biopolítica e produção da brasilidade - franciscobarreto_a_dor
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Artigo sobre biopolítica e brasilidade.TRANSCRIPT
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36 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
GT 24 O PLURALISMO NA TEORIA SOCIAL
CONTEMPORNEA
A DOR E A DELCIA DE SER O QUE : biopoltica e
reconhecimento como dispositivos para produo da
brasilidade
Francisco S Barreto
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Resumo: Este trabalho consiste em verso resumida de minha tese de doutorado,
recentemente concluda, que tem como objeto central o estudo da brasilidade como
dispositivo disciplinar a partir da lgica do pertencimento nacional. Mais
especificamente, destacamos parte de suas consideraes finais, que foram dedicadas ao
estudo da relao entre o reconhecimento como projeto poltico para consolidao do
nacional e a biopoltica enquanto mais bem acabado empreendimento para traduo de
governos de polcia ainda em dias contemporneos. Procuramos, ao longo desta verso
reduzida, destacar os pontos nodais da argumentao desenvolvida, que teriam como
ponto de partida o estudo do reconhecimento, empreendimento ao centro dos processos
de integrao ao nacional, de assimilao do diferente, como sofisticado dispositivo
biopoltico para aquilo que poderamos chamar de pertencimento perifrico. Construmos
essa verso a partir de duas etapas fundamentais, as quais seriam (a) a relao entre
tradio e biopoltica e (b) a emergncia do biopoltico no instrumento do
reconhecimento.
Palavras-chave: Brasilidade nao; polticas de reconhecimento tradio;
biolpoltica.
1. Narrar a nao
Los orgenes de las naciones, como los de las narraciones, se
pierden en los mitos del tiempo, y recin alcanzan su horizonte,
en el ojo de la mente. Esta imagen de la nacin o de la narracin podra parecer romntica en extremo y metafrica por dems, pero es precisamente de esas tradiciones del pensamiento
poltico y el lenguaje literario de donde surge la idea de nacin
como una idea histrica poderosa en Occidente. Una
representacin cuya compulsin cultural reside en la unidad
imposible de la nacin como fuerza simblica1 (BHABHA, 2010,
p.11).
A nao, sem dificuldades, compreendida por cada indivduo que nela est inserido
como parte de sua experincia concreta no mundo. Em outras palavras, a vida do (e no)
pertencimento nacional , em uma primeira instncia, aquela que se desenrola a partir dos
1 As origens das naes, como as das narraes, se perdem nos mitos do tempo, e se aproximam do seu
horizonte, no olho da mente. Esta imagem da nao ou da narrao poderia parecer romntica ao extremo ou metafrica por demais, mas precisamente dessas tradies do pensamento poltico e da
linguagem literria que surge a ideia de nao como uma ideia histrica poderosa no Ocidente. Uma
representao, cuja compulso cultural reside na unidade impossvel da nao como fora simblica (Traduo livre do autor).
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eventos cotidianos, cuja repetio naturaliza uma poderosa estrutura simblico-normativa
como dispositivo regular para repetio ordinria das milhares de rotinas individuais. Em
uma segunda instncia, por sua vez, recorremos ao universo da nao para consolidar e
internalizar smbolos, imagens, costumes que traduzam como normal, rotineiro, aquilo
que realizamos ao longo de nossas vidas, trajetrias orientadas por um conjunto
aparentemente sem fim de faltas, carncias: a felicidade, a riqueza, a sade, a
tranquilidade, a paz etc. Todas essas expectativas devem funcionar como projetos
individuais, no coincidentemente, contudo, repetidos exausto por grande maioria da
populao que se define como tal a partir da insgnia da brasilidade.
H duas grandes dificuldades iniciais que envolvem a pretenso da compreenso do
pertencimento nacional como parte estruturante da vida comum. A primeira deve dizer
respeito enorme abstrao necessria para pensar como efetivamente existente uma
experincia nacional, devidamente conectada ou mais que isso ao dia concretamente
vivido pelos indivduos. A segunda dificuldade, por sua vez, surge quando a transposio
da nao enquanto experincia concreta, aos elementos simblicos que a consolidam,
cumpre a fundamental agenda de produo do nacional como universal. De um lado,
portanto, investe-se alto na ideia de um fazer o dia intimamente ligado a um
pertencimento nacional que no pode, aprioristicamente, ser muito mais que uma
projeo, uma abstrao. De outro lado, as tarefas de ordem e repetio dirias
respondem, ainda que se constituam em experincias concretas, enquanto narrativas,
produo do nacional a partir de seus smbolos, seus padres, costumes, hbitos etc.
A nao, dessa maneira, e, no caso brasileiro, a brasilidade como dispositivo do
pertencimento nacional, est erguida sobre dois pilares fundamentais, os quais seriam: (a)
a nao como objeto dirio do uso comum vida cotidiana, rotinas, trabalhos,
festividades etc. e (b) o pertencimento nacional como a narrativa que refora, enquanto
imaginrio, os ordenamentos e classificaes que produzem o dia-a-dia smbolos,
imaterialidade da experincia da brasilidade.
Assim, vive-se, corriqueiramente, a dificuldade permanente de experimentar como rotina
uma estrutura para significao do mundo que se d, de forma robusta, efetivamente,
como narrativa. A relao entre nao e narrao, a essa altura, no poderia ser mais
ntima.
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No parece um exerccio muito complicado, nesse aspecto, pensar a forte influncia que
a nao, compreendida a partir de uma tomada literal da narrativa a prosa e a poesia
brasileiras, por exemplo exerce sobre o mtuo reconhecimento dos indivduos
identificados pelo pertencimento narrado. A emergncia das identidades nacionais, e esse
no um empreendimento restrito ao universo da brasilidade, est diretamente ligada s
narrativas que produzem reconhecimento a partir de grandes oposies identitrias,
geralmente construdas para excluir do nosso o antigo lugar do colonizador ... as
aves que aqui gorjeiam no gorjeiam como l....
Ao olhar a vida nas grandes cidades a partir da janela dos apartamentos, ou das agitaes
festivas, ou dos clssicos do futebol local, por exemplo, essa influncia da narrativa se
produz a partir de ordens que consolidam camadas de reconhecimento que esto aqum
da fora que a literatura ou o pensamento poltico do sculo XIX (Bhabha) deram ao
pertencimento nacional. Em outras palavras, a narrativa que traduz o mtuo
reconhecimento atua, longe da primeira pretenso de Bhabha ao refletir sobre as relaes
possveis entre nao e narrao, sobre o esforo para compreenso da vida cotidiana, a
vida na cidade, como produto de uma narrao.
Dessa maneira, o exerccio para que seja possvel entender a vida comum como objeto da
articulao e deciso polticas faz ser imprescindvel a tomada do pertencimento nacional
enquanto narrativa que produz sentidos no cotidiano. No se trata de reforar a influncia
que os textos literrios ou o pensamento e as decises de uma macropoltica exercem
sobre a construo e reproduo da sociedade, mas de como os eventos ordinrios que
compem o universo de mtuo reconhecimento entre os atores comuns da vida social se
erguem e so articulados por uma experincia nacional que no pode abrir mo de ser,
primordialmente, uma narrativa.
La localidad de la cultura nacional no est unificada ni constituye una unidad en relacin consigo misma, y tampoco
debe ser considerada simplemente otra en relacin con lo que est fuera o ms all de ella. La frontera tiene dos caras, y el
problema del adentro y el afuera siempre debe ser en s mismo un
proceso de hibridacin que incorpore a gente nueva en relacin con el cuerpo poltico, genere otros espacios de significacin e,
inevitablemente, en el proceso poltico, produzca lugares acfalos
de antagonismo poltico y fuerzas impredecibles para la
representacin poltica. El recurso a la nacin como narracin
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enfatiza la insistencia del poder poltico y la autoridad cultural en
lo que Derrida describe como el exceso irreductible de lo sintctico sobre lo semntico2 (BHABHA, 2010, p.15).
Esse entendimento nos ajuda a concluir sobre uma dimenso da vida poltica que est
alm dos acordos formais entre chefes de Estado, ou mesmo as reivindicaes que
constituem uma agenda pblica dos diversos movimentos sociais. A nao compreendida
enquanto objeto de uma narrativa produz como poltico o espao para vida e consumo
coletivos, as estratgias de produo de subjetividade, e as lgicas para normatizao e
regulao da vida pblica, mas no somente.
A narrativa que consolida o pertencimento nacional como recurso para mtuo
reconhecimento tambm responsvel por vigilncia e disciplina dos corpos, ou seja,
reproduz no corpo o programa de uma identidade nacional, seja para reificao dos tipos
pblicos, seja para a traduo biolgica de um poder poltico que se estende de uma
cultura da brasilidade a um pertencimento nacional que se d pelo ato poltico do estar
vivo.
Falamos, portanto, de um nosso que nasce da narrativa antes mesmo de ser traduzido
pelos grandes smbolos nacionais ou pela fora poltica dos Estados, mas que no deixa
de ser, por certo, orientada pelo brao institucional que lhe d cores e amplifica sua voz.
Assim, mesmo compreendendo a diferena como importante linguagem de constituio
desigual do pertencimento, o ns conservado como instrumento para solidificao do
social como produto da narrativa do nacional. Com isso, no se deve procurar a denncia
de um pertencimento desigual como efetivo lugar crtico ao nacional, mas construir
apenas um ponto de partida a partir do qual naturalizamos a desigualdade enquanto
importante linguagem para consolidao da experincia nacional como universal,
estabelecimento e reproduo de um discurso que passa a ter o ns como principal
referncia. Dessa forma, como afirma Bhabha, o ... otro nunca est fuera o ms all de
2 A localidade da cultura nacional no est unificada nem constitui uma unidade em relao consigo
mesma, e tampouco deve ser considerada simplesmente outra em relao com o que est fora ou para alm dela. A fronteira tem duas faces, e o problema do dentro e do fora sempre deve ser em si mesmo um
processo de hibridizao que incorpore a gente nova em relao com o corpo poltico, gere outros espaos de significao e, inevitavelmente, no processo poltico, produza lugares acfalos de antagonismo
poltico e foras imprescindveis para a representao poltica. O recurso nao como narrao enfatiza a
insistncia do poder poltico e a autoridade cultural naquilo que Derrida descreve o excesso irredutvel do sinttico sobre o semntico (Traduo livre do autor).
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nosotros; surge con fuerza dentro del discurso cultural cuando pensamos que hablamos,
de la manera ms ntima y natural, entre nosotros3 (2010, p.116).
Nesse sentido, o texto que segue est subdividido em outras trs etapas, dedicadas a
observar a emergncia, articulao e continuidade de linguagens do nacional para
constituio de um dispositivo disciplinar que se traduz na experincia do sempre
existir da nao (a tradio) e, ao mesmo tempo, funcionar como norte para lgicas
contemporneas de ampliao-democratizao-recolonizao de sociedades atormentadas
por eventos que, ao longo do sculo XX, pautaram revises dos projetos societrios e
identitrios dos supostamente inabalveis Estados-nao. O objetivo central da
argumentao que pretendemos desenvolver nas pginas seguintes, portanto, sugerir
uma articulao entre os braos apenas pretensamente opostos das dinmicas do
nacional, a saber, biopoltica e reconhecimento. Para tanto, construmos, em um primeiro
estgio, discusso a respeito da relao entre tradio, colonialismo e biopoltica (ponto
dois); em um segundo estgio, buscamos o alinhamento entre o desenvolvimento de
estratgias de disciplina do corpo-populao de uma nao a partir das lutas por
reconhecimento-incluso no eixo da experincia nacional (ponto trs); por fim, na ltima
etapa da argumentao que se desenvolve, seu terceiro estgio (ponto quatro,
consideraes finais), pretendemos oferecer elementos para projeo de vocabulrio
poltico que tenha o desafio da contra-identidade como ponto de partida para superao
das lgicas de biopoltica-reconhecimento do nacional.
2. Tradio e biopoltica
Sati como um nome prprio de mulher bastante difundido na
ndia hoje em dia. Dar o nome a uma criana do sexo feminino de
boa esposa encerra uma certa ironia antecipatria. E a ironia ainda maior porque esse sentido do substantivo comum no o
operador principal do nome prprio. Por detrs do ato de dar o
nome criana est a Sati da mitologia hindu Durga em sua manifestao como uma boa esposa. Em uma parte da histria,
Sati ela j era chamada assim chega corte de seu pai sem ser convidada, e, ainda, sem um convite para seu divino marido Siva.
3 O ...outro nunca est fora ou alm de ns; surge com fora dentro do discurso cultural quando
pensamos que falamos, da maneira mais ntima e natural, entre ns (Traduo livre do autor).
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Seu pai comea a ofender Siva e Sati morre de dor. Siva chega e,
em um estado de fria, dana sobre o universo com o corpo de
Sati em seu ombro. Visnu desmembra o corpo de Sati e os
pedaos so jogados sobre a terra. Em torno de cada uma dessas
relquias h um importante lugar de peregrinao (SPIVAK,
2010, p.120).
O Sati mais recorrentemente apresentado como a prtica do suicdio da viva indiana
na pira funerria de seu marido. Na narrativa tradicional, a prtica data aproximadamente
do ano 400 e representa a fidelidade da boa esposa que deve, moralmente,
voluntariamente entregar sua vida em homenagem a um marido que, morto, faz da vida
da esposa algo sem sentido. Devido falta de registros precisos, no possvel estimar
quantas mulheres praticaram a Sati e, devido proibio pelo Estado indiano, indicar a
continuidade, ainda em nossos dias, da prtica da autoimolao das vivas transformou-
se em exerccio bastante complicado, apesar de alguns casos conhecidos. Registros da
Companhia das ndias Orientais Britnica, no sculo XIX, apresentam, em curto recorte
(1813-1828), o nmero de 8.135 casos de Sati.
Durante o processo de colonizao britnica na ndia, uma das peas de maior expresso
de etnocentrismo do colonialismo europeu, a prtica da Sati foi proibida, norma, mais
tarde, referendada pelo Estado indiano, consolidado aps os processos de independncia.
Frequentemente, a proibio vista como um das poucas decises polticas acertadas do
Imprio Britnico sobre sua ento colnia. Spivak (2010) apresenta esse esforo europeu
a partir do resumo mais recorrente na mxima mulher de pele escura salva de homem de
pele escura por homem de pele branca. A autora no est, contudo, interessada,
importante deixar claro, em reproduzir o discurso etnocntrico docilizado por uma
espcie de boa causa que bem deve justificar a interveno poltica do colonizador
algo, em nossos dias, ainda to intensamente atual.
A interveno britnica, nesse aspecto, indica, atravs de complexo cruzamento entre o
poder da norma e a fora da represso policial, o brao do poder soberano que se estende
do colonizador sobre os grupos reconhecidos como selvagens, que devem ser objeto
imediato de processo civilizador. A norma que probe o ritual, portanto, sugere o lugar de
voz do colonizador para fazer referncia direta ao ttulo do texto de Spivak, Pode o
subalterno falar? como instrumento poltico inquestionvel e indiferente em relao s
prticas culturais locais e sua inscrio no elemento tradicional como um de seus mais
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importantes recursos para fabricao de um diagrama identitrio que consolide a nao
como lugar maior de mtuo reconhecimento. A norma animaliza o ritual e o submete a
pretenso processo sutil de regulamentao que deve culminar com a disciplina sobre os
rituais.
Certamente, no um exerccio muito complicado encontrar um sem nmero de
argumentos que se utilizam da crtica ao etnocentrismo para apontar a normatizao
das comunidades colonizadas como destacado mecanismo de apagamento das tradies
locais enquanto importante recurso poltico dos grupos submetidos dominao colonial.
Alguns dos rituais tradicionais das sociedades submetidas ao elemento colonizador, no
entanto, ainda em nossos dias e, provavelmente, de forma ainda mais intensa, visto que
todo esse processo coberto por uma poderosa indstria de mdia recebem, em uma
espcie de esfera pblica global (miditica), o apoio, de um lado, dos grupos polticos
mais conservadores preocupados com a conservao de uma moral do colonizador e
com os lucros que a abertura e/ou ampliao de novos mercados podem produzir e, de
outro lado, dos cada vez mais endinheirados e destacados grupos ativistas preocupados
com a sade do outro como movimento de estetizao do perifrico, o que confirma,
por exemplo, o cruzamento entre museus e antropologia como um dos mais destacados
esforos para sofisticado tipo de colonizao doce sobre os grupos ainda conservados
como selvagens. O Sati enquadra-se, sem muitas dificuldades, nesse universo como bom
exemplo da prtica tradicional que precisa ser superada, ainda que isso implique a
interveno do brao colonizador do Ocidente como linguagem.
Em tempo, no nos interessa desenvolver argumentao que procure solucionar uma
querela entre ativistas e neoconservadores que traduzem, no mundo poltico
contemporneo, forte simpatia por intervenes brancas ou no, doces ou no , tidas
como soluo poltica para a produo de sociedades mais equitativas, cada vez mais
abalizadas pelo instrumento poltico do reconhecimento como extenso dos antigos, e em
suposto desgaste, nacionalismos. Ativistas ou neoconservadores reivindicam, nesses
casos especficos, o bom senso como nvel de saber suficientemente equilibrado para
julgar o que e o que no bom para politicamente realizar. Na poltica internacional,
normalmente, esse movimento resolvido por avaliao que se utiliza dos direitos
humanos como referncia fundamental para julgar, mesmo entre os rituais tradicionais,
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aquilo que desqualifica o humano e que, portanto, precisa ser extinto. Nesse aspecto, no
parece restar muitas dvidas: todos concordam com o fim do Sati, como concordamos
com o fim do racismo, da pedofilia etc.
O elemento chave em questo que, mais recorrentemente, visualizamos o elemento
colonial apenas na dominao estrangeira. Casos como do Sati, quando estamos
dispostos a reproduzir o discurso colonial como bom instrumento poltico para vencer
uma prtica tradicional reprovada pelo mundo ocidental, exigem cuidado metodolgico
maior. O ponto de partida para tanto, esforo que Spivak desenvolve em sua reflexo,
considerar o colonial como fora poltica que no est restrita dominao estrangeira,
mas como traduo de um poder soberano que pode, eventualmente, se manifestar
mesmo nas ditas comunidades tradicionais.
O colonial, nesse sentido, traduz sempre o instrumento da nao como dispositivo de
disciplina do mundo pblico, seja na relao que se estabelece entre o colonizador
europeu e suas colnias, no sculo XVI ou XX, seja, de forma mais complexa, nas
comunidades tradicionais, onde, supostamente, no possvel perceber as linhas abissais
sobre as quais discute Boaventura de Sousa Santos.
Este o momento para revelar que sati ou suttee, como o nome
prprio do ritual da autoimolao de vivas, celebra um erro
gramatical por parte dos britnicos, assim como a nomenclatura
ndio americano celebra um erro factual por parte de Colombo. A palavra em vrias lnguas indianas a queima da sati ou da boa esposa, que assim escapa da estagnao regressiva da viva
em brahmacrya. Isso exemplifica as sobredeterminaes das
questes de gnero-classe-raa referente situao (SPIVAK,
2010, p.115).
Tomando como referncia a ilustrao destacada nesta etapa da reflexo, o Sati no
simplesmente a autoimolao da viva. Uma histria social do Sati revela mais sobre
seus cruzamentos de sentido do que a apresentao da prtica tradicional capaz de
revelar. Em primeiro lugar, mesmo em diversas das lnguas indianas, Sati no significa o
suicdio da esposa; essa passagem normalmente representada pela expresso a queima
da Sati, o que revela a prtica do suicdio apenas como parte de uma designao que
generaliza o lugar do feminino a partir de sua ligao ao casamento e de suas funes
como esposa: a Sati e no mais o Sati a boa esposa.
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Escrevi anteriormente sobre uma contranarrativa construda da
conscincia da mulher, e, portanto, do ser da mulher, da mulher
como um ser bom, do desejo da mulher boa, e, assim, do desejo
da mulher. Esse deslizamento pode ser visto na fratura inscrita na
prpria palavra sati, a forma feminina de sat. Sat transcende
qualquer noo especfica de gnero masculino e se move no
apenas em direo ao humano, mas universalidade espiritual.
o particpio presente do verbo ser e, como tal, significa no apenas ser, mas tambm a Verdade, o Bom, o Justo. Nos textos sagrados a essncia, o esprito universal. Mesmo como um
prefixo, indica apropriado, venturoso, digno. suficientemente
nobre para ter entrado no discurso mais privilegiado da filosofia
ocidental moderna: a meditao de Heidegger sobre o Ser. Sati, a
forma feminina dessa palavra, significa simplesmente boa esposa (SPIVAK, 2010, pp.114-115).
A autoimolao da Sati no parece equvoco, agora, apresentar dessa forma um
reforo, em um aspecto, sobre a condio da mulher ligada suposta funo-esposa e, em
outro aspecto, sobre a submisso do feminino a uma construo moral que orienta o
poder do masculino como ponto de partida para a produo da subjetividade da mulher.
Est guardado, portanto, no ritual tradicional, forte movimento de submisso da mulher
que exige, inclusive, a distoro da narrativa mitolgica como etapa fundamental para
consolidar como ritual um dispositivo colonial-nacionalizante do poder soberano do
masculino sobre o feminino: o trnsito de Durga a Sati. Assim, a deusa que orienta para o
feminino a narrativa da distribuio, sobre a terra, da energia do mundo substituda, no
imaginrio da autoimolao das vivas, pela Sati, aquilo que a reduz, somente,
condio de boa esposa. A morte de Durga, que, alis, no se d como autoimolao pela
morte de Siva, seu marido, mas pela fidelidade e forte vinculao ao mesmo o que, no
Ocidente, no tardaramos a chamar de amor , passa, dessa maneira, a ser representada a
partir da queima da Sati, como a morte de um sujeito que, sendo simplesmente boa
esposa, no pode viver sem que sua vida se oriente pela vida de seu marido.
No ritual da Sati est presente, portanto, e a proibio pela norma britnica no anula tal
movimento, o brao colonizador e, talvez, a palavra mais adequada para a
caracterizao fosse mesmo nacionalizante que institui o sadomasoquismo apontado
por Freyre como base para uma dominao relacional entre os membros de um mesmo
grupo enquanto linguagem que se estende, traduz-se ou, para ser fiel reflexo de
Spivak, desliza para o colonial como novo lugar seguro.
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Pode talvez ser apreendido at mesmo quando dito s claras:
homens brancos, procurando salvar mulheres de pele escura de
homens de pele escura, impem sobre essas mulheres uma
construo ideolgica ainda maior ao identificar, de forma
absoluta, dentro da prtica discursiva, o fato de ser boa esposa
com a autoimolao na pira funerria do marido. Do outro lado
de tal constituio do objeto, a abolio (ou remoo) do que
proporcionar a ocasio para o estabelecimento de uma boa
sociedade, distinta de uma sociedade meramente civil, a
manipulao hindu da constituio do sujeito feminino sobre a
qual tentei refletir (SPIVAK, 2010, p.115).
A passagem de Durga a Sati representa, dessa forma, a disposio do tradicional para ser
traduzido como brao do, na reflexo de Spivak, colonial para a permanncia da
submisso do feminino. Em tempo, podemos sugerir o tradicional como importante
dispositivo para reproduo do nacional-brasilidade, reforando-o a partir de um sempre
existir da nao que se inscreve sobre cada um dos indivduos e suas estratgias de
socializao. Em outras palavras, produzimos como tradicional os valores que acentuam
a brasilidade enquanto dispositivo para produo de subjetividade que no pode ser visto
como colonial, visto que reproduz um desde sempre que funciona permanentemente
como o escudo da tradio.
A essa altura, a questo no deve tratar da necessidade de indicar, como fizeram
Hobsbawm e Ranger (1997) em j clssica reflexo sobre a inveno das tradies no
mundo pr-moderno britnico, a tradio como produto de invenes, articulaes entre
os grupos de elite e seus interesses para ordenamento de vida e consumo coletivos. No
nos interessa, aqui, apresentar, no caso especfico da brasilidade, quais elementos
tradicionais tm um processo histrico como sua estrutura e quais efetivamente
representam apenas as extenses do poder soberano a um imaginrio popular
intensamente influenciado pela fora dos grupos gestores da vida pblica. Para alm dos
textos constitucionais, mas certamente ainda cruzado por ele, o elemento tradicional deve
ser compreendido, em nosso tempo, como sofisticado dispositivo para reproduo, em
regimes democrticos, por exemplo, de uma poltica disciplinar que tem o controle sobre
os corpos individuais, populacionais, urbanos, nacionais etc. como seu mais
importante objeto.
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Assim, mesmo em setores da sociedade que representam a intelligentsia ou entre os
grupos mais esclarecidos para formao e reproduo da opinio pblica, encontramos,
no elemento tradicional, j independentemente de uma brasilidade formalizada pelos
textos constitucionais, importante fonte para reunio e referncia permanente a um reset
poltico que deve ser sempre mobilizado quando precisarmos recuperar os instrumentos
que fundam a experincia nacional e o dispositivo de brasilidade: a tradio. No perder
de vista o carter, no mundo contemporneo, biopoltico do tradicional condio
fundamental para, no Brasil ps-1988, compreender as dinmicas que reproduzem, ainda
em nossos dias, a brasilidade como melhor acabado instrumento para produo de
subjetividade. Ainda em Spivak, podemos ver esse esforo para traduo, no
contemporneo, do tradicional como ferramenta para localizao de indivduos e
ordenamento da vida pblica:
Uma jovem de 16 ou 17 anos, Bhuvaneswari Bhaduri, enforcou-
se no modesto apartamento de seu pai no norte de Calcut, em
1926. O suicdio se tornou um enigma, j que, como
Bhuvaneswari estava menstruada na poca, claramente no se
tratava de um caso de gravidez ilcita. Quase uma dcada depois,
foi descoberto que ela era membro de um dos muitos grupos
envolvidos na luta armada pela independncia da ndia. Ela tinha
finalmente sido incumbida de realizar um assassinato poltico.
Incapaz de realizar a tarefa e, no obstante, consciente da
necessidade prtica de confiana, ela se matou.
Bhuvaneswari sabia que sua morte seria diagnosticada como
resultado de uma paixo ilegtima. Ela, ento, esperou pelo incio
da menstruao. Enquanto aguardava, Bhuvaneswari, a brahmac
rini que indubitavelmente esperava exercer a condio de uma
boa esposa, talvez tenha reescrito o texto social do suicdio sati
de uma maneira intervencionista (uma explicao presumvel
para seu ato inexplicvel tinha sido uma possvel melancolia
causada pelos repetidos insultos de seu cunhado pelo fato de ela
ser velha demais para ainda no estar casada). Ela generalizou o
motivo sancionado para o suicdio feminino ao se dar o imenso
trabalho de deslocar (no simplesmente negar), na inscrio
fisiolgica de seu prprio corpo, seu aprisionamento em uma
paixo ilegtima por um nico homem. No contexto imediato, seu
ato se tornou absurdo, um caso de delrio mais do que de
sanidade. O gesto de deslocamento esperar a menstruao , inicialmente, uma inverso da interdio contra o direito de uma
viva menstruada de se imolar. A viva impura deve esperar,
publicamente, at o banho purificador do quarto dia, quando ela
no est mais menstruada, para reivindicar seu dbio privilgio.
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(...)
Tenho conhecimento da vida e morte de Bhuvaneswari por meio
de conexes com sua famlia. Antes de investig-las
minuciosamente, indaguei uma mulher bengali, uma filsofa e
estudiosa do snscrito, cuja produo intelectual inicial quase
idntica minha, para iniciar o processo. Obtive duas respostas:
(a) Por que, quando duas irms, Saileswari e Rseswari, levaram
vidas to plenas e maravilhosas, voc est interessada na infeliz
Bhuvaneswari? (b) Perguntei a suas sobrinhas. Parece que foi um
caso de amor ilcito (2010, pp.123-124).
Ainda que Bhuveswari tenha produzido o deslocamento do colonial ao cometer suicdio
estando menstruada, sua figura pblica mencionada, mesmo entre membros de sua
famlia, como produto fatdico de um amor no permitido, o que a enquadra na formao
tpica que tem como ncora, de um lado, o sacrifcio do feminino pelo poder do
masculino e, de outro lado, o silenciamento da voz do subalterno que, no caso especfico,
como mulher, no pode falar.
O suicdio poltico, dessa maneira, deve permanecer ocultado, mesmo sendo essa uma
suposta causa superior morte por um amor ilcito. Spivak enfatiza, ainda, a opinio da
familiar procurada que, ao responder s questes da investigadora, em primeiro lugar,
indica a conduta das irms de Bhuvaneswari, provavelmente ditas boas esposas, como
referncia mais importante que aquela cuja trajetria culminou com o suicdio; em
segundo lugar, marca o local da j longnqua familiar a partir de uma impossibilidade de
fala que tem a morte pelo impedimento de um amor indisciplinado como razo que
qualifica como normal, ainda que doloroso, o suicdio de algum ainda to jovem.
Se, na crtica ao colonial, nos acostumamos a pensar a interveno estrangeira como
principal problema poltico de jovens naes vivendo processos polticos de
independncia atormentados por um imaginrio colonial ainda muito presente, a oferta
que a reflexo de Spivak nos faz tem como base a possibilidade de pensar o tradicional
como dispositivo de traduo do poder soberano que caracteriza o brao poltico do
colonizador. Bhuvaneswari poderia, nesse aspecto, ser uma vtima pblica do
colonialismo britnico, de forma alguma menos violento que o movimento mobilizado
pelo tradicional, mas no o somente. O instrumento que localiza e disciplina
Bhuvaneswari o sempre existir do nacional, traduzido por uma tradio que, distante
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de precisar ser inventada, materializa-se, no caso especfico do Brasil, como a brasilidade
que deve dar sentido a sua inscrio como sujeito poltico.
O subalterno no pode falar. No h valor algum atribudo
mulher como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representao no definhou. A mulher intelectual
como uma intelectual tem a tarefa circunscrita que ela no deve
rejeitar com um floreio (SPIVAK, 2010, p.126).
pergunta pode o subalterno falar? respondemos, sem grandes dificuldades, que no.
A ordem biopoltica que, em nossos dias, se instala para repetir como sempre presente
uma nao que, no entanto, se constitui diariamente, sem precisar fazer grandes
referncias ao elemento normativo das leis que lhe do concreticidade, faz parecer
dispensvel qualquer arena para debate e alternncia de compreenses polticas que
tenham como ponto de partida a rasura da brasilidade como possibilidade e a superao
do nacional como estratgia poltica para deslocamento do poder soberano das leis e do
governo do Estado.
Livres de reivindicar para a mulher intelectual a tarefa poltica da superao do local
disciplinador atribudo ao feminino seja pelo poder opressor do colonial, seja pela fora
soberana docilizada do elemento tradicional , podemos simplesmente reforar o carter
silenciador, em nossos dias, da nao como vaso para os movimentos sociais que lutam
por melhores condies de vida e consumo coletivos. A conservao da ordem, o
progresso da nao, a estabilidade dos valores morais, a sade da famlia e a salvao
pelo trabalho so, vias de regra, mximas repetidas, com variaes, por grupos que,
recorrentemente, tm a superao de um lugar de dominao como sua tarefa poltica
feita pblica.
Nesse estgio de nossa reflexo, parece cada vez mais claro como as bandeiras que
reivindicam mudanas sociais atreladas conservao do elemento nacional esto, assim,
condenadas ao fracasso do lugar vazio do suposto reset poltico como apenas um dos
problemas que, normalmente, no so sequer visualizados. No se trata de uma nao
que precisa ser reconstruda, mas de uma estrutura do nacional que precisa ser, em seu
ponto de partida, estranhada.
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O reconhecimento como dever poltico do mundo contemporneo, tarefa to prontamente
assumida por naes como o Brasil, deve estar claro, no vai ser suficiente.
3. O nascimento da biopoltica e a luta por reconhecimento
O Ocidente enquanto sujeito objeto central da crtica na reflexo de Spivak. As teses
que recorrentemente destacam a impossibilidade de aplicao, em sociedades para alm
das linhas abissais (SOUSA SANTOS, 2010), contudo, no so novas e, desde Said e seu
clssico estudo sobre o Orientalismo (1978), constituem uma crescente rede de
vocabulrios novos, conceitos que pretendem fazer ser mais sofisticadas ou mesmo rever,
desconsiderar, algumas das leituras desenvolvidas por pensadores europeus ou
estadunidenses e intensamente utilizadas ao longo do sculo XX, tais como a produo
de Foucault, Deleuze, Althusser, Habermas etc.
Nos casos especficos de Foucault e Habermas, esses usos e progressivos desusos de suas
reflexes merecem alguma referncia mais cuidadosa, compromisso que este trabalho, a
essa altura, no mais assume. No entanto, as muitas extenses da obra desses dois
intelectuais europeus s mais variadas reflexes produzidas de dentro do velho continente
ou no, devem fazer surgir, ao menos, dois pargrafos desta discusso que se dediquem
aos dois pensadores, de imediato, to excludentes.
De um lado, a passagem dos estudos disciplinares s tecnologias sobre o corpo e
populao caracteriza, na obra madura de Foucault, o desenvolvimento da noo de
biopoder e biopoltica como ponto de partida para novas formas de atuao da esfera
poltica no mundo contemporneo; instrumentos desenvolvidos para a fora poltica
sobreviver sem a atuao imediata da instituio estatal, incorporada s estratgias de
produo de subjetividade e de reconhecimento do corpo como lugar tenente de agncia
poltica. Essas reflexes, intensamente presentes nos cursos Em defesa da sociedade
(1975-1976), Segurana, territrio e populao (1977-1978) e o Nascimento da
biopoltica (1978-1979), sugeriram o desenvolvimento de poderes disciplinares que se
estendem das instituies escolas, presdios, hospitais e exrcitos s tcnicas sobre o
corpo e a condio de sujeito, o que culminou, em sua obra, com a publicao dos trs
volumes de Histria da sexualidade A vontade de saber (1976), O uso dos
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prazeres (1984) e O cuidado de Si (1984) quando o autor pretendia desenvolver suas
reflexes sobre o biopoder e sua extenso biopoltica. Desde ento, um sem nmero de
produes procuraram, de um lado, desenvolver as discusses de Foucault, cruzando suas
elaboraes com as de demais autores interessados nas formas polticas do
contemporneo. O projeto Homo Sacer, de Giorgio Agamben, um bom exemplo disso,
ao sugerir cruzamentos possveis entre Foucault, Arendt e Schmitt, tendo as noes de
biopoltica e biopoder como ponto de partida. Muitas produes, contudo, buscaram
simplesmente transpor as observaes do autor para casos particulares nem sempre
claramente disponveis para cruzamentos epistemolgicos, o que findou por produzir
grandes abusos das noes desenvolvidas por Foucault e progressiva crtica ao autor
como supostamente intraduzvel para a realidade ps-colonial.
Movimento semelhante pode ser observado a partir da Ao comunicativa, de
Habermas. Pode-se dizer, sem grandes reservas, que o pensador alemo foi um dos
autores da moda da dcada de 1990 nas universidades brasileiras, notadamente por ver
estendida aos mais diversos objetos de pesquisa uma ideia simplificada da ao
comunicativa, promessa para resolver nossas mais complexas questes da esfera poltica
com suposta disposio para o dilogo dos membros gestores dos grupos sociais
distintos. A ao comunicativa consolidou o reconhecimento como grande instrumento
poltico do ps-guerra para uma administrao democrtica das diferenas culturais,
consolidando, entre outras coisas, sem razo epistemolgica direta, o multiculturalismo
como uma das palavras mais utilizadas por governos democrticos de pases como a
Frana, Inglaterra e Brasil. Como citamos Agamben como exemplo de tratamento mais
cuidadoso com a reflexo de Foucault, Honneth, com seu bastante lido Luta por
reconhecimento (2003), pode ser citado, moderadamente, como extenso da ao
comunicativa habermasiana.
Fiz referncia aos dois autores por acreditar que, em nossos dias, com progressiva
indicao pblica da falncia das leis como instrumento poltico inquestionvel e cada
vez mais visvel capacidade de mobilizao de grupos em torno de, de um lado, uma
dilatao das sociedades contemporneas s reivindicaes por novos direitos e, de outro
lado, de uma demanda de deslocamento, estranhamento, deslize do social para formas de
aglutinao diversas, biopoltica e reconhecimento transformaram-se, no somente nos
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restritos e restritivos centros universitrios, em palavras de ordem para organizao e
funcionamento de movimentos para reviso ou cumprimento dos direitos, ou mesmo de
agendas governamentais de chefes de Estado de naes como EUA, Venezuela, Brasil,
China e Frana, por exemplo.
Quase sempre excludentes, os conceitos de biopoltica e reconhecimento tm sido cada
vez mais presentes nos grandes crculos de debate para, respectivamente, apontar os
colapsos do Estado de bem-estar e suas novas lgicas de opresso, de um lado, e, de
outro lado, indicar os caminhos de volta de uma face poltica do contemporneo
perigosamente filiada a grupos cada vez mais conservadores.
A noo de biopoltica, uma economia poltica da vida, , nesse aspecto, recorrentemente
utilizada para identificar e criticar as condutas dos governos e suas tradues nas esferas
microssociais para gesto de vida e consumo coletivos. O reconhecimento, por sua vez,
j no ps-guerra, entorpecendo pensadores do quilate de Adorno, como no seu quase
manifesto Educao aps Auschwitz, tem funcionado, sistematicamente, como maior
bandeira das naes interessadas em uma vida poltica pautada na paz e no controle dos
conflitos.
Distantes de investir no colapso das leis com um suposto fim da histria ditado pela
queda do Muro de Berlim e os vazios polticos produzidos pela cobertura capitalista do
globo, sugerimos um sofisticado cruzamento entre biopoltica e reconhecimento como
novo tom para extenses do pertencimento nacional em tempos de suposto ocaso dos
nacionalismos. De um lado, o reconhecimento funciona como dispositivo de biopoltica
para reforar uma lgica colonial que se perpetua, ainda em nossos dias, para fazer
funcionar polticas imigratrias ou financiamentos de pesquisa em pases do antigo
Terceiro Mundo. De outro lado, a tradio atua como destacada ferramenta para
traduo, pelo reconhecimento, de polticas de administrao e requadriculamento dos
grupos locais, fazendo cada vez mais vivo aquilo que Agamben chama de campo como
paradigma poltico contemporneo.
pergunta o que resta de Auschwitz?, ttulo do Homo Sacer III (2008), de Giorgio
Agamben, podemos responder: o reconhecimento como biopoltica, que faz do Campo o
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principal dispositivo para traduo, em nossos dias, do pertencimento nacional como
instrumento para produo de subjetividade.
Certamente, no falamos dos nacionalismos como no final do sculo XIX e at a primeira
metade do sculo XX, mas no restam dvidas de que as polticas nacionais, no mundo
contemporneo, ainda funcionam como elemento maior do que simplesmente pano de
fundo para conflitos localizados aqum ou alm das dinmicas do nacional. Operado por
dispositivos renovados, o pertencimento no caso do Brasil, a brasilidade atua para
consolidar locais sociais perifricos como objeto de luta permanente por um
reconhecimento que, por sua vez, nada mais oferece aos grupos envolvidos que a
conservao da vida no Campo e as sofisticadas lgicas de opresso.
Museus, cinema, teatro, msica, dana etc. passaram a cumprir a agenda, nos ltimos
anos, de importantes operadores do comunitrio como fetiche de uma brasilidade que
opera o lugar daqui como espao para desenvolvimento e consolidao daquilo que
podemos chamar de zonas-gueto ou o Campo como paradigma poltico contemporneo.
Sem grandes reservas, podemos concluir, indicando o reconhecimento como dispositivo
biopoltico, o comunitrio como lgica de reforo do lugar enquanto Campo, a
comunidade como centro para traduo da brasilidade e produo e concentrao da
populao, o que eventualmente se manifesta, inclusive, no orgulho de ser objeto de
controle do Campo.
H ainda perguntas que no podem deixar de ser objeto da reflexo deste trabalho.
Repetindo o movimento de Huyssen (2001) ao pensar o museu como instrumento para
escapar da amnsia produzida como ferramenta de memria no mundo improfanvel do
capital, questionamos: como escapar das linguagens do nacional em busca de novas
formas do social que traduzam estratgias de produo de subjetividade e de sentidos
para vida cotidiana que no estejam orientadas pelo pertencimento identitrio-nacional
como ponto de partida?
Nas discusses de autores como Bhabha, Spivak, Agamben e Maffesoli, esses indicativos
surgem no desenvolvimento de vocabulrio que inclui as noes de deslocamento,
deslizamento, estranhamento, qualquer, comunidade que vem, nebulosa afetual, segredo
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etc., desafios para investigao que este trabalho no esgota, mas temas sobre os quais
apenas timidamente ensaia.
4. Contra o pertencimento e as tribos contraidentitrias
Em nossos dias, debates a respeito da construo de regulamentaes para sujeitos no
to novos, mas ora pretensamente desnacionalizados, ora reinseridos no projeto
necessariamente revigorado de nao, so agenda para elaborao de leis, acordos
pblicos para novos procedimentos, para a emergncia de diversos outros em um
espao pblico, nesse sentido, necessariamente corrompido pela diferena.
No centro, ou nas margens, de formaes sociais orientadas pelo projeto poltico,
econmico, cultural da modernidade, grupos se organizam, motivados por um pouco
racionalizado sentimento de afeto, em torno da construo daquilo que Maffesoli (1998)
chama de socialidade eletiva. A unidade do projeto poltico concentrado nos ideais
iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade pode ser, em um primeiro momento,
relegada a um segundo plano na disposio da vida comum, cotidiana. Em um segundo
estgio, pode ser borrada, rasurada pela emergncia de novos eixos, sem pretenses
globalizantes ou estatutrias, para tambm novas dinmicas da vida compartilhada.
Podemos dizer, com isso, que a vida cotidiana funciona ligada a motivaes mais
diversas que uma orientao poltica articulada por uma espcie de estrutura cognitiva de
um espao pblico na Modernidade. Assim, a observncia de dinmicas do que se pode
chamar de socialidade ratifica um relativismo do viver diante do peso do projeto de
vida em vigilncia das nacionalidades ou formaes identitrias do nosso tempo. Desse
cenrio de intenso enquadramento simblico, emerge um novo ns, desta feita
conectado a redes de solidariedade no necessariamente regidas por uma cartilha
projetada e finalizada por lderes aclamados em vias pblicas. Um neotribalismo revela,
portanto, um embate entre uma existncia social alienada por um poder multiforme,
ligado ao intento da modernidade, e, por outro lado, uma potncia afirmativa do
solidarismo, ou seja, uma potencialidade concentrada na disposio espontnea de grupos
reunidos tendo o princpio do afeto como ponto de partida.
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A partir de uma ordem poltica silenciadora, ativada pela pedra fundamental da incluso
dos diversos outros em um projeto pretensamente coletivo e global, podemos falar na
fabricao de um novo aparelho de reconhecimento do mundo, uma ordem da fuso,
pretendida como organizao de uma dimenso afetiva e sensvel de novos grupos, ...
massa onde se cristalizam as agregaes de toda ordem, tnues, efmeras, de contornos
indefinidos (MAFESSOLI, 1998, p.102). O produto desse esforo um empenho
cinzento, borrado, de vida coletiva ao qual se pode dar o nome de socialidade; algo que
funciona independentemente de uma ordem pblica totalizante, mas que, por sua vez,
tambm no se orienta por cartilhas comprometidas com reunificaes, reconquistas,
resistncias a um modelo global de opresso cognitiva.
A discusso mobilizada por Maffesoli (1998) em torno da noo de socialidade parece
ser um bom ponto de partida para o desenvolvimento de um novo projeto de significao
das ruas. No deve tratar a socialidade, importante frisar, de uma nova poltica global,
pautada, desta feita, no desinteresse pelos discursos institucionalizados dos partidos ou
grandes coletivos. No se pretende global, como tambm no orientada por um
fortalecimento dos processos locais de identificao, objeto maior de uma poltica de
incluso perifrica estruturada a partir do princpio dos desenvolvimentos locais. Todo
um vocabulrio empreendido pela modernidade se faz desimportante na projeo de um
mundo que se pretende em (re)encantamento, produto de dinmicas sociais tribais. Estas
seriam operacionalizadas por uma poltica de redes sem centros e margens e uma
lgica, estrutura de fazer o mundo, da fuso.
O afeto, nesse sentido, funciona, ao mesmo tempo, como elemento motivador
fundamental na fabricao da socialidade, e como soluo de continuidade para o grupo,
que se desintegra sem traumas ou se conecta a novas redes aleatoriamente. A socialidade
, portanto, escorregadia, denota um projeto pouco, ou nada, racionalizado, no se
configura como resultado de acordos costurados pelo sujeito poltico-institucional. Tais
categorias desaparecem na construo da socialidade, ativada por uma espcie de
sintonia nebulosa. Deus (e a teologia), o Esprito (e a filosofia), o indivduo (e a
economia) cedem lugar ao reagrupamento (MAFFESOLI, 1998, p.104).
A lgica da fuso no permite a criao de espaos para a realizao das tradicionais
identidades. Como estrutura formal de reconhecimento, os processos de identificao
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instituem, necessariamente, um indivduo que no est presente na tribo. Ou seja, as
redes so formadas em torno de uma expectativa que se realiza no afeto, no desejo do
grupo e no na individuao, que um dos grandes produtos da modernidade. A
abordagem das tribos, nesse sentido, essencialmente esttica, ou seja, no se produz a
partir de uma histria linear, mas tem, como eixo, as repeties, as regularidades
acompanhadas por sua desconstruo, um ordenamento cotidiano da vida na tribo, a
experincia do estar-junto. Quanto s identidades, ... mesmo que ela continue a
funcionar, o seu efeito de rolo compressor no tem mais a mesma eficcia
(MAFFESOLI, 1998, p.105).
A esttica como abordagem, no lugar das tradicionais identidades, destaca o papel do
desejo e da ambincia no grupo: mecanismos de significao no e no do grupo. As
tribos so, portanto, profundamente marcadas pelas caractersticas da fluidez
movimento, mutao permanente , da disperso novas conexes, ausncia de
fidelidade a um projeto, que efetivamente inexiste e dos ajuntamentos pontuais
princpio primeiro da composio do grupo: a nebulosa afetual , condies
fundamentais na construo da socialidade.
Enquanto a emergncia do social marca o desenvolvimento de funes sociais para um
ator construdo como indivduo, a socialidade tem, como marca, o desenvolvimento de
papis para pessoas desindividualizadas, forjados no princpio da experincia
compartilhada no racionalizada, otimizada pela eleio do grupo e o afeto que lhe d
consistncia. Assim, ... autenticidade dramtica do social corresponde a trgica
superficialidade da socialidade (MAFFESOLI, 1998, p.108). Em um neotribalismo, o
ator , ao mesmo tempo, receptador dos significados produzidos em uma espcie de
teatro de infinitas e dispersas mscaras, que tem como papel a retomada de uma cultura
da tactilidade, ou seja, uma lgica do tocar. Assim, ... ultrapassando a categoria do
individualismo, a socialidade nos permite con naitre (isto , nascer com) as novas formas
de socialidade que esto emergindo (MAFFESOLI, 1998, p.111).
O desejo de projeo de um novo indivduo, produto de uma abordagem esttica sobre as
tribos, parece fracassar quando direcionado para um novo sujeito, acabado, centrado
como o homem moderno nos ideais globalizantes do iluminismo nacionalista:
liberdade, igualdade e fraternidade a servio de uma nova revoluo: uma espcie de
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insurreio das redes. O agrupamento, sua aleatria desconstruo, um novo grupo, sua
desarticulao, uma teia a mais em uma rede que, por outro lado, se parte em outra ponta,
apresentam, em um primeiro momento de estudo, um indivduo fragilizado pela
incapacidade do observador em mensurar estruturas, laos fortes o suficiente para darem
conta de um novo social. A emergncia de um novo vocabulrio sociolgico, no entanto,
preocupado com a articulao de seres supostamente desinteressados em uma coerncia
identitria linear, tem, em metforas como a do teatro e a das mscaras, referncias
fundamentais para a leitura de redes de interao social pretensamente pouco racionais e
pautadas em expectativas de uma vida pblica descolada de princpios
desenvolvimentistas de uma moderna poltica das cidades.
Assim, nao, brasilidade, cidadania, eleies, universidades, shoppings ou parques de
diverso (lazer), por exemplo, parecem fazer pouco, ou nenhum, sentido para grupos
orientados por uma estrutura de fazer o mundo radicalmente diferente de uma razo-
instrumental-com-respeito-a-fins: uma lgica fundada em uma fuso cinzenta, a
nebulosa afetual, redes erguidas a partir do afeto, do desejo de um sujeito sem face: a
pessoa ps-individual. Descrevemos, a partir da, um cenrio urbano ou rural
rasurado ora pela ortodoxia de um fazer pblico disciplinado por uma empresa
comunicacional poderosa um campo jornalstico administrado por grandes indstrias de
notcia e entretenimento , por uma poltica institucional burocratizada ao extremo e,
ainda assim, funcionalizada por relaes de apadrinhamento, carisma de lderes forjados
em eficientes campanhas publicitrias, ora por um crime organizado poder invisvel
em parceria com grandes mercados, ou uma lgica do crime, em fissura com princpios
exaustos de uma igualdade certamente desgastada por seguidos fracassos em torno da
elaborao de infindveis polticas do acesso a.
... se inegvel que existe uma sociedade poltica, e uma sociedade econmica, existe tambm uma realidade que dispensa qualificativos, e que a coexistncia social como tal que
proponho chamar socialidade e que poderia ser a forma ldica da socializao (MAFFESOLI, 1998, pp.114-115).
Em detrimento de uma solidariedade mecnica, normatizada por uma ordem da vida
pblica estruturada na visibilidade, com o princpio da socialidade, emerge uma
perspectiva orgnica dos laos sociais, redes que se instituem por uma verbalizao ou
no do fazer comum e no necessariamente pblico da experincia coletiva. A esse
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esforo, Maffesoli (1998) d o nome de socialidade orgnica. O ldico, nesse cenrio,
funciona como importante elo entre expectativas diversas e reunidas em torno do estar-
junto.
No quadro do paradigma esttico, que me caro, o ldico
aquilo que nada tem a ver com finalidade, utilidade,
praticidade, ou com o que se costuma chamar realidade. , ao invs, aquilo que estiliza a existncia, que faz ressaltar as
caractersticas essenciais desta (MAFFESOLI, 1998, p.115).
Se, por um lado, uma tese a respeito de uma lgica diferente da j bem familiar razo
instrumental assusta por uma caracterizao escorregadia do sujeito, de um esforo
metodolgico pouco adaptvel s tradicionais noes de estruturas sociais ou
individualismo, por outro lado, exige um ferramental cuidadoso, um vocabulrio
atencioso no que diz respeito a expectativas de socialidade pautadas em um mundo sem
um princpio macroestrutural fornecido por uma histria global equilibrada, esmiuada
por empreendimentos metodolgicos forjados no desejo do conhecimento verdadeiro.
nesse sentido que uma abordagem esttica, um estudo das sincronias, sinergias, simetrias
em dinmicas da socialidade de uma lgica de redes, apresentada como importante
mecanismo de reconhecimento de um empreendimento impulsionado pela reconstruo
de um encantamento para o mundo.
O pequeno grupo (...) tende a restaurar, estruturalmente, a
eficcia simblica. E, pouco a pouco, vemos a constituio de
uma rede mstica, com fios mais slidos, que permite falar do
ressurgimento do cultural na vida social. Eis a lio essencial que
nos d essa poca de massas. pocas como esta se apoiam
principalmente na concatenao de grupos com intencionalidades
estilhaadas, mas exigentes. isso o que proponho chamar de
reencantamento do mundo (MAFFESOLI, 1998, p.117).
Dessa maneira, podemos apontar um novo encantamento do mundo no em um projeto
coerente que deve reger os reagrupamentos, mas o prprio esforo sobre o social na
construo de novos grupos. Com frequncia, ao longo do sculo XIX e, intensamente,
durante todo o sculo XX, podemos destacar a construo de grupos, de redes de grupos,
desconectados das funes sociais ligadas a um poder multiforme e, em tese,
extremamente eficiente.
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Assim, se ainda durante a vida colonial naquilo que seria o Brasil, possvel falar em
religies africanas adaptadas aos cones de uma fora em exerccio do catolicismo
catequtico dos jesutas os nomes de santos africanos dados s branqueadas imagens da
Igreja europeia nos parece plausvel, em nosso tempo, a elaborao de mecanismos que
no tm a funo da resistncia a uma estrutura de saber-poder, mas o papel do
reagrupamento permanente. As fbricas, at o terceiro quarto do sculo XX ainda bem
prximas dos centros das grandes cidades brasileiras, configuram-se enquanto
importantes locais de um duplo relacionamento mediado pela produo: em uma via, um
operariado fabricado ora pela disciplina do trabalho, das sries produtivas, ora pela
construo de identidades ligadas ao fazer operrio o operariado como classe. Em outra
via, seu duplo, o espao da fbrica rasurado no por greves ou grandes manifestaes,
tambm comuns no Brasil ao longo, intensamente, dos ltimos trinta anos vide o
grande desenvolvimento do sindicalismo paulista e sua adaptao aos mais diversos
sindicatos em todo o pas , mas pela simples construo de grupos possveis que
mantiveram vivos os infinitos papis sociais ligados aos desejos, s expectativas de
sujeitos violentados por um j tradicional processo de individuao.
A associao mutualista cujas razes nas associaes religiosas so notveis, ou essas antigas subdivises paroquiais que so
irmandades, remetem partilha fraternal. E suas etimologias insistem, particularmente, na convivialidade, na solidariedade
familial, no pequeno agrupamento que encontra sua origem na
longnqua partio do cl (MAFFESOLI, 1998, p.120).
Essas construes so o que Maffesoli (1998) chama de formaes do tipo religioso,
retomando o termo a partir do princpio do religar, nesse aspecto em desacordo com a
etimologia apresentada pelo Agamben, e no pelo tom institucional que ele ganhou a
partir de igrejas extremamente poderosas. As redes que se formam a partir de formaes
do tipo seita configuram-se enquanto conjuntos desorganizados o termo mais adequado
seria inorganizados , porm regidos por grande solidez concentrada no esforo quase
aleatrio na composio das mscaras que ativam o grupo em uma espcie de teatro em
que se transforma o espao pblico.
Nesse cenrio, importante fazer ainda outro destaque: a ferramenta mobilizadora do
segredo. Os grupos que se formam deslocados do princpio oficial de mundo pblico
produto ora dos governos nacionais, ora de uma esfera miditica intensamente influente,
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ora de grandes mercados de maneira geral tm como elo, em muitas de suas faces, um
elemento compartilhado em sigilo. O mecanismo do segredo subverte, portanto, uma
estrutura do saber-poder na modernidade: o controle pelo saber do perito, o saber pblico
da anlise. Em um neotribalismo, o segrego cumpre a agenda desracionalizada, por um
lado, do riso, do jocoso, e, por outro lado, da experincia compartilhada, do saber do
grupo, que no tem a funo do controle e nem da anlise, mas de uma coerncia em
mutao, do nome temporrio dado comunidade, do perfil hbrido, j em
transformao, que caracteriza um grupo que sempre perene. As redes das sociedades
secretas tm, portanto, tambm seus papis atrelados a uma dialtica sutil do mostrar e do
esconder, da subverso do fazer saber.
A reflexo sobre o segredo e sobre os efeitos do segredo, ainda
que sejam anmicos, leva a duas concluses que podem parecer
paradoxais. Por um lado assistimos saturao do princpio de
individuao, com as inevitveis consequncias econmicas que
resultam da. Por outro, podemos ver como se projeta um
desenvolvimento da comunicao. esse processo que permite
constatar que a multiplicao dos microgrupos s
compreensvel num contexto orgnico (MAFFESOLI, 1998, p.134).
O silncio, nessa perspectiva, refora e confirma uma solidariedade orgnica
fundamental; expressa, assim, um vigor para a socialidade. A partir do segredo, podemos
ver ser reforada uma espcie de mundo subterrneo que no se define a partir da
superfcie; produz significados a partir de um eixo prprio, silencioso e no silenciado
, tambm responsvel por traos a mais na mscara pblica do grupo: o ... inimigo tem
menos importncia do que os laos sociais que eles [os grupos] tecem (MAFFESOLI,
1998, p.132). O segredo, mais que uma resistncia a um tipo de mundo pblico, denota a
autonomia do grupo, nomes produzidos para ativar uma lgica da fuso que sempre
interna s redes.
As tribos podem ter objetivos especficos formalizados, mas isso certamente no o
essencial em sua composio. No so, portanto, funcionalizadas por suas normas
internas que, em um mdio prazo, sobrepujam seus membros. A energia concentrada para
construir a experincia comum, a vida do grupo, deve aparecer em destaque na
abordagem esttica de uma dinmica de socialidade neotribal. Podemos, nesse aspecto,
construir a noo de democracia certamente, rasurada pela anomia e pela ausncia de
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uma dimenso generalizante de seus membros (o povo) atrelada ao desejo do afeto, da
socialidade eletiva: uma democracia de redes, sem centro, sem periferias, em permanente
estgio de mutao sem desenvolvimentos , expresso direta de uma criatividade
reconstruda em meio zona cinza dos guetos produzidos pela democracia global.
O tribalismo, parece-nos, retoma, nesse sentido, a importncia do afeto na edificao da
vida social. Se ... a Modernidade viveu um outro paradoxo: o de unir, apagando a
diferena, e a diviso que esta induz... (MAFFESOLI, 1998, p.141), um paradigma das
redes faz serem desimportantes os mecanismos da igualdade e da diferena, visto que o
grupo surge ainda do afeto. Garimpar relaes de poder rasuradas pela emergncia de
novos grupos , contudo, um desafio do qual certamente este trabalho no d conta.
Essas reflexes so apenas indicativos para a construo de um vocabulrio que d conta,
em nossos dias, das formas polticas que exigem a extenso de noes clssicas como as
de democracia, economia, cidadania e direitos, alm da rasura que propem para
dinmicas tradicionais do nacional e do dispositivo, no caso especfico deste trabalho, da
brasilidade.
o que se pode destacar, nesse aspecto, da disperso que caracteriza a Beloved e Aila na
crtica de Bhabha (1998), o estranhamento de si, que em hiptese alguma deixa de ser
importante ferramenta poltica, como luta contraidentitria que no pode perder de sua
pauta a superao da nao como desafio poltico radical do mundo contemporneo: a
compreenso de que aquilo que se pretende ser feito de dor e delcia, objetos
permanentes de uma fora poltica que no se ergue a partir de um local, mas de uma
narrativa em permanente reviso.
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