extinção punibilidade delitos tributários
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Antonio Coêlho Soares Junior
REFLEXÕES SOBRE A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PARCELAMENTO E/OU PAGAMENTO DA DÍVIDA NOS
DELITOS FISCAIS
Antonio Coêlho Soares Junior1
RESUMO: O presente artigo busca estabelecer uma discussão sobre a diferença de tratamento dada à proteção do patrimônio público e do patrimônio privado pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro, criando manifesta desproporcionalidade, violadora de princípios constitucionais.
PALAVRAS-CHAVES: Extinção da punibilidade. Princípio da igualdade. Princípio da proporcionalidade. Direito Penal.
O direito de punir do Estado decorre do reconhecimento da prática
de uma conduta típica, ilícita e culpável.
Uma das hipóteses de perda do direito de punir do Estado, ou seja,
de extinção da punibilidade, tem sido o tratamento dado pela lei brasileira ao
pagamento do tributo nos crimes fiscais.
O art. 34 da Lei 9.249/95 preconiza que:
“Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n.º
8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n.º 4.729, de 14
de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento
do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes
do recebimento da denúncia”.
Hoje, determina-se a extinção da punibilidade igualmente para as
hipóteses em que ocorre o parcelamento do débito. De início, a extinção da
punibilidade para o caso de parcelamento surgiu no ano 2000, com a Lei nº
1 Promotor de Justiça do Estado do Maranhão. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão. [email protected]
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9.964 - REFIS. Em seguida, adveio a Lei nº 10.684/03 - PAES, em que
algumas alterações foram realizadas.
Sem dúvida alguma, a extinção da punibilidade para tais delitos é
questão afeta à Política Criminal:
“Busca-se a satisfação do débito tributário, ainda que para
tal tenha, o Estado, que abrir mão de punir aquele que
praticou a infração penal. Como diz JOSÉ ALVES PAULINO,
“(...) a opção mais recente foi a da extinção da punibilidade,
pondo em evidência que o interesse público está na
satisfação da dívida. Apenas tipificou o crime para intimidar o
contribuinte, impondo-lhe uma pena caso sonegasse. A
sanção penal é invocada pela norma tributária para
fortalecer a idéia de cumprir a obrigação fiscal, tão-somente.
A par disso, conclui-se que o interesse do Estado está em
que se efetue o pagamento do débito. A intenção do agente
de sonegar imposto pouco importa. Satisfazendo ele o
interesse do Estado, que é a quitação do tributo, a sua
conduta perde o valor”.2
Assim, é de se indagar acerca da função da incriminação de
infrações fiscais (meramente simbólica?!), que se concentram destacadamente
na arrecadação, afastando-se da Teoria do Bem Jurídico, que estabelece a
necessidade de proteção pelo Direito Penal de um bem jurídico relevante.
É de se destacar, a lamentável diferença de tratamento que é dada
a crimes de natureza semelhante, tais como o furto, o estelionato e a
apropriação indébita, que também são praticados sem violência ou grave
ameaça à pessoa, e não recebem a mesma atenção do sistema penal, pois a
clientela é outra.
Não há como deixar de reconhecer que, de fato, para efeito do
benefício da extinção da punibilidade, os crimes contra o patrimônio privado,
sem uso da violência ou grave ameaça e sem prejuízo material à vítima, são
iguais aos crimes contra a ordem tributária, econômica e as relações de
2 Apud GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice. Reflexões e anotações sobre os crimes tributários. In: Sanções penais tributárias. Coord. Hugo de Brito Machado. São Paulo: Dialética, 2005. p. 509-526
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consumo. Nesses casos, os agentes lesam o patrimônio de outrem visando ao
proveito próprio ou alheio, ocorrendo recomposição patrimonial.
O direito à propriedade é previsto constitucionalmente no título
direitos e garantias fundamentais e se revela inclusive no âmbito do Direito
Penal como bem jurídico tutelado. De outra parte, a ordem jurídico-
constitucional brasileira atribui idêntico valor aos bens patrimoniais públicos e
privados. Assim, a partir de uma interpretação conforme a constituição, a
legislação ordinária, ao estabelecer o mencionado benefício aos agentes que
praticam crimes contra a ordem tributária, não pretendeu desvalorizar o
patrimônio público, muito menos privilegiar determinados agentes pela sua
posição de classe.
Diante disso, o caminho da equidade sugere estender a solução do
mencionado art. 34 a todos os agentes em condição isonômica, para que o
princípio da igualdade não se faça letra morta na Magna Carta, permitindo-se
diferenciações arbitrárias que ferem o próprio conceito de Justiça.
Sobre o assunto, vale destacar o pensamento do magistrado
gaúcho Clademir MISSAGGIA, esposado no exercício de sua atividade
jurisdicional:
“Contra a tese da igualdade, poder-se-ia dizer que o
legislador com a edição da regra que usei como paradigma,
pretendeu, por razões de política legislativa momentânea (a
consideração, v. g., da crise fiscal do Estado oriunda das
grandes demandas decorrentes do Estado social) proteger
os interesses maiores da sociedade, designadamente a
reposição do patrimônio desviado com a sonegação e,
assim, atenuar a sobrecarga de governo e a
ingovernabilidade. Se os argumentos, porventura, ganham,
em parte, respaldo nos fatos, equivale a dizer, o legislador
está mais comprometido com o programa de governo e
cede, por pragmatismo, à realidade imediata (na melhor das
hipóteses) em detrimento do programa de Constituição, é
certo, por outro lado, e no sentido da assimilação da
hipótese, que a reposição do patrimônio privado interessa à
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paz social, fim precípuo da ordem jurídica, em detrimento da
apenação.
“A recuperação da coisa no furto e promoção da reposição
do patrimônio nos crimes de sonegação fiscal, v. g.,
dificilmente ocorrem espontaneamente. Na primeira
hipótese, temos, como regra, a apreensão da res contra a
vontade do agente (há, neste caso, involuntariedade) e, na
segunda hipótese, a recomposição patrimonial realiza-se,
como regra, após o constrangimento moral de o empresário
ser flagrado no crime de falsidade para o desvio do tributo
(há, neste caso, voluntariedade). As distinções, entretanto,
entre voluntariedade, espontaneidade e involuntariedade,
quando ocorridas, não tem a força que se pretende dar para
objetar a conclusão, permissa venia. Não se nega a
distinção, apenas afirma-se que não tem o poder de
desfigurar a igualdade. A norma não pretende valorar um
eventual arrependimento posterior visando a purificação das
almas para o paraíso do imaginário judaico-cristão. O telos
legislatoris é a recomposição patrimonial. Assim, a distinção
que acabo de referir, oportuna na exata compreensão da
regra do art. 16 do CP, não pode ser invocada aqui, pena de
infringência das regras básicas da hermenêutica”.3
Destarte, escapa à razão jurídica que se dê um tratamento
diferenciado para as mencionadas hipóteses de isenção de prejuízo
pratrimonial (público ou privado). Até porque, como bem sustenta MISSAGGIA,
o próprio princípio da legalidade, que nasceu para combater o poder ilimitado e
arbitrário do Estado moderno, em quaisquer de suas dimensões, não proíbe,
ao contrário, exige a aplicação do princípio da igualdade no Direito Penal,
desde que in bonam partem.
A questão que se impõe, prossegue o nobre juiz, é a de se saber
se o legislador, que tem a primazia na conformação da ordem jurídica, infringiu
ou não o princípio da igualdade de criação de direito igual, ao não estender o
3 Apud SOARES JUNIOR, Antonio Côelho. Alegações finais produzidas nos autos do processo nº 276/2000 – 3ª Vara Criminal da Comarca de Imperatriz-MA.
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benefício da extinção da punibilidade a todos os agentes que cometessem
crimes contra o patrimônio, sem violência ou grave ameaça, em caso de
recomposição patrimonial. E, de acordo com o aferido, ao não criar direito
igual, o legislador violou, indubitavelmente, o princípio da igualdade. E a única
forma de reparação razoável para integração do sistema jurídico é, por certo, a
extensão do benefício.
Com propriedade, Lênio Streck manifesta-se sobre o tema:
“[...] ante os avanços e retrocessos legislativos impõe-se a
releitura do artigo 16 do Código Penal. Com efeito, o
dispositivo que prevê – como causa de redução de penal – o
que se convencionou chamar de arrependimento posterior
revela incongruência com o sistema penal de proteção de
bens jurídicos. A partir da premissa de que o Direito Penal –
entendido como o mais rigoroso e contundente mecanismo
de controle social – só tem justificação e legitimidade no
moderno Estado de Direito se dirigido à proteção de bens
jurídicos que não sejam, potencial e nem suficientemente,
protegidos por outros ramos jurídicos contra agressões
relevantes e intoleráveis socialmente, o critério para a
definição de sanções deve, necessariamente, condizer com
o grau de importância do bem jurídico protegido e a com a
gravidade social da afronta. Delineados tais pressupostos,
inconcebível subsistirem e articularem-se, em um mesmo
sistema – quando da análise de crimes de mesma natureza
– hipóteses de extinção da punibilidade e hipóteses de
simples diminuição da pena para o mesmo instituto do
arrependimento posterior. A previsão de solução legal
distinta para situações fáticas semelhantes consiste em
medida atentatória ao constitucional princípio da
proporcionalidade”.4
4 Parecer emitido pelo Ministério Público nos autos da Apelação Criminal nº 70.018.891.119 – 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=50&Itemid=29. Acesso em 27 de fevereiro de 2009.
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Prossegue Lênio Streck demonstrando a violação do princípio da
proporcionalidade, sob os seguintes argumentos:
“[...] o privilégio da extinção da punibilidade concedido a
condutas manifestamente mais graves e danosas não se
estende a crimes de notória menor repercussão e relevância
sociais. Trata-se de inconcebível disparidade de tratamento
de crimes patrimoniais de índole individual em detrimento de
crimes que atentam contra a coletividade como um todo
(delitos transindividuais) tais como sonegação de tributos e
de contribuições previdenciárias [...]
Há que se indagar: se o indivíduo que sonegou milhões de
reais não responde pelo crime de sonegação caso pague o
valor sonegado antes do recebimento da denúncia, por que
não dispensar o mesmo tratamento a alguém que comete
um delito contra o patrimônio, sem violência, na hipótese da
vítima não sofrer prejuízo (por devolução ou restituição dos
bens/valores)?”.5
Vale mencionar, por fim, que a função simbólica dos crimes
tributários salta aos olhos quando se verifica o critério utilizado na aplicação do
princípio da insignificância, consistente no desinteresse do Estado em
arrecadar certos valores, conforme vem sendo estabelecido nas seguidas
alterações do art. 1º da Lei nº 9.469/97.
Portanto, a questão não se reduz a ser ou não favorável à extinção
da punibilidade pelo parcelamento e/ou pagamento da dívida nos delitos
tributários, mas ser ou não favorável a uma estrutura penal preocupada
exclusivamente com a cobrança de tributos, esquecendo-se de princípios
básicos que constituem a sua razão de ser e preconizando tratamento
diferenciado para condutas semelhantes.
REFERÊNCIAS
5 Idem.
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01. GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice. Reflexões e anotações sobre os
crimes tributários. In Sanções penais tributárias. Coord. Hugo de Brito
Machado. São Paulo: Dialética, 2005 (p. 509-526).
02. STRECK, Lênio. Parecer emitido pelo Ministério Público do Estado do Rio
Grande do Sul nos autos da Apelação Criminal nº 70.018.891.119 – 5ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?
option=com_docman&task=doc_view&gid=50&Itemid=29. Último acesso em:
27 de fevereiro de 2009.
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