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EXPRESSÕES DA BRASILIDADE NA PINTURA DE CANDIDO PORTINARI: A VALORIZAÇÃO DO TRABALHADOR PRETO E MESTIÇO (1930-1945) Ana Carolina Machado Arêdes Doutoranda em História UFES/Bolsista CAPES [email protected] RESUMO: Este trabalho pretende tratar das possíveis interpretações da brasilidade expressas na pintura de Candido Portinari nas décadas de 1930 e 1940. Com uma obra caracterizada pelo teor nacionalista e social, o pintor aparecia naquele momento como o artista ideal à corrente modernista e ao projeto ideológico do Estado Novo. A temática predominante em suas produções neste período são as que exaltam os trabalhadores pretos e mestiços, representados com corpos monumentais e escultóricos que parecem extrapolar os limites do quadro a óleo. Os pés e as mãos destas figuras são agigantados e poderosos, fincados ao solo, em uma alusão à íntima conexão destes lavradores com a terra por eles cultivada. Em um momento em que muitos ainda defendiam políticas eugenistas e atribuíam a causa dos males e do atraso do país à mestiçagem racial, Portinari representava o trabalhador preto e o mestiço como os representantes do verdadeiro e mais genuíno caráter brasileiro e nesta característica reside a grande contribuição social da sua produção artística. Como fontes documentais desta pesquisa são utilizadas as correspondências pessoais e as obras de arte do pintor. PALAVRAS-CHAVE: Portinari, Arte, Brasilidade. O presente trabalho é um desdobramento da pesquisa de doutoramento que objetiva entender a inserção social e artística do pintor Candido Portinari. Este artista obteve reconhecimento e destaque no cenário nacional, especialmente nas décadas de 1930 e 1940, período em que o Brasil era governado de maneira autoritária pelo Presidente Getúlio Vargas. Portinari nasceu em 1903, em Brodósqui, uma pequena cidade do interior paulista que surgiu às margens de uma ferrovia e caracterizava-se pelas extensas plantações de café em sua terra roxa. O artista foi o segundo dos doze filhos de um casal de imigrantes italianos que trabalhavam nos cafezais daquele lugarejo. Sua infância pobre lhe permitiu que estudasse somente até o terceiro ano primário. Este período de sua vida lhe marcou tão profundamente que se refletiu em muitas de suas produções, nas quais o pintor notadamente expressou memórias afetivas relacionadas aos seus tempos de criança. Neste estudo, buscamos entender como as pinturas de Portinari foram reconhecidas pelo movimento modernista brasileiro e pelo Estado, procurando demonstrar como foi a trajetória artística e o posicionamento social do pintor neste

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EXPRESSÕES DA BRASILIDADE NA PINTURA DE CANDIDO PORTINARI:

A VALORIZAÇÃO DO TRABALHADOR PRETO E MESTIÇO (1930-1945)

Ana Carolina Machado Arêdes

Doutoranda em História – UFES/Bolsista CAPES

[email protected]

RESUMO: Este trabalho pretende tratar das possíveis interpretações da brasilidade

expressas na pintura de Candido Portinari nas décadas de 1930 e 1940. Com uma obra

caracterizada pelo teor nacionalista e social, o pintor aparecia naquele momento como o

artista ideal à corrente modernista e ao projeto ideológico do Estado Novo. A temática

predominante em suas produções neste período são as que exaltam os trabalhadores pretos

e mestiços, representados com corpos monumentais e escultóricos que parecem

extrapolar os limites do quadro a óleo. Os pés e as mãos destas figuras são agigantados e

poderosos, fincados ao solo, em uma alusão à íntima conexão destes lavradores com a

terra por eles cultivada. Em um momento em que muitos ainda defendiam políticas

eugenistas e atribuíam a causa dos males e do atraso do país à mestiçagem racial, Portinari

representava o trabalhador preto e o mestiço como os representantes do verdadeiro e mais

genuíno caráter brasileiro e nesta característica reside a grande contribuição social da sua

produção artística. Como fontes documentais desta pesquisa são utilizadas as

correspondências pessoais e as obras de arte do pintor.

PALAVRAS-CHAVE: Portinari, Arte, Brasilidade.

O presente trabalho é um desdobramento da pesquisa de doutoramento que

objetiva entender a inserção social e artística do pintor Candido Portinari. Este artista

obteve reconhecimento e destaque no cenário nacional, especialmente nas décadas de

1930 e 1940, período em que o Brasil era governado de maneira autoritária pelo

Presidente Getúlio Vargas.

Portinari nasceu em 1903, em Brodósqui, uma pequena cidade do interior paulista

que surgiu às margens de uma ferrovia e caracterizava-se pelas extensas plantações de

café em sua terra roxa. O artista foi o segundo dos doze filhos de um casal de imigrantes

italianos que trabalhavam nos cafezais daquele lugarejo. Sua infância pobre lhe permitiu

que estudasse somente até o terceiro ano primário. Este período de sua vida lhe marcou

tão profundamente que se refletiu em muitas de suas produções, nas quais o pintor

notadamente expressou memórias afetivas relacionadas aos seus tempos de criança.

Neste estudo, buscamos entender como as pinturas de Portinari foram

reconhecidas pelo movimento modernista brasileiro e pelo Estado, procurando

demonstrar como foi a trajetória artística e o posicionamento social do pintor neste

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contexto. As fontes documentais deste trabalho são as correspondências pessoais do

pintor e suas obras pictóricas.

No que fiz respeito às cartas, buscamos entendê-las como um espaço de

“sociabilidade intelectual”, seguindo a esteira de pensamento do historiador francês

Michel Trebitsch (1992). As missivas trocadas entre intelectuais e artistas neste período

são capazes de nos revelar os bastidores do agitado e concorrido meio cultural, e, eram

utilizadas como uma maneira de construir laços de amizade e alçar posições sociais mais

significativas. Através destas redes epistolares, a elite letrada conseguia trocar ideias e

favores, nutrindo importantes vínculos. Dessa forma, estas epistolas são consideradas

como meios de sociabilidade.

As pinturas, por sua vez, são aqui interpretadas como fontes. Muitos estudos ainda

consideram este tipo de imagem como meras ilustrações de um acontecimento que

desejam relatar. Contudo, as obras de arte constituem significativas fontes documentais

visto que, se analisadas seguindo os rigores metodológicos, são capazes de nos revelar

muitos aspectos acerca do contexto e das pretensões do artista que a produziu. O

historiador da arte Michel Baxandall (2000) propõe como método de análise a

aproximação da obra da conjuntura em que ela foi produzida, na tentativa de compreender

quais foram as circunstâncias que motivaram a sua confecção e as nuances envolvidas no

processo criativo do artista. Desse modo, podemos fazer uma inferência das intenções

que o pintor buscou expressar em determinada composição.

Portinari foi um artista de formação acadêmica que obteve reconhecimento na

década de 1930, sendo considerado como um pintor moderno capaz de expressar a

brasilidade em suas obras. Sendo assim, foi notado pelo movimento modernista brasileiro

e eleito como um dos seus maiores representantes nesta época. Além disso, suas

composições foram reconhecidas pelo Estado, o que lhe rendeu muitas encomendas e uma

intensa participação nos quadros de um governo autoritário e controverso.

O Estado gerido por Vargas reuniu em seu entorno -, seja nas fileiras burocráticas,

ocupando cargos públicos, seja na confecção de trabalhos sob a encomenda do poder

oficial, - inúmeros artistas e intelectuais, das mais variadas orientações ideológicas.

Portinari foi um dos pintores do período que mais recebeu convites para desenvolver

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obras sob o mecenato estatal, uma vez que sua pintura era notada por conter expressões

genuínas de brasilidade, promovendo, portanto, a exaltação da nacionalidade.

Nesta época, o movimento modernista brasileiro alcançava maior notoriedade e

espaço de atuação artística e cultural no Brasil, uma que estavam em voga as discussões

acerca da necessidade de renovação cultural. Intelectuais e artistas adeptos desta corrente

defendiam a valorização das raízes nacionais em suas produções. Desta forma,

acreditavam que poderiam contribuir para despertar o sentimento de pertencimento à

nação, auxiliando o país em seu processo de fortalecimento e unificação rumo ao

progresso. Esta ideia era bastante difundida neste período, tanto pela elite letrada, que se

via como a responsável por guiar as massas neste feito, quanto pelo governo, que

vislumbrava nesta conjuntura uma oportunidade de reforçar a sua ideologia e o seu projeto

de poder.

A noção de inauguração de uma “nova” fase, com um “novo” governo foi muito

reforçada neste momento, assim como a questão de que era preciso partir em busca da

definição de uma identidade nacional. Desse modo, construiu-se um mito na

historiografia que reforça este sentido de inauguração e renovação, muitas vezes

reproduzindo os discursos que foram proferidos e escritos naquele contexto, sem

problematizá-los.

Nesta pesquisa objetivamos compreender como Portinari participou desta

conjuntura, uma vez que suas pinturas se destacaram por conter traços de brasilidade e

pelo forte apelo social. Com formação acadêmica, o artista nunca se desprendeu

completamente do tradicional em pintura, contudo, buscou imprimir em suas obras muito

mais do que um estilo, mas uma imagística própria. (FABRIS, 1990) Esta imagística era

permeada por temáticas que valorizavam e exaltavam a nacionalidade. Neste sentido, o

pintor foi considerado um artista moderno necessário àquele momento, o que lhe garantiu

o reconhecimento por muitos adeptos do movimento modernista e lhe gerou inúmeras

encomendas por parte do governo varguista.

Vale ressaltar que as primeiras expressões do modernismo ocorreram ainda na

década de 1910, com as exposições individuas de pintura de Lasar Segall (1913) e Anita

Malfatti (1917), ambas em São Paulo. A exposição de Malfatti enfrentou muita resistência

e críticas acirradas dos setores mais conservadores da sociedade, com destaque para a

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crítica “Paranoia ou Mistificação”, escrita por Monteiro Lobato, que neste período

também atuava como crítico de arte.

Na década seguinte, mais precisamente no ano de 1922, um grupo de intelectuais

e artistas organizou a Semana de Arte Moderna de São Paulo, que tinha como objetivo

promover a estética modernista.

A Semana de 1922 foi incentivada e patrocinada por setores da elite econômica

paulistana, que objetivavam chamar a atenção para a pujança e o desenvolvimento

cultural do estado em relação à capital federal, o Rio de Janeiro. Contudo, boa parte da

historiografia contesta o caráter inovador deste evento, visto que foi organizado e contou

com a participação de uma classe privilegiada intelectualmente e financeiramente, que

não teria apresentado produções culturais que contribuíram efetivamente para a

atualização do código estético. Entretanto, a Semana de Arte Moderna certamente

colaborou para fomentar as discussões em torno da necessidade de renovação artística e

cultural.

Enquanto ocorria a Semana de Arte de 1922, Candido Portinari estava matriculado

como aluno livre na Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro - instituição que

ministrava o ensino formal de arquitetura e artes plásticas e era reconhecida pelo

tradicionalismo acadêmico. A modalidade de aluno livre era ofertada a alunos que não

possuíam a formação educacional necessária para ingressar no ensino superior. Os

exames de admissão eram muito rigorosos e exigiam um conhecimento plástico

satisfatório dos candidatos. Nesta Escola, os gêneros de predileção eram os retratos e as

pinturas de paisagem e o ensino era baseado nas técnicas da pintura clássica, portanto,

envolto em questões de proporção e de estruturação geométrica dos quadros.

Portinari, de família humilde, teve dificuldades de se manter como estudante de

pintura na capital federal. O jovem saiu de Brodósqui rumo ao Rio de Janeiro em 1919 e

nos primeiros anos sobreviveu como pintor de letreiros e monogramas (BALBI, 2003,

p.23). Matriculado na Escola Nacional de Belas Artes, passou a conviver com importantes

nomes da elite, o que lhe possibilitou um maior entrosamento social e a oportunidade de

realizar muitos retratos encomendados por estas personalidades. A confecção dos retratos

desta elite lhe garantiria não somente o sustento pessoal, mas a chance de praticar um dos

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gêneros de predileção da instituição em que estudava e, dessa forma, passar a disputar

prêmios nos concorridos Salões de Arte promovidos pela Escola.

Sergio Miceli (1996) analisou a produção retratística de Portinari neste período.

Para este sociólogo, os retratos documentaram e estimularam a necessidade das elites de

investir em representações artísticas com o intuito de construir uma determinada figura

social. Portinari, por sua vez, canalizava esta demanda e a transmitia no feitio destas

“imagens negociadas”. Esta atividade contribuiu sobremaneira para o reconhecimento do

pintor no cenário artístico carioca naquele momento. Matriculado na Escola Nacional de

Belas Artes, aperfeiçoando as técnicas de sua pintura e familiarizando-se com os

instrumentos do ofício, com as linguagens e modismos da época, o artista estava, portanto,

disputando um lugar entre os alunos em condições de receber prêmios.

No Salão de 1928, Portinari alcançou o seu objetivo e conquistou a maior

premiação oferecida a um aluno, a de viagem estudos a Europa, com o retrato do poeta e

amigo Olegário Mariano (1928). Olegário Mariano foi representado vestindo o fardão da

Academia Brasileira de Letras, para a qual havia sido nomeado. Além disso, era irmão de

José Mariano Filho, médico, mecenas e historiador de arte que havia sido diretor da

Escola Nacional de Belas Artes. Portinari havia, portanto, representado uma figura

institucional capaz de unir dois polos do oficialismo daquela época (MICELI, 1996).

O pintor escolheu a França como destino, mas também visitou a Itália, a Espanha

e a Inglaterra. A viagem à Europa possibilitou ao jovem artista o contato com a arte do

passado e com o que foi produzido pelos movimentos de vanguarda, em um momento em

que já as discussões em torno do “retorno da ordem” já agitavam os debates artísticos e

culturais naquele continente. A defesa do “retorno à ordem” pregava a necessidade de

romper com o radicalismo dos movimentos de vanguarda e de recuperar a tradição realista

e os valores culturais nacionais nas produções artísticas.

Tadeu Chiarelli (2007) sustenta que é válido pensarmos na estética modernista

brasileira nos termos do “retorno à ordem”, visto que certos movimentos das vanguardas

europeias, tais como o cubismo, não tiveram representantes no Brasil. Para este autor, o

literato Mário de Andrade, crítico de arte e expoente do movimento modernista brasileiro,

possuía um olhar artístico muito mais voltado ao preceitos apregoados pela corrente do

“retorno à ordem”. Dessa maneira, também deixaríamos de encarar a produção artística

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nacional, com obras de pintores como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari, em

um descompasso cronológico em relação a Europa. Se considerarmos esses artistas

alinhados com a questão do “retorno à ordem”, podemos adequar suas obras a um

contexto internacional muito mais amplo e em uma maior sintonia temporal.

O modernismo de Portinari, “veio depois”. (CHIARELLI, 2012) Enquanto

estourava o movimento moderno em São Paulo, o pintor estava ligado à tradicional e

acadêmica Escola Nacional de Belas Artes. Não participou do primeiro momento

modernista, mas do segundo – do Salão de 1931. Além disso, quando foi estudar na

Europa, os movimentos de vanguarda já eram passado e discutia-se o “retorno à ordem”.

Dessa forma, a trajetória do artista foi moldada em torno dessas circunstâncias.

Na Europa, Portinari contrariou o hábito dos demais bolsistas da Escola Nacional

de Belas Artes, pois apresentou uma baixíssima produção artística e não se matriculou

em nenhuma academia artística parisiense. Esteve às vias de perder o incentivo financeiro

que lhe foi concedido. No entanto, o jovem pintor justificava esta falta, afirmando que

estava no afã de visitar museus e galerias, desfrutando da possibilidade de conhecer de

perto as obras dos grandes mestres do passado e de seu tempo, limitando-se a observá-

los.

Naquele continente, o pintor passou a repensar a sua trajetória artística e a sentir

a necessidade de transformar a temática e a estética de sua arte. Mostrou-se desejoso de

pintar a gente da sua cidadezinha natal, as pessoas simples e trabalhadoras de Brodósqui.

Além disso, relatou em cartas o desconforto que sentia por ter moldado o seu estilo de

acordo com o que lhe era exigido na Escola Nacional de Belas Artes, tendo feito

concessões que lhe desviaram do caminho que ele pretendia trilhar. Em carta enviada a

Rosalita Mendes, Portinari expressou estas questões:

[...] Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodósqui

como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada... Vou pintar o

Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor.

Quando comecei a pintar senti que devia fazer a minha gente e cheguei

a fazer o “baile na roça”. Depois desviaram-me e comecei a tatear e a

pintar tudo de cor – fiz um montão de retratos. Eu nunca tinha vontade

de trabalhar e toda gente me chamava preguiçoso. Eu não tinha vontade

de pintar porque me botaram dentro de uma sala cheia de tapetes, com

gente vestida à última moda... [...] Uso sapatos de verniz, calça larga e

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colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como o

Palaninho e não compreendo Wilde. [...]1

Nesta missiva, Portinari expõe as suas pretensões artísticas. O pintor afirmou que

em Paris, pensou em pintar o Palaninho, um típico cidadão de Brodósqui, sujeito simples,

mal vestido, figura capaz de expressar o jeito e os hábitos dos demais cidadãos de

Brodósqui. Sendo assim, o artista demonstrou seu desejo de pintar temáticas que

aludissem a sua terra natal.

Quando retornou ao Brasil, em 1931, logo participou do XXXVIII Salão Nacional

de Belas Artes, que ficou conhecido como Salão de 1931, Salão Lúcio Costa ou Salão

Revolucionário. O arquiteto Lúcio Costa, que havia sido nomeado diretor da Escola

Nacional de Belas Artes, decidiu organizar uma edição do Salão sem júri de seleção dos

trabalhos a serem expostos. Dessa forma, foram apresentadas obras das mais variadas

orientações artísticas. Todavia, em termos de inovação estética, este Salão não revelou

muitas novidades. Portinari, por exemplo, expôs retratos, gênero com o qual a instituição

estava habituada.

Foi nesta ocasião que o pintor conheceu Mário de Andrade. Um dos quadros

apresentados por Portinari - O Violinista (1931), que era um retrato do músico Oscar

Borgerth, chamou a atenção do literato modernista que pediu a Manuel Bandeira para ser

apresentado ao artista. A partir deste encontro surgiu uma amizade sincera e duradoura

que marcou profundamente a vida dos dois. Mário de Andrade foi um dos missivistas

mais assíduos do pintor. Da relação entre o artista e o literato, ambos colhiam benefícios

e obrigações. Portinari oferecia e negociava seus quadros para a aquisição do amigo, ao

passo que Mário contribuía para sua carreira o aconselhando e escrevendo muitas críticas

positivas sobre ele na imprensa.

Vale ressaltar que nesta época, os críticos de arte desempenhavam um papel

fundamental para a projeção e divulgação de um artista. As críticas veiculadas na

imprensa eram um termômetro sobre o que valia a pena ou não ser adquirido em arte.

1 Portinari tentou concorrer ao Salão de Belas Artes de 1924 com o quadro Baile na Roça (1924), uma

composição que retrata um baile de camponeses, provavelmente em Brodósqui. Contudo, a obra foi

recusada. A Escola Nacional de Belas Artes tinha predileção por pinturas de paisagens e retratos, desse

modo, o artista moldou-se ao gosto da instituição a fim de garantir o prêmio de viagem à Europa. Carta de

Candido Portinari a Rosalita Mendes, de 12 de julho de 1930. Paris, FRA; Rio de Janeiro, RJ.

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Sendo assim, estes profissionais poderiam alavancar ou arruinar a carreira de um pintor.

Mário de Andrade, influente crítico e intelectual modernista, bem relacionado e

respeitado socialmente, foi uma figura muito importante na consagração de Portinari

como artista no cenário nacional.

Annateresa Fabris (1995) analisou as correspondências trocadas entre Mário e

Portinari. Para esta historiadora, Mário de Andrade ostentava um imenso orgulho por ter

contribuído para impulsionar a carreira do artista. Portinari era para o literato, um pintor

ideal, representante do que ele acreditava e defendia ser necessário em arte. Com uma

formação rigorosamente acadêmica, o artista apresentava uma produção estética com

traços modernistas mais realistas e conservadores, que não incorporava os elementos mais

radicais das vanguardas europeias. Além disso, a temática das obras de Portinari, com

marcante invocação nacional, agradava ao literato e contribuía para reforçar o projeto

cultural e artístico que ele desejava ver consolidado no Brasil.

No início da década de 1930, Portinari buscou desenvolver uma temática própria,

muito mais do que procurou um estilo estético, aventurando-se em experimentações

artísticas e testando materiais e técnicas que lhe satisfizessem enquanto pintor. Neste

período surgiram composições que faziam uma clara alusão a sua terra natal, tais como

Circo (1933) e Jogo de Futebol em Brodósqui (1933). Nestas pinturas a superfície

marrom dominante salta aos olhos do observador. Para o crítico Mário Pedrosa (1981),

a cor marrom faz referência aos cafezais de terra roxa da pequena cidadezinha paulista.

Nestas obras, o teor social não está presente, visto que elas expressam muito mais um

apelo afetivo e de memória.

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Figura 1: Candido Portinari, Circo, 1933.

Figura 2: Candido Portinari, Jogo de Futebol em Brodósqui, 1933.

Pedrosa (1981) definiu as pinturas deste período como pertencentes à fase marrom

ou brodósquiana. As memórias em relação à infância em Brodósqui permearam toda a

trajetória artística de Portinari e continuaram a servir de temática para muitas outras

composições.

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Todavia, a imagística da obra portinariana mais marcante deste período está

relacionada à representação do trabalhador preto e mestiço. Nas composições Lavrador

de Café (1934) e Mestiço (1934), Portinari agigantou a figura dos trabalhadores

representados e a sensação é de que eles quase extrapolam os limites do quadro a óleo. O

fundo destas composições possui um aspecto mais chapado, o que rompe com a

hierarquização conferida pela perspectiva minunciosamente explorada pela pintura

clássica.

Figura 3: Candido Portinari, Lavrador de Café, 1934.

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Figura 4: Candido Portinari, Mestiço, 1934.

O preto e o mestiço são pintados como seres monumentais, com mãos e pés

disformes e poderosos, tendo as unhas enegrecidas pela lida no campo. Para Portinari,

estes trabalhadores seriam os verdadeiros responsáveis pelo desenvolvimento da nação e

mereciam ser exaltados.

A temática social transborda nestas telas, tendo em vista que nesta época ainda

eram discutidas certas políticas eugenistas, que pregavam o processo de

embranquecimento gradual da população através do estímulo à imigração de europeus.

Enquanto muitos artistas e intelectuais atribuíam a causa do atraso e das mazelas do país

à mestiçagem racial, Portinari a tratava como o traço definidor do verdadeiro caráter

nacional.

Em 1935, com a tela Café (1935), Portinari conquistou uma medalha de honra no

Instituto Carnegie, nos Estados Unidos, obtendo imenso destaque nacional e

internacional. Esta pintura retrata uma colheita de café realizada por trabalhadores pretos,

descalços, cuja cor dos corpos se confunde com a cor da terra do cafezal, o que sugere

uma íntima conexão entre este homem e a terra por ele cultivada. Estes lavradores pretos

foram representados vestindo roupas brancas, feitas de panos de saco, e suas feições não

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foram individualizadas. Estão de cabeça baixa ou com os rostos cobertos por chapéus ou

pelas sacas de café que carregam, o que demonstra a denúncia de que estes pretos e

mestiços eram vistos como uma massa uniforme e não valorizados como sujeitos.

Figura 5: Candido Portinari, Café, 1935.

A partir do sucesso desta tela, o pintor foi convidado pelo Ministro Gustavo

Capanema, a desenvolver inúmeros trabalhos sob a encomenda da oficialidade, dentre

estes, destacam-se os murais dos ciclos econômicos, pintados em afresco para a decoração

das paredes do novo edifício sede do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio

Capanema. Nesta composição, Portinari rompeu com a interpretação positivista da

história, que valoriza os grandes homens e os grandes acontecimentos e, mais uma vez,

enalteceu o trabalhador, especialmente o trabalhador preto, como grande responsável pelo

progresso e desenvolvimento nacional.

O tema escolhido para o murais do Ministério da Educação e Saúde foi

determinado por Capanema, que demonstrou a vontade de que Portinari se baseasse em

uma palestra ministrada pelo intelectual Afonso Arinos no Uruguai. Arinos teria proposto

pensarmos a História do Brasil seguindo uma perspectiva econômica, na qual sugeriu

como ciclos predominantes o pau-brasil, o açúcar, o gado, a mineração, o café e a

indústria. E, como ciclos ancilares, o cacau, a borracha, o mate, o algodão, a carnaúba e

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o fumo. Esta interpretação histórica chamou a atenção do Ministro Capanema, que no

momento da execução dos citados murais, pediu a Arinos que recomendasse Portinari

como estes deveriam ser confeccionados.

Nestes murais Portinari abusou do gigantismo dos corpos das figuras

representadas, contudo, adotou um caráter mais realista para a composição, sem explorar

a deformidade dos pés e das mãos dos trabalhadores. Além dos pretos e mestiços, os

índios também aparecem nestas obras sendo enaltecidos enquanto raça formadora e

trabalhadora da nação.

Vale ressaltar que a política ideológica do Estado Novo adotava um discurso que

incentivava o trabalho. O governo autoritário afirmava que estava empreendendo uma

democracia social na qual ser trabalhador era ser cidadão (GOMES, 1994). Neste

contexto, as obras de Portinari que exploravam a temática do trabalho encaixavam-se

neste propósito vislumbrado pelo poder oficial. Sendo assim, o pintor foi um dos que mais

recebeu encomendas da burocracia na época.

Os trabalhadores pretos e mestiços deste período demonstram o engajamento

social do pintor e a necessidade que ele sentia de expressar em suas composições a

valorização desta mão-de-obra no Brasil. Mesmo ligado ao mecenato estatal, o artista

buscava denunciar através da sua pintura que mesmo com o fim da escravidão, ainda eram

os pretos e mestiços os trabalhadores explorados e subjugados pela elite branca.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Coleção Paulicéia.

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Paulo: Cia das Letras, 2000.

CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza: a crítica de arte de Mário de Andrade.

Florianópolis/SC: Letras Contemporâneas, 2007.

_________________. O Modernismo que veio depois. Arte no Brasil – primeira metade

do século XX. São Paulo: Alameda, 2012.

FABRIS, Annateresa. (organização, introdução e notas) Portinari, amico mio. Cartas de

Mário de Andrade a Candido Portinari. Campinas: Mercado das Letras – Autores

Associados/Projeto Portinari, 1995. (Coleção Arte: Ensaios e Documentos).

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Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947). Les Cahiers de l’IHTP, nº20, mars 1992.

Referência das Imagens:

Figura 1: Candido Portinari, Circo, 1933. Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 60 x 73

cm. Coleção Particular. Brodósqui, São Paulo, Brasil. Imagem cedido pelo Projeto

Portinari.

Figura 2: Candido Portinari, Jogo de Futebol em Brodósqui, 1933. Pintura a óleo sobre

tela. Dimensões: 49.5 x 124 cm. Coleção: Banco Bradesco. Brodósqui, São Paulo, Brasil.

Imagem cedida pelo Projeto Portinari.

Figura 3: Candido Portinari, Lavrador de Café, 1934. Pintura a óleo sobre tela.

Dimensões: 100 x 81 cm. Coleção: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand,

MASP. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Imagem cedida pelo Projeto Portinari.

Figura 4: Candido Portinari, Mestiço, 1934. Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 81 x

65.5 cm. Coleção: Pinacoteca do Estado de São Paulo. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

Brasil. Imagem cedida pelo Projeto Portinari.

Figura 5: Candido Portinari, Café, 1935. Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 130 x

195 cm. Coleção: Museu Nacional de Belas Artes, MnBA. Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, Brasil. Imagem cedida pelo Projeto Portinari.