expressões nº13

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EXPRESS õ ES! Mais que dizer - transmitir. Ed. 13 - Ano 2 José Danilo Rangel - Rafael de Andrade - Luiz Cochi - Leo Vincey - Mari Azuelos Ana Paiva - Bruno Honorato - Daniel A. Lima - César Augusto - Laisa Winter

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Revista Digital de Literatura e Outras Artes

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Page 1: EXPRESSõES nº13

E X P R E S S õ E S !Mais que dizer - transmitir. Ed. 13 - Ano 2

José Danilo Rangel - Rafael de Andrade - Luiz Cochi - Leo Vincey - Mari Azuelos Ana Paiva - Bruno Honorato - Daniel A. Lima - César Augusto - Laisa Winter

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EXPRESSõES! Agosto de 2012 | 02

EDITORJosé Danilo Rangel

CO-EDITOR:Rafael de Andrade

COLABORADORES:Luiz Cochi - Conto

Leo Vincey - CrônicaLaisa Winter - Quadro a Quadro

Mari Azuelos - FotosAna Paiva - Fotos

Bruno Honorato - PoesiaDaniel A. Lima - PoesiaCésar Augusto - Poesia

Capa: Detalhe, foto de Mari Azuelos

e x p e d i e n t e

Page 3: EXPRESSõES nº13

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ÍNDICE

Preâmbulo..................................................................04O Abate................................................................06Proibido...........................................11Exercícios de Criação............................................................13Verdade ou uma Pequena Peça de Mentiras........................1710 Dicas de Sonetos.........................................24Visões Poéticas - Equações.............................................27O Papel.....................................................................28Covas......................................................30Ecos......................................................31Lição de Jardinagem................................32Quadro a Quadro: Os Homens que não Amavam as Mulheres......................................33EXTRA: Partes São Partes............................35Do leitor...............................................................................................39Ao leitor....................................................................................40

N ú m e r o A n t e r i o r

O AbateLuiz Cochi

0617Verdade ou Uma Pequena

Peça de Mentiras

Rafael de Andrade

33Os Homens Que Não

Amavam As Mulheres

Laisa Winter

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PREÂMBULO................................É também com espanto que começo o segundo ano da EXPRESSõES! e nesta

edição 13, temos muito sangue e violência em “O Abate”, escrito por Luiz Cochi, a apresentação de um dia na vida de alguém não muito contente com a existência e especialmente interessado em se desligar dela, mais adiante, temos o texto do Rafael de Andrade: “Verdade ou Pequena Peça de Mentiras”, é a primeira peça publicada pela revista e o que se pode dizer de seu conteúdo é que ele não é censura livre.

“Proibido”, crônica de Leo Vincey, trata de limites que estão dentro e fora de nós, é sintético e fluente, com um personagem que vai se aproximar àquele do O “Engolidor de Sapos”, do número anterior. Em exercícios de criação, tentei explicar como tem a ver desmontar e remontar e inventar coisas, durante toda a infância, e acabar um adulto que escreve poesia. Ainda com o tema poesia, temos 10 Dicas de Sonetos, onde apanhei alguns dos sonetos da minha predileção e fiz uma coletânea.

Falando de cinema, Laisa Winter nos apresenta ao “Os Homens que não Amavam as Mulheres”, um filme com personagens e trama bem inusitadas. Além disso, poesias de Bruno Honorato, Daniel A. Lima, Rafael de Andrade, César Augusto. Nas entresseções, temos fotos de Mari Azuelos, que acabou enfocando a natureza e alguns de seus detalhes. No extra, nova participação de Ana Paiva.

Espero que goste.

Porto Velho - Agosto de 2012José Danilo Rangel

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EXPRESSõES! Agosto de 2012 | 05

p a r c e i r o s :

O mundo todo é composto de mudançaTomando sempre novas qualidades

Camões

Para acessar é só clicar sobre a imagem.

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O Abate

Conto

por Luiz Cochi

1 - A ESTADIA

Era por volta das seis da tarde de um dia qualquer da semana, quando N desceu as escadas do prédio comercial do seu escritório, ou melhor, do escritório no qual prestava serviços de contabilidade. Diferente dos dias que se precederam, esse tinha corrido de uma forma mais sutil, suave até, os números não o molestavam tanto quanto antes. Foi como se suavemente houvesse deslizado para um limbo de aceitação e de alívio, seria o clima talvez, ou a falta da luz do sol que, com o dia nublado, não saiu incendiando ânimos e peles, nem havia aquele pegajoso ar úmido de sempre. Com o ar fresco, o vento, o céu acolhendo sua mente, ele não se entediava mais tanto com os números.

É claro que fora a profissão que escolhera para sua vida, o fato de às vezes os números por si não fazerem mais sentido, mesmo que por alguns instantes, não tinha nada a ver com o incômodo que ele tinha, olhando, pela janela da sua minúscula sala, o movimento da cidade seis andares abaixo. Sua cabeça rodava, mas se reconfortava - eram efeitos dos remédios para pressão, ou talvez o diabetes. Ou, ainda, o esforço que havia feito ao ter de subir as

escadas pela manhã. Os elevadores estavam fechados há três dias para manutenção de rotina e algum feriado prolongado impediu os trabalhos no fim de semana anterior. Mas por que se macular por isso? Logo estariam no conforto de suas cabines metálicas verticais. Ademais, um pouco de exercício não faria mal. N desconfiou que talvez faria sim, mas o aviso, com assinatura do síndico do edifício, acalmava a todos, dizendo ao final “desculpa pelos transtornos e agradecendo pela compreensão”.

Logo que pisou a rua, sentiu a calmaria no ar, o dia estava nublado e já se encontrava na beirada da noite, o sol descia rápido esse período do ano. Inspirou vagarosamente, enquanto o peito enchia, se esvaziava do dia trabalhado, era alívio pisar ali. Estava livre, no entanto. Olhou o céu, baixo e cinza escuro, com relances das luzes amareladas da cidade, afinando as nuvens. Como o teto da cidade, quase noite, o contorno dos prédios antecipavam a noite. N teve o rápido pensamento: “dentro dos prédios a noite chega primeiro” enquanto aqui fora não é noite nem dia. Pensou em sorrir, mas com certeza seria estranho um senhor de meia idade sorrindo olhando para o céu. Que pensariam dele? Seria sua ruína moral. Sorriso é coisa de idiotas, palhaços e cínicos. Espirou

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e tirou o olhar de onde estava, seguindo o caminho para o ponto de ônibus. Mirou o chão com afinco. Desceu duas quadras até chegar a Sete de Setembro, lembrou-se do seu almoço. Havia pedido para o ”boy“ buscá-lo, N não conseguiria descer e subir de volta com seu almoço, como fazia todos os dias, teve então de dar uma pequena gorjeta ao rapaz. Que, solícito, sorriu e entre um parco sorriso disse: precisa não patrão. N comeu o bife com arroz, sozinho, entre as janelas do escritório. Admirado de como o silêncio, mesmo que penetrado por buzinas, gritos e alguma movimentação da cidade, era destoante do que estava acostumado. Mudo, parado, colocou os primeiros bocados de comida na boca, rápido e indolor, como sempre fazia. Mas o silêncio, o silêncio o seduzia, o fez parar um instante.

N olhou por sobre a mesa, fitou a porta a sua frente, de um lado um arquivo, do outro, um calendário com a imagem de alguma santa. Uma jovem moça branca, um semblante acolhedor e plácido, um coração iluminado sobre o peito com raios de luz saindo e compondo um arranjo com as nuvens e o céu da gravura. Uma das mãos cruzava o peito e a outra levantada mostrando a pala para quem olhasse a figura. Ele tentou pensar no que isso significava, ou se deuses tinham realmente o coração à mostra? Por um segundo, ouviu o som dentro da gravura, mas pensou na mudez da sua sala. O silêncio dentro e o barulho do lado de fora, imaginou que estava dentro de uma cápsula, que era como um deus governando as pessoinhas seis andares abaixo através de seu esquecimento mútuo. Se sentiu estranhamente poderoso, mesmo que não pudesse descer pelas escadas, naquele instante se sentiu magnífico. De tão poderoso imaginou o tempo parando, e então, ouviu os carros mais longe, as pessoas nas ruas mais ainda. Agora estava no décimo terceiro andar, era praticamente o senhor do universo inteiro. Levou a comida à boca, lentamente, sentiu cada grão de arroz deslizar por sobre a sua língua, os pedacinhos de tomate amarelado e quase sem gosto, uma cebola aqui, outra ali, cada textura e densidade do que comia. Viu cada grão de arroz em todo o processo que passou até ali, do plantio ao prato. Depois os tomates, a cebola e até mesmo o sal. Enquanto mastigava apreciava as texturas e os sabores, sentiu uma vergonha nova, “o que pensariam se me vissem assim?”. Deu um pequeno sorriso. Afinal estava só dentro do silêncio. E ele proporcionava as sensações que até então estavam acortinadas a ele. Tanto barulho para nada, tanta falação, tanta palavra

vazia. Lembrou que se estivesse no restaurante com seus amigos, ou em casa com a família, estaria em meio ao turbilhão de sons e carências que são as palavras que vagueiam. N imaginou que cada palavra fosse como um ser fantástico vestido com um manto invisível e que perambula por aí, armado com tridente, expulsando a mudez de perto das pessoas. Sorriu mais uma vez. Engoliu, expirou rapidamente e mais uma vez lentamente inspirou o ar silencioso que o cercava.

Olhou para o seu pedaço de carne, cinza, coberto com um molho avermelhado com algumas ervas, pimenta e óleo. Enfiou o garfo e cortou seu naco, sentiu os tendões de seu braço e um choque frio percorreu o seu corpo. Enquanto movia sua faca e as serrilhas passavam fibra a fibra desprendendo pouco a pouco sua comida. Quando finalmente puxou o garfo sentiu seu braço em toda a extensão do movimento que estava realizando, se sentia como se tivesse consciência de cada osso, tendão, músculo e veia em seu corpo e especialmente onde se movia. Levou-o a boca, sentiu a textura da carne, o molho que escorria suavemente por sobre a língua e inundava a boca, as fibras paralelas e as veias. Mastigou. Os sabores o visitavam, o molho, as ervas, o óleo, cada mastigação espremia o naco e lhe dava o presente guardado dentro dela. Acabou-se o gosto do molho, deixando-o com um pedaço cinza, sem gosto e inerte em sua boca. N por um instante pensou de onde vinha a tal carne, imaginou o céu azul, nuvens suaves deslizando, uma sensação de completude com o estado parado das coisas. Como um lago de água parada e escura, um ar denso e úmido. E então viu o vazio. Toda a completude negra do vazio, um abismo de não existência onde nada é, onde não havia começo e nem fim de coisa alguma, nem mesmo a negação. O não ser. A carne morta e sem gosto em sua boca pesou como um turbilhão de gritos e ecos e gemidos dentro de um vazio que ia por sobre toda a existência, fora do tempo dentro do tempo. Engoliu rapidamente. N pensou que o silêncio era assim mesmo, estar só, calado e com a cabeça vagando. Chegou a se sentir culpado por ter passado por isso tudo.

Esperou calmamente o ônibus. Fitava a rua e o movimento ensandecido dos carros, enquanto entrava em uma fila para subir no coletivo, rememorava suas sensações. Lentamente, elas vinham. Subiu o primeiro degrau, viu o interior preenchido de semblantes cansados, alguns com um leve tom de alívio, mas todos com o ar altivo, secretamente fracos, anunciadamente fortes. Lembrou das cores e dos tons que havia sentido

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mais cedo. Se aprumou no vão vazio do coletivo próximo a duas senhoras, uma tinha um perfume que mais lembrava galinha frita e leite de rosas; a outra parecia inchada por completo com uma bomba, tanto que seus braços pareciam ficar em posição de bater asas, mesmo não havendo qualquer esperança de um ser daqueles poder voar. N pensou nos pequenos demônios com seus tridentes -disfarçando um sorriso- aqui eles estaria se digladiando vorazmente alguns poucos iriam sobressair como pequenos raquíticos escalando as paredes enlameadas de um poço, o movimento do carro, o falatório, as músicas, o noticiário... todos os sons acertavam algum dos que subiam e os jogavam lá no fundo do poço de volta. Estar ali era o mais intenso combate contra o silêncio, embora não houvesse qualquer necessidade de tanto barulho. E assim sua tentativa de fitar as memórias era ficar olhando o fundo de um poço, escuro e de profundidade desconhecida, apenas sentindo movimento de escuridão dentro da sombra. Ouviu uma notícia que o radio de algum dos passageiros do ônibus dava, um astronauta havia se desprendido para o espaço, estava miseravelmente perdido dentro do vazio. Era de gelar a espinha e os fios de cabelo. “bem, pelo menos hoje eu durmo em casa” pensou compadecido da sorte do andante dos céus. Mas o que se haveria de fazer num caso desses? Comentaristas populares alardeavam em seus espaços midiáticos a história do astronauta, sua vida, suas conquistas. Logo que perdido ele era a noticia da vez. Enquanto aqui se decidia o que fazer por ele, N observava as vitrines, as calçadas, os automóveis e as luzes da noite pensando na sua casa, no seu jantar, na sua televisão. N se sentiu culpado, pois deveria se sentir feliz, mas só conseguia ouvir os sons ao seu redor ter a sensação do silencio, que não era o silêncio em si, mas uma versão desbotada. E quando em casa ouvisse os barulhos e palavras da família iria se sentir abismado, desconfortável e só, pediria para que a viajem até a casa tivesse durado mais, mas precisava de um banho e de descanso

2. O ABATE

Chegou em casa, abriu o portão, adentrou a sala, tirou os sapatos, enrolou as meias, e as enfiou neles, cumprimentou o filho e a esposa. Desabotoou a camisa, folgou o cinto e sentou em seu sofá, deu

uma longa expirada de ar, o lábio inferior caído. Entrecerrou os olhos. Depois do longo dia de trabalho iria entrar no grande mundo de fantásticas histórias que ele jamais viveria, as quais se contentava em imaginar. Deixou-se absorver por completo pela TV, as propagandas e os jingles, o noticiário falava de juros, bancos mundiais, algum conflito no oriente médio. Tudo é tão movimentado, colorido e com uma cadência de sons tão bela e ritmada, a voz do âncora era perfeitamente modulada, a pronuncia perfeita, cada som saía de sua boca como uma anunciação, as suas expressões tinham o efeito acolhedor de um sacerdote. N se sentiu unido aos seus iguais através daquelas palavras. A tela estava a sua frente, mas ao mesmo tempo parecia se tornar a única coisa dentro do seu campo de visão, tudo em volta entrava em uma névoa densa e rapidamente deixou de sentir seu corpo, poderia dizer que nem respirava mais, que estava como morto, não via sequer as paredes ao seu redor, o que passava na tela era o que passava em sua mente, lá no fundo. De repente teve a sensação de ver um poço e a televisão lá no fundo, passando seus pensamentos, ecoando sons de guinchos de ratos minúsculos e suaves lamentos de crianças. Enquanto pessoas felizes apareciam na tela. Não se incomodou quando viu sua esposa se sentar ao seu lado direito com um prato na mão um garfo na outra e o cheiro de gordura cozida com óleo borbulhante flutuou no seu nariz com lembrança de sabão e roupa suada no colo da sua mãe que fazia comida para um exército enquanto ele sentia perfumes pesados no ar catalisados por corpos mortos e banha.

Sua esposa perguntou sobre as compras do mês, quando eles iriam consertar a janela dos fundos e qual seria o dia dos exames médicos dela. Lembrou que a empresa estava passando por maus bocados, alguma petrolífera multinacional havia executado a dívida de seu maior cliente tornando sua existência virtualmente impossível. Seu filho, então um rapazola, começava a envolver-se com coisas “erradas”- jamais o havia visto com garotas; ao menos não em uma posição de consumo, de relação predatória, era tão passivo como uma beata. Dos traços do pai herdara pouco, desde pequeno, apenas o lábio inferior caído e o olhar vago, que ultimamente tinha se tornado um olhar contido de desdém, um olhar atravessado de filho que temia o pai. Era esquálido e de braços e pernas longilíneos, os dedos finos sempre entremeados no queixo largo puxando os lábios finos. Era muito calado e só o vira sorrindo duas ou três vezes, mas sempre com olhar

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de soberba. N sentiu um peso na barriga, um pouco acima do umbigo e tremeu por meio instante. Queria uma bebida ou um trago de aguardente, mas era um homem direito, não se ateria a vícios, como iria deixar seu legado de retidão moral e pureza se uma ou duas vezes por semana bebia umas? Recolheu o lábio pendente de encontro à sua boca, franziu a face, as pupilas dilataram. Se fosse um animal estaria no melhor do seu vigor para atacar um predador infinitamente maior que ele. O sangue de seu corpo fugia das extremidades, as pontas dos dedos gelavam, suas veias se dilatavam podia sentir isso, um fluido intenso e elétrico tomava conta do seu corpo no lugar do sangue. Sentia seu cérebro engolfado por uma massa de pequenos choques que se dirigiam ao centro da cabeça deixando tudo atrás mortificado, bem lentamente, enquanto sua vontade pedia que ficasse alerta.

Fitou o aparelho, o poço com a tela estava mais e mais profundo, quase não ouvia os ruídos dos ratos, era quase silêncio o que havia. Enquanto seus músculos e reflexos se tornavam ajustados para uma luta corpo a corpo com um leão, sua expressão se contorcia numa mistura de dúvida, medo, ira e inconformismo. Levou a mão ao peito. Então acalmou-se. “Amanhã eu penso em tudo isso, preciso descansar.” Seu filho entra na sala, vindo do corredor, postando-se de pé ao lado do móvel onde descansa a TV. Tem o olhar aflito. É ignorado por pai e mãe, a não ser pelo torcer de nariz do pai e a gesticulação desdenhosa da mãe. N lembrou de olhar por cima da mesa pela manhã enquanto almoçava e quanto esse silêncio de agora era tão destoante do anterior. Em resposta ao pensamento deu um sorriso desdenhoso, “besteira, pura besteira, se divertir com silêncio”.

Enquanto N ardilosamente sorria para as pessoas no poço distante compassivamente. Seu filho se aproxima, tem os olhos no chão, distante. Posta-se ao lado do sofá do lado da mãe. Golpeia a cabeça dela com um pesado rolo de madeira, na nuca. O corpo dela cai em frente ao sofá, o prato e a comida se esparramam, num tilintar um momento antes do baque surdo do corpo encontrar o chão. Cintilantes estrelas cruzam a vista de N que começa a se despedir dos sorridentes que a tela mostrava. Suspirou com tédio - enquanto o filho tremia engolindo um choro revoltoso guardando o rugido de sua ira - fechou os olhos e ensaiou um sorriso. Teve a sensação de cair em um poço, a sensação da perda de peso, o impacto na lama úmida, o encharcar das roupas e viu os ratos,

prontos a comerem seu corpo.Abriu os olhos e viu o rapazola a sua frente,

o golpe foi inevitável. Ou se deu antes de fechar os olhos que vira a trajetória da madeira em direção à sua têmpora e impacto dos ossos com a madeira? Se sentia aliviado agora que não movia o seu corpo e nem havia ar e o peito não arfava doloridamente e os sons calavam passo a passo, podia sentir a calmaria misturado à lama escondido atrás do ruídos dos ratos. Tantos ratos em sua direção, se apavorou e quis gritar. Estava como que sonhando, acordado, dormindo, não sabia ao certo. Sentiu-se dentro dessa situação, estava dos dois lados ao mesmo tempo, nem sonhava, nem acordado estava. Era exatamente a mesma sensação que tinha ao, pela manhã, ouvir o despertador e saber que estava dormindo, por um minúsculo instante antes de acordar. Só não sabia que esse momento podia durar tanto.

Como no caso do despertador sentiu o fio da faca cortar-lhe a garganta, o sangue quente invadir o chão, a sala, o ar. Pode ver as lágrimas que saiam dos olhos do filho, a mão trêmula guiando a faca em seu pescoço. Ouviu uma voz suave e sussurrante, que não conseguiu saber de onde vinha exatamente, “não precisa tirar a cabeça, é só pra garantir” e o movimento de cabeça do rapaz afirmativamente. Os ratos gritavam e pulsavam num festim elétrico, ele se debatia na lama enjaulado gritou, gritou e gritou. Irreveladamente ele deixa transparecer a dor que o consome, naquele instante nada parece tão grave e tão real quanto a própria realidade que agora à sua frente se desacortinava. Vasculhou sua memória e seus sonhos, não havia nada lá, tudo se fora. Havia apenas marcas deixadas pelo que vivera, como na areia, forma disforme do que havia ali, reles e sem sentido. Um segundo é uma vida, ouviu a lama gemer. O abate, o sangue que escorria pelo chão, manchando parede, pó, pés e lançando o odor de ferro no ar. Não havia nada real, tão real quanto a cena que invadia ali seus sentidos. De onde vinha? O sangue, a dor e a escuridão? Deslizou para dentro do silêncio. Ali onde tudo é inexistência, vazio e gritos abafados.

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EXPRESSõES! Agosto de 2012 | 10Foto : Mari Azuelos

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Algumas pessoas são impulsionadas a quebrarem os limites estabelecidos no meio social. Pequenos e grandes delitos ocorrem constantemente. O sagrado e o profano nunca estiveram tão próximos. Natureza humana? Muitos afirmam que sim. A questão é paradoxal. Quando se lê um aviso de “proibido entrada”, a tendência é a desobediência. Se existir a possibilidade de burlar tal ordem, isso provavelmente ocorrerá. É como uma frase em um mural “não leia”. Isso desperta a curiosidade pelo que está escrito. É instintivo? A resposta,quem a possui?

Zacarias estava absorto a esses pensamentos.Um cidadão pacato, cumpridor de seus deveres e pouco exigente dos direitos. Afirmava que o mínimo que podia fazer era zelar pelo seu bem estar. A mulher dele não entendia o seu alto grau de comodismo. Como é que pode? Você tem direitos na empresa. A gente precisa do dinheiro, está faltando quase tudo em casa. Homem, você precisa desobedecer a placa de “proibido entrada”, pule o muro ,enfrente os cães, não se preocupe com as consequências,vá à luta. Ele ouvia calado, sabia que a esposa tinha razão. Mas nada de agir. Via pessoas pulando os muros da vida. Certo ou errado, é muito relativo. Bendita relatividade, pensava ele. Como o acalmava, o consolidava a um ser relegado

a bondade dos outros. Os benefícios que recebia eram oriundos da ajuda dos companheiros de profissão.

Os dizeres da placa não paravam de torturá-lo. Sentia um incômodo imenso. Quem se importa se o vizinho evangélico faz Cristo ruborizar? Não ia cuidar da vida alheia, nem da dele tomava conta. Via a hipocrisia, corrupção e toda sorte de desvios, mas ficava quieto. Questionar valores, demolir tabus era imperioso. A sociedade o fizera assim, tramava contra ele. Usava todos os artifícios para fazê-lo permanecer dócil, ingênuo. Futebol, novela, programas de auditório, programas sociais encampados pelo governo... tudo paliativo. Meras doses de falsa preocupação com o homem. Estamos fazendo o que nunca foi feito, dizia orgulhoso o chefão do país. O essencial deve ser mesmo invisível aos olhos. Pobre pequeno príncepe, dormes em tua inocência. Os ensinamentos não foram suficientes. Dizer não aos letreiros era urgente, sabia disso, mas os pés não se mexiam, os muros alcançavam o céu.

.....................................................................Para mais textos do Leo Vincey, acesse:http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1317368

Crônica

PROIBIDO!por Leo Vincey

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EXPRESSõES! Agosto de 2012 | 12Foto : Mari Azuelos

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Sempre que decodificava um filme ou livro, ou mesmo uma pequena frase, ansiava pelo momento de compartilhar com alguém o conteúdo da descoberta, pois, para mim, adentrar a superfície, mais que contemplá-la, era algo que valia a pena compartilhar. Contudo, nem sempre encontrei quem a assim entendesse, o mais fácil e gratuito é encontrar quem goste e pronto, está bom do jeito que está. Para mim, esse fácil e gratuito é que é difícil, gostar de algo apenas superfície, algo que não se entende direito, e surge somente como fachada, não tendo nada por dentro, ou por trás. Quando gosto de alguma coisa, o querer entendê-la, o supor sua manufatura,o interesse pelos movimentos que acabaram por resultar na coisa

amada, faz-se natural. Agora, contudo, com os meus precoces cabelos brancos, veio-me o entendimento; algumas pessoas temem que, ao analisar uma coisa já não seja capaz de a ver de novo com o mesmo encanto inicial, o olhar que precede a análise, mas apenas como o conjunto de partes conjugadas que de fato é. Tive a sorte, portanto, de ver isso de outro modo. Passemos ao melhor exemplo que tenho, a Poesia.

Não, na verdade, falemos um tantinho sobre bordado, pois foi uma agradável conversa sobre a relação do bordado com o escrever de onde me saiu o entendimento de que não são todas as pessoas que compartilham comigo o gosto por invadir com o intelecto aquilo que atrai interesse. Ao ver um

Exercícios de CriaçãoJosé Danilo Rangel

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bordado e sentir curiosidade por saber como ele foi feito e tentar descobrir, mas sem perguntar a quem o fez, somente pelo exercício da descoberta, não concebo maneira mais eficiente que “desbordar”. A lógica é simples: se o caminho percorrido pela agulha em determinadas direções possibilitou o desenho, o caminho inverso seria capaz de revelar exatamente em que movimentos se montou o tal caminho, ou caminhos. Contudo, o expediente traria o inconveniente de destruir a beleza do artesanato e a possibilidade de jamais saber refazê-lo com a perícia original. Bem, sei do que estou falando. Já desmontei muitas coisas para saber como eram dentro, depois experimentando reconstruí-las a partir do que havia aprendido no recreios do desmanche: carrinhos de controle remoto, brinquedos articulados, alguns ventiladores. Se nem sempre tinha como resultado a destruição do objeto desmontado, invariavelmente, a remontagem não o punha como antes.

Acredito que o ferramental disponível, paus e pedras, certamente, tinha a ver com a baixa qualidade do remonte. Decidido a aumentá-la, desafiei a mim mesmo a ser mais capaz de preservar a integridade do objeto desmontado, procurando formas menos destrutivas de satisfazer minha curiosidade. Sofistiquei as ferramentas, desenvolvi a paciência e passei a me entreter com o desmanche com muito mais atenção e, começando já com o propósito de ter o prazer da desmontagem seguido pelo trabalho da remontagem. Quando comecei a andar de cross, ou a praticar BMX, foi quando fiquei mais feliz em ser capaz de desmontar e montar algo, no caso, a bicicleta. A bicicleta de um cross precisa estar perfeitamente ajustada à quantidade de porrada que ela leva durante um passeio subindo de descendo rampas e calçadas, precisa estar lubrificada, apertada, ajustada, tudo no lugar, assim, embora minha bike nem sempre satisfizesse os mais elevados parâmetros de segurança, os poucos que podia satisfazer, eu me esforçava para satisfazer. Já chegamos na poesia, e ninguém notou. Sim, pois desmontar e remontar poesia foi um dos meus primeiros prazeres poéticos, ler nunca foi suficiente. Depois de ler uma pancada de besteira moderna, encontrei Camões e os seus sonetos. E assim que isso se deu, a vontade de entender como se chegava até aquele resultado me apareceu, mais ainda por aquela circunstância da qual já falei – eu iria fazer algo que não podia fazer de outra forma: iria falar através da poesia. Li e reli quantas vezes pude, o que acabou por me trazer um conhecimento baseado

em impressões e este conhecimento, a possibilidade de satisfazer a maior das minhas ambições: criar.

Apesar do que minha irmã sempre defendeu, eu não desmontava nada apenas pelo prazer de destruir, guiava-me, contudo, um outro intento: aprender. Quando vi o meu primeiro carro de controle remoto funcionando, fiquei maravilhado e, logo em seguida, senti uma curiosidade enorme a respeito de como se construía aquele aparelho, a ponto de desejar mais o conhecimento do que a coisa pronta. Encantava-me mais o poder fazer que o feito. Com a poesia aconteceu algo parecido. Diante dos sonetos camonianos, eu sentia um misto de admiração e curiosidade, pensava, como esse cara conseguiu chegar até aí? Claro, que o conjunto total de vicissitudes, inclusive vivenciais, que tornaram Camões capaz de escrever o que ele escreveu, transcende qualquer esforço para tentar entender. Antes, contudo, eu não me interessava muito em saber como ele chegou a esta ou aquela concepção da Vida, do Amor, ou da Transformação de Todas as Coisas, portador de meus próprios entendimentos, minha admiração se concentrava na forma como ele expressava ideias. Eu faria igual.

Desmontar um ventilador é um pouco diferente de desmontar uma poesia, entre outras distinções, o ventilador tem as partes concretas bem fáceis de se reconhecer, uma poesia não. O ventilador tem parafusos e encaixes, a poesia tem conjunções, preposições e ainda outros recursos sintáticos e semânticos reunindo o todo. Os dois, contudo, têm um miolo constituído por um incrível rolo de fios brilhosos que os fazem girar. Acho que a imagem não ficou muito clara. Tudo bem, o que importa é o que é importante, e, por agora, importa a fórmula geral do desmonte – desmontar é reduzir um todo a suas partes, isolando-as, separando-as. Grosseiramente, o ventilador tem uma hélice, umas grades, uma caixa plástica onde fica o motor, o motor, e (o mais divertido de tudo) um pequeno conjunto de engrenagens que formam o dispositivo responsável por aquele movimento semicircular com a cabeça que todo ventilador faz. Grosseiramente, uma poesia é um conjunto de estrofes, que podem ser divididas em partes menores, os versos, que podem se dividir em partes ainda menores, as sílabas, ou pés (ainda não sei porque chamam de pés). No caso do ventilador é mais fácil perceber como as partes interagem, fazendo-o funcionar, na poesia, é um tanto mais difícil, mas a ideia não muda de uma coisa para outra.

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Para remontar também há distinções. O ventilador deixa de ser ventilador quando desmontado, ele passa a ser um conjunto de peças, para recuperar o status de ventilador, basta reunir todas as peças, encaixá-las, parafusá-las, mas a poesia nunca deixa de ser poesia e não perde, por isso mesmo, seu todo. Assinalar essa diferença só importa porque não quero parecer mais mecanicista do que estou parecendo, maquinizando completamente a poesia, tratando-a como fosse exatamente um mecanismo composto por engrenagens passível de desmontagem, não é um relógio. Contudo, como com qualquer aparelho, depois de separar as partes integrantes, nunca mais se vê o todo como um bloco único, mas como um aglomerado de elementos submetidos sob uma mesma organização.

Aposto como alguém vai dizer “mas o todo, senhor José Danilo, é maior que a soma das partes”, e certamente vai ser alguém com muita dificuldade em explicar o que isso quer dizer. Aviso, de antemão,que a discussão é outra, cabe no seguinte resumo: não importa se o todo é maior ou menos que a soma das partes, importa que é constituído de partes, daí ser passível de desmonte e remonte, sendo um e outro uma forma bem eficiente para alargar entendimentos.

Desmontar e remontar, contudo, não é suficiente para fazer algo novo. E antes de seguir adiante, vamos deixar claro que sim, acho possível haver criação, considero o conceito da Química de que elementos combinados geram novos elementos. Pensemos no carbono que, sozinho, dependendo de sua organização espacial, tanto pode ser carvão como diamante, como grafite. Ou seja, sim, acredito na possibilidade de se criar algo novo a partir do que existe, não são os recreios de um desmanche, entretanto, bastantes para ensejar a criação: do que se desfaz, geralmente, só podemos montar o que estava feito, ao desmontarmos um ventilador, nem sempre vamos montar um ferro de passar. A atividade, de qualquer modo, oferece um bom subsídio mental para se fazer poesia. Ideias não são blocos, são máquinas. Se eu dissesse que é algo vivo, a metáfora também funcionaria, com a ressalva de que não existe ainda maneira de se “desmontar” algo vivo e depois “remontar” sem haver prejuízos. Prefiro a ideia como máquina por esta razão, você desparafusa, desencaixa, separa, isola, e depois, é só juntar tudo de novo e pronto, a máquina está de novo funcionando, é só apertar o botão on, ou dar a partida.

O ônix prefiro, diz Bilac, e eu o entendo perfeitamente, embora seja muito divertido usar madeira, plástico de garrafas, arame e outras coisas mais para fazer uma caricatura de um gindaste, ou as armaduras dos cavaleiros do Zodíaco, mover o mundo físico sem o ferramental necessário é muito limitante, desenvolve-se, a criatividade, mas a ela também os limites acabam sendo imbricados. Quando tentei montar um megazord com material reaproveitado, entendi as limitações e condicionei “o projeto”, ao que tinha disponível. Não deu certo. E talvez hoje, eu seja um engenheiro frustrado. Mexer com as coisas do mundo das letras, entretanto, compensa os impulsos engenheiricos que tenho. Enquanto minhas ideias diziam respeito à construção de algum aparelho, sempre me deparava com a dificuldade de não haver maneira de manufaturar as peças, senão, muito imperfeitamente, agora, que dizem respeito à poesia, tenho disponível as palavras e com elas posso elaborar todos os componentes necessários para a transição do mundo ideativo ao mundo factível. Simples? Sim, muito simples: escrever é montar aparelhos linguísticos.

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VERDADE ou uma pequena peça de mentiras

Rafael de Andrade

Personagens (por ordem)

O Padre Randal;Renée, a vigarista;Brasílio, o ladrão;

Cláudio Velho, o político;O espectro;

Uma mulher;

Literatura em Rede

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(Em um quarto de um luxuoso hotel, conversam Randal, Brasílio e Renée. Sentados à mesa bebem algo enquanto falam. Ao lado, um corpo sem vida de uma velha mostra apenas a face, está todo enrolado por um pano branco. Basílio está chorando copiosamente enquanto olha para a velha morta.)

Randal – Pare de chorar seu imbecil, isto já era esperado. Todos sabiam que esta velha iria morrer, deixaria esta vida idiota.

Renée – Pare seu padre idiota, é a mãe dele.

(Enquanto isto, Brasílio continua a chorar enquanto olha para o padre e para a velha)

Randal – Sim, é a mãe. Mas as mães só servem para duas coisas. Criar fracotes como este aqui (aponta para Brasílio) e depois para morrer, fazendo os fracotes chorarem no meio de uma operação tão importante. Exatamente isto! Dois momentos! Primeiro limpam a bunda dos filhos até os trinta anos, depois enfadam até morrer. Me pergunto o que uma mãe faz dos quarenta anos até o dia de sua morte...

Brasílio – (baixo) Cale-se pastorzinho. (normal) E vamos logo para a porra da operação.

Randal – A operação é esta. Enquanto eu e Renée distraímos os políticos lá embaixo, Brasílio sobe até os quartos e pega tudo que puder destes idiotas. Sabemos que as pernas brancas de Renée prometem coisas tão deliciosas quanto o céu que eu prometo com minhas palavras. (Brasílio olha para Randal ciumento) Calma rapaz, ela só irá prometer, não fique com ciúmes de seu pequenino e rosado céu.

Brasílio – grande plano! Nós podemos dispensar o serviço do consolador de ovelhas. Você é dispensável, velho.

Randal – Eu? Dispensável? Você irá roubar apenas com as pernocas dela? Imagino que você sabe que um dia na vida do homem comum as pernas das mulheres não representam mais nada e que apenas o céu conta para pesar riquezas. Um homem de minha classe não é dispensável nunca, é preciso enganar os mais velhos e menos afoitos. É certo que a vagina de Renée é um céu,

mas de apenas meia hora, enquanto o meu é eterno.Renée – (ri com o canto da boca) Só meia hora, mas é verdadeiro. Seu céu é uma ilusão que nunca chegará.

Randal – Isso não importa, o que importa é a promessa.

Renée – Você mata a vida enquanto eu lhe dou mais cor. Você faz os homens ficarem de quatro para algo invisível...

Randal – Enquanto você fica de quatro para homens... (os dois riem)Brasílio – Parem os dois, me respeitem, respeitem minha mãe. Vamos logo para o maldito plano. O velho já começou seu discurso. (Os três se levantam. Brasílio beija sua mãe e começa a chorar. Renée o puxa para trás e o beija levemente.)

Renée - Vamos meu bem, pare com isto, depois choramos o quanto pudermos. Agora, vamos ao plano, precisamos comer, não precisamos? Ela já não precisa mais. Vamos, vamos. (Brasílio se recompõe e começa a arrumar suas ferramentas)

(os três saem. Brasílio vai em direção dos outros quartos enquanto o padre e sua mulher saem em direção à festa. No caminho, os dois conversam)

***

Randal – Irmã, como você pode fazer isto com aquele jovem? Ele é tão inocente em acreditar em seu amor, em sua fidelidade. A devassidão está em nosso sangue e você é uma vagabunda.

Renée – O que eu gosto nele é que ele ainda crê em algo. O Estado é tão importante para ele quanto meu amor. Imagina que ele ainda assiste os telejornais (os dois riem) e fala (imitando a voz): veja, o governo se preocupa com nossas crianças.

Randal – (gargalha) Sim minha irmã (passa alguém perto dos dois) estar perto de deus é divertido, ele nos preenche de alegria.

Renée – (assim que a pessoa se afasta) Nos preenche de alegria? Uma vez conheci um rapaz

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assim e seu nome não era deus. (os dois riem).(No salão, o político, doutor Cláudio Velho declama seu discurso para os simpatizantes de sua causa enquanto a dupla se posiciona na escada que dá acesso aos quartos)

Cláudio Velho – Em nome de nossa terra, prometo depositar os mendigos no meio do mato, assim nossas cidades não o verão mais! Assim, o homem pensará duas vezes antes de pedir dinheiro e amolar os outros. Vou tirar a pobreza de nossas vistas!

Randal – veja como ele é verdadeiro. Homens assim que deveriam ser eleitos. Mas a igreja nunca apoiará homens como ele. Ela precisa de miseráveis para poder prometer, a igreja precisa de doentes e miseráveis.

Renée – Ao ponto que enriquecem alguns e os usa como exemplo. A filosofia e a ciência falharam, deus volta ao ponto para salvar a humanidade.

Randal – Filosofia e ciência? O que me importa é ganhar dinheiro, aqui e agora. Desde pequeno sabia disto, só me restavam três profissões, advogado, médico ou pastor de ovelhas. Renée – Ou político...

Randal – Sim, político. Mas, hoje em dia todos concordam que políticos não salvam mais nada nem ninguém, a não ser eles mesmos. O médico salva vidas, o advogado tem “liberdade” (fala com desgosto) em suas mãos, enquanto a que escolhi salva almas. Você só tem poder quando pode salvar algo de alguém e tem que ser na hora.

Renée – Sim, pobre dos professores, são desprezados porque não salvam ninguém na hora, mas podem salvar apenas após alguns anos. Meus professores desistiram de salvar alguém e agora que se dane a humanidade... e que se danem os professores, queremos a salvação aqui e agora, depois só a morte.

Cláudio Velho - (alto) Sim, meus companheiros! A vitória está em nossas mãos, contra a pobreza, em nome de deus!

Randal – Amém... (risos) Veja como eles não ligam de eu estar conversando com uma mulher este tempo todo. O que importa é a salvação que

posso dar, foda-se o resto. Foda-se se eu fodo uma irmã ou uma garotinha, foda-se.

Renée – O último resquício de moral desta cidade se encontra no doente e no ignorante. Os homens usam seus poderes para conseguirem o que querem... (para e pensa) O que me faz uma espécie de paladina da justiça. Pego deles e dou para eu mesma, que poético.

Randal – é por isso que eu te amo, mana. Por sua safadeza (aperta levemente a nádega da irmã, que sorri).

Renée – (alguém passa) Amém...

Randal – Agora com licença, que vou me encontrar com alguém.

Renée – Não demore...

***

(nos quartos, Brasílio está roubando os pertences dos ricos hospedes quando senta em uma cama e passa a chorar por sua mãe morta)

Brasílio - (chorando) Ai minha mamãe, já estou com saudades. Ai minha mamãe como teria vergonha de me ver roubando aqui. Do céu ela vê tudo. Tenho que parar agora. (caminha em direção a porta, mas para) Minha doce pequena ficará zangada comigo, preciso pegar tudo. Preciso de dinheiro para o caixão. Quer dizer que ficarei sem nada deste roubo, que vou ter que comer da comida do padre, que vergonha. Este é meu trabalho. (rouba algumas coisas de uma escrivaninha)

Brasílio - (continua) Neste país nos precisamos de ladrões também, sou socialmente útil. Que bom, que bom. Como é bom ser útil. Amanhã é o ultimo capítulo da novela. Domingo tem igreja. Tudo ficará bem. Ah, o ultimo quarto.

(ao entrar no ultimo quarto, Brasílio dá de frente com um espectro sentado em uma cadeira ao fundo escuro)

Espectro – Entre e leve tudo, que nada disto

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me pertence. E hoje eu já te levei algo muito importante.

Brasílio – Morte? (fala gaguejando)

Espectro – Ora não seja idiota que isto não existe. Todos estes discursos disfarçam que existe algo cru na vida. Caro Brasileiro, me desculpe, Brasílio, você deve deixar de crer nestas coisas.

Brasílio – Mas, se tirarmos o estado, a fé, a sagrada família, os deveres, as leis, a nossa cultura, os amores o que nos sobrará? Não há vida sem isto...

Espectro – O que há nisto é medo. Medo de estar sozinho, medo do fim, medo de ser devorado, medo de não pertencer, medo de ser rejeitado. Por detrás de tudo isto há medo e insegurança.

Brasílio – Se tirarmos tudo isto, o que restará?

Espectro – Arte. Arte.

Brasílio – Sem estado, fé, família iríamos fazer o que quisermos, ao nosso bel prazer, passar por cima de tudo e todos, sem medo, represálias, não conseguiríamos estar um com os outros em paz... Nossos desejos mais vis aflorariam.

Espectro – Exatamente, arte, um desejo sórdido, orgulhoso e egoísta. Você só errou por uma coisa. Não existem desejos vis, apenas o desejo dos fortes e o desejo dos fracos. Quando um forte deseja tudo é permitido, quando um fraco deseja, é algo vil. Quando um homem forte quer algo, ele simplesmente tem. Quando um fraco quer, ele não consegue, mas se contenta por estar fazendo o moralmente correto, aquele desejo era vil.

Brasílio – Não, não é assim. Eu vou para o céu depois de minha morte, assim como minha mãezinha foi, se ela rezou direitinho.

Espectro – Não! Vejam como é fraco. Crê em salvação e outra, se eu tivesse mãe e se ela tivesse uma alma e um deus a mandasse para o sofrimento eterno por não ter se humilhado a ele, eu mesmo iria matar este deus e devolver minha mãe a vida. Você diz amém enquanto sua mãe, enquanto a humanidade, enquanto os humildes se fodem.

Brasílio – Não! Mesmo assim, há uma terra por qual lutar. Disto nem você duvida. Uma terra que devemos amar.

Espectro – Não! Existe uma terra que pertence a poucos, uma terra pela qual os pobres morreram e os ricos viveram ricamente sobre os cadáveres. A terra é uma forma de manter a vontade dos homens presa sobre uma bandeira. Empalados! A bandeira entra pelo cu e sai pela boca, impedindo de falar e violentando a todos. Seja contra a terra Brasílio.

Brasílio – Não, não é assim, não posso ir contra a terra, o que eu seria sem ela, sem nome, sem lugar, sem fé.Espectro – Você estaria perto do que se chama de libertino... Ame algo Brasílio, mas não a deus ou ao estado, ame o que você deseja, arte, uma mulher bonita, pensamentos, você mesmo, mas não ame o que te ensinaram a amar, só por estas coisas vale a pena morrer...

Brasílio – Mas, minha família me ama, não seria justo...

Espectro – Hormônios. Perpetuação da espécie. Aos quinze anos você se tornou um estorvo. A mídia cria feriados e dias para que as famílias continuem tendo orgulho dos filhos. Você caga na privada pela primeira vez pelo resto de sua vida. Aos treze você deveria sair de casa com sua poesia, assim como Rimbaud...

Brasílio – Poesia? Rimbaud?Espectro – Um ignorante! é inútil falar. Vocês nunca aprenderão. Continuarão a crer que o que passa no domingo e enche seus palcos é arte. Que dizer amém é viver. Esta vida está condenada. (O espectro desaparece).

Brasílio – (conversa consigo mesmo) Só falou besteira. Continuo a roubar. Não me assusto. De vez em quando aparece um espectro deste na televisão ou nas ruas, falando este tipo de coisa. Mas eles não têm rosto ou fala como doutor Cláudio tem. Espectros logo somem sem deixar vestígios, a não ser uma palavra ou duas escritas em couro. Só deus e Machado de Assis são eternos.

***(Na festa, o político já acabou seu discurso.

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Randal voltou alguns minutos depois e esta conversando com Renée sobre os convidados políticos da festa)

Randal – Veja aquele homem, ele ficou rico roubando a terra dos outros, matando e extorquindo, até se tornar um poderoso político e ser amado por aqueles que matara com suas próprias mãos.

Renée – Deveríamos matar sua família, roubar suas terras e lhe transformar em um mendigo, para que ele sofra o que praticou.

Randal – Veja aquele homem ele amedrontou as pessoas com sua fé, lhes prometeu o céu em troca de dinheiro e ficou rico ao ponto de se tornar político e ter mais influencia. Agora ele consegue trabalho para sua família em nome de Deus.

Renée – Nos deveríamos prendê-lo em uma sala escura, onde apenas uma gota d’água cairia em sua testa por anos, sem que ele morra. Ele deveria conhecer o inferno.

Randal – Veja aquela mulher. Ela nunca ensinou nada, mas foi eleita como representante dos professores, mas seus filhos não estudam na escola pública e estão fora do Brasil, como ela deveria ser punida?

Renée – Seus filhos deveriam ser abusados por seus colegas corruptos nas salas de aula. Esta espécie de professor, que não é um educador, tem aos quilos, seus filhos deveriam conhecer uns.

Randal – Há alguém nesta sala que deve ser salvo? Renée – nós mesmos deveríamos nos dar um tiro bem na cabeça. Sou um animal, roubo comida, ofereço meu órgão para o macho dominante quando estou no cio, nós mesmos deveríamos nos dar um tiro no coração.

Randal – E aquele homem que vendeu angústia para depois oferecer um remédio, o que deveríamos fazer?Renée – Nada... Agora mesmo quero voltar para o quarto para esperar o membro de Brasílio e dormir. Pelo menos dormir vai ser agradável. Veja irmão, como estar perto desta corja me

enoja, sinto falta de meus tempos de atriz.

Randal – Não sinto falta de nada, só quero roubar e gozar. Qualquer dia desses me enfio na casa de uma menina qualquer só para roubar sua vida, lhe tirar a paz, não é isso que um homem faz?

Renée – diz que sim, mas nunca vi. Eu os deixo pensar que me apaixono, só para roubar seu dinheiro, prestígio, poder. É tão fácil. Mas agora não sei quem rouba quem. No fim, me faço de enganada. (esboça um leve sorriso e começa a sair)

Randal – Boa noite, minha querida. Durma bem com os cadáveres. Tanto Brasílio quanto a velha estão mortos.

Renée – Tinha esquecido a velha, jogaria pela janela se tivesse forças. Espero que não comece a feder. Boa noite.

Randal – Nada fede mais que os vivos. Boa noite.(Enquanto Renée se dirige para os quartos, Randal anda pelos convidados fechando o nariz com os dedos em sinal de desgosto. Ninguém o percebe, mas ele sorri por detrás da mão que fecha o nariz)

***

(no quarto, o corpo da velha não se encontra mais lá. Um corpo se move na cama, enrolado pelo lençol)

Renée – (baixo) pelo menos está dormindo. (normal) Amor, você levou sua mãe para onde? Lá fora, onde está frio? Ela não ligará mais e ficará ainda mais conservada, não é?

Corpo na cama – uhum... (afirmativamente)

Renée – Já me deito. (Vai ao banheiro e se arruma para deitar, fica nua e se deita ao lado do corpo na cama. Assim que deita, sente o membro roçar em suas nádegas e uma mão que a estrangula, enquanto outra afasta suas pernas)

Espectro – há dias que te desejo. (com a voz, Renée percebe que não é Brasílio que está ali) há dias que vejo teus cabelos balançarem com seu andar malicioso e nada me deixa mais excitado

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que sua lascívia. Há dias que fico imaginando como seria lamber seu corpo e engolir seus líquidos. Não se lembra de nossa amizade? Só com ela que eu vivi.

Renée – Samir?

Espectro – Não, eu era Samir quando eu tinha crenças, agora eu sou o que você sente no meio de suas pernas, sou um espectro de desejo, vigor e fome. (Renée se vira e começam a se beijar enquanto o Espectro a penetra)Renée – (ofegante) Onde está Brasílio?

Espectro – Sua preocupação de mulherzinha, de esposa me excita. Saber que estou violando uma senhora de outro, uma prostituta que ainda pura, pergunta pelo outro. Ele está onde sempre esteve.

Renée – Eu não o amo...

Espectro – mas na noite escura, ele é seu amorzinho, o único que te ama, que está com você, você é insegura como todas as outras... (o espectro goza dentro de Renée, se levanta e serve um copo de uma bebida qualquer) Ele está onde sempre esteve. (abre a porta ainda nu e sai. Renée adormece).

***

(Pela manhã, Randal entra no quarto de Renée)

Randal – Acorde irmã, acorde, se vista e me siga.

Renée – (pulando da cama) Estou atrasada para o café? Fomos descobertos? Onde está Brasílio? (se veste rapidamente e segue Randal para fora do hotel)

Randal – (nos corredores) Me siga me siga.

(Fora do hotel, o corpo de Brasílio esta empalado no mastro da bandeira enquanto o corpo de sua mãe está ajoelhado, como se suplicasse pela alma do filho, tal qual Jesus e Maria.)

Renée – Oh meu deus! (amarga ter falado deus). Onde ele esteve por todo este tempo?Randal – Onde sempre esteve... (Renée arregala

os olhos e percebe toda trama) (baixo) E agora você é toda minha irmã. Você sempre buscou alguém que fosse forte o suficiente para tomá-la. E eu sou o suficiente para matar todos por você.

Renée – E Samir?

Randal – Custou-me matar seu namoradinho. Custou-me imitar sua voz.

Uma mulher qualquer – (cutucando o braço de Randal e interrompendo a conversa) Quem poderia ter feito isto? Quem poderia ter imitado uma sagrada peça com tal maldade?

Randal – Com certeza um demônio mulher, um demônio. Um demônio capaz de desvirtuar o que há de sagrado na vida em nome de sua vontade doentia.

(irmãos andam de mãos dadas em direção ao fim da rua. Um carro espera os dois com todos os pertences roubados. Os dois partem para um lugar desconhecido).

Fim.....................................................................

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EXPRESSõES! Agosto de 2012 | 23Foto : Mari Azuelos

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10 Dicas de Sonetos

Os sonetos são poesias com forma fixa, geralmente, organizados em 14 versos, distribuídos em quatro estrofes, dois quartetos e dois tercetos, com rima e versos de mesma métrica, a seguir, dez sonetos que acho interessante ser do conhecimento geral.

José Danilo Rangel

01. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,Muda-se o ser, muda-se a confiança;Todo o mundo é composto de mudança,Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,Diferentes em tudo da esperança;Do mal ficam as mágoas na lembrança,E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,Que já coberto foi de neve fria,E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,Outra mudança faz de mor espanto:Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

02. Nascemos para Amar

Nascemos para amar; a Humanidade Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura. Tu és doce atractivo, ó Formosura, Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade; E depois que a paixão na alma se apura, Alguns então lhe chamam desventura, Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas, Qual em suaves júbilos discorre, Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre: E, segundo as diversas naturezas, Um porfia, este esquece, aquele morre.

Manuel Maria Barbosa du Bocage

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03. Inania Verba

Ah! quem há-de exprimir, alma impotente e escrava,O que a boca não diz, o que a mão não escreve?— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava…

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve…E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?Ai! quem há-de dizer as ânsias infinitasDo sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?E as palavras de fé que nunca foram ditas?E as confissões de amor que morrem na garganta?!

Olavo Bilac

04. Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidávelEnterro de tua última quimera.Somente a Ingratidão - esta pantera -Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!O Homem, que, nesta terra miserável,Mora, entre feras, sente inevitávelNecessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, é a véspera do escarro,A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,Apedreja essa mão vil que te afaga,Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos

05. Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atentoAntes, e com tal zelo, e sempre, e tantoQue mesmo em face do maior encantoDele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momentoE em louvor hei de espalhar meu cantoE rir meu riso e derramar meu prantoAo seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procureQuem sabe a morte, angústia de quem viveQuem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):Que não seja imortal, posto que é chamaMas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

06. Esperança

Só a leve esperança em toda a vida disfarça a pena de viver, mais nada; nem é mais a existência resumida que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada, sonho que a traz ansiosa e embevecida, é uma hora feliz, sempre adiada e que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos árvore milagrosa que sonhamos toda arriada de dourados pomos

existe sim; mas nós não n´a encontramos, porque está sempre apenas onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos.

Vicente de Carvalho

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07. Ah um Soneto!!!

Meu coração é um almirante louco que abandonou a profissão do mar e que a vai relembrando pouco a pouco em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco nesta cadeira, só de o imaginar) o mar abandonado fica em foco nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por fora. Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração que eu falava... e onde diabo estou eu agora com almirante em vez de sensação?...

Fernando Pessoa

08. Sorriso Interior

O ser que é ser e que jamais vacila Nas guerras imortais entra sem susto, Leva consigo esse brasão augusto Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila Ele os vence sem ânsias e sem custo... Fica sereno, num sorriso justo, Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza Dão-lhe essa glória em frente à Natureza, Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser tranforma tudo em flores... E para ironizar as próprias dores Canta por entre as águas do Dilúvio!

Cruz e Souza

09. A Rua dos Cataventos - I

Escrevo diante da janela aberta.Minha caneta é cor das venezianas:Verde!... E que leves, lindas filigranasDesenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanasMistura os tons... acerta... desacerta...Sempre em busca de nova descoberta,Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!Do que eu ia escrever até me esqueço...Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...E me transmuto... iriso-me... estremeço...Nos leves dedos que me vão pintando!

Mário Quintana

10. Oficina Irritada

Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender.

Carlos Drummond de Andrade

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quações Texto: César augusto

Fotos: Henderson baena

Haveria um interdito?

Uma métrica rígida...

Que pudesse fazer poesia

Que pudesse fazer um livro?

Uma frase, uma equação exata

Que somasse perdas, as letras

Haveriam tantos selos quanto cartas

Que pudessem remeter às nossas cabeças...

Um acontecimento, um rito de passagem...

Que levasse todos a mesma vírgula fatídica

Haveriam pontos suficientes? Ou cartilagem

Nas terminações poéticas de nossas vidas?

Um pôr do sol de aura criativa

Um luar com a magia rimativa

Um amor que trouxesse a ideia

Uma morte que roubasse o medo

Um remédio absoluto para os nervos

Uma explicação para o que não é matéria

- mas dói.

Essa média.

Interpretativa.

Do que não é vida

Etérea.

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Visões Poéticas

3

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O PAPEL

Branco pálido de náusea e ruído Branco de paz de limbo de cegueiraPapel branco de fogo brando rótulo de remédio e bandeiraPapel que me amassa Que me dobra e me faz de formas de pássaros diversosPiranhas esculpidas cola de criança sêmen estéril olho arrancado De livro que não ajuda Guia de viagem cheque contracheque recibo do ano passadoCarta velha De amor: se perdeu.

Conta de luz azul branco relógio atrasado Holerite: e o sorriso de tantos surge por tão pouco. Vai me arrastando de rua em rua de sala em salaAutentica carimbaCospe rasgaAmassa fornica tinta mata-borrão mata mais uma tarde quente na fila no filo cordata

E nas paredes o papel e não mão O dinheiro de papel roupas de papel Literatura de cordel Livro de direito (todo errado)Contos de bordel. Limpa a boca enxuga rosto suado de rotina Toalha de papel Guardanapo declaração em cera e papel machê posto embaixo do travesseiro Carta de demissão: e as lágrimas surgem por tão pouco.

Deita sobre faz arte escreve protesto paixãoLimpa sangue de corte bunda de merda alma de preocupaçãoCom valor e números impressos Riscos imersosEm pau-brasilpapiro sonhos de vagas e assinaturas

Assim leva o pombo sem razão e má-vontade Joga no lixeiro Recicla Ganha novo espíritoBatistério Identidade que diz quem é (eu não consigo)

P o e s i a

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EXPRESSõES! Agosto de 2012 | 29

Óbito que diz quem se libertou dos dias. Entrada ingresso avião caído na sala de aulaJornal notícia levada ao campo à cidade dentes trincando sem frio

Viva La revolutìon; mil empregos amassados como papel; menina violentada como papel; apartamento vago, carro a venda; inflaçãoViolentada como papel Violeta feita de papelMenina violentada como papel lentamente violentamente. violetamente Origami Kirigami Antrogami Dobra homem.

Que dessas vertigens só me sobra o pacato direito de sofrer, homem do sertão ou do palácio frívolo feito de carne e mentira; essas tantas manhãs e noites sem razão pra dormir além do próprio sono: e o caos surge por tão pouco.

Papel estilhaço vidro moído na garganta Papel e medo

Onde escrevem o nascimento da glória a mentira do milênio e as cinzas da história caindo na varanda de novembro.

Extra: o salário a multidão o automóvel o rasgão o ópio a solidão.

Papel que voa e que navega que dobra e que se entrega Papel sátira papel piada papel palavrão Papel ciência papel sangue papel artePapel repúdio papel sonho papel violência

Que nele eu li o mundo

Desenhei devaneios

Fiz beijinhos de alfazema

E onde antes do fim de tudo

Pousarei meu último poema.

Bruno Honorato

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P o e s i a

COVAS

“Se não vivo até agora,Morro de teu perfume,Caio no teu braço em umSórrisso moreno que desenhaUma tola bela belezaSe vejo em ti uma paixãoAs covinhas e covas de loolaAquela lascívia de duas morenasAtrás do tempo de belial – o sangrento-Luxúria de ogros e sujos homensCaçadores de tempos idos e vidosSob um sol que não esquenta maisOnde o peso das roupasNão mais importaOnde o mundo está destruídoUma vez maisPor homens e americanos do norteFuja comigo para a certeza da morteTemperados de pimentaNo calor do inferno na terra”

Rafael de Andrade

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ECOS

O passado de voltaChegando aos meus ouvidos...Ou fala ao meu coração?Não soa. Ressoa.O eco não se faz no vazio, ele vem do profundo.Da raiz de mim.Se reverbera VoltaRevoltaÉ por que me toca?

Daniel A. Lima

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LIÇÃO DE JARDINAGEM

Plante seu jardim e decore sua almaShakespeare

Dotar de eternidade, porque se pretende eterno,aquilo que gesto e acaso arranjam num momento,como não espreitassem tantos e tão diversos desarranjos,amar de tal modo a obra de um instante,ignorando que os instantes, que se vão amontoando,aquilo que ora sustentam, ora fazem insustentável,projetar para o painel incerto do futuro, o que é fato presente, a visão de um agora,como a projeção sobre as flutuantes circunstânciasnão fosse por elas e por sua incrível mobilidadedistorcida, retorcida, desvirtuada,eis o que nos torna negligentes, até em demasia,e dessas coisas, que são invenções humanas,nada se desdobra sem atos,nada permanece sem vigília.

Cultivemos, pois, nossos afetos, cotidianamente,como quem cultiva as flores de um jardim,para que a ação do todo dia e do descaso,não acabe por lhes tirar as cores e os perfumes,comprometendo-lhes as formas e o frescor,o que eles têm de salutar e vívido e admirável,cubramos, pois, de cuidados e de atenções, aquilo que nos encanta e o próprio encantamento,escolhendo para nos guiar a aplicação dos zelos,não o temor da fugacidade de todas as coisasque, antecipando todos os términos, transpassa de tristezas todas as felicidades,mas um incentivo bem mais belo – o desejo,de fazer permanente tudo quanto hános enquantos que nos fazem rir.

José Danilo Rangel

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O filme Os Homens Que Não Amavam As Mulheres (The Girl with the Dragon Tattoo, 2012) é um precoce remake baseado no livro de Stieg Larsson, um best-seller da trilogia “Millennium”, já adaptados anteriormente na Suécia, e que, agora, ganham novas versões em Hollywood.

O jornalista Mikael Blomkvist interpretado aqui por Daniel Craig, (mais convincente e interessante do que em o agente 007) após perder uma causa judicial, é contratado por HenrikVanger (Christopher

Plummer), um homem rico e influente, para solucionar o desaparecimento de sua sobrinha, Harriet, desaparecida há mais de quatro décadas. Paralela à historia de Blomkvist, está a hacker bissexual Lisbeth Salander (Rooney Mara). Blomkvist e Salander acabam por trabalhar juntos no caso de Vanger, e muito bem, apesar de serem de mundos tão diferentes. Cada qual com seu método, a dupla descobre os segredos trágicos dessa família, que vai além do desaparecimento de Harriet.

Os Homens Que Não Amavam As Mulheres

uadrouadroa

por Laisa Winter

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Lisbeth é uma jovem brilhante, mas incapaz de interagir normalmente e habitualmente em sociedade devido ao seu comportamento agressivo. Salander mostra o comportamento digno de alguém com um passado trágico. Não reconhece as leis e anda sempre se esgueirando pelas ruas, onde raramente é vista à luz do dia. Ser uma marginal parece ser sua maior fonte de prazer, mais do que as noites que passa com mulheres ou homens desconhecidos em seu apartamento. Uma cena de poucas palavras chama atenção. Durante uma perseguição a um dos suspeitos, Lisbeth olha para Mikael e pergunta: -Posso matá-lo? Com toda a ação do momento, Lisbeth aqui aparece quase cômica, a ansiedade em sua voz lembra uma criança sedenta esperando por um sim. Ela não consegue esconder sua satisfação.

Passando-se na Suécia, a historia utiliza da licença poética com todos os personagens falando inglês e nos mostra belas paisagens, graças ao diretor de fotografia, Jeff Cronenweth, merecidamente indicado ao Oscar, digo merecidamente não só por se tratar de ser bom, independente dos critérios da bancada de ineptos do Oscar, mas também pela divulgação de seu trabalho.

A vida profissional e emocional de Mikael, amante da jornalista Erika (Robin Wright) somada ao seu nome sujo na mídia, pode roubar atenção no primeiro momento, mais é inegável não se render a Rooney Mara, mais que um prodígio interpretando Lisbeth, ótima escolha do diretor David Fincher que poderia ter escolhido tantas outras atrizes, mais famosas e com mais publicidade.

A extensa família Vanger também chama muita atenção. São os principais

suspeitos do desaparecimento de Harriet, interpretada pela experiente Joely Richardson (Nip Tuck), temos os irmãos que não se falam, o pai que não fala com a filha, sem mencionar os nazistas da familia.

O filme mantém o telespectador empolgado e concentrado do começo ao fim, tarefa árdua para um longa com mais de duas horas. Sempre com muita tensão, indispensável para um filme de suspense, mas também sem perder tempo com cenas desnecessárias e sem conteúdo, pelo contrário, as cenas são recheadas de informações para montar o grande quebra cabeça que é o filme. Se desviar o olhar, o telespectador pode perder muitos detalhes. Sabe aquele momento em que o protagonista está em um quarto, sozinho, e olha para o vazio ligando os pontos? É preciso ser rápido para acompanhar a dupla.

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Ficha Técnica

Titulo Original:The Girl withthe Dragon TattooGênero: Drama e SuspenseDuração: 158 min.Origem: Estados Unidos, Suécia, Reino Unido e AlemanhaEstreia: 27 de Janeiro de 2012Direção: David FincherRoteiro: Steven Zaillian e Stieg Larsson Distribuidora: Sony PicturesCensura: 16 anos

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extraPartes São Partes - Ana Paiva

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DO LEITOR................................

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RESERVADO

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AO LEITOR................................

Por fim, é o de sempre, quer participar? Mande alguma coisa pro e-mail.

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José Danilo Rangel

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