por semelhança ou contraste, seja porque não estabelecem qualquer conti-

guidade referencial aceitável ou por redução a um momento inicial. Tem-se então uma relação

híbrida, uma metáfora entre os termos e os deslocamentos que leva de um para outro.

A montagem também se dá por deslocamentos (FREUD), no entanto, as associações

metafóricas deste gênero se dão pela condensação a partir da metáfora conforme a

sobreposição em profundidade promover a impulsão mais ou menos inconsciente.

“Evidentemente que, a fim de ‘salvar’ a correspondência do deslocamento e da metonímia ao

nível das ocorrências, poderíamos ser tentados a procurar mostrar que tais metáforas são em

realidade interpretáveis como metonímias” (METZ, 1980, p. 280).

Outra questão que deve ser levantada, para melhor compreender esta dissertação,

refere-se à questão do texto, ou melhor, dos entrecruzamentos das singularidades textuais.

Atualmente, a figura fílmica pode ser relacionada a quatro eixos que são independentes uns

dos outros: “ela é mais ou menos secundarizada; ela é mais metafórica, ou menos metonímica,

ou decididamente mista; ela manifesta sobretudo a condensação, sobretudo o deslocamento,

ou combina intimamente as duas operações; ela é efetuada em sintagma ou em paradigma”

(METZ, 1980, p. 285).

É possível perceber, então, que se trata de um encadeamento, característico também

do filme como uma forma de transição, pois a partir dele verifica-se o movimento do texto

para frente. Desta forma, tem-se a condensação e o deslocamento, a priori, o deslocamento

dado pelo encadeado de forma completa e longamente mais até que as imagens, neste trajeto

ampliado já se tem um valor metalinguístico e no caso de uma dúvida sobre uma separação

textual, o próprio filme se encarregada de sua tessitura, de dar um significado.

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Entretanto, tem-se também o processo condensatório na qual um está ao lado do

outro e em copresença, mesmo que fugazmente as duas imagens se misturam no ecrã, trata-se,

portanto, do principio da condensação. Porém, para Metz, o encadeado se apresenta no

condensatório, mesmo que de início essa figura seja agonizante, as duas imagens vão, de

costas, ao encontro uma da outra. Desta forma, se a condensação se apresenta como um

esboço é porque ela vai se apagando progressivamente.

O encadeado, de início, possui características do secundário e se inscreve entre dois

marcos manifestos, onde as duas imagens são tomadas ao mesmo momento, sem interferência

e legíveis, quando inicia o encadeado para a primeira imagem já é o final para a segunda

imagem. “Outro aspecto secundário: o fundido é frequentemente muito codificado, nomea-

damente na ‘pontuação fílmica’, e o código impõe arbitrariamente à atenção do espectador um

significado fixo”. Enquanto que no processo primário não existe somente os marcos do

percurso, mas o próprio percurso (METZ, 1980, p. 286).

As imagens até podem ser fluentes, mas os percursos que elas fazem não, então

existem dois caminhos, um fluente exposto pelo código e o outro ou outros, portanto, em

nome do deslocamento, o fundido combina diferentes movimentos de secundarização. Aquele

que invoca a normalização do fundido e sua incontestabilidade o faz na tentativa de adaptar o

discurso de defesa.

O encadeado é um marcador sintagmático, e desta feita uniformemente, sem ‘mistura’. Fabrica sintagmas (está lá para isso), até fabrica dois de uma vez: um sintagma simultâneo, no espaço (é uma variante da sobreimpressão), e um sintagma consecutivo, no tempo, visto que a sobreimpressão não se mantém, acaba por se resolver numa sucessão, a imagem 2 vem ‘depois’ da imagem 1 (daí os seus números). A definição do fundido – processo entre outros para ligar duas imagens presentes no filme – exclui a dimensão paradigmática. O fundido entra em paradigma com outras ‘transições’ (corte franco, etc.), mas a sua operação própria não é paradigmática (METZ, 1980, p. 287).

A metáfora e a metonímia podem agir juntas dependendo da relação entre as imagens

inicial e final e a maneira como elas se combinam ou não como algo conhecido do cineasta e

do espectador, na qual “o movimento em frente é metonímico” e se for por semelhança ou

contraste é metafórico. Assim o encadeado revela um considerável poder metonimizante

(METZ, 1980, p. 288).

A metonímia incorpora dois objetos a partir de uma conexão de contiguidade

referencial, no entanto a transitividade do fundido como a contiguidade textual faz com que o

espectador não acredite que os dois elementos sejam contíguos em qualquer referente, não

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obstante há uma confusão entre montagem e metonímia. O fundido até dá uma feição

metonímica para as metáforas puras como se fosse uma lente de aumento para a metonímia

linguística, que separa entre as contiguidades uma mais contígua, pelo poder da metonímia na

própria realidade.

Desta forma, o fundido é mais semelhante, uma vez que seu itinerário é mostrado, ao

passo que no cinema o número de contiguidades é maior e mais arbitrária. É por isso que o

“encadeado mostra que qualquer fragmento do tecido fílmico, seja ele o mais pequeno e

simples, exige vários movimentos de tecedura. A tentação a evitar é a de pretender enfiar

imediatamente o fundido num compartimento” (METZ, 1980, p. 289).

A condensação e o deslocamento do significante e sua relação com a metonímia e a

metáfora serviram de modelo para Freud quando ele fala de luto e o protótipo de melancolia,

afeto, histeria, embora nem todo afeto seja histérico e nem todo luto seja melancólico. No

entanto, essas afinidades estão limitadas em uma zona de transbordamento, na qual a

condensação e o deslocamento não têm corresponde com a metáfora ou a metonímia como,

por exemplo, na intervenção de ambos no significante afetando sua materialidade.

Cada figura de sentido é primeiro um significante, já que o significante e as suas

disposições são a única materialidade que é oferecida. O que acontece é que em alguns casos

a condensação e o deslocamento os afetam diretamente. A condensação não se satisfaz em

atuar sobre o significante atacando sua materialidade, esse é o resultado manifesto das

formações deste tipo que é incompreensível.

O deslocamento também se reveste desse aspecto e não altera a percepção do

significante em relação às unidades do significante e do significado, embora o modifique, a

mudança não é assimilada pelo código que o faz, inclusive, evoluir, mas o submerge a uma

parte da ação. Desta forma, o deslocamento deixa de ser o princípio da língua ou do discurso e

se separa do significante, mesmo que este não seja atingido fisicamente. “Quando a

condensação e o deslocamento incidem diretamente sobre o significante, começam a diferir da

metáfora e da metonímia no seu princípio” (METZ, 1980, p. 295).

O encaixamento da condensação se parece com a confluência semântica que marca a

metáfora e o desloca evocando as transferências próprias da metonímia numa operação em

conjunto da condensação e do deslocamento conservando a metaforometonímica com isso

acaba se afastando das figuras retóricas num outro aspecto que é a da alteração do significante

da metáfora e da metonímia, no entanto são operações referenciais.

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Condensação e deslocamento são formações inicialmente primárias (detec-tadas no sonho, não no discurso), mas suscetíveis de se secundarizarem mais ou menos; metáfora e metonímia são formações inicialmente secundárias (detectadas nos textos manifestos, não no inconsciente), mas que admitem mais ou menos prolongamentos e sobredeterminações primárias (METZ, 1980, p. 296).

A condensação e o deslocamento são demarcadas pela metáfora e pela metonímia

intervindo no significante, embora elas continuem a estimular representações, afetos, signifi-

cados. A essa convergência das cadeias de pensamento que é metafórico soma-se uma

impulsão instalada no âmago do significante que na relação entre a condensação e a metáfora

se apresenta dissimétrico e unilateral, a condensação depende do processo metafórico o que

não acontece nas relações entre o deslocamento e a metonímia.

A expressão cinematográfica geralmente é icônica e comporta a condensação e o

deslocamento estendendo “sua ação até o interior das unidades codificadas” ampliando a

percepção inconsciente e podendo, inclusive, misturar ou deformar os significantes correspon-

dentes, o que pode decompor as unidades icônicas codificadas. Para Freud, a perda parcial ou

total de uma imagem, embora permaneçam identificáveis e não adulteradas, tem algo de

milagroso (= deslocamento). O encadeado, por sua vez, mistura um pouco, mas ainda a

conserva no início e no fim cada uma das imagens.

A psicanálise extingue o paradigma e o sintagma e o esconde por detrás da metáfora

e da metonímia. O estudo semiológico psicanalítico do cinema esbarra sempre com textos

materializados como objetos do mundo exterior. Entre o paradigma e a metáfora e o sintagma

e a metonímia a distinção se dá pela dualidade e defasagem do discurso e do referencial, mas

a dualidade exige que o discurso seja concluído e inscrito fisicamente no ecrã, por exemplo.

“Quando o interesse se volta para as operações psíquicas e não para as ‘obras’, a

metáfora e o paradigma, a metonímia e o sintagma tendem a juntar-se dois a dois”. A

metáfora e o paradigma se movem pela similaridade/semelhança enquanto a metonímia e o

sintagma se deslocam pela contiguidade/proximidade. No entanto, Lacan pouco considerou

ou se referiu ao paradigma ou ao sintagma. (METZ, 1980, p. 305).

Enquanto o inconsciente é um texto sem demarcações, sem armazenagem exterior, o

filme está registrado numa película, o livro impresso no papel. Portanto, quando uma obra

textual passa a ser analisada, essa relação ganha força e importância, visto que, a dimensão

discursiva (paradigma/sintagma) e a dimensão referencial (metáfora/metonímia) se modificam

sensivelmente mesmo em termos simbólicos (LACAN), mas principalmente pelo referente

dar conta do discurso.

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CAPÍTULO 3. BOLÍVIA EM SÃO PAULO

3.1. COMUNIDADE BOLIVIANA DE SÃO PAULO: ESPAÇOS HÍBRIDOS

A imigração da comunidade boliviana para o Brasil e, sobretudo para São Paulo, não

é um fenômeno recente data dos anos de 1950. No entanto, naquele momento, os bolivianos

que vinham ao Brasil eram, em sua maioria, estudantes que depois acabaram se casando e

ficando por aqui. Nos anos de 1960 e 1970, estes imigrantes eram, principalmente de exilados

políticos, pois muitos países da América do Sul viviam sob ditadura e o fluxo migratório dos

povos latino-americanos era bastante forte (PADRE MÁRIO GEREMIA, Nação Oculta:

Bolivianos em São Paulo, 2008).

A maioria desses países passou por um processo político de regime ditatorial.

Segundo Rubén Vargas, editor do jornal La Razón, a imigração boliviana das décadas de 60 e

70 ainda que não majoritariamente, estava ligada às questões de asilo político, portanto saíam

por razões políticas. A tendência é de que neste modelo de governo as coisas sejam

controladas e que não ajam excessos e a população tenha que se submeter às condições de

vida que lhe é oferecida.

Os países subdesenvolvidos da América Latina, neste momento, eram muito

dependentes dos Estados Unidos, principal país capitalista, dada a sua força econômica e

poder político. A influência da cultura, da política, da economia deste país despertou na

população destas sociedades um movimento de fluxo migratório e imigratório em busca de

melhores condições e um modo de vida de consumo e abundância.

Diante desta dinâmica pela qual viviam os países latino-americanos o número de

imigrantes econômico aumentou consideravelmente. Na década de 1980, muitos bolivianos

foram para a Argentina e nos anos de 1990 começaram a vir para o Brasil, principalmente

para a cidade de São Paulo. A princípio a mão de obra boliviana era recrutada por coreanos,

mas com o passar do tempo eles conseguiram juntar algum tipo de capital, o que os levou a

comprar suas próprias máquinas de costura e manter suas pequenas fábricas têxteis.

Não é somente pela sua hegemonia econômica que a sociedade portadora do espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espetáculo. Lá onde a base material está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social de cada continente [...] do mesmo modo que apresenta os pseudobens a cobiçar, ela oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução [...] se o espetáculo, olhado nas suas diversas localizações, mostra à evidência especializações totalitárias da palavra e da administração sociais, estas acabam por fundir-se,

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ao nível do funcionamento global do sistema, numa divisão mundial das tarefas espetaculares” (DEBORD, 1991, p. 42, 43).

Este quadro aponta para um fenômeno na qual impera o consumo, próprio do

capitalismo. “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de

produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era

diretamente vivido se afastou numa representação”. Neste contexto “o espetáculo apresenta-se

ao mesmo tempo como a própria sociedade” a relação social é mediada pelas imagens

(DEBORD, 1991, p. 9, 10).

Na sociedade contemporânea àqueles que consomem são vistos pelo que possuem e

não pelo que são. Alfonso Hinojosa, pesquisador boliviano, relata que se fizer a comparação

pelo que se obtém por esse trabalho aqui e pelo que se obtém pelo mesmo trabalho, mas com

horas extras, obviamente, lá a diferença é substancial. Neste sentido “o que as pessoas

intermediam com o capital só pode ser uma mera aparência. Desse modo, o capitalismo

necessita radicalmente do mundo das aparências” (HAUG, 1996, p. 70).

Seja como trabalhador ou como consumidor, o indivíduo não apenas aprende a avaliar-se face aos outros, mas a ver a si próprio através dos olhos alheios; aprende que a autoimagem projetada conta mais que a experiência e as habilidades adquiridas. Uma vez que será julgado (por seus colegas e superiores no trabalho e pelos estranhos da rua) em virtude de suas posses, suas roupas e sua “personalidade” (LASCH, 1986, p. 21).

A comunidade boliviana também está inserida neste contexto de consumo,

estimulando o narcisismo, a individualidade, pois “a imagem cria um vazio, visa a uma

ausência” (BAUDRILLARD, 1989, p. 185), embora isto não a favoreça enquanto organização

social. Porém, o trabalho possibilita a aquisição de bens mesmo que demande sacrifícios e a

contribuição deles no mercado de trabalho brasileiro impulsiona a economia, o que os levaria

a se mostrar ou refletir-se no espelho da nossa sociedade.

Evidentemente que o fato desta comunidade produzir e consumir bens, não só

alavanca a economia da cidade de São Paulo e consequentemente a do Brasil, mas também a

faz tornar um povo que contribui economicamente e culturalmente com manifestações folcló-

ricas riquíssimas, desta forma, merece ser bem acolhida e respeitada, como foram os

portugueses, os japoneses, os italianos e tantos outros que vieram ao Brasil e ajudaram a

construir esta nação. Até porque, conforme o artigo 5º da Constituição, todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, garantido aos brasileiros e aos

estrangeiros.

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Hoje a Bolívia é governada por Evo Morales, descendente do povo aimará e o país

mais pobre da América do Sul. Sua estória de conflitos deixou marcas e ainda hoje é vítima

de preconceito por parte de alguns países desenvolvidos, sofre com a imigração de seu povo

visto as condições de vida oferecidas e as poucas oportunidades de trabalho, muito em função

de uma mão de obra pouco qualificada. Isto faz com que boa parte da população imigre para

outros países e o Brasil está nesta rota (¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo,

2012).

A imigração boliviana para a cidade de São Paulo continua a ser um fenômeno diário

ainda hoje. A expectativa de melhores oportunidades no país vizinho leva a este grande fluxo

imigratório, principalmente pelo fato de o Brasil estar entre as maiores economias do mundo

dentro do continente americano. Embora esta comunidade acabe se submetendo a uma vida de

muito trabalho e morando em condições precárias, o fato de poderem trabalhar e consumir já

são suficientes.

“Eu sempre falo assim. Nossa com tudo isso que essa pessoa sofre, porque ela vem aqui?” É a primeira reação, porque ela veio aqui. Então eu vou te falar: Tudo o que ela sofre, as 14 horas que ela trabalha, é porque ela não pertencia ao lado rico de lá, então se ela veio para cá é porque lá ela não estava bem. As mesmas 14, 16 horas que ela trabalha aqui ela trabalha lá. Só com a diferença de que lá, no fim do mês, ela tinha o dinheiro pra comida das crianças. Aqui, além de ter o dinheiro da comida das crianças, o teto da criança, ele consegue dar um iogurte, sei lá, é uma coisa assim... Nossa! Ele consegue dar uma bolacha que lá também é um luxo. Então, culturalmente existe um deslumbramento, em termos de status ou de condição social. A pessoa que sai de lá e vem pra cá e se vê nesse mundo circundistralizado podendo dar para os filhos várias coisas que ele não poderia, é obvio que ele vai falar “Nossa eu to muito melhor aqui!” (VERÔNICA YUJRA, ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo, 2012).

Isto faz com que o número de imigrantes bolivianos residente no Brasil seja grande e

é incerto, uma vez que muitos deles vivem na clandestinidade, o que impede de inclui-los

num senso oficial. Segundo depoimento do pesquisador boliviano Alfonso Hinojosa, no

Brasil existem de 200 a 250 mil bolivianos, já para o editor do jornal La Razón, de La Paz,

Rubén Vargas este número é de 3 a 4 milhões de bolivianos fora da Bolívia, isto em termos de

Brasil.

No entanto, o Padre Mário Geremia da Pastoral do Migrante estima que passa de 100

mil os bolivianos que residem na cidade de São Paulo, enquanto para Marcel Biato, ex-

embaixador do Brasil na Bolívia este número pode oscilar entre 300, 400 e até 800 mil,

segundo ele, ninguém sabe. O fato é que a Bolívia é, hoje, um dos maiores fluxos migratórios

do continente. Estes números são citados nos documentários analisados nesta dissertação.

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Os bolivianos que vivem na cidade de São Paulo não se fixaram num bairro em

específico, embora haja um contingente bastante significativo nas regiões centrais da cidade

como Brás, Bresser e Bom Retiro, não é difícil vê-los em áreas periféricas como Pirituba,

Casa Verde, Freguesia do Ó, Vila Maria, Guaianazes entre outros. A atividade econômica

desta comunidade baseia-se principalmente no ramo da costura, muitos prestam serviços aos

coreanos e até bolivianos proprietários de oficinas de costura.

Hoje, os motivos pelos quais os bolivianos saem do seu país de origem continuam

sendo os mesmos, sócio, político e econômicos e um dos países mais procurados por esses

imigrantes é o Brasil, principalmente a cidade de São Paulo, embora não seja o único. O

contratempo com o idioma acaba dificultando a comunicação entre bolivianos e brasileiros e

muitos preferem a Argentina, uma vez que ambos falam o espanhol.

Ao chegar a São Paulo, cidade mais procurada pelos imigrantes, os bolivianos

sofrem com a falta de oportunidades no mercado de trabalho, com isso eles acabam indo

trabalhar nas oficinas de costura com uma carga horária extremamente alta e muitas vezes em

situações desumanas. Estas condições caracterizam o trabalho escravo, tão propagado pela

mídia nas reportagens de denúncia. No entanto, este assunto fica no campo do discurso, já que

este problema ainda é recorrente e sobre isto falarei em outro momento.

Embora já tenha trazido algumas informações que estão no documentário ¡Si, yo

puedo! – O sonho boliviano em São Paulo de Marcel Buono, Victor Lombardi, Vinícius

Victorino e Vitor Valencio, faz-se necessário analisar, também, os documentários 100%

Boliviano, Mano de Luciano Onça e Alice Riff e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de

Diego Arraya para melhor compreender a realidade da comunidade boliviana de São Paulo a

partir da representação audiovisual nos referidos filmes e o farei didaticamente obedecendo a

ordem acima.

O documentário ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo é uma narrativa

que relata a história de imigrantes a partir de alguns depoimentos de bolivianos que vivem em

São Paulo e também na Bolívia, além do pesquisador Alfonso Hinojosa, do Padre Mário

Geremia da Pastoral do Migrante de São Paulo, de Rubén Vargas editor do jornal La Razón

de La Paz, Marcel Biato que na época era embaixador do Brasil na Bolívia, Cossett Entensoro

Diretora Geral do Ministério da Imigração, Verônica Yujra do Projeto ¡Si, yo puedo! entre

outros além do narrador.

Logo de início o narrador se refere ao Brasil como uma terra acolhedora, como um

povo hospitaleiro e como um dos países mais diversificados do planeta e da Bolívia como um

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país vizinho e um dos maiores fluxos migratórios do continente. O depoimento de Cossett

Entensoro é interessante no sentido de que relata o motivo pelo qual os bolivianos vêm ao

Brasil, o consumismo, a aquisição de bens em contraposição as raízes culturais dos povos

aimarás.

O depoimento de Don Carlos Soto é importante porque coloca São Paulo como a

América para os bolivianos, além de falar que foi bem recebido no Brasil porque na época em

que ele chegou à São Paulo as pessoas achavam que ele era mexicano e que naquele momento

essa comunidade era bem vista pelos brasileiros, uma vez que o Brasil havia acabado de

ganhar a Copa do Mundo de Futebol de 1970 no México e com o apoio deles.

A fala da estudante boliviana de La Paz, Jasmin Ananci, desmistifica a ideia bastante

propagada pela mídia brasileira de que na Bolívia só existem pessoas meliantes e pobres em

contrapartida o depoimento de Carlos Ortiz é bastante contundente porque segundo ele as

pessoas que não se ligam ao narcotráfico não têm oportunidades, por isso é que as pessoas

acabam saindo de lá e conclui dizendo que “essa gente de baixa escala social está controlando

o dinheiro por causa do narcotráfico”.

A socióloga Gabriela Zambrana de Santa Cruz de La Sierra comenta sobre o controle

nos abismos sociais e a presença dos indígenas no cenário político e que hoje os aimarás,

quéchuas, guaranis se encontram no cenário político, tanto nacional como regional e que

agora o povo pode tomar decisões e que este modelo de estado é de vanguarda. Rubén Vargas

compactua com esta ideia e fala sobre os avanços nos últimos seis anos nas questões políticas

e sociais.

Verônica Yujra do Projeto ¡Si, yo puedo! enaltece o conhecimento do povo

boliviano, a cultura ancestral e fala das diversas perdas históricas pelas quais esse povo

passou, além de comentar o que ela chama de soroche social que são sintomas como vômito,

náusea, dor de cabeça, tontura, respiração curta provocados pela altitude da Bolívia e que

mascar a folha de coca ameniza esses efeitos.

O narrador aponta as diferenças étnicas visíveis por causa das dezenas de dialetos

falados e que o maior contraste pode ser visto entre indígenas e brancos. La Paz e Santa Cruz

de La Sierra exemplificam essa situação. Marcel Biato, ex-embaixador da Brasil fala que as

comunidades tradicionais têm muita força elegendo, inclusive, líderes comunitários, xamãs,

juízes e que essa relação é muito complexa. Já Alfonso Hinojosa comenta sobre avanços

macroeconômicos, diminuição do analfabetismo e que hoje há menos pessoas pobres na

Bolívia.

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A Diretora Geral do Ministério da Imigração Cossett Entensoro chama a atenção

para a formação profissional. Muitos profissionais doutores e mestres, embora a oferta de

emprego para essas pessoas não seja muito ampla a economia está estável e há opções de

emprego. Marcel Biato diz que há um milhão de pessoas de classe média na Bolívia.

Os depoimentos quanto às pessoas que fazem o caminho inverso, ou seja, que vão

para a Bolívia também são interessantes. A artesã brasileira, Juliana Freire, que vive em Santa

Cruz de La Sierra comenta que no início as pessoas são muito fechadas, mas que depois com

a convivência acabam se tornando legais e que têm muitos brasileiros que vão estudar na

Bolívia e depois voltam para o Brasil e vão para a Europa. Cossett Entensoro fala que o país é

bastante vantajoso para estrangeiros porque as coisas são muito baratas.

Já o estudante brasileiro Rodrigo Haveroth diz que os brasileiros são bem aceitos

porque fazem a economia girar. O ex-embaixador Marcel Biato fala do desnível do custo de

vida. No Brasil um curso de Medicina custa entre 2 e 3 mil, enquanto que na Bolívia o curso

completo custa cerca de 5 mil dólares. O coordenador da Unifranz Santa Cruz relata que

existem 3 mil alunos brasileiros em Santa Cruz e que continuam chegando mais por ser mais

econômico. Ruyther Geyb, estudante brasileiro, diz que muitos vão, conhecem, mas acabam

não ficando por lá.

Um grupo de estudantes bolivianas de La Paz, na voz de Candi Coraci, é bastante

otimista, elas dizem que se a Bolívia continuar assim vai muito bem, porque as coisas estão

melhorando, não há discriminação, não há racismo, há uma unidade e que todos são irmãos, o

otimismo também está no depoimento do taxista de La Paz Luis Rodriguez que diz que lá eles

têm tudo, frutas, verduras, muitas coisas boas e baratas.

Após esses depoimentos vem à imagem de uma feira, no Brasil, trânsito, metro, ruas,

a cidade vista pelo alto e a voz do narrador exaltando São Paulo, comenta sobre a diversidade

cultural e que a cidade foi construída com pedaços de cada parte do planeta, por índios,

portugueses, italianos, alemães, africanos, japoneses, coreanos, nordestinos. Volta à imagem

da cidade com pessoas, trânsito, metro, Praça Kantuta e uma ilustração de um ônibus e ao

fundo edifícios.

O Padre Mario Geremia, da Pastoral do Migrante de São Paulo, Rubén Vargas do

Jornal La Razón falam sobre a imigração boliviana nos anos de 1950, 1960 e 1970. Verônica

Yujra diz que na época em que ela veio ao Brasil se falava muito da imigração invisível

boliviana, porque essa comunidade era muito calada, ficava dentro de casa, só trabalhava.

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Novamente o narrador enaltece a riqueza do Brasil e de São Paulo que atraem a

maioria das pessoas, de todas as etnias que buscam melhores condições de vida para viver ou

sobreviver e que com os bolivianos não é diferente, cada um com sua estória, mas com o

mesmo motivo. Alfonso Hinojosa fala sobre a massificação das migrações no exterior, em

meados dos anos 1980, por um lado para a Argentina e pelo outro para o Brasil.

O pesquisador boliviano continua falando sobre o assunto e que a mudança para a

Argentina aconteceu antes de 1985, 1986 é quando há uma relocação de quem sai da Bolívia,

mas para o Brasil acontece um pouco mais tarde quando os coreanos começam a recrutar

trabalhadores bolivianos. Com o passar do tempo os bolivianos começam a juntar capital e a

investir na compra de suas próprias máquinas de costura e manter suas pequenas fábricas

têxteis e isso vem se expandindo.

O Padre Mário Geremia reconhece que o trabalho boliviano ajuda a construir o Brasil

e que existem três momentos sobre a condição do imigrante boliviano no Brasil. O primeiro

era só a lei brasileira, para quem tivesse filho brasileiro ou para quem era casado com

brasileiro. Depois houve um acordo bilateral entre Brasil e Bolívia que durou três anos e a

anistia de 2009 e agora uma lei de residência aprovada em 2010, do MERCOSUL.

Verônica Yujra comenta que as pessoas sempre se sentem estranhas. Lembra que

quando era estudante participava do diretório acadêmico, e quando tinha greve ela sempre

estava no meio e que sua mãe dizia: “Pelo amor de Deus, filha, não se mete com essas coisas,

você é estrangeira”. A impressão de Verônica é de que essa comunidade nunca se sente

totalmente integrada e que pelo fato deles não serem daqui, não podem palpitar, lembrando

que à época, sua mãe desconhecia o estatuto do imigrante, porque respeitava ainda o estatuto

da época da ditadura.

Marcel Biato diz que as pessoas sempre procuram melhores condições de vida e

relata que no período em que viveu em Nova Iorque, se deparava com pessoas nas mesmas

condições de qualquer imigrante, ou seja, vivendo em espaços pequenos, trabalhando o dia

todo, vivendo para comer, dormir e trabalhar para se realizar profissionalmente e

pessoalmente. Luis Ortega, da Pastoral do Migrante de La Paz, diz que as pessoas saem em

busca da terra prometida, de melhores condições de trabalho, solução para todos os problemas

de suas vidas, mas que na prática não é bem assim.

O Padre Mário Geremia diz que a maioria dos imigrantes vêm de La Paz, Santa Cruz

de La Sierra, Quijarro, Corumbá e que lá pegam um ônibus para São Paulo. Luís Ortega fala

que a situação econômica da Bolívia e a falta de políticas agropecuárias fazem com que as

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127

pessoas migrem dos campos para as cidades para trabalhar, estudar, encontrar melhores

condições de vida.

Outro problema apontado por Alfonso Hinojosa é o tráfico de pessoas. Há uma rede

de pessoas que estão por trás disso e querem lucros maiores envolvendo um terceiro país, um

país de trânsito que é o Paraguai. A rota para se chegar a São Paulo não é direta, a maioria vai

pelo Paraguai, por causa do controle e principalmente por envolver menores de idade.

Todo o off do narrador é coberto por paisagens panorâmicas de uma cidade da

Bolívia, ruas, aeroporto, pessoas. “Sair de casa não é fácil e para os que já estão aqui esta

despedida é dupla. Primeiro dos campos para os centros locais, no caso da Bolívia, para uma

conhecida região, próxima a La Paz, depois para terras mais desconhecidas. Uma mudança de

realidade brutal”.

Ângela Nadir, imigrante boliviana, diz que para ela é muito difícil ir para o açougue,

alguns lugares, supermercados, porque os brasileiros ficam olhando como se ela fosse um

bicho raro. Marcel Biato relata que historicamente o Brasil seria um destino para bolivianos e

a Argentina presumia-se um lugar onde eles se adaptariam melhor. Outro imigrante, Rolando

Choquicali, fala que o Brasil é muito diferente da Bolívia e que não conseguia entender o

idioma, assim como Samuel Chile.

Verônica Yujra percebendo as dificuldades pensou num espaço onde pudesse

resgatar o jovem que não recebe oportunidade, não recebe informação da internet ou não tem

como acessar, não recebe informação dos jornais, porque não entendem o idioma e resolveu

criar o espaço do projeto ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo onde, inclusive, os

jovens procuram oportunidades de emprego.

Don Carlos Soto comenta que os imigrantes que estão chegando agora têm pouca

instrução e vão trabalhar direto, não precisam alugar nada, moram na casa do patrão e

trabalham lá, mesmo as condições não sendo as melhores. Neste momento, Don Carlos, fala

sobre trabalho escravo, dizendo que eles não o são, pois se eles quiserem mudar de trabalho,

eles podem, mas vão trabalhar nas mesmas condições. Casa, comida e trabalho no mesmo

local.

Verônica Yujra diz que a maioria que trabalha nestas condições não se considera

escravo, porque eles partem do princípio de que eles é que tomaram essa decisão de vir e de

que estão por vontade própria, logo não existe escravidão. Rolando Choquicali fala da

dificuldade de se encontrar emprego em São Paulo, principalmente por causa da falta de

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documentos, dificultando assim uma colocação em uma empresa. Samuel Chile está

estudando português para trabalhar como corretor de imóveis.

A idealizadora do projeto ¡Si, yo puedo! Verônica Yujra relata que tenta difundir a

questão da regularização para poder ir atrás de documentos e pelo MERCOSUL todo mundo

tem o livre direito de escolher viver aqui, então logo deveria ter o direito de fazer as coisas

para isso, de tirar o documento, de escolher um trabalho. No entanto, fala que o problema é

mais embaixo e que mesmo as pessoas tendo o documento eles não podem agir, não podem

fazer nada.

Novamente um off com a fala de Marcel Biato coberta com imagens de pessoas. Para

o ex-embaixador o imigrante nessas condições é muito arredio, ele tem medo de ser deportado

e prefere ficar na ilegalidade, ou porque não vê alternativa e tem que trabalhar nas oficinas de

costura, ou porque apesar de muito esforço, as pessoas vivem numa semi-irregularidade e

acabam sofrendo as consequências disso.

Alfonso Hinojosa compara o que se obtém pelo trabalho aqui e pelo mesmo trabalho

na Bolívia é substancialmente diferente. Rubén Vargas fala que normalmente na imigração

boliviana basta que uma família migre e que se estabeleça aqui que os outros membros da

família vêm e se fixam aqui também. O Padre Mário Geremia relata que eles têm uma rede

social muito forte e que quando chegam a São Paulo, eles já têm onde morar. E completa

dizendo que é um povo bastante solidário.

O editor do jornal La Razón de La Paz, Rubén Vargas cita que a sobrevivência

individual no Brasil é muito difícil e é por isso que a presença familiar, comunitária, cultural é

importante, pois as condições individuais são praticamente nulas sem contar com a

colaboração, a amizade e os laços familiares. Para Vargas, a cultura funciona como um

elemento de coesão social forte. A comida, os bailes, as festividades, os esportes, as reuniões

unem as pessoas.

Sob a imagem de um mapa que vai se fechando até chegar à Praça Kantuta onde

aparecem pessoas, festas, diversão, futebol e ensaios de bandas folclóricas, o narrador começa

a falar sobre o espaço e a importância deste resgate da cultura, como um espaço híbrido, um

entrelugar capaz de traduzir o que há de mais representativo em suas tradições, como se fosse

um pedaço do seu espírito nativo e a importância de manter a identidade cultural para superar

a discriminação social, uma forma de o reprimido fazer-se presente.

O imigrante Don Carlos Soto fala que chegou ao nome da Praça Kantuta, através de

uma senhora da associação que queria que a praça se chamasse Bolívia e depois Nossa

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Senhora de Copacabana. Soto, então, comenta que as pessoas poderiam achar que tratava de

uma provocação, no primeiro caso pelo motivo de que eles não eram bem vistos no Brasil e

no segundo pela devoção a Nossa Senhora Aparecida do povo brasileiro.

Don Carlos Soto diz que estava fazendo os bonés para a associação e bordando a flor

kantuta, símbolo da Bolívia, e aí sugeriu que a Praça recebesse este nome. O brasileiro não

sabendo do que se tratava não criaria atrito e completa dizendo que nem o administrador sabia

o que é kantuta, foi quando ele disse que se tratava de uma flor que tinha as cores da bandeira

boliviana, é por isso que a flor é um símbolo nacional e fala também da emoção da praça

receber este nome.

O Padre Mário Geremia comenta que o povo brasileiro é bastante acolhedor, mas ao

mesmo tempo xenofóbico e que existe certo racismo pelo fato de o boliviano ter

características indígenas, e isto é bastante sentido por eles. Ele completa dizendo que no

mundo já há muitos muros, muralhas, cercas e fronteiras e que não podemos mais viver

isolados, fechados, é preciso construir pontes para todo mundo se ver.

Volta a imagem do ônibus com os povos entrando e off do narrador dizendo que todo

novato sofre, o nordestino sofre até hoje, mesmo vivendo na mesma nação e quando este

novato vem de uma sociedade diferente, considerada menos desenvolvida, então tudo fica

mais difícil. Ângela Nadir, a imigrante boliviana, volta a comentar que já escutou brasileiros

falarem mal dos bolivianos e o fato de alguns bolivianos terem uma conduta errada acabam

fazendo com que as pessoas generalizem com relação aos demais.

Verônica Yujra fala sobre brigas entre brasileiros e bolivianos e até discriminação de

professores contra crianças citando, inclusive, que já houve até morte de criança em escolas

do Brás e do Pari e o consumo de drogas e álcool em praças formando com isto guetos. Ela

comenta também que o imigrante pobre está sujeito a vontade do outro enquanto o rico paga

para ser bem recebido.

O depoimento de Marcel Biato, ex-embaixador do Brasil na Bolívia é bastante

contundente. Ele diz que se a sociedade brasileira está disposta a aceitar refugiados

econômicos de outros países, que o faça, mas de uma forma que não vá criar bolsões de

pobreza e de frustração dos próprios interessados. Portanto, para isso é preciso garantir

educação mínima para atender as necessidades do Brasil na formação de profissionais onde há

carência de mão de obra e cita o exemplo dos haitianos que estão dispostos a adquirir

conhecimento.

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A estudante de La Paz, Vanessa Espinoza, acredita que os bolivianos devem ter

orgulho de viver na Bolívia porque, segundo ela, não é verdade que lá não existe emprego, as

pessoas é que querem ganhar mais. Ela fala que tem orgulho de viver na Bolívia e que ama

sua terra. E que nunca pensou em deixar o país, pois nasceu ali e ali ela quer morrer.

E finalmente, o documentário termina com imagens de pessoas andando e com off do

narrador.

“Imagina como se fosse uma cadeia alimentar, só que social, onde as fronteiras geográficas e étnicas se cruzam e são capazes de desencadear desrespeitos, violência ou simplesmente desprezo. Sempre foi assim e pode ser que sempre seja a história se repete e somos testemunhas. Hoje quem sofre são os bolivianos e quem serão os próximos?” (¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo, 2012).

Finaliza com a ilustração do ônibus novamente e imagens da Bolívia e do Brasil e

um rap boliviano.

Os depoimentos de Don Carlos Soto e do Padre Mário Geremia, no documetário ¡Si,

yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo atestam que embora não se saiba exatamente o

número de bolivianos que mora na cidade, as relações sociais estabelecidas pela comunidade

boliviana são bastante fortes e isto faz com que a cada dia eles continuem chegando à procura

de novas oportunidades.

Evidencia, também, que embora a maioria já chegue empregada, a condição de

trabalho não são as mais favoráveis, no entanto, o fato de eles trabalharem muitas horas não

chega, para eles, a ser o maior problema, visto que, segundo os relatos, na Bolívia, a carga

horária também é extenuante e principalmente, que eles não entendem que se trata de trabalho

análogo ao trabalho escravo porque aqui eles moram no emprego e podem consumir mais.

A questão é que, o Brasil e, sobretudo São Paulo se torna atrativo pelo fato de que

eles conseguem um padrão de vida melhor de que se estivessem na Bolívia e que podem

oferecer aos seus filhos o que lá eles não conseguiriam. Embora, a vida desta comunidade na

cidade não seja uma das melhores, não se pode ignorar que a vida de muitos trabalhadores

brasileiros não seja muito parecida.

Desta forma, segundo as opiniões de muitos especialistas, políticos, sociólogos,

antropólogos, trata-se mesmo de uma problemática de imigração econômica. Embora, haja

uma contraposição quanto aos relatos de pessoas que moram na Bolívia sobre a economia do

país. Muitos bolivianos encontram dificuldades de convivência no seio da nossa sociedade,

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131

haja vista, que o idioma falado por eles não é o mesmo do Brasil, mas que, sobretudo, os mais

jovens já tenham a preocupação em aprender a língua portuguesa.

No entanto, mesmo com todas as dificuldades e preconceitos enfrentados pela

comunidade boliviana de São Paulo, há um vínculo muito forte que os une que são as festas.

Eles costumam frequentar espaços em comum na cidade como a Rua Coimbra, a Praça

Kantuta, e o Memorial da América Latina, principalmente no mês de agosto, quando se

comemora a data de independência da Bolívia, onde eles podem apresentar suas danças, suas

comidas e costumes.

Diferentemente de em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo, no

documentário 100% Boliviano, Mano toda a narrativa gira em torno do adolescente Denílson

Mamani que está se arrumando para sair e cantando ao mesmo tempo em que conversa com a

mãe que está cozinhando, uma legenda diz que os dois moram juntamente com mais algumas

famílias num espaço onde também funciona uma oficina de costura.

O adolescente desce as escadas da residência, na qual, na parede, aparece uma

declaração de amor à sua namorada Pâmela. Sai pelas ruas do bairro onde mora quando

começa a falar sobre sua relação com a mãe que o havia deixado na Bolívia com três dias de

nascido para vir à São Paulo procurar o marido e que quando ela regressou ao país ele não a

reconheceu, pois lá ele morava com os avós.

Sentado em uma sala de aula, em uma escola do bairro do Bom Retiro, ele fala das

dificuldades que enfrentou com o idioma, embora tivesse uma professora que falasse espanhol

e principalmente o problema de relacionamento com os colegas que o batiam e lhe pediam

dinheiro. Desta vez, na estação da Luz, no centro de São Paulo, Denílson comenta que queria

ir embora do Brasil e que quando mais jovem só pensava em vingança.

Novamente aparece o adolescente na escola falando de sua mãe e os conselhos que

recebia para que estudasse para ser “alguém” na vida. Agora, a imagem é de dona Carmen,

mãe de Denílson, ela se arruma com a ajuda de mais duas mulheres para ir à festa no

Memorial da América Latina, onde dança em um grupo folclórico. Fala de sua filha que

voltou à Bolívia para estudar, pois não se adaptou a vida no Brasil e que Choco, apelido de

Denílson, ao contrário, quer ficar e estudar aqui.

Dona Carmen anda pela oficina e pega um chapéu. Uma legenda anuncia que a festa

acontece no dia 6 de agosto, dia da independência da Bolívia e que ela se prepara para o

evento no Bairro da Barra Funda. Saindo logo em seguida pelas ruas do bairro do Bom Retiro.

Em um carro, dona Carmen aparece se maquiando e logo em seguida a festa no Memorial da

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América Latina, ela comenta que gosta do evento e fala da importância para a preservação da

cultura boliviana na cidade de São Paulo.

Muitas imagens de pessoas, danças, prédios, oficinas de costura e algumas legendas

relatando que os imigrantes bolivianos começaram a se estabelecer massivamente em São

Paulo na década de 1990. A imprecisão no número de imigrantes dadas situações ilegais. Que

grande parte dessa população trabalha em oficinas de costura da região central da cidade. Que

essas oficinas trabalham por encomenda e que o pagamento é feito por peça produzida. Que

os intermediários pagam entre 2 e 4 reais por peça e que a jornada de trabalho chega a 14

horas e que, geralmente, eles folgam aos domingos.

Novamente aparece Denílson andando pelas ruas a caminho de uma festa de

aniversário. Lá eles cantam uma música de protesto e em seguida imagens da Praça Kantuta,

onde o narrador dá boas vindas. Denílson fala sobre o que pode ser encontrado lá, comidas,

filmes, corte de cabelo e a voz de um colega do rapaz comenta que alguns carros anunciam

vagas de emprego.

Um jovem casado, Juan Estrella, fala como os coreanos mandam os cortes de roupa

para eles e comenta que gostaria que seus filhos não fossem costureiros e, sim, um policial,

um médico e que tenham naturalidade brasileira. Imagens de bolivianos no evento e em voz

off, Denílson comenta que eles costumam frequentar a Praça Kantuta e Kantutinha aos

sábados e domingos e que voltam para as suas casas juntos.

Denílson caminha pelas ruas e em voz off diz que conhece muitos adultos costureiros

e poucos jovens e que não quer ser costureiro mesmo que tenha que morar na rua, alguém

pergunta o motivo pelo qual ele não quer ser costureiro, ele diz que não gosta e que quer que

sua mãe tenha orgulho dele se referindo ao esforço que ela faz para que ele tenha uma outra

profissão. Finalmente, já à noite, o adolescente aparece em frente a um prédio quando seu

telefone toca e ele atende. Denílson chama um garoto que está passando pela rua, conversam

brevemente e logo o rapazinho sai chegando outro logo em seguida e ficam conversando.

Neste curta metragem, a ênfase maior fica por conta das dificuldades enfrentadas

pelo adolescente Denílson Mamani, nas suas relações com a família, com o trabalho, sua

difícil adaptação no Brasil e o desejo dele de se tornar um profissional capacitado. Já dona

Carmen, também se preocupa com os estudos e a profissão do filho e, sobretudo, com a

preservação da cultura boliviana e por isso faz parte de um grupo folclórico. Mas, a

problemática do trabalho nas oficinas de costura, também se faz presente, de maneira

contundente, nas legendas e nos próprios depoimentos dos personagens do documentário.

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E por fim, Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo que começa mostrando muitas

imagens de crianças, adultos, em diferentes ambientes, trânsito, feiras, vista panorâmica de

cidades e uma ilustração registrando uma travessia entre a Bolívia e o Brasil, além de imagens

de trabalhadores em máquinas de costura, finalizando com uma bandeira na qual de um lado

está a bandeira brasileira e do outro a bandeira boliviana até começar os depoimentos.

O Padre Mário Geremia fala sobre o longo processo de imigração desde a década de

1950 por motivos políticos e que isso aconteceu em vários países da América Latina,

inclusive, no Brasil e que a partir de 1980 o motivo passa a ser também econômico. O

depoimento de Roque Patussi, da Pastoral do Migrante, ruma no mesmo sentido, ele comenta

que nos anos de 1960 e 1970, período glorioso no Brasil, os imigrantes não tinham tanta

dificuldade de arrumar emprego.

No entanto, no final dos anos de 1970 até por questões políticas, o governo brasileiro

cria o Estatuto dos Estrangeiros restringindo muito o mercado de trabalho para os imigrantes.

O Padre Mario Geremia fala de como os imigrantes bolivianos chegam ao Brasil e que

geograficamente essa travessia é fácil, eles costumam vir de ônibus pelas fronteiras,

principalmente, por conta de uma rede social que é muito forte, eles vêm porque aqui eles já

têm parentes, conhecidos, amigos.

O antropólogo Sidney Antonio Silva relata que aqueles que chegam a São Paulo,

geralmente, são trabalhadores jovens, de nível escolar médio, mas pouco qualificados e

acabam trabalhando nas oficinas de costura a partir de intercâmbios que eles mantêm. Existe

também uma rede na qual as pessoas que já estão aqui vão buscar trabalhadores na Bolívia,

além dos coiotes, pessoas que recebem para fazer a intermediação de mão-de-obra e que

ganham para fazer os agenciamentos.

A advogada Ruth Camacho fala que a imigração acontece por falta de mercado de

trabalho, ou seja, por motivos econômicos e pela própria instabilidade econômica da Bolívia.

E que não há mercado de trabalho, principalmente, nas áreas rurais, então as pessoas que já

tem algum parente aqui no Brasil acaba ajudando-os a vir trabalhar, é uma extensão de

familiaridade.

Sydney Antonio da Silva diz que a maioria desses imigrantes vem de La Paz e de

Quijarro, onde também existe uma grande concentração de imigrantes internos e que dali eles

vêm para o Brasil. Imagens mostram a ferroviária de Quijarro e as pessoas embarcando no

trem, enquanto crianças e familiares ficam chorando na estação. Roque Patussi fala da rotina

de trabalho dos bolivianos nas oficinas de costura e que os coreanos entregam os pedidos e

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dão o prazo de entrega das mercadorias, e que muitas vezes eles têm que trabalhar até 24

horas para cumprir esse prazo.

Sérgio Suyama, do Ministério Público Federal, fala que no começo eram os coreanos

que tinham pequenas oficinas de costura e que com o passar do tempo, os bolivianos que

moravam há mais tempo aqui e estavam regularizados começaram a chamar os parentes,

amigos, conterrâneos lhes oferendo trabalho. Nesse processo o coreano repassa para o

boliviano que emprega boliviano e que essa relação agravou a situação, no entanto, ele atribui

o problema à globalização.

Geremia comenta que as pessoas migram em busca de melhores condições de vida e

que isto acontece em várias partes do mundo. Imagens de uma estação de trem em São Paulo

e uma movimentação de pessoas. Barulho de máquinas e bolivianos trabalhando. A fala de

Wilson, um boliviano que mora em São Paulo, relata que a irmã dele veio primeiro, teve um

filho e que depois outros familiares vieram, embora lá eles trabalhassem na construção civil.

Novamente mais imagens de bolivianos trabalhando na oficina de costura e Wilson

continua o depoimento dizendo que quando o filho dele nasceu ele pode então normalizar a

situação da família. Elizabeth, esposa de Wilson, também fala que tiveram o filho para poder

regularizar a permanência deles aqui no Brasil. Wilson acrescenta que gastou cerca de cinco

mil reais para obter toda a documentação necessária.

Novas imagens de bolivianos trabalhando nas oficinas e Elizabeth fala que trabalhar

aqui compensa porque cem reais geram trezentos na moeda boliviana e que muitos acabam

trabalhando bastante, juntando dinheiro e voltando para a Bolívia. Outras imagens de trabalho

nas oficinas até quando alguém pergunta sobre o sonho de Elizabeth, que diz não ter sonhos e

que sonha pelos filhos, em ter uma casa e oferecer estudos.

A pergunta é feita para Wilson, o marido, que sonha em montar uma fábrica e uma

loja próprias, bem estruturada para não faltar comida para a família. Imagem de Elizabeth no

trabalho e crianças brincando e novamente Wilson com uma fala bastante contundente de que

os bolivianos estão aqui para trabalhar e acredita que contribuem para o crescimento do país e

que não estão querendo nada de ninguém.

Wilson começa a vestir uma manequim e diz que aquela roupa é um modelo que ele

criou, estabelecendo um diálogo com o narrador ele continua falando do vestido que está

vendendo muito, mas que tem outros modelos também. O antropólogo, Sidney Antonio da

Silva, fala da complexidade da relação de trabalhadores e empregadores no mundo

globalizado e da importância desses trabalhadores na reprodução do capital e chama a atenção

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para os sonhos e desejos dessas pessoas e que essa relação deve ser mais bem avaliada, dentro

do contexto da costura.

Sérgio Suyama, do Ministério Público fala do paradoxo da liberdade de circulação e

volatilidade do capital no mundo e relaciona isso ao trabalhador que imigra com a família em

busca de melhores condições de vida e que o boliviano vem ao Brasil para ter novas

oportunidades, mas que os brasileiros também fazem a mesma coisa e se submetem a muitas

coisas quando vão para outros países. Além de falar que se o capital obedece a essa dinâmica

o trabalhador também deve ter essa liberdade de circulação e faz uma crítica aos países que

impõem barreiras à circulação desses trabalhadores.

Imagens de pessoas acompanhando uma discussão na Pastoral do Migrante reunindo

bolivianos e o Ministério Público. Roque Patussi começa falando sobre dignidade, cidadania e

conquista de direitos se houver união e que aquela reunião tem esse objetivo. Imagens de

bolivianos e a fala de Cristina Bueno, do Ministério Público do Trabalho, que propõe uma

mudança de estratégia, na qual, o trabalhador juntamente com a Pastoral e o Ministério

Público regularize sua situação nas oficinas de costura, para que eles possam trabalhar

documentados e regularizados.

Em meio a essa discussão, alguns bolivianos fazem perguntas. A primeira é sobre o

preço pago pelos empregadores pela peça, a segunda questiona a documentação e a

fiscalização nos locais de trabalho e também faz o mesmo questionamento sobre o preço das

peças e que eles têm que sobreviver com esse valor baixo. Mais uma pergunta e novamente a

indagação sobre a legalização dos indocumentados e que eles não foram bem orientados sobre

a questão.

Cristina Ribeiro conclui dizendo da importância da promoção da discussão para

deixar os trabalhadores mais tranquilos e para que eles não se sintam perseguidos e fala que o

que eles querem é a regularização da situação. Compara também a situação de brasileiros que

moram nos Estados Unidos e em Londres e que isso faz parte de uma conjuntura global.

Todos rezam o Pai Nosso.

Em novo depoimento, o Padre Mário Geremia fala que 80% da mão de obra da

indústria da costura, neste momento em São Paulo, é de imigrantes. E o narrador conclui,

então, que sete ou oito peças são costuradas por bolivianos ou paraguaios, o Padre confirma a

informação. A advogada, Ruth Camacho fala sobre exploração da mão-de-obra e relata que o

problema antecede os donos de oficinas está lá na plantação de algodão e que o dono ganha de

quinze a vinte reais num blazer vendido a cento e cinquenta, duzentos reais.

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Roque Patussi também fala da exploração da mão de obra e os gastos que os

empregadores têm, enquanto os coreanos ficam com o lucro. Indagado pelo narrador sobre

quanto o consumidor paga, ele responde que, se o produto final custou entre cinco e sete reais

o consumidor paga em torno de trinta reais e se custou doze ele pode chegar ao mercado por

até cento e cinquenta reais e o boliviano ganhou quinze centavos.

Imagens do terminal Barra Funda de ônibus mostrando o regresso de alguns

bolivianos e o depoimento de Edi que diz que a situação deles em São Paulo é difícil,

principalmente porque são discriminados, por ser moreno e baixo. E que também são

assaltados por jovens brasileiros. Imagem de uma criança chorando e sendo erguida do chão

por um homem.

Edi continua o depoimento dizendo que a situação aqui ainda vale a pena, pois

seiscentos reais valem oitocentos pesos bolivianos, e que costuma falar a verdade sobre a

situação nas oficinas de costura, enquanto alguns donos falam que o Brasil é uma maravilha.

Imagens de bolivianos entrando no ônibus, na rodoviária. Edi fala de sonhos e que o maior

dele seria ter uma casa aqui e uma oficina de costura legalizada, para trazer seus familiares.

Ônibus saindo da rodoviária. Bandeira da Rádio Comunitária Infinita 106,7 FM e

imagens de trabalhadores na oficina ouvindo rádio. O locutor deseja uma boa tarde, anuncia a

hora e diz que é o programa mais popular da rádio do povo, porque se pode ouvir músicas

folclóricas peruanas, bolivianas e músicas latino americanas e depois traduz para o dialeto

Aymara.

Sérgio Suyama fala da atuação penal sobre aquele que explora o trabalhador, mas

que este não é o verdadeiro responsável e que se trata de um problema econômico que atinge

outros países e outros tipos de exploração e que, às vezes, este é o próprio pai. Fala que se

trata de um problema da globalização econômica e do envolvimento de grandes empresas

multinacionais na exploração da mão-de-obra e propõe trabalhar na questão na atuação que

une toda a cadeia produtiva.

Imagem de Adolfo trabalhado na oficina e depoimento na qual ele diz que desde

2001 pensava em vir para o Brasil. Lá ele estava mal e com dois filhos tinha a necessidade de

melhorar de vida e por isso veio já que tinha um cunhado aqui. Outras imagens de pessoas

trabalhando e Adolfo continua falando da dificuldade que os bolivianos encontram por não

saber falar o português e do problema com os filhos, porque tem lugares que não os aceitam.

Mais imagens de trabalhadores e crianças. Adolfo fala que tem saudades da família

da liberdade que teria se estivesse lá, da mãe que está no campo, dos sogros, dos amigos da

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escola e do quartel. Imagens de uma cerimônia de casamento e novamente o depoimento de

Sérgio Suyama, do Ministério Público Federal, que fala da irregularidade e que geralmente

eles entram como turista, além do Estatuto do Estrangeiro que impede que turistas exerçam

alguma atividade econômica no Brasil.

Com isto, estes imigrantes acabam tendo que trabalhar de forma irregular e não têm

seus direitos assegurados e lembra que muitos brasileiros também trabalham nestas condições

em muitos lugares do mundo, em situação de subemprego e lembra que se quisermos ser

respeitados e ter direitos fora do Brasil é preciso que aqui se faça a mesma coisa.

O depoimento do antropólogo Sidney Antonio Silva diz que é preciso readequar a lei

do estrangeiro para a nova realidade de integração regional, e que este problema não é só uma

questão econômica, mas uma questão de direitos humanos, e vê-los não como aquele que veio

para roubar o emprego do brasileiro ou trazer problemas, na verdade ele vem para somar,

colaborar, produzir riquezas e contribuir para o enriquecimento cultural.

Roque Patussi fala que em uma reunião no bairro da Mooca eles pediram a expulsão

dos imigrantes da região e ele então disse para a pessoa que o representou que falasse que

concordava, mas que teria que expulsar todos os imigrantes daquela região e que se voltasse a

plantar árvores e construir ocas, pois ali moravam os índios e que nós é que somos invasores.

Ele entendeu que se tratava de xenofobia.

Imagens, cobertas com música, de crianças no parque de diversão, faixas e discurso

em apoio à nova constituição boliviana e palavras de ordem pedindo mais liberdade,

democracia, menos violência, dignidade e muitas pessoas com bandeiras entoando gritos a

favor da Bolívia. Muitas manifestações da comunidade boliviana residente em São Paulo.

O Padre Mário Geremia fala da importância da festa e da dureza do dia-a-dia e que o

espaço da festa é para recriar, recriar amizades, vínculos e refazer o desgaste pessoal, ao

mesmo tempo, que tem a função de agradecer. Imagens de bolivianas com roupas típicas, ao

som de uma banda musical. Todos cantam e dançam na festa de Independência da Bolívia no

Memorial da América Latina com muitas imagens e finaliza dedicando o documentário a

todos os bolivianos e bolivianas que vivem e ajudam a construir a cidade de São Paulo.

Os documentários ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo, 100%

Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo apresentam elementos de análise

política e tratam de questões relacionadas ao trabalho nas oficinas de costura de bolivianos

indocumentados e os problemas enfrentados por eles quando há inspeção nestes locais. Faz

também uma relação do trabalhador boliviano no Brasil e a situação de trabalhadores

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brasileiros em outros países, além de retratar os preconceitos e os problemas de

relacionamento entre bolivianos e brasileiros.

O Estatuto do Estrangeiro restringiu bastante à atuação de trabalhadores estrangeiros

no Brasil nos anos de 1970 o que os leva, até hoje, a trabalhar muitas vezes na

clandestinidade, embora um acordo ajustado pelos países do MERCOSUL já tenha, de certa

forma, estabelecido outras regras que os auxilia nesta questão. Mesmo assim, segundo os

depoimentos, muitos continuam trabalhando em condições precárias porque estão em situação

irregular no país.

A relação entre trabalhadores e empregadores também é bastante conturbada no

sentido de que se exige muito, mas se pago pouco pelo que é produzido. Sem falar que muitos

destes trabalhadores têm que trabalhar e morar nas oficinas de costura. Outro dado importante

se refere, assim como nos outros documentários, a rede social bastante forte entre a

comunidade, na qual uma pessoa arruma emprego para a outra, o que os leva a trabalhar,

geralmente, com seus familiares.

O problema do preconceito com relação à comunidade boliviana de São Paulo pelo

que se vê nos documentários, beira a xenofobia e muitos acabam voltando para a Bolívia

porque não conseguem fazer suas vidas aqui. No entanto, parece que há um esforço grande

para que estas pessoas consigam viver minimamente com dignidade. Mas se existem muitos

problemas com relação à questão do trabalho, a cultura parece ser uma maneira bastante

interessante de vínculo com a terra natal.

3.2. O TRABALHO E A FESTA

A questão do trabalho da comunidade boliviana que reside na cidade de São Paulo é

bastante complexa e, embora a mídia tenha tratado o assunto diversas vezes, principalmente,

se referindo ao trabalho nas oficinas de costura como em condição análoga ao trabalho

escravo, não me lembro de ter ouvido em nenhuma destas reportagens depoimentos dos

envolvidos nos casos ou os mais interessados no assunto, os bolivianos.

Como disse, trata-se de uma questão complexa que dever ser analisada sob diferentes

aspectos, a partir dos trabalhadores, dos empregadores, das multinacionais, do Ministério do

Trabalho, enfim, de todos os implicados nessa cadeia produtiva. Até porque, esse tema tem a

ver com a globalização, pois não são somente os bolivianos que imigram para o Brasil, ou

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qualquer país que seja a procura de novas oportunidades e melhores condições de vida. É um

problema econômico mundial.

Mas, o fenômeno da imigração boliviana para o Brasil e, principalmente para a

cidade de São Paulo está diretamente associada e motivada por aspirações econômicas, por

uma mudança de vida. E embora a Diretora Geral do Ministério da Imigração Boliviana,

Cossett Entensoro, no documentário ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo afirme

que existem profissionais altamente qualificados na Bolívia e que a economia está

estabilizada, nem estes profissionais, segundo ela mesma, estão no mercado de trabalho.

Não por acaso, os trabalhadores bolivianos que vêm ao Brasil, segundo Don Carlos

Soto e Sidney Antonio Silva, são jovens e produtivos, mas pouco preparados e com nível de

escolaridade de médio a baixo. Eles vêm orientados para trabalhar nas oficinas de costura,

inclusive, existem agenciadores de mão de obra, os coiotes, que fazem a intermediação e

cobram para trazer esses trabalhadores.

Segundo Sérgio Suyama, do Ministério Público Federal, no documentário Nação

Oculta: Bolivianos em São Paulo, no começo eram os coreanos que tinham pequenas oficinas

de costura que contratavam diretamente os bolivianos. Depois, outros donos de confecção de

diferentes nacionalidades fizeram o mesmo, inclusive, bolivianos que estavam no Brasil há

mais tempo e já tinham conseguido comprar suas máquinas também empregavam seus

conterrâneos.

Embora, em ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo, haja alguns

depoimentos de pessoas como, Candi Coraci e Luis Rodriguez, que dizem que o país está

bem, que as coisas estão melhorando e que eles têm fartura, a fala de Verônica Yujra, no

mesmo documentário, relata que àqueles que vêm ao Brasil em busca de novas oportunidades,

chegam aqui porque não faziam parte do lado rico de lá, talvez de Santa Cruz de La Sierra.

Mas este fluxo migratório, essencialmente econômico começou principalmente nos

anos de 1980, segundo o Padre Mário Geremia. Antes, muitos bolivianos vinham para estudar

e acabavam se radicando no Brasil. Mas mesmo na Bolívia, muitos trabalhadores rurais, por

causa da situação econômica daquele país saíam do campo para a cidade a procura de trabalho

e melhores condições de vida, pois não havia políticas agropecuárias, conforme declaração de

Luis Ortega.

Principalmente, a partir dos anos de 1990, a imigração boliviana se torna mais

contundente por motivos econômicos e a cidade de São Paulo passa a ser o centro das

atenções desta comunidade. E desde então muitos bolivianos desembarcam, diariamente, na

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rodoviária da Barra Funda com o objetivo de trabalhar aqui e construir uma nova vida, para

quem sabe, um dia voltar ao seu país.

Muitos, já com emprego encaminhado nas oficinas de costura acabam se dispondo a

levar a rotina, segundo Roque Patussi, da Pastoral do Migrante, em depoimento ao

documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, de acordar entre cinco e meia e seis

horas, começar a trabalhar as sete e meia, tomar café as oito, almoçar ao meio dia, tomar um

chá com bolacha as quatro da tarde e as oito da noite jantar e voltar ao trabalho até dez, meia

noite, uma hora da manhã para dar conta da entrega do pedido, pois não lhe dão muito prazo.

O Padre Mário Geremia acredita que hoje, oitenta por cento da mão de obra nas

oficinas de costura na cidade de São Paulo é de imigrantes bolivianos que, como já disse, já

vêm ao Brasil com o emprego garantido. No entanto, muitos destes jovens sonham com outras

oportunidades de emprego, como Samuel Chile que quer trocar de profissão e exercer a

função de corretor de imóveis.

Mas, muitos outros jovens também tem sonhos e acreditam que uma das saídas para

que eles não tenham mais que trabalhar nas oficinas de costura são os estudos. É este o tema

central do documentário 100% Boliviano, Mano, na qual Denílson Mamani, relata que prefere

morar na rua a ter que trabalhar com costura. Já Juan Estrella, no mesmo documentário, diz

que não gostaria que seu filho, que ainda é criança, trabalhe como costureiro e prefere que ele

estude e venha a ser um policial ou médico.

Wilson, do documentário Não Oculta: Bolivianos em São Paulo, também sonha em

montar uma fábrica e uma loja próprias para trabalhar e diz que quando o boliviano vem é

para trabalhar e contribuir com o crescimento do país. Também Edi declara: “Sonho grande.

Bom, todo mundo sonha né. Mas o meu sonho grande é ter uma casa aqui. Estamos falando

de sonhos né, e eu tenho vários sonhos. E, esse é o sonho que eu mais gostaria de realizar”

(EDI, Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, 2008).

Mas, voltando às máquinas ou ao trabalho nas oficinas de costura. Para alguns

bolivianos, este trabalho trouxe uma independência financeira que na Bolívia eles não

conseguiriam, porém muitos deles ainda trabalham para coreanos, chineses e até mesmo

compatriotas, principalmente, mas não necessariamente na região central de São Paulo.

Muitas oficinas estão localizadas na periferia da cidade.

Nas grandes cidades e nos espaços reservados do interior cresce cada vez mais o número de lugares inacessíveis, isto é, fechados e protegidos de qualquer olhar; estão fora do alcance da curiosidade inocente e bem resguardados da espionagem. Sem serem propriamente militares, seguem

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esse modelo e estão além de qualquer risco de controle da parte dos passantes e dos moradores; ou até mesmo da polícia, que há muito tem suas funções reduzidas à mera vigilância e repressão da delinquência mais comum (DEBORD, 1997, p. 208).

Este trabalho geralmente é mediado por terceiros, portanto, eles não têm contato e

nem sabem, ao certo, para quem estão trabalhando. Está é a discussão proposta pela advogada

Ruth Camacho, no documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo e talvez este seja o

grande problema que envolve a questão da exploração de mão de obra boliviana nas oficinas

de costura, quando se trata de trabalho em condições análogas ao do escravo.

Para Ruth Camacho, quando se fala de exploração da mão de obra vem logo à cabeça

que o dono da oficina está explorando, no entanto, ela entende que é algo que antecede à tudo

isso e que o problema começa na plantação de algodão, mas não explica como isto acontece.

Entretanto, a advogada fala que um blazer vendido, nas lojas, por cento e cinquenta a

duzentos reais, o dono da oficina ganha quinze, vinte reais e que a discrepância é muito

grande.

Roque Patussi, da Pastoral do Migrante, também fala sobre o assunto e diz que o

dono da oficina de costura tem muitos encargos como, pagamento do aluguel, das máquinas,

contas de água, luz e telefone e que paga em média, aos bolivianos, dez, quinze centavos por

peça produzida e que o coreano quando recebe de volta o produto pronto entrega para as

grandes empresas, muitas vezes, por cinquenta, sessenta e até cem reais. É neste processo que

Patussi vê a exploração.

Tema, inclusive, pertinente nos documentários analisados nesta dissertação, no

entanto, em ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo, Verônica Yujra comenta que o

fato de os bolivianos trabalharem de 12 a 14 horas nestas oficinas não quer dizer que se trate

de trabalho escravo, uma vez que na Bolívia a carga horária é a mesma. O diferencial é que no

Brasil eles podem consumir mais, conforme também as declarações do Padre Mário Geremia.

Verônica Yujra, líder do Projeto ¡Si, yo puedo! e o Padre Mário Geremia da Pastoral

do Migrante são categóricos ao falar que os bolivianos que trabalham nestas condições não se

identificam como escravos, porque partem do princípio de que tomaram esta decisão de vir ao

Brasil e de permanecem por vontade própria, portanto, segundo eles não existe escravidão.

Até porque quando eles chegam, a maioria já sabe das condições de trabalho, e inclusive, que

vão morar nas oficinas de costura.

Mesmo assim, na visão de alguns trabalhadores bolivianos, ainda compensa. Embora

o preço pago pela peça de roupa seja demasiadamente baixo e eles tenham que se sujeitar a

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longas jornadas de trabalho, no final do mês o salário recebido é trocado pelo peso boliviano e

este valor é triplicado por causa da desvalorização da moeda boliviana. Muitos imigrantes

acabam enviando este dinheiro para a Bolívia, para seus familiares. Conforme Edi, além do

trabalho, você tem a casa para morar e a alimentação.

Edi costuma dizer a real situação para o boliviano que quer vir trabalhar aqui. Fala

que tem que gostar de trabalhar, fala sobre a forma de trabalho, a carga horária e que no Brasil

é assim. Para ele, tem muitos donos de oficina de costura que dizem que o país é uma

maravilha, que se ganha muito, mas ele prefere dizer a verdade e assim cada um pode tomar a

decisão que quiser.

Muitos destes trabalhadores estão ilegalmente no Brasil e trabalham sem a

documentação exigida pelo Ministério do Trabalho. Segundo Rubén Vargas, normalmente na

imigração boliviana, basta que um da família migre e este estabelece as condições para que

outros membros da família venham trabalhar no mesmo local. O Padre Mário Geremia relata

que eles têm uma rede social muito forte e que ao chegar a São Paulo, eles já têm onde morar

e trabalhar, mesmo de maneira irregular.

Marcel Biato, ex-embaixador do Brasil na Bolívia diz que não são só os bolivianos,

mas muitos imigrantes brasileiros também acabam se sujeitando a morar em apartamentos

pequenos, a trabalhar o dia todo porque querem juntar dinheiro e oferecer melhores condições

de vida a sua família. Mas alerta que se a sociedade brasileira aceita estes imigrantes,

refugiados econômicos, deve oferecer e garantir condições para que eles possam atender as

necessidades do Brasil para não criar bolsões de pobreza e frustração nos interessados.

Na sociedade contemporânea àqueles que consomem são vistos pelo que possuem e

não pelo que são. Alfonso Hinojosa, pesquisador boliviano, relata que se fizer a comparação

pelo que se obtém por esse trabalho aqui e pelo que se obtém pelo mesmo trabalho, mas com

horas extras, obviamente, lá a diferença é substancial. Neste sentido “o que as pessoas

intermediam com o capital só pode ser uma mera aparência. Desse modo, o capitalismo

necessita radicalmente do mundo das aparências” (HAUG, 1996, p. 70).

Esta questão fica bastante evidenciada no relato de Cossett Entensoro, Diretora Geral

do Ministério da Imigração da Bolívia, no documentário ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano

em São Paulo quando ela diz que o motivo da imigração para o Brasil tem a ver com a vida

ocidental que propõe o consumo, o consumismo e aquisição de bens e que esta ideia

contrapõe com as raízes culturais dos povos aimarás.

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No documentário 100% Boliviano, Mano, por exemplo, Denílson Mamani diz que

sua mãe trabalha para satisfazer suas vontades, que ela lhe dá roupas, comida e uma casa para

morar, coisas que ele nunca teve. É possível verificar que o rapaz é bastante vaidoso e está

cercado de relógios, jóias, perfumes, ou seja, ele leva uma vida, dentro das limitações que lhe

é imposto, de um jovem voltado para o consumismo.

O próprio Denílson Mamani falou que quando era mais jovem seus colegas de escola

o assediavam, batiam, e que chegou a pensar em voltar para a Bolívia, mas que hoje prefere

ficar aqui. Talvez seja pelo fato de que aqui ele leve uma vida, que na Bolívia, ele certamente

não levaria dadas as condições de vida proporcionadas pela sua mãe. E como vimos

anteriormente, muitos bolivianos, sonham em construir suas vidas aqui, muito em função ao

fato de que no Brasil, eles podem consumir mais.

Sérgio Suyama, do Ministério Público Federal, analisa como paradoxal essa relação

do capital e do trabalhador. Ele diz que existe uma liberdade de circulação do capital muito

grande e volátil entre as bolsas de Nova York, Tóquio, Brasil em busca de melhores

mercados, mas que, no entanto isso não se traduz para o trabalhador que busca novas

condições de vida em outros países dadas as barreiras pesadas e fortes exigidas pelos países

mais ricos.

E querendo ou não, para essa comunidade o Brasil pode proporcionar uma vida

melhor do que eles teriam na Bolívia, principalmente pela nossa economia, como já vimos

anteriormente. Por isso, eles acabam aceitando as condições de trabalho impostas pelos

empregadores das oficinas de costura, mesmo ganhando pouco pelo que produzem, visto o

problema da intermediação do trabalho.

Nas oficinas de costura a carga horária é pesada e a produção segue a lógica da

divisão do trabalho característico da sociedade do espetáculo, “com a separação generalizada

do trabalhador e do seu produto perde-se todo o ponto de vista unitário sobre a atividade

realizada, toda a comunicação pessoal direta entre os produtores” (DEBORD, 1991, p. 19),

que neste processo capitalista, o motriz econômico movimenta-se em favor e na sua maioria

para grandes marcas mundiais.

O trabalho nas oficinas de costura para grandes marcas do mercado mundial, como a

C&A, por exemplo, citado no documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, a

falsificação de produtos, a divisão de trabalho, o trabalho em condições análogas ao trabalho

escravo, assim como as notícias veiculadas pela mídia, em geral, relacionando os imigrantes

bolivianos ao narcotráfico, a marginalidade, como pessoas subversivas e até como assassinos

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coloca esta comunidade de traços indígenas tão fortes e uma cultura extremamente rica como

pessoas a margem da sociedade.

Entretanto, a partir dos depoimentos de Cristina Ribeiro, do Ministério Público do

Trabalho e Sérgio Suyama, do Ministério Público Federal há um esforço no sentido de fazer

que os bolivianos que trabalham de forma irregular e, isto é uma preocupação deles, possam

exercer suas funções documentados e regularizados e que tenham os mesmos direitos de

qualquer trabalhador brasileiro. E acrescentam que isto não quer dizer que eles estão

prejudicando o trabalhador brasileiro, até porque muitos brasileiros passam pela mesma

situação que os bolivianos, em muitos países que eles escolheram para trabalhar e morar.

O que a gente gostaria, é que [ela] pudesse, como qualquer trabalhador, ter sua carteira de trabalho, ter seus direitos trabalhistas assegurados: décimo terceiro, o salário mínimo, licença gestante, férias, etc., etc... Como qualquer trabalhador... Milhões de trabalhadores brasileiros também estão no exterior nessa mesma condição... Então, se a gente quer que o brasileiro tenha ali um tratamento digno... a gente também tem que oferecer tratamento digno para o trabalhador boliviano (SÉRGIO SUYAMA, Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, 2008).

O fato de o boliviano trabalhar muitas horas nas oficinas de costura e em condições

análogas ao do escravo, segundo os documentários, ¡Si, yo puedo! – O sonho boliviano em

São Paulo e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, o depoimento de Rubén Vargas diz que

a cultura funciona como um elemento de coesão social forte e que as comidas, o baile, as

festividades, os esportes, as reuniões une as pessoas, principalmente, na feira da Rua

Coimbra, na Praça Kantuta e na festa em comemoração a independência da Bolívia, no

Memorial da América Latina que acontece todos os anos no primeiro final de semana do mês

de agosto.

Eu creio que a função da festa ela é muito importante. Eu diria até necessária. E é para sobreviver ao cotidiano. Porque o cotidiano é muito frio, é muito desgastante, é um cotidiano muito sofredor. Então, justamente, o espaço da festa é para recriar. Recriar forças, recriar amizade, recriar vínculos, e se refazer de um desgaste pessoal. Ao mesmo tempo, ela tem a função de agradecer. É o grande momento da gratidão. A festa aonde ela diz a Deus, o criador do mundo, o criador das culturas, “muito obrigado”. É onde ela diz à sociedade brasileira “muito obrigado”. E, é aonde ela diz ao que está ao meu lado, “você é meu irmão” (PADRE MÁRIO GEREMIA, Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo, 2008).

É possível verificar que nos três documentários analisados nesta dissertação, há

espaço dedicado às festas, sobretudo às danças, pois se trata de uma cultura extremamente

rica que soube unir a cultura local e absorver a cultura do colonizador, num sincretismo que

resultou num espetáculo que mistura elementos diversificados e extremamente bonitos.

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A cultura boliviana é uma cultura ancestral e muito forte que vem dos indígenas, dos

aimarás, dos quéchuas, dos povos indígenas orientais, de comunidades tradicionais e que,

mesmo, a partir das suas relações com o homem branco procura conservar seus ideais e

preservar suas danças, seus costumes, suas crenças, suas comidas, nos diferentes espaços em

que a comunidade boliviana se apresenta.

A Praça Kantuta, por exemplo, procura resgatar essa cultura, é um espaço híbrido,

um espaço que não é a Bolívia e nem o Brasil, é um entrelugar que traduz o que há de mais

“representativo em suas tradições, como se fosse um pedaço do seu espírito nativo. Manter

viva essa identidade é uma maneira do deslocamento cultural superar essa discriminação

social”, onde o reprimido faz-se presente, pois a cultura é um forte elemento de coesão (¡Si,

yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo, 2012).

O documentário 100% Boliviano, Mano é entre os três, o que melhor retrata e mostra

a festa da comunidade boliviana de São Paulo no Memorial da América Latina, na qual

Carmen, mãe de Denílson Mamani lembra a importância da participação dela na festa e

também de mostrar ao filho que não se pode esquecer das danças típicas, da cultura da Bolívia

e que sua mãe se veste todos os dias com roupas parecidas às na festa.

Os outros documentários falam menos sobre a cultura boliviana, mas mostra muitas

imagens das festas e ensaios dos grupos folclóricos. No entanto, o objetivo desta dissertação

não é retratar a festa no seu contexto geral, suas diferentes danças, bailados, bandas, roupas

coloridas, mas enfatizar a dança diablada, uma das mais populares no Brasil e no carnaval de

Oruro, na Bolívia.

“A diablada é uma dança folclórica nativa, em sua origem pelo menos, nasceu nas

montanhas andinas das quais se extraiam prata e ouro que eram oferecidos ao Deus Supay”.

Trata-se uma dança de caráter religioso restrito aos mineiros que se disfarçavam de diabos

para atrair favores de Supay (Deus) ou para lhe representar em determinadas festividades.

Antigamente, nas regiões mineiras, este culto se confundia com o tributo ao “El Tio” (Deus

das forças e das montanhas) cujas características eram iguais ao do diabo, no entanto este só

era venerado no interior das minas (HEREDIA apud SALAZAR, 1976, p. 100).

Esta dança se popularizou quando passou a ser dedicada à Virgem de Socavão,

protetora dos mineiros, com isso ganhou mais adeptos e teve mais êxitos. Atualmente, fora

dos centros de mineração, diferentes grupos de pessoas participam da dança, associação de

trabalhadores, artesãos, universitários, padrões e empregados. A Diablada é símbolo do

Departamento de Oruro, capital folclórico da Bolívia.

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São muitos os personagens que participam desta dança: o Arcanjo Miguel, o Diabo

(Lúcifer ou Satã), a China Supay (mulher do diabo), os sete Diabos que representam os sete

pecados capitais: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, preguiça e inveja, um ou vários ursos

que vão abrindo espaço para os bailarinos, um condor e muitos diabinhos.

Todos estes personagens têm trajes muito especiais e específicos. Segundo Elssa

Paredes de Salazar e é assim que eles se vestem:

Diabo, Lúcifer ou Satã: é magnífico, radiante e cheio de esplendor. Veste camisa e

calça brancas. Sobre o peito, uma espécie de escudo, proteção em forma oval, ou de

coração, ou mesmo de outras formas que se adaptam ao corpo, repleto de bordados

em alto relevo e desenhos variados. Na cintura, um cinturão largo com bordados

semelhantes ao do escudo cheio de moedas antigas de onde descem quatro folhas de

formato singular. Sobre este traje uma ampla capa de veludo vermelho, suntuoso,

resplandecente e belo, cheio de bordados de fios de ouro, prata e muitas pedrarias

coloridas. Introduzida na cabeça, uma máscara de gesso com enormes chifres de

diferentes animais e seres selvagens, todo pintado com cores fortes e brilhantes. Na

parte posterior da máscara uma madeixa de cabelos loiro pendurada. No alto da

máscara uma coroa reluzente, símbolo de hierarquia. Nos pés botas brancas e

vermelhas que vai até a panturrilha, ornamentadas com bolas de seda.

Arcanjo Miguel

China Supay

Diabo

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Arcanjo Miguel: Veste calça e blusa brancas, de seda, e em cima uma saia curta e

uma capa celeste. Na cabeça, a máscara característica e sobre ela um tipo de capacete

militar e na mão uma espada.

Los Diablitos. Os diabos que representam os sete pecados capitais vestem trajes

similares ao do diabo, porém é menos vistoso e com alguma coisa que represente o

pecado que simboliza. No lugar da capa eles levam lenços de seda de diferentes cores

e sobre eles, outro lenço de veludo preto ou vermelho com franjas de fio de ouro e

prata, bordado em alto relevo, com dragões soltando fogo pela fuça ou cobras

impressionantes. A máscara se parece com a do diabo só que em vez de coroa, tem

morcegos, dragões a lados ou cobras e trazem nas mãos lenços de seda de diferentes

cores.

China Supay: Veste com saias típicas sendo que a de cima tem cores fortes, peruca

loira e descabelada e máscara com olhos saltados e enormes pestanas, sobre a cabeça

uma pequena coroa.

Los Osos: O vestido de urso é feito de lã de ovelha. Usa uma máscara com cara e

expressão de urso.

Los Bailarines. A bailarina que representa o condor se destaca pelo traje preto. Sobre

os braços estão asas amplas e largas cobertas de plumas pretas, sobre o peito são

brancas, em volta do colarinho plumas brancas. Cobrindo a cabeça uma mascará do

animal que ela representa.

Segundo Salazar (1976), a música tocada na diablada tem características próprias,

pois é melodiosa e ritmada e faz com que os diabos bailem e dancem ao ritmo compassado

dela, pulem muito mudando os passos de vez em quando, com gritos e alaridos altos. Ao ver o

grupo dançando com suas belas capas posicionadas, suas máscaras alucinantes, o movimento

das suas coreografias vistas em conjunto, o vaivém sensual da China Supay e as formas

grotescas dos ursos e do condor torna o espetáculo impressionante concentrando beleza,

colorido, ritmo e resistência física de seus componentes.

A Diablada é uma dança boliviana que representa em forma de drama teatralizado a

luta entre o bem e o mal do Arcanjo Miguel e uma legião de diabos que tentam impor a força

do mal sobre a Terra. Essa narrativa relata que em uma mina vivia um ladrão chamado

Anselmo Selarmino – o Nino Nino ou Chiru Chiru – que roubava para repartir entre os

pobres. Em uma noite o ladrão foi ferido por um trabalhador e agonizando foi levado por uma

mulher virgem do povo até onde morava.

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No dia seguinte, no lugar onde Anselmo Selarmino foi encontrado morto, os

mineiros que trabalhavam naquela região encontraram, com grande surpresa, a imagem da

Virgem da Candelária à cabeceira de sua cama. A partir desta descoberta as pessoas

resolveram rezar para ela durante três dias ao ano desde o sábado de carnaval usando disfarces

semelhantes ao diabo e ao ritmo de músicas.

A cultura boliviana é bastante rica e diversa e toda essa diversidade é possível de ser

vista nas festas que acontecem, principalmente, no Memorial da América Latina. A diablada é

uma dança que apresenta uma estética visual muito atrativa e significativa, cujas máscaras,

adereços, roupas são de extrema importância dentro do contexto da dança. E toda poética e

estética dessa manifestação cultural assim como das relações de trabalho são narrativas que

apresentam elementos sagrados e profanos.

Assim como no Brasil o carnaval é uma festa muito popular na Bolívia. Porém,

diferentemente no nosso carnaval, lá as danças, as músicas, os trajes são diversos. Nos

desfiles do Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, as escolas de samba trazem diferentes

alas, samba enredo, destaques, comissão de frente, de maneira geral. Na Bolívia, no famoso

carnaval de Oruro que dura três dias e três noites, as danças são diferentes, pois além da

diablada são apresentadas outras danças.

Laplantine (1998) diz que cultura é um conjunto de comportamentos, saberes e

saber-fazer que são característicos de um grupo humano ou de uma sociedade cujas atividades

adquiridas através de um processo de aprendizagem são transmitidas aos seus membros. Desta

forma, a dança diablada é uma manifestação cultural que mesmo fora da Bolívia, segundo

Carmen no documentário 100% Boliviano, Mano, deve ser preservada é por isso que ela gosta

de participar e incentiva que o filho também o faça. Geralmente, as festividades desta

comunidade acontecem em espaços onde os brasileiros podem compartilhar da festa.

Além da feira da Rua Coimbra, da Praça Kantuta, o Memorial da América Latina é

um espaço de confraternização da comunidade boliviana de São Paulo, todos os anos no

primeiro sábado do mês de agosto eles se reúnem e fazem festas em comemoração a

independência da Bolívia. Lá os bolivianos apresentam, além de comidas típicas, artesanato,

vestuário, os grupos folclóricos de dança. E a diablada não pode faltar.

A diablada é uma dança que se originou nas invocações andinas à Pachamama (Mãe

Terra), ao Tio Supay (Diabo) das regiões mineiras e à Virgem da Candelária. Nesta dança a

figura do Diabo não simboliza o mau, mas a interpretação da luta contra o bem e o mal. O

bem representado pelo Arcanjo Miguel e a Virgem da Candelária e o mal representado pelos

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diabos e demônios e tem uma dupla interpretação. “No sentido cristão, seria um expoente dos

sete pecados mortais do tribunal do ‘rebelde Lúcifer Príncipe’”. Mas também é uma sátira ao

conquistador e significa a rebelião de mineiros disfarçados de diabo contra seus opressores

lutando pela liberdade (www.brasilbolivia.com.br - Acessado em 25/01/2013 as 16h21).

O trabalho e a festa são atividades que despertam sensações e motivações diferentes,

mas que são importantes no sentido de que são necessários, o primeiro como um meio de

subsistência porque se tem que trabalhar para garantir o nosso próprio sustento e de nossos

familiares, e o segundo para poder dar um alento ao corpo e a alma depois do trabalho. Sendo

assim, tanto um como o outro tem aspectos de sagrado e de profano, temas que veremos a

partir de agora.

O sagrado é algo que se manifesta como uma realidade totalmente diferente da

realidade histórico-social, onde o homem está inserido numa sociedade que o proporciona

práticas objetivas e subjetivas. O sagrado se manifesta ao homem porque se opõe ao profano

pela hierofania – uma manifestação reveladora do sagrado, por exemplo, em objetos, pedras

ou por uma hierofania suprema que para os cristãos seria a encarnação de Deus em Jesus

Cristo. Trata-se, portanto de uma manifestação diferente a nossa realidade natural, “profana”.

Há uma incoerência na manifestação da hierofania porque a manifestação do sagrado

em um objeto, por exemplo, o torna sagrado, entretanto como ele faz parte do mundo cósmico

ele não deixa de ser o próprio objeto, assim nada o difere de ser o mesmo objeto do mundo

profano. Para aqueles que têm uma experiência religiosa, a Natureza é passível de revelar-se

como sacralidade cósmica. Sendo assim, o Cosmos poder ser totalmente uma hierofania.

Nas sociedades arcaicas, o homem tinha uma tendência maior a viver mais próximo

do sagrado ou mais perto de objetos consagrados. Já nas sociedades primitivas ou pré-

modernas o sagrado corresponde ao poder e em última instância à realidade. Desta forma, o

homem religioso procura estar mais próximo ao universo sagrado. “O homem moderno

dessacralizou seu mundo e assumiu uma existência profana” (ELIADE, 1922, p. 14).

Assim, existem dois modos de ver o mundo, ou pelo sagrado ou pelo profano,

depende de como o homem conquistou o Cosmos, o seu espaço. Desta forma, há dois

espaços, um sagrado e outro não sagrado. O sagrado, para o homem religioso se localiza no

espaço homogêneo, forte, significativo, único que é real, fundação do mundo, no rompimento

do espaço onde se descobre o “ponto fixo”. O sagrado funda o mundo, revela o espaço

sagrado a partir do próprio ponto fixo, no Centro, sua origem está na Criação do Mundo, no

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Cosmos. O centro do mundo é o espaço sagrado. “Instalar-se num território equivale, em

última instância, a consagrá-lo” (ELIADE, 1992, p. 23).

Já o profano está no espaço homogêneo e neutro, não há nenhuma ruptura que

diferencie qualitativamente um espaço do outro. O “ponto fixo” aparece e desaparece, existem

fragmentos de mundo, uma infinidade de lugares neutros, amorfo. O homem recusa a

sacralidade do mundo e “assume unicamente uma existência “profana”, purificada de toda

pressuposição religiosa” (ELIADE, 1992, p. 18).

Entretanto, o profano jamais se encontra em estado puro mesmo para o homem não

religioso, ele nunca vai conseguir eliminar inteiramente o comportamento religioso. Até algo

mais dessacralizado conserva aspectos de valorização religiosa do mundo, pois ele carrega

ritos a vida inteira, isto acontece de forma inconsciente. O homem não religioso descende do

homem religioso “os comportamentos de seus antepassados religiosos, que constituíram tal

como ele é hoje.” (ELIADE, 1992: 170).

O espaço profano para o homem não religioso, ainda assim possui uma qualidade

excepcional, única, porque para ele este espaço é único, é um “lugar sagrado” do seu universo

particular, privado, onde ele tem a revelação de outra realidade, uma teofania, ou seja, uma

manifestação de Deus em algum lugar, pessoa ou coisa, no qual seu comportamento “cripto

religioso” mostra valores de “degradação e dessacralização dos valores e comportamentos

religiosos”, levando este homem não religioso a apelar para qualquer religião (ELIADE,

1992, p. 19).

A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado (ELIADE, 1992, p. 19).

Este limiar, a porta, é uma maneira de dar continuidade ao espaço porque além de ser

um símbolo, é uma passagem, uma maneira de transcender o espaço profano e entrar no

espaço sagrado. Simbolicamente é como se através desta porta os deuses pudessem descer a

Terra e o homem subir ao Céu. “Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção

do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o

torna qualitativamente diferente”. É sair do Caos do espaço profano e adentrar no Cosmos do

espaço sagrado (ELIADE, 1992, p. 20).

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Para Eliade o que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição entre este

espaço sagrado, como um território habitado, conhecido do Cosmos e um espaço

indeterminado, desconhecido, um outro lugar, um espaço estrangeiro onde habitam espectros,

demônios, “estranhos” do Caos. No Cosmos a obra dos deuses está em conexão, comunicação

com o mundo interiorizado do sagrado, um momento religioso, por exemplo, é um momento

cosmogônico, de ordem cósmica.

Os ritos são uma evocação ao sagrado, portanto, uma reatualização cosmogônica.

“Não precisa permanecer na esfera da recordação através da tradição oral ou da narrativa

escrita, mas pode ser submetido à renovação ritual em um culto”. A diablada é um exemplo

de reatualização e evocação do sagrado que num espaço como o Memorial da América Latina

também se coloca como um espaço sagrado, como um Centro, um Centro do Mundo

Cosmogônico. (ELIADE, 2011, p. 49).

A abolição do tempo profano e a projeção do indivíduo para o tempo mítico só

acontece nos períodos essenciais – isto é, naqueles em que o indivíduo de fato é ele próprio

por ocasião de rituais ou atos importantes como alimentação, geração, cerimônias, caça,

pesca, guerra, trabalho. O restante de sua vida é passado em tempo profano, que carece de

todo significado na condição de “transformar-se” para um determinado modo de ser e é na

descrição de seu significado como tal que se dá a sua manifestação.

O trabalho, nessa concepção de Mircea Eliade, assim como a festa encontra-se na

dimensão do sagrado. As pessoas “saem” do seu tempo histórico e profano e experimenta o

tempo mítico e sagrado retornando ao tempo de origem, atemporal, dada pela narração da

criação do mito e a “função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares

de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas” (ELIADE, 1992, p. 51).

Como pudemos ver o trabalho é sagrado, porém se voltarmos a pensar na questão da

comunidade boliviana de São Paulo e verificarmos que, conforme Mircea Eliade, numa

sociedade dessacralizada torna-se profano dado o seu caráter econômico e, neste caso

específico, na qual este trabalho está relacionado, segundo os documentários, ao trabalho

análogo ao escravo toda essa concepção cai por terra.

Este trabalho nas oficinas de costura, portanto, tem um caráter profano, pois é

destituído de simbolismo religioso, de um modelo mítico. Neste caso o objetivo é de

exploração e proveito econômico. “Tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade

criadora – pertence à esfera do sagrado e, por consequência, participa do Ser. Em

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contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico,

pertence à esfera do profano” (ELIADE, 1992, p. 51).

A submissão dos bolivianos que trabalham exaustivamente nas oficinas de costura,

em cargas horárias que variam de 12 a 14 horas, embora não seja só aqui no Brasil, mas

também na Bolívia, conforme depoimento de Verônica Yujra, é de caráter profano, ainda

mais quando este trabalho está relacionado à questão do consumo, uma vez que isto está

totalmente ligado à procura de melhores condições de vida e de sobrevivência.

A festa também tem um caráter sagrado. “A recapitulação, através dos cantos e da

dança, é simultaneamente uma rememoração e uma reatualização ritual dos eventos míticos

essenciais ocorridos desde a Criação”, o Carnaval de Oruro, por exemplo, assim como as

apresentações festivas ocorridas nos espaços, também sagrados, como no Memorial da

América Latina revivem o in illo tempore. (ELIADE, 2011, p. 27).

As festividades da comunidade boliviana de São Paulo são, em sua essência, um

convite a reatualização dos deuses de origem e um chamamento para a contemplação das

divindades evocadas nestas festas. Neste caso, o espaço também é sagrado, pois revive o

tempo mítico e sagrado do encontro da imagem da Virgem da Candelária numa mina na

Bolívia, no tempo da Criação.

A diablada é, no contexto do sagrado e do profano, um exemplo interessante, pois

enquanto festa, a dança está ligada a sacralidade e recorre à narrativa mítica das figuras do

Arcanjo Miguel e da Virgem da Candelária. No entanto a figura do demônio é, a priori, o

profano, mas somente, a priori, pois como já visto significa, neste evento, à luta entre o bem e

o mal que neste aspecto assume um caráter sagrado.

Como verificamos o sagrado e o profano, do ponto de vista de Mircea Eliade, é

recorrente nas narrativas míticas que envolvem as questões do trabalho e da festa. Muitas

vezes até elas se encontram, ora um evento é sagrado, ora profano, principalmente quando se

trata da comunidade boliviana que vive em São Paulo, cujo trabalho é uma forma de

sobrevivência fora do seu país de origem e para tanto se utiliza da cultura, através das festas e

das danças para reatualizar e exorcizar literalmente os seus demônios na diablada.

O trabalho nas oficinas de costura é, de certa maneira, uma saída para estes

trabalhadores que, principalmente nos anos de 1990 começaram a imigrar, sobretudo, por

questões econômicas. Mas a forma que eles encontraram para sobreviver a esses infortúnios é

a preservação de sua cultura e as apresentações festivas que eles realizam em espaços como a

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Rua Coimbra, a Praça Kantuta e o Memorial da América Latina quando comemoram a data de

independência da Bolívia.

A festa, assim como o trabalho tem um caráter sagrado, uma vez que reatualiza o

tempo mítico, o tempo sagrado do Cosmos in illo tempore para dar conta do profano,

mergulhado no Caos. A diablada é uma dança teatralizada cujos elementos caractericiais

remetem também ao sagrado e ao profano, tanto no aspecto do culto ao Arcanjo Miguel e a

Virgem da Candelária quanto na significação no rito em si, ou seja, na luta entre o bem e o

mal.

Portanto, o trabalho e a festa, mesmo que o primeiro seja em condições precárias ou

análogas ao trabalho escravo não deixa de ter algumas características do sagrado no que tange

o trabalho em si, mas profano a partir do momento em que este tem um proveito econômico,

motivo pelo qual existe um grande fluxo migratório da comunidade boliviana, e a segunda

como uma maneira de exorcizar os “demônios”, no sentido literal, como o diabo figura

predominante na dança diablada.

3.3. REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS SOBRE A COMUNIDADE BOLIVIANA DE

SÃO PAULO

A imigração é um fenômeno que atinge todos os países, porém a chamada imigração

econômica acontece, sobretudo, nos países em desenvolvimento. No caso específico da

Bolívia, não é diferente, uma vez que se trata do país mais pobre da América do Sul. O fluxo

imigratório do país vizinho começou nos anos de 1950 com a chegada, principalmente, de

estudantes, porém se intensificou nos anos de 1990, agora, por questões econômicas.

Este fenômeno típico da globalização, se de um lado, proporciona melhores

condições de vida e de consumo, por outro lado, apaga alguns referenciais culturais

extremamente importantes, enquanto outros são assimilados. Se o trabalho nas oficinas de

costura é extenuante por causa das condições oferecidas aos trabalhadores bolivianos, talvez,

a cultura seja uma maneira de aproximá-los a partir das festas.

Mas este evento não é recente. Desde a época da descoberta existia no hemisfério

ocidental muitos tipos de cultura, das mais rudimentares até as mais complexas, e uma

enorme variedade de povos indígenas e muitos idiomas e dialetos centenários. Algumas

civilizações eram prósperas e bastante evoluídas, outras nem tanto, e entre as medianas está

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uma que não chegou a constituir uma civilização e nem uma política complexa: o aimará, na

região que hoje é a Bolívia (UREÑA, 1992).

Algumas civilizações quase organizaram impérios e outras pouco se desenvolveram.

A alta cultura no cultivo de alimentos (milho, batata), a criação de animais (lhama, alpaca)

serviam para a sua subsistência, além de ser um meio de transporte. As plantas cultivadas

dependia do esforço do homem para se fazer útil como alimento, para a medicina, para a

construção, desses povos da região andina.

A religião era uma maneira de união e a crença era em vários deuses. E se os deuses

se sacrificaram para criar o homem, o homem deveria se sacrificar por eles e os alimentar

(UREÑA, 1992). Alguns deuses eram bons e outros maus, assim, cada um deles tinha uma

representatividade simbólica para quem acreditava neste ou naquele deus e a eles era feita as

oferendas.

Esta representação mítica perdurou por muitos anos e ainda hoje muitos povos desta

região cultuam seus deuses. A diablada é um exemplo de crença em divindades, que se

originou nas invocações andinas à Pachamama (Mãe Terra) e ao Tio Supay (Diabo) das

regiões mineiras e também a Virgem da Candelária e cuja dança diablada é uma representação

da luta entre o bem e o mal nas figuras do Arcanjo Miguel e da Virgem da Candelária contra

uma legião de diabos e demônios.

Mas o tempo passou e vieram os colonizadores. A chegada de Colombo, em 1492, à

América causou uma desordem, um caos no Cosmos. E uma nova forma de vida foi

estabelecida sob muita submissão, preconceito e massacre que impôs ao nativo uma religião a

qual fugia completamente à crença dos colonizados, além de muito ouro que foi levado para a

Europa. Três impulsos motivaram para a conquista: “o primeiro humano (a riqueza), o

segundo divino e o terceiro ligado a apreciação da natureza” (TODOROV, 1999, p. 18).

Entretanto, para Todorov (1999), Colombo também acreditava na força da natureza,

ciclopes e em homens com caudas, sereias e amazonas – antropomórficos. Embora, a crença

mais surpreendente seja de origem cristã, o Paraíso terrestre, que para ele estava localizado

numa região temperada depois do equador, mas também atribui a chegada a este local pela

vontade divina.

Em relação aos sinais humanos, o comportamento de Colombo será, finalmente, mais simples. De uns a outros, há solução de continuidade. Os sinais de natureza são indícios, associações estáveis entre duas entidades, e basta que uma esteja presente para que se possa imediatamente inferir a outra. Os sinais humanos,

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ou seja, as palavras da língua, não são simples associações, não unem diretamente um som a uma coisa, passam por intermédio do sentido, que é uma realidade intersubjetiva (TODOROV, 1999, p. 30).

Colombo, do mesmo modo que atribui aos índios a qualidade de bondade, também se

referiu a eles como selvagens. Mas dois traços da personalidade deles foram descritos pelo

colonizador: a da generosidade e da covardia. Os índios trocavam tudo por qualquer coisa, até

vidros e taças quebradas. Mas, do mesmo modo que o Almirante proibia que seus marinheiros

fizessem trocas “escandalosas”, conforme Colombo, o próprio fazia.

Segundo relatos, a princípio não se sabia se os índios tinham propriedades, “mas tive

a impressão de que todos tinham direitos sobre o que cada um possuía”. Desta forma, alguns

índios que vieram com Colombo entraram nas cabanas dos índios locais e serviram-se de tudo

o que quiseram, e por outro lado, estes índios fizeram a mesma coisa achando que fazia parte

do costume daqueles. Este comportamento mudou a impressão de Colombo acerca dos índios

que de generosos passaram a ser ladrões, homens selvagens (TODOROV, 1999, p. 47).

Com relação à questão da covardia, a linha de pensamento era a mesma, de

superioridade, pois se tratava de índios que não tinham armas e eram medrosos que facilmente

eles conseguiriam dominar. Outro relato de Colombo se referia ao fato de que eles eram

crédulos e continuavam convencidos que os cristãos vinham do céu e levavam o ouro, e

consequentemente, de que o Almirante vinha do mesmo lugar.

Desta forma, estabelecia-se uma relação egocêntrica na qual creditavam aos europeus

uma superioridade e a eles um grau de inferioridade. Assim os índios começaram a ser

cristianizados, numa interpretação lógica, na visão dos colonizadores que queriam que os

índios adotassem seus costumes.

E digo que Vossas Altezas não devem permitir que nenhum estrangeiro tenha qualquer relação com esse país e não ponha nele os pés se não for católico cristão, pois a expansão e glória da religião cristã são finalidade e princípio desta empresa, e que não admitam nessas regiões ninguém que não seja bom cristão (TODOROV, 1999, p. 51).

E quando alguns destes índios se rebelavam quanto a esta imposição eles eram

queimados em praça pública. Mas havia um desequilíbrio nesta relação, na qual os espanhóis

davam a religião e tomavam o ouro. A propagação da religião, no entanto, coloca os índios no

mesmo nível de igualdade diante de Deus, por isso os colonizadores precisavam colocá-los

numa posição de inferioridade, impondo aos nativos uma ideologia escravagista, que

poderiam ser vendidos na Europa, tanto quanto a madeira do pau-brasil.

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Assim, a propagação da fé estava relacionada diretamente com a escravidão e muitos

deles na viagem à Europa acabavam morrendo e jogados ao mar e, os que chegaram à metade

estavam doentes. Deste modo, para Todorov, Colombo estava entre estes dois mitos

visivelmente contraditórios: de um lado o Outro como um “bom selvagem”, visto de longe e

de outro lado com um “cão imundo”, um escravo em potencial. Não percebendo o Outro e

impondo-lhe valores próprios, trata-se do Estrangeiro que busca em outros países a sua pátria.

Mas, num processo muito lento e difícil o mundo ocidental foi se desgarrando das

imposições colonialistas europeias. “O processo dos povos de língua espanhola foi muito

distinto. A luta para conquistar a independência foi longa e sangrenta; quanto terminou, os

países estavam arruinados, toda sua população foi dizimada, toda vida social estava

transtornada” (UREÑA, 1992, p. 67).

Desta forma, os povos latino americanos, aos poucos, começaram um movimento de

imigração dado todos estes transtornos porque passaram e a um período também turbulento de

ditaduras militares. Muitos tiveram que refazer suas vidas longe de suas culturas e readaptar

seus costumes. “Todos los hombres, em algún momento de su vida, se sienten solos; y más:

todos los hombres están solos. Vivir, es separarnos del que fuimos para internarnos em el que

vamos a ser, futuro extraño siempre” (PAZ, 1992, p. 175).

Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino prá lá (CHICO BUARQUE). E os

bolivianos começaram a imigrar para o Brasil a procura de novas oportunidades de vida.

Aqui, eles chegam todos os dias, a maioria para trabalhar nas oficinas de costura, que como já

mencionado algumas vezes, se tornou um trabalho extenuante, na qual a lógica capitalista

impõe esforços, muitas vezes, sobre-humano.

Los regímenes totalitários no han hecho sino extender y generalizar, por médio de la fuerza o de la propaganda, esta condición. Todos los hombres sometidos a su império la padecen. En certo sentido se trata de uma transposición a la esfera social y política de los sistemas económicos del capitalismo. La producción em massa se logra a través de la confección de piezas sueltas que luego se unen em talleres especiales (PAZ, 1992, p. 62).

Para contrapor a tudo isto, o refúgio é a cultura, a festa, a dança, para reaver a

cosmogonia que ora havia entrado em colapso no furacão do Caos. Nas festividades, o

homem profano entra em transe e chega ao sagrado. Criam-se regras especiais, privativas, em

dias especiais na qual se introduz uma lógica, uma moral e até uma economia que contradiz a

de todos os dias. Tudo ocorre em mundo encantado, um outro tempo, que se desliga do resto

da terra (PAZ, 1992), onde o sagrado e o profano se encontram nos mitos contemporâneos do

imaginário da comunidade boliviana de São Paulo.

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E eles estão aí. O Outro está aqui, bem ao nosso lado, como a Bolívia está ao lado do

Brasil. Os morenos, baixinhos, de feições indígenas são filhos de uma cultura milenar, da

qual, poucos podem ostentar e que tem no poder um presidente de origem aimará, um nativo.

E se eles escolheram São Paulo para morar e constituir uma nova vida, é porque eles

vislumbram novas perspectivas longe do seu país de origem, como fazem muitos brasileiros

que vivem em países distantes à procura de novas oportunidades. Isto faz parte do processo de

globalização.

E assim, o Brasil é para os bolivianos a América, a Terra Prometida, o ponto fixo do

Cosmos. Eles estão aqui para trabalhar e contribuir com a economia do país e não há intenção

em tirar vagas de emprego de brasileiros. O olhar que se tem sobre esta comunidade, pode ser

o mesmo sobre brasileiros em qualquer país do mundo. Desta forma, é preciso se colocar no

lugar do Outro para, inclusive, entender o que nossos conterrâneos passam fora do Brasil.

A Bolívia é um país que passou por muitas perdas desde a época da colonização e foi

marcado por uma turbulência política e social. E hoje, procura uma estabilidade nas suas

diferentes esferas, no entanto, não são suficientes para frear essa imigração latente. Ainda, não

há muitas opções de emprego e para não se envolver com o narcotráfico, uma das

possibilidades é a imigração para outros países.

A população boliviana que sempre viveu e conviveu com muitos idiomas e dialetos,

se vê hoje, novamente precisando desvendar outros códigos. Àqueles que imigram para o

Brasil precisam aprender a língua portuguesa, sem a qual fica difícil estabelecer a

comunicação. E segundo, os documentários, muitos o fazem, só assim eles acreditam que

podem se relacionar melhor.

A imagem da representação desta comunidade é, por exemplo, na visão de Angela

Nadir, a de um bicho raro e, mesmo o povo brasileiro sendo acolhedor, nas palavras do padre

Mário Geremia, existe bastante xenofobia pelo fato de a maioria deles terem características

acentuadamente indígenas e isto é bastante sentido por eles. Mas outras imagens são

atribuídas aos bolivianos como, pessoas ligadas ao narcotráfico, trabalhadores em condições

análogas ao do escravo. Mas como já visto estes problemas são muito antigos e vem desde a

colonização.

O Outro sempre foi visto com preconceito, o espelho do duplo se quebra quando

ambos são refletidos nele. A intolerância racial e a aceitação do diferente estão enraizadas no

inconsciente, embora, muitas vezes no processo primário freudiano, o discurso seja de

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tolerância. Mas, o medo e a desconfiança fazem desta população, uma comunidade oculta,

onde reside o silêncio e um “sim senhor”.

Mas diante disto, outros problemas surgem como brigas entre bolivianos e

brasileiros, atos de discriminação contra crianças em escolas públicas, inclusive, acarretando

em morte numa escola do Brás, aumento no consumo de bebidas alcoólicas e drogas em

algumas praças da cidade, de jovens que não vão às escolas culminando com a formação de

guetos (YUJRA). Além do desrespeito, da violência e do desprezo.

A grandeza e a relativa riqueza do Brasil e da cidade de São Paulo é o maior atrativo

para que os imigrantes bolivianos migrem para a capital paulista. Em busca do ouro perdido,

eles vêm atrás de emprego nas oficinas de costura e sonham em mudar de vida. Por isso, os

trabalhadores bolivianos trabalham muitas horas por dia, muitas vezes fechados dentro de

casas e oficinas, porque muitos deles não estão regularizados no Brasil.

Os espaços reduzidos são labirintos onde eles deixam as linhas para poderem voltar,

muitos vêm somente com o objetivo de trabalhar e depois regressar à Bolívia, depois de

estabilizados. Outros preferem fixar residência no Brasil. Mas, estes lugares, as oficinas,

podem ter relações com o sagrado, são ali que são depositados os seus sonhos, aqueles mais

inconscientes. Nestes labirintos, moram os desejos, as vontades, ali eles escondem as

frustrações, o cansaço pelas longas jornadas de trabalho.

O trabalho é uma espécie de culto à Pachamama e a Nossa Senhora de Copacabana,

em sentido metafórico. Esta comunidade é bastante religiosa e crê nas imagens sagradas há

muito tempo, desde o período pré-colombiano, pois o espaço do trabalho é sagrado. O

trabalho é fertilidade e é através dele que se ganha o tão suado salário, mesmo com tantos

sacrifícios e privações, mas quando o objetivo é somente econômico ele deixa de ser sagrado

e assume o sentido do profano (ELIADE).

Mas os mitos contemporâneos permeiam o imaginário deste povo e os sonhos são

maiores que os delírios. Mas eles também se fazem presentes, o delírio está nas festas, no

profano, nos excessos, naquilo que extrapola o tempo, o tempo que se refaz toda a vez que

acontece a festa.

Si en la vida diária nos ocultamos a nosostros mismos, en el remolino de la Fiesta nos disparamos. Más que abrirnos, nos desgarramos [...] Conocemos el delírio, la canción, el aullido y el monólogo, pero no el diálogo. Nuestras Fiestas, como nuestras confidencias, nuestros amores y nuestras tentativas por reordenar nuestra sociedade, son rupturas violentas com lo antiguo o con lo establecido. Cada vez que intentamos expressarnos, vecesitamos romper com nosostros mismos (PAZ, 1992, p. 48).

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Desta forma, na festa os bolivianos recriam o espaço, o espaço sagrado. A Rua

Coimbra, a Praça Kantuta e o Memorial da América Latina são os lugares onde

verdadeiramente esta comunidade se mostra, é quando eles saem dos labirintos da solidão, das

oficinas de costura e participam, interagem e estão mais próximos do povo brasileiro. Onde

não há distinção, porque na festa todos são iguais.

Na cidade de São Paulo existe um local onde os bolivianos têm a possibilidade de resgatar um pouco de sua cultura, um espaço híbrido, nem Bolívia, nem Brasil, um entrelugar capaz de traduzir o que há de mais representativo em suas tradições, como se fosse um pedaço do seu espírito nativo. Manter viva essa identidade é uma maneira do deslocamento cultural superar a discriminação social, uma forma de o reprimido fazer-se presente (¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo, 2012).

A cultura é um elemento de coesão e para uma comunidade que se sente excluída,

invisível, a cultura une e não segrega. É como a flor kantuta, o símbolo nacional da Bolívia

que deu nome a praça frequentada pelos bolivianos com suas cores vermelha, amarela e

verde, as mesmas cores da bandeira nacional, é o laço que não é rompido, no ventre da Terra

Mãe.

Os vínculos devem ser sempre preservados, a cultura de um povo não deve ser

esquecida e jamais ignorada por ninguém. Suas raízes devem ser fincadas no solo onde cada

estrangeiro estiver, pois as pessoas pertencem ao mundo e quando elas se reúnem e falam a

mesma língua, tem as mesmas características, é quando realmente há uma identificação. É

isso que a dona Carmen, do documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo passa para

o filho Denílson Mamani.

O trabalho e a festa são dois momentos distintos, mas tem relações em comum. É

quando todos os mitos são resgatados e recriados, o instante de conexão entre os costureiros

de São Paulo e os mineiros, da época da descoberta da imagem da Virgem da Candelária no

socavão, assim como a dança diablada evoca o Arcanjo Miguel, o Diabo, a China Supay e

todos os diabos e demônios e convidam para dançar nas festas no Brasil e no Carnaval de

Oruro. É como se fosse o encontro do lago Titicaca com o céu.

Nesta dualidade entre o trabalho e a festa, como na dança diablada há uma relação

entre o sagrado e o profano, entre o bem e o mal, assim como na vida, no dia a dia das

pessoas. E entre a comunidade boliviana e o povo brasileiro não é diferente, eles estão no

mesmo espaço físico, estão nas ruas da cidade de São Paulo, mas parece que ambos não se

veem.

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O convívio entre as pessoas demanda uma série de renúncias, de tolerância. E num

mundo tão globalizado, numa loucura que a vida foi transformada, os encontros estão cada

vez mais escassos. Hoje, as pessoas quase não se cumprimentam mais, não se falam, não se

tocam, o problema do vizinho é um problema dele e o sentimento de compaixão com o Outro

quase não existe.

Para dar conta das diferenças existentes no real, é preciso distinguir entre pelos menos três eixos, nos quais pode ser situada a problemática da alteridade. Primeiramente, um julgamento de valor (um plano axiológico): o outro é bom ou mau, gosto dele ou não gosto dele, ou, [...] me é igual ou me é inferior (pois, evidentemente, na maior parte do tempo, sou bom e tenho autoestima...). Há, em segundo lugar, a ação de aproximação ou de distanciamento em relação ao outro (um plano praxiológico): adoto os valores do outro, identifico-me a ele; ou então assimilo o outro, impondo-lhe minha própria imagem, entre a submissão ao outro e a submissão do outro há ainda um terceiro termo, que é a neutralidade, ou a indiferença. Em terceiro lugar, conheço ou ignoro a identidade do outro (seria plano epistêmico); aqui não há, evidentemente, nenhum absoluto, mas uma gradação infinita entre os estados de conhecimento inferiores e superiores (TODOROV, 1999, p. 223, 224).

E estas são as representações simbólicas da comunidade boliviana de São Paulo. Eles

que já passaram por muitas perdas desde a colonização, ainda continuam perdendo, talvez a

esperança, talvez à vontade, talvez a crença em melhores dias. O ouro que foi levado nunca

mais voltará e a pobreza e a falta, muitas vezes, de perspectivas na vida eventualmente possa

estar em outros lugares e o jeito então é sair à procura deles.

Mas, onde procurá-los? E o lugar que eles procuram é aqui. Não se pode mensurar se

naquela época era pior ou não, mas o que se sabe é que tanto no período da colonização como

neste momento da globalização, embora os problemas não sejam iguais há tantos quantos

naquela época. Se antes, eles, os índios eram jogados ao mar, hoje eles são jogados a sorte,

escondidos nos labirintos das oficinas de costura.

Se antes eles acreditavam em vários deuses, a religião impôs-lhes a crença em um só.

Se o ventre acolhedor da Mãe Bolívia era o Cosmos, eles vivem o Caos num país que não é

distante, mas que talvez não seja tão acolhedor, como se pensa. E embora, o Brasil tenha uma

história muito parecida com a deles, nossos rostos estão longe de serem iguais ao dos nossos

antepassados, como os rostos dos bolivianos. Que nem o espelho ou o ecrã reconhecem.

O nosso inconsciente está povoado de outras referências mitológicas e abrir as portas

da nossa casa e acolhê-los parece algo inconcebível, pois hoje não o fazemos nem para nossos

irmãos. A língua separa estes povos e não parece que existe um esforço em apreendê-la e

novamente estamos numa Torre de Babel.

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O espaço sagrado é no contexto geral, um espaço fragmentado, um território

demarcado, onde cada um se apropria dele. O Memorial da América Latina é o espaço de

todos, é o lugar do povo latino americano e o Brasil também faz parte deste povo, como a

Bolívia, a Argentina, o Chile, o Uruguai, o Paraguai etc. Sendo assim, é preciso abrir todos os

caminhos, todas as ruas e avenidas para que todos possam circular.

As máquinas de costura remendam todos os tecidos, os sociais, os políticos, os

econômicos, os culturais. Então, se for preciso remendá-los que todos o façam, afinal todos

têm uma roupa que precisa ser costurado. As linhas das máquinas das oficinas de costura do

Brás, do Bom Retiro, da Vila Maria, de Pirituba, da Casa Verde e tantas outras regiões de São

Paulo, não precisam ser deixadas nos labirintos, para que eles saibam voltar. A casa é grande

e não é senzala.

Os troncos onde eram amarrados os escravos não devem ser as casas e oficinas

subterrâneas onde alguns bolivianos se escondem porque não tem documentos, e muitas vezes

trabalham de forma irregular. A lei áurea foi assinada em 1888 e o trabalho sempre deve ser

de maneira que não se torne um trabalho em condições análogas ao do escravo.

Os sonhos desta comunidade são os sonhos de qualquer um. Ter um trabalho digno,

comida à mesa, uma casa e algumas horas de lazer. Se nem todos eles são altos, corpo

atlético, olhos verdes é porque, assim como os brasileiros, não são descendentes diretos de

europeus. Os índios habitavam o ocidente muito antes dos espanhóis, portugueses,

holandeses, franceses.

As nossas festas, nosso carnaval e a dança diablada servem para exorcizar todos os

maus. As roupas usadas são para disfarçar o que o inconsciente quer preservar, mas que no

momento da festividade quer se revelar, a máscara do diabo é para dar medo em quem sempre

quis assombrar, as roupas das bailarinas da diablada remetem as das porta-bandeiras, das

passistas da escola de samba.

Se há tantas afinidades entre brasileiros e bolivianos porque se continua a olhar para

o Outro como se o Outro fosse um bicho raro. O outro, no espelho e no ecrã, é feito à imagem

e semelhança de Deus, por isso “não podemos mais viver de forma isolada, fechados. Temos

muitos muros já no mundo. Muros, muralhas, cercas e fronteiras, então, é o momento de

cruzar, construir pontes para todo mundo se ver” (PADRE MÁRIO GEREMIA).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa buscou compreender as representações audiovisuais sobre a

comunidade boliviana de São Paulo, no trabalho e na festa, a partir da análise dos

documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo de Marcel Buono, Victor

Lombardi, Vinícius Victorino e Vitor Valencio; 100% Boliviano, Mano de Luciano Onça e

Alice Riff e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de Diego Arraya. Portanto, fez-se

necessário fundamentá-la buscando um referencial sobre documentário, com elementos de

antropologia, estudo sobre imaginário e de análise de imagem.

A escolha dos documentários resultou de uma pesquisa na internet sobre a população

boliviana residente na cidade de São Paulo, sem a menor pretensão de buscar traços em

comum entre eles. Entretanto, ao assisti-los percebe-se que algumas temáticas são

compartilhadas nos três filmes. Outro aspecto que foi levado em consideração é que eles

deveriam ser produções paulistanas e que não fossem, necessariamente, exibidos em salas de

cinema comerciais.

Desta forma, chegou-se a estes três documentários. O primeiro ¡Si, yo puedo! - O

sonho boliviano em São Paulo é um trabalho de conclusão do curso de jornalismo da

Faculdade Cásper Líbero, de 2012, produzido pelos alunos Marcel Buono, Victor Lombardi,

Vinícius Victorino e Vitor Valencio. Já 100% Boliviano, Mano de Luciano Onça e Alice Riff

é um mini documentário produzido pela Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo

Investigativo em parceria com a Grão Filmes e contemplado pelo 4º edital Sala de Notícias do

Canal Futura.

E por fim, Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo de Diego Arraya, diretor,

produtor de TV, documentarista e fotógrafo. Este documentário foi produzido pela Mosaico

Filmes e TV Cultura e exibido em comemoração aos 60 anos da Carta Universal dos Direitos

Humanos e exibido também na Sobornne Paris IV.

Sendo assim, foi preciso buscar referenciais teóricos e conceitos para temas que

pudessem contribuir com a pesquisa como: audiovisual (Droguett e Godoy), documentário

(Nichols), documentário antropológico e imaginário (Metz e Morin), análise de imagem

(Català, Ledo e Buitoni), sagrado e profano (Eliade) entre tantos outros que contribuíram de

maneira decisiva para este estudo.

Compreender a representação audiovisual sobre a comunidade boliviana de São

Paulo requer, além dos temas e conceitos citados acima, entender, de quem está se falando: a

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comunidade boliviana residente em São Paulo e qual a imagem que se faz dela, a partir dos

documentários. E ainda, as questões relativas à realidade vivida pelos bolivianos no trabalho,

nas oficinas de costura e na festa, na dança diablada, nos espaços onde eles costumam se

reunir. É fundamental também discutir as representações simbólicas do imaginário desta

comunidade.

O audiovisual é composto de imagens em movimento acompanhados ou não de som

e eventualmente de escrita, portanto, o cinema utiliza a linguem audiovisual. Das imagens nas

paredes das cavernas, passando pela fotografia, até a invenção do cinematógrafo a sensação,

ainda, não era de movimento. Mas o cinema trouxe o movimento e com ele a percepção de

realidade.

Esta sensação de realidade se torna mais contundente com os filmes documentários

que surgiram do desejo de cineastas e escritores de compreender os rumos que as coisas

estavam tomando e a capacidade de captar a realidade tal como ela é, assim como a

fotografia, que mantém a iconicidade pela semelhança com o referente (LEDO, 1998).

Desta forma, a maneira escolhida pelos cineastas de falar das pessoas filmadas está

relacionada em como representar o outro. Portanto, a categoria à que pertence os três

documentários é a “Eu falo ou nós falamos deles para nós” numa situação na qual o cineasta,

fala de atores sociais ou um tema para os espectadores que pode ser inclusive os próprios

atores sociais.

Os documentários tem uma voz que a partir da retórica pode ser de um ou de outro

modo ou subgênero. No caso dos documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São

Paulo; 100% Boliviano, Mano e Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo os três possuem as

cinco partes do pensamento retórico (invenção, disposição, elocução, memória e pronun-

ciação).

O documentário ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo possui

características do modo observativo, relata experiências reais que podem ser testemunhadas e

contextualizadas sem a interferência do cineasta sobre os atores sociais, possui um caráter

etnográfico do documentário antropológico. A presença do cineasta in loco, participando e

interagindo com as pessoas através de observações e experiências nos filmes deste gênero é

semelhante ao trabalho dos antropólogos e sociólogos.

Mesmo o cineasta participando e compartilhando suas experiências, sua retórica não

pode comover e persuadir o público a partir da utilização da voz-over, uma vez que esta traz

uma segunda fala sobre as cenas. Ele pode se envolver numa situação com o objetivo de

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alterá-la, mas não controlar os acontecimentos, embora traga consigo uma câmera ele não

deve ser visto como um ator social. O cineasta está no momento em que as coisas estão

acontecendo, interagindo e mediando as relações.

O modo participativo tem como atributo a busca por uma representação de questões

sociais a partir de entrevistas, o que dá uma ideia para o espectador de diálogo entre os

envolvidos, entretanto neste documentário não existe esta interação. Existem algumas

características do modo reflexivo: é importante destacar a maneira como os atores sociais são

representados para que o público reflita sobre o tema. Elementos do modo performático

podem ser vistos em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo como questionamentos

que levam a uma compreensão do funcionamento da sociedade.

Os questionamentos foram colocados de maneira subjetiva e afetiva a partir de

experiências, de crenças e valores, de princípios, da memória, do emocional. Assim, real e

imaginário se misturam nesse modo e o documentário de referencial passa a ser expressiva

voltada para o sujeito, os atores sociais ou até mesmo o cineasta. Embora a narrativa seja

bastante linear, ela abre espaços para as licenças poéticas, metáforas, retratando questões

sociais onde estão envolvidos os cineastas e os espectadores.

Os excluídos são retratados de maneira a reequilibrar e corrigir a autoetnografia. No

modo performático, além de técnicas oratórias é possível verificar técnicas expressivas que o

aproximam das ficções. Embora a busca seja pelo mundo histórico e no significado que está

nas pessoas e nos lugares, a utilização de imagens ilustrativas também é uma característica

deste modo e está presente em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo.

Verifica-se neste documentário que os cineastas estiveram, in loco, na Bolívia e em

São Paulo reunindo depoimentos e mostrando a realidade dos bolivianos em diferentes

momentos de suas vidas, além de conversar com o embaixador, a diretora geral do Ministério

da Migração, um sociólogo, um jornalista, assim como com alguns brasileiros que moram ou

estudam naquele país.

Os cineastas não aparecem, mas se nota-se sua atitude neste documentário e que

há uma participação efetiva para mostrar a realidade da Bolívia no sentido de ajudar a

compreender este fluxo migratório, que se intensificou no Brasil, a partir dos anos de

1990, principalmente na cidade de São Paulo, mas não a ponto de fazer com que eles,

cineastas, consigam mudar alguma situação, mas especialmente para uma reflexão

acerca do assunto.

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As problemáticas sociais, econômicas, políticas, culturais também estão presentes no

documentário ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo nos depoimentos entre os

cineastas e os entrevistados, contribuindo com a ideia de diálogo entre as partes. Há uma

valorização destas questões recorrendo a uma oratória persuasiva, mas em alguns momentos

aparece a forma subjetiva, misturando o real e o imaginário, recorrendo às ilustrações, mas

sem perder seu caráter reflexivo para as questões que envolvem seus atores sociais.

No documentário 100% Boliviano, Mano, os modos ou subgêneros são basicamente

os mesmos. Trata-se de relatos de experiências reais e testemunhais sem a intromissão no

comportamento dos atores sociais. Neste caso, são os próprios atores sociais que assumem a

cena e protagonizam suas histórias, sobretudo na figura de Denílson Mamani (modo

performático), pois é uma narrativa linear que dá a impressão de uma duração real dos

acontecimentos (modo observativo).

Em alguns momentos, há presença do cineasta no contexto histórico interagindo e

mediando os discursos, embora ele não apareça, existem trocas e compartilhamentos de

experiências, a partir de entrevistas (modo participativo), no entanto este modo também não

está presente neste documentário. Neste documentário as questões também são de ordem

social, política, econômica e cultural como em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São

Paulo. Há uma preocupação em conscientizar os espectadores sobre os problemas de

representação da comunidade boliviana de São Paulo (modo reflexivo).

Outras características do modo performático em 100% Boliviano, Mano são os

questionamentos sobre o conhecimento e a compreensão do funcionamento da sociedade

através das experiências, da memória, das crenças e dos valores, dos compromissos e dos

princípios, do emocional sobre a complexidade dos fatos históricos. Algumas informações são

trazidas em legendas, onde cineasta e espectador se envolvem na representação do mundo,

mesmo que de forma indireta, portanto subjetiva, na qual estão inseridos os excluídos atores

sociais, a comunidade boliviana.

No documentário Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo as particularidades dos

modos presentes nos outros dois filmes analisados são as mesmas. Cabe ressaltar que o modo

performático se apresenta desde o começo, com ilustrações em movimento mostrando o

percurso feito pelos bolivianos até chegarem a São Paulo e o trabalho nas oficinas de costura,

finalizando com uma bandeira cuja metade é a bandeira do Brasil e a outra a bandeira da

Bolívia. Assim como em ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo e 100% Boliviano,

Mano não há presença do cineasta nos filmes.

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Assim como nos outros documentários, neste, o modo observativo privilegia as

pessoas que dão os depoimentos e servem como base para a reflexão sobre os diversos

assuntos que envolvem a comunidade boliviana da cidade de São Paulo e uma sincronização

do discurso com as imagens sem a utilização de grandes aparatos técnicos. São experiências

reais, testemunhos dos atores sociais que exercem fascínio nos espectadores.

Em Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo existe um questionamento sobre a

sociedade (modo performático) e os problemas que envolvem os bolivianos de São Paulo nas

suas diferentes esferas, principalmente no campo do trabalho, nas oficinas de costura,

retratado nos três documentários. Assim, é possível verificar as marcas indiciais dos

problemas sociais nos modos destes documentários e na sua voz de como “Eu falo ou nós

falamos deles para nós” típicos dos documentários antropológicos.

Os documentários antropológicos tratam de assuntos relacionados às questões

sociais que envolvem povos marginalizados, excluídos, pessoas que vivem em países em

desenvolvimento, homossexuais, ou seja, questões coletivas, mas também podem ser de

cunho pessoal. Há uma ênfase numa profundidade psicológica mínima dos personagens,

os indivíduos são representados como típicos ou representativos e até mesmo como

vítimas.

Os documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho boliviano em São Paulo e Nação Oculta:

Bolivianos em São Paulo apresentam muitas características do modo expositivo, ambos falam

mais sobre a realidade vivida pela comunidade boliviana de São Paulo, sendo assim, estes

filmes estão mais próximos dos documentários tradicionais. Já 100% Boliviano, Mano possui

aspectos que o identifica com o modo reflexivo no intuito de fazer com que o espectador

reflita mais sobre os problemas que envolvem a comunidade boliviana de São Paulo.

A pesquisa voltou-se também para a questão do imaginário e o imaginário no

cinema. O imaginário é universal, simbólico, imaginativo e dinâmico e se apresenta nos

processos primário e secundário (FREUD), ou seja, no inconsciente, latente e no consciente,

manifesto. Para Freud, o imaginário precisa se simbolizar, pois sem códigos não haveria

sonho (processo secundário), pois é o processo racional do pensamento que dá condições de

acesso à consciência. Assim as análises de argumento não podem ser estudadas somente do

ponto de vista do significado, mas também do significante.

À luz da psicanálise, o argumento constitui-se em significante como no sonho que

enquanto manifesto, trata-se do conteúdo do sonho, o sonho simplesmente (FREUD) que em

oposição ao pensamento do sonho é um significante para a interpretação e que não podendo

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ser contado não pode estabelecer-se de maneira plena porque não se pode perceber na sua

amplitude a não ser como significado a partir de diferentes códigos. Sendo assim, não haveria

sonho manifesto, e consequentemente interpretação.

No caso dos filmes, se quiser um aprofundamento razoável e uma aproximação do

latente, sobre o sistema textual, a interpretação, este estudo deve partir do conjunto fílmico

manifesto, ou seja, do significante e do significado e não só do significado manifesto do

argumento, pois o filme inteiro se constitui em significante. Portanto, o sistema textual deve

levar em consideração o significante (sintagmático), o argumento, o texto (conteúdo), como

também, o significado (paradigmático), a maneira como o filme é montado, a forma.

No cinema, não é o imaginário que pode representar e sim o significante, assim a

percepção nele é real, mas o que se percebe não é o objeto e sim “a sua sombra, o seu

fantasma, o seu duplo”, uma série de efeitos de espelho, organizados em cadeia. O filme é

como se fosse um espelho na qual a criança vê sua própria imagem o que contribui com a

identificação primária (FREUD), na formação do seu Eu, entretanto a criança se vê como um

Outro e ao lado de um Outro (METZ, 1980, p. 55).

A formação do Eu da criança se dá, ao mesmo tempo, nos sentidos metonímicos e

metafóricos, por uma identificação com o seu semelhante. No sentido metonímico, pelo

reflexo do seu corpo no espelho, sua própria imagem e no sentido metafórico, porque aquele

corpo refletido no espelho, para ela, não é o seu corpo, mas um semelhante. Assim a

identificação da criança com ela mesma é dada como um objeto. No cinema, há o simbólico, o

espectador sabe que existem objetos e ele próprio é um sujeito visto como objeto por outro.

O que se pode verificar, então, é um jogo de identificação entre o eu e o tu

permanente e contínuo o que possibilita a vida social (LACAN) e o sentimento social

(FREUD), isso pode fazer com que o espectador se identifique com um personagem nos

filmes narrativo-representativos, mas não na “constituição psicanalítica do significante do

cinema como tal”. Diferentemente da criança que se vê no espelho, o espectador não se

identifica com ele mesmo como objeto, mas só com objetos que existem sem ele, portanto o

ecrã, neste caso, não é um espelho (METZ, 1980, p. 57).

Desta forma, o imaginário percebido se aproxima do simbólico, dos jogos do

imaginário (projeção-introjeção, presença-ausência) instaurando-se como significante. O

espectador se identifica com ele mesmo, como um sujeito transcendental preso a imaginação,

ao duplo e numa ambivalência perceptiva do real, na qual o espectador sabe que está fora do

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espelho ao passo que a criança se vê simultaneamente no espelho e a frente dele, ou seja, ele

se encontra tanto na subjetividade quanto na objetividade.

Outra questão que deve ser observada diz respeito aos conceitos de condensação e

deslocamento (METZ), na qual a condensação seria uma espécie de resumo de ideias em

comum e análoga entre si, fundindo elementos do nível latente de ideias (inconsciente) com

traços genéricos num só, ao nível do manifesto (consciente) de imagens. E o deslocamento

que está no campo da censura, na qual um elemento do sonho (latente) é substituído por

fragmentos e uma transferência de ideias completamente diferentes e que se afastam

(manifesto).

Mas para poder analisar os documentários é preciso ainda verificar as relações que

envolvem o trabalho e a festa e a realidade da comunidade boliviana na cidade de São Paulo

para se chegar ao objetivo desta pesquisa que foi responder à seguinte hipótese: Os

documentários representam os bolivianos nas oficinas de costura, associando o trabalho

análogo ao trabalho escravo e a cultura, a partir da diablada, como uma forma de exorcizar

os demônios apresentando, aos paulistas, uma imagem estereotipada da comunidade.

Porém, antes de fazer esta reflexão acerca da hipótese é preciso entender as razões e

motivos pelos quais a partir dos anos 1990 os imigrantes bolivianos vieram em maior número

e continuam chegando e as relações entre o trabalho e a festa na perspectiva do sagrado e do

profano e finalmente verificar a forma que com se olha esta comunidade.

A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul e sofreu com muitas perdas,

desde a colonização espanhola até os dias de hoje. E, como em muitos países latino

americanos, seus habitantes são forçados a imigrar dadas condições de vida oferecidas

às suas populações. Trata-se de uma imigração econômica, uma busca por novas

oportunidades de vida.

A imigração da comunidade boliviana para o Brasil não é um fenômeno recente; data

dos anos 1950. No entanto, naquele momento, os bolivianos que vinham ao Brasil eram, em

sua maioria, estudantes que depois acabaram se casando e ficando por aqui. Nos anos de 1960

e 1970, esses imigrantes eram sobretudo de exilados políticos, pois muitos países da América

do Sul viviam sob a ditadura e o fluxo migratório dos povos latinoamericanos era bastante

forte.

Hoje, os motivos pelos quais os bolivianos saem do seu país de origem continuam

sendo os mesmos, ou sejam, sociais, político e econômicos; e um dos países mais procurados

por esses imigrantes é o Brasil, principalmente a cidade de São Paulo, embora não seja o

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único, pois a dificuldade no idioma acaba dificultando a comunicação entre bolivianos e

brasileiros. Muitos preferem a Argentina, por exemplo, uma vez que ambos países falam o

espanhol.

O número de imigrantes bolivianos residentes no Brasil é bastante incerto e a

variação numérica é muito extensa, uma vez que muitos deles vivem na clandestinidade, o

que impede de inclui-los num senso oficial. Segundo depoimento do pesquisador boliviano

Alfonso Hinojosa, no Brasil existem de 200 a 250 mil bolivianos, já para o editor do jornal La

Razón de La Paz, Rubén Vargas, esse número é de 3 a 4 milhões de bolivianos fora da

Bolívia, isto em termos de Brasil.

No entanto, na cidade de São Paulo, o Padre Mário Geremia da Pastoral do Migrante

estima que passa de 100 mil os bolivianos residentes na cidade, enquanto que para Marcel

Biato, ex-embaixador do Brasil na Bolívia este número pode oscilar entre 300, 400 e até 800

mil, segundo ele ninguém sabe. O fato é que a Bolívia é, hoje, um dos maiores fluxos

migratórios do continente.

Os bolivianos que vivem na cidade de São Paulo não se fixaram num bairro

específico, embora haja um contingente bastante significativo nas regiões centrais da cidade

como Brás, Bresser e Bom Retiro, não é difícil vê-los em áreas periféricas como Pirituba,

Casa Verde, Freguesia do Ó, Vila Maria, Guaianazes entre outros. A atividade econômica

dessa comunidade baseia-se principalmente no ramo da costura, muitos prestam serviços aos

coreanos e até bolivianos proprietários de oficinas de costura.

É senso comum um discurso midiático de que os bolivianos trabalham nas oficinas

de costura em situação análoga ao trabalho escravo, no entanto, no documentário ¡Si, yo

puedo! – O sonho boliviano em São Paulo a idealizadora do projeto, Verônica Yujra, comenta

que o fato de os bolivianos trabalharem de 12 a 14 horas nessas oficinas não quer dizer que se

trate de trabalho escravo, uma vez que na Bolívia a carga horária é a mesma.

Mas no Brasil o diferencial é que eles podem consumir mais e essa lógica faz parte

da globalização, não é somente os bolivianos que saem do seu país a procura de novas

oportunidades e melhores condições de vida. Existem milhares de brasileiros vivendo em

outros países nas mesmas situações ou quem sabe, até piores.

Outra questão levantada na mídia e citada também no documentário ¡Si, yo puedo! –

O sonho boliviano em São Paulo é a do narcotráfico, estigma bastante forte atribuído a esta

comunidade. Mas, a maioria deles sofre preconceito todos os dias, nas ruas, supermercados,

ônibus, enfim, onde quer que eles estejam.

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Mas trata-se de um povo forte que creditou ao nosso país a confiança de acolhê-los.

Para esta comunidade o Brasil é como se fosse a América. É o Paraíso perdido, o ponto fixo

do Cosmos dentro do Caos estabelecido. E se o trabalho é duro e pesado, a saída é extrapolar

e exorcizar os demônios nas festas.

As festividades desta comunidade são realizadas, geralmente, em espaços de maior

concentração de bolivianos como na Rua Coimbra, na Praça Kantuta e no Memorial da

América Latina. Suas danças, suas músicas remetem ao Carnaval de Oruro, na Bolívia. A

diablada é uma das danças mais populares tanto lá como aqui. Caracterizados com roupas

multicoloridas e muitos acessórios, eles revivem mitos ancestrais.

A origem da diablada está relacionada às invocações andinas à Pachamama (Mãe

Terra), ao Tio Supay (Diabo) das regiões mineiras e à Virgem da Candelária. As figuras

apresentadas nesta dança remetem as representações do bem e o mal a partir da luta entre o

Arcanjo Miguel e a Virgem da Candelária e uma legião de diabos que tentam impor o mal

sobre na Terra.

Conta a lenda que em um buraco abandonado na mina desse lugar, vivia um ladrão chamado Anselmo Selarmino (o Nina Nina ou Chiru Chiru) que roubava para repartir entre os pobres. Numa de suas correrias noturnas o ladrão foi mortalmente ferido por um obreiro de quem pretendeu roubar o único tesouro. Ferido e em agonia, Anselmo Selarmino foi levado por uma mulher virgem do povo até onde morava... No dia seguinte, com enorme surpresa, os mineiros da área que acharam o cadáver, encontraram uma bela imagem da virgem da Candelária a cabeceira da pobre cama do ladrão (http://www.boliviacultural.com.br - Acessado em 25/01/2014 as 17h02).

As narrativas míticas do trabalho e da festa estão nos documentários analisados e são

importantes para a pesquisa que mostra as relações do sagrado e do profano, a partir de

Eliade. Na qual, tanto o sagrado como o profano estão no trabalho como na festa. Desse

modo, os conceitos de sagrado e profano assim como do bem e do mal que estão no

inconsciente dos bolivianos foram captados nas representações simbólicas sobre a

comunidade boliviana de São Paulo.

Assim foi possível verificar que embora os documentários propaguem a ideia de que

o Brasil é um país acolhedor, há situações de discriminação. Na realidade, não passa de um

discurso evasivo, pois os documentários demonstraram que esta comunidade ainda sofre

muitos preconceitos e de várias ordens. No entanto, as festas servem para exorcizar os

demônios e todos os bichos entranhados no inconsciente. Quanto ao trabalho, apesar de os

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filmes mostrar os bolivianos nas oficinas de costura, os depoimentos são categóricos em

afirmar que não se trata de trabalho escravo, pois na Bolívia eles trabalham tanto quanto no

Brasil, porém aqui eles podem oferecer melhores condições de vida para suas famílias.

Os documentários analisados mostram que as representações audiovisuais acerca de

uma comunidade de imigrantes podem trazer elementos explicativos de sua cultura em

cenas da vida cotidiana em que o trabalho e a festa são expressões simbólicas de muita

força.

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sado em 8/1/2014 as 10h55.

Documentários:

Si, yo puedo! – O sonho boliviano em São Paulo. Marcel Buono, Victor Lombardi, Vinícius

Victorino e Vitor Valencio.

100% Boliviano, Mano. Luciano Onça e Alice Riff.

Nação Oculta: Bolivianos em São Paulo. Diego Arraya.

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ANEXOS

DOCUMENTÁRIOS

O objetivo agora é apenas descrever os documentários ¡Si, yo puedo! - O sonho

boliviano em São Paulo de Marcel Buono, Victor Lombardi, Vinícius Victorino e Vitor

Valencio; 100% Boliviano, Mano de Luciano Onça e Alice Riff e Nação Oculta: Bolivianos

em São Paulo de Diego Arraya, que foram analisados nessa dissertação de Mestrado.

1. ¡SI, YO PUEDO! – O SONHO BOLIVIANO EM SÃO PAULO

Roteiro, Produção e Edição: Marcel Buono | Victor Lombardi | Vinícius Victorino | Vitor

Valencio.

Locução: Marco Antonio Abreu

Abertura | Texto: Neste filme, você não verá máquinas de costura ou ouvirá flautas andinas.

O povo boliviano é muito mais do que isso.

Depoimentos iniciais sobre a população boliviana no Brasil e no mundo.

Alfonso Hinojosa | Pesquisador | La Paz – No Brasil: 200, 250 mil bolivianos.

Padre Mário Geremia | Pastoral do Migrante de São Paulo – passa de 100 mil bolivianos em

São Paulo.

Rubén Vargas | Editor do Jornal La Razón | La Paz – 3 a 4 milhões de bolivianos fora da

Bolívia.

Marcel Biato | Embaixador do Brasil na Bolívia – deve oscilar entre 300, 400, 800 mil /

ninguém sabe.

Narrador - Brasil – Pátria amada / terra acolhedora / povo hospitaleiro / um dos mais

diversificados do planeta.

- Bolívia: nosso vizinho, um dos maiores fluxos migratórios do continente.

Cossett Entensoro | Diretora Geral do Ministério da Imigração - Motivo da imigração para o

Brasil: experimentar a vida ocidental que propõe o consumo, o consumismo, a aquisição de

bens etc. que contrapõe um pouco com as raízes culturais dos povos aimarás.

Don Carlos Soto - Para os bolivianos São Paulo é a América dos brasileiros.

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Marcel Biato - Imigração é um fenômeno movido por aspirações, pessoas que sonham mudar

de vida para melhor.

Mário Geremia - A imigração é um fenômeno da humanidade. É global. É comum. É

recíproca em todos os países.

Grupo de estudantes | Bolívia | La Paz - Jasmin Ananci diz que é mentira que na Bolívia só

existem meliantes, pobres.

Rubén Vargas - “Ninguém é um imigrante voluntário, em qualquer caso é sempre uma

condicionante social”.

Cossett Entensoro - Cultura indígena muito forte. Aimarás, quéchuas, povos indígenas

orientais tem sido influenciados pela cultura ocidental.

Narrador - Bolívia – cercada por Brasil, Paraguai, Chile, Argentina e Peru. Um povo com

uma cultura profunda e paisagens exóticas que contempla em um só território os Andes, a

Amazônia e o encontro do céu com a terra.

Passado repleto de perdas e um presente marcado por uma turbulência política e social.

Por volta de 2.500 anos antes dos portugueses gritarem: “Terra à vista” – a primeira grande

civilização sul americana já se desenvolvia no altiplano onde hoje está localizada a Bolívia.

O elaborado centro urbano e religioso de Tiahbanabu – técnicas de construção que até hoje

são um mistério. Sua decadência abriu espaço para a cultura aimará.

Em meados do século XV ela foi incorporada ao império inca que se expandiu para a costa

pacífica, lado oposto ao de Pedro Álvares Cabral. Os espanhóis colonizaram a região que

culminou com a derrocada da cultura indígena empurrada para a marginalidade.

Em 1825 independência da Bolívia por Simon Bolívar, seu libertador.

Carlos Ortiz - Não há opções, por isso é que se sai. Se você não se liga com o narcotráfico,

não há o que fazer. Porque aí a operacionalidade, em geral, está restringida. Essa gente de

baixa escala social está controlando o dinheiro por causa do narcotráfico.

Rubén Vargas - Avanços nos últimos 6 anos nas questões políticas e sociais.

Gabriela Zambrana | socióloga | Santa Cruz de La Sierra - Os abismos sociais estão sendo

controlados. Presença dos indígenas no cenário político. O mundo aimará, quéchua, guarani

que antes não podia se ver, agora se encontra em todo cenário político, tanto nacional como

regional. Agora é o povo que toma as decisões. Modelo de estado bastante de vanguarda.

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Rubén Vargas - Em termos políticos, sociológicos, há um caminho importante e central.

Presença pela primeira vez de um presidente indígena.

Verônica Yujra | Projeto ¡Si, yo puedo! (São Paulo) - Boliviano é cheio de conhecimento.

Veio de uma cultura ancestral, mas historicamente foi submetido a várias perdas. Soroche

[social]: mal estar provocado pela altitude, com sintomas como dor de cabeça, respiração

curta, náusea, vômito, tontura e insônia. Mascar folha de coca costuma amenizar seus efeitos.

Narrador - Diferenças étnicas visíveis por causa de dezenas de dialetos falados. Maior

contraste pode ser visto entre indígenas e brancos. La Paz e Santa Cruz de La Sierra

exemplificam essa situação.

Gabriela Zambrana - Grandes avanços democráticos e eleitorais.

Marcel Biato - Aqui as comunidades tradicionais têm muita força, elas elegem líderes

comunitários, xamãs, juízes. Tudo uma relação muito complexa, não é uma coisa social,

religiosa, cívica, cultural.

Alfonso Hinojosa - Existem avanços macroeconômicos. Diminuição do analfabetismo. Há

menos gente pobre.

Cossett Entensoro - Profissionais excelentemente formados e altamente formados. Grande

número de profissionais doutores e mestres. A esse nível a oferta de trabalho não está sendo

muito ampla. Economia estável. Há opções para trabalho.

Marcel Biato - Um milhão de classe média na Bolívia.

Juliana Freire | artesã brasileira | Santa Cruz de La Sierra - As pessoas, no início, são muito

fechadas, mas depois quando você conhece são legais. Encontra muito brasileiro que mora

aqui.

Cossett Entensoro - A Bolívia é muito vantajosa para os estrangeiros, as coisas saem muito

barato o que não acontece com nós bolivianos que vamos para outros países e encontramos

tudo muito caro.

Juliana Freire - Tem gente que vem estudar aqui e depois vai para o Brasil ou para a Europa

para trabalhar porque é essa a intenção do brasileiro.

Rodrigo Haveroth | Estudante brasileiro | Santa Cruz de La Sierra - Nós somos bem aceitos

aqui porque fazemos a economia girar.

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Marcel Biato - Desnível no custo de vida. No Brasil curso de Medicina a 2, 3 mil. Na

Bolívia, curso completo, você paga adiantado 5 mil dólares.

José Catalán | Coordenador da Unifranz Santa Cruz - Uns três mil alunos brasileiros em

Santa Cruz e continuam chegando por ser mais econômico.

Ruyther Geyb | Estudante brasileiro | Santa Cruz de La Sierra - Muita gente vem, conhece,

mas não é fácil ficar aqui.

Marcel Biato - Temos um pouco a globalização ao contrário, porque na verdade você tem

uma massa muito grande de brasileiros que tem uma vocação, um sonho assim como o

imigrante.

Grupo de estudantes | La Paz - Voz: Candi Coraci | Se seguir assim, a Bolívia vai bem,

porque todos estão melhorando. Não há discriminação, não há racismo. Todos somos um só.

Todos nos dizemos irmãos.

Luis Rodriguez | Taxista | La Paz - Temos tudo. Temos frutas, temos verduras. Temos...

muitas coisas. E baratos.

Imagem de uma feira livre... trânsito, metro ... ruas, trânsito, a cidade vista pelo alto (Trilha

sonora | Chico Scienci)

Narrador - São Paulo a maior cidade da América do Sul. É a amostra clara da diversidade

cultural em um só lugar (Trilha sonora | Chico Scienci).

A cidade foi construída com pedaços de cada parte do planeta.

Imagem | Ilustração: um ônibus e ao fundo edifícios.

Narrador - Índios, portugueses, italianos, alemães, africanos, japoneses (ilustração com todos

juntos). Volta à imagem do ônibus. Narrador continua: coreanos, nordestinos.

Volta à imagem da cidade: pessoas, trânsito, metro. Praça Kantuta.

Mário Geremia - A questão / imigração boliviana nos anos 50 e 60 tinha um convênio

Brasil-Bolívia com os estudantes, e a maioria que veio para cá acabou casando e ficou. Depois

nós tivemos um grupo também significativo por causa da ditadura na Bolívia nos anos 70.

Imagem frontal da empresa jornalística La Razón.

Rubén Vargas - Em outras décadas, como de 60 e 70, ainda que não majoritariamente a

imigração estava ligada às questões de asilo político. Saíam por razões políticas, ditaduras

militares, etc., etc.

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Havia muitos bolivianos fora, como muitos argentinos, chilenos, etc.

Praça Kantuta | São Paulo

Don Carlos Soto - Quando eu cheguei aqui em São Paulo tinha acabado de acontecer o

Mundial [Copa do Mundo]. Cheguei em agosto, então pelo sotaque pensaram que era

mexicano, então era bem tratado.

Mário Geremia - A partir dos anos 80 nós temos um número muito grande de imigrantes

econômicos que continuam chegando em busca de trabalho.

Projeto ¡Si, Yo puedo!

Verônica Yujra - Na época que eu vim se falava muito da questão da imigração invisível que

era os bolivianos, porque a gente era um povo calado, ficava dentro de casa, só trabalhava.

Narrador - A grandeza e a relativa riqueza do Brasil e de São Paulo atraem... Por todo lugar,

seja da etnia que for, a maioria das pessoas busca uma melhor solução para viver ou apenas

para sobreviver. Com os bolivianos que vemos em São Paulo não é diferente cada um com

sua estória, mas com o mesmo motivo.

Alfonso Hinojosa - Em meados da década de 80, se massificam as migrações no exterior. Por

um lado para a Argentina e começa a se massificar também ao Brasil. Mas para o Brasil

mesmo começou a ganhar mais força nos anos 90. A mudança era para a Argentina antes de

85 e 86 que é quando há uma relocalização de quem sai daqui, mas no Brasil acontece um

pouco mais tarde.

Começou pelos coreanos, que recrutam trabalhadores bolivianos. Com o tempo, alguns destes

trabalhadores bolivianos conseguem juntar algum tipo de capital para comprar suas próprias

máquinas e manter suas pequenas fábricas têxteis. Digamos, e isso vem se expandindo.

Mário Geremia - A gente tem que reconhecer que o trabalho do povo boliviano, do povo

latino no Brasil ajudando a construir o Brasil.

Verônica Yujra - A gente sempre se sente estranho, eu acho. Eu lembro muito disso de como

isso é forte. Por exemplo, na minha época de graduação eu fui do diretório acadêmico e

começou a ter greve na universidade pública e eu sempre no meio. Eu lembro que minha mãe

dizia: “Pelo amor de Deus, filha, não se mete com essas coisas, você é estrangeira”. Então

veio uma coisa assim da gente não se sentir totalmente integrado, da gente achar que pelo fato

da gente não ser daqui, não podemos palpitar muito assim.

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Mário Geremia - Nós temos três momentos. Primeiro momento era só a lei brasileira, então

era só quem tinha filho brasileiro ou que estivesse casado com brasileiro. Depois o Brasil fez

um acordo binacional Brasil-Bolívia que durou três anos, aí veio a anistia de 2009 e agora

ultimamente foi aprovado, 2010, a lei de residência do MERCOSUL.

Verônica Yujra - E isso minha mãe fala desconhecendo o estatuto do imigrante que existe

aqui que realmente fala isso, porque a gente respeita ainda o estatuto da época da ditadura.

Marcel Biato - Então as pessoas vão porque elas querem melhorar de vida. O imigrante, eu

sei por que eu morei em Nova Iorque, o sujeito vai para lá morar num cubículo de 2 x 3

metros, passa o dia trabalhando, ele vive para comer, dormir e trabalhar. Então ele vai para lá

porque ele quer melhorar de condições de vida, porque ele sonha, digamos, se realizar

profissionalmente ou pessoalmente, ele sonha em juntar dinheiro.

Luis Ortega | Padre | Pastoral do Migrante La Paz - Pensam que estão saindo dos cantos do

país para buscar a terra prometida. Que não só vão encontrar melhores condições de trabalho,

emprego, como poderão solucionar todos os problemas de suas vidas. Mas vocês sabem

perfeitamente que, na prática não é assim.

Mário Geremia - A grande maioria vem de La Paz, Santa Cruz, Quijarro, Corumbá. E daí

elas pegam então Corumbá - São Paulo diretamente e a maioria que vem para São Paulo vem

de ônibus.

Luis Ortega - Vocês sabem que, por efeito da situação econômica do país, muita gente migra

do campo para as cidades, por razão de não existir políticas agropecuárias. Não existem terras

para que os filhos dos trabalhadores camponeses que cresceram ali. Eles não a encontram, não

são mais proprietários de terras, então não têm onde trabalhar. Por isso, a esperança fica mais

nas principais cidades, a fim de encontrar trabalho, estudar, encontrar melhores condições de

vida, etc.

Alfonso Hinojosa - Outro problema ligado a isso é o tráfico de pessoas. Há uma série de

redes que estão por trás disso. E querem fazer um lucro maior envolvendo um terceiro país,

um país de trânsito que é o Paraguai. Porque a rota para chegar a São Paulo não é direta. Não

é Santa Cruz-Brasil, Brasil - São Paulo. Eles vão pelo Paraguai, porque há mais possibilidades

de iludir controles, principalmente por envolver menores de idade.

Narrador - Todo o off é coberto por paisagens panorâmicas da cidade, ruas, aeroporto... ruas,

pessoas... Sair de casa não é fácil e para os que já estão por aqui esta despedida é dupla.

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Primeiro dos campos para os centros locais, no caso da Bolívia, para a conhecida região,

próximo a La Paz, depois para terras mais desconhecidas. Uma mudança de realidade brutal.

Angela Nadir | Imigrante | São Paulo - Prá mim é muito difícil, difícil ir para açougue, alguns

lugares, supermercados porque os brasileiros ficam te olhando como se eu fosse um bicho

raro, não sei.

Marcel Biato - Uma das razões para que o Brasil, historicamente, seja destino de bolivianos

era a questão da língua e a preferência pela Argentina ta ligada, entre outros fatores, ao fato de

que as pessoas presumiam que teriam uma adaptação muito mais fácil.

Voz Off – Imagem de ruas do centro de São Paulo

Quando cheguei aqui no Brasil, vi que era muito diferente da Bolívia.

Imagem do rapaz | Rolando Choquicali | Imigrante - O idioma mesmo, não conseguia

entender. Não conseguia entender. Aqui no Brasil se fala português e na Bolívia, espanhol.

Outro rapaz | Samuel Chile | Praça Kantuta: O português, quando se chega aqui, não se

consegue entender nada.

Verônica Yujra - Por perceberem isso eu pensei num espaço onde a gente pudesse tentar

resgatar o jovem que, às vezes, não recebe essa oportunidade, não recebe informação da

internet, porque não tem como acessar a internet, não recebe informação dos jornais porque,

as vezes, pelo próprio idioma não entendem. Eu falei vamos criar esse espaço onde a gente

possa levar essa oportunidade.

Imagens do Projeto ¡Si, yo puedo!

Uma pessoa disse: “— Eu sou eletricista lá, posso trabalhar nisso aqui.” Eu disse “— Claro,

vou procurar aqui o amarelinho, deve ter uma vaga para eletricista”.

Don Carlos Soto - Pode ver que os bolivianos que estão chegando agora, eles não têm

instrução e já vão trabalhar direto, os que trabalham com mão de obra. Mas eles não têm

muito a declarar porque eles chegam não precisam alugar nada, moram na casa do patrão e

trabalham lá, claro, as condições de trabalho não são as melhores. Tão chamando de trabalho

escravo, mas eles não são escravos, se eles quiserem mudar de trabalho, eles podem, mas vão

trabalhar nas mesmas condições. Casa, comida e trabalho no mesmo local.

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Verônica Yujra - Ninguém vai se identificar como escravo porque eles, a maioria que

trabalha nessas condições análogas, eles partem do princípio de que eles tomaram a decisão

de vir e de que eles estão por vontade, então logo não existe escravidão.

Rolando Choquicali - É difícil de encontrar trabalho. Na Bolívia há cartazes dizendo que

necessitam de trabalhadores aqui, então eles te recebem aqui e pedem os documentos, o

registro. Então quando você é novo aqui, não tem documento e não tem registro, então não

pode encontrar trabalho com facilidade.

Verônica Yujra - Então para tudo, vamos atrás de documento. Aí acabei tendo que ter um

pouquinho de informações a respeito da regularização. Eu tento difundir um pouco essa

questão, porque principalmente pelo Mercosul todo mundo tem o livre direito de escolher

viver aqui, então logo deveria ter o direito de fazer as coisas para isso, de tirar o documento,

de conseguir um trabalho. Então eu falei “— É mais lá embaixo.” Fora quando as pessoas

falavam para mim “— Olha”! Eu tenho documento, eu tenho carteira de trabalho, eu consegui

tirar tudo, mas eu não posso agir.

Samuel Chile | Imigrante | São Paulo - Agora mesmo eu estou fazendo aulas de português

para poder trabalhar em outra coisa que não seja a costura. Estou pensando em trocar de

profissão. Quero ser corretor de imóveis.

Off coberto com imagens das pessoas e fala de Marcel Biato

Marcel Biato - O imigrante que vai nessas condições, ele é muito arredio, ele tem muito

medo de ser deportado e ele prefere aguentar a ilegalidade, ou porque ele não vê alternativa,

único emprego que lhe oferece é dessa natureza. Então, apesar desse esforço todo, há um

número muito grande de pessoas vivendo numa semi-irregularidade e sofrendo as

consequências disso.

Verônica Yujra - Eu sempre falo assim “— Nossa com tudo isso que essa pessoa sofre,

porque ela vem aqui? É a primeira reação, porque que ela veio aqui. Então eu vou te falar: “—

Tudo o que ela sofre, as 14 horas que ela trabalha, é porque ela não pertencia ao lado rico de

lá, então se ela veio para cá é porque lá ela não estava bem. As mesmas 14, 16 horas que ela

trabalha aqui ela trabalha lá. Só com a diferença de que lá, no fim do mês, ela tinha o dinheiro

pra comida das crianças. Aqui, além de ter o dinheiro da comida das crianças, o teto da

criança, ele consegue dar um iogurte, sei lá, é uma coisa assim... Nossa! Ele consegue dar

uma bolacha que lá também é um luxo. Então, culturalmente existe um deslumbramento, em

termos de status ou de condição social. A pessoa que sai de lá e vem pra cá e se vê nesse

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mundo circundistralizado podendo dar para os filhos várias coisas que ele não poderia, é

obvio que ele vai falar “— Nossa eu to muito melhor aqui!”.

Alfonso Hinojosa - Se fizer a comparação pelo que se obtém por esse trabalho aqui e pelo

que se obtém pelo mesmo trabalho, mas com horas extras, obviamente, lá, a diferença é

substancial. Não há como se perder.

Rubén Vargas - Normalmente na imigração boliviana, basta que uma família migre. Esta

família estabelece as condições para que os outros membros da família vão trabalhar neste

local. Os vizinhos, os compadres, a gente do povo, etc., etc.

Mário Geremia - Eles têm uma rede social muito forte que quando eles chegam em São

Paulo, eles já têm onde morar. É um povo bastante solidário.

Rubén Vargas - A sobrevivência individual já é muito difícil por aqui, então necessita-se de

um enorme entorno familiar, comunitário, cultural, etc. E isso é muito mais importante no

exterior, porque as condições de sobrevivência individuais são praticamente nulas sem contar

com a colaboração, a amizade e os laços familiares.

Narrador - Imagem de um mapa (Google) que vai se fechando até chegar à Praça Kantuta.

Off com muitas imagens de bolivianos, festas, diversão, futebol, ensaios das bandas

folclóricas etc.

Voz | Na cidade de São Paulo existe um local onde os bolivianos têm a possibilidade de

resgatar um pouco de sua cultura, um espaço híbrido, nem Bolívia, nem Brasil, um entrelugar

capaz de traduzir o que há de mais representativo em suas tradições, como se fosse um pedaço

do seu espírito nativo. Manter viva essa identidade é uma maneira do deslocamento cultural

superar a discriminação social, uma forma de o reprimido fazer-se presente.

Don Carlos Soto - Alguns anos atrás, uma senhora da associação queria que a praça se

chamasse Praça Bolívia – Dona Alicia – Eu disse: “-- Nós estamos sendo enxotados do lugar,

porque os bolivianos não estão sendo bem vistos e se colocar Praça Bolívia vai parecer

provocação, aí o presidente da associação falou: “— Vamos colocar Nossa Senhora Virgem

de Copacabana, também é outro problema porque o brasileiro aqui é muito devoto de Nossa

Senhora Aparecida vai ser outra provocação”. Já estou fazendo os bonés para a associação e o

nosso símbolo, nosso logotipo era a kantuta, a flor, então vamos colocar kantuta, já temos o

nosso logotipo. Vamos colocar o nome de kantuta, o brasileiro não vai saber o que é kantuta e

não vai criar atrito com ninguém e o boliviano escuta kantuta e sabe que é com ele. Tanto

assim que o brasileiro não sabia, que o administrador perguntou: “— O que é kantuta”? Ta

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vendo, kantuta é uma flor (imagem da flor) que tem as cores da bandeira boliviana e, portanto

é o nosso símbolo nacional.

Rubén Vargas - A cultura funciona como um elemento de coesão social forte. A comida, os

bailes, as festividades, os esportes, as reuniões, enfim, fazem esse papel de... digamos... une as

pessoas...

Don Carlos Soto - Foi bonito, foi muito emocionante, principalmente prá mim porque,

imagina um estrangeiro em uma terra estranha, que não é o país dele. Sem política, sem nada,

sem ser político, colocar o nome de uma praça ainda com o símbolo nacional é um feito bem

grande, difícil até para o brasileiro colocar.

Mário Geremia - O povo brasileiro é um povo acolhedor, ao mesmo tempo existe bastante

xenofobia. Existe muita... certo racismo por ele ser de característica indígena e a gente sente

muito forte isso e eles mais ainda.

Narrador - (De novo a imagem / ilustração do ônibus no qual os povos vão entrando)

Todo novato sofre, o nordestino sofre até hoje mesmo vindo da mesma nação e quando estes

novatos vêm de uma sociedade diferente, considerada menos desenvolvida, então tudo fica

mais difícil.

Angela Nadir - Eu escutei falar mal dos bolivianos porque, às vezes, algumas pessoas que faz

coisas mal... e eles acham que todo mundo é assim, né.

Verônica Yujra - Briga entre brasileiros e bolivianos, professores que tem o ato de

discriminação em cima de nossas crianças, até morte, teve até morte de criança

principalmente nessas escolas aqui do Brás, do Pari. Hoje em dia a problemática dos jovens

que vão consumir álcool e drogas em algumas praças, que não vão mais para as escolas. É o

início da formação dos guetos.

Mário Geremia - Não podemos mais viver de forma isolada, fechados. Temos muitos muros

já no mundo. Muros, muralhas, cercas e fronteiras, então, é o momento de cruzar, construir

pontes prá todo mundo se ver.

Marcel Biato - Se a sociedade brasileira está disposta a aceitar imigrantes, refugiados

econômicos de outros países, tudo bem, que o faça, mas de uma forma que não vá criar

bolsões de pobreza e de frustração dos próprios interessados. Então, garantir que eles tenham

educação mínima para atender as necessidades do Brasil, as nossas necessidades, dos

engenheiros e outras coisas mais, ou pessoas que vão trabalhar em setores onde há carência de

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mão de obra, ou senão, como os haitianos que têm um componente, digamos, humanitário

forte, habilitados a estudar português, adquirir conhecimento.

Verônica Yujra - È a questão da dualidade do imigrante pobre, porque o imigrante rico nem

vai te pedir para ser bem recebido, ele vai pagar para ser bem recebido. Então o imigrante

pobre não, ele está sujeito à vontade do outro.

Vanessa Espinoza | Estudante | La Paz - Eu creio que as pessoas aqui da Bolívia... nós

bolivianos. Temos que estar orgulhosos de viver aqui na Bolívia por que não é verdade que

não tem trabalhos. Tem trabalho. Tem. Mas tem gente que tem a vontade de ganhar mais

dinheiro. Mas, na verdade, eu não. Eu amo minha Bolívia. Na verdade não penso, nem

pensaria em deixar aqui, pois nasci aqui e aqui que vou morrer.

Narrador - (Imagens de pessoas andando)

Imagina como se fosse uma cadeia alimentar, só que social, onde as fronteiras geográficas e

étnicas se cruzam e são capazes de desencadear desrespeitos, violência ou simplesmente

desprezo. Sempre foi assim e pode ser que sempre seja, a história se repete e somos

testemunhas. Hoje quem sofre são os bolivianos e quem serão os próximos? (Novamente a

imagem / ilustração do ônibus).

Música e muitas imagens da Bolívia e do Brasil. Finaliza com um rap boliviano.

* Tradução dos textos é do próprio documentário.

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2. 100% BOLIVIANO, MANO

Curta Documentário produzido por Grão Filmes em parceria com a Agência Independente

Pública de Jornalismo Investigativo.

Diretores: Alice Riff e Luciano Onça

Imagens do rapaz | Denílson Mamani | 15 anos, Imigrante.

Se trocando, dentro de um quarto onde a TV esta passando um vídeo com música latina,

imagens de suas joias e o rapaz arrumando seu cabelo.

Denílson entra na cozinha onde esta sua mãe Carmen, 36 anos, costureira e vive em São Paulo

há 15 anos. Carmen cozinha enquanto conversa com o filho em espanhol.

Denílson está sentado na cama, com microfone cantando uma música boliviana.

Vinheta: Denílson e sua mãe dividem um cômodo de uma casa onde moram mais três famílias

bolivianas. No espaço comum, funciona uma oficina de costura.

MÚSICA SENDO CANTADA OFF POR DENÍLSON: O rapaz vendo fotografias, logo após

aparecem algumas fotos nas paredes. Em seguida, ao sair, Denílson, passando pela oficina

desce as escadas, sorri para uma escrita na parede: TE AMO PAMELA.

Denílson caminha pelo bairro onde mora, Bom Retiro, SP. O rapaz acena para algumas

garotas que estão na varanda de um sobrado, passa em frente a um açougue com cartaz

contendo informações de seus produtos.

Denílson Mamani - Eu não culpo minha mãe por ter vindo aqui, me deixado com minha avó.

Ela veio aqui para procurar meu pai. Porque ela não podia sozinha. Ela me deixou. Me deixou

com três dias de nascido. Eu cheguei aqui no Brasil com 8 ou 9 anos, por aí. Minha mãe

chegou lá (na Bolívia) eu tava lavando roupa, eu falei ela é minha mãe? Nossa.

Imagens de uma Escola -

Vinheta: Estadual João Kopke – Bom Retiro

Dos 1600 alunos da escola. 30% São Bolivianos.

Denílson está sentado na sala de aula vazia, acima de sua cabeça, está uma bandeira do Brasil.

Denílson Mamani - Eu não sabia falar português, eu falava espanhol. A professora falava um

pouquinho de espanhol e me entendia, mas eu não tive amigos nessa época porque, não sabia

falar, só falava espanhol. Os caras me batiam quando eu era pequeno. Ficava pedindo dinheiro

para mim, falando um monte de coisas. Tem uns caras que ficam se achando, querendo bater

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em boliviano. Ficava falando, só porque eu não estou no meu país. Isso me dá raiva, tem

vezes que eu quero voltar para lá, não voltar mais aqui.

Imagens da estação Luz - O rapaz, Denílson, observa o movimento dos trens.

Denílson Mamani - Já queria ir embora daqui, só que pensei na minha mãe, não queria

decepcionar ela. Esses caras eu vejo ainda, viraram meus amigos porque eu comecei a falar

com eles. Eles gostaram do jeito que eu desenhava, cantava. Antes eu pensava como uma

criança, querendo me vingar, fazer besteira, fazer minha mãe sofrer. Só que com o tempo

comecei a descobrir que minha mãe trabalha para mim, ela me dá roupa, comida, tenho um

telhado onde morar. Por isso que eu agradeço a minha mãe, porque ela me deu tudo o que eu

nunca tive.

Imagens de perfil de Denílson – Novamente, o garoto dentro da sala de aula, sentado em uma

carteira.

Denílson Mamani - Minha mãe falava comigo estuda, estuda, eu comecei a pensar pouco a

pouco. Ela pensava que eu era desses caras que iria para o mau caminho, e eu demonstrei pra

ela que eu não sou assim. Só penso isso. Só penso em estudar agora, estudar, seguir em frente.

Imagens da Oficina de Costura - Carmen, mãe de Denílson, sendo arrumada por duas

bolivianas para o evento típico de seu país, no Memorial da América Latina.

Carmen - Minha filha foi estudar na Bolívia, para ter uma profissão, porque não gostou

daqui. Ano que vem acaba, e ela entra na universidade. Mas Choco (Denílson) não quer ir

para lá. Ele acostumou aqui, quer estudar aqui. Depende dele também, eu também quero

morar aqui.

Imagens da Oficina - Carmen anda pela oficina, pega o chapéu e sai em seguida.

Vinheta: 6 de agosto, dia da independência da Bolívia. Carmen se prepara para a

comemoração que acontece todos os anos na barra funda, bairro vizinho ao Bom Retiro.

Imagens de rua – Carmen caminha para o evento, logo aparece dentro de um carro e com

espelho se maquiando.

Foco no rosto de Denílson.

Imagens de pessoas no evento dentro do Memorial da América Latina, SP

Carmen - Eu gosto de participar. Porque me lembro da Bolívia. Não se pode esquecer das

danças típicas de lá, minha mãe se veste assim todos os dias.

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Imagens de pessoas fazendo as danças típicas da Bolívia

Voz Off | Carmen - Ele (Denílson) tem que saber como é a cultura boliviana, não pode

esquecer. Por isso que eu estou alegre que ele esteja aqui também. Isso é a cultura boliviana.

Música: Morenada Proyección – Grupo Los Intocables

Imagem de três pessoas observando as danças, logo depois, outra imagem, da arquibancada

cheia.

Imagens de homem segurando uma revista de nome EN ACCION, com foto na capa de

boliviano e título “Educação a distância para bolivianos residentes em São Paulo”.

Imagens de homem tocando instrumento e depois de mulheres dançando.

Imagens de prédios cinzentos

Vinheta: Os imigrantes bolivianos começaram a se estabelecer massivamente em São Paulo

na década de 1990.

Imagem de Janela

Vinheta: Não há números oficiais precisos sobre a população de imigrante bolivianos, até

porque muitos são ilegais. As estimativas variam entre 50 a 200 mil habitantes em São Paulo.

Imagem de prédios, bege e outros cinza

Vinheta: Grande parte dessa comunidade trabalha nas oficinas de costura da região central.

Imagem da janela de uma oficina de costura

Vinheta: As oficinas de costura trabalham por encomenda e o pagamento é por peça de roupa

produzida.

Imagem de boliviano costurando

Vinheta: Os intermediários pagam em média de 2 a 4 reais por peça. As Jornadas de trabalho

chegam a 14 horas.

Imagens de bolivianos costurando, dentro de oficina.

Vinheta: Os costureiros bolivianos têm uma folga semanal, geralmente aos domingos.

Imagem de rua – Denílson está indo para um aniversário

Músicas Off

Denílson e seus amigos pedem para trocar de música e começam a cantar.

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Garoto imigrante cantando - Somos poderosos na rua. Se queres respeito, respeite-nos

primeiro porque esse é meu povo. Este é o meu progresso e o meu peso 100% boliviano,

mano. Meu talento eu te mostro. Não me encare que te corto o pescoço. Te sigo, invejoso, e

ando ligado e sempre preparado ativado, alerta com La Onda, aqui sou eu mando.

Imagens do festival Kantuta

Narrador - Sejam bem vindos, esta é a Praça Kantuta onde estão as emoções e sensações,

cada final de semana mostrando nossas tradições e costumes.

Música

Imagens de uma barraca de DVDs, no evento Kantuta - Denílson e amigo mexem em alguns

DVDs.

Imagens de bolivianos no evento Kantuta

Voz Off | Denílson Mamani - Aqui é um encontro de bolivianos. Tem as comidas que os

bolivianos gostam, preferências, filmes bolivianos, quase tudo, corte de cabelo.

Garoto imigrante, amigo de Denílson - E também tem carros oferecendo trabalho na

costura. Você pode pegar cartões se precisa de trabalho por isso que vem também tanta gente.

Imagens de um carro com folha A4 informando algumas vagas de emprego

Voz Off | Juan Estrella - O fornecedor manda o corte, tudo cortadinho. O boliviano a única

coisa que faz é a mão de obra. E entrega tudo pronto para o coreano. O coreano faz o

acabamento, a embalagem, e manda para o cliente.

Imagem da família de Juan Estrella

Voz Off | Juan Estrella - Sinceramente eu não gostaria que meu filho seja costureiro.

Juan Estrella - Eu gostaria um futuro melhor para ele. Eu quero que eles tenham naturalidade

brasileira, para empreender uma profissão no Brasil. Pode ser policial, medicina.

Imagens de bolivianos no evento Kantuta

Voz Off | Denílson Mamani - O pessoal se reúne de sábado e domingo na Kantuta e na

Kantutinha, tudo entre amigos. Nós ficamos lá, voltamos juntos.

Imagens de Denílson caminhando durante o dia pela rua

Voz Off | Denílson Mamani - Conheço muitas pessoas que costuram. Jovens não muitos,

mas adultos sim. Tem muitos costureiros que eu conheço. Eu já falei. Eu não vou ser

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costureiro. Eu posso ser qualquer coisa, menos costureiro. Mesmo se eu morar na rua, não vou

costurar.

Alguém pergunta: POR QUÊ?

Denílson - Não gosto. Eu quero que minha mãe fique orgulhosa de mim. Não quero que ela

fale: eu dei pro meu filho um esforço, uma educação, pra quê? Pra virar costureiro. Eu quero

que ela fale, meu filho é doutor, advogado, ou tem uma loja, alguma coisa. Mas, costureiro

não penso em ser não.

Imagem da rua – Denílson esta em frente a um prédio amarelo com placa PRECISA-SE DE

COSTUREIROS. Seu telefone toca, ele atende alguém conversa com ele. Denílson chama um

garoto que passa pela rua e que vai até ele. Os dois conversam, o garoto vai embora. Chega

outro garoto e eles começam a conversar.

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3. NAÇÃO OCULTA: BOLIVIANOS EM SÃO PAULO

Documentário produzido por Mosaico Filmes

NAÇÃO OCULTA: OS BOLIVIANOS EM SÃO PAULO de Diego Arraya

(Som de trem andando pelos trilhos)

(Fundo Preto)

Texto: Mosaico Filmes

Texto: Apresenta

(Som de portão abrindo)

(Imagens: Rapaz boliviano canta e toca instrumento dentro de um ônibus)

(Fundo Preto)

Texto: La Paz, Bolívia

(Imagens: Ao som da música cantada pelo rapaz boliviano, aparecem as seguintes imagens:

montanhas da Bolívia; o caos das ruas e do trânsito de La Paz; avenidas mais estruturadas e

com fluidez no trânsito; vendedor de rua arrumando as mercadorias ao mesmo tempo em que

recebe o dinheiro do cliente; o contraste da cidade urbana em meio à paisagem de

montanhas; barracas de feiras típicas montadas nas ruas; casas e ao fundo morros; rua de

terra e casas mais rudimentares, lembrando um pouco as periferias; boliviano andando no

deserto acompanhado de duas mulas; família vestida com roupas típicas no meio de uma

plantação; dois bolivianos correndo, provavelmente em fronteiras.).

(Fundo Preto)

(Imagens: A trilha musical tenta recriar o som do trem nos trilhos, de maneira que,

acompanhada de imagens perfazem o trajeto de viagem dos bolivianos para o Brasil. As

imagens, na verdade, desenhos, representam essa trajetória: Por meio de um Mapa do

Mundo localiza-se a cidade de La Paz (Bolívia); a bandeira do país erguida sobre a

montanha, ao mesmo tempo em que, vários bolivianos entram no ônibus; novamente por meio

de mapa, mostra-se o ponto de partida (La Paz) e o destino (Santa Cruz); Imagens das rodas

do trem e atrás um ônibus exemplificam a viagem tanto de quem vem de La Paz, como de

Quijarro, bem como de outras partes da Bolívia, até Corumbá (Brasil); Já na fronteira, esses

bolivianos acabam entrando de maneira legal, inclusive com o passaporte e visto de turista;

a viagem, por sua vez, só termina ao chegar em São Paulo, representada pela bandeira do

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estado; aqui, esses bolivianos passam a trabalhar em oficinas de costura; sob metade da

bandeira brasileira e metade da boliviana, aparece o nome do documentário: “Nação

Oculta”.).

Padre Mario Geremia, Pastoral do Migrante – A migração ela tem um processo longo.

Nos anos 50, 60 tivemos o boom da migração interna. Talvez começando um pouco antes.

Temos a migração histórica, da Europa, depois temos a migração do Oriente, aí vem a

migração do Brasil internamente e só nos anos 70, 80, com as ditaduras militares da América

Latina, começam a chegar os latino-americanos não brasileiros. Então, nós temos aí o

primeiro grande grupo de migrantes chilenos, porque foi a primeira ditadura forte, em 1973,

com a queda do Allende. Depois, temos o segundo grupo bastante expressivo dos paraguaios

e, atualmente, já começando nos anos 80, temos o grande grupo dos bolivianos. E aí, já vem,

além da ditadura militar, eu considero que temos a ditadura econômica da América Latina,

onde milhões de migrantes, eles são obrigados a sair não só do Brasil, mas pra todas as partes

do mundo.

Roque Patussi, Pastoral do Migrante – E, vindo pra cá, encontraram, na época de 60 e 70,

que foi a época gloriosa do Brasil né, do crescimento maravilhoso, então encontravam

trabalho em todos os lugares, em todas as áreas. Na época de 70 e final de 70 já começa a

escassear, porque nós também estávamos na ditadura. E então, começam a privilegiar um

grupo, aí criam o Estatuto do Estrangeiro para quase que puni-lo, dando somente os trabalhos

que o Governo queria para os imigrantes, não dando acesso a todo o tipo de mercado de

trabalho, mas somente ao mercado que o Governo da ditadura da época queria.

Padre Mario Geremia, Pastoral do Migrante – Existem várias formas de o povo imigrante

chegar, primeiramente pela geografia que não é tão longe, então, a maioria vai de ônibus. Eles

vêm como turistas, ou seja, eles podem vir por qualquer fronteira do Brasil. Então, a grande

maioria vem de ônibus. Existe também a forma de chegar ao Brasil pela rede. Por Exemplo:

Eu conheço alguém na Bolívia e chamo. Então, pela rede social que eles têm forte, que é a

família, os amigos, parentes. Então, eles se chamam. São chamados e eles vêm.

Sidney Antônio Silva, Antropólogo – Em sua grande maioria né, são trabalhadores jovens

né, na sua fase melhor de produção, pouco preparados, em geral, o nível de escolaridade é

médio né. E eles exatamente vêm com essa ilusão de encontrar trabalho né, mas também já

orientados para o mercado de trabalho, que é a costura, ou seja, a partir dos que já estão aqui

né, cria-se redes né, de intercâmbio com aqueles que estão lá e aí isso alimenta o fluxo

migratório né. Então, novos migrantes vão chegando e os que já estão aqui vão à Bolívia

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buscar novos trabalhadores, e assim por diante. Ou seja, a rede vai aumentando né, os

mecanismos também de contratação vão se aperfeiçoando, vão se tornando mais complexos

né. Há também esquemas de agenciamento de mão-de-obra né, são os chamados coiotes né,

aqueles que fazem a intermediação e cobram para trazer esses trabalhadores ao Brasil.

Ruth Camacho, Advogada – Primeira coisa, se esse imigrante veio pra cá é por conta da

falta de mercado de trabalho. Situação econômica: A Bolívia passa recentemente por

situações políticas é de, sempre passou por situações de instabilidade política. Com tudo isso,

você tem uma dificuldade de trabalho. Ao mesmo tempo, tem um novo governo que tá

tentando regularizar a situação, mas não existe mercado de trabalho. Então o que eles fazem?

Lógico, não existe grande, não existe mercado de trabalho pras zonas rurais afastadas. Esses

poglites, como você falou. Então, se não tem trabalho e eu tenho o meu parente que ta lá no

Brasil, que vai me dá alguma coisa de trabalho, então eu vou trabalhar lá, eu vou ajudar ele. A

extensão de familiaridade é muito grande que eles têm. Então, ajuda a essa imigração e há

falta de trabalho, não tem como disfarçar essa situação.

Sidney Antônio Silva, Antropólogo – E, bom, o importante é que eles vêm né, de várias

partes da Bolívia né e, em São Paulo, há uma grande concentração de pacenhos né, que vêm

de La Paz né, exatamente a capital La Paz né e a cidade em torno de La Paz que é outra

cidade grande, que tá contígua a La Paz, que é Quijarro né, ali onde tá uma grande presença

dos imigrantes internos né. Então, eles vêm do interior da Bolívia ou do mesmo departamento

de La Paz para essa cidade de Quijarro, depois, dali eles vêm para o Brasil né, em geral para o

Brasil. De La Paz para o Brasil.

(Imagens: Placa de identificação da cidade, escrita: “Quijarro”; e bilheteria da ferroviária

da cidade.).

(Fundo preto e trilha musical de bandolim)

Texto: Quijarro, fronteira da Bolívia com o Brasil.

(Imagens: Vários bolivianos juntos; trens da ferroviária da cidade.).

(Fundo preto e trilha musical de bandolim)

Texto: Principal ponto de entrada dos imigrantes bolivianos ao Brasil.

(Imagens: Trem passando e detalhe na inscrição lateral: “Ferroviária Oriental”; os

bolivianos embarcando no trem; o interior do trem já com os passageiros; a partida do trem

e as pessoas que ficam, sobretudo, as crianças; detalhe das crianças na estação; criança

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chorando do lado de fora do trem durante a despedida; os familiares que ficaram; já durante

a viagem, o trem atravessa uma ponte sobre um rio; por outro lado, ainda na estação, a

inocência da criança que nem sabe o que está acontecendo, sorri ao lado dos trilhos.).

Roque Patussi, Pastoral do Migrante – Normalmente, acordam cinco e meia da manhã, às

seis horas começam a trabalhar, às sete e meia, oito da manhã tem um café, ao meio dia tem

um almoço, às quatro da tarde tem um chazinho com uma bolacha, às oito da noite tem a janta

e aí continuam trabalhando até dez, meia noite, uma da manhã. Porque tudo depende do

quanto chega de pedido e quando tem que entregar. O coreano normalmente ele entrega os

pedidos e ele não dá muito prazo para que as pessoas entreguem esse material pronto. Então,

eles têm que usar todo o tempo disponível para a máquina. Então, eles têm que estar

disponível para a máquina. Por isso, têm dias que para eles poderem fazer a entrega do

produto, tem lugares que eles têm de ficar vinte e quatro horas sem parar.

Sérgio Suyama, Ministério Público Federal – No começo o que havia eram mais coreanos

que tinham oficinas de costura pequenas e que, então, contratavam diretamente os bolivianos.

O que a gente percebeu a partir né dos últimos anos foi que houve uma mudança desse, desse

padrão econômico. O que aconteceu era que bolivianos estavam aqui há mais tempo no Brasil

já numa situação regularizada, porque têm filhos ou porque casaram aqui no Brasil. Esses

bolivianos começaram, então, a chamar seus conterrâneos, parentes, amigos, enfim, pessoas

próximas para trabalhar nas suas oficinas. Eles conseguiram um pequeno capital e, com esse

pequeno capital, eles então começaram a montar pequenas oficinas de costura e houve então

uma “quarteirização”, uma terceirização enfim desse trabalho. Então, não eram mais coreanos

explorando bolivianos né, a situação ficou um pouco mais complicada: Eram bolivianos que

estavam ali, recebendo de coreanos por peça, e que recebiam uma miséria e que, então

repassavam uma parte dessa miséria pros seus conterrâneos, parentes etc., etc. E aí, isso fez

perceber a gente também o próprio limite, os próprios limites da atuação criminal né para

resolver um problema que na verdade não é um problema criminal, é um problema

econômico, um problema gerado pela própria globalização econômica, gerado pela própria

disparidade, pelas próprias disparidades regionais entre Brasil e Bolívia ou entre Brasil e

Estados Unidos, entre Brasil e Europa, entre Brasil e Japão né, que leva a haver esse

movimento migratório. Quer dizer, não só o Brasil, não só de bolivianos pro Brasil, mas

também de brasileiros pro Japão, brasileiros pros Estados Unidos, brasileiros pra Europa etc.

Padre Mario Geremia, Pastoral do Migrante – Nós temos hoje mais de três milhões de

brasileiros fora do País. Então, a gente percebe que as causas da imigração forçada é igual e é

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a mesma em qualquer parte do mundo. Você vai na China, vai na Europa, vai na Rússia, vai

na América Latina, na América do Norte, as pessoas migram porque não têm trabalho. As

pessoas migram porque sonham com um futuro melhor. E as pessoas migram por uma

necessidade básica e fundamental, que é a defesa da vida e a busca da vida.

(Imagens: capital paulista.).

(Fundo preto acompanhado de trilha musical)

Texto: São Paulo.

(Imagens: chegada do trem na estação; linha do trem; pessoas subindo as escadas rolantes

da estação; senhor engraxando o sapato de um homem; loja de bolsas em região

movimentada da capital; as pessoas dentro do trem; Praça da Sé e homem com placa escrita:

“Compra-se ouro”; prédios em péssimo estado de conservação na região central; o trânsito

nas grandes avenidas; pessoas esperando na plataforma o trem; o grande fluxo de pessoas

em meio ao comércio popular; aéreas dos prédios de São Paulo; o rosto das pessoas da

capital; Praça da Sé e movimento de pessoas durante o dia; rapaz trabalha nas ruas se

vestindo de estátua; por outro lado, ao som das máquinas de costuras, bolivianos trabalham

confeccionando roupas.).

(Fundo preto)

Texto: Elizabeth e Wilson

(Imagens: Em meio ao barulho das máquinas, boliviano corta tecido; casal de boliviano

conversando enquanto trabalham; detalhe do corte de tecidos; boliviano manuseando

máquina de corte de tecido; depois de cortado, o tecido é colocado junto com os outros, para

depois serem costurados.).

Wilson – Minha irmã, ela veio mais antes que eu. Chegou acho que em 94. Em 94 ela tava

aqui, já ganhou um filho, ganhou o neném. E como ela se sentia sozinha ela ligou pra nós. E

nessa época, a gente tava trabalhando... trabalhando com construção civil, trabalhava lá em

uma empresa. E essa época que ela ligou eu tinha acabado um projeto, entregado uma obra e

tava lá livre, tava com férias. Então aí, a gente decidiu dar uma visita, e vir visitar aqui a

minha irmã e ver como que tava o negócio aqui. E decidiu vir a família inteira: aí eu, minha

esposa e mais três filhos.

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(Imagens: bolivianos costurando em um pequeno quarto da oficina; rapaz costurando;

detalhe das roupas já confeccionadas; homens sem camisa e mulheres costurando; detalhe da

roupa sendo costurada; mulher costurando.).

Wilson – O meu filho Leandro, aqui nasceu, mas a gente também não estava planejando ter

mais filhos. Porque deu para ter o meu filho Leandro quando foi que deu, como é que

chama... entrada no tramite que é para se permitir residir aqui no Brasil. Então, a gente assim,

e paramos aqui.

Elizabeth – Teve que pensar muito né. Teve que pensar, porque já tinha três meninas e mais

um veio. Aí em cima veio a outra, então teve que pensar muito para ter. Mas também era

assim: ou ficar clandestino aqui ou ter o filho, para ter o documento, para ter a permanência,

então...

Wilson – Aí se assumiu então, e decidiu tirar os documentos para toda a família. Foi uma luta

porque não era barato. Nada barato. E eu gastei em toda a família mais ou menos uns cinco

mil reais.

Elizabeth – Só a multa né?

Wilson – Só a multa.

(Imagens: detalhe do rosto de boliviano costurando; detalhe das roupas sendo costuradas;

detalhe dos carretéis de linha usados nas costuras.).

Elizabeth – Esse é que é o motivo para os bolivianos virem porque o valor também do real

com o boliviano tem muita diferença. Ganhando cem reais para o boliviano tá conforme às

vezes. Por quê? Porque ali, ele vai trocar por trezentos reais, trezentos bolivianos. Então já

compensa muito né. Então, por isso que ele decide trabalhar, trabalhar, juntar dinheiro e vai

embora. Com dinheiro, já que ali vai ser. Eu, por exemplo, eu ganho quinhentos reais, se eu

vou lá, troco por mil e quinhentos. Então, aí compensa né.

(Imagens: na oficina de confecção uma mulher, uma menina e um homem ficam olhando o

Wilson, acompanhado de outro rapaz e um menino cortarem os tecidos.).

NARRADOR – Qual o grande sonho da sua vida?

Elizabeth – A minha vida, não, eu penso assim: mais para os meus filhos. Ter a casa e dar

estudo nelas. Esse é o sonho que eu tenho.

NARRADOR – E você Wilson?

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Wilson – O sonho que eu continue atrás de, é complicado aqui. Montar aqui a fábrica e

montar aqui a loja própria para trabalhar, bem estruturada para poder ter cargo e ganhando

para não faltar comida.

(Imagens: Elizabeth confecciona roupa enquanto uma menina e um menino, provavelmente

seus filhos, brincam.).

Wilson – Parece que boliviano não tá aqui para trabalhar. Se boliviano veio, veio para

trabalhar e contribuir com o pouco que ele pode contribuir no crescimento do país. Em

nenhum momento ele veio para poder ter que dar alguma coisa pra ele dos outros. Se ele

conseguiu espaço na costura é porque ele rendeu, mostrou que pode fazer aquele serviço e tá

fazendo, não tá querendo de ninguém.

(Imagens: Enquanto toda uma música no fundo, Wilson pega uma peça de roupa feminina e

começa a vestir no manequim; amarra o cinto.).

Wilson – Esse daqui é outro modelo que tá bem na moda.

NARRADOR – Esse você inventou?

Wilson – Esse daqui eu inventei. E, a princípio era sem cinto né, e agora como pegou bastante

o cinto eu incrementei o cinto e pegou melhor. Mas esse daqui eu desenhei, montei. Pegou

legal né?

NARRADOR – Legal!

Wilson – Agora dependendo da estampa, fica mais melhor ainda.

NARRADOR – Você vende muito desse?

Wilson – Esse daqui bastante. Tem bastante venda esse aqui. Esse daqui eu fiz mais ou menos

umas novecentas peças.

NARRADOR – Verdade?! Quantas peças faz desse por mês?

Wilson – Por mês pode ser... em dois meses foram mil e quatrocentas peças, por aí. Porque

você vende não só esse tipo, vende outro tipo, um outro modelo, um outro, outro e aí vai indo.

Se tem bastante modelo.

Sidney Antônio Silva, Antropólogo – Então, é uma realidade bastante complexa desses

trabalhadores da costura né, que precisa ser abordado vários pontos de vistas né. Seja do

ponto de vista dos trabalhadores, seja do ponto de vista dos empregadores né, e assim por

diante. Ou seja, tem que ser analisado dentro de um contexto mais amplo né, que é essa

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questão da reprodução globalizada do capital no mundo moderno né. Ou seja, eles são

importantes né, para essa reprodução do capital. E, por outro lado, eles também têm sonhos,

têm projetos de vida, têm desejos de melhoria, de melhorar suas vidas, etc, para si mesmo,

para suas famílias. Então, eu acho tem que ser avaliado dentro de um contexto, dentro dessas

várias relações né, que dão corpo a este segmento de trabalho que é a costura.

Sérgio Suyama, Ministério Público Federal – É isso que a gente também tava falando um

pouco, em relação a essa... a esse paradoxo né, que é o que o capital, hoje, no mundo, tem

uma liberdade de circulação muito grande, quer dizer, é o tal do capital volátil né. Então, o

capital circula né entre as bolsas de Nova York para Tóquio, para o Brasil, em busca de

melhores mercados e tudo mais. O trabalhador faz à mesma coisa. O trabalhador ele vai em

busca, o trabalhador que imigra, ele vai em busca junto com a sua família de melhores

condições. O boliviano, não vem para cá porque ele quer ir para Copacabana, o boliviano vem

para cá porque a situação na Bolívia é muito pior que a do Brasil, e ele sonha com um futuro

melhor para a sua família, para si, para o seu filho né, um desenvolvimento econômico e tudo

mais. Então, ele vem para cá em busca dessas oportunidades. E, o trabalhador brasileiro, é a

mesma coisa né. Ele vai para os Estados Unidos, ele corre aqueles riscos todos para atravessar

a fronteira, vai para a Europa né, muitas vezes eles se submetem a uma situação de tráfico, a

uma situação de exploração mesmo da sua mão-de-obra, ou de traficantes que vendem

documentos falsos, fazem promessas, confiscam documentos, e tudo mais. Ele vai em busca

de um sonho. Então, eu acho que a gente tem que... quer dizer que, se esse capitalismo

transnacional, globalizado, ele é para valer, então tem que ter liberdade de circulação do

capital e liberdade de circulação também do trabalho né. O que não dá para ter é isso: os

países ricos ou os países remediados colocam barreiras fortíssimas, pesadíssimas em relação à

circulação de trabalhadores, ao mesmo tempo em que exigem ali uma liberdade de circulação

do capital. Isso que não pode acontecer.

(Imagens: pessoas acompanham evento, enquanto no Datashow é exposta a fala do Roque

Patussi.).

(Fundo preto)

Texto: Encontro de direitos humanos e imigração. Realizado na Pastoral do Migrante, com a

presença do Ministério Público do Trabalho. Com a presença de aproximadamente mil

bolivianos.

(Vídeo Datashow)

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Roque Patussi, Pastoral do Migrante – Nos reunimos, hoje, à noite, para fazermos um

trabalho de dignidade, um trabalho de cidadania e um trabalho onde queremos mostrar à

pessoa humana que ela tem direitos e, que esses direitos têm que ser conquistados. E, esses

direitos, só serão conquistados quando nos unirmos e quando nós lutarmos por eles. Não vêm

prontos. Vieram prontos de Deus, mas alguém se apropriou. E, hoje, para nós termos

novamente esses direitos, temos que reconquistar esses direitos. E, hoje à noite, esse encontro

que vamos fazer, é uma maneira de nós reconquistarmos esses direitos.

(Imagens: Enquanto Cristina Ribeiro fala para vários bolivianos, estes por sua vez,

acompanham atentamente a fala da representante do Ministério Público do Trabalho.).

Cristina Ribeiro, Ministério Público do Trabalho – A partir de agora, desse ano,

principalmente, com uma nova tática, nós mudamos essa estratégia. Percebemos que não

adianta nós chegarmos, invadirmos o local de trabalho e levarmos os senhores para a Polícia

Federal, para receberem uma multa e para os senhores saírem do país. Isso não tem adiantado,

e não vai resolver a situação. Mesmo porque todos que já receberam esse tipo de sanção

permaneceram no país, em outros lugares. Então, a nossa nova estratégia é: receber as

denúncias dos senhores e procurar trabalhar em conjunto aqui com a Pastoral e tentar legalizar

a situação dos senhores junto à Polícia Federal. O que isso quer dizer? Quer dizer que nós

vamos verificar a situação dos senhores, para que os senhores tenham a situação... a

permanência legalizada e daí poder tirar o seu, não digo a carteira de trabalho, mas o

documento que os habilite a trabalhar como costureiros autônomos ou como qualquer outra

profissão autônoma.

(Imagens: Em meio aos outros bolivianos, homem e mulher fazem perguntas à representante

do Ministério Público do Trabalho.).

Boliviano – Boa noite. A minha pergunta é em geral, para todos da mesa. O problema maior

que a gente apresenta nessa situação é que nós trabalhamos por prendas, por encomendas.

Portanto, nós oficinistas tanto costureiros estamos sujeitos à má vontade dos coreanos. Eles

nos oferecem o preço, nós estamos sujeitos, porque nós temos filhos, temos que pagar

aluguel, conta de luz. Então, estamos sujeitos à má vontade dos coreanos, brasileiros, judeus,

todos aqueles que têm firmas grandes. Por isso que nós, muitos de nós aceitamos o preço que

eles têm. Eu gostaria que a Procuradora desse alguma posição sobre essa situação, por favor.

Boliviana – Agora em que nos favorece ou nos prejudica? Porque nós não conhecemos bem a

lei aqui no Brasil. Porque todos somos indocumentados. As oficinas que tem costureiros

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indocumentados, que vai acontecer com eles? E se só para nós é a fiscalização, por que as

grandes empresas fazem que ganhemos desta maneira, para que não haja educação para os

nossos filhos, para que não tenha saúde e limpeza? Porque o salário que eles nos dão, não dá

para fazer o trabalho legal, como você está falando, como a Polícia Federal exige. Porque nos

pagam cinquenta, sessenta centavos por peça, temos que fazer mil, duas mil peças por dia

para cobrir a alimentação, o aluguel, ou seja, tudo o que se deve pagar. Porque eu creio que

nenhum dos que estão aqui não tem suas contas pagas. Todos nós já pagamos, mas eu não sei

o que acontece, se somente para nós ou para as grandes lojas que nos dão o trabalho, porque

nós somos mão-de-obra.

(Imagens: bolivianos acompanhando discurso de um de seus colegas; boliviano que fala não

tem seu rosto mostrado nas imagens.).

Boliviano – Como podemos apoiar então, se nós queremos unir-nos, porque nós estamos

dispostos a unirmos, porque queremos que toda esta legalização seja feita verdadeiramente.

Não é verdade? Então, para isso, porque nossas instituições, não foram bem formadas, não

foram capazes de nos conduzir? Então, o que nós queremos é que alguém, como a senhora ou

como vocês que estão aí na frente, possa nos conduzir, para que a legalização dos

indocumentados avance.

Cristina Ribeiro, Ministério Público do Trabalho – Então, eu acho que foi interessante

promover este tipo de debate, para deixar mais tranquilo o pessoal. Para que eles não fiquem

esperando uma perseguição ostensiva do Brasil. Não é isso. O que nós queremos é que eles

regularizem a situação, como em qualquer outro país. Os brasileiros, lá nos Estados Unidos,

também são perseguidos pelas autoridades americanas, assim como os brasileiros que estão

em Londres. Então, não é uma situação de perseguição do trabalhador imigrante boliviano,

mas é de uma conjuntura global.

(Imagens: Padre ora “Pai Nosso” juntamente com os bolivianos)

Padre – Oremos: Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o

Vosso reino, seja feita a Tua vontade...

Padre Mario Geremia, Pastoral do Migrante – Eu posso me enganar, mas eu acho que

mais de oitenta por cento da mão de obra ela é imigrante, nesse momento em São Paulo.

Aonde eles praticamente costuram, fazem a indústria da costura em São Paulo.

NARRADOR – O senhor diria então que, sete a oito peças são costuradas por bolivianos e

paraguaios. De cada dez que saem?

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Padre Mario Geremia, Pastoral do Migrante – Exatamente! De cada dez peças, eu diria

que, sete são costuradas pelos imigrantes.

Ruth Camacho, Advogada – Se fala muito em exploração. Em exploração da mão-de-obra

né. Aí, a primeira coisa que a gente vem na cabeça é que o dono da oficina tá explorando.

Mas a cadeia começa muito mais antes do que o dono de oficina. A nossa cadeia, para quem

trabalha no ramo da confecção, começa desde a plantação de algodão. Se a gente for levar

isso ta? Começa lá. Mas aí a gente fala em exploração da mão-de-obra, por quê? No seguinte

fator: porque o sistema de confecção, você, por exemplo, no caso de blazeres, isso eu vi, eu

vi. E, a gente constata todo dia. Você... você vende um blazer para uma mulher tá, você cobra

por aquele blazer cento e cinquenta a duzentos reais. Quando o dono de oficina tá recebendo

por aquele mesmo blazer quinze, vinte reais. A discrepância é muito grande. É muito grande.

Roque Patussi, Pastoral do Migrante – O dono da oficina de costura ele tem que pagar:

aluguel, tem que pagar as máquinas, tem que pagar luz, tem que pagar água, tem que pagar o

telefone. Tem todos os gastos na mão dele. Quanto ele vai poder pagar ao boliviano que

trabalha na máquina de costura, o costureiro? Uma média de dez a quinze centavos por peça

produzida. Essa é a cadeia de exploração que eu falo. O coreano, quando recebe de volta o

produto pronto, ele entrega para essas grandes empresas, muitas vezes, até por cinquenta,

sessenta reais, cem reais.

NARRADOR – E a empresa entrega para o consumidor por quanto?

Roque Patussi, Pastoral do Migrante – Entrega... e a empresa entrega para o consumidor, se

o produto final, por exemplo, entre o tecido e a produção toda, custou uma média de cinco a

sete reais, normalmente, no mercado, ela vai estar em torno de trinta. Se custou em torno de

doze reais, porque o tecido é melhor, ela vai tá no mercado por cem, cento e cinquenta reais.

NARRADOR – Desses cento e cinquenta reais, quanto que foi para o bolso do boliviano que

fez a peça?

Roque Patussi, Pastoral do Migrante – Ele acabou ganhando quinze centavos.

(Imagens: pessoas no terminal rodoviário.).

(Fundo preto)

Texto: Terminal de ônibus da Barra Funda – São Paulo. local de regresso dos bolivianos

para sua terra natal.

(Imagens: pessoas no terminal rodoviário, com detalhe nas crianças.).

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(Fundo preto)

Texto: Edi

Edi – A situação dos bolivianos aqui em São Paulo? É difícil. Difícil.

NARRADOR – Por quê?

Edi – Porque... Eu te digo o porque. Aqui em São Paulo, somos muito discriminados. Porque

somos morenos, baixinhos. Os brasileiros nos discriminam mais que qualquer um. Os

brasileiros jovens, quando veem um boliviano que está aí caminhando sozinho ou qualquer

outra coisa, aí vêm os brasileiros que nos assaltam, nos pedem um real. Isso vem dos

brasileiros que são jovens.

(Imagens: criança boliviana chorando; homem pega a menina no colo.).

Edi – Comparando com a situação da Bolívia, compensa. Porque seiscentos reais são quase

mil e oitocentos pesos bolivianos, né. Lá o salário que te pagam é de quatrocentos,

quinhentos. Poucos ganham setecentos, oitocentos pesos bolivianos. Então aqui, se você

trabalha cedo até mais tarde, são mil e oitocentos pesos bolivianos. Tem ainda a casa que te

dão, a alimentação que te dão. É somente trabalhar e receber. Assim.

(Imagens: pessoas se abraçando no terminal rodoviário.).

Edi – Não sei o que dizer a eles. Primeiro teriam que gostar do trabalho, a situação, como é

aqui: da forma de trabalho, do horário que é de cedo até mais tarde. Primeiro, teríamos de

contar a eles e dizer, aqui no Brasil é assim. Bom, o que é a verdade. Porque tem bolivianos

que são donos de oficinas que contam, que lá no Brasil é uma maravilha, que se ganha tudo

isso. Bom, eu não posso dizer o mesmo. Só diria que o trabalho é assim: de tal horário a tal

horário. Bom, aí a decisão é deles, né. Isso seria.

(Imagens: bolivianos entrando no ônibus para voltar a sua terra natal; o horário do ônibus

marca quinze horas e trinta minutos, e embaixo a bandeira do Brasil ao lado da Bolívia;

bolivianos conversam com o motorista do ônibus).

Edi – Sonho grande. Sonhos... Bom, todo mundo sonha né. Mas o meu sonho grande é ter

uma casa aqui. Estamos falando de sonhos né, e eu tenho vários sonhos. E, esse é o sonho que

eu mais gostaria de realizar.

NARRADOR – E que outro sonho?

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Edi – Outro sonho seria, digamos, como eu moro lá na fabrica do senhor, onde eu estou

trabalhando, dá para fazer uma fábrica: comprar tecido, cortar, costurar aí mesmo. Uma

oficina, mas legalizada. Que tenha uma loja, isso seria muito bom. Estamos falando de

sonhos, estes são alguns de meus sonhos.

NARRADOR – E trazer mais bolivianos?

Edi – Mais que tudo, a minha família. Primeiramente, ter uma casa onde possamos viver.

Depois construir uma oficina para que todos trabalhem. Os sonhos, às vezes, se cumprem né?

Vamos ver.

(Imagens: bolivianos dentro do ônibus acenam e sorriem para os que ficam; o ônibus

começa a dar ré; o ônibus sai da rodoviária.).

(Imagens: Bandeira da Rádio Infinita - 106,7 FM e ao fundo a transmissão da rádio.).

(Fundo preto)

Texto: Rádio Comunitária Infinita. Programa narrado em Aymara – Língua indígena da

Bolívia.

(Imagens: No estúdio, locutor da Rádio fala aos ouvintes; e enquanto escutam a rádio, na

oficina, bolivianos costuram.).

Locutor da rádio – Oi gente, a rádio Comunitária Infinita deseja a vocês muito, muito boa

tarde! É exatamente, doze horas, ou meio dia com quinze minutos, perdão, com catorze

minutos. Damos início ao nosso programa de todos os dias. É o programa da hora do cheiro.

O programa mais popular. Através da emissora mais popular, a rádio do povo. Porque você

pode acompanhar e cantar a música folclórica peruana, música folclórica boliviana e a música

latina americana. (locutor traduz para o dialeto Aymara).

Sérgio Suyama, Ministério Público Federal – A atuação penal ela é muito voltada para a

responsabilização individual daquele cara que tava explorando o trabalhador, etc., etc... né. E,

nem sempre, aquele cara que tá na ponta, é o verdadeiro responsável, né. Há, no fundo, a meu

ver, um problema econômico. É a mesma situação que acontece com a Nike, na Tailândia. Lá

que explora a mão de obra infantil, né. Não é o patrão da criança, que, muitas vezes, é o

próprio pai, que tem que ser responsabilizado. O que você tem que questionar é a cadeia

produtiva. É o modelo econômico que, acaba ali, gerado pela globalização, que produz esse

tipo de coisa. Então, para a Nike, para economizar custos para ela, então, ela pega e contrata

ali, pagando, sei lá, uma miséria, centavos de dólar, num lugar onde custa mais barato para

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ela, né. No caso, a Tailândia. E, aqui é a mesma coisa. Essas grandes redes, essas grandes

cadeias, ou nem tão grandes assim. Mas a gente chegou a pegar coisas da C&A, uma etiqueta

da C&A numa oficina de costura boliviana, mas, enfim, essas grandes cadeias, elas contratam

né, uma pessoa, que depois contrata outra, que depois contrata outra que, no final da cadeia

acaba caindo no boliviano. Então o que nós queremos, eu acho que isso também é muito papel

do Ministério Público do Trabalho, mais do que do Ministério Público Federal, é um pacto

que atue sobre toda a cadeia produtiva. Ou seja, a C&A, deve ter ali o compromisso de

verificar se toda a cadeia produtiva dela não tem nenhum tipo de trabalho infantil, de trabalho

escravo, de trabalho irregular, etc, etc... né. As outras confecções a mesma coisa.

(Fundo preto)

Texto: Adolfo

(Imagens: detalhe do rosto de Adolfo na oficina de costura, confeccionando roupas.).

Adolfo – Eu pensava em vir em 2001. Eu estava no quartel e saí. Estava mal em Bolívia de

trabalho. E, como eu tinha dois filhos, eu tinha necessidade de melhorar. Por isso, eu vim aqui

ao Brasil, para trabalhar. Como eu tinha um cunhado aqui, que estava trabalhando, já estava

aqui há dois anos, três anos, por isso eu vim: para trabalhar, para buscar um futuro melhor.

(Imagens: bolivianas costurando juntamente com vários outros bolivianos na fábrica.).

Adolfo – Eu tive dificuldade, como cada boliviano encontra: não conseguir falar português,

não poder falar português, porque aí fica difícil se comunicar. Outro é que, como eu era do

campo, eu não tinha assim, valentia. Não estava bem formado nessas áreas. Então, com um

pouco de trabalho, sacrifício, saímos desse meio, graças a Deus.

NARRADOR – Outras dificuldades você passou?

Adolfo – Sim. Com os filhos, com a família, com o trabalho. Dificuldades passaram,

passamos porque, às vezes, com dois filhos tem lugares que não nos querem ou tem que

fechar seus filhos nos quartos, passamos, sim.

(Imagens: mulher costurando, enquanto a filha chora ao seu lado; outros dois meninos ficam

na oficina, brincando e sorrindo.).

Adolfo – Bolívia? Tenho saudades da família, da liberdade que temos como bolivianos lá,

estar tranquilo, porque é o seu país, estar tranquilo. Tenho saudades... Tenho saudades de

minha mãe que está na Bolívia, no campo. Eu, às vezes, ia ajudar a fazer hortas, ajudar meu

sogro, minha sogra, que estão me vendo, né. Como cinco anos se passaram, eu estou

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demorando, às vezes me esqueço. Mas sempre estou me lembrando dos amigos da escola, do

quartel. Por eu ter vindo aqui, eu já não tenho isso.

(Imagens: cerimônia de casamento de bolivianos; noiva entra e é entregue ao noivo;

convidados batem palmas; religioso celebra a união do casal; casal se beija; o casal sai do

local da cerimônia; na saída, a tradicional pose para as fotos.).

Sérgio Suyama, Ministério Público Federal – É... O que há é uma espécie de irregularidade

perante os órgãos migratórios. Porque eles entram, normalmente, com o visto de turista, né, e

esse visto de turista, pela nossa legislação, que é uma legislação retrógrada, é uma legislação

que foi feita na época da Ditadura Militar, que é o Estatuto do Estrangeiro. Essa legislação

impede o turista, enfim, o estrangeiro que está aqui com visto de turista, de exercer alguma

atividade econômica. Então, o que acontece: a pessoa vem para cá, ela precisa exercer uma

atividade econômica e não pode. Como ela não pode e ela precisa, ela fica numa situação de

marginalidade. Quer dizer, ela trabalha numa situação irregular, né. E, aí é comum ela não

conta para as estatísticas. Ela não existe do ponto de vista formal, para o Estado, mas ela está

lá desenvolvendo uma atividade econômica. E, isso para nós é muito prejudicial né. O que a

gente gostaria, é que ela pudesse, como qualquer trabalhador, ter sua carteira de trabalho, ter

seus direitos trabalhistas assegurados: décimo terceiro, o salário mínimo, licença gestante,

férias, etc, etc... Como qualquer trabalhador. E, aí tem muita gente que fala “Ah não, mas isso

aí você tá prejudicando o trabalhador brasileiro. Isso aí você está roubando emprego do

trabalhador brasileiro, e tudo mais”. Mas aí, vale lembrar, eu acho, que o trabalhador

brasileiro, tem quantos trabalhadores? Milhões de trabalhadores brasileiros que também estão

no exterior nessa mesma situação. Nos Estados Unidos, na Europa, no Japão... em situação

precária, em situação de subemprego. Então, se a gente quer que o brasileiro tenha ali um

tratamento digno na Inglaterra, na Espanha, Holanda, enfim, na Alemanha, aonde for, a gente

também tem que oferecer tratamento digno para o trabalhador boliviano, o trabalhador

peruano, o trabalhador paraguaio, etc., etc... né. Que pra nós, enfim, eu acho que não deveria

importar a nacionalidade, deveria importar a condição da pessoa de sujeito, a condição de

pessoa humana, como tal, portador de uma série de direitos.

Sidney Antônio Silva, Antropólogo – Então, eu acho que a questão da lei do estrangeiro ela

tem que se adequar nessa nova realidade, né mundial, enfim essa realidade de integração

regional e, ou seja, ela tem que levar em conta, não somente, a questão econômica né, que em

geral se fala, mas também a questão dos direitos humanos né, ou seja, do direito da pessoa.

Então, acho que é uma lei que tem que ver o imigrante não mais como um perigo, como um

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invasor, como aquele que vem trazer problemas, que vem roubar o emprego do brasileiro né,

mas alguém que vem, na verdade, que vem contribuir, somar. Ou seja, ele vem produzir

riquezas, e, ele vem também contribuir para o nosso enriquecimento cultural.

Roque Patussi, Pastoral do Migrante – Então, numa das reuniões que houve lá na região da

Mooca, eles estavam pedindo, lá na reunião do conselho, a expulsão dos imigrantes da região.

E, eu pedi, então, que a pessoa que fosse lá me representar, dissesse que nós também

concordávamos que deviam expulsar todos os imigrantes dali dessa região. Mas, expulsar

todos. Derrubar todas as casas. Derrubar tudo que existe. Voltar a plantar só as árvores e

construir só as ocas dos índios que moravam ali. Eles são os donos das terras. Não os

italianos, nem seus descendentes. Não os portugueses, nem seus descendentes. E sim, os

índios que habitavam aqui nessa região. Eles são os donos dessa terra. Nós somos os

invasores. Não é só o boliviano. Não é só o paraguaio. Não é só o chileno. Não é só o

coreano. Todos somos invasores aqui. Porque essas terras pertenciam aos índios. Eles

deveriam cobrar de nós. Eles deveriam pedir que nós tenhamos deles uma autorização para

ficarmos aqui. Então essa xenofobia, ela tem que ser tratada dessa maneira. Ou seja, tem que

mostrar para essas pessoas que também não deveriam estar aí.

(Imagens: associada à trilha musical, crianças brincam em carrinhos de parque de

diversão.).

(Fundo preto)

Texto: Manifesto de apoio a nova Constituição da Bolívia

(Imagens: bolivianas conversam durante festa; festa acontece na Praça Kantuta; vários

bolivianos marcam presença; boliviano pendura faixa com os seguintes dizeres: “Unidos por

Bolívia – Exigimos o voto dos bolivianos no exterior”; ao lado outra faixa: “Por uma Bolívia

justa - Mudança”; representante dos bolivianos discursa.).

Representante dos bolivianos – Diz assim esse manifesto: “Unidos por Bolívia, sim a

mudança”. A voz da comunidade boliviana residente em São Paulo, Brasil, manifesta seu

apoio a mudança que acontece na Bolívia. Portanto manifestamos, por uma Bolívia unida,

apoiamos os processos de mudanças importantes que estão acontecendo em nosso país. O

processo boliviano de mudança é um exemplo para todo o continente e o mundo. Bolívia está

mostrando uma mudança de liberdade e humanização aos povos do oriente ao ocidente.

Valorizamos o esforço para recuperar a dignidade do povo boliviano, através de uma

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metodologia de ação não violenta e democrática. Bolívia é um exemplo de valentia para

seguir um novo caminho com a inclusão, justiça e liberdade. Viva a Bolívia!

(Imagens: boliviano, munidos de bandeiras de seu País, entoam gritos a favor da Bolívia;

outros fazem questão de mostrar cartazes pedindo mudanças.).

Bolivianos – Viva!

Bolivianos – Bolívia unida, jamais será vencida! Bolívia unida, jamais será vencida! Bolívia

de pé, nunca de joelhos! Bolívia de pé, nunca de joelhos! Bolívia de pé, nunca de joelhos!

Bolívia de pé, nunca de joelhos!

Padre Mario Geremia, Pastoral do Migrante – Eu creio que a função da festa ela é muito

importante. Eu diria até necessária. E é para sobreviver ao cotidiano. Porque o cotidiano é

muito frio, é muito desgastante, é um cotidiano muito sofredor. Então, justamente, o espaço

da festa é para recriar. Recriar forças, recriar amizade, recriar vínculos, e se refazer de um

desgaste pessoal. Ao mesmo tempo, ela tem a função de agradecer. É o grande momento da

gratidão. A festa aonde ela diz a Deus, o criador do mundo, o criador das culturas, “muito

obrigado”. É onde ela diz à sociedade brasileira, “muito obrigado”. E, é aonde ela diz ao que

está ao meu lado, “você é meu irmão”.

(Imagens: bolivianas vestidas com roupas típicas, ao som de música entoada pela banda,

cantam e dançam.).

(Fundo preto)

Texto: Festa de Independência da Bolívia – Memorial da América Latina.

(Imagens: banda toda instrumentos na festa de Independência; as bolivianas vestem roupas

típicas de sua cultura e dançam; já o público assiste atentamente a apresentação; outra parte

de músicos além de tocarem instrumentos, também vestem roupas e adereços típicos no

desfile; uma banda bem menor canta e toca músicas conhecidas dos bolivianos.)

(Fundo preto)

Texto: Festa de Copacabana – Igreja da Paz – São Paulo.

(Imagens: banda toca e desfila; já as mulheres dançam; crianças também ganham espaço na

dança; outro grupo dança apenas com roupas típicas da Bolívia; em frente a igreja,

orquestra boliviana canta e crianças dançam.).

(Fundo preto)

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(Imagens: detalhe dos olhos de boliviano.).

Texto: Documentário gravado entre os anos de 2004 e 2007 em São Paulo - Brasil, e em El

Alto, La Paz, Puerto Suarez e Quijarro - Bolívia.

(Imagens: rosto de boliviano.).

(Fundo preto)

Texto: Diego Arraya – Direção, Produção e Fotografia.

(Imagens: rosto de boliviana.).

(Fundo preto)

Alexandre Rampazzo, Dario Lima, Marcus César e Vitor Mayer – Imagens adicionais.

(Imagens: rosto de boliviano.).

(Fundo preto)

Fernando Dourado e Marcelo Dourado – Edição.

(Imagens: rosto de boliviano.).

(Fundo preto)

Nilson Tasae – Pós-Produção-Áudio.

(Imagens: rosto de boliviana.).

(Fundo preto)

Fabio Biofa e Rodrigo Arraya – Direção de Arte.

(Imagens: rosto de menino boliviano.).

(Fundo preto)

Agradecimentos:

Muito obrigado a todas as pessoas que participaram deste documentário.

(Imagens: rosto de boliviana.).

(Fundo preto)

Muito obrigado:

Centro Pastoral do Migrante – Padre Mario Geremia.

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Casa do Migrante.

Casa del Pueblo – Igreja Camhi.

Igor Bedore.

DGT Filmes.

Marcelo Aith.

Renato Dutra e Dialeto.

Rosana Gaeta.

Isabel Luz Mercado.

Alexandre Rampazzo e Varal Filmes.

UBS Brás.

Sônia – CPM.

Marcus César – Produções.

Patrícia Flores Gomes.

Vitor Mayer.

Centro de Estudos Migratórios.

(Imagens: rosto de boliviana.).

(Fundo preto)

Dedicatória:

Dedicado a todos os bolivianos e bolivianas que vivem e constroem a cidade de São Paulo.

(Imagens: rosto de menina boliviana.).

(Fundo Preto)