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FACES da PERVERSÃO 2ª Edição ANO: 2016 Local: Brasil 1

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FACES da PERVERSÃO

2ª Edição

ANO: 2016

Local: Brasil

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Ridher, GraceFaces da perversão / Grace Ridher.— ed.São Paulo : PerSe, 2013.ISBN 978-85-8196-502-41.Drogas - Abuso - Ficção2. Ficção brasileiraI. Título.13-13127 CDD-869.93Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

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Prefácio

A primeira edição foi publicada sob pseudônimo deGrace Ridher e esta segunda edição decidi publicar com omesmo pseudônimo.

Este livro é uma obra de ficção baseada na ralidade.Os textos refletem a perversão em cada linha, em cada casominuciosamente relatado. O narrador personagem carrega emsi as consequências traumáticas de alguém que viveu aviolência.

O repasse ao leitor em forma de dor e desespero éeminente, brutal, fruto do mesmo desespero que habita nasvítimas de pedofilia. O texto é forte, a reflexão pode ser longa,penosa e de difícil digestão.

AutoraAlda Inácio (Grace Ridher)

E-mail:[email protected]

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Não existe revelação mais nítida da almade e uma sociedade do que a forma

como esta trata as suas crianças. Nelson Mandela.

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1 - O cenário

Aproveitemos a alegria do espírito quando a possuímos;evitemos afastá-la por nossa culpa e não façamos

projetos para a conservar, porque essesprojetos são meras loucuras.

Jean Jacques Rousseau

Nossa casa no canto da rua foi nosso pequeno paraísoaté a chegada do inverno de 1962. A felicidade fazia morada nomeu pequeno mundo, sendo filha única de uma famíliasimples. Tinha completado onze anos, vividos no aconchego deum lar calmo, entre carinhos e cuidados, laços de uma uniãoperfeita.

Diante de mim o futuro se projetava em linha reta e acoragem para ir em frente encontrava na harmonia do lar. Oamor de meus pais equilibrava minha vida e seus efeitos serefletiam externamente em tudo a meu redor. Formávamosuma família modelo, onde a força para acreditar no amanhãcrescia em torno de um lar verdadeiro que nos conduzia embusca do bem comum. Nosso trunfo era a casa. Nosso pedaçode felicidade.

O inverno traria mudanças na minha rotina e ostraumas ficariam gravados na minha memória como um marcode agonia, a se perpetuar nas minhas lembranças como umpesadelo eterno, um fantasma escondido em qualquer parte domeu cérebro. Algo pesado e invisível, uma sombra inexplicávelque andava ao meu lado. Às vezes um peso morto, outras vezesreavivado e indiscreto, como um móvel velho, destoante, forado lugar, sobre o qual deitamos os olhos todos os dias.Incomoda, mas vai ficando e se embrenhando no visual dacasa. Acabamos por nos acostumarmos com sua presença,como parte de nós mesmos.

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Um dia, de súbito, o jogamos fora, para vermosrestaurada diante de nós a estética perfeita do ambiente. Aotomarmos a decisão de restauração, já não jogamos com odestino. Já não somos surpreendidos na plateia, observando odrama da nossa vida se desenrolar. Pegar as rédeas e conduzir acarruagem é deixar a catarse desaguar em nosso interior,limpando rancores, dissolvendo mágoas acumuladas e oresultado é o alívio da carga emocional. Se colocarmos freionesta catarse, ou se não conseguirmos levá-la a cabo,sentiremos estranhamento em nosso cérebro, prejudicandonossa saúde mental. Comigo esse freio repressor me levaria àbeira da loucura, deixaria minha integridade emocionalabalada, a ponto de quase destruir minha vida.

Na fase inocente da infância tive o apoio vindo do lar,de pais amorosos, até que, de repente, uma barreira separou oque foi bom do que viria a ser um inferno no resto de meusdias. Como eu superaria as coisas incompreensíveis que meforam impostas, só Deus poderia responder, porque eu mesma,por longo tempo, não seria dona de mim, nem das minhasdecisões.

Tudo o que sou e como resolvi meus dramas pessoaisdevo a meus velhos pais, vindo da excelente base da minhaeducação, onde mamãe representou a figura da amiga e sem elaeu sucumbiria nas encruzilhadas dos caminhos por onde odestino me levou. Ela foi uma mulher sábia, cheia de amor pelafamília, com o olhar centrado nos horizontes do lar.

Papai tinha uma força de vontade enorme, homem debom caráter, com grande coração e sem muitas ambições.Guardava uma moral elevada e sua felicidade era poder botarum pouco de conforto dentro de casa.

Formaram um casal perfeito nos afetos e nos cuidadosum com o outro. Ele e mamãe construíram um lar para encherde filhos, mas, o destino não deixou a prole fácil chegar e,quase a desanimar, veio o meu nascimento. Nessa época jáexistia a casa e certo conforto.

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A falta de irmãos deixou uma lacuna na minhainfância, uma colcha de retalhos faltando emendas. Buracosdescosturados numa trilha de solidão, no entanto, não foi issoa maior razão da minha infelicidade. Outros acontecimentos seocupariam de traçar um caminho de agonia em minha vida,tantos e tão graves que fariam mamãe pensar em vender a casae partir para muito longe.

Papai, de maneira nenhuma se desfaria dapropriedade e, para explicar a vida, usava uma filosofiaparticular, não aceitando fugir dos problemas. Dizia que nãosuperamos os problemas mudando de lugar. Eles estão dentrode nós e nos acompanham aonde vamos.

Repetia isso para me encorajar a lutar com os pés nochão. No fundo, estes conselhos do meu velho seriam a bússolaem meio aos pesadelos que se desenrolariam no meu caminho.Suas palavras clareariam a rota à minha frente, trazendo-me aocaminho da razão, mesmo quando minha vida parecia semrumo e sem amanhã.

***O frio veio forte naquele ano e nem ele, nem ninguém

me fazia mudar o rítmo de vida que sempre se assemelhou aum ritual. Ia à escola com muito bom ânimo, curiosa, alegre,comunicativa, como sempre fui. Amava a escola, adorava livrose nada me incomodava, fosse frio ou calor. Levantava comgrande disposição, tomava o café matinal com tudo que tinhadireito, satisfazendo assim as exigências de mamãe para umaboa saúde. Após o café ia para a escola e nas tardes brincavasozinha no nosso jardim, zelosamente bem cuidado.

Comíamos tranquilamente por volta das dezenovehoras e logo depois subia para meu quarto. Os livros erammeus centros de interesses e sentia prazer em ver uma boavariedade deles na minha pequena biblioteca. Ela ficava ali nocanto da parede dentro do meu quarto, ao alcance da mão. Aosubir para meus aposentos seguia a orientação de mamãe

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tentando estar calma na hora de dormir, e para tanto, a leiturade um livro era a solução encontrada para chamar o sono. Estaprática tinha variantes nas palavras poéticas escolhidas comcarinho entre os contos de fadas e príncipes que nutriam osonho puro da infância e me ajudavam a encontrar respostaspara minhas pequenas e grandes questões. O ritual se repetia acada noite.

Ao chegar ao quarto, colocava os trajes de dormir,pegava o par de chinelos de lã no armário e depositava sobre otapete na beira da cama. Tudo tinha uma sequência lógica. Olivro era escolhido na estante e meu caderninho de anotaçõescolocava sob o travesseiro.

Este era uma espécie de diário, onde eu anotava osacontecimentos do dia. Depois de tudo em perfeita ordem,sentava na cama, recostada na parede. O relógio marcava otempo compasso a compasso, enquanto meu sono eraretardado por rimas subjetivas. Elas faziam eco no meuesconderijo sob as cobertas. Volta e meia desviava os olhos dolivro para olhar o relógio e novamente recolocava os olhos nasletras e por volta das vinte e uma horas impreterivelmente iadormir.

Qualquer leve ruído vindo de fora causava sobressaltoe já não era de pouco este estado de espírito. Calçava oschinelos de lã e chegava o rosto no vidro da janela. O ar doquarto formava ali um vapor de água que eu limpava com amanga da camisola. Lá fora o breu da noite cobria as árvores ese estendia pela rua, tornando nosso canto um lugar de muitapaz.

Minha apreensão passou a ser a casa vazia ao lado danossa, depois que os Borges se mudaram para o outro lado dacidade e alguém colocou a placa onde se podia ler “Aluga-se”.

A minha curiosidade não se continha na ânsia desaber quem habitaria a casa vizinha. A nossa relação com osBorges sempre foi muito boa, sendo as casas geminadas,coladas definitivamente uma na outra. Com eles fomos amigos

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de cerca, nada muito íntimo e da parte deles nunca tivemosproblemas. Vivemos longos anos sem visitas, sem aconchegos.Os Borges eram fechados. Um casal de meia idade imersos nador, após a morte do único filho causada por um acidente decarro.

As casas haviam sido construídas coladas, para quesobrasse terreno em ambas as laterais. Neste espaço estava umjardim, o qual, do nosso lado, era bem cuidado por mamãe.

A casa vazia trazia pensamentos lúgubres à minhaimaginação. Pensamentos que nasceram nas leituras desuspense que eu fazia escondido de meus pais. Encontraraalguns livros no baú que veio para nossa casa com a morte davovó Edna. Amava estes momentos roubados e imaginavamonstros que passavam através da parede, vindos da casavazia. A leitura casada com o imóvel vazio criava essesmonstros e, ao mesmo tempo que me assustavam medivertiam, sem saber que monstros reais sairiam daquelaparede e transformariam minha vida num verdadeiro inferno.

As histórias dos livros instigavam o meu imaginário equando sentia um arrepio percorrer minhas costas fechava olivro, escondia atrás de outros livros na estante e pegava umconto das mil e uma noites.

A casa vizinha ficou vazia durante mais de um mêssem que se visse movimento de gente mudando. Torcia paraque a casa fosse rapidamente habitada e assim, um domingo àtardinha, uma senhora conhecida de mamãe veio visitar a casaacompanhada de uma garotinha. Essa garota eu conheciamuito bem. Era Daniela, minha colega de escola e minhamelhor amiga.

Nesse dia, desci correndo as escadas para dar umabraço na amiga, feliz por vê-la. Concluímos, eu e Daniela, quemorar lado a lado poderia ser muito bom para nós duas.Poderíamos estudar e brincar juntas. Mamãe também recebeua possível boa nova com alegria e foi cumprimentar a mãe deDaniela. Elas haviam se encontrado algumas vezes nas

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reuniões de pais na escola.Depois daquele dia ficamos na esperança da vizinha

decidir por alugar a casa. A possibilidade ganhou forma nasconversas que tive com Daniela na escola. Na nossaingenuidade achávamos fantástica a ideia de fazer o percursode ida e volta à escola juntas e brincar juntas. Em poucos diasconjeturamos tantos sonhos que a ansiedade transbordava.

No fim de semana seguinte vimos chegar os móveisdos ocupantes da casa ao lado. Lá do alto de minha janela viminha amiga Daniela sorridente me acenando. Senti umaalegria imensa.

Imediatamente chamei Daniela para conhecer minhacasa e posteriormente ela faria o mesmo. Mamãe nunca deixouque eu brincasse em casas alheias por não confiar em ninguém.Eu sempre fui obediente e expliquei a Daniela que pedisse à suamãe para brincarmos juntas após a escola. Isto feito fiqueitranquila e sabia antecipadamente o quanto seria gratificantenossa aproximação.

Daniela era uma garotinha de nove anos de idade,magrinha, cabelos encaracolados e olhinhos azuis-claros. Nãotinha pai. Ele havia morrido quando Daniela estava com umano e meio e dona Cornélia criava a menina sozinha.Pretendentes não faltaram e até então não haviam achadoespaço nem guarida. Algum tempo depois ficamos sabendoque um novo pretendente a marido rondava a casa.

Era um belo rapaz, jovem demais para aprovação demamãe que viu problemas na relação deles desde o primeirocontato. No fundo sabíamos pouco sobre a vida particular davizinha. A minha curiosidade de olhar pela janela do quarto,aos poucos, foi revelando maiores detalhes.

Dona Cornélia era enfermeira e dava plantão nohospital da cidade, semana de noite, semana de dia. Antes damudança para a casa ao lado estivemos no hospital paraconsulta e vimos seu empenho no serviço. Muito simpática,trabalhava com afinco e não tinha tempo para conversas

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adjacentes. Mãe caprichosa. Percebemos isto após a mudança.A menina Daniela andava sempre bem cuidada.

No interior da casa transparecia a limpeza. Notei istona visita de cortesia que fiz junto com mamãe. Os cuidadoscom a menina se mostravam parte importante da relação mãe efilha. Havia uma moça que ali permanecia nas noites em quedona Cornélia trabalhava, para que Daniela não ficassesozinha. Nas manhãs a moça partia e Daniela ia para a escola.Nas tardes a mãe dela estava em casa e se ocupava de tudo.

Da minha parte, sempre fui muito observadora davida ao meu redor e nestes particulares em torno de Daniela,por ser ela minha melhor amiga, fazia um esforço maior paratudo compreender e gostava do que via.

O meu modo de ver a vida foi herança de mamãe.Observar calada e guardar o resultado no coração, não eraexatamente formar preconceito de algo, desde que servissepara conhecer e não para julgar os outros. Era assim a maneiracomo mamãe via as pessoas, com profundidade e interesse.

Nada passava despercebido a ela e observando suamaneira de ser, aprendi a conhecer melhor o ser humano. Maistarde esta maneira intensa de ser, influenciaria a profissão, aqual me dedicaria com alma e coração.

Nossa vida ganhou um novo fôlego tendo comovizinha dona Cornélia e a filha. A presença da menina na casaao lado trouxe uma cor especial ao nosso pedaço. Brincávamosjuntas depois da escola. Daniela amava os livros, tanto quantoeu e, apesar da pouca idade, já sabia escolher suas leituras.Emprestei a ela alguns exemplares da minha biblioteca e istoampliou nossa convivência.

Fazíamos nossos deveres de casa juntas. Mamãepreparava, com prazer, lanche para as duas, enquantoestudávamos. Ora brincávamos destas coisas que brincamtodas as meninas, outra hora sentávamos quietinhas, para ler

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nossos contos de fadas e comentar a leitura.Tínhamos prazer em fazer qualquer coisa juntas.

Nossa amizade dava alegria imensa a nós duas e comoresultado bem positivo se via que Daniela crescia com aconvivência. Ao mudar para a casa ao lado ela tinha poucaexpressão de linguagem e foi melhorando dia a dia e, para nósduas, foi muito especial o convívio, já que ambas não tínhamosirmãos para dividir brincadeiras. Realmente o convívio foiexcelente para as duas famílias.

A vida ia bem, até que no início do inverno Danielaganhou um novo pai, um padrasto novinho em folha, o talcandidato a marido que passou a morar na casa de mala atiracolo.

Mamãe antipatizou com ele à primeira vista, semrazão aparente, sem explicação. Sexto sentido? Talvez. Quandoeu perguntava a razão ela dizia "Ele é estranho". Ela conheciade longe a maldade escondida atrás de olhos fugitivos, comoeram os olhos do padrasto de Daniela. Nunca sustentava umolhar. Conversava pouco e tinha as mãos nervosas.

Após o casamento dona Cornélia dispensou a moçaque fazia companhia à menina. O novo pai serviria o jantar enas tardes depois da escola era costume Daniela brincarcomigo, sem que isso gerasse responsabilidade de vigiar apequena, no entanto, quando o inverno começou as noitespassaram a ter um movimento diferente. Eu tentava seguir oritual costumeiro e algo destoante passou a acontecer.

Minhas idas ultimamente à janela, nas noites frias deentão, eram para marcar no meu caderninho o horário deentrada do homem na casa. Anotava tudo o que ouvia numasequência lógica e se via algo sem lógica, colocava umainterrogação, para completar mais tarde. Tantas anotações,tanta curiosidade para com tudo na vida, talvez porque ascoisas inexplicáveis mexessem com minha curiosidade, umpouco exageradamente, como toda menina da minha idade.

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***

Algum tempo depois da mudança do homem para acasa ao lado percebi algo estranho acontecendo ali. Barulhosdiferentes, movimentos abruptos, choro da amiga, justamentenas noites em que sua mãe estava no trabalho.

Eu ouvia o movimento, tentava dar minha própriainterpretação para tais ocorrências e não achava respostas queconvencessem a mim mesma. Portanto, eu não me consideravaburra. Podia compreender qualquer situação, desde queficassem claras as evidências que a compunham.

A mudança na casa foi muito rápida e envolvia orecém-chegado e Daniela, pois quando a mãe estava em casa ohomem agia com mansidão, demonstrando certo carinho pelanova esposa. Eu comparava tal atitude com aquelas dos dias asós com Daniela e não achava meio termo que me permitisseentender. Parecia que nesses dias ela apanhava, sendo quechorava e isto sinalizava conclusivamente a favor do pior. Elasofria algum tipo de castigo físico.

Meu caderninho era meu único confidente e eu passeia espiar a janela com o caderno na mão. Olhava o relógio,anotava a hora, pegava novamente o livro de leitura, lia umafrase poética, voltava à janela, olhava o relógio. Meu ritualdeixou de ser o ritual calmo de antes.

***Por volta das vinte horas o carro entrava na rua, parava

na garagem, a chave mexia na porta e eu me sobressaltava.Irresistivelmente colava o ouvido na parede e ali ficava.Escutava o som da televisão. O tilintar dos talheres. O fim dojantar. O silêncio.

O homem ordenara que Daniela o chamasse “papai”.Assim ela o chamava sem rodeios. Ela sempre se mostrou umamenina muito obediente e isso facilitava a vida de donaCornélia.

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