biopolítica e produção da brasilidade - franciscobarreto_a_dor

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36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 24 O PLURALISMO NA TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA A DOR E A DELÍCIA DE SER O QUE É: biopolítica e reconhecimento como dispositivos para produção da brasilidade Francisco Sá Barreto

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Artigo sobre biopolítica e brasilidade.

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  • 36 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

    GT 24 O PLURALISMO NA TEORIA SOCIAL

    CONTEMPORNEA

    A DOR E A DELCIA DE SER O QUE : biopoltica e

    reconhecimento como dispositivos para produo da

    brasilidade

    Francisco S Barreto

  • 2

    Resumo: Este trabalho consiste em verso resumida de minha tese de doutorado,

    recentemente concluda, que tem como objeto central o estudo da brasilidade como

    dispositivo disciplinar a partir da lgica do pertencimento nacional. Mais

    especificamente, destacamos parte de suas consideraes finais, que foram dedicadas ao

    estudo da relao entre o reconhecimento como projeto poltico para consolidao do

    nacional e a biopoltica enquanto mais bem acabado empreendimento para traduo de

    governos de polcia ainda em dias contemporneos. Procuramos, ao longo desta verso

    reduzida, destacar os pontos nodais da argumentao desenvolvida, que teriam como

    ponto de partida o estudo do reconhecimento, empreendimento ao centro dos processos

    de integrao ao nacional, de assimilao do diferente, como sofisticado dispositivo

    biopoltico para aquilo que poderamos chamar de pertencimento perifrico. Construmos

    essa verso a partir de duas etapas fundamentais, as quais seriam (a) a relao entre

    tradio e biopoltica e (b) a emergncia do biopoltico no instrumento do

    reconhecimento.

    Palavras-chave: Brasilidade nao; polticas de reconhecimento tradio;

    biolpoltica.

    1. Narrar a nao

    Los orgenes de las naciones, como los de las narraciones, se

    pierden en los mitos del tiempo, y recin alcanzan su horizonte,

    en el ojo de la mente. Esta imagen de la nacin o de la narracin podra parecer romntica en extremo y metafrica por dems, pero es precisamente de esas tradiciones del pensamiento

    poltico y el lenguaje literario de donde surge la idea de nacin

    como una idea histrica poderosa en Occidente. Una

    representacin cuya compulsin cultural reside en la unidad

    imposible de la nacin como fuerza simblica1 (BHABHA, 2010,

    p.11).

    A nao, sem dificuldades, compreendida por cada indivduo que nela est inserido

    como parte de sua experincia concreta no mundo. Em outras palavras, a vida do (e no)

    pertencimento nacional , em uma primeira instncia, aquela que se desenrola a partir dos

    1 As origens das naes, como as das narraes, se perdem nos mitos do tempo, e se aproximam do seu

    horizonte, no olho da mente. Esta imagem da nao ou da narrao poderia parecer romntica ao extremo ou metafrica por demais, mas precisamente dessas tradies do pensamento poltico e da

    linguagem literria que surge a ideia de nao como uma ideia histrica poderosa no Ocidente. Uma

    representao, cuja compulso cultural reside na unidade impossvel da nao como fora simblica (Traduo livre do autor).

  • 3

    eventos cotidianos, cuja repetio naturaliza uma poderosa estrutura simblico-normativa

    como dispositivo regular para repetio ordinria das milhares de rotinas individuais. Em

    uma segunda instncia, por sua vez, recorremos ao universo da nao para consolidar e

    internalizar smbolos, imagens, costumes que traduzam como normal, rotineiro, aquilo

    que realizamos ao longo de nossas vidas, trajetrias orientadas por um conjunto

    aparentemente sem fim de faltas, carncias: a felicidade, a riqueza, a sade, a

    tranquilidade, a paz etc. Todas essas expectativas devem funcionar como projetos

    individuais, no coincidentemente, contudo, repetidos exausto por grande maioria da

    populao que se define como tal a partir da insgnia da brasilidade.

    H duas grandes dificuldades iniciais que envolvem a pretenso da compreenso do

    pertencimento nacional como parte estruturante da vida comum. A primeira deve dizer

    respeito enorme abstrao necessria para pensar como efetivamente existente uma

    experincia nacional, devidamente conectada ou mais que isso ao dia concretamente

    vivido pelos indivduos. A segunda dificuldade, por sua vez, surge quando a transposio

    da nao enquanto experincia concreta, aos elementos simblicos que a consolidam,

    cumpre a fundamental agenda de produo do nacional como universal. De um lado,

    portanto, investe-se alto na ideia de um fazer o dia intimamente ligado a um

    pertencimento nacional que no pode, aprioristicamente, ser muito mais que uma

    projeo, uma abstrao. De outro lado, as tarefas de ordem e repetio dirias

    respondem, ainda que se constituam em experincias concretas, enquanto narrativas,

    produo do nacional a partir de seus smbolos, seus padres, costumes, hbitos etc.

    A nao, dessa maneira, e, no caso brasileiro, a brasilidade como dispositivo do

    pertencimento nacional, est erguida sobre dois pilares fundamentais, os quais seriam: (a)

    a nao como objeto dirio do uso comum vida cotidiana, rotinas, trabalhos,

    festividades etc. e (b) o pertencimento nacional como a narrativa que refora, enquanto

    imaginrio, os ordenamentos e classificaes que produzem o dia-a-dia smbolos,

    imaterialidade da experincia da brasilidade.

    Assim, vive-se, corriqueiramente, a dificuldade permanente de experimentar como rotina

    uma estrutura para significao do mundo que se d, de forma robusta, efetivamente,

    como narrativa. A relao entre nao e narrao, a essa altura, no poderia ser mais

    ntima.

  • 4

    No parece um exerccio muito complicado, nesse aspecto, pensar a forte influncia que

    a nao, compreendida a partir de uma tomada literal da narrativa a prosa e a poesia

    brasileiras, por exemplo exerce sobre o mtuo reconhecimento dos indivduos

    identificados pelo pertencimento narrado. A emergncia das identidades nacionais, e esse

    no um empreendimento restrito ao universo da brasilidade, est diretamente ligada s

    narrativas que produzem reconhecimento a partir de grandes oposies identitrias,

    geralmente construdas para excluir do nosso o antigo lugar do colonizador ... as

    aves que aqui gorjeiam no gorjeiam como l....

    Ao olhar a vida nas grandes cidades a partir da janela dos apartamentos, ou das agitaes

    festivas, ou dos clssicos do futebol local, por exemplo, essa influncia da narrativa se

    produz a partir de ordens que consolidam camadas de reconhecimento que esto aqum

    da fora que a literatura ou o pensamento poltico do sculo XIX (Bhabha) deram ao

    pertencimento nacional. Em outras palavras, a narrativa que traduz o mtuo

    reconhecimento atua, longe da primeira pretenso de Bhabha ao refletir sobre as relaes

    possveis entre nao e narrao, sobre o esforo para compreenso da vida cotidiana, a

    vida na cidade, como produto de uma narrao.

    Dessa maneira, o exerccio para que seja possvel entender a vida comum como objeto da

    articulao e deciso polticas faz ser imprescindvel a tomada do pertencimento nacional

    enquanto narrativa que produz sentidos no cotidiano. No se trata de reforar a influncia

    que os textos literrios ou o pensamento e as decises de uma macropoltica exercem

    sobre a construo e reproduo da sociedade, mas de como os eventos ordinrios que

    compem o universo de mtuo reconhecimento entre os atores comuns da vida social se

    erguem e so articulados por uma experincia nacional que no pode abrir mo de ser,

    primordialmente, uma narrativa.

    La localidad de la cultura nacional no est unificada ni constituye una unidad en relacin consigo misma, y tampoco

    debe ser considerada simplemente otra en relacin con lo que est fuera o ms all de ella. La frontera tiene dos caras, y el

    problema del adentro y el afuera siempre debe ser en s mismo un

    proceso de hibridacin que incorpore a gente nueva en relacin con el cuerpo poltico, genere otros espacios de significacin e,

    inevitablemente, en el proceso poltico, produzca lugares acfalos

    de antagonismo poltico y fuerzas impredecibles para la

    representacin poltica. El recurso a la nacin como narracin

  • 5

    enfatiza la insistencia del poder poltico y la autoridad cultural en

    lo que Derrida describe como el exceso irreductible de lo sintctico sobre lo semntico2 (BHABHA, 2010, p.15).

    Esse entendimento nos ajuda a concluir sobre uma dimenso da vida poltica que est

    alm dos acordos formais entre chefes de Estado, ou mesmo as reivindicaes que

    constituem uma agenda pblica dos diversos movimentos sociais. A nao compreendida

    enquanto objeto de uma narrativa produz como poltico o espao para vida e consumo

    coletivos, as estratgias de produo de subjetividade, e as lgicas para normatizao e

    regulao da vida pblica, mas no somente.

    A narrativa que consolida o pertencimento nacional como recurso para mtuo

    reconhecimento tambm responsvel por vigilncia e disciplina dos corpos, ou seja,

    reproduz no corpo o programa de uma identidade nacional, seja para reificao dos tipos

    pblicos, seja para a traduo biolgica de um poder poltico que se estende de uma

    cultura da brasilidade a um pertencimento nacional que se d pelo ato poltico do estar

    vivo.

    Falamos, portanto, de um nosso que nasce da narrativa antes mesmo de ser traduzido

    pelos grandes smbolos nacionais ou pela fora poltica dos Estados, mas que no deixa

    de ser, por certo, orientada pelo brao institucional que lhe d cores e amplifica sua voz.

    Assim, mesmo compreendendo a diferena como importante linguagem de constituio

    desigual do pertencimento, o ns conservado como instrumento para solidificao do

    social como produto da narrativa do nacional. Com isso, no se deve procurar a denncia

    de um pertencimento desigual como efetivo lugar crtico ao nacional, mas construir

    apenas um ponto de partida a partir do qual naturalizamos a desigualdade enquanto

    importante linguagem para consolidao da experincia nacional como universal,

    estabelecimento e reproduo de um discurso que passa a ter o ns como principal

    referncia. Dessa forma, como afirma Bhabha, o ... otro nunca est fuera o ms all de

    2 A localidade da cultura nacional no est unificada nem constitui uma unidade em relao consigo

    mesma, e tampouco deve ser considerada simplesmente outra em relao com o que est fora ou para alm dela. A fronteira tem duas faces, e o problema do dentro e do fora sempre deve ser em si mesmo um

    processo de hibridizao que incorpore a gente nova em relao com o corpo poltico, gere outros espaos de significao e, inevitavelmente, no processo poltico, produza lugares acfalos de antagonismo

    poltico e foras imprescindveis para a representao poltica. O recurso nao como narrao enfatiza a

    insistncia do poder poltico e a autoridade cultural naquilo que Derrida descreve o excesso irredutvel do sinttico sobre o semntico (Traduo livre do autor).

  • 6

    nosotros; surge con fuerza dentro del discurso cultural cuando pensamos que hablamos,

    de la manera ms ntima y natural, entre nosotros3 (2010, p.116).

    Nesse sentido, o texto que segue est subdividido em outras trs etapas, dedicadas a

    observar a emergncia, articulao e continuidade de linguagens do nacional para

    constituio de um dispositivo disciplinar que se traduz na experincia do sempre

    existir da nao (a tradio) e, ao mesmo tempo, funcionar como norte para lgicas

    contemporneas de ampliao-democratizao-recolonizao de sociedades atormentadas

    por eventos que, ao longo do sculo XX, pautaram revises dos projetos societrios e

    identitrios dos supostamente inabalveis Estados-nao. O objetivo central da

    argumentao que pretendemos desenvolver nas pginas seguintes, portanto, sugerir

    uma articulao entre os braos apenas pretensamente opostos das dinmicas do

    nacional, a saber, biopoltica e reconhecimento. Para tanto, construmos, em um primeiro

    estgio, discusso a respeito da relao entre tradio, colonialismo e biopoltica (ponto

    dois); em um segundo estgio, buscamos o alinhamento entre o desenvolvimento de

    estratgias de disciplina do corpo-populao de uma nao a partir das lutas por

    reconhecimento-incluso no eixo da experincia nacional (ponto trs); por fim, na ltima

    etapa da argumentao que se desenvolve, seu terceiro estgio (ponto quatro,

    consideraes finais), pretendemos oferecer elementos para projeo de vocabulrio

    poltico que tenha o desafio da contra-identidade como ponto de partida para superao

    das lgicas de biopoltica-reconhecimento do nacional.

    2. Tradio e biopoltica

    Sati como um nome prprio de mulher bastante difundido na

    ndia hoje em dia. Dar o nome a uma criana do sexo feminino de

    boa esposa encerra uma certa ironia antecipatria. E a ironia ainda maior porque esse sentido do substantivo comum no o

    operador principal do nome prprio. Por detrs do ato de dar o

    nome criana est a Sati da mitologia hindu Durga em sua manifestao como uma boa esposa. Em uma parte da histria,

    Sati ela j era chamada assim chega corte de seu pai sem ser convidada, e, ainda, sem um convite para seu divino marido Siva.

    3 O ...outro nunca est fora ou alm de ns; surge com fora dentro do discurso cultural quando

    pensamos que falamos, da maneira mais ntima e natural, entre ns (Traduo livre do autor).

  • 7

    Seu pai comea a ofender Siva e Sati morre de dor. Siva chega e,

    em um estado de fria, dana sobre o universo com o corpo de

    Sati em seu ombro. Visnu desmembra o corpo de Sati e os

    pedaos so jogados sobre a terra. Em torno de cada uma dessas

    relquias h um importante lugar de peregrinao (SPIVAK,

    2010, p.120).

    O Sati mais recorrentemente apresentado como a prtica do suicdio da viva indiana

    na pira funerria de seu marido. Na narrativa tradicional, a prtica data aproximadamente

    do ano 400 e representa a fidelidade da boa esposa que deve, moralmente,

    voluntariamente entregar sua vida em homenagem a um marido que, morto, faz da vida

    da esposa algo sem sentido. Devido falta de registros precisos, no possvel estimar

    quantas mulheres praticaram a Sati e, devido proibio pelo Estado indiano, indicar a

    continuidade, ainda em nossos dias, da prtica da autoimolao das vivas transformou-

    se em exerccio bastante complicado, apesar de alguns casos conhecidos. Registros da

    Companhia das ndias Orientais Britnica, no sculo XIX, apresentam, em curto recorte

    (1813-1828), o nmero de 8.135 casos de Sati.

    Durante o processo de colonizao britnica na ndia, uma das peas de maior expresso

    de etnocentrismo do colonialismo europeu, a prtica da Sati foi proibida, norma, mais

    tarde, referendada pelo Estado indiano, consolidado aps os processos de independncia.

    Frequentemente, a proibio vista como um das poucas decises polticas acertadas do

    Imprio Britnico sobre sua ento colnia. Spivak (2010) apresenta esse esforo europeu

    a partir do resumo mais recorrente na mxima mulher de pele escura salva de homem de

    pele escura por homem de pele branca. A autora no est, contudo, interessada,

    importante deixar claro, em reproduzir o discurso etnocntrico docilizado por uma

    espcie de boa causa que bem deve justificar a interveno poltica do colonizador

    algo, em nossos dias, ainda to intensamente atual.

    A interveno britnica, nesse aspecto, indica, atravs de complexo cruzamento entre o

    poder da norma e a fora da represso policial, o brao do poder soberano que se estende

    do colonizador sobre os grupos reconhecidos como selvagens, que devem ser objeto

    imediato de processo civilizador. A norma que probe o ritual, portanto, sugere o lugar de

    voz do colonizador para fazer referncia direta ao ttulo do texto de Spivak, Pode o

    subalterno falar? como instrumento poltico inquestionvel e indiferente em relao s

    prticas culturais locais e sua inscrio no elemento tradicional como um de seus mais

  • 8

    importantes recursos para fabricao de um diagrama identitrio que consolide a nao

    como lugar maior de mtuo reconhecimento. A norma animaliza o ritual e o submete a

    pretenso processo sutil de regulamentao que deve culminar com a disciplina sobre os

    rituais.

    Certamente, no um exerccio muito complicado encontrar um sem nmero de

    argumentos que se utilizam da crtica ao etnocentrismo para apontar a normatizao

    das comunidades colonizadas como destacado mecanismo de apagamento das tradies

    locais enquanto importante recurso poltico dos grupos submetidos dominao colonial.

    Alguns dos rituais tradicionais das sociedades submetidas ao elemento colonizador, no

    entanto, ainda em nossos dias e, provavelmente, de forma ainda mais intensa, visto que

    todo esse processo coberto por uma poderosa indstria de mdia recebem, em uma

    espcie de esfera pblica global (miditica), o apoio, de um lado, dos grupos polticos

    mais conservadores preocupados com a conservao de uma moral do colonizador e

    com os lucros que a abertura e/ou ampliao de novos mercados podem produzir e, de

    outro lado, dos cada vez mais endinheirados e destacados grupos ativistas preocupados

    com a sade do outro como movimento de estetizao do perifrico, o que confirma,

    por exemplo, o cruzamento entre museus e antropologia como um dos mais destacados

    esforos para sofisticado tipo de colonizao doce sobre os grupos ainda conservados

    como selvagens. O Sati enquadra-se, sem muitas dificuldades, nesse universo como bom

    exemplo da prtica tradicional que precisa ser superada, ainda que isso implique a

    interveno do brao colonizador do Ocidente como linguagem.

    Em tempo, no nos interessa desenvolver argumentao que procure solucionar uma

    querela entre ativistas e neoconservadores que traduzem, no mundo poltico

    contemporneo, forte simpatia por intervenes brancas ou no, doces ou no , tidas

    como soluo poltica para a produo de sociedades mais equitativas, cada vez mais

    abalizadas pelo instrumento poltico do reconhecimento como extenso dos antigos, e em

    suposto desgaste, nacionalismos. Ativistas ou neoconservadores reivindicam, nesses

    casos especficos, o bom senso como nvel de saber suficientemente equilibrado para

    julgar o que e o que no bom para politicamente realizar. Na poltica internacional,

    normalmente, esse movimento resolvido por avaliao que se utiliza dos direitos

    humanos como referncia fundamental para julgar, mesmo entre os rituais tradicionais,

  • 9

    aquilo que desqualifica o humano e que, portanto, precisa ser extinto. Nesse aspecto, no

    parece restar muitas dvidas: todos concordam com o fim do Sati, como concordamos

    com o fim do racismo, da pedofilia etc.

    O elemento chave em questo que, mais recorrentemente, visualizamos o elemento

    colonial apenas na dominao estrangeira. Casos como do Sati, quando estamos

    dispostos a reproduzir o discurso colonial como bom instrumento poltico para vencer

    uma prtica tradicional reprovada pelo mundo ocidental, exigem cuidado metodolgico

    maior. O ponto de partida para tanto, esforo que Spivak desenvolve em sua reflexo,

    considerar o colonial como fora poltica que no est restrita dominao estrangeira,

    mas como traduo de um poder soberano que pode, eventualmente, se manifestar

    mesmo nas ditas comunidades tradicionais.

    O colonial, nesse sentido, traduz sempre o instrumento da nao como dispositivo de

    disciplina do mundo pblico, seja na relao que se estabelece entre o colonizador

    europeu e suas colnias, no sculo XVI ou XX, seja, de forma mais complexa, nas

    comunidades tradicionais, onde, supostamente, no possvel perceber as linhas abissais

    sobre as quais discute Boaventura de Sousa Santos.

    Este o momento para revelar que sati ou suttee, como o nome

    prprio do ritual da autoimolao de vivas, celebra um erro

    gramatical por parte dos britnicos, assim como a nomenclatura

    ndio americano celebra um erro factual por parte de Colombo. A palavra em vrias lnguas indianas a queima da sati ou da boa esposa, que assim escapa da estagnao regressiva da viva

    em brahmacrya. Isso exemplifica as sobredeterminaes das

    questes de gnero-classe-raa referente situao (SPIVAK,

    2010, p.115).

    Tomando como referncia a ilustrao destacada nesta etapa da reflexo, o Sati no

    simplesmente a autoimolao da viva. Uma histria social do Sati revela mais sobre

    seus cruzamentos de sentido do que a apresentao da prtica tradicional capaz de

    revelar. Em primeiro lugar, mesmo em diversas das lnguas indianas, Sati no significa o

    suicdio da esposa; essa passagem normalmente representada pela expresso a queima

    da Sati, o que revela a prtica do suicdio apenas como parte de uma designao que

    generaliza o lugar do feminino a partir de sua ligao ao casamento e de suas funes

    como esposa: a Sati e no mais o Sati a boa esposa.

  • 10

    Escrevi anteriormente sobre uma contranarrativa construda da

    conscincia da mulher, e, portanto, do ser da mulher, da mulher

    como um ser bom, do desejo da mulher boa, e, assim, do desejo

    da mulher. Esse deslizamento pode ser visto na fratura inscrita na

    prpria palavra sati, a forma feminina de sat. Sat transcende

    qualquer noo especfica de gnero masculino e se move no

    apenas em direo ao humano, mas universalidade espiritual.

    o particpio presente do verbo ser e, como tal, significa no apenas ser, mas tambm a Verdade, o Bom, o Justo. Nos textos sagrados a essncia, o esprito universal. Mesmo como um

    prefixo, indica apropriado, venturoso, digno. suficientemente

    nobre para ter entrado no discurso mais privilegiado da filosofia

    ocidental moderna: a meditao de Heidegger sobre o Ser. Sati, a

    forma feminina dessa palavra, significa simplesmente boa esposa (SPIVAK, 2010, pp.114-115).

    A autoimolao da Sati no parece equvoco, agora, apresentar dessa forma um

    reforo, em um aspecto, sobre a condio da mulher ligada suposta funo-esposa e, em

    outro aspecto, sobre a submisso do feminino a uma construo moral que orienta o

    poder do masculino como ponto de partida para a produo da subjetividade da mulher.

    Est guardado, portanto, no ritual tradicional, forte movimento de submisso da mulher

    que exige, inclusive, a distoro da narrativa mitolgica como etapa fundamental para

    consolidar como ritual um dispositivo colonial-nacionalizante do poder soberano do

    masculino sobre o feminino: o trnsito de Durga a Sati. Assim, a deusa que orienta para o

    feminino a narrativa da distribuio, sobre a terra, da energia do mundo substituda, no

    imaginrio da autoimolao das vivas, pela Sati, aquilo que a reduz, somente,

    condio de boa esposa. A morte de Durga, que, alis, no se d como autoimolao pela

    morte de Siva, seu marido, mas pela fidelidade e forte vinculao ao mesmo o que, no

    Ocidente, no tardaramos a chamar de amor , passa, dessa maneira, a ser representada a

    partir da queima da Sati, como a morte de um sujeito que, sendo simplesmente boa

    esposa, no pode viver sem que sua vida se oriente pela vida de seu marido.

    No ritual da Sati est presente, portanto, e a proibio pela norma britnica no anula tal

    movimento, o brao colonizador e, talvez, a palavra mais adequada para a

    caracterizao fosse mesmo nacionalizante que institui o sadomasoquismo apontado

    por Freyre como base para uma dominao relacional entre os membros de um mesmo

    grupo enquanto linguagem que se estende, traduz-se ou, para ser fiel reflexo de

    Spivak, desliza para o colonial como novo lugar seguro.

  • 11

    Pode talvez ser apreendido at mesmo quando dito s claras:

    homens brancos, procurando salvar mulheres de pele escura de

    homens de pele escura, impem sobre essas mulheres uma

    construo ideolgica ainda maior ao identificar, de forma

    absoluta, dentro da prtica discursiva, o fato de ser boa esposa

    com a autoimolao na pira funerria do marido. Do outro lado

    de tal constituio do objeto, a abolio (ou remoo) do que

    proporcionar a ocasio para o estabelecimento de uma boa

    sociedade, distinta de uma sociedade meramente civil, a

    manipulao hindu da constituio do sujeito feminino sobre a

    qual tentei refletir (SPIVAK, 2010, p.115).

    A passagem de Durga a Sati representa, dessa forma, a disposio do tradicional para ser

    traduzido como brao do, na reflexo de Spivak, colonial para a permanncia da

    submisso do feminino. Em tempo, podemos sugerir o tradicional como importante

    dispositivo para reproduo do nacional-brasilidade, reforando-o a partir de um sempre

    existir da nao que se inscreve sobre cada um dos indivduos e suas estratgias de

    socializao. Em outras palavras, produzimos como tradicional os valores que acentuam

    a brasilidade enquanto dispositivo para produo de subjetividade que no pode ser visto

    como colonial, visto que reproduz um desde sempre que funciona permanentemente

    como o escudo da tradio.

    A essa altura, a questo no deve tratar da necessidade de indicar, como fizeram

    Hobsbawm e Ranger (1997) em j clssica reflexo sobre a inveno das tradies no

    mundo pr-moderno britnico, a tradio como produto de invenes, articulaes entre

    os grupos de elite e seus interesses para ordenamento de vida e consumo coletivos. No

    nos interessa, aqui, apresentar, no caso especfico da brasilidade, quais elementos

    tradicionais tm um processo histrico como sua estrutura e quais efetivamente

    representam apenas as extenses do poder soberano a um imaginrio popular

    intensamente influenciado pela fora dos grupos gestores da vida pblica. Para alm dos

    textos constitucionais, mas certamente ainda cruzado por ele, o elemento tradicional deve

    ser compreendido, em nosso tempo, como sofisticado dispositivo para reproduo, em

    regimes democrticos, por exemplo, de uma poltica disciplinar que tem o controle sobre

    os corpos individuais, populacionais, urbanos, nacionais etc. como seu mais

    importante objeto.

  • 12

    Assim, mesmo em setores da sociedade que representam a intelligentsia ou entre os

    grupos mais esclarecidos para formao e reproduo da opinio pblica, encontramos,

    no elemento tradicional, j independentemente de uma brasilidade formalizada pelos

    textos constitucionais, importante fonte para reunio e referncia permanente a um reset

    poltico que deve ser sempre mobilizado quando precisarmos recuperar os instrumentos

    que fundam a experincia nacional e o dispositivo de brasilidade: a tradio. No perder

    de vista o carter, no mundo contemporneo, biopoltico do tradicional condio

    fundamental para, no Brasil ps-1988, compreender as dinmicas que reproduzem, ainda

    em nossos dias, a brasilidade como melhor acabado instrumento para produo de

    subjetividade. Ainda em Spivak, podemos ver esse esforo para traduo, no

    contemporneo, do tradicional como ferramenta para localizao de indivduos e

    ordenamento da vida pblica:

    Uma jovem de 16 ou 17 anos, Bhuvaneswari Bhaduri, enforcou-

    se no modesto apartamento de seu pai no norte de Calcut, em

    1926. O suicdio se tornou um enigma, j que, como

    Bhuvaneswari estava menstruada na poca, claramente no se

    tratava de um caso de gravidez ilcita. Quase uma dcada depois,

    foi descoberto que ela era membro de um dos muitos grupos

    envolvidos na luta armada pela independncia da ndia. Ela tinha

    finalmente sido incumbida de realizar um assassinato poltico.

    Incapaz de realizar a tarefa e, no obstante, consciente da

    necessidade prtica de confiana, ela se matou.

    Bhuvaneswari sabia que sua morte seria diagnosticada como

    resultado de uma paixo ilegtima. Ela, ento, esperou pelo incio

    da menstruao. Enquanto aguardava, Bhuvaneswari, a brahmac

    rini que indubitavelmente esperava exercer a condio de uma

    boa esposa, talvez tenha reescrito o texto social do suicdio sati

    de uma maneira intervencionista (uma explicao presumvel

    para seu ato inexplicvel tinha sido uma possvel melancolia

    causada pelos repetidos insultos de seu cunhado pelo fato de ela

    ser velha demais para ainda no estar casada). Ela generalizou o

    motivo sancionado para o suicdio feminino ao se dar o imenso

    trabalho de deslocar (no simplesmente negar), na inscrio

    fisiolgica de seu prprio corpo, seu aprisionamento em uma

    paixo ilegtima por um nico homem. No contexto imediato, seu

    ato se tornou absurdo, um caso de delrio mais do que de

    sanidade. O gesto de deslocamento esperar a menstruao , inicialmente, uma inverso da interdio contra o direito de uma

    viva menstruada de se imolar. A viva impura deve esperar,

    publicamente, at o banho purificador do quarto dia, quando ela

    no est mais menstruada, para reivindicar seu dbio privilgio.

  • 13

    (...)

    Tenho conhecimento da vida e morte de Bhuvaneswari por meio

    de conexes com sua famlia. Antes de investig-las

    minuciosamente, indaguei uma mulher bengali, uma filsofa e

    estudiosa do snscrito, cuja produo intelectual inicial quase

    idntica minha, para iniciar o processo. Obtive duas respostas:

    (a) Por que, quando duas irms, Saileswari e Rseswari, levaram

    vidas to plenas e maravilhosas, voc est interessada na infeliz

    Bhuvaneswari? (b) Perguntei a suas sobrinhas. Parece que foi um

    caso de amor ilcito (2010, pp.123-124).

    Ainda que Bhuveswari tenha produzido o deslocamento do colonial ao cometer suicdio

    estando menstruada, sua figura pblica mencionada, mesmo entre membros de sua

    famlia, como produto fatdico de um amor no permitido, o que a enquadra na formao

    tpica que tem como ncora, de um lado, o sacrifcio do feminino pelo poder do

    masculino e, de outro lado, o silenciamento da voz do subalterno que, no caso especfico,

    como mulher, no pode falar.

    O suicdio poltico, dessa maneira, deve permanecer ocultado, mesmo sendo essa uma

    suposta causa superior morte por um amor ilcito. Spivak enfatiza, ainda, a opinio da

    familiar procurada que, ao responder s questes da investigadora, em primeiro lugar,

    indica a conduta das irms de Bhuvaneswari, provavelmente ditas boas esposas, como

    referncia mais importante que aquela cuja trajetria culminou com o suicdio; em

    segundo lugar, marca o local da j longnqua familiar a partir de uma impossibilidade de

    fala que tem a morte pelo impedimento de um amor indisciplinado como razo que

    qualifica como normal, ainda que doloroso, o suicdio de algum ainda to jovem.

    Se, na crtica ao colonial, nos acostumamos a pensar a interveno estrangeira como

    principal problema poltico de jovens naes vivendo processos polticos de

    independncia atormentados por um imaginrio colonial ainda muito presente, a oferta

    que a reflexo de Spivak nos faz tem como base a possibilidade de pensar o tradicional

    como dispositivo de traduo do poder soberano que caracteriza o brao poltico do

    colonizador. Bhuvaneswari poderia, nesse aspecto, ser uma vtima pblica do

    colonialismo britnico, de forma alguma menos violento que o movimento mobilizado

    pelo tradicional, mas no o somente. O instrumento que localiza e disciplina

    Bhuvaneswari o sempre existir do nacional, traduzido por uma tradio que, distante

  • 14

    de precisar ser inventada, materializa-se, no caso especfico do Brasil, como a brasilidade

    que deve dar sentido a sua inscrio como sujeito poltico.

    O subalterno no pode falar. No h valor algum atribudo

    mulher como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representao no definhou. A mulher intelectual

    como uma intelectual tem a tarefa circunscrita que ela no deve

    rejeitar com um floreio (SPIVAK, 2010, p.126).

    pergunta pode o subalterno falar? respondemos, sem grandes dificuldades, que no.

    A ordem biopoltica que, em nossos dias, se instala para repetir como sempre presente

    uma nao que, no entanto, se constitui diariamente, sem precisar fazer grandes

    referncias ao elemento normativo das leis que lhe do concreticidade, faz parecer

    dispensvel qualquer arena para debate e alternncia de compreenses polticas que

    tenham como ponto de partida a rasura da brasilidade como possibilidade e a superao

    do nacional como estratgia poltica para deslocamento do poder soberano das leis e do

    governo do Estado.

    Livres de reivindicar para a mulher intelectual a tarefa poltica da superao do local

    disciplinador atribudo ao feminino seja pelo poder opressor do colonial, seja pela fora

    soberana docilizada do elemento tradicional , podemos simplesmente reforar o carter

    silenciador, em nossos dias, da nao como vaso para os movimentos sociais que lutam

    por melhores condies de vida e consumo coletivos. A conservao da ordem, o

    progresso da nao, a estabilidade dos valores morais, a sade da famlia e a salvao

    pelo trabalho so, vias de regra, mximas repetidas, com variaes, por grupos que,

    recorrentemente, tm a superao de um lugar de dominao como sua tarefa poltica

    feita pblica.

    Nesse estgio de nossa reflexo, parece cada vez mais claro como as bandeiras que

    reivindicam mudanas sociais atreladas conservao do elemento nacional esto, assim,

    condenadas ao fracasso do lugar vazio do suposto reset poltico como apenas um dos

    problemas que, normalmente, no so sequer visualizados. No se trata de uma nao

    que precisa ser reconstruda, mas de uma estrutura do nacional que precisa ser, em seu

    ponto de partida, estranhada.

  • 15

    O reconhecimento como dever poltico do mundo contemporneo, tarefa to prontamente

    assumida por naes como o Brasil, deve estar claro, no vai ser suficiente.

    3. O nascimento da biopoltica e a luta por reconhecimento

    O Ocidente enquanto sujeito objeto central da crtica na reflexo de Spivak. As teses

    que recorrentemente destacam a impossibilidade de aplicao, em sociedades para alm

    das linhas abissais (SOUSA SANTOS, 2010), contudo, no so novas e, desde Said e seu

    clssico estudo sobre o Orientalismo (1978), constituem uma crescente rede de

    vocabulrios novos, conceitos que pretendem fazer ser mais sofisticadas ou mesmo rever,

    desconsiderar, algumas das leituras desenvolvidas por pensadores europeus ou

    estadunidenses e intensamente utilizadas ao longo do sculo XX, tais como a produo

    de Foucault, Deleuze, Althusser, Habermas etc.

    Nos casos especficos de Foucault e Habermas, esses usos e progressivos desusos de suas

    reflexes merecem alguma referncia mais cuidadosa, compromisso que este trabalho, a

    essa altura, no mais assume. No entanto, as muitas extenses da obra desses dois

    intelectuais europeus s mais variadas reflexes produzidas de dentro do velho continente

    ou no, devem fazer surgir, ao menos, dois pargrafos desta discusso que se dediquem

    aos dois pensadores, de imediato, to excludentes.

    De um lado, a passagem dos estudos disciplinares s tecnologias sobre o corpo e

    populao caracteriza, na obra madura de Foucault, o desenvolvimento da noo de

    biopoder e biopoltica como ponto de partida para novas formas de atuao da esfera

    poltica no mundo contemporneo; instrumentos desenvolvidos para a fora poltica

    sobreviver sem a atuao imediata da instituio estatal, incorporada s estratgias de

    produo de subjetividade e de reconhecimento do corpo como lugar tenente de agncia

    poltica. Essas reflexes, intensamente presentes nos cursos Em defesa da sociedade

    (1975-1976), Segurana, territrio e populao (1977-1978) e o Nascimento da

    biopoltica (1978-1979), sugeriram o desenvolvimento de poderes disciplinares que se

    estendem das instituies escolas, presdios, hospitais e exrcitos s tcnicas sobre o

    corpo e a condio de sujeito, o que culminou, em sua obra, com a publicao dos trs

    volumes de Histria da sexualidade A vontade de saber (1976), O uso dos

  • 16

    prazeres (1984) e O cuidado de Si (1984) quando o autor pretendia desenvolver suas

    reflexes sobre o biopoder e sua extenso biopoltica. Desde ento, um sem nmero de

    produes procuraram, de um lado, desenvolver as discusses de Foucault, cruzando suas

    elaboraes com as de demais autores interessados nas formas polticas do

    contemporneo. O projeto Homo Sacer, de Giorgio Agamben, um bom exemplo disso,

    ao sugerir cruzamentos possveis entre Foucault, Arendt e Schmitt, tendo as noes de

    biopoltica e biopoder como ponto de partida. Muitas produes, contudo, buscaram

    simplesmente transpor as observaes do autor para casos particulares nem sempre

    claramente disponveis para cruzamentos epistemolgicos, o que findou por produzir

    grandes abusos das noes desenvolvidas por Foucault e progressiva crtica ao autor

    como supostamente intraduzvel para a realidade ps-colonial.

    Movimento semelhante pode ser observado a partir da Ao comunicativa, de

    Habermas. Pode-se dizer, sem grandes reservas, que o pensador alemo foi um dos

    autores da moda da dcada de 1990 nas universidades brasileiras, notadamente por ver

    estendida aos mais diversos objetos de pesquisa uma ideia simplificada da ao

    comunicativa, promessa para resolver nossas mais complexas questes da esfera poltica

    com suposta disposio para o dilogo dos membros gestores dos grupos sociais

    distintos. A ao comunicativa consolidou o reconhecimento como grande instrumento

    poltico do ps-guerra para uma administrao democrtica das diferenas culturais,

    consolidando, entre outras coisas, sem razo epistemolgica direta, o multiculturalismo

    como uma das palavras mais utilizadas por governos democrticos de pases como a

    Frana, Inglaterra e Brasil. Como citamos Agamben como exemplo de tratamento mais

    cuidadoso com a reflexo de Foucault, Honneth, com seu bastante lido Luta por

    reconhecimento (2003), pode ser citado, moderadamente, como extenso da ao

    comunicativa habermasiana.

    Fiz referncia aos dois autores por acreditar que, em nossos dias, com progressiva

    indicao pblica da falncia das leis como instrumento poltico inquestionvel e cada

    vez mais visvel capacidade de mobilizao de grupos em torno de, de um lado, uma

    dilatao das sociedades contemporneas s reivindicaes por novos direitos e, de outro

    lado, de uma demanda de deslocamento, estranhamento, deslize do social para formas de

    aglutinao diversas, biopoltica e reconhecimento transformaram-se, no somente nos

  • 17

    restritos e restritivos centros universitrios, em palavras de ordem para organizao e

    funcionamento de movimentos para reviso ou cumprimento dos direitos, ou mesmo de

    agendas governamentais de chefes de Estado de naes como EUA, Venezuela, Brasil,

    China e Frana, por exemplo.

    Quase sempre excludentes, os conceitos de biopoltica e reconhecimento tm sido cada

    vez mais presentes nos grandes crculos de debate para, respectivamente, apontar os

    colapsos do Estado de bem-estar e suas novas lgicas de opresso, de um lado, e, de

    outro lado, indicar os caminhos de volta de uma face poltica do contemporneo

    perigosamente filiada a grupos cada vez mais conservadores.

    A noo de biopoltica, uma economia poltica da vida, , nesse aspecto, recorrentemente

    utilizada para identificar e criticar as condutas dos governos e suas tradues nas esferas

    microssociais para gesto de vida e consumo coletivos. O reconhecimento, por sua vez,

    j no ps-guerra, entorpecendo pensadores do quilate de Adorno, como no seu quase

    manifesto Educao aps Auschwitz, tem funcionado, sistematicamente, como maior

    bandeira das naes interessadas em uma vida poltica pautada na paz e no controle dos

    conflitos.

    Distantes de investir no colapso das leis com um suposto fim da histria ditado pela

    queda do Muro de Berlim e os vazios polticos produzidos pela cobertura capitalista do

    globo, sugerimos um sofisticado cruzamento entre biopoltica e reconhecimento como

    novo tom para extenses do pertencimento nacional em tempos de suposto ocaso dos

    nacionalismos. De um lado, o reconhecimento funciona como dispositivo de biopoltica

    para reforar uma lgica colonial que se perpetua, ainda em nossos dias, para fazer

    funcionar polticas imigratrias ou financiamentos de pesquisa em pases do antigo

    Terceiro Mundo. De outro lado, a tradio atua como destacada ferramenta para

    traduo, pelo reconhecimento, de polticas de administrao e requadriculamento dos

    grupos locais, fazendo cada vez mais vivo aquilo que Agamben chama de campo como

    paradigma poltico contemporneo.

    pergunta o que resta de Auschwitz?, ttulo do Homo Sacer III (2008), de Giorgio

    Agamben, podemos responder: o reconhecimento como biopoltica, que faz do Campo o

  • 18

    principal dispositivo para traduo, em nossos dias, do pertencimento nacional como

    instrumento para produo de subjetividade.

    Certamente, no falamos dos nacionalismos como no final do sculo XIX e at a primeira

    metade do sculo XX, mas no restam dvidas de que as polticas nacionais, no mundo

    contemporneo, ainda funcionam como elemento maior do que simplesmente pano de

    fundo para conflitos localizados aqum ou alm das dinmicas do nacional. Operado por

    dispositivos renovados, o pertencimento no caso do Brasil, a brasilidade atua para

    consolidar locais sociais perifricos como objeto de luta permanente por um

    reconhecimento que, por sua vez, nada mais oferece aos grupos envolvidos que a

    conservao da vida no Campo e as sofisticadas lgicas de opresso.

    Museus, cinema, teatro, msica, dana etc. passaram a cumprir a agenda, nos ltimos

    anos, de importantes operadores do comunitrio como fetiche de uma brasilidade que

    opera o lugar daqui como espao para desenvolvimento e consolidao daquilo que

    podemos chamar de zonas-gueto ou o Campo como paradigma poltico contemporneo.

    Sem grandes reservas, podemos concluir, indicando o reconhecimento como dispositivo

    biopoltico, o comunitrio como lgica de reforo do lugar enquanto Campo, a

    comunidade como centro para traduo da brasilidade e produo e concentrao da

    populao, o que eventualmente se manifesta, inclusive, no orgulho de ser objeto de

    controle do Campo.

    H ainda perguntas que no podem deixar de ser objeto da reflexo deste trabalho.

    Repetindo o movimento de Huyssen (2001) ao pensar o museu como instrumento para

    escapar da amnsia produzida como ferramenta de memria no mundo improfanvel do

    capital, questionamos: como escapar das linguagens do nacional em busca de novas

    formas do social que traduzam estratgias de produo de subjetividade e de sentidos

    para vida cotidiana que no estejam orientadas pelo pertencimento identitrio-nacional

    como ponto de partida?

    Nas discusses de autores como Bhabha, Spivak, Agamben e Maffesoli, esses indicativos

    surgem no desenvolvimento de vocabulrio que inclui as noes de deslocamento,

    deslizamento, estranhamento, qualquer, comunidade que vem, nebulosa afetual, segredo

  • 19

    etc., desafios para investigao que este trabalho no esgota, mas temas sobre os quais

    apenas timidamente ensaia.

    4. Contra o pertencimento e as tribos contraidentitrias

    Em nossos dias, debates a respeito da construo de regulamentaes para sujeitos no

    to novos, mas ora pretensamente desnacionalizados, ora reinseridos no projeto

    necessariamente revigorado de nao, so agenda para elaborao de leis, acordos

    pblicos para novos procedimentos, para a emergncia de diversos outros em um

    espao pblico, nesse sentido, necessariamente corrompido pela diferena.

    No centro, ou nas margens, de formaes sociais orientadas pelo projeto poltico,

    econmico, cultural da modernidade, grupos se organizam, motivados por um pouco

    racionalizado sentimento de afeto, em torno da construo daquilo que Maffesoli (1998)

    chama de socialidade eletiva. A unidade do projeto poltico concentrado nos ideais

    iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade pode ser, em um primeiro momento,

    relegada a um segundo plano na disposio da vida comum, cotidiana. Em um segundo

    estgio, pode ser borrada, rasurada pela emergncia de novos eixos, sem pretenses

    globalizantes ou estatutrias, para tambm novas dinmicas da vida compartilhada.

    Podemos dizer, com isso, que a vida cotidiana funciona ligada a motivaes mais

    diversas que uma orientao poltica articulada por uma espcie de estrutura cognitiva de

    um espao pblico na Modernidade. Assim, a observncia de dinmicas do que se pode

    chamar de socialidade ratifica um relativismo do viver diante do peso do projeto de

    vida em vigilncia das nacionalidades ou formaes identitrias do nosso tempo. Desse

    cenrio de intenso enquadramento simblico, emerge um novo ns, desta feita

    conectado a redes de solidariedade no necessariamente regidas por uma cartilha

    projetada e finalizada por lderes aclamados em vias pblicas. Um neotribalismo revela,

    portanto, um embate entre uma existncia social alienada por um poder multiforme,

    ligado ao intento da modernidade, e, por outro lado, uma potncia afirmativa do

    solidarismo, ou seja, uma potencialidade concentrada na disposio espontnea de grupos

    reunidos tendo o princpio do afeto como ponto de partida.

  • 20

    A partir de uma ordem poltica silenciadora, ativada pela pedra fundamental da incluso

    dos diversos outros em um projeto pretensamente coletivo e global, podemos falar na

    fabricao de um novo aparelho de reconhecimento do mundo, uma ordem da fuso,

    pretendida como organizao de uma dimenso afetiva e sensvel de novos grupos, ...

    massa onde se cristalizam as agregaes de toda ordem, tnues, efmeras, de contornos

    indefinidos (MAFESSOLI, 1998, p.102). O produto desse esforo um empenho

    cinzento, borrado, de vida coletiva ao qual se pode dar o nome de socialidade; algo que

    funciona independentemente de uma ordem pblica totalizante, mas que, por sua vez,

    tambm no se orienta por cartilhas comprometidas com reunificaes, reconquistas,

    resistncias a um modelo global de opresso cognitiva.

    A discusso mobilizada por Maffesoli (1998) em torno da noo de socialidade parece

    ser um bom ponto de partida para o desenvolvimento de um novo projeto de significao

    das ruas. No deve tratar a socialidade, importante frisar, de uma nova poltica global,

    pautada, desta feita, no desinteresse pelos discursos institucionalizados dos partidos ou

    grandes coletivos. No se pretende global, como tambm no orientada por um

    fortalecimento dos processos locais de identificao, objeto maior de uma poltica de

    incluso perifrica estruturada a partir do princpio dos desenvolvimentos locais. Todo

    um vocabulrio empreendido pela modernidade se faz desimportante na projeo de um

    mundo que se pretende em (re)encantamento, produto de dinmicas sociais tribais. Estas

    seriam operacionalizadas por uma poltica de redes sem centros e margens e uma

    lgica, estrutura de fazer o mundo, da fuso.

    O afeto, nesse sentido, funciona, ao mesmo tempo, como elemento motivador

    fundamental na fabricao da socialidade, e como soluo de continuidade para o grupo,

    que se desintegra sem traumas ou se conecta a novas redes aleatoriamente. A socialidade

    , portanto, escorregadia, denota um projeto pouco, ou nada, racionalizado, no se

    configura como resultado de acordos costurados pelo sujeito poltico-institucional. Tais

    categorias desaparecem na construo da socialidade, ativada por uma espcie de

    sintonia nebulosa. Deus (e a teologia), o Esprito (e a filosofia), o indivduo (e a

    economia) cedem lugar ao reagrupamento (MAFFESOLI, 1998, p.104).

    A lgica da fuso no permite a criao de espaos para a realizao das tradicionais

    identidades. Como estrutura formal de reconhecimento, os processos de identificao

  • 21

    instituem, necessariamente, um indivduo que no est presente na tribo. Ou seja, as

    redes so formadas em torno de uma expectativa que se realiza no afeto, no desejo do

    grupo e no na individuao, que um dos grandes produtos da modernidade. A

    abordagem das tribos, nesse sentido, essencialmente esttica, ou seja, no se produz a

    partir de uma histria linear, mas tem, como eixo, as repeties, as regularidades

    acompanhadas por sua desconstruo, um ordenamento cotidiano da vida na tribo, a

    experincia do estar-junto. Quanto s identidades, ... mesmo que ela continue a

    funcionar, o seu efeito de rolo compressor no tem mais a mesma eficcia

    (MAFFESOLI, 1998, p.105).

    A esttica como abordagem, no lugar das tradicionais identidades, destaca o papel do

    desejo e da ambincia no grupo: mecanismos de significao no e no do grupo. As

    tribos so, portanto, profundamente marcadas pelas caractersticas da fluidez

    movimento, mutao permanente , da disperso novas conexes, ausncia de

    fidelidade a um projeto, que efetivamente inexiste e dos ajuntamentos pontuais

    princpio primeiro da composio do grupo: a nebulosa afetual , condies

    fundamentais na construo da socialidade.

    Enquanto a emergncia do social marca o desenvolvimento de funes sociais para um

    ator construdo como indivduo, a socialidade tem, como marca, o desenvolvimento de

    papis para pessoas desindividualizadas, forjados no princpio da experincia

    compartilhada no racionalizada, otimizada pela eleio do grupo e o afeto que lhe d

    consistncia. Assim, ... autenticidade dramtica do social corresponde a trgica

    superficialidade da socialidade (MAFFESOLI, 1998, p.108). Em um neotribalismo, o

    ator , ao mesmo tempo, receptador dos significados produzidos em uma espcie de

    teatro de infinitas e dispersas mscaras, que tem como papel a retomada de uma cultura

    da tactilidade, ou seja, uma lgica do tocar. Assim, ... ultrapassando a categoria do

    individualismo, a socialidade nos permite con naitre (isto , nascer com) as novas formas

    de socialidade que esto emergindo (MAFFESOLI, 1998, p.111).

    O desejo de projeo de um novo indivduo, produto de uma abordagem esttica sobre as

    tribos, parece fracassar quando direcionado para um novo sujeito, acabado, centrado

    como o homem moderno nos ideais globalizantes do iluminismo nacionalista:

    liberdade, igualdade e fraternidade a servio de uma nova revoluo: uma espcie de

  • 22

    insurreio das redes. O agrupamento, sua aleatria desconstruo, um novo grupo, sua

    desarticulao, uma teia a mais em uma rede que, por outro lado, se parte em outra ponta,

    apresentam, em um primeiro momento de estudo, um indivduo fragilizado pela

    incapacidade do observador em mensurar estruturas, laos fortes o suficiente para darem

    conta de um novo social. A emergncia de um novo vocabulrio sociolgico, no entanto,

    preocupado com a articulao de seres supostamente desinteressados em uma coerncia

    identitria linear, tem, em metforas como a do teatro e a das mscaras, referncias

    fundamentais para a leitura de redes de interao social pretensamente pouco racionais e

    pautadas em expectativas de uma vida pblica descolada de princpios

    desenvolvimentistas de uma moderna poltica das cidades.

    Assim, nao, brasilidade, cidadania, eleies, universidades, shoppings ou parques de

    diverso (lazer), por exemplo, parecem fazer pouco, ou nenhum, sentido para grupos

    orientados por uma estrutura de fazer o mundo radicalmente diferente de uma razo-

    instrumental-com-respeito-a-fins: uma lgica fundada em uma fuso cinzenta, a

    nebulosa afetual, redes erguidas a partir do afeto, do desejo de um sujeito sem face: a

    pessoa ps-individual. Descrevemos, a partir da, um cenrio urbano ou rural

    rasurado ora pela ortodoxia de um fazer pblico disciplinado por uma empresa

    comunicacional poderosa um campo jornalstico administrado por grandes indstrias de

    notcia e entretenimento , por uma poltica institucional burocratizada ao extremo e,

    ainda assim, funcionalizada por relaes de apadrinhamento, carisma de lderes forjados

    em eficientes campanhas publicitrias, ora por um crime organizado poder invisvel

    em parceria com grandes mercados, ou uma lgica do crime, em fissura com princpios

    exaustos de uma igualdade certamente desgastada por seguidos fracassos em torno da

    elaborao de infindveis polticas do acesso a.

    ... se inegvel que existe uma sociedade poltica, e uma sociedade econmica, existe tambm uma realidade que dispensa qualificativos, e que a coexistncia social como tal que

    proponho chamar socialidade e que poderia ser a forma ldica da socializao (MAFFESOLI, 1998, pp.114-115).

    Em detrimento de uma solidariedade mecnica, normatizada por uma ordem da vida

    pblica estruturada na visibilidade, com o princpio da socialidade, emerge uma

    perspectiva orgnica dos laos sociais, redes que se instituem por uma verbalizao ou

    no do fazer comum e no necessariamente pblico da experincia coletiva. A esse

  • 23

    esforo, Maffesoli (1998) d o nome de socialidade orgnica. O ldico, nesse cenrio,

    funciona como importante elo entre expectativas diversas e reunidas em torno do estar-

    junto.

    No quadro do paradigma esttico, que me caro, o ldico

    aquilo que nada tem a ver com finalidade, utilidade,

    praticidade, ou com o que se costuma chamar realidade. , ao invs, aquilo que estiliza a existncia, que faz ressaltar as

    caractersticas essenciais desta (MAFFESOLI, 1998, p.115).

    Se, por um lado, uma tese a respeito de uma lgica diferente da j bem familiar razo

    instrumental assusta por uma caracterizao escorregadia do sujeito, de um esforo

    metodolgico pouco adaptvel s tradicionais noes de estruturas sociais ou

    individualismo, por outro lado, exige um ferramental cuidadoso, um vocabulrio

    atencioso no que diz respeito a expectativas de socialidade pautadas em um mundo sem

    um princpio macroestrutural fornecido por uma histria global equilibrada, esmiuada

    por empreendimentos metodolgicos forjados no desejo do conhecimento verdadeiro.

    nesse sentido que uma abordagem esttica, um estudo das sincronias, sinergias, simetrias

    em dinmicas da socialidade de uma lgica de redes, apresentada como importante

    mecanismo de reconhecimento de um empreendimento impulsionado pela reconstruo

    de um encantamento para o mundo.

    O pequeno grupo (...) tende a restaurar, estruturalmente, a

    eficcia simblica. E, pouco a pouco, vemos a constituio de

    uma rede mstica, com fios mais slidos, que permite falar do

    ressurgimento do cultural na vida social. Eis a lio essencial que

    nos d essa poca de massas. pocas como esta se apoiam

    principalmente na concatenao de grupos com intencionalidades

    estilhaadas, mas exigentes. isso o que proponho chamar de

    reencantamento do mundo (MAFFESOLI, 1998, p.117).

    Dessa maneira, podemos apontar um novo encantamento do mundo no em um projeto

    coerente que deve reger os reagrupamentos, mas o prprio esforo sobre o social na

    construo de novos grupos. Com frequncia, ao longo do sculo XIX e, intensamente,

    durante todo o sculo XX, podemos destacar a construo de grupos, de redes de grupos,

    desconectados das funes sociais ligadas a um poder multiforme e, em tese,

    extremamente eficiente.

  • 24

    Assim, se ainda durante a vida colonial naquilo que seria o Brasil, possvel falar em

    religies africanas adaptadas aos cones de uma fora em exerccio do catolicismo

    catequtico dos jesutas os nomes de santos africanos dados s branqueadas imagens da

    Igreja europeia nos parece plausvel, em nosso tempo, a elaborao de mecanismos que

    no tm a funo da resistncia a uma estrutura de saber-poder, mas o papel do

    reagrupamento permanente. As fbricas, at o terceiro quarto do sculo XX ainda bem

    prximas dos centros das grandes cidades brasileiras, configuram-se enquanto

    importantes locais de um duplo relacionamento mediado pela produo: em uma via, um

    operariado fabricado ora pela disciplina do trabalho, das sries produtivas, ora pela

    construo de identidades ligadas ao fazer operrio o operariado como classe. Em outra

    via, seu duplo, o espao da fbrica rasurado no por greves ou grandes manifestaes,

    tambm comuns no Brasil ao longo, intensamente, dos ltimos trinta anos vide o

    grande desenvolvimento do sindicalismo paulista e sua adaptao aos mais diversos

    sindicatos em todo o pas , mas pela simples construo de grupos possveis que

    mantiveram vivos os infinitos papis sociais ligados aos desejos, s expectativas de

    sujeitos violentados por um j tradicional processo de individuao.

    A associao mutualista cujas razes nas associaes religiosas so notveis, ou essas antigas subdivises paroquiais que so

    irmandades, remetem partilha fraternal. E suas etimologias insistem, particularmente, na convivialidade, na solidariedade

    familial, no pequeno agrupamento que encontra sua origem na

    longnqua partio do cl (MAFFESOLI, 1998, p.120).

    Essas construes so o que Maffesoli (1998) chama de formaes do tipo religioso,

    retomando o termo a partir do princpio do religar, nesse aspecto em desacordo com a

    etimologia apresentada pelo Agamben, e no pelo tom institucional que ele ganhou a

    partir de igrejas extremamente poderosas. As redes que se formam a partir de formaes

    do tipo seita configuram-se enquanto conjuntos desorganizados o termo mais adequado

    seria inorganizados , porm regidos por grande solidez concentrada no esforo quase

    aleatrio na composio das mscaras que ativam o grupo em uma espcie de teatro em

    que se transforma o espao pblico.

    Nesse cenrio, importante fazer ainda outro destaque: a ferramenta mobilizadora do

    segredo. Os grupos que se formam deslocados do princpio oficial de mundo pblico

    produto ora dos governos nacionais, ora de uma esfera miditica intensamente influente,

  • 25

    ora de grandes mercados de maneira geral tm como elo, em muitas de suas faces, um

    elemento compartilhado em sigilo. O mecanismo do segredo subverte, portanto, uma

    estrutura do saber-poder na modernidade: o controle pelo saber do perito, o saber pblico

    da anlise. Em um neotribalismo, o segrego cumpre a agenda desracionalizada, por um

    lado, do riso, do jocoso, e, por outro lado, da experincia compartilhada, do saber do

    grupo, que no tem a funo do controle e nem da anlise, mas de uma coerncia em

    mutao, do nome temporrio dado comunidade, do perfil hbrido, j em

    transformao, que caracteriza um grupo que sempre perene. As redes das sociedades

    secretas tm, portanto, tambm seus papis atrelados a uma dialtica sutil do mostrar e do

    esconder, da subverso do fazer saber.

    A reflexo sobre o segredo e sobre os efeitos do segredo, ainda

    que sejam anmicos, leva a duas concluses que podem parecer

    paradoxais. Por um lado assistimos saturao do princpio de

    individuao, com as inevitveis consequncias econmicas que

    resultam da. Por outro, podemos ver como se projeta um

    desenvolvimento da comunicao. esse processo que permite

    constatar que a multiplicao dos microgrupos s

    compreensvel num contexto orgnico (MAFFESOLI, 1998, p.134).

    O silncio, nessa perspectiva, refora e confirma uma solidariedade orgnica

    fundamental; expressa, assim, um vigor para a socialidade. A partir do segredo, podemos

    ver ser reforada uma espcie de mundo subterrneo que no se define a partir da

    superfcie; produz significados a partir de um eixo prprio, silencioso e no silenciado

    , tambm responsvel por traos a mais na mscara pblica do grupo: o ... inimigo tem

    menos importncia do que os laos sociais que eles [os grupos] tecem (MAFFESOLI,

    1998, p.132). O segredo, mais que uma resistncia a um tipo de mundo pblico, denota a

    autonomia do grupo, nomes produzidos para ativar uma lgica da fuso que sempre

    interna s redes.

    As tribos podem ter objetivos especficos formalizados, mas isso certamente no o

    essencial em sua composio. No so, portanto, funcionalizadas por suas normas

    internas que, em um mdio prazo, sobrepujam seus membros. A energia concentrada para

    construir a experincia comum, a vida do grupo, deve aparecer em destaque na

    abordagem esttica de uma dinmica de socialidade neotribal. Podemos, nesse aspecto,

    construir a noo de democracia certamente, rasurada pela anomia e pela ausncia de

  • 26

    uma dimenso generalizante de seus membros (o povo) atrelada ao desejo do afeto, da

    socialidade eletiva: uma democracia de redes, sem centro, sem periferias, em permanente

    estgio de mutao sem desenvolvimentos , expresso direta de uma criatividade

    reconstruda em meio zona cinza dos guetos produzidos pela democracia global.

    O tribalismo, parece-nos, retoma, nesse sentido, a importncia do afeto na edificao da

    vida social. Se ... a Modernidade viveu um outro paradoxo: o de unir, apagando a

    diferena, e a diviso que esta induz... (MAFFESOLI, 1998, p.141), um paradigma das

    redes faz serem desimportantes os mecanismos da igualdade e da diferena, visto que o

    grupo surge ainda do afeto. Garimpar relaes de poder rasuradas pela emergncia de

    novos grupos , contudo, um desafio do qual certamente este trabalho no d conta.

    Essas reflexes so apenas indicativos para a construo de um vocabulrio que d conta,

    em nossos dias, das formas polticas que exigem a extenso de noes clssicas como as

    de democracia, economia, cidadania e direitos, alm da rasura que propem para

    dinmicas tradicionais do nacional e do dispositivo, no caso especfico deste trabalho, da

    brasilidade.

    o que se pode destacar, nesse aspecto, da disperso que caracteriza a Beloved e Aila na

    crtica de Bhabha (1998), o estranhamento de si, que em hiptese alguma deixa de ser

    importante ferramenta poltica, como luta contraidentitria que no pode perder de sua

    pauta a superao da nao como desafio poltico radical do mundo contemporneo: a

    compreenso de que aquilo que se pretende ser feito de dor e delcia, objetos

    permanentes de uma fora poltica que no se ergue a partir de um local, mas de uma

    narrativa em permanente reviso.

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