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  • 1

    tica e Direito - uma anlise pela perspectiva do construtivismo lgico-semntico

    Fabiana Del Padre Tom

    Mestre e Doutora pela PUC/SP. Professora no Curso de Ps-graduao stricto sensu da

    PUC/SP. Professora nos Cursos de Especializao da PUC/SP e do IBET. Advogada.

    1. Consideraes introdutrias

    O termo tica, assim como tantos, encontra no uso ordinrio, no mbito

    filosfico e no jurdico os mais diversos significados. Fala-se em tica para referir

    cincia da conduta; ao estudo do bem e do mal; a uma postura exigida para o convvio

    social; dentre inmeras outras significaes atribudas palavra, conforme a corrente

    filosfica adotada1.

    No pretendemos, neste trabalho, identificar uma ou outra acepo como a

    correta, em detrimento das demais. Todas existem e so possveis, dentro da vaguidade e

    ambiguidade inerente s palavras.

    Fazemos, assim, uma opo metodolgica, para voltar nossa ateno

    tica entendida como conjunto de valores que orientam o comportamento humano.

    Partindo dessa premissa, podemos falar e examinar a tica e seus pressupostos em todas as

    searas do sistema social, como o caso do subsistema do direito positivo. Procuraremos

    discorrer sobre o modo pelo qual a tica se manifesta no sistema jurdico, demonstrando

    sua importncia nos atos de interpretao e de aplicao do direito.

    Para desenvolver esse estudo, adotaremos o construtivismo lgico-

    semntico, mtodo de trabalho hermenutico orientado a cercar os termos do discurso do

    jurdico para outorgar-lhe firmeza, reduzindo as ambiguidades e vaguidades, tendo em

    vista a coerncia e o rigor da mensagem comunicativa. No Brasil, esse mtodo foi

    desenvolvido e aplicado, pioneiramente, por Lourival Vilanova, que se dedicou ao

    aprofundado estudo do discurso normativo. Foi por meio do construtivismo lgico-

    1 Nicola Abbagnano, Dicionrio de filosofia, p. 380 a 387.

  • 2

    semntico que o direito retomou suas discusses filosficas, permitindo, inclusive, o

    reencontro de diversos ramos do direito com suas origens na Teoria Geral do Direito.

    O termo construtivismo empregado para denominar teorias que defendem

    a idia de que h sempre interveno do sujeito na formao do objeto. palavra ligada ao

    contexto epistemolgico. Contrape-se corrente descritivista, que concebe o

    conhecimento ao modo aristotlico, como um processo de assimilao das formas. Para o

    construtivismo, o mundo uma entidade cuja morfologia no aparece independe dos

    sujeitos que formam parte dele. A evoluo das cincias, mesmo as chamadas cincias

    naturais, demonstra isso. com frequncia que ouvimos falar em criao de grandezas,

    como fora e acelerao; na identificao de novos elementos, como quando se

    desmembrou os tomos (at ento indivisveis), em prtons, nutrons e eltrons; nas

    modificaes no modo de enxergar as realidades, como a passagem da teoria geocntrica

    para a heliocntrica; e, at mesmo, na descaracterizao de uma realidade at ento

    existente, a exemplo do que ocorreu com Pluto, que deixou de ser um planeta.

    Essa concepo implica abandonar a idia de uma Cincia do Direito

    meramente descritiva do objeto dado, em viso ingenuamente imparcial e no valorativa.

    As normas no so dadas, de antemo, no ordenamento, mas dependem de uma atividade

    construtiva, em que se atribui sentido ao texto de lei. Como enaltece Gregrio Robles2,

    impossvel descrever qualquer fenmeno de cultura: a apreciao humana implica, sempre,

    uma construo de sentido. E o direito positivo, sendo produzido pelo ser humano,

    caracteriza-se como objeto cultural.

    A norma jurdica, unidade irredutvel de manifestao do dentico, , nos

    dizeres de Lourival Vilanova3, uma estrutura lgico-sinttica de significao. a

    significao construda na mente do intrprete, resultado da leitura dos textos do direito

    positivo, apresentando a forma de um juzo hipottico. No se confunde a norma jurdica,

    portanto, com o texto bruto, na forma como posto pelo legislador. A norma jurdica e, por

    conseguinte, o sistema do direito positivo, construdo a partir do texto bruto, mas com ele

    no se confunde. Eis o primeiro ponto distintivo do construtivismo lgico-semntico.

    2 Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), p. 129.

    3 Norma jurdica proposio jurdica (significao semitica), Revista de Direito Pblico n 61, p. 16.

  • 3

    Adotado esse mtodo, o cientista do direito no se limita a contemplar o texto de lei, mas

    efetivamente constri os sentidos normativos.

    A construo de sentido, porm, no feita de modo indiscriminado. Nessa

    linha metodolgica, procura-se amarrar as idias, definir os termos importantes, para

    conferir firmeza ao discurso. E tal amarrao opera-se no plano lgico e no plano

    semntico. Da falar-se em construtivismo lgico-semntico. Com isso, busca-se formar

    um discurso responsvel, isto , comprometido com as premissas, com o sentido que se

    firmou para os termos.

    Tal atitude no significa, contudo, desprezo pelo plano pragmtico. Como

    sabido, toda linguagem tem um plano pragmtico, sendo impossvel dissoci-lo dos planos

    sinttico e semntico. Todavia, por meio da abstrao, podemos dar nfase a um ou alguns

    desses aspectos. E, na proposta metodolgica de que estamos tratando, o esforo

    acentuado nos planos lgico e semntico.

    Para atingir tal desiderato, emprega-se tcnica analtica. Anlise equivale a

    um processo de resoluo ou decomposio do complexo em algo mais simples. Nesse

    contexto, analisar equivale a decompor o objeto de estudo em uma srie de elementos que

    facilitam a compreenso do fenmeno que se observa. No construtivismo lgico-

    semntico, o objeto de anlise a linguagem, a qual se pretende reduzir ou traduzir a uma

    linguagem formal e cuja lgica e procedimentos sejam claros, rigorosos e controlveis.

    O construtivismo lgico-semntico no se confunde, porm, com a filosofia

    analtica, pois sofre forte influncia do culturalismo. Da porque recebe o nome, tambm,

    de postura hermenutico-analtica. Segundo Paulo de Barros Carvalho4 no construtivismo

    lgico-semntico a postura analtica faz concesses corrente hermenutica, abrindo

    espao a uma viso cultural do fenmeno jurdico.

    No que diz respeito ao culturalismo, este tem em Miguel Reale seu maior

    representante brasileiro. Essa corrente filosfica consiste em uma concepo do Direito

    integrada pelo historicismo e pelos princpios fundamentais da Axiologia, considerando a

    teoria dos valores em funo dos graus de evoluo social. exatamente o toque da

    4 Direito tributrio, linguagem e mtodo, p. XXIV.

  • 4

    cultura que, na lio de Paulo de Barros Carvalho5, evita que se pretenda entrever o mundo

    pelo prisma reducionista do mero racionalismo descritivo.

    Em suma, o denominado construtivismo lgico-semntico prope-se a,

    respeitando a todos os modelos epistemolgicos existentes, servir de mtodo para ingresso

    na intimidade do fenmeno jurdico, mediante trabalho analtico, porm com influncia

    culturalista, considerando ser o direito um objeto cultural, produto da ao humana. Trata-

    se de estratgia de movimentao do intelecto para apreender e devassar o objeto do

    conhecimento, e que persiste em toda a dimenso de seu trabalho. Mtodo analtico, mas

    com acentuado aspecto culturalista, em que, a cada instante, se recupera a circunstncia do

    homem, contextualizando-o.

    O construtivismo lgico-semntico pode ser visto como rigorosa elaborao

    da metodologia sinttica e semntica do direito. Essa concepo filosfica possibilita

    edificar uma teoria das normas bem estruturada em termos lgicos, discutida e

    esquematizada no nvel semntico e com boas indicaes para um desdobramento

    pragmtico. A construo de sentido, para no ser arbitrria, deve guiar-se pela tica,

    tomada, como j anotamos, na qualidade de valores que orientam o comportamento

    humano. Consideramos que a positivao do direito se opera mediante a presena

    indispensvel da linguagem, num contexto de crenas, idias e convices, decorrentes dos

    valores dos sujeitos que integram a sociedade6.

    2. A tica na interpretao e na aplicao do direito

    A criao do direito opera-se mediante decises jurdicas. Segundo

    ensinamentos de Gregorio Robles7, o texto jurdico um texto autogerador por fora de

    deciso, o que significa que em seu aspecto dinmico a teoria da deciso constitui o ncleo

    fundamental. Isso porque os atos decisrios no aparecem apenas no momento da

    resoluo de conflitos, com a emisso de normas individuais e concretas. So

    vislumbrados, tambm, quando se estabelecem os critrios nos termos dos quais o direito

    h de ser aplicado, ou conflitos devero ser solucionados, por exemplo. Sempre que se

    5 Ibidem, p. 3-4.

    6 Fabiana Del Padre Tom, A prova no direito tributrio, p. 245 e ss.

    7 O direito como texto: quatro estudos da teoria comunicacional do direito, p. 34.

  • 5

    editam normas gerais e abstratas, ou qualquer outra modalidade normativa, existe uma

    deciso que a precede.

    Dito de outro modo, toda norma jurdica resultado de deciso. No h

    norma sem ato decisrio que lhe anteceda. E, considerando que a norma jurdica criada

    constituda por linguagem, a atividade que a gera um ato de fala. Para que o ato de fala

    ocorra regularmente, porm, a enunciao precisa ser realizada por autoridade competente,

    conforme procedimento estabelecido em outras normas, de superior hierarquia formal.

    Do exposto, nota-se que a teoria da deciso jurdica se concentra no tema da

    produo normativa, quer no mbito da abstrao ou da concretude, da generalidade ou da

    individualidade. O intrprete, ao aplicar o direito, realiza ato decisrio, emitindo

    enunciados normativos.

    O ato de decidir implica a eleio entre vrias possibilidades. , por isso,

    contingente. Quem decide colocar no sistema do direito um novo enunciado escolhe uma

    opo possvel entre as existentes, excluindo as demais alternativas. Pressupe, portanto,

    valorao. Tal peculiaridade faz com que a deciso jurdica possa ser observada em dois

    aspectos, indissociveis entre si: (i) o elemento decisrio, puramente volitivo noeses, e

    (ii) o contedo do que foi decidido noema. Enquanto a primeira perspectiva toma como

    foco o valor em sua subjetividade, a segunda, dirigindo sua ateno ao que se plasmou no

    texto, centra-se no valor objetivado. este ltimo, por estar registrado linguisticamente,

    que ingressa no ordenamento.

    A deciso legislativa lato sensu abrange aqueles dois momentos de que

    falamos: o ato de vontade e seu resultado. No se pode dizer que o legislador decida sem

    legislar, nem que o juiz tome decises sem sentenciar, pois, apenas quando introduzido no

    sistema do direito, o ato volitivo passa a integr-lo de forma objetivada. O ato decisrio e o

    de aplicao do direito so mutuamente dependentes, um no existindo sem o outro.

    Discorrendo sobre o assunto, mais especificamente em relao hiptese

    decisria com a finalidade de solucionar conflitos, Clarice Von Oertzen Arajo8 expe com

    clareza a influncia dos valores: o litgio que se pe para ser solucionado pelo direito traz

    em si a expresso contraposta de valores diferentes. As partes envolvidas em um litgio tm

    interesses diversos. A deciso do litgio posta como expresso da justia vai proceder a

  • 6

    uma deciso binria, entre dois pedidos contrapostos, formulados pelas partes envolvidas

    no litgio. Neste sentido, a deciso positivar um valor, considerado como a expresso de

    um juzo de preferncia. A interferncia valorativa sofrida pelo julgador no autoriza,

    entretanto, decises puramente subjetivas. No obstante a subjetividade seja imanente a

    qualquer atitude criadora do direito, esta h de ser guiada, tambm, por fundamentos

    racionais. Nessa esteira, o ordenamento brasileiro exige que sejam expostos os motivos que

    levaram ao ato decisrio, baseados nos elementos constantes dos autos processuais,

    possibilitando, desse modo, seu controle.

    Tomamos o direito positivo como o plexo de normas jurdicas vlidas em

    determinadas coordenadas de espao e tempo, apresentando-se em linguagem na funo

    prescritiva de condutas intersubjetivas. Desse modo, o direito implica especfica rede

    comunicativa. Configura um sistema autopoitico, produzindo seus componentes a partir

    dos prprios elementos que o integram, fazendo-o por meio de operaes internas. As

    informaes advindas do ambiente so processadas no interior do sistema, s ingressando

    no universo jurdico porque ele assim determina e na forma por ele estabelecida. A

    pluralidade de discursos do ambiente processada internamente pelo sistema do direito,

    funcionando o cdigo e o programa como mecanismos de seleo, assegurando que as

    expectativas normativas sejam tratadas segundo o cdigo lcito/ilcito, de modo que os

    fatores externos s influam na reproduo do sistema jurdico se e quando submetidos a

    uma comutao discursiva de acordo com aquela codificao e com os programas

    jurdicos.

    A autorreferencialidade tambm se apresenta como pressuposto da

    autoproduo do sistema, pois, para que este possa autogerar-se, isto , substituir seus

    componentes por outros, necessrio que haja elementos que tratem de elementos. No caso

    do sistema social, atos comunicativos cujo contedo seja a gerao de outros atos

    comunicativos; em relao ao sistema jurdico, normas que prescrevam a produo de

    outras normas jurdicas. Para tanto, o sistema tem de olhar para si prprio, precisa falar

    sobre si mesmo, nessa citada autorreferencialidade. A clausura organizacional,

    caracterizadora da autopoiese do sistema, decorre exatamente do fato de que a informao

    advinda do ambiente processada no interior do sistema, s ingressando neste porque ele

    8 Semitica do direito, p. 61.

  • 7

    assim determina e na forma por ele estabelecida. A clausura no significa, portanto, que o

    sistema seja isolado do ambiente, mas que seja autnomo, que as mensagens enviadas pelo

    ambiente s ingressem no sistema quando processadas por ele, segundo seus critrios. Por

    isso, so abertos cognitivamente.

    Em relao ao sistema atuam as mais diversas determinaes do ambiente,

    mas elas s so inseridas quando este, de acordo com seus prprios critrios, atribui-lhes

    forma. Conquanto Gregorio Robles9 afirme categoricamente que o texto jurdico um

    texto aberto, est se referindo abertura semntica (cognitiva), mediante a qual o sistema

    tem seus contedos modificados. A despeito disso, reconhece que essa regenerao d-se

    por mecanismos autopoiticos, os quais autorizam e regulam as decises ponentes de

    novos elementos no sistema normativo. Por esse mecanismo, o sistema jurdico mantm

    sua identidade em relao ao ambiente, como exemplifica o citado autor: o prprio texto

    cria as aes que podem ser qualificadas como jurdicas, e o fato de regular a ao no

    significa que a ao jurdica exista antes do texto, mas sim que o texto que a constitui.

    Por estranho que possa parecer, o homicdio como ao jurdica s existe depois que o

    texto jurdico prescreve o que que se deve entender por homicdio10. S a tal ao

    ingressa no sistema do direito positivo.

    o sistema do direito que estabelece quais fatos so jurdicos e quais no

    so apreendidos pela juridicidade, quer dizer, os fatos que desencadeiam consequncias

    jurdicas e os que so juridicamente irrelevantes. Desse modo, embora as eferas do direito e

    da moral sejam distintos e inconfundveis11

    , o sistema jurdico conferiu relevncia aos

    valores ticos praticados por seus integrantes, juridicizando o princpio da moralidade,

    enunciado no art. 37, caput, da Constituio da Repblica. Ademais, so vrias as

    referncias feitas, em nosso ordenamento, a valores como boa-f, bem comum e justia.

    o direito exigindo que as condutas de seus destinatrios sejam praticadas de acordo com

    preceitos ticos.

    3. Noes sobre axiologia e sua relevncia na aplicao do direito

    9 O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 29.

    10 Ibidem, mesma pgina.

    11 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 107.

  • 8

    O termo axiologia designa a Teoria Geral dos Valores. Para compreend-la,

    portanto, precisamos ter em mente o que seja valor. A tarefa de defini-lo mostra-se

    extremamente rdua, representando uma das grandes dificuldades da filosofia. Johannes

    Hessen12

    chega a afirmar a impossibilidade de definio do vocbulo. Segundo ele, o

    conceito de valor pertence ao nmero daqueles conceitos supremos, como os de ser,

    existncia etc., que no admitem definio. Tudo o que pode fazer-se a respeito deles

    simplesmente tentar uma clarificao ou mostrao do seu contedo.

    A dificuldade realmente existe, mas no a ponto de inviabilizar a definio e

    estudo do conceito de valor. O exame dos acontecimentos dirios pode-nos auxiliar nesse

    empreendimento, pois toda ao implica, necessariamente, uma deciso. Muitas vezes,

    esse processo ocorre de forma to simples que aquele que decide nem sequer nota que est

    decidindo. Mas, invariavelmente, ao tomar uma conduta qualquer, o ser humano o faz com

    base em decises, decorrentes de preferncias. Essas decises so realizadas mediante

    escolhas. Assim, considerando que escolher valorar, toda ao humana est

    indissociavelmente ligada ao valor.

    Toda conduta axiolgica, o que no significa que a conduta em si possa ser

    confundida com o valor. Este, nas palavras de Raimundo Bezerra Falco13, ,

    efetivamente, toda fora que, partida do homem, capaz de gerar no homem a preferncia

    por algo. Por essa singela referncia j se percebe que o valor no est nas coisas, no o

    objeto de preferncia ou escolha. Ao contrrio, o valor est no ser humano, no sujeito

    cognoscente. O valor est no homem e ser-geratriz: gera a preferncia, propicia a escolha,

    ditando a conduta a ser tomada.

    Esclarece, ainda, Raimundo Bezerra Falco14

    que valor no se confunde

    com bem. Este apenas uma decorrncia daquele. por causa do valor que surge a idia

    de bem, assim como do desvalor contraposto, mal. A bipolaridade caracterstica

    obrigatria dos valores, de modo que, onde houver um valor, haver, como contraponto, o

    desvalor, numa relao implicacional mtua entre ambos. a implicao recproca, por

    conseguinte, outra nota essencial dos valores. Alm dessas qualidades, Miguel Reale15

    12

    Filosofia dos valores, p. 37-38. 13

    Hermenutica, p. 20. 14

    Ibidem, mesma pgina. 15

    Introduo filosofia, p. 160 e ss.

  • 9

    identifica, como traos inerentes aos valores, a referibilidade, preferibilidade,

    incomensurabilidade, graduao hierrquica, objetividade, historicidade e inexauribilidade.

    Dentre os objetos susceptveis de conhecimento pelo homem est o direito,

    na qualidade de ente cultural, sujeito a elevado grau de valorao. Para que tal assertiva

    fique bem clara, vale recordar a diviso realizada por Carlos Cossio, baseado nas idias de

    Husserl, separando os objetos do conhecimento em quatro grandes grupos: (i) objetos

    ideais; (ii) objetos naturais; (iii) objetos metafsicos; e (iv) objetos culturais. Os objetos

    ideais so assim denominados porque no tm existncia seno na idia, apresentando-se

    sem delimitao no tempo e no espao, ostentando, por isso, elevadssimo grau de

    neutralidade ao valor. Quanto aos objetos naturais, tm existncia no tempo e no espao,

    encontrando-se no campo da experincia sensvel. Caracterizam-se, igualmente, por seu

    alto grau de neutralidade, j que se trata de elemento dado pela natureza, sem que o homem

    tenha realizado construo alguma em relao a ele. Os objetos metafsicos, por sua vez,

    tm existncia, mas encontram-se excludos do mbito da experincia sensvel. So

    valiosos, positiva ou negativamente, na medida em que se podem atingir pelas estimaes e

    valoraes. Por fim, os objetos culturais existem no tempo e no espao, esto na

    experincia sensvel e apresentam-se completamente abertos s valoraes, visto que so

    construdos pela atividade humana, que lhes confere sentido.

    Por essa breve explanao, nota-se que a norma jurdica um objeto

    cultural, visto que proveniente da conduta humana. Constitui-se, pois, por elementos

    valorativos, o que possibilita falarmos em uma teoria axiolgica do direito, direcionada ao

    estudo dos valores que interferem em sua produo, interpretao e aplicao.

    Examinando as diversas teorias sobre a axiologia do direito, Joo Maurcio

    Adeodato16

    divide-as em duas categorias: (i) monista e (ii) dualista. Monista seria a

    corrente axiolgica que se recusa a distinguir uma esfera especfica para a tica, o direito, a

    moral, em suma, para as relaes humanas que implicam preferncia, por entender que a

    natureza nica e indivisvel, regida pelas mesmas leis, no sendo cabvel, portanto, a

    separao de seus estratos. A teoria dualista, por outro lado, distingue o ser do dever-ser.

    Considera que ao lado do mundo da natureza animal, vegetal e mineral, orientado, entre

    outros, pelo princpio da causalidade, existe uma esfera submetida a determinaes

  • 10

    diferentes, sendo admissvel diferenar leis naturais e leis normativas, mundo da natureza e

    mundo da cultura.

    Essas duas correntes, por sua vez, comportam subdivises. A teoria monista

    biparte-se em (i.1) materialista, regida primordialmente pelo princpio ontolgico da

    causalidade, e (i.2) espiritualista, que toma por base uma unidade imaterial superior,

    considerando que o princpio unificador do universo no a matria, mas o esprito, a

    atividade intelectual da conscincia. O dualismo tambm segue vrias direes, das quais

    cumpre destacar o (ii.1) subjetivismo axiolgico, segundo o qual as coisas no so por si

    valiosas e todo valor se origina de uma valorao prvia, consistente em uma concesso de

    dignidade e hierarquia que o sujeito faz s coisas segundo o prazer ou desprazer que lhe

    causam, e o (ii.2) objetivismo axiolgico, para cujos defensores uma instncia externa e

    superior s inclinaes de cada indivduo forneceria os parmetros para separar valor de

    desvalor, lcito de ilcito. Nessa concepo atribui-se ao valor um status metafsico, que

    independe completamente das suas relaes com o homem.

    Entre os dualistas objetivistas h, ainda, posies menos radicais, como

    pontua Joo Maurcio Adeodato17: No Brasil, Miguel Reale, por exemplo, defende a tese

    das invariantes axiolgicas: os valores so criados pelas experincias e culturas humanas,

    afirma, negando a existncia de um reino axiolgico em si, defendida por Scheler e

    Hartmann; mas, uma vez criados, os valores permanecem no horizonte da humanidade e,

    embora possam vir a ser temporariamente esquecidos, inserem-se para sempre no contexto

    cultural da comunidade, pois foram realizados de forma semelhante aos fatos

    historicamente ocorridos. Do mesmo modo que no se pode desfazer um acontecimento

    histrico, no se pode eliminar um valor, que se torna uma invariante.

    Dentre os posicionamentos expostos, identificamo-nos com os postulados

    do subjetivismo axiolgico: os valores so inerentes ao homem. As coisas, inclusive as

    normas jurdicas, no tm um valor em si, independente da ao e apreciao humana. Os

    valores so sempre atribudos pelo homem, quer pelo legislador, ao eleger fatos para

    compor a hiptese normativa e escolher relaes para figurarem como correspondente

    consequncia na causalidade jurdica, quer pelo aplicador do direito, ao interpretar as

    16

    Filosofia do direito: uma crtica verdade na tica e na cincia, p. 136 e ss. 17

    Ibidem, p. 153-154.

  • 11

    normas gerais e abstratas, os fatos alegados e provas apresentadas, fazendo-o a partir de

    suas vivncias, de suas preferncias, ainda que inconscientes, construindo, com base na

    combinao desses fatores, normas individuais e concretas.

    Todo indivduo atribui valores ao mundo que o circunda, ainda que o faa de

    modo inconsciente. O ato de decidir, de fazer escolhas, inerente ao ser humano. E suas

    decies/escolhas do-se em funo dos valores que prestigia.

    Nessa linha de raciocnio, Cludio Souto e Solange Souto18

    afirmam que

    Todo indivduo tem uma idia, certa ou errada, daquilo que deve ser feito. Em toda

    sociedade encontramos uma rea de conduta que se situa na categoria do que deve ser. E

    para o cumprimento das vrias condutas pertencentes a esta categoria, existe um

    conhecimento, ou seja uma idia de como se deve fazer. Mas, como surge essa idia do

    certo e do errado? Como esses valores nascem na esfera subjetiva? Seriam eles inatos a

    cada indivduo? Entendemos que no. Os valores no so inatos, mas construdos

    hitoricamente, no mbito do sistema social. A delimitao das condutas valoradas

    positivamente, consideradas como ticas, apropriadas para dirigir as aes dos integrantes

    de uma sociedade, so construdas historicamente. Dependem, portanto, do contexto em

    que o ser cognoscente se encontra inserido.

    O ato de considerar-se uma conduta como boa ou m no se d de modo

    arbitrrio ou ilimitado. Ho de observarem-se, sempre, os horizontes da cultura. Ensina

    Lourival Vilanova19

    que a cultura um fato que apresenta trs dimenses: aos objetos

    fsicos se conferem significaes, que partem de sujeitos (seus criadores ou receptores),

    que entre si, por causa ou em consequncia dessas significaes, estendem uma teia de

    inter-relaes sociais. Desse modo, a cultura ultrapassa a subjetividade individual,

    passando o vocbulo e o sistema articulado de palavras (frase) a serem transubjetivos: a

    forma destacada que a vida individual e coletiva vai construindo como firmes pontos de

    apoio para ir prosseguindo em sua trajetria histrica. Empregando a terminologia de

    Vilm Flusser20

    , podemos dizer que a cultura decorre da conversao, em que os intelectos

    se realizam pelo contato com outros intelectos.

    18

    Sociologia do Direito, p. 69 e ss. 19

    Notas para um ensaio sobre a cultura, in Escritos jurdicos e filosficos, v. 2, p. 284. 20

    Lngua e realidade, passim.

  • 12

    Sendo o direito um objeto cultural, criado pelo homem e integrado na

    cultura, a qual lhe d sentido, no h como falar em uma soluo nica, quando se est

    diante da aplicao do direito. O adgio segundo o qual, na clareza da lei cessa a

    interpretao, no se sustenta. At mesmo para dizer que uma lei clara, demanda-se

    interpretao, a qual pretende dar, ingenuamente, aquele sentido unvoco. E isso ocorre

    exatamente porque quando o legislador elabora o texto, tomado como suporte fsico, no

    constitui a norma jurdica, mas apenas um ponto de partida para sua construo.

    Mas a assertiva de que a norma jurdica construda pelo aplicador do

    direito no significa desprezo pelo suporte fsico e o contedo valorativo que lhe

    conferido pela comunidade. O texto de lei de suma importncia, pois o aplicador do

    direito a ele est adstrito. Sua liberdade interpretativa decorre do fato de que o texto no

    contm, em si, a significao: esta precisa ser construda pelo prprio intrprete. Por outro

    lado, h limites a essa liberdade de interpretao, posta pelos horizontes da cultura. No h

    como se atribuir ao vocbulo um sentido que no se coaduna ao contexto comunicacional

    no qual expedido.

    Tomada a cultura como conjunto de bens que a espcie humana vem

    historicamente acumulando para realizao de seus fins especficos21, e colocando-se a

    cultura como limite atribuio de sentido, supera-se a subjetividade particular, evitando-

    se a institucionalizao do caos. Por isso, Lourival Vilanova22

    insiste a respeito da

    necessidade de um mnimo de consenso: Ingressando no domnio das formas sociais, o

    sujeito, de certo modo, objetiva-se (sem prejuzo de sua subjetividade, que cresce em

    profundidade e extenso, com a multiplicao dos crculos sociais em que participa): adota

    maneiras de pensar, sentir e querer que preexistem e sobrevivem sua existncia

    individual posta e imposta pelo contorno social, utiliza um aceno de experincias que j

    encontra, concebe e manipula os objetos por intermdio dos quadros de conhecimento e

    valorao de que no foi autor, insere-se dentro de formaes coletivas sem deciso prpria

    (famlia, classe, nao) e social inteiro como que se condensa e lhe penetra gradual e

    impositivamente por meio da linguagem, o fator de objetivao social por excelncia.

    21

    Miguel Reale, Cinco temas do culturalismo, p. 8. 22

    Notas para um ensaio sobre a cultura, in Escritos jurdicos e filosficos, v. 2., p. 310.

  • 13

    O limite da construo de sentido normativo est, portanto, no universo das

    interaes humanas.

    4. Concluses

    O direito, como objeto cultural que , exige inevitvel tomada de posio

    daquele que o interpreta, no havendo como dele se aproximar na condio de sujeito puro,

    despojado de atitudes axiolgicas.

    O valor pode ser definido como a no-indiferena de um sujeito em relao

    a determinado objeto. ele, portanto, bipolar, de modo que a um valor se contrape um

    desvalor, e o sentido de um exige o outro, num vnculo de implicao recproca. Dada essa

    dualidade, o valor importa sempre uma tomada de posio do ser humano, que lhe confere

    sentido. Cada valor aponta a um fim especfico, exigindo, do sujeito cognoscente, o ato de

    preferir a um em vez de outro.

    Assim, inegvel que todo e qualquer aplicador do direito orienta suas

    decises com base em valores, que ingressam no mbito da sua atividade interpretativa. O

    aplicador do direito no tem como desprezar as influncias recebidas em sua formao, tais

    como educao familiar, convivncia em sociedade e experincias da vida profissional, o

    que faz da neutralidade do direito um mito. Os valores so ferramentas importantssimas

    de convencimento e persuaso, influenciando, decisivamente, a fixao do contedo da

    norma jurdica a ser emitida.

    Precisamos ter sempre em mente, porm, que o direito surge por meio de

    decises jurdicas objetivadas. So os atos de fala, entendidos como enunciao, as

    condutas caracterizadoras de tomadas de deciso, cujo resultado so os enunciados

    normativos postos no ordenamento. Tais decises que constituem o aspecto gerador ou

    dinmico do sistema do direito, exigindo, para sua realizao, que determinado sujeito faa

    uma escolha entre as vrias possibilidades. E, tomando o direito positivo como texto,

    produto da atividade humana e suscetvel de interpretao, sua compreenso demanda, de

    modo impretervel, a presena do contexto. Esse contexto decorre de relaes

    intersubjetivas, formando pr-compreenses em determinadas condies de espao e de

    tempo. Eis a cultura, realizada no mbito do historicismo social.

  • 14

    Firmadas essas premissas, a construo normativa h de ater-se aos

    horizontes da cultura, que auxiliam da delimitao do carter tico das condutas. O

    intrprete, ao construir o sentido jurdico, no pode faz-lo com suporte exclusivamente em

    valores individuais, devendo considerar o contexto. Esse contexto formado pelos

    elementos da cultura de determinada comunidade, cultura esta que s assume tal

    qualificao porque constituda em linguagem, no mbito da conversao entre intelectos.

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