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Iniciativa Apoio Parceria Realização Ministério da Educação Conselho Nacional de Secretários de Educação Professor, Ajude a escrever o futuro de sua cidade. Participe da 1ª - Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. De que forma aderir Prefeitos e secretários de educação da rede municipal e estadual assinam o termo de adesão à Olimpíada. Desatar nós, fazer laços Para quem ensina e para quem aprende ano III número 7 novembro de 2007 Quem pode participar Escolas, professores e alunos da rede pública de ensino de todo o país, nas seguintes categorias: I – 4 a e 5 a séries do Ensino Fundamental – (Gênero: Poesia); II – 7 a e 8 a séries do Ensino Fundamental – (Gênero: Memórias literárias); III – 2 o e 3 o anos do Ensino Médio – (Gênero: Artigo de opinião). Professores se inscrevem e recebem o Caderno do professor – Orientação para produção de textos e as próximas edições do almanaque Na Ponta do Lápis. Mais informações no site: www.olimpiadadelinguaportuguesa.mec.gov.br

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Iniciativa Apoio Parceria Realização

Ministério da Educação

Conselho Nacional deSecretários de Educação

Professor,

Ajude a escrever o futuro de sua cidade.

Participe da 1ª- Olimpíada de

Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

De que forma aderir

Prefeitos e secretários deeducação da rede municipal e estadual assinam o termo de adesão à Olimpíada.

Desatar nós,fazer laçosPara quem ensina e para quem aprende

ano IIInúmero 7novembro de 2007

Quem pode participar

Escolas, professores e alunos da rede públicade ensino de todo o país, nas seguintes categorias:

I – 4a e 5a séries do Ensino Fundamental – (Gênero: Poesia); II – 7a e 8a séries do Ensino Fundamental – (Gênero: Memórias literárias); III – 2o e 3o anos do Ensino Médio – (Gênero: Artigo de opinião).

Professores se inscrevem e recebem o Caderno do professor – Orientação para produção de textos e as próximas edições do almanaque Na Ponta do Lápis.

Mais informações no site:www.olimpiadadelinguaportuguesa.mec.gov.br

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ENTREVISTA COMMARIA DO PILAR LACERDA

ALMEIDA E SILVA

RECADO DO LEITOR

TEXTO VENCEDOR:O MUNDO DENTRO DA

REPRESA DO FRADE

QUESTÃO DE GÊNERO:ESCREVER SEM PERDER DE VISTA

O LEITOR

REPORTAGEM:PONTE ENTRE A UNIVERSIDADE

E A SALA DE AULA

PÁGINA LITERÁRIA:LUZ DE LANTERNA, SOPRO DE VENTO

ESPECIAL:GRAMÁTICA: O CHATO QUE É BOM

DE OLHO NA PRÁTICA:O DESAFIO DO TEXTO COLETIVO

TIRANDO DE LETRA:REFAZENDO A TRAVESSIA

COISAS DE ALMANAQUELÍNGUA SEM NÓS!

HISTÓRIAS DO ESCREVENDOO FUTURO:

TAMBÉM SOMOS CAPAZES

Para falar das expectativas em relação à olimpíada e de questões relacionadas à quali-dade da educação, entrevistamos a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar La-cerda Almeida e Silva.

Esta edição também traz textos de convida-das especiais, para o deleite de nossas leitoras e leitores que lidam diariamente com a tarefa de ensinar língua portuguesa: um conto da premia-da escritora Marina Colasanti e uma instigante refl exão da psicana lista Anna Verônica Mautner sobre gramática.

Ainda para refl exão, duas educadoras – Regina Andrade Clara e Maria Imaculada Pereira – compartilham experiências do ensino de leitura e escrita nas seções Tirando de Letra e De Olho na Prática.

Esta última edição de 2007 circula no período em que professores estão concluindo os trabalhos de mais um ano letivo. Po r isso desejamos a to-dos um bom fi nal de ano, esperando que em 2008 estejamos novamente juntos na primeira Olimpí-ada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

Uma boa leitura!

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O que vai signifi car o Plano de Desenvol-vimento da Educação (PDE) para o país? Que efeitos no curto e médio prazos são es perados?Maria do Pilar – O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) já provocou uma grande mudança no debate acerca da educação no Brasil. Há uma mobilização de estados, Distrito Federal, municípios e sociedade civil em busca de uma educação de qualidade, articulada ao desenvolvimento socioeconômico que o país vivencia e à postura do MEC em relação aos municípios. O re sultado esperado desse esfor-ço é a melhoria da aprendizagem dos alunos e do desempenho dos sistemas de ensino, além de um comprometimento dos diferentes seg-mentos da sociedade com a educação pública.

E a participação da sociedade está pre-vista nesse processo?Maria do Pilar – O PDE tem como base a res-ponsabilização dos agentes políticos e a mo-

bilização da so cie dade. Quando o ente fede-rado – o município – assina o termo de adesão ao Compromisso Todos pela Educação, do PDE, compromete-se a formar o “Comitê Lo-cal do Com promisso”, composto por repre-sentantes da sociedade civil (associações de empresários, trabalhadores, entre outros), Mi-nistério Público, Conselho Tutelar e dirigentes do sistema educacional público. Esse Comitê se encarrega da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metas de evolução do Índice de Desenvolvimento da Educação Bá-sica (IDEB), indicador nacional de qualidade educacional. Esse índice combina informa-ções de desempenho em exames padronizados, como a Prova Brasil e Saeb, com informações sobre o rendimento escolar do Censo Escolar da Educação Básica, que apresenta dados so-bre aprovação, reprovação e abandono. A par-ticipação da sociedade brasileira é essencial para o alcance das metas estabelecidas para o país nos próximos anos.

O PDE quer garantir a todos, de fato, o di-reito de aprender. Isso ainda não ocorre no Brasil?Maria do Pilar – Este é o nosso desafi o: fazer uma escola pública, efetivamente republica-na, na qual meninos e meninas tenham garan-tido o direito de acesso, de permanência e de aprendizagem. Os resultados de nossas ava-liações têm demonstrado que conseguimos garantir o acesso, mas ainda não pudemos assegurar a permanência e a aprendizagem. Aprender com qualidade é um direito. Preci-samos garanti-lo.

Em um mundo de transformações tão rápi-das, sobretudo nas comunicações e em as-pectos culturais, como fi ca o papel do pro-fessor? Que desafi os precisa enfrentar?Maria do Pilar – O professor precisa acompa-nhar essas mudanças para oferecer ao aluno

Por dois anos, Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva presidiu a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Neste ano, deixou o cargo para assumir a Secretaria de Educação Básica do MEC. Nessa entrevista, fala a respeito do Plano de Desenvolvimento da Educação, da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro e do papel do professor nesses novos tempos.

“Escola pública tem que ser boa e para todos”

Maria do Pilar

Luiz Henrique Gurgel

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uma educação coerente com a nova realidade em que estamos inseridos. Para isso, é neces-sário garantir que ele possa estudar, tendo direito à formação continuada. Não podemos esquecer, porém, que, em contraste, temos si-tuações isoladas que mostram alunos freqüen-tando uma escola ainda com o pensamento e a cultura do século passado. Precisamos fazer chegar a essas escolas as novas formas de en-sinar e de comunicar as novas tecnologias.

Estão previstas ações de formação para aju-dar os professores a vencer esses desafi os?Maria do Pilar – O Ministério da Educação está implementando ações de formação inicial e continuada para professores, em exercício, nas redes públicas de ensino. Dessa forma, pretende atender às particularidades e neces-sidades de cada nível e modalidade de ensino nas escolas públicas brasileiras, e, assim, pos-sibilitar maior autonomia nas ações educativas. Acreditamos que essa formação, em articula-ção com outras ações no âmbito do PDE, aju-dará o professor a trabalhar com base em uma visão sistêmica dos processos de aprendiza-gem e de crescimento de seus alunos.

Que motivos levaram o MEC a assinar protocolo de intenções com a Fundação Itaú Social e Cenpec para utilização da metodologia do Prêmio Escrevendo o Fu-turo na Olimpíada da Língua Portuguesa?Maria do Pilar – Ao propor no PDE o Com-promisso Todos pela Educação, o ministério mobiliza e valoriza os esforços de toda a so-ciedade para melhorar a aprendizagem dos alunos e o desempenho dos sistemas de ensi-no. O Protocolo de Intenções assinado com a Fundação Itaú Social e o Cenpec é um exemplo de como a união de esforços da sociedade civil e do poder público pode fortalecer as políticas

educacionais. A assinatura desse protocolo é uma conseqüência do reconhecimento público alcançado pelo Programa Escrevendo o Futuro,que vem dando mostras de efi cácia, graças a sua consistência pedagógica e qualidade estra-tégica. E o mais importante é que o Escrevendo o Futuro tem um viés formador. Os professores podem estudar e se formar enquanto incenti-vam a participação de seus alunos.

Quais são os objetivos e as expectativas do MEC com relação a essa olimpíada?Maria do Pilar – Queremos estimular o desen-volvimento das competências dos alunos em leitura e produção de textos, promovendo com os professores atividades de formação que contribuam para o processo de reformulação das práticas de ensino de leitura e escrita nas escolas públicas. A expectativa do MEC, ao lançar essa Olimpíada, é ampliar a abrangên-cia do programa, atingindo um universo maior de escolas públicas do país.

Como será organizada e que público pre-tende alcançar? Como se dará a partici-pação e de que modo serão mobilizados alunos, professores e escolas?Maria do Pilar – Em sua primeira edição, a Olimpíada de Língua Portuguesa será dirigida aos alunos das escolas dos sistemas públi-cos de ensino. Nas ofi cinas realizadas em sala de aula, crianças e jovens elaboram os textos que participarão do concurso. Em suas várias etapas, a Olimpíada selecionará os melhores textos de alunos matriculados, na quarta e quinta série (ou quinto e sexto ano) do ensino fundamental, no gênero Poesia; sé-tima e oitava série (ou oitavo e nono ano) do ensino fundamental, no gênero Memórias; e segundo e terceiro ano do ensino médio, no gênero Artigo de Opinião.Como um dos objetivos da Olimpíada é con-tribuir para o processo de reformulação das práticas de ensino de leitura e escrita nas esco-las públicas, a equipe pedagógica do projeto realiza atividades de formação com os pro-fessores. Assim, os docentes inscritos rece-bem um fascículo com orientações acerca do trabalho com o gênero referente a sua série/ano. A mobilização dos alunos e de seus pro-fessores se dará por meio de ampla campanha de comunicação e por meio da valiosa colabo-ração da Undime, do Consed e de entidades científi cas da área de linguagem.

“A aprendizagem do aluno está em primeiro plano. É preciso atender

à demanda social e assegurar que a escola seja consistente,

efetiva, inclusiva.”

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Prezado leitorEsta edição do Na Ponta do Lápis não traz o impresso para carta-resposta.Os leitores poderão continuar a secomunicar com a redação enviandocartas comuns, bilhetes ou e-mails. A sua opinião é muito importante para nós.

Rua Dante Carraro, 68CEP 05422-060 – São Paulo-SPE-mail: [email protected]

Achado precioso“Sou bibliotecária de uma escola municipal e numa das doações de li-vros recebidas da comunidade consta-va um exemplar do Na Ponta do Lápis.Desconhecíamos o projeto. Mos trei à coordenação que, como eu, fi cou sur-presa com a qualidade pedagógica e principalmente por coincidir com a nova proposta de ensino da língua portuguesa em nossa escola. É algo ainda muito novo para os professo-res e estamos em constante busca de suporte teórico e prático para tra-balhar com os gêneros.”

Zuleide Figueiredo PatrícioFlorianópolis (SC)

Trabalhando e aprendendo“Eu, no início, não entendia bem o que era seqüência didática, mas um dos últimos números da revista me esclareceu. Vou usar seqüência di-dática nas aulas de leitura.”

Vera Lúcia F. Gomes SiloniSanta Bárbara d’Oeste (SP)

Descoberta“Desta vez, o Na Ponta do Lápis trou-xe algo que faltava para resolver mi-nhas inquietações. Sou professor de história e entendi a importância da seleção do gênero textual, pois nem todos os alunos têm os mesmos inte-resses e habilidades, nem aprendem da mesma ma neira.”

Antônio Cláudio Amaral de AttademoMontes Claros (MG)

Interpretar notícias“Com as informações da última edi-ção, pude trabalhar o jornal com uma nova abordagem, fazendo com que os alunos se familiarizassem com o gênero notícia, analisando seus as-pectos para se tornarem leitores ca-pazes de compreen der, interpretar e criticar as notícias.”

Marizia Pereira de Sá São João do Piauí (PI)

Sucesso com os alunos“Eu me senti estimulada para desen-volver atividades com jornal em sala de aula. Já fazia antes, porém quan-do comecei a estudar o Na Ponta do Lápis pude aprimorar meu trabalho, obtendo um grande sucesso junto aos meus alunos.”

Jacira Vieira da SilvaEuclides da Cunha Paulista (SP)

Humanizar a sociedade“Interpretar nas entrelinhas. Desen-volver o senso crítico. Levantar hipó-tese sobre determinados assuntos. Um dos caminhos de humanizar a sociedade é através da leitura.”

Ivoneth Lacerda BarbieroCachoeiro de Itapemirim (ES)

De olho na prática“Dou aula de geografi a para o sexto e o sétimo anos. Encontrei boas orien-tações no De olho na prática para tra-balhar com jornais em sala de aula.”

Maria Mendes de Queiroz Stateri

Aparecida de Taboado (MS)

Prosa poética“Gostei imensamente do relato do professor Luiz Cássio Bordim (NaPonta do Lápis n. 6, agosto/07) con-tando como ori entou seus alunos a escrever poemas.”

Adalgisa Almeida de Rezende Goiânia (GO)

Crônica esclarecedora“Fiquei feliz com a Página Literária sobre crônica. Veio a calhar. Estamos desenvolvendo um projeto de leitura em nossa escola e o texto esclareceu muito os alunos.”

Creusa Kister dos AnjosBuritis (RO)

Comunicação e cidadania“Saibam que é longa a espera de um fascículo para o outro, pois cada nú-mero aborda assuntos importantes e de uma maneira bem prática. Em especial esse último, que tratou de

jornal, uma vez que estou desen-volvendo o projeto “Jornal na

sala de aula: a mídia a serviço da construção do sujeito e da

cidadania”. Estamos em fase fi nal, já na confecção dos produtos fi -

nais – jornal impresso, jornal radiofônico e jornal on-line.”

Silvania Maria da Silva Tuparetama (PE)

Ponto de apoio“Em escolas como a minha, onde os re cursos são escassos, o almanaque ajuda muito, pois os professores não possuem material sufi ciente para tra-balhar gêneros textuais com seus alunos.”

Edmilda Silva Oliveira Barboza Água Branca (AL)

Escreve-me!Ainda que seja sóUma palavra,uma palavra apenas,Suave como o teu nome e castaComo um perfume casto d’açucenas!Escreve-me – Florbela Espanca

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A represa é presaPresa com águaÉ feita de pedra, pesadaCom mil toneladas de água.

Lá embaixo os peixes:Cascudo, cará, carapebaBrincam de esconde-escondeSe entocando nas pedras.

Desce a correnteza, correndoDescansa na represaE cai pelo caidorFazendo cócegas nas pedras.

A água de baixoTemendo a água de cimaFaz onda para escaparFugindo para outro lugar.

Sobre a estreita ponteO danado do ventoVem assustar a genteCom seu sopro violento.

As árvores nas beirasSe seguram na areiaTemerosasNão querem ser levadasPela força da correnteza.

Da minha janela vejo esse mundo:Um mundo dentro do outroPreso nas muralhas da represa.

O mundo dentro da represa do Frade

Carla Marinho Xavier (12 anos), fi nalistada 3 ª- edição do Prêmio Escrevendo o Futuro,aluna da professora Maria Luiza Alvesda Silva, do Colégio Municipal Ivete Santana Drumond de Aguiar, Macaé (RJ).

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Em inúmeras vezes, e em todas as publica-ções do Programa Escrevendo o Futuro, temos reafi rmado a crença de que escrever se ensi-na; não é uma dádiva, nem talento de poucos. Mas, como se ensina a escrever?

O Na Ponta do Lápis tem dedicado muitas de suas páginas para discutir as ações e a prática do professor. Neste texto, pretende-mos dar um passo a mais, explicando por que escolhemos o ensino de gêneros textuais ten-do a seqüência didática como procedimento.

Os gêneros são modos de dizer que se cris-talizaram ao longo do tempo e são utilizados pelas pessoas conforme as necessidades de uma situação de comunicação. Por fazerem parte da cultura e do meio social, é preciso que cada pessoa se aproprie desse modo de dizer, tornando-o seu, utilizando-o com auto-nomia. Mas só podemos nos apropriar de um gênero conhecendo-o. Para isso, propomos várias ofi cinas de leitura em que apresenta-mos aos alunos textos legítimos, publicados em jornais, livros e revistas. Esse passo, ape-sar de importante, não é sufi ciente. Não basta ser leitor de um gênero para saber escrevê-lo. É preciso direcionar o olhar de quem aprende a escrever para determinados aspectos, ana-lisando os recursos que um escritor usa para que um texto cumpra seu objetivo.

Se o texto pretende convencer, focaliza-mos os argumentos; se o objetivo é enredar, chamamos a atenção para a forma como a trama foi construída; se queremos remeter o leitor ao passado, colocamos luz nos tem-pos verbais; se a intenção é persuadir alguém a visitar um lugar, indicamos os adjetivos. Ao

fazer essa análise, estamos destacando as marcas peculiares de cada gênero textual. Nes-se momento a leitura se torna indissociável da escri ta e a gramática se faz necessária. De posse desse conhecimento, o leitor consegue ser crítico e entender as entrelinhas de um texto. O escritor vai gradativamente deixan-do de escrever “de ouvido”, ou seja, intuitiva-mente, e passa a fazê-lo de modo consciente.

Para um texto cumprir seu objetivo, é pre-ciso ser pensado e escrito considerando-se quem vai lê-lo. É mais fácil quando escrevemos uma carta ou um bilhete, pois em situações in-formais conhecemos de perto nosso leitor e podemos escrever um texto menos completo, que se parece mais com uma conversa. Isso se complica quando temos que escrever em situ-ações mais formais e para leitores desconhe-cidos. Precisamos ter em nosso pensamento um leitor possível, um representante do grupo social ao qual nos dirigimos. Quando elabora-mos o Na Ponta do Lápis, por exemplo, temos no pensamento nossos leitores, os professo-res do Brasil. Imaginamos o que eles desejam, do que necessitam, e planejamos como vamos escrever para que compreendam as idéias que julgamos importantes.

Uma escrita ganha clareza à medida que o autor leva em conta seus leitores. Um escri-tor iniciante produz textos fragmentados, com referentes ambíguos, no qual faltam dados. Quando pedimos que ele revise a produ-ção, terá o desafi o de identifi car problemas, pois tem as idéias de autor (ele mesmo) e preci-sa se deslocar para o lugar de leitor do próprio texto. Para que um escritor cons-

Escrever sem perder de vista o leitor

Sônia Madi*

Quem sabe quem os lerá?Quem sabe a que mãos irão?

Alberto Caeiro1

Caeiro, Alberto. O guardador de rebanho.In: Poemas. 3 ed. Lisboa: Ática, 1963, p. 69.

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trua mentalmente esse leitor virtual é preciso ter leitores reais.

Um leitor que desconhece o texto terá dú-vidas sobre os dizeres que não estiverem ex-plícitos e, ao indagar sobre as informações ausentes (que difi cultam o entendimento), ajudará o escritor a tomar consciência dos problemas do texto e a reescrevê-lo de forma mais completa e coerente, de modo que cum-pra o objetivo para o qual foi escrito.

Esse papel pode ser desempenhado por um colega ou pelo professor, quando este aju-da o aluno a rever e aprimorar o texto. A isso chamamos trabalho colaborativo, atuação em zona de desenvolvimento proximal. Quando

aquele que aprende é capaz de fazer sozinho uma ação que antes fazia com ajuda, denomi-namos essa autonomia de zona real.

Tornar público o texto cria a necessidade de revisão, pois é a publicação que concretiza a existência de leitores reais. O texto também recebe acabamentos estéticos que dão ao ato de escrever um outro sentido: de que a voz do autor é ouvida e valorizada por outras pessoas. Ao ser lido, o texto cumpre sua função social, atinge sua fi nalidade, dá visibilidade ao autor e lhe confere prestígio.

*Mestre em Educação e coordenadora do Programa Escrevendo o Futuro

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A natureza nos dotou de um cérebro capaz de dar nomes, e nós desenvolvemos a capa-cidade de, a partir dos nomes, entender o mundo. Nessa passagem, criamos a gramática, uma das mais desprezadas áreas dos currí-culos escolares. Assim tratam-na alunos e

Gramática: o chato que é bomUm tempo de verbo errado, uma vírgula mal colocada, um acento fora de lugar e eis-me dizendo o que não pretendia

Anna Verônica Mautner*

quiçá mestres também. Infelizmente, não há destreza sem exercício. Gramática é exercício de observação da língua. Conhecer a gramá-tica é uma experiência de nos desprendermos da linguagem para melhor observá-la.

Se eu falo, se me expresso, é porque pre-tendo comunicar algo, e isso deve ser feito

de tal forma que o outro me entenda. Um grito de dor nos fala de dor, mas não

diz qual, onde, de que tipo. Se eu quiser ser socorrida, preciso ex-

plicar o que está ocorrendo, não basta assinalar. Posso dizer, sem querer, o que não

pretendo e não conhecer o jeito de dizer o que desejo.

Duas abordagens, pe-lo menos, são básicas pa ra que nos comunique-mos a contento: co nhe cer de onde vem a linguagem (lingüís tica e etimo lo gia)

e de que jeito ela se organi-za. Um tempo de verbo erra-

do, uma vírgula mal colocada, um acento fora de lugar e eis-

me dizendo o que não pretendia. A língua intuitiva, essa que to-

dos falamos, é o que de mais humano e específi co possuímos. Ela não veio pron-

ta, do jeito que a encontramos hoje. Nossa forma de expressão tem sua história, pratica-mente cúmplice de cada cultura. A gramática é a organização de nosso fl uxo verbal, é nossa garantia de dizermos aquilo que pensamos.

Quando um estrangeiro aprende a língua só de ouvido, sem estudar gramática, ele qua-se sempre perde a liberdade das nuances e dos jeitinhos – a riqueza e a especifi cidade de cada língua, indo da ternura até a raiva. Quando se estuda o inglês, que é uma língua dotada de uma estranha gramática, pelo me-nos para nós, de origem latina, deparamo-nos com o “spelling” (ortografi a) e com as expressões idiomáticas, tudo vin do do pró-prio uso, e não das regras.

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O inglês é uma língua de poucas regras e muitas exceções. As línguas lati nas, por outro lado, são regradas por uma extensa gramá-tica, com muitas regras e poucas exceções.

Suas regras não são oriundas do acaso, constituem um jeito de raciocinar. Estudar gramática é pensar frases ou orações.Achar o sujeito da ação, a ação presente ou passada, o objeto dessa ação, combinar tempo, modo, número e fazer concor-dâncias é pensar sobre o que está sendo dito.

Fazer análise sintática, morfoló-gica ou lógica é criar comunicação, independentemente de motivação ou de emoção. O exercí cio de nos desprender-mos da linguagem e de olhá-la como algo estranho a nós mesmos é um fan-tástico exercício de raciocínio, do qual talvez estejamos pri-vando as novas gerações ao não dar ênfase ao estu-do da gramática. Estudar gramática, dizem por aí, é chato. “Pra que ser -ve?” “Para melhor pen-sar, meu fi lhinho” – só que ninguém quer ser lobo mau hoje em dia.

Não há pianista que não estude escalas, nãohá esportista que não fa ça exercício diário e não há quem consiga se expressar bem sem ser ca-paz do distanciamento neces -sário para melhor dominar tanto a fala quanto a escrita.

Até hoje, os cursos superiores mais avançados de física e de matemática na França dão preferência a alunos oriundos do cole-gial clássico, onde aprendiam grego e latim. Dizia-se que chegavam com melhor treino de raciocínio.

Deixar cair em desuso o exercício de dis-tanciamento é grave. Tomar uma sentença qualquer e analisá-la como destacada de nós, é esse o exercício. Não é possível interpretar texto sem conhecer a organização da lingua-gem. A difi culdade de interpretar os textos e de entender os livros está, pelo menos em

parte, na falta desse exercício que nos leva à distância ideal para entender sem se misturar com o enunciado. Isso, em resumo, é função da gramática, um exercício para compreen-der o discurso no mundo.

*Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de Cotidiano nas entrelinhas (ed. Ágora). Folha de S. Paulo, 13/09/2007. Caderno Equilíbrio.

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Língua sem nós!

A língua é fundamentalmenteum fenômeno sociocultural que se determinana relação interativa e contribui de maneira

decisiva para a criação de novos mundose para nos tornar defi nitivamente humanos.

Luiz Antonio Marcuschi

1. Para saber o horário da última sessão de cinema, consulteia seção de cultura e lazerdo jornal de domingo.

2. Em vias de completar vinte anos ele ainda viveàs custas do pai.

3. Acho ótima sua idéia.Ela vem ao encontro do que eu tinha imaginado.

4. Foram iniciadas esta noite as obras de manutençãoda rodovia.

5. Aquela moça era meia louca.

6. Não sabia onde ele estava, nem sei aondeele quer chegar.

7. Esse vestido não tem nada haver com você.

8. O governo interveio na bolsa de valores para evitar que acirre ainda mais a crise econômica.

9. Houve muitos acidentes nas estradas no último feriado.

10. Ninguém se adequa aquele regulamento.

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Impasse à vista Você sabia que a língua portuguesa ocupa

a quinta posição entre os idiomas mais

falados do planeta? São 190 milhões de

brasileiros, aproximadamente, e mais ou tros

10,5 milhões de portugueses e demais fa-

lantes em países africanos e em comu-

nidades na Ásia e América. Entretanto,

o português é o único idioma ocidental a

adotar duas grafi as ofi ciais.

Para resolver o impasse e alargar a compreen-

são entre falantes do português, foi criado o

Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa,

que busca unifi car o registro es crito nos oito

países que falam o idioma – Angola, Moçam-

bique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé

e Príncipe, Timor Leste, Brasil e Portugal.

Três países – Brasil, Cabo Verde e São Tomé

e Príncipe – demonstram desejo em levar

adiante a reforma. No entanto, as autori-

dades de Portugal – matriz da língua – têm

falado em esticar os prazos de adaptação

às novas regras em até dez anos.

Para preservar e manter viva a língua e a cultura de um povo, é imprescindível o do-mínio da fala, da escrita e da leitura. Em tempos de discussão acerca do Acordo Or-tográfi co da Língua Portuguesa, seleciona-mos algumas dúvidas mais freqüentes re-lacionadas aos aspectos gramaticais para testar sua competência comunicativa. Nas frases abaixo, marque C para o que julgar correto, e E para o que considerar errado.

Corretas: 1, 3, 4, 6, 8, 9. Erradas: 2, 5, 7,10.2. à custa; 5. meio; 7. nada a ver ou nada que ver; 10. Não existem as formas “adequa”, “adeqüe”

Respostas:

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A natureza nos dotou de um cérebro capaz de dar nomes, e nós desenvolvemos a capa-cidade de, a partir dos nomes, entender o mundo. Nessa passagem, criamos a gramática, uma das mais desprezadas áreas dos currí-culos escolares. Assim tratam-na alunos e

Gramática: o chato que é bomUm tempo de verbo errado, uma vírgula mal colocada, um acento fora de lugar e eis-me dizendo o que não pretendia

Anna Verônica Mautner*

quiçá mestres também. Infelizmente, não há destreza sem exercício. Gramática é exercício de observação da língua. Conhecer a gramá-tica é uma experiência de nos desprendermos da linguagem para melhor observá-la.

Se eu falo, se me expresso, é porque pre-tendo comunicar algo, e isso deve ser feito

de tal forma que o outro me entenda. Um grito de dor nos fala de dor, mas não

diz qual, onde, de que tipo. Se eu quiser ser socorrida, preciso ex-

plicar o que está ocorrendo, não basta assinalar. Posso dizer, sem querer, o que não

pretendo e não conhecer o jeito de dizer o que desejo.

Duas abordagens, pe-lo menos, são básicas pa ra que nos comunique-mos a contento: co nhe cer de onde vem a linguagem (lingüís tica e etimo lo gia)

e de que jeito ela se organi-za. Um tempo de verbo erra-

do, uma vírgula mal colocada, um acento fora de lugar e eis-

me dizendo o que não pretendia. A língua intuitiva, essa que to-

dos falamos, é o que de mais humano e específi co possuímos. Ela não veio pron-

ta, do jeito que a encontramos hoje. Nossa forma de expressão tem sua história, pratica-mente cúmplice de cada cultura. A gramática é a organização de nosso fl uxo verbal, é nossa garantia de dizermos aquilo que pensamos.

Quando um estrangeiro aprende a língua só de ouvido, sem estudar gramática, ele qua-se sempre perde a liberdade das nuances e dos jeitinhos – a riqueza e a especifi cidade de cada língua, indo da ternura até a raiva. Quando se estuda o inglês, que é uma língua dotada de uma estranha gramática, pelo me-nos para nós, de origem latina, deparamo-nos com o “spelling” (ortografi a) e com as expressões idiomáticas, tudo vin do do pró-prio uso, e não das regras.

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O inglês é uma língua de poucas regras e muitas exceções. As línguas lati nas, por outro lado, são regradas por uma extensa gramá-tica, com muitas regras e poucas exceções.

Suas regras não são oriundas do acaso, constituem um jeito de raciocinar. Estudar gramática é pensar frases ou orações.Achar o sujeito da ação, a ação presente ou passada, o objeto dessa ação, combinar tempo, modo, número e fazer concor-dâncias é pensar sobre o que está sendo dito.

Fazer análise sintática, morfoló-gica ou lógica é criar comunicação, independentemente de motivação ou de emoção. O exercí cio de nos desprender-mos da linguagem e de olhá-la como algo estranho a nós mesmos é um fan-tástico exercício de raciocínio, do qual talvez estejamos pri-vando as novas gerações ao não dar ênfase ao estu-do da gramática. Estudar gramática, dizem por aí, é chato. “Pra que ser -ve?” “Para melhor pen-sar, meu fi lhinho” – só que ninguém quer ser lobo mau hoje em dia.

Não há pianista que não estude escalas, nãohá esportista que não fa ça exercício diário e não há quem consiga se expressar bem sem ser ca-paz do distanciamento neces -sário para melhor dominar tanto a fala quanto a escrita.

Até hoje, os cursos superiores mais avançados de física e de matemática na França dão preferência a alunos oriundos do cole-gial clássico, onde aprendiam grego e latim. Dizia-se que chegavam com melhor treino de raciocínio.

Deixar cair em desuso o exercício de dis-tanciamento é grave. Tomar uma sentença qualquer e analisá-la como destacada de nós, é esse o exercício. Não é possível interpretar texto sem conhecer a organização da lingua-gem. A difi culdade de interpretar os textos e de entender os livros está, pelo menos em

parte, na falta desse exercício que nos leva à distância ideal para entender sem se misturar com o enunciado. Isso, em resumo, é função da gramática, um exercício para compreen-der o discurso no mundo.

*Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de Cotidiano nas entrelinhas (ed. Ágora). Folha de S. Paulo, 13/09/2007. Caderno Equilíbrio.

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Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua ausên-cia a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do lado de fora da casa. “Para trazê-lo de volta”, murmurou. E foi dormir.

Mas, ao abrir a porta na manhã seguinte, deparou-se com a lanterna apagada. “Foi o vento da madrugada”, pensou olhando para o alto, como se pudesse vê-lo soprar.

À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, a dis-tância, deveria indicar ao seu homem o caminho de casa.

Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e ela estava tão cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o gemido das frestas, nem o ranger das argolas da lanterna. E de manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.

Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o céu límpido, as claras estrelas. “Na certa não ventará”, disse em voz alta, quase dando uma ordem. E encostou a chama do fósforo no pavio.

Se ventou ou não, ela não saberia dizer. Mas antes que o dia raiasse não havia mais nenhuma luz, a casa desaparecia nas trevas.

Assim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual constância, apagava.

Talvez meses tivessem passado quando num entardecer, ao acender a lanterna, a mulher viu ao longe, recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte, a silhueta escura de um homem a cavalo. Um homem a cavalo que galopava na sua direção.

Aos poucos, apertando os olhos para ver melhor, distinguiu a lança er-guida ao lado da sela, os duros contornos da couraça. Era um soldado que vinha. Seu coração hesitou entre o medo e a esperança. O fôlego se rete-ve por instantes entre lábios abertos. E já podia ouvir os cascos batendo sobre a terra, quando começou a sorrir. Era seu marido que vinha.

Apeou o marido. Mas só com um braço rodeou-lhe os ombros. A outra mão pousou na empunhadura da espada. Nem fez menção de encami-nhar-se para a casa.

Que não se iludisse. A guerra não havia acabado. Sequer havia aca-bado a batalha que deixara pela manhã. Coberto de poeira e sangue, ainda assim não havia vindo para fi car. “Vim porque a luz que você acen-de à noite não me deixa dormir”, disse-lhe quase ríspido. “Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas, como se me chamasse. Só de madrugada, depois que o vento sopra, posso adormecer.”

A mulher nada disse. Nada pediu. Encostou a mão no peito do marido, mas o coração dele parecia distante, protegido pelo couro da couraça.

“Deixe-me fazer o que tem de ser feito, mulher”, disse sem beijá-la. De um sopro apagou a lanterna. Montou a cavalo, partiu. Adensavam-se as sombras, e ela não pôde sequer vê-lo afastar-se contra o céu.

A partir daquela noite, a mulher não acendeu mais nenhuma luz. Nem mesmo a vela dentro de casa, não fosse a chama acender-se por trás das pálpebras do marido.

No escuro, as noites se consumiam rápidas. E com elas carregavam os dias, que a mulher nem contava. Sem saber ao certo quanto tempo havia passado, ela sabia porém que era tanto.

E, passado, num fi nal de tarde em que a soleira da porta despedia-se da última luz no horizonte, viu desenhar-se lá longe a silhueta de um homem. Um homem a pé que caminhava na sua direção. Protegeu os olhos com a mão para ver melhor e aos poucos, porque o homem avan-çava devagar, começou a distinguir a cabeça baixa, o contorno dos ombros cansados. Contorno doce, sem couraça, retendo o sorriso nos lábios – tantos homens haviam passado sem que nenhum fosse o que ela esperava. Ainda não podia ver-lhe o rosto, oculto entre a barba e o chapéu, quando deu o primeiro passo e correu ao seu encontro, libe-rando o coração. Era seu marido que voltava da guerra.

Não precisou perguntar-lhe se havia vindo para fi car. Caminharam até a casa. Já iam entrar. Quando ele se reteve. Sem pressa voltou-se, e, embora a noite ainda não tivesse chegado, acendeu a lanterna. Só entrou com a mulher. E fechou a porta.

COLASANTI, Marina. “Luz de lanterna, sopro de vento”.IN: Longe como meu bem querer. São Paulo: Ática, 1997.

Luz de lanterna,sopro de vento

A autora Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia. Chegou ao Brasil em 1948. Antes de se dedicar ao exer-cício literário, iniciado em 1986, a autora dedicou-se à pintura e ao jornalismo. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de colisão. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil.

Marina Colasanti

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O desafi o do texto coletivoUma boa oportunidade para o professor legitimar a parceria com seus alunos1.

1. Adaptado do texto A construção do texto coletivo, de Heloisa Amaral.

tre os próprios colegas. Nessa negociaçãoacerca do que deve ser escrito, de que maneira e em que ordem, instaura-se a possibilidade de autoria na produção textual. Aparecem di-ferentes pontos de vista e os alunos podem compreender que há vários modos de “acertar o tom” do texto e escolher o seu modo próprio de escrever.

Para alcançar o resultado esperado, é pre-ciso que o trabalho ocorra de forma organiza-da, de modo a evitar a dispersão, comum em atividades mais longas. Por isso, o professor deve preparar-se para usar estratégias que mantenham a classe atenta por mais tempo. Se as aulas durarem menos do que uma hora, esse trabalho pode ser dividido em dois dias.

Vale destacar que o professor não é o autor do texto, nem um mero “escriba”, que se limita a transcrever a fala dos alunos, com receio de apagar a autoria do grupo. Ele faz a mediação;e, no papel de co-autor, pode e deve contribuir, questionando e dando orientações.

Você está pronto para desenvolver essa proposta com seus alunos?

As orientações a seguir podem ser úteis nessa tarefa.

Durante o desenvolvimento de uma seqüên-cia didática para o ensino de gêneros textuais, muitos professores ainda hesitam em realizar a etapa de elaboração do texto coletivo com seus alunos. Consideram essa atividade bas-tante complexa, por provocar discussões, inquietações, discordâncias, negociações e uma intensa agitação em sala de aula. Para encorajá-lo a vencer o desafi o, propomos uma refl exão mais detalhada desse procedimento de trabalho.

Ainda que a turma esteja em diferentes mo-mentos do domínio do conteúdo ensinado, é na produção do texto coletivo que os alunos orga-nizam e sintetizam o que foi aprendido em ofi -cinas anteriores. Nesse momento, o professor identifi ca os próximos desafi os, planejando as intervenções que contribuam para novas aprendizagens. A troca de informações entre colegas de uma mesma turma permite que o aluno que está em uma etapa mais avançada do conhecimento auxilie o processo de apren-dizagem dos demais e o seu próprio, pois aque-le que ensina também aprende.

Negociando sentidos

A produção coletiva deve privilegiar a negociação entre professores e alunos e en-

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Meus alunos são leitores da Revista Brasil. Acham inte-ressantes as matérias ali publicadas, mas sentem falta de assuntos voltados para o jovem trabalhador. Diante dessa constatação, resolvemos escrever para a revista, manifes tando nossa opinião e sugerindo temas que atendessem ao público mais jovem.

A turma já havia percorrido as etapas da seqüência didá-tica para se aproximar das características de cartas de leitor publicadas em jornais e revistas. Depois de ler e analisar muitas delas, chegamos à produção coletiva de uma carta para ser publicada.

Organizei a classe em pequenos grupos. Procurei formar os agrupamentos com ritmos de aprendizagem próximos entre si, para que a interação fosse assegurada, evitando o monopólio daqueles que têm maior facilidade de escrever e acabam fazendo o texto pelos outros.

Acompanhei de perto os alunos. Notei que, nos grupos, as propostas eram discutidas e acolhidas pelo redator. A partici-pação calorosa e a cumplicidade da turma facilitaram o anda-mento do trabalho. Percorri os agrupamentos várias vezes, fazendo sugestões e propondo revisão de aspectos gramati-cais ou da estruturação do gênero. A carta foi ganhando corpo.

Cada grupo passou sua carta para o papel pardo, afi xando-a ao lado da lousa para que todos pudessem ler.

Arrumei a classe em semicírculo, para que fi zéssemos a escrita fi nal. Pedi que cada redator lesse uma carta. Depois, negociamos o que estava interessante em cada uma delas para compor o texto que representaria a 8ª- série H. Constatamos que algumas informações se repetiam. Decidimos selecionar os trechos que melhor expressassem as idéias dos alunos. Relemos o texto.

Antes de prosseguir com a escrita, retomei com a turma a si-tuação de comunicação, relembrando a quem se destinaria a car-ta e qual era seu objetivo. Os alunos perceberam que poderíamos inverter parágrafos, costurando as idéias para que o texto fi casse mais claro. Sugeriram a inclusão de matérias de interesse do público mais jovem: música, esporte, droga, primeiro emprego.

O mais importante nesse trabalho é que todos participa-ram: ora escrevendo, ora dando opiniões, sugerindo mudanças e novas idéias. O que um aluno não sabe o outro ensina e vice-versa. O professor, por sua vez, precisa estar atento a todo esse movimento. “Enquanto mediador pode e deve fazer pro-posições, negociar os sentidos, sem perder de vista a sobera-nia dos autores.”

Uma experiência bem-sucedida

Antes de iniciar aprodução coletiva

Explique aos alunos a importânciada escrita do texto coletivo.

Recupere com eles a situação de comunicação (quem fala; de que lugar;com que objetivo; para quem ler) e oroteiro dos aspectos próprios do gênero.

Incentive a participação da turma por meio de perguntas.

Durante a elaboração do texto

Converse sobre o tema/assunto que será escrito.

Decida com o grupo a melhor forma de iniciar o texto.

Ouça as propostas dos alunos e ajude-os a transformar as idéias apresentadas (oralidade) em discurso escrito.

Releia com o grupo cada parágrafoproduzido para verifi car o encadeamentodo texto. Faça alterações necessárias.

Prossiga o texto de modo que a organizaçãoda seqüência de parágrafos não perca a unidade, a coesão e a coerência.

Fique atento, no desenrolar do texto, se os aspectos próprios do gênero estão sendo preservados.

Verifi que o uso correto da pontuação. Escolha, com a turma, um título sugestivo para o texto.

Transcreva o texto coletivo em papel pardo e combine com o grupo que ele será revisado e aprimorado posteriormente.

Maria Imaculada Pereira é professora da Escola Estadual Fidelino Figueiredo, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Acreditando que os alunos podem aprender mais quando têm oportunidade de compartilhar idéias

com os colegas, propôs a elaboração de um texto coletivo com seus alunos da 8ª- série do período noturno.

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Ponte entre a universidade e a sala de aulaEspecialistas na área de língua portuguesa avaliam textos dos alunosparticipantes do programa. O objetivo desse estudo é contribuir paraa melhoria dos materiais e ações desenvolvidas.

Luiz Henrique Gurgel

Em julho deste ano, na sede do Cenpec em São Paulo, a coordenação do Programa Escrevendo o Futuro deu início a uma nova pesquisa com textos de estudantes que par-ticiparam da edição de 2006. No encontro, pesquisadores de sete universidades bra-sileiras discutiram com educadores e ges-tores do programa os critérios de análise e as propostas de aprimoramento do ensino de leitura .

Nessa oportunidade, foram apresentados os resultados da pesquisa realizada em 2005, e discutidos os critérios de análise do próximo estudo, que será coordenado pelas professo-ras Elisabeth Marcuschi, da Universidade Fe-deral de Pernambuco (UFPE), e Maria da Graça da Costa Val, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Os especialistas trabalharão com uma amostra de 750 textos – 250 de cada gênero abordado pelo Programa – entre os mais de 6.500 enviados de todas as regiões do Brasil.

O objetivo dessa pesquisa é avaliar os textos, analisar sua construção e identifi car como as orientações dos materiais pedagógi-cos do Programa são aproveitadas pelos pro-fessores na realização das ofi cinas. As ava-liações e os apontamentos dos pesquisadores servirão para o aprimoramento dos materiais pedagógicos e das ações de formação de pro-fessores do Escrevendo o Futuro.

A pesquisa

Sonia Madi, coordenadora pedagógica do Escrevendo o Futuro, lembrou que “o objetivo

“Esse trabalho está,praticamente, sistematizandouma forma de ensinar produção textual, atingindo professores de todo o Brasil. Aqueles que acompanham a prática – as universidades, os professores de metodologia – deveriam ter conhecimento desse trabalho.”Guilhermina Pereira Corrêa

Universidade Federal do Pará (UFPA)

“Você percebe que, muitas vezes, o professor está em um processo de transformação: ele quer usar novas metodologias, ensinar na perspectiva de gêneros, mas simplesmente ainda está em um processo de compreender como é que se faz isso. Só o fato de as escolas se mobilizarem, de solicitarem os materiais, é um indicador fantástico.”Maria da Graça da Costa Val

“A partir do momento em que um professor decide participar do Prêmio, ele começa a fazer parte de uma rede contínua de ações de formação: comunidade virtual, publicações, videoconferência. O professor tem oportunidade de repensar o que poderiater feito ou, ainda, o que poderealizar numa próxima vez.”Vera CristóvãoUniversidade Estadual de Londrina (UEL)

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principal do Escrevendo o Futuro não é premiar os melhores textos, mas refl etir e encontrar pistas para aprimorar a escrita dos alunos”. Ela também afi rmou que faz parte da proposta do Cenpec estabelecer pontes entre o conhe-cimento produzido nas universidades e a prá-tica que leve à concretização e à aplicação dessas idéias e saberes. O aprimoramento do programa, continuou, é preocupação per-manente, desde sua criação. “Bus ca mos sempre chegar cada vez mais perto do pro-fessor. Por isso queremos sempre compreen-der como ele entende e aproveita os materiais e as idéias do programa. Esse entendimento vem pela forma como orienta os alunos para escrever os textos”, explicou.

Durante o encontro, os especialistas des-tacaram a oportunidade que essa pesquisa qualitativa oferece. Olhar as produções, apu-rar a análise, sem perder de vista o professor que está por trás de cada texto. Essa amos-tragem possibilitará traçar um perfi l da quali-dade das produções dos alunos de 4ª- e 5ª-série de escolas da rede pública de todo o território nacional, nos gêneros Artigo de

opinião, Memórias e Poesia e das práticas de ensino dos professores que receberam as orientações por meio dos fascículos do Kit Itaú de Criação de Textos.

Para eles, esse estudo é abrangente, por ultrapassar os ajustes nas ações de formação e publicações do Programa, e por possibilitar uma refl exão acerca das políticas públicas de formação de professores.

Mais que premiar, formar.

Entre temas relacionados aos parâmetros da pesquisa e as impressões sobre as propos-tas e os métodos de formação do Programa, muitas questões chamaram a atenção dos convidados que participaram do encontro. Na Ponta do Lápis selecionou algumas delas.

No fi nal do encontro, os especialistas rei-teraram a convicção de que ensinar a escre-ver é um trabalho intenso e que o material, as estratégias pedagógicas e as ações de for-mação do Programa estão direcionados para atingir esse objetivo. Em breve, alguns indi-cadores dessa pesquisa serão divulgados.

“Há no projeto uma proposta de formação continuada do professor: existe um ponto de partida bem claro – o material de formação – e um ponto de chegada bem objetivo – os textos dos alunos. O material usa uma linguagem simples (sem ser superfi cial) e oferece uma base teórica séria e consistente”. Maria Luiza Sales CoroaUniversidade de Brasília (UnB)

“ Todos nós que trabalhamos com formação de professores sabemos que a avaliação é essencial a qualquer atividade. É preciso um momento para pensar e ajustar o percurso, o processo em construção: ‘o que eu consegui?’; ‘o que falta?’; ‘o que eu posso fazer para mudar?’; ‘o que eu devo redirecionar?’”Elisabeth Marcuschi

“O desafi o é encontrar mais respostas para poder subsidiar, repensar a distância entre o que temos construído teoricamente na universidade e a prática.” Acir Mario Karwoski Universidade Federal do TriânguloMineiro (UFTM)

“Esse Prêmio se tornouum contexto de formaçãoimportante. O fatode tomar uma práticasocial – a participação emum concurso – que em geralmobiliza e envolve muitoas escolas, e tornar essaprática uma instância deformação continuada,é realmente original.”Ângela KleimanUniversidade de Campinas (Unicamp)

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Foi pensando nos acontecimentos que mar-cam o dia-a-dia em sala de aula, que voltei ao meu caderno de anotações para escrever este artigo e relatar a experiência do trabalho com poemas que realizei numa escola da capital paulista. Encontrei de tudo no caderno: refl e-xões, sentimentos, impressões e intercorrên-cias próprias de cada uma das ofi cinas que realizei. São registros que ladeiam e bordam os cantos de cada ação planejada.

Diante de tantas experiências, surgiu um dilema: que recorte fazer e o que selecionar, dentre as práticas, para narrar? Pensei nos leitores dessa publicação: em sua maioria, são professores como eu, que podem se iden-tifi car com o que tenho a dizer. Das histórias dessa travessia, entre ganhos e perdas, esco-lhi algumas passagens.

Como tudo começou

Logo que falei de poesia na classe, notei os primeiros sinais de descontentamento: meninos torcendo o nariz e meninas cochi-chando. Eu que já vira algumas delas anotan-do poemas e versos em seus diários, fi quei surpresa com essa manifestação. Acho que fi caram receosas em assumir o gosto pela poesia e enfrentar o preconceito do grupo de pré-adolescentes. Percebi que muitos deles associavam poesia a sentimentalismo e pie-guice. Mas não me dei por vencida, seguindo adiante com a conversa: “Vocês se lembram de algum poema?”. Silêncio. Insisti: “Quando vocês eram pequenos, ouviram poemas musi-cados?”. Surgiram os primeiros versos: “Era uma casa muito engraçada...”, “lá vem o pato, pato aqui...”. Alguém arrematou: “Ah! Esses eu conheci na pré-escola!”. Percebi que eu mesma, conhecendo vários poetas e gostando de poesia, não as trazia de memória. Precisei

recorrer à minha cola para recitar um poema de Elias José: “A poesia/ Tem tudo a ver/ Com tua dor e alegrias,/ Com as cores, as formas, os cheiros,/ Os saberes e a música/ Do mun-do...”. Duas alunas se encorajaram e recita-ram uma estrofe de Cecília Meireles. Juntos, transcrevemos os versos dessas poesias, inaugurando nosso mural.

Refazendo a travessiaProfessora relata a difícil experiência de trabalhar poesia

com alunos desmotivados e com baixa auto-estima. Tarefa complicada, mas que teve seu lado poético, pois mesclou paciência,

dúvidas e sofrimentos com novas descobertas, criação e a satisfação pela construção conjunta de saberes e novas sensibilidades.

Regina Andrade Clara

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Catando poemas,descobrindo leitores

Surgiu um novo desafi o: buscar poetas de estilos diversos e encontrar poemas instigan-tes que aguçassem a sensibilidade dos alu-nos para conhecê-los melhor e compreender seu valor. Queria incentivá-los a enxergar a poesia com olhar de poeta. Passei a ler mais poemas nas rodas de leitura e desafi ei-os a descobrir em casa, na escola, na comunidade, pessoas que gostassem e se encantassem com a linguagem poética. De pronto, acata-ram a idéia e saíram a campo. Ouviram fami-liares, profi ssionais da escola e moradores da comunidade. À medida que foram apanhando os poemas e trazendo para a sala de aula, per-cebi algumas mudanças de atitude: liam os versos com entonação, passaram a brincar com a rima, o ritmo das palavras. Também não imaginavam que tantas pessoas gostassem e

ainda trouxessem na memória uma infi nidade de poesias. Para dar maior visibilidade aos poemas coletados, aquecendo o desejo de conhecer ainda mais, organizamos o primeiro sarau. Foi um sucesso!

Poema em linha retaÁlvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

(...)Toda a gente que eu conheço e que fala

comigoNunca teve um ato ridículo, nunca sofreu

enxovalho,Nunca foi senão príncipe – todos eles

príncipes – na vida...Quem me dera ouvir de alguém a voz

humanaQue confessasse não um pecado, mas

uma infâmia;Que contasse, não uma violência, mas

uma cobardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me

falam.Quem há neste largo mundo que me

confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo? (...)

O que estava dando errado?

Depois do êxito das primeiras ofi cinas, veio uma etapa em que nada deu certo. En-frentei uma batalha em sala de aula e pude compreender exatamente o que signifi cava a expressão ‘jogar a toalha’. Vinte anos de magistério e eu nunca havia me sentido tão incapaz e angustiada. Procurei me acalmar e passar a limpo essa experiência. Rememorei o que tinha acontecido e, como num diário, resolvi escrever para guardar: “Que crianças são essas? Por que é tão difícil conquistá-las e semear nelas o desejo de aprender? Por que não se sentem dignas? Por que a baixa auto-estima? Que raiva é essa?”. Afi nal de contas, era apenas uma preparação para um acrósti-co, uma lista de adjetivos. Tínhamos começa-do com a letra ‘A’ – palavras suaves, talvez um falso brilhante: alegre, amável, agradável.

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As letras foram andando e eles sugeriram o ‘V’, talvez trazendo a hora da VERDADE. Parecia que me provocavam, mas eu enfren-tava a provocação escrevendo as palavras na lousa. Censura? Não seria eu que a faria, prin-cipalmente pelas palavras. Queria preservar a liberdade de expressão. A poesia é isso, as palavras carregam múltiplos sentidos. E elas vinham aos borbotões: VADIO, VAGABUNDA, VICIADO... . Não me lembrava de outra oca-sião em que havia escrito aquelas palavras na lousa.

Houve uma explosão de raiva. Não me ouviam: riam, gritavam, jogavam bolinhas de papel uns nos outros. Onde encontrar forças e saídas para reverter esse quadro, eu pen-sava. Sabia que não havia solução mágica, mas a turma precisava rever a auto-imagem, aprender a gostar de si, se sentir confi ante e bem-sucedida.

Procurando bem,todo mundo tem...

Esse episódio não poderia passar em branco. Era preciso retomar a situação e compreender o que tinha acontecido. Tanto a agitação e a revolta, quanto a fragilidade da minha lideran-ça diante do grupo. Antes de planejar o que fazer, analisei mais uma vez a proposta do acróstico. Por que tinham escolhido adje tivos tão depreciativos? Uma oposição ao modelo elogioso. Válvula de escape para baixa auto-estima? Procurei respostas para essa repre-sentação rígida entre bem e mal.

Busquei respaldo teórico. Reli textos de Vigotsky e Wallon e refl eti muito. Revisitei re-latos de prática. Tive longas conversas com a coordenadora. Depois de todas essas ações, o grande nó começou a ser desatado. Levei para a sala de aula a música Ciranda da bai-larina, de Edu Lobo (música)1 e Chico Buar-que (letra). Escutamos a canção. Ninguém a conhecia. Lemos e conversamos sobre cada verso. Ouvimos a ciranda novamente. “Essa bailarina não existe!” – afi rmou uma criança. As imagens trazidas pela canção levaram os alunos a ter o que dizer. Falaram primeiro da bailarina, depois veio a coragem de falar de si mesmos: alegrias, amarguras, difi culdades, expectativas. O serviço das palavras se com-pletou e pude continuar o trabalho.

Ciranda da bailarina Edu Lobo e Chico Buarque

Procurando bemTodo mundo tem perebaMarca de bexiga ou vacinaE tem piriri, tem lombriga, tem amebaSó a bailarina que não tem (...)

(...) Sala sem mobíliaGoteira na vasilhaProblema na famíliaQuem não tem

1. 1986 by Lobo Music Produções Artísticas Ltda. Todos os direitos reservados.

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Ler e escrever ganha sentido

Ombros caídos, corpo franzino, olhar ca-bisbaixo, alheio ao dia-a-dia da sala de aula, um garoto de 12 anos, acabrunhado, às vezes arisco, não tinha voz, nem lugar no grupo. Quando se arriscava a falar, era ignorado. Es-tava na quarta série, não sabia ler e escrever, era copista. Lancei mão de vários procedimen-tos. Convidei a sentar nas primeiras cartei-ras. Criei novos agrupamentos: parceria com alunos predispostos a ajudá-lo. Incentivei sua participação nas rodas de conversa. Fui me aproximando cada vez mais, conquistando sua confi ança e as mudanças se tornaram vi-

síveis. Ele começou a olhar nos olhos de seus colegas, se ofereceu para ser ajudante da tur-ma, passou a dar palpites e se envolver com as atividades. Interessado, abriu espaço para a aprendizagem. Aproveitei a oportunidade para afi nar o planejamento, evidenciando a importância social da escrita e selecionando atividades que o ajudassem a compreender o sistema alfabético da escrita. Encontrei nas ofi cinas do fascículo Poetas da escola ativida-des perfeitas para desencadear as interven-ções com esse menino. O texto Duas dúzias de coisinhas à toa, de Otávio Roth, encantou e divertiu a turma. Trazia brincadeira, experi-ências do cotidiano das crianças. Essa com-posição de palavras, repetição de sons ao fi nal dos versos, palavras que rimam, enfi m, a sonoridade do texto, possibilitou a refl exão sobre a relação entre fala e escrita, a corres-pondência entre fonemas e grafemas. Outros poemas e canções, apresentados na seqü-ência das ofi cinas, mais uma vez trouxeram à tona rimas, repetições, aliterações – habi-lidades relacionadas à consciência fonológica – ess enciais no processo de alfabetização.

Com bem diz o poeta José Paulo Paes, em Poema e Prosa, “de tanto ir e vir de um verso a outro, de uma rima a outra, a gente acaba decorando um poema e guardando-o na me-mória. Geralmente, a prosa entra por um ou-vido e sai pelo outro. A poesia, não: entra pelo ouvido e fi ca no coração”. Creio que foi isso que aconteceu com aquele aluno. Escutando, recitando, convivendo com textos poéticos, ele aprendeu a decifrar letras, ordená-las, formar as palavras, combiná-las e descobrir seu sen-tido. Sentindo-se mais seguro, e sem a ajuda da professora, arriscou seus primeiros versos.

(...)

Pais briguentos e violentos

Mesmo assim, tem vizinho bom

Que faz bolo de chocolate

Dá bola de presente

E eu retribuo

Comprando pão e leite

E também detergente

Momentos bons e ruins

Na Vila Gomes é assim.

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Também somos capazes

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Uma história puxa outra...Se você também tem ou conhece um boa história envolvendo participantes do Escrevendo o Futuro, escreva para nós: Programa Escrevendo o FuturoRua Dante Carraro, 68 – 05422-060 – São Paulo – SP

Sertãozinho das casas, indústrias, usina Nascia, crescia, surgia

Da terra, a cana se erguia.Everton Damião do Nascimento

Aparecida de Melo Quintiliano voltava a pé para o trabalho, depois do almoço, como faz há 13 anos. Ela é atendente de alunos na EMEF Profª. Elvira Arruda de Souza, no Jardim Alvorada, em Sertãozinho (SP), bairro em que vive desde menina. A proximidade do trabalho lhe permite almoçar em casa e depois voltar caminhando para a escola, sem pressa. Anos fazendo o mesmo trajeto, sempre no mesmo horário, permitiram a Aparecida conhecer os hábitos do bairro de gente sim-ples, localizado na periferia da cidade, onde está instalada uma usina de açúcar e álcool. Apesar de algumas pessoas do bairro trabalharem na usina, a proximidade dela nem sempre é bem vista. Em determinadas horas, um cheiro forte e desagradável toma conta do bairro. É o odor do melaço, ou “garapol”, como chamam, resíduo poluente da fermen-tação da cana. O Jardim Alvorada tem muitos problemas sociais e ainda sofre do estigma de ser um bairro “mal-cheiroso”.

Mas àquela hora após o almoço, antes de voltar aos afazeres, as pessoas costumavam se reunir nas calçadas, sentadas no chão ou em cadeiras trazidas de dentro, para prosear e ouvir notícias no radinho de pilha. Outras mulheres ainda fi cavam dentro de casa lavando a louça, com o rádio ligado. Na caminhada para o trabalho, Aparecida foi no-tando uma diferença em relação aos outros dias em que percorria aquelas mesmas ruas. O volume dos rádios estava bem mais alto que o de costume. Era possível ouvir no meio da rua o som que saía das casas, sem falar dos rádios nas calçadas. Conforme andava, percebia o sorriso das pessoas e, mais que isso, o tom familiar das vozes que saíam dos rádios. No ato identifi cou as falas da professora Adriana Alves, da diretora Maria Teresa Baleotte e do aluno semifi nalista Everton do Nascimento, autor do poema Surgem ao vento, sendo entrevistados. Era gente ali do Alvorada, premiada no Programa Escrevendo o Futuro.

Aparecida fi cou espantada e comovida. Correu à escola para contar o que tinha presenciado. Era mais um efeito da premiação que havia agi-tado toda a comunidade. Quando chegaram de São Paulo, Adriana e Everton foram recebidos com fogos de artifício e as duas rádios da cidade foram entrevistá-los. Agora, quando a entrevista estava no ar, o bairro parou, mobilizado para uma audição coletiva. O volume nas al-turas era para que toda a cidade soubesse que saíram dali, do Alvorada, a professora e o aluno premiados.

O bairro, seus moradores, a escola, seus alunos e professores sen-tiram-se representados. A professora Adriana arrisca explicar o que aconteceu naquele dia com os aparelhos de rádio a todo volume. Para ela, foi como se dissessem: “nós estamos aqui, existimos, também so-mos capazes”.

Vento do NorteVento do SulVento do LesteVento do Oeste

Da capelinha de sapé

Para uma igreja

De fazenda

Uma cidade...

Foi no que se transformouEsta bela terra de verdade.

O seu povo conquistouNo dia 5 de dezembro, se consolidou.

Num olhar infi nito

Que adentrou meu coração

Uma romântica paisagem

O despontar da plantação.

A cana-de-açúcar Para a vida adoçar

E com a produção de álcool

O mundo conquistar

Quantos sonhos , quanta luz!

Nesse semblante de paz

Encontrou minha visão

E trouxe esta inspiração!

Aqui está minha vida,

Nesta terra querida

Neste solo abençoado

Pelo céu iluminado...

Não sou poeta Sou apenas um menino

Que num olhar infi nito

Chega com o ventoE ouve a voz do pensamento.

Luiz Henrique Gurgel

IniciativaFundação Itaú Social

RealizaçãoCentro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura

e Ação Comunitária – Cenpec

CoordenaçãoSônia Madi

Texto e edição Luiz Henrique Gurgel (edição de texto e consultoria)

Maria Aparecida LaginestraRegina Andrade Clara

Leitura críticaAnna Helena Altenfelder

Maria Estela BergaminMarta Wolak Grosbaum

RevisãoSimone Zaccarias

Edição de ArteCriss de Paulo e Walter Mazzuchelli

IlustraçõesCriss de Paulo

EditoraçãoAGWM Produções Gráfi cas e Editoriais

ImpressãoMargraf Editora e Indústria Gráfi ca Ltda.

Equipe de ApoioDayana Ferré Correa, Edileuza Alves Santana,

Ivani Alencar, Luis Felipe T. S. Freire, Maria Antonieta Rizzotti Oliveira,

Maria Benedita de Barros, Maria Tereza A. Cardia, Marina Losasso, Patrícia Araujo Nunes,

Sofi a Mariutti, Tathyane Fernandes Tudda.

FotosPágina 2 – Sérgio Amaral

Páginas 14 e 15 - Marina Losasso

AgradecimentosAnna Verônica Mautner

Edu LoboChico Buarque de Holanda

José Paulo Paes (in memorian)Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva

Marina Colasanti

Tiragem40 mil exemplares

Contato com a redaçãoRua Dante Carraro, 68

05422-060 – São Paulo/ SPTelefone: 0800-7719310

E-mail: [email protected] www.escrevendofuturo.org.br

No mesmo ano em que atletas do mundo in-teiro disputarão provas esportivas em Pequim, estudantes brasileiros darão a largada para a primeira Olimpíada de Língua Portuguesa Escre-vendo o Futuro. O projeto é resultado da par-ceria entre o Ministério da Educação, a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, o Cenpec.

Nos últimos seis anos, milhões de estudan-tes e milhares de professores e escolas públi-cas tiveram a oportunidade de participar do Programa Escrevendo o Futuro e aprimorar o ensino de leitura e escrita. A Olimpíada marca uma nova etapa na história do Programa, am-pliando ainda mais sua atuação, uma vez que professores e estudantes da sétima e oitava série do ensino fundamental e do segundo e terceiro ano do ensino médio também poderão participar. A expectativa é atingir 80 mil esco-las e o expressivo número de duzentos e sete mil professores.

Por entender que educação é fruto de uma ação coletiva, de interesse e responsabilidade de toda a sociedade, a participação da comuni-dade é um dos pilares da olimpíada. O objetivo é envolver não apenas as escolas e as famílias dos estudantes, mas buscar compromisso com o poder público e entidades da sociedade civil de cada município. Por isso, o primeiro passo e condição necessária para que uma cidade e suas escolas públicas participem da Olimpíada é que o prefeito e os secretários de educação da rede municipal e estadual assinem o termo de adesão.

2008 é anode olimpíadas