experiências e símbolos de transformação na

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Universidade Federal de Juiz de Fora Instituto de Ciências Humanas e Letras Mestrado em Ciência da Religião Experiências e Símbolos de Transformação na Doutrina da Floresta Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da Religião por Sérgio Alex Silva Lima sob orientação do Profº Dr. Raul Francisco Magalhães Juiz de Fora – 2005

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  • Universidade Federal de Juiz de Fora Instituto de Cincias Humanas e Letras

    Mestrado em Cincia da Religio

    Experincias e Smbolos de Transformao na

    Doutrina da Floresta

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Cincia da

    Religio como requisito parcial

    obteno do ttulo de mestre em

    Cincia da Religio por Srgio Alex

    Silva Lima sob orientao do Prof

    Dr. Raul Francisco Magalhes

    Juiz de Fora 2005

  • Dissertao apresentada Banca Examinadora, composta por:

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Raul Francisco Magalhes

    _____________________________________________________

    Prof. Dra. Ftima Regina Gomes Tavares

    _____________________________________________________ Prof. Dra. Sandra Maria Corra de S Carneiro

  • Uma verdadeira viagem de descobrimento no

    encontrar novas terras, mas ter um olhar novo

    Marcel Proust

  • AGRADECIMENTOS:

    A CAPES, pelo incentivo pesquisa.

    Aos meus pais Antonio e Vilma, pelo amor, cuidado e confiana.

    Aos meus irmos Mara, Marcos, Mrcio, Andr e demais familiares (em especial tia

    Bernadete, tia Helena e tia Zete), pela fora e ateno sem medida.

    A todos que compem o Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio, por

    tornar possvel a realizao deste trabalho.

    Ao meu orientador Raul Francisco Magalhes, pela interlocuo e sugestes

    imprescindveis.

    A toda comunidade do Padre Gaspar Loureno, atravs de D. Zez.

    A cada um dos amigos de jornada, fraternas companhias a suavizar as turbulncias do

    seguir.

    Ao G-11 (Kely, Alex, Patrcia, Marcos, Andra, Marcelo, Nanah, Alain, Reuber e

    Andr) e hermanos mineiros, dos tempos da PC e todos os outros.

    A Gal, Edel, Joozinho e Dr. Marcelo por suas edificantes colaboraes.

    A toda famlia Juramid, a irmandade do Santo Daime, especialmente comunidade

    do Matutu (Ruth, Sidney, Mestre Paulino e Guilherme, em nome de todos) e irmos da igreja do

    Cu das Estrelas (Rodolfo e ngela, Fernando e Tonha, Mrcio e Adlia, Cludio, Alain, Daniel,

    Cristina, rika, Bimbim e Piota em nome dos demais), Gabriel e Vera Fres; Olvio e Rodrigo

    do Cu da Campina.

    Ao Mestre Irineu e o Padrinho Sebastio.

    Ao Santo Daime, o Professor dos Professores, por todos os ensinos, Luz e Fora.

    A Infinita Soberania Divina em todas as suas manifestaes e formas.

  • INDICE

    Resumo ...................................................................................................................... p.02

    Apresentao.............................................................................................................. p. 04

    I - Primeira Parte - Introduo .............................................................................. p. 16

    1 - Os contextos de uso da ayahuasca........................................................................ p. 16

    1.1 - Ayahuasca entre os ndios ................................................................................ p. 22

    1.2 - Populao mestia amaznica .......................................................................... p. 24

    1.3 As principais religies ayahuasqueiras ............................................................ p. 25

    1.3.1 - O Santo Daime .............................................................................................. p. 26

    1.3.2 - A Barquinha .................................................................................................. p. 31

    1.3.3 - A Unio do Vegetal (UDV) .......................................................................... p. 32

    2 - xtase, Luz e transformao ............................................................................... p. 37

    3 - A cura na pesquisa sobre a ayahuasca ................................................................ p. 40

    4 - Aspectos etnobotnicos, psicofarmacolgicos e qumicos da Ayahuasca.......... p. 44

    5 - Sincrtico, ecltico... hbrido .............................................................................. p. 46

    II - Segunda Parte Experincias e Smbolos de Transformao ..................... p. 51

    1. Daime: compreenso do ch e dos seus efeitos / Do auto-conhecimento ............ p. 60

    2. Sobre a individuao.............................................................................................. p.70

    3. Da Purificao ...................................................................................................... p. 76

    4. Outros apontamentos sobre a transformao em Jung.......................................... p. 78

    5. Sobre o Renascimento .......................................................................................... p. 85

    6. Sofrimento, Morte e Renascimento ...................................................................... p. 91

    III Consideraes Finais...................................................................................... p. 96

    IV Bibliografia...................................................................................................... p. 100

    V Anexos............................................................................................................... p. 104

    1

  • RESUMO

    O trabalho que segue versa sobre experincias de transformaes existenciais

    mencionadas como decorrentes do contato com o universo simblico da doutrina do Santo

    Daime, conforme relatadas por membros de dois grupos da religio localizados no estado de

    Minas Gerais, nas cidades de Aiuruoca e Juiz de Fora.

    Na primeira parte buscamos nos aproximar da diversidade que caracteriza o mundo da

    religiosidade ayahuasqueira. Ayahuasca um dos nomes indgenas do ch do Santo Daime. Esse

    grupo religioso que considera a bebida um sacramento instituiu-se por volta da dcada de trinta

    do sculo XX, na Amaznia, a partir das revelaes recebidas pelo maranhense Raimundo Irineu

    Serra, o Mestre Irineu, possuindo hoje ncleos por vrios pases alm dos que existem no Brasil.

    Aborda-se ainda a questo da teraputica relacionada a experincias extticas desencadeadas por

    psicoativos, bem como detalhes psicofarmacolgicos do Santo Daime.

    Na segunda parte apresentamos os resultados do trabalho de campo, associando-os a

    reflexes sobre alguns estudos de Mircea Eliade e Carl Gustav Jung. Foram enfocados aspectos

    simblicos e mticos relacionados ao tema das transformaes, priorizando elementos

    correlacionveis s experincias de transformao apresentadas pelos religiosos como

    conseqncia do contato com o Santo Daime.

    2

  • ABSTRACT

    The following work is about experiences on existential transformations, mentioned as

    result of the contact with the symbolic universe of the Santo Daime doctrine, as told by members

    of two groups of the religion located in the state of Minas Gerais, in the cities of Aiuruoca and

    Juiz de Fora.

    In the first part of it, we try to get closer to the diversity that characterizes the world of

    the ayahuasqueira religiosity. Ayahuasca is one of the indian names for the Santo Daime tea.

    This religious group that considers that drink a sacrament was born at about the thirties in the

    20th Century, in Amazonia, on the revelations received by Raimundo Irineu Serra from

    Maranho, the Master Irineu, has nowadays nucleus in various countries besides the ones it has

    in Brazil. It still touches the therapeutic question related to ecstasy experiences unleashed by

    psychoactive, as well as psychopharmacologic details of the Santo Daime.

    The second part of this paper presents the results of the research field, associating them to

    reflections on some studies by Mircea Eliade and Carl Gustav Jung. It was focused symbolic and

    mythic aspects related to the theme of transformations, preferring elements that could be

    correlated to the transformation experiences presented by the religious as consequence of the

    contact with the Santo Daime.

    3

  • APRESENTAO

    Esta dissertao de mestrado pretende dar visibilidade a experincias e smbolos

    relacionados a processos de transformao, especialmente de carter subjetivo - ligados

    cognio, esfera dos valores e crenas, s relaes interpessoais e ao auto-conhecimento,

    tambm ao plano corporal e remisso de doenas, tal como mencionados por adeptos da

    religio do Santo Daime, especialmente nos dois grupos por ns pesquisados (que sero melhor

    apresentados adiante), bem como nas referncias a imagens e smbolos que compem o universo

    da Doutrina e que tambm remetam ao tema das transformaes. Buscando dimenses tericas

    que abordassem o tema das mudanas ontolgicas recorremos a alguns estudos de Carl Gustav

    Jung e Mircea Eliade. O primeiro, com seus estudos em psicologia, sempre teve o tema colocado

    de maneira central na sua obra, por essa razo pareceu-nos ainda mais apropriado para ajudar a

    compor esse trabalho por seu interesse pelas pesquisas de Histria das Religies e religiosidade

    comparada, resultando de tal motivao artigos e livros de valor inegvel para o estudo

    acadmico. J Eliade, alm da contribuio de sua Histria Comparada das Religies, fornece-

    nos um entendimento sobre o mito enquanto dimenso viva, determinante da vida daqueles que

    por ele se norteiam, bastante condizente com a lgica de orientao religiosa, tal como ficou

    evidente tambm na perspectiva daimista. Cabe esclarecer que a importncia do estudo sobre a

    narrativa mtica nesse trabalho recai sobre o fato de que certa sociedade ou meio cultural que

    presentifica a dimenso mtica atualizando-a atravs de uma determinada ordem ritualstica

    instaura uma outra relao com a temporalidade e com a subjetividade, o que resulta, e essa

    uma hiptese, em conseqncias que podem facilitar a instaurao do que chamamos mais

    amplamente de transformaes psicolgicas e mudanas ontolgicas, mais que se traduz de

    maneira mais prtica em mudanas de hbitos (na relao com o corpo ou abandono de vcios,

    por exemplo) de crenas e valores (viso de mundo e compreenso da constituio do cosmos,

    etc.) e nas relaes sociais (com familiares, no trabalho).

    No pretendemos, como ficar claro no decorrer do texto, lanar mo das teorias referidas

    a fim de propor uma interpretao sobre as conseqncias da experincia religiosa daimista,

    tampouco parece-nos legtimo afirmar concluses definitivas a partir do nosso estudo.

    Interessou-nos, sobretudo, encontrar semelhanas e paralelos entre as narrativas a respeito dessas

    conseqncias consideradas como decorrncia do pertencimento ao universo simblico daimista,

    e alguns apontamentos e reflexes referentes aos processos transformacionais, especialmente s

    que transcorrem em meios sociais que vivem sob forte influncia da dimenso mtico-religiosa.

    4

  • Dividimos o trabalho em duas partes: as informaes da pesquisa de campo, bem como as

    reflexes tericas a elas associadas esto na segunda parte. Inicialmente nos preocupamos em

    fazer uma aproximao aos universos religiosos erigidos em torno do consumo da ayahuasca1,

    como tambm apresentar alguns dados provenientes das pesquisas j realizadas, principalmente

    aqueles que discorrem sobre os efeitos mais comumente atribudos ao ch/sacramento, como por

    exemplo, os efeitos teraputicos, to comumente mencionados pelos que conhecem o ch. Toda

    essa primeira parte, portanto, deve crdito aos pesquisadores do fenmeno ayahuasca, sem quem

    ela no ganharia forma to facilmente.

    Todo o trabalho, por sua vez, no poderia nascer sem a colaborao das pessoas que se

    dispuseram a nos ajudar nos dois grupos do Santo Daime com quem principalmente nos

    relacionamos. O primeiro a comunidade do Matutu, localizada na reserva natural Serra do

    Papagaio, uma extenso da Serra da Mantiqueira, situada na cidade de Aiuruoca, Minas Gerais,

    onde residem cerca de 120 pessoas.

    De acordo com um dos primeiros moradores da comunidade, a quem chamaremos

    Neyson, o primeiro trabalho oficial com o Daime aberto no Matutu ocorreu a 19 de maro de

    1989; boa parte das pessoas que comearam a viver no local estavam nessa sesso, para muitos

    aquela fora sua primeira experincia com o ch.2

    O segundo grupo constitui a igreja Cu das Estrelas, localizado no bairro Floresta, na

    cidade de Juiz de Fora. H quatro anos o centro vem fazendo regularmente as celebraes

    conforme o calendrio oficial da Doutrina; o Cu das Estrelas est vinculado ao CEFLURIS

    (Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra) entidade com sede no Cu do Mapi,

    na Amaznia, e que coordena os diversos ncleos nacionais e estrangeiros do Santo Daime a ele

    associados. A igreja do Cu das Estrelas ou CEFLUAPAS (Centro da Fluente Luz Universal

    Antonia Paz Souza) conta com aproximadamente 30 fardados.3

    Essa pesquisa valeu-se do que se chama em antropologia observao participante.

    Nossos contatos com os grupos foram, principalmente, atravs da nossa participao em sesses

    rituais, ou trabalhos espirituais, como costumam referir os daimistas. No decorrer da pesquisa,

    participamos de cerca de 20 sesses com o Santo Daime registradas no nosso dirio de campo.

    Geralmente no dia seguinte participao do trabalho anotamos nossas impresses e vivncias 1 Ayahuasca significa em lngua quchua, cip das almas, uma vez que aya remete a alma, esprito e huasca a corda, liana ou cip. Segundo LUNA, L. E. apud GOULART, S.L. O contexto simblico do uso do Santo Daime: formao da comunidade e do calendrio ritual in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Mercado de Letras; So Paulo: FAPESP, 2002. 2 Todos os colaboradores dos dois grupos pesquisados esto identificados por pseudnimos. 3 Fardado a forma de designar todo aquele que se reconhece adepto do Santo Daime e aceita as obrigaes e prescries doutrinrias.

    5

  • subjetivas e detalhes sobre a estrutura, funcionamento e durao das sesses, quantidade de

    doses servida em cada cerimnia, oraes e frmulas de abertura e fechamento dos trabalhos,

    caractersticas especficas, etc.

    Alm das sesses com o Santo Daime, no dirio de campo tambm foram registradas

    muitas das informaes e esclarecimentos obtidos atravs de nossos colaboradores em conversas

    mais informais geralmente dadas antes ou depois dos trabalhos, mas tambm em outros

    encontros especialmente propostos para conversar sobre as experincias de cada um com o ch.

    Apenas nove fiis tiveram suas entrevistas gravadas. Foram ao todo onze horas de udio

    registradas em fitas K-7 onde, atravs de roteiro de entrevistas semi-estruturado, o adepto era

    convidado a falar sobre suas experincias religiosas, o contato com o Santo Daime, e as

    principais conseqncias para sua vida encaradas como decorrncia de tal contato. O roteiro

    considerado semi-estruturado porque possuamos alguns tpicos-sugesto a propor no dilogo,

    porm o encaminhamento dos temas abordados era flexvel aos rumos apontados pelo

    entrevistado, o que nos pareceu bastante produtivo pois permitia a emergncia de temas

    considerados importantes por eles e que nem sempre havamos pretendido abordar

    deliberadamente.

    Em se tratando o Santo Daime de uma doutrina eminentemente musical, uma vez que

    todo o cerimonial tem como pea chave os hinos, cujas letras os fiis se referem no como

    composies de indivduos, mas como recebidos sob inspirao dos planos espirituais, esses

    hinos tambm foram uma fonte importante de conhecimentos a respeito dos principais

    ensinamentos e valores que circulam entre os daimistas. Desse modo, comumente nos valemos

    das citaes de trechos de hinos que ajudem a ilustrar determinado tema abordado. Um conjunto

    de hinos recebidos por algum denominado hinrio.

    A respeito do recurso metodolgico da observao participante cabem ainda algumas

    palavras, no apenas sobre suas vantagens, mas tambm quanto s dificuldades que a ela

    estiveram ligadas na realizao dessa pesquisa, mas que so nuances que parecem prprias do

    fazer antropolgico.

    Analisando as especificidades da prtica antropolgica, Laplantine defende a

    impossibilidade de dissociar observador e observado, apesar da necessidade de distingui-los,

    num estudo que considere a totalidade do fenmeno social pesquisado, e demonstra que a

    pretensa neutralidade absoluta, busca dos fatos objetivos, e a eliminao da implicao do

    6

  • pesquisador no evento pesquisado, ao invs de contribuir pode justamente afastar a possibilidade

    da emergncia de uma objetividade aproximada4.

    Indagando-se sobre as razes para a represso da subjetividade do pesquisador como no

    constituinte da pesquisa, o autor demonstra que a idia de independncia entre os elementos

    constituintes da situao de observao provm do modelo objetivista que na fsica

    predominou at fins do sculo XIX, sendo importado pelas cincias do homem sem nenhuma

    preocupao com a inconvenincia de tal modelo para o estudo de valores, crenas, significaes

    e sentimentos, tpicos do comportamento humano. Tal impropriedade foi remediada de maneira

    curiosa, nas palavras do antroplogo:

    Paradoxalmente, a volta do observador para o campo da observao no

    se deu atravs das cincias humanas, nem mesmo da filosofia, e sim por

    intermdio da fsica moderna, que reintegra a reflexo sobre a problemtica do

    sujeito como condio de possibilidade da prpria atividade cientfica.5

    Trata-se a do famoso princpio de incerteza de Heisenberg que demonstrou que um

    eltron no podia ser observado sem a criao de uma situao que o transformasse. Na

    etnologia a considerao da influncia em mo dupla , no um problema, mas uma fonte

    infinitamente fecunda de conhecimento.

    Caso no se tente dissimular a presena do pesquisador na pesquisa, a influncia dele

    pode se fazer notar j muito precocemente: na escolha do tema pesquisado, por exemplo. No

    meu caso no foi diferente.

    Alis, minha implicao pessoal nesse processo de pesquisa bastante profunda, em se

    tratando de uma abordagem participante relacionada ao consumo religioso de um psicoativo, no

    me parece que podia ser muito diferente. No fui levado a estados subjetivos incomuns a partir

    dos relatos dos adeptos da doutrina apenas, mas tambm os experienciei diretamente; tendo sido

    tal experiencia, inclusive, que me insuflou o tipo de fenmeno religioso que deveria estar

    circunscrito enquanto objeto da pesquisa. Se por um lado o fato de no ser um fardado colocava-

    me a certa distncia do cotidiano dos fiis, fazendo-me, por exemplo, no poder participar de

    todo tipo de cerimnia, vez que a literatura indicava que alguns ritos eram abertos apenas aos

    fardados, estrategicamente a no adeso pareceu-me, de sada, um recurso interessante pois,

    apesar de alguns acessos limitados, isso ajudava a preservar um certo distanciamento benfico ao

    4 LAPLANTINE, Franois. Aprender Antropologia. So Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 169. 5 Op. cit., p. 172.

    7

  • fazer acadmico, no sentido de no gerar um identificao completa com o discurso religioso,

    por outro lado, eu no era um estranho que nada sabia concretamente acerca da experincia ritual

    com o sacramento, vez que eu conhecera o Santo Daime pouco antes de comear os estudos no

    mestrado em Cincia da Religio. Inclusive, apesar de j ter pretenses anteriores em dar

    seguimento aos estudos atravs de um mestrado, a opo por realiz-los em tal curso foi, sem

    dvida, endossada pela vivncia com o Santo Daime e suas conseqncias. A princpio pensava

    em fazer uma pesquisa num curso em Psicologia Social, que a rea de reflexo e prtica do

    campo psi com que mais nos alinhamos, mas no transcorrer da vida foram se delineando outros

    caminhos. Falando em caminhos, aproveitando que em tela est minha implicao pessoal na

    pesquisa, permitam-me uma rpida digresso aos meandros do contexto de nascimento das idias

    que vieram culminar nesta pesquisa.

    No ano de 2001, inquieto por algumas dvidas relacionadas minha insero

    profissional, um certo mal-estar difuso e sensao de falta de nexo, comecei a planejar um modo

    para imprimir novo sentido vida. A idia de fazer uma viagem, que j existia, fortaleceu-se.

    Conhecer novas terras, pessoas, idias, alm de fascinante, parecia poder me ajudar a sair

    daquela crise.

    Uma certa indignao com o descompasso entre os grandes avanos tecnolgicos e

    cientficos, por um lado, e do outro uma raqutica estrutura nas relaes humanas, no cuidado

    com a sade, com a educao e com o outro, tpicas da nossa sociedade, potencializavam o

    quadro. Alegrei-me ao descobrir que muitas pessoas subvertiam os cdigos convencionais da

    nossa existncia urbana, vivendo em comunidades alternativas existentes pelo Brasil e deliberei

    que nas cidades por onde eu passasse, deveria conhecer essas pessoas. Na escolha de um roteiro-

    sugesto de viagem privilegiei alguns santurios naturais, lugares em que poderia mais

    facilmente encontrar tais comunidades, assim fui levado a algumas das principais chapadas desse

    nosso belo pas: Diamantina, dos Veadeiros e dos Guimares (como tambm s imediaes da

    Serra da Mantiqueira, no sul mineiro, onde conheci o Santo Daime).

    Acreditava que, caso tal empreitada no se validasse em si mesma, nas vivncias e

    aprendizagens que teria, poderia ao menos despertar alguma idia para um projeto de mestrado

    futuro. Quanto a essa segunda possibilidade j possua a seguinte perspectiva: buscaria conhecer

    como essas comunidades lidavam com a questo da auto-sustentao. Talvez dessa forma

    entendesse melhor atravs de quais mecanismos buscava-se criar padres sociais diferenciados e

    relativamente recortados da sociedade mais ampla na qual esto inseridos. Suspeitava que

    poderia depois associar questo da auto-sustentao, o conceito de autopoiesis, que Maturana e

    8

  • Varela, em sua biologia cognitiva, tratam como das caractersticas bsicas do viver; a capacidade

    de gerao, de criao das prprias condies de existncia, que pode ser vista desde os

    organismos unicelulares at as formaes mais complexas, a busca de condies que garantam a

    sobrevivncia geral. Para no prolongar muito, foi nessa rota que cheguei comunidade do

    Matutu, em Aiuruoca e l entrei em contato com a doutrina daimista.

    Pois bem, apesar de no ter me tornado um fardado eu freqentei alguns trabalhos

    espirituais da doutrina. Sem dvida nenhuma, tal participao foi fundamentalmente

    enriquecedora. Aos que j conhecem o Santo Daime no difcil compreender porque os

    vegetais que lhe compem so designados de plantas professoras ou plantas mestras,

    sobretudo nos meios curandeiros da vasta regio amaznica. As aprendizagens, especialmente

    relacionadas ao auto-conhecimento (no primeiro experimento, por exemplo, fui levado a

    ressignificar diversas situaes da minha histria pessoal, presentificadas em flashes de vrias

    circunstncias j vividas, especificidades a respeito de relacionamentos interpessoais, inclusive

    detalhes no mais presentes na memria, tudo sob novas perspectivas, instaurando outros

    sentidos indubitavelmente vivenciados como mais amplos e esclarecedores), tessitura do real

    (que facilmente pode ser sentido como comportando dimenses existenciais mais sutis e menos

    concretas que o visvel mundo fsico, o que os religiosos vo designar por plano espiritual, que

    tambm faculta um sentimento de unidade conectando tudo que compe a vida, experimentado

    com tanta convico quanto o a certeza do teor de inenarrvel que a acompanha), etc. Como

    fcil notar, a importncia e o carter especial com que foram vividos tais efeitos, comportam

    uma complexidade dificultosa de se falar a respeito num universo to distinto do religioso quanto

    o acadmico.

    A linguagem cientfica e a religiosa parecem opor-se largamente quanto forma de

    perceber e explicar o mundo sua volta, de modo que algo dessa empreitada de fazer comunicar

    tais esferas parece fadada ao fracasso. Cada universo pauta-se numa lgica de apreenso e

    codificao da realidade s vezes inversa do outro. Um mal-estar aflorava ao perceber em

    alguns contedos uma impossibilidade de traduo em palavras ou numa narrativa descritiva

    objetiva. Muito se inscrevia na ordem do no-dito, no pronuncivel porque profundamente

    marcado no registro do sensvel, uma experincia afetiva e corporalmente registrada mas com

    poucas chances de se transmutar ao simblico. Lembrava-me de Verger e do ttulo da exposio

    de fotos e artefatos de sua vida e obra organizada pela Fundao Pierre Verger: O mensageiro

    entre dois mundos, o olhar viajante de Pierre Fatumbi. Pensei na dureza de pretender-se tradutor

    entre mundos que falam lnguas to distintas.

    9

  • A convico quanto importncia e ao saber inerentes aos vividos em alguns ritos

    daimistas nem sempre comportavam a possibilidade de uma justificao segundo os critrios da

    racionalidade ocidental, cartesiana, o que em nada parecia invalidar ou desvalorizar o aprendido.

    Apesar das dificuldades de tal magnitude, outra sensao nos acompanhou: uma tentativa de

    tanger o experimentado no deveria, contudo, ser abandonada, apesar das limitaes explanadas.

    Ademais, assumimos um compromisso com a academia ao transformarmos o que poderia no

    passar de uma experincia pessoal em projeto de pesquisa a respeito de um fenmeno descrito

    pelos daimistas: haviam experimentado mudanas ontolgicas percebidas como decorrentes das

    vivncias com o Santo Daime. Agora os critrios de elucidao e validao do evento estudado

    passavam a depender, no mais da minha experincia, mas das declaraes e posicionamentos

    manifestados pelos que colaboraram para a realizao dessa pesquisa, os daimistas dos grupos

    estudados. O trnsito entre o espao acadmico e o religioso no foi nada fcil e as

    especificidades desses deslocamentos so discutidas tambm por outros pesquisadores do campo

    ayahuasqueiro. Bia Labate, importante estudiosa do assunto, busca estimular a reflexo sobre os

    aspectos dessa dupla insero. Co-organizadora de O Uso Ritual da Ayahuasca6 com

    Wladimyr Sena Arajo, publicao que rene pesquisas nacionais e estrangeiras muitas das quais

    foram apresentadas no I CURA (I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca) que aconteceu

    em 1997, na cidade de Campinas no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UNICAMP.

    Tal evento foi idealizado e organizado por Labate que tambm publicou recentemente um outro

    livro, fruto da sua dissertao de mestrado: A Reinveno do Uso da Ayahuasca nos Centros

    Urbanos7. Na introduo deste trabalho, a autora trata do histrico da sua pesquisa e de aspectos

    metodolgicos tpicos dos estudos sobre o que denomina religies ayahuasqueiras brasileiras

    cujos principais representantes so o Santo Daime, a Barquinha e a Unio do Vegetal, grupos

    que tem como centro de suas prticas o consumo religioso do ch ayahuasca, nesses grupos mais

    conhecido por Daime (na Barquinha e no Santo Daime) ou Vegetal (na UDV Unio do

    Vegetal). A bebida tem ainda vrias outras denominaes indgenas, alm de ayahuasca, que so

    adiante mencionadas no tpico sobre os distintos contextos do consumo da ayahuasca.

    A antroploga que fardada no Santo Daime, descreve as dificuldades sentidas pelo

    pertencimento duplo: Para ser sincera, sinto-me num fio: para os daimistas talvez eu seja mais

    uma cientista, uma pesquisadora, na academia, a minha filiao religiosa pode ser vista com

    6 LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Campinas, SP: Mercado de Letras, So Paulo: Fapesp, 2002. 7 LABATE, B. C. A reinveno do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, SP: Mercado de Letras, So Paulo: Fapesp, 2004.

    10

  • desdm ou preconceito8. Tambm experimentei tal sensao, apesar de no ter aderido ao grupo

    pesquisado da mesma maneira que Labate. Se num dos grupos religiosos, quando falei da

    pesquisa fui logo no comeo indagado com uma atmosfera tipo: o que pretendes? Na

    universidade tive que ouvir posies claramente preconceituosas, fruto de um desconhecimento

    do assunto que eu tratava, travestido em piadinhas feitas por colegas de curso insinuando dever

    ser bom estudar algo que produz um barato legal. Naturalmente tais brincadeiras refletem

    uma ignorncia a respeito da complexidade do processo desencadeado pela experincia ritual

    daimista, o que muitas vezes imps travessias vivenciais bastante dolorosas e difceis, que bem

    distantes de ser um barato confrontavam com experincias limite de quase-morte, s

    amenizadas com a posterior percepo e desencadeamento de insights ligados ao que ento podia

    ser compreendido como mortes simblicas, reviravoltas de significaes ligadas vida. A esse

    respeito vale citar uma passagem do interessante artigo de Soares no qual ele diz:

    Hipteses sociolgicas parte, no h como negar que esto em jogo

    temas, concepes e comportamento referentes a esferas bsicas da vida social e

    da experincia existencial: da famlia poltica, da educao aos caminhos

    profissionais, da identidade aos cuidados com o corpo frequentemente, alis, ao

    contrrio de certas experincias e determinadas observaes do senso comum,

    mais prximos da disciplina espartana do que de um vago e pervasivo

    narcisismo hedonista (...).9

    Aproveitando essa meno aos cuidados com o corpo, notamos que Soares observa com

    bastante preciso as especificidades e nuances que essas relaes assumem na cultura daimista.

    Ele demonstra que h uma inseparvel articulao entre o fsico e o psicolgico espiritualizado

    e que a

    (...) sade supe qualidades extrnsecas ao funcionamento autnomo da

    mquina humana, como a adeso a valores, o padro de atitudes, a relao com os

    outros e com a natureza, com a prpria espiritualidade e com a alimentao.

    Sade o ndice de integrao csmica ou de equilbrio com a unidade

    harmnica do todo10.

    8 Op. cit., p. 34. 9 SOARES, L. E. O Santo Daime no contexto da Nova Conscincia Religiosa in: LANDIM, L. (org.). Cadernos do ISER, n. 23 Sinais dos Tempos-Diversidade Religiosa no Brasil. Rio de Janeiro, ISER (Instituto Social de Estudos da Religio), 1990. 10 Op. cit., p. 266.

    11

  • Isso nos recorda que, no decorrer dessa pesquisa, vrias expresses ocorreram para nos

    referirmos s mudanas existenciais mencionadas como conseqncia da experincia exttica

    daimista: cura, transformao, sade, renascimento espiritual, enfim, a dificuldade revelava

    nosso impasse. Usar a palavra cura parecia remeter, de maneira muito intensa, dimenso

    orgnica e privilegiava, assim, um modelo de compreenso de influncia biomdica pouco

    condizente com a perspectiva daimista. Sade nos trazia essa mesma dificuldade exceto se

    lembrssemos das especificidades mencionadas na citao acima, ou ainda, se retomssemos a

    informao trazida na raiz latina da palavra: Salus, que vem a ser a mesma que compe a palavra

    salvao; coincidncia preciosa pois nos coloca em contato simultneo com uma imagem de

    ocorrncias tanto bio-psquicas, quanto metafsicas e religiosas. Renascimento espiritual

    apontava, em sentido inverso, para um privilgio da leitura religiosa podendo vir a dificultar o

    entendimento dos que no se situam internamente em tal discursiva. Portanto falar em

    transformao foi despontando como mais apropriado para esse estudo, primeiro porque se

    presta bem a descrever as modificaes narradas pelos adeptos da doutrina, apesar de que,

    mesmo tendo sido usada por alguns, era principalmente cura a palavra preferida pela maioria dos

    fiis; depois a palavra ajudava por ser tpica do nosso prprio campo de reflexo original: a

    psicologia. O prprio Jung a ela recorre para remeter a esses processos, como ser visto na

    segunda parte do trabalho.

    A expresso Doutrina da Floresta ser usada como sinnimo para Santo Daime.

    Doutrina como frequentemente os daimistas se referem ao corpo institucional de que fazem

    parte, a palavra tambm aparece em muitos hinos com esse sentido. Floresta, evoca o contexto

    de origem dos primeiros cultos daimistas, nascidos na regio amaznica e tambm usada aqui

    em referncia forma como tratada por Jung, enquanto metfora para falar do inconsciente,

    por remeter ao tema do desconhecido, de mundo inexplorado, lembrando o obscuro e profundo,

    fonte de vida e mistrio. Curiosamente Floresta tambm o nome do bairro onde se situa um

    dos grupos daimistas aqui estudado: a igreja de Juiz de Fora, o Cu das Estrelas.

    Tambm Soares, em artigo j mencionado, articula a continental floresta Amaznica com

    a dimenso inconsciente; depois de sugerir numa espcie de topologia nacional, situar-se no Sul

    e Sudeste nossa racionalidade, nossa afetividade no Nordeste e Centro-oeste, ele diz da

    Amaznia:

    12

  • Nem corao, nem razo: pulsa, l no interior sombrio e imperscrutvel

    da selva, algo que vivo e se manifesta por excessos, fonte inesgotvel de vida

    e ameaa de aniquilamento e morte, algo que irredutvel e irremediavelmente

    outro, exterior, distante e tambm central, intimo prximo, presente; enfim, algo

    que na topologia simblica da nao ocupa o lugar do inconsciente ou, talvez

    mais precisamente, do Isso, no modelo freudiano da alma humana.11

    Como j dissemos, o trabalho est dividido em duas partes. Na primeira pretendemos dar

    uma viso ampla e rpida sobre o universo da assim chamada religiosidade ayahuasqueira. Que

    universos sociais, simblicos e mticos agregam-se em torno da bebida ritual dos povos da

    Amaznia, o ch ayahuasca, o vinho das almas em lngua quchua? Desde pilar central do

    edifcio cosmognico de dezenas de naes indgenas, onde geralmente dos principais recursos

    da tecnologia sagrada de que os xams lanam mo, passando pelas comunidades ribeirinhas, os

    designados mestios, grupos dos descendentes do encontro entre colonizadores e nativos, que

    herdaram, entre outras coisas, muitos dos conhecimentos fitoterpicos e relacionados ao reino

    vegetal que possuam os antigos moradores do local.

    Estudaremos instigantes movimentos religiosos de hbrida constituio que aglutinam em

    suas crenas e prticas elementos cristos, xamnicos, esotricos, espritas e afro-descendentes,

    dos quais destacaremos os trs mais conhecidos e pesquisados: a Barquinha, a Unio do Vegetal,

    e o Santo Daime, este ltimo grupo aquele que enfatizaremos naturalmente por tratar-se do que

    mais conhecemos terica e experiencialmente, mesmo sabendo que h muito mais a saber do que

    conseguimos metabolizar e concretizar no texto que segue.

    No tpico intitulado xtase, Luz e Transformao antecipamos de algum modo a tnica

    da segunda parte da dissertao, pois a referenciamos certas dimenses mticas da doutrina

    daimista, como por exemplo alguns dos seus aspectos apolneos e dionisacos. Buscamos

    tambm introduzir algumas comparaes entre vivncias recorrentes a diversas tradies como,

    no caso, a experincia de uma Luz enquanto evento mstico e essa estratgia voltar a ser usada

    sempre que pudermos nos valer dos estudos comparados que contribuam nesse sentido.

    Tratamos ainda nessa parte das classificaes etnobotnicas das plantas que compem o

    ch, bem como dos elementos qumicos mais destacados presentes no cip Jagube e na folha

    Rainha, maneira principal como os daimistas designam cada um dos elementos constituintes do

    ch que resulta da sua unio. Santo Daime o nome dado a esse Ser Divino, conforme

    compreendem, produzido pela fervura do cip (macerado pelos homens) mais a folha 11 Op. cit., p. 272-273.

    13

  • (criteriosamente selecionada e livre das impurezas eventuais pelo trabalho exclusivamente

    feminino). Como atuam na dinmica dos nossos neuro-transmissores esses elementos

    responsveis pelo efeito-ayahuasca e que desdobramentos ocasionam?

    Por fim abordamos os principais apontamentos encontrados nas pesquisas j realizadas

    sobre a questo da cura, ou como preferimos tratar nesse trabalho, das transformaes cujo

    desencadeamento atribudo ao contato com o Santo Daime. De qualquer forma esse tema no

    estar apenas circunscrito a esse ltimo ponto, uma vez que a atribuio do valor teraputico , as

    mudanas ontolgicas amplas por que passaram, por experincia, as principais lideranas ou

    fundadores de alguma das religies ayahuasqueiras, enfim, a atribuio desse carter

    transformacional, perpassam os contextos simblicos e imaginrios por onde se costuma

    consagrar essa bebida.

    Tratamos, ainda no ltimo ponto dessa parte, sobre o hibridismo tpico das religies

    ayahuasqueiras e nos questionamos sobre o valor de algumas posturas dicotomizantes, prprias

    do discurso racionalista, na abordagem de manifestaes culturais como a religio. Apontamos

    as proximidades estruturais e histricas entre o Santo Daime e a Umbanda, ambas bastante

    flexveis aos contatos e rearranjos promovidos pela comunicao intereligiosa, e tambm s

    diferenas, em especial, no que tange s modalidades do contato com o mundo espiritual.

    J na segunda parte desejamos trazer as informaes vindas da pesquisa de campo, das

    entrevistas, do dirio, das leituras dos hinos e oraes daimistas, dos smbolos e imagens que

    estimularam o entendimento de como se processam os eventos existenciais e psquicos

    vivenciados no mbito da cultura daimista, compreendidos como facilitadores e instauradores de

    processos transformacionais. Para isso tentamos mostrar os principais modos de como os fiis se

    referem ao sacramento psicoativo, dialtica entre a dimenso sagrada e a dimenso tcnica, e

    como elas funcionam, ou melhor, como percebido seu funcionamento no que tange sua ao

    e efeitos produzidos na interao com o dinamismo humano.

    Paralelamente apresentao das experincias de transformao relatadas pelos

    colaboradores da pesquisa, bem como sugeridas em imagens do universo daimista,

    trabalharemos com as reflexes sobre mitos e smbolos relacionadas problemtica circunscrita

    em nossa investigao. Eliade e Jung, principalmente, nos fornecem as bases tericas para tal

    empreitada: o primeiro com seu mtodo comparativo da Histria das Religies favorece a

    compreenso de alguns fenmenos que abordamos atravs da evocao das similaridades que

    guardam com outros fatos culturais mais estudados, ou j bem conhecidos, como o xtase

    xamnico ou o fenmeno da luz mstica, por exemplo. tambm por esse mesmo vis que

    14

  • resolvemos trazer cena histrias da mitologia grega nas quais identificamos temas comuns

    nossa pesquisa, como por exemplo, o da morte e renascimento, to central nos relatos de alguns

    heris mticos quanto em descries de aspectos da ritualstica do Santo Daime. Quanto a essas

    cenas mitolgicas o auxlio valioso , sobretudo, o de Junito de Souza Brando.

    J Jung nos ajuda a pensar como uma prtica religiosa pode influenciar na ordenao de

    contedos simblicos e experincias, fornecendo sua assimilao dinmica da subjetividade

    humana. Tambm nos permite abordar como se desenrolam os processos de transformaes

    psquicas e, mais especificamente, quais os aspectos mais destacados da sua teoria sobre a

    individuao, que como o autor se refere aos processos de desenvolvimento psicolgico.

    Cabe frisar que pretendemos, com a presena nesse trabalho de conceitos da psicologia

    junguiana, no uma tentativa de propor uma interpretao da experincia religiosa daimista luz

    de tal teoria, porm encontrar paralelos, evocar semelhanas entre ela e os processos

    transformacionais subjetivos, tais como descritos pelos adeptos do Santo Daime bem como

    sugeridos em smbolos e imagens presentes na doutrina. Sem pretenses amplas nem definitivas

    seria ensaiar um movimento anlogo ao do pensador suo em suas obras posteriores a 1930

    onde, aps ter demonstrado o processo de desenvolvimento humano acompanhando vrios casos

    individuais ele os compara: (...) s vias de aperfeioamento propostas por certas vias de

    aperfeioamento espirituais. O analista se torna de algum modo historiador das religies, e sua

    pesquisa se focalizar principalmente sobre trs universos tradicionais: o lamasmo tibetano, (...)

    a alquimia ocidental (...) e finalmente, o cristianismo (...)12.

    Focalizaremos seus estudos sobre o cristianismo e a alquimia, por razes que nos

    parecem claras: o primeiro por ser o principal universo de referncia, ao lado do universo

    xamnico, na constituio da simblica daimista e a alquimia por ser abordada como filosofia

    oculta, que projeta sobre a matria qumica eventos que se processam no mbito do psquico, o

    que nos estimula a fazer assossiaes com os desdobramentos subjetivos disparados pela

    qumica, mas no somente, do ch psicoativo que estudamos.

    12 MASQUELIER, Y. T. C. G. JUNG A sacralidade da experincia interior. So Paulo: Paulus, 1994, p. 78.

    15

  • I Primeira Parte - Introduo

    1. Os contextos de uso da Ayahuasca

    Ayahuasca, Santo Daime ou Vegetal so as formas mais usadas para referir-se ao ch

    feito a partir de um cip e das folhas de um arbusto, considerados sagrados pelos adeptos das

    religies que o utilizam, bem como por vrias tribos da Floresta Amaznica. O ch consumido

    tambm por muitas pessoas do meio caboclo amazonense, que o conhecem atravs dos

    curandeiros locais. A planta foi classificada em 1852 pelo botnico Richard Spruce, mais adiante

    apresentaremos outras informaes a respeito da histria da pesquisa acadmica sobre esse

    recurso da medicina natural amaznica.

    Tradicionalmente usada pelos ndios amazonenses em seus rituais xamnicos, contexto

    em que apresenta uma variedade de outras designaes13, o vegetal logo foi incorporado por

    algumas pessoas do meio caboclo, especialmente atravs dos xams mestios, reconhecedores

    dos amplos poderes atribudos ao mesmo. Mas a expanso dos usos cerimoniais da ayahuasca

    ainda ganharia novas feies. Na primeira metade do sculo passado, nos limites da Amaznia

    brasileira, comearam a se institucionalizar os primeiros grupos religiosos estruturados em torno

    do consumo ritual da ayahuasca, constitudos num mbito de predominante catolicismo popular,

    mas tambm sob influncia afro-descendente, esprita e esotrica.

    O uso institucionalizado da ayahuasca entre grupos no indgenas comeou na Amaznia

    na dcada de 30 do sculo XX, tempo da criao do primeiro centro daimista, hoje conhecido

    como Alto Santo. Seu fundador, Raimundo Irineu Serra, nascido no Maranho, chegou em 1912

    regio para trabalhar nos seringais. No s entre ndios, mas tambm entre a populao mestia

    ou cabocla, j h muito tempo utilizava-se cerimonialmente o ch, atribuindo-lhe importncia na

    identificao, preveno ou tratamento de doenas; nos rituais mgico-religiosos ou como

    facilitador dos contatos sociais. divulgado que grupos indgenas peruanos foram responsveis

    pela iniciao de Raimundo Irineu, mais tarde conhecido como Mestre Irineu. Acredita-se que

    atravs da tradio espiritual dos Incas, a ingesto da Yaj foi transmitida s populaes ainda

    residentes na regio.

    A designao Santo Daime foi inicialmente feita pelo Mestre Irineu, criador do Centro de

    Iluminao Crist Luz Universal Alto Santo (CICLU). A forma Santo Daime tornou-se comum,

    tanto para referir-se ao ch quanto aos cultos vinculados ao CICLU e ao CEFLURIS (Centro

    13 Entre os quais yag, nixipae, shori, ondi, kahi ide, gahpi, capi, e he ohekoa so alguns deles.

    16

  • Ecltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra)14. Costuma-se explicar que o nome

    Daime tenha nascido dos rogativos (dai-me fora, dai-me amor..) constantes nas situaes de

    consumo do ch entre os caboclos, quando pediam o que desejavam conseguir com auxlio dos

    planos espirituais mas encontramos pelo menos uma outra hiptese para a proposio do nome

    Daime. Para Monteiro da Silva a palavra teria sido composta atravs de recursos cabalsticos

    esotricos. No nos esqueamos que o Mestre Irineu era j naquela poca filiado s ordens

    esotricas Rosacruz e Comunho do Pensamento. A primeira parte da palavra DA estaria em

    conexo com a ltima slaba de JURAMID (ou DAM), estando ambas relacionadas a D, a

    serpente mtica dos cultos Fon de DAHOME. A serpente uma viso recorrente nas miraes

    descritas em distintos contextos de utilizao da ayahuasca, alis esse nome de origem Quchua -

    cip das almas - evoca por semelhana a imagem da serpente. O animal tambm smbolo do

    orix Oxumar, relacionado transformao, alis como a serpente de uma maneira bastante

    recorrrente concebida nas mitologias de maneira geral, tal como na imagem do urobros, a

    serpente que engole a prpria cauda, enquanto smbolo do princpio e fim cclicos do universo15.

    Juramidam considerado o nome astral do Mestre Irineu, tambm compreendido como uma

    entidade associada a Cristo, utiliza-se tambm a expresso Povo de Juramidam para referir-se

    aos daimistas conforme nos esclarece Vera Fres:

    A expresso Povo de Juramidam refere-se aos descendentes de

    Juramidam, nome que o iniciador da doutrina recebeu das entidades divinas do

    Santo Daime. Juramidam o chefe da misso. Jura o pai e midam o filho

    Juramidam representa a segunda volta de Jesus Cristo na Terra, sendo assim, o

    Povo de Juramidam o povo de Jesus Cristo.16

    O CEFLURIS a entidade que administra todas as igrejas do Santo Daime (no Brasil e

    no exterior) a ele vinculados, e foi criado pelo Padrinho Sebastio que ao lado do Mestre Irineu,

    segundo Groisman17 (...) so as figuras centrais do panteo das lideranas espirituais dos

    daimistas ligados ao CEFLURIS. Os outros grupos mais conhecidos que consideram a

    ayahuasca um sacramento, que sero apreciados mais detidamente adiante, so a Unio do

    14 LABATE, B.C. e ARAJO, W. S (orgs.). Op. cit., p. 231-232. 15 MONTEIRO DA SILVA, C. O uso ritual da ayahuasca e o reencontro de duas tradies. A mirao e a incorporao no culto do Santo Daime. In: LABATE, B.C. e ARAUJO, W.S. (orgs.). Op. cit., p. 367. 16 FRES, V. Santo Daime cultura amaznica, Histria do Povo Juramid. Manaus: Suframa, 1986, p. 26. 17 GROISMAN, A. Eu Venho da Floresta - um estudo sobre o contexto simblico do uso do Santo Daime. Florianpolis: ed. da UFSC, 1999, p.17.

    17

  • Vegetal e a Barquinha, tendo este ltimo ficado praticamente restrito regio amaznica, salvo

    as excees de alguns ncleos criados em outras regies, enquanto os outros dois, Santo Daime e

    Unio do Vegetal, expandiram-se pelo Brasil e tambm para outros pases. O ch tomado pelos

    adeptos das religies ayahuasqueiras obtido atravs da decoco do cip Jagube

    (Banisteriopsis Caapi) misturado com as folhas do arbusto Psychotria Viridis, conhecida como

    folha Rainha ou Chacrona. Entre os ndios so reconhecidas dezenas de outras plantas que

    podem ser mescladas ao ch, a partir da identificao de necessidades nas quais as mesmas so

    utilizadas como remdios.

    Por produzir estados de conscincia que transcendem os estados convencionais,

    transformando a maneira como a realidade percebida, a substncia considerada psicoativa,

    expresso que resolvemos usar em detrimento de outras que evocam uma carga de sentido

    pejorativo, como drogas por exemplo. Concordamos com Perlongher e julgamos tambm que a

    esta altura fica muito difcil continuar sem questionar a amplido capciosa da noo mdico-

    policial de drogas18. A expresso alucingeno tambm nos parece amplamente imprpria; em

    psiquiatria define-se alucinao como erro perceptivo de carter psicopatolgico19,

    entendimentos que indicariam um descrdito para com o sujeito da experincia atribuindo-lhe

    juzos de valor negativizantes, alm de negligenciar a recorrncia de sensaes e imagens

    descritas por vrios daimistas, como por exemplo, a percepo de certas luzes e cores, sensao

    de ligao com o meio circundante com correlata percepo de dissoluo da individualidade,

    ampliao de conhecimentos etc.20 Conforme a perspectiva de alguns autores21, tambm se

    costuma usar a expresso entegeno. Derivada do grego entheos, significa o que leva algum a

    experimentar o divino em si; esse termo parece se aproximar bem do que pensam os daimistas

    sobre a substncia. O neologismo entegeno foi apresentado por Gordon-Wasson22, como

    proposio de um comit constitudo para discutir as imprecises dos vocbulos empregados

    para referir-se s substncias vegetais sagradas, em especial quelas usadas nos Mistrios de

    Eleusis, Mistrios rficos entre outros. Recusavam-se, sobremaneira, imprpria e equivocada

    expresso alucingeno e explicavam o sentido da nova palavra proposta: dios generado dentro. 18 PERLONGHER, N. Droga e xtase in: Religio e Sociedade. V. 16. n.3, Rio de Janeiro: ISER, 1994. 19 Para ver uma interessante discusso sobre a leitura psicopatologizante que faz equivaler o delrio e, nessa mesma lgica, a alucinao a erros de juzo ou idias patologicamente falsas, recorrer ao texto de SERPA JR.,Octvio. Dando sentido ao mundo: classificar e delirar in: COSTA, Jurandir F. Redescries da psicanlise, Relume-Dumar, em que o autor, a partir da noo wittgensteiniana de jogos de linguagem demonstra que conceber toda produo discursiva outra enquanto erro, significa que optamos por nos apoiar numa teoria referencial do significado, tpica das cincias da natureza, o que pode ser uma opo limitante. 20 ARAJO, W.S. Navegando Sobre as Ondas do Daime: histria, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas, So Paulo: ed. da UNICAMP, 1999, p. 69-88. 21 Por exemplo: MACRAE, E. Guiado Pela Lua. So Paulo: Brasiliense, 1992. 22 GORDON-WASSON, R. La bsqueda de Persfone. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1992, p.32.

    18

  • Segundo Groisman23, o uso de substncias psicoativas em contexto religioso ganha

    visibilidade no Brasil, sobretudo a partir da dcada de oitenta. Nesse tempo foram criados

    ncleos daimistas fora da regio Amaznica, assim como se publicam alguns trabalhos

    acadmicos sobre o assunto.

    A partir do contato com os adeptos de dois ncleos daimistas, um situado numa rea de

    reserva natural da Serra do Papagaio, no pequeno municpio de Aiuruoca, e outro localizado no

    bairro Floresta, na cidade de Juiz de Fora, investigamos como estes sujeitos percebiam mudanas

    em suas vidas como decorrncia do contato com o Santo Daime. Uma importante categoria a ser

    considerada nesse estudo a mirao. De acordo com Monteiro da Silva24, o termo possui status

    sagrado, significando mais que ver (...) o estado de mirao no se confunde com as vises

    alucinatrias. Podem ocorrer fenmenos homlogos aos estados de xtase, transe ou

    possesso. Complementando a definio do fenmeno, acompanhemos Groisman que diz que

    a mirao

    (...) uma palavra especial usada para definir o estado de conscincia no qual

    possvel ter contato com a espiritualidade. Ela se manifesta atravs de um conjunto de

    percepes que proporcionam uma sensao de transcendncia. (...) pode ser uma

    viso, (...) sons ou cheiros que no fazem parte da situao em que se est; pode ser

    uma introduo num outro universo, onde transitam seres de natureza desconhecida;

    (...) pode ser uma experincia cognitiva.25

    Ao apreciar tais experincias subjetivas no podemos ignorar que elas esto submetidas a

    certos fatores condicionantes. Para Winkelman, citado por Pelez26 seriam trs os fatores

    relacionados experincia psicodlica: neurofisiolgicos, set e setting. O primeiro diz respeito s

    caractersticas do agente consumido na sua ao sobre o organismo; o set engloba as

    caractersticas psquicas do sujeito bem como as suas atitudes relacionadas experincia; j o

    setting inclui o entorno social e aspectos culturais que vo modelar e dar sentidos experincia.

    Se esses dois ltimos fatores, set e setting, tm um carter particular - onde podemos situar as

    especificidades orientadas pela cultura daimista quanto ao setting - j os fatores

    neurofisiolgicos so considerados pelo autor como universais, visto que sua atuao ocorre nos

    mesmos receptores cerebrais humanos. 23 GROISMAN, A. op.cit. 24 MONTEIRO DA SILVA, C. Op. cit., p. 367. 25 GROISMAN, A. op.cit, p. 55-56. 26 PELEZ, M.C. No mundo se cura tudo, interpretaes sobre a cura espiritual no Santo Daime. Dissertao de Mestrado em Antropologia Social, UFSC, Florianpolis, 1994, p.18.

    19

  • O uso ritual de substncias psicoestimulantes como o Santo Daime, atrai o interesse de

    diversos segmentos do saber, dada a multiplicidade de fatores constituintes do fenmeno. Assim,

    a qumica, a biologia, a farmacologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a etnobotnica e

    a psiquiatria so alguns exemplos de abordagens que convergem seus interesses para o estudo do

    tema. Diante da hbrida constituio do fenmeno, somos convidados a tentar uma articulao

    das contribuies oriundas de distintos campos do conhecimento, promovendo uma maior

    fluidez entre as fronteiras disciplinares, o que julgamos ser especialmente importante para as

    cincias humanas.

    Em se tratando de um estudo em cincias das religies, concordamos com Camura27 que

    a considera uma rea (...) constituda por um agregado de cincias (humanas) particulares, cada

    uma com seu mtodo prprio, a tratar do tema comum da religio. rea que tende, conforme o

    autor, a um crescente pluralismo metodolgico que nos distancia da idia de um paradigma nico

    norteando os estudos do campo.

    Dessa forma, podem nos ajudar os estudos sobre a composio qumica do ch

    esclarecendo como atua no nosso sistema neuroendcrino. A psicologia e a farmacologia podem

    facilitar o entendimento sobre os efeitos psquicos e fisiolgicos da substncia. A primeira

    disciplina possibilitaria ainda a discusso sobre o carter teraputico atribudo ao Daime

    relacionando-o com suas prprias perspectivas tericas quanto a concepes de cura. A

    antropologia e a sociologia, por outro lado, alm de auxiliarem a compreender a dimenso

    cultural e grupal formatadoras da experincia transcendente, serviro como inspirao para os

    modelos metodolgicos de abordagem do tema.

    Essa tendncia em considerar as contribuies de diversas disciplinas vem sendo

    preferida por alguns pesquisadores contemporneos do fenmeno ayahuasca. Ns, apesar de

    podermos utilizar as contribuies de distintas reas, fornecendo uma compreenso mais ampla

    do objeto pesquisado e buscando evitar reducionismos, teremos, porm, que reconhecer a

    necessidade de delimitar nosso foco de ateno e considerando as pretenses deste trabalho

    priorizamos as reflexes de carter antropolgico e psicolgico.

    Mesmo concordando com Morin, que nos diz:

    27 CAMURA, M. Entre as cincias humanas e a teologia: gnese e contexto do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio de Juiz de Fora em cotejo com seus congneres no Brasil. In: O Estudo das Religies. GUERREIRO, Silas (org.). So Paulo: Paulinas, 2003, p.142-3.

    20

  • Assim, todo o acontecimento cognitivo necessita da conjugao de

    processos energticos, qumicos, fisiolgicos, psicolgicos, cerebrais,

    existenciais, culturais, lingsticos, lgicos, ideais, individuais, coletivos,

    pessoais, transpessoais e impessoais que se engrenam uns aos outros. O

    conhecimento , portanto, um fenmeno multidimensional, no sentido em que ,

    de maneira inseparvel, ao mesmo tempo fsico, biolgico, cerebral, mental,

    psicolgico, cultural, social.28

    Precisaremos centralizar o foco das nossas lentes a fim de perseguir o objetivo central

    deste trabalho, a saber: dar visibilidade s narrativas bem como a alguns smbolos doutrinrios

    que designam transformaes ontolgicas.

    A fim de melhor vislumbrar as caractersticas da cultura ayahuasqueira vamos agora

    verificar suas principais nuances, estudando os distintos contextos de consumo da ayahuasca

    com nfase nos aspectos histricos e na diversificao dos modos de consumo surgidos com a

    expanso dos grupos ayahuasqueiros.

    Labate investiga na sua dissertao de mestrado o que denomina de novas formas de

    consumo da ayahuasca29 nos centros urbanos. Ela encontrou vrias situaes em que se

    reinventaram as caractersticas do consumo da substncia: em grupos de teatro, trabalhos

    destinados recuperao de moradores de ruas, entre praticantes de meditao do Osho, entre

    msicos, no atendimento em consultrios e na realizao de terapias corporais, entre

    candomblecistas, associado terapia de florais e no contexto de prticas neoxamnicas.

    A possibilidade de emergncia dessas novas situaes deve-se, sobretudo, expanso das

    religies ayahuasqueiras brasileiras30 para alm das fronteiras da regio amaznica, bem como

    devido s buscas que motivaram muitos moradores de reas urbanizadas do pas a conhecerem o

    uso da substncia no seu contexto originrio, seja no mbito desses grupos religiosos, com

    curandeiros do meio amaznico, ou mesmo entre os ndios, detentores originrios dos

    conhecimentos sobre os potenciais de diversas plantas. Depois de retornarem para suas cidades

    de origem muitas dessas pessoas providenciaram formas de permanecer participando dos

    28 MORIN, E. apud DIAS JR., W. Dirio de viagem. In LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.). Op. cit. 29 LABATE, Beatriz Caiuby. A Reinveno do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos. Dissertao de Mestrado em Antropologia Social, UNICAMP, 2000. 30 Conforme j mencionado, podem-se considerar atualmente trs as principais religies ayahuasqueiras: Santo Daime, UDV e Barquinha. Segundo LABATE (op. cit., 2002, p. 231-232), Santo Daime, alm de referir-se forma como a maior parte dos fiis desses cultos designam a bebida ritual, tambm o nome da religio do Alto Santo, centro criado por Raimundo Irineu Serra, e do CEFLURIS, Centro Ecltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, criado por Sebastio Mota de Melo, que funciona como uma entidade coordenadora dos demais centros espalhados pelo Brasil e exterior a ele vinculados, tambm referidos como Santo Daime.

    21

  • trabalhos espirituais com ayahuasca aderindo a algum ncleo j existente ou mesmo fundando

    um ponto para realizao de cerimnias rituais com as plantas amaznicas, seja tentando manter

    o padro ritual conforme haviam aprendido ou ainda criando outros rituais a partir de mltiplos

    referenciais ou matrizes religiosas a que se vinculavam ou passaram a se vincular esses sujeitos

    aps o contato com o Santo Daime.

    Os fundadores da religio do Santo Daime e da Unio do Vegetal, ou UDV,

    respectivamente Mestre Irineu e Mestre Gabriel, foram iniciados no uso da ayahuasca atravs de

    pessoas do meio caboclo, o primeiro com um curandeiro peruano, e o segundo entre os

    seringueiros. Estes ltimos, por sua vez, so representantes da classe dos que aprenderam

    historicamente a usar Plantas Sagradas com a populao indgena. Visando historicizar o

    processo de expanso dos usos da ayahuasca, pretendemos caracterizar brevemente os distintos

    contextos em que o fenmeno ocorre. Buscando seguir o mesmo sentido em que o processo de

    expanso do uso ritual da ayahuasca se orienta31, apresentaremos seqencialmente as principais

    caractersticas do consumo do ch entre os ndios, a populao rural amaznica e entre os

    adeptos dos trs grupos religiosos mais destacados, dos quais traaremos em linhas gerais os

    aspectos histricos mais relevantes.

    De modo a estabelecer uma perspectiva panormica sobre o estado contemporneo do

    consumo da ayahuasca, iremos agora acompanhar suas especificidades de acordo com o meio

    onde ele ocorre.

    1.1. Ayahuasca entre os ndios.

    Labate32 afirma que na Amaznia Ocidental foram contabilizados 72 grupos indgenas

    que usam ayahuasca. Influenciados pela percepo de vrias similaridades de crenas e hbitos,

    bem como pelo trao comum de conhecer yag. Os antroplogos, conforme assinala Zuluaga33

    designam os diversos grupos do Piemonte Amaznico de cultura do yage a ayahuasca

    entre esses povos a planta mais valorizada.

    31 Usando a mesma lgica de organizao de O uso ritual da ayahuasca. LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. orgs., op. cit., 2002. 32 LABATE, B. C. A literatura sobre as religies ayahuasqueiras, in: LABATE B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.), op. cit., p. 231. 33 ZULUAGA, G. A cultura do yag, um caminho de ndios, in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.), op. cit., p. 131.

    22

  • Para Reichel-Dolmatoff34, as experincias com plantas psicotrpicas possuem, entre

    muitos ndios americanos, uma importncia capital na constituio de seus conceitos mgico-

    religiosos, influenciando e at determinando a mitologia, a simbologia e o manejo de vrios

    estados de conscincia fundamentais para seu povo.

    Pedro Luz, estudando os significados elaborados entre os consumidores indgenas de

    lngua Pano, Aruk e Tukano35, estabelece as caractersticas comuns aos diversos grupos.

    Assinala que as diferenas restringem-se nomeao e a certas particularidades interpretativas

    decorrentes das vivncias prprias de cada grupo.

    Tambm caracterizados pelo autor supra citado como pertencentes a uma rea cultural

    comum, esses diversos grupos indgenas compartilham as crenas na existncia de um outro

    mundo (espiritual ou sobrenatural) que se pode contatar atravs da bebida sagrada, o que

    possibilita aprendizados e conhecimentos existenciais valiosos e mesmo indispensveis; a

    concepo de que as vises acessadas pelas plantas tm um carter absolutamente verdadeiro

    pois permitem um contato com a real essncia do mundo, a atribuio de um poder pedaggico

    ayahuasca, influenciando a moral e a conduta dos sujeitos que passam a reorganizar suas

    relaes sociais com a ancestralidade e com os seres sobrenaturais, as convices nas

    conseqncias teraputicas da planta (...) sendo seu uso no diagnstico e na cura xamnica

    presente em todos os grupos vistos neste trabalho.36

    Conclui-se que, enquanto mediadora das formas de apreenso do real, a Banisteriopsis

    um veculo fundamental para a constituio e manuteno da identidade tribal entre os grupos

    pesquisados. Luz diz ainda, no que corrobora com a viso nativa, que certos fatos s podem ser

    conhecidos atravs da experincia direta com a substncia pois estariam para alm da

    possibilidade de apreenso atravs da palavra.

    Zuluaga destaca cinco contextos do consumo no indgena do yag. Esses usos novos so

    considerados pelo autor como levianos, questo que merece uma discusso e confronto com

    outras perspectivas37, especialmente acerca das controversas noes de pureza e sincretismo, o

    que faremos em momento mais oportuno, quando estivermos discutindo o carter hbrido da

    doutrina. O julgamento do autor bastante apressado e orientado por uma viso meio romntica,

    34 REICHEIL - DOLMATOFF, G. O contexto cultural de um alucingeno aborgine: Banisteriopsis Caapi, in: COELHO, V. P. Os alucingenos e o mundo simblico. So Paulo: EPU, Ed. USP, 1976, pp. 59-60. 35Entre os povos de lngua Pano foram pesquisados pelo autor os Kaxinaw, os Yaminawa, os Sharanawa e os Marubo; Os Ashaninka e Machigunga do grupo Aruk e os Tukano foram representados atravs dos Airo-pai, Makunas, Desanas, Barasanas, Sionas e Tatuyos. LUZ, Pedro. O uso amerndio do Caapi in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.) op. cit. 36 LUZ, P. op. cit., p. 61 37 Tal como a de MaCRAE, E. op. cit., por exemplo.

    23

  • interessada num modelo puro dificilmente existente. Essas novas formas de consumo da

    ayahuasca por ele apresentadas so:

    A. Entre a populao mestia nas prticas de curandeirismo, principalmente nas cidades

    de Iquito e Pucallpa, no Peru, e Mocoa na Colmbia;

    B. Entre os religiosos brasileiros dos grupos do Santo Daime, Unio do Vegetal e

    Barquinha;

    C. Como objeto de pesquisas cientficas, para elucidao de sua eficcia teraputica,

    sobretudo entre mdicos ocidentais. Como exemplo temos o Centro de Recuperao

    de Toxicomanias localizado na cidade peruana de Tarapoto, dirigido pelo mdico

    francs e naturoterapeuta Jacques Mabit, os trabalhos de Josep Fericgla, antroplogo

    catalo, ou ainda as pesquisas farmacolgicas do neuropsiquiatra chileno Claudio

    Naranjo;

    D. Entre os chamados neoxams e entre pessoas identificadas com o estilo new age,

    prticas recm-surgidas e nomeadas pelo autor como um novo humanismo

    filosfico38 e, finalmente;

    E. Aqueles que apenas buscam as sensaes provocadas pelas plantas. Uns procura de

    experincias mais autnticas e outros mais oportunistas. O autor afirma que se pode

    conseguir pela Internet uma garrafa de yag, comenta tambm da existncia de

    agncias norte-americanas que organizam viagens para o Brasil, Equador e Peru,

    basicamente objetivando o consumo da substncia atravs de algum pretenso xam.

    1.2. Populao mestia amaznica.

    Antes do advento dos grupos religiosos que sistematizaram uma doutrina do uso da

    ayahuasca, e ainda atualmente, muitas pessoas das comunidades ribeirinhas e outras povoaes

    do meio amaznico tambm conhecem a tradio de consumo do yag, principalmente atravs

    de xams locais.

    O xamanismo amaznico foi muito estudado por Luna39. Os grupos praticantes dessa

    tradio, tambm chamados de vegetalistas, historicamente se constituram a partir do contato

    38 Op. cit., p. 134. 39 LUNA, L. E. Xamanismo amaznico, ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural, in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.) op. cit. Nesse artigo encontramos na bibliografia referncia a diversos outros trabalhos do autor publicados nos seguintes anos: 1982, 1984, 1986a, 1986b, 1989, 1990, 1991, 1996 e junto com AMARINDO, P. em 1991.

    24

  • entre populao indgena e ribeirinha (j missionizados) com os caucheiros 40 (muitos dos quais

    peruanos). O uso da ayahuasca nesse contexto est fortemente ligado s prticas de

    curandeirismo. Conforme j mencionamos, esse fenmeno pode ser amplamente encontrado

    sobretudo em cidades peruanas e colombianas e se trata da aplicao dos conhecimentos sobre as

    plantas medicinais aprendidos com os ndios. MacRae41 distingue o xamanismo mestio do

    indgena, do qual o primeiro se originou. Para o autor, o termo mestio equivale ao caboclo

    brasileiro. Todo meio amaznico, apesar de abranger territrios de distintos pases, possui uma

    considervel homogeneidade, produtora de um estilo de vida geral com muitos traos comuns.

    A regio sofreu radicais transformaes em decorrncia da colonizao ibrica,

    posteriormente com a economia da borracha e, com o seu declnio, se registra um grande xodo

    dos moradores da floresta em direo aos crescentes centros urbanos regionais. Apesar disso,

    resistem as prticas xamanicas e um imaginrio povoado de espritos da floresta, da gua e do ar.

    Os curandeiros vegetalistas se reconhecem como catlicos e so caracterizados como

    portadores de lucidez, memria e sade notveis, a despeito de ainda circular na literatura uma

    forma de conceb-los como portadores de patologias e desequilbrios psquicos.

    De acordo com Labate: Embora em vrios pases da Amrica do Sul, tais como

    Colmbia, Bolvia, Peru, Venezuela e Equador, haja uma tradio de consumo da ayahuasca por

    xams e vegetalistas, curiosamente somente no Brasil que se desenvolvem religies de

    populao no-indgenas que fazem uso desta bebida.42 A seguir, examinaremos informaes

    bsicas sobre as religies que se formularam a partir da incorporao do uso tradicional da

    ayahuasca e buscaremos dar relevo especial aos seus aspectos histricos constitutivos. Note-se

    que nos detivemos especialmente religio do Santo Daime, naturalmente por se tratar do grupo

    religioso que mais nos aproximamos (experiencial e teoricamente) durante a realizao dessa

    pesquisa.

    1.3. As principais religies ayahuasqueiras.

    O Santo Daime, a Barquinha e a Unio do Vegetal, apesar de pertencerem mesma

    matriz de consumo no-indgena da ayahuasca no Brasil realizam, cada uma a seu modo,

    40 Segundo FRANCO e CONEIO ( in LABATE e ARAJO (orgs.)op. cit., p.202), os caucheiros so extratores de ltex que usam uma tcnica diferenciada dos outros seringueiros, pois no seu modo a rvore precisa ser derrubada. 41 MACRAE, E. op. cit., p. 30. 42 Op. cit., 2002, p. 231.

    25

  • rearranjos singulares aglutinando elementos cristos, esotricos, kardecistas e afro-brasileiros43.

    Quanto ao processo de crescimento desses grupos, enquanto o Santo Daime e a Unio do

    Vegetal ramificaram-se em direo aos centros urbanos e, posteriormente, para outros pases

    como Espanha, Holanda, Estados Unidos e Japo, lugares que sediam ncleos do Santo Daime, a

    Barquinha praticamente conservou-se no Acre, onde surgiu. A maior parte das pesquisas j

    realizadas referem-se ao Santo Daime, talvez por se tratar do grupo que, ao lado da UDV, mais

    se expandiu atravs do CEFLURIS. Vamos iniciar abordando-o tambm por tratar-se

    historicamente do grupo que primeiro se constituiu.

    1.3.1. O Santo Daime.

    Pretendemos abordar os principais aspectos presentes na poca da elaborao dos

    primeiros cultos do Santo Daime, o contexto scio-econmico, as principais matrizes religiosas

    que ajudaram a formatar a religiosidade daimista, alguns acontecimentos e narrativas sobre as

    revelaes originais, as principais lideranas e as vertentes por eles criadas.

    Numa perspectiva scio-histrica, o surgimento dos primeiros cultos daimistas est no

    momento situado entre os dois grandes ciclos da borracha, o primeiro ocorrera no incio do

    sculo passado e o segundo nas dcadas de 1930 e 1940. grande nessa poca a presena de

    imigrantes nordestinos, entre os quais est Raimundo Irineu Serra.

    Para MacRae, tal como mencionamos, h nos costumes e crenas dos caboclos

    amaznicos do incio do sculo passado uma certa homogeneidade que originou-se a partir dos

    trabalhos dos missionrios que desde o sculo XVII ... impuseram o catolicismo atravs do

    desmembramento das sociedades indgenas e sua incorporao s aldeias missionrias44. Para o

    historiador francs Serge Gruzinski45 a partir desse momento que comeam a se difundir as

    festas catlicas que, como veremos adiante, possuem importncia capital na formao do Santo

    Daime. A cultura popular amaznica caracteriza-se fortemente pela pajelana - outro modo de

    falar das atividades xamanicas - e a crena nos santos populares. Porm, a partir do ciclo da

    borracha esse quadro vai se complexificar com a chegada de nordestinos, principalmente do

    estado do Maranho. Monteiro da Silva constatou que ... a populao da regio amaznica

    passa de 330 mil pessoas em 1872 para 1 milho e 400 mil em 192946. Com a nova

    43 LABATE, B. C. op. cit., p. 232. 44 Op. cit., p. 59. 45 GRUZINSKI, S. O pensamento mestio, So Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 33. 46 Op. cit., p. 371.

    26

  • configurao social podemos agora tambm encontrar na regio a presena da religiosidade afro-

    brasileira, comeam a se estabelecer encontros que transformaro profundamente a religiosidade

    local.

    Na dcada de 1930, perodo de crescente urbanizao brasileira, a cidade de Rio Branco,

    no Acre, recebe grande migrao de ex-seringueiros em decorrncia da desativao de vrios

    seringais, ocasionada pela queda da exportao da borracha. A migrao para os centros urbanos,

    sem infra-estrutura adequada, impe uma readaptao nova ordem socioeconmica ento

    nascente. Surgem novas relaes de trabalho e interpessoais, outros modelos de conduta, etc. De

    maneira geral, h um maior afastamento entre as pessoas, fomentado pelas novas dinmicas cada

    vez mais determinadas pela lgica capitalstica de produo de subjetividades. Inevitavelmente

    vo se enfraquecendo antigas prticas como o multiro, o compadrio e as festas dos santos

    cristos, nitidamente importantes estratgias de coeso grupal, segundo Goulart quando o culto

    de Raimundo Irineu Serra comea a ser organizado em Rio Branco, essas prticas j no tm a

    fora e o significado que tinham no passado47. justamente atravs do resgate e ressignificao

    dessas prticas que Irineu e seus vizinhos conseguiro reorganizar-se materialmente. Nesse

    momento o Mestre Irineu j se destacava na realizao de trabalhos espirituais, inclusive com a

    ayahuasca. A seguir, um pouco do seu percurso.

    Raimundo Irineu Serra, nascido a 15 de dezembro de 1892 em So Lus do Ferret,

    Maranho, de famlia vinculada s tradies afro-brasileiras, chega ao sul do Acre no incio do

    sculo XX. Por meio de um curandeiro peruano, chamado Crescncio Pizango ele e Antonio

    Costa foram iniciados no uso da ayahuasca. Eles criaram o Centro de Regenerao e F (CRF)

    que inaugura o uso regular da ayahuasca entre a populao urbana, o centro situava-se na cidade

    de Brasilia, Acre, e teria funcionado entre 1913 e 1929.

    Voltando ao tempo da iniciao do Mestre Irineu, descobrimos que h poucos detalhes e

    informaes sobre esse perodo que acabam adquirindo, segundo MacRae, ... um certo tom de

    mito fundador48. Sabe-se que numa de suas primeiras experincias o Mestre Irineu viu Clara,

    uma entidade feminina identificada como Nossa Senhora da Conceio ou a Rainha da Floresta.

    Ela lhe trouxe algumas instrues que se fossem seguidas lhe preparariam para uma misso

    especial, quando se tornaria um grande curador.

    47 GOULART, S. L. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formao da comunidade e do calendrio ritual, in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.) op.cit., p. 319. 48 Sua designao de mestre, para MacRae, atesta sua vinculao tradio vegetalista do meio curandeiril amaznico, onde a alta hierarquia assim reconhecida. Op. cit. p. 62-64.

    27

  • Embrenhado na mata, isolado por oito dias, Mestre Irineu tomava daime, seguindo

    rigorosamente as dietas alimentares (comia apenas macaxeira sem sal) e sexuais (no podia ter

    nenhum contato com mulheres) ia recebendo os ensinamentos atravs das miraes

    proporcionadas pela prpria Rainha da Floresta, conforme acredita-se. Como perceberemos, de

    acordo com as crenas daimistas, muitos ensinamentos bem como os hinos rituais no so

    compostos, pois compreende-se entre os adeptos da doutrina que estes so recebidos dos planos

    espirituais da existncia. Voltaremos a falar sobre esse momento constitutivo da doutrina na

    segunda parte do trabalho.

    Ao afastar-se do CRF, no incio da dcada de 1930 o Mestre Irineu cria o Centro de

    Iluminao Crist Luz Universal Alto Santo (CICLU), na cidade de Rio Branco e passa a

    receber os hinos que iro compor O Cruzeiro, conjunto de hinos considerado como uma

    ressistematizao dos ensinamentos de Cristo.49

    Das prticas tradicionais absorvidas pelo Santo Daime foi, sem dvida, a devoo aos

    santos cristos que marcou mais profundamente a nova doutrina. Os tradicionais festejos aos

    santos sempre reuniam o povo, que nas celebraes conjuntas firmavam uma identidade que

    valorizava a solidariedade e estreitava relaes. Esses festejos foram determinantes na criao e

    estabelecimento do calendrio ritual daimista que, ainda hoje possui os mais importantes

    acontecimentos litrgicos nos dias de santos catlicos.

    Cantar e danar, agora reinventados nos hinos e no bailado, era prprio do carter festivo

    do povo catlico que assim celebrava seus santos. Goulart nos faz ver que, naquele momento, no

    entanto, esses hbitos vinham sendo cada vez mais intensamente desestimulados e condenados

    pela ortodoxia crescente das autoridades eclesiais. Porm, ao invs de submeter-se

    completamente nova moral catlica, formas de resistncia se instauraram. A autora insere aqui

    as prticas religiosas emergentes em torno do Mestre Irineu pois, segundo diz: o culto do Santo

    Daime recupera o significado da festa, da dana e do canto. A ausncia da dana, da msica, da

    festa, vista, alis, como um empecilho para a comunicao com a realidade sagrada.50.

    Verifica-se a marca de prticas indgenas no Santo Daime, entendido enquanto sistema

    simblico que experimenta um ethos composto por elementos presentes no xamanismo que lhe

    so comuns, por exemplo: a noo de mltiplos planos constitutivos do universo, ligados por um

    princpio energtico que pode ser mediado pelo xam, que tem acesso a experincias extticas51.

    Outras assimilaes tambm realizadas nesse momento constitutivo da doutrina daimista 49 GROISMAN, op. cit. 50 Op. cit., p. 327 51 MONTEIRO DA SILVA, C., op. cit.

    28

  • referem-se s prticas de curandeirismo, sobremaneira as dos vegetalistas ayahuasqueiros. Se

    anteriormente essas prticas conviviam pacificamente com o catolicismo, cada qual

    resguardando seu valor, no mbito desse novo cenrio social passaro a sofrer um processo de

    deslegitimao e at mesmo de perseguies policiais, produzindo uma incompatibilidade entre

    as prticas catlicas e curandeiras, que antes era inexistente. O culto do Mestre Irineu rearticular

    ambas e obviamente sofrer retaliaes por isso.

    No podemos nos esquecer que nesse tempo vigora no Cdigo Penal artigos ...

    referentes prtica ilegal da medicina, da magia e que proibia o curandeirismo .. Mestre Irineu,

    assim como lideranas de terreiros e de outras casas religiosas sofreram perseguies mas

    tambm souberam articular estratgias de defesa buscando a proteo das elites, sobretudo

    polticas, muitos dos quais visavam, entre outras coisas, beneficiar-se do carisma das lideranas

    espirituais junto aos fiis/eleitores.52

    Na dcada de 1970 ocorrem eventos que imprimiro marcas importantes ao movimento

    daimista. Em 1971, com a morte do Mestre Irineu, indica-se Lencio Gomes como seu sucessor

    e em 1974, em decorrncia de desacordos internos, ocorre a sada de mais de cem fiis da

    comunidade que optaram por seguir Sebastio Mota Melo. Aproximando-nos um pouco mais da

    sua histria, verificamos que o Padrinho Sebastio, como era tratado pelos seus, nasce a 07 de

    outubro de 1920 no estado do Amazonas. Participava de trabalhos em mesas de espiritismo

    Kardecista, onde incorporava guias conhecidos como o mdico Bezerra de Menezes e o

    professor Antonio Jorge para realizao de atendimentos e curas espirituais53.

    Em 1959 ele passa a morar na zona perifrica de Rio Branco, na Colnia 5.000, onde

    viviam os familiares da sua esposa, Rita Gregrio. No ano de 1965 procura o Mestre Irineu para

    curar-se de grave doena de fgado. Recuperado, continua freqentando o Alto Santo logo se

    destacando na comunidade.

    Quanto ao estopim da ciso ouamos MacRae: em 1974, por ocasio de uma das

    espordicas investidas policiais contra o culto, Padrinho Sebastio, para demonstrar seu apego

    ordem, prope fazer um trabalho para as autoridades que incluiria o hasteamento solene da

    bandeira brasileira. Lencio Gomes discorda acusando o Padrinho de querer introduzir

    mudanas no ritual, e se assim o desejasse que fosse faz-lo em sua prpria casa. Assim tiveram

    incio as sesses autnomas na Colnia 5.000, que at ento mantinha um funcionamento

    52 A colnia Custdio de Freitas, onde veio a se instalar o Alto Santo ou CICLU, foi obtida por Mestre Irineu na dcada de 1940 por influncia do governador do Acre, Guiomard dos Santos. MACRAE, op.cit. 53 MACRAE, E. op. cit., p. 71.

    29

  • subordinado ao Alto Santo, para onde destinava, antes do rompimento, metade do ch que

    produzia conforme acordo firmado com o Mestre Irineu.

    O Padrinho e seus seguidores mudar-se-o ainda mais duas vezes at firmar a

    comunidade, hoje conhecida como Cu do Mapi, sede mundial do movimento, considerada a

    Nova Jerusalm dos daimistas. A Colnia 5.000 tornava-se pequena no fim da dcada de 70 para

    abrigar os simpatizantes que, a essa altura, no se restringiam a pessoas da redondeza, muitos

    vinham de outras regies brasileiras, sobremaneira do Sudeste, e tambm do exterior. Em 1980 o

    INCRA (Instituto de Colonizao e Reforma Agrria) autoriza o assentamento da comunidade

    no municpio amazonense de Boca do Acre. Dois anos depois a comunidade havia implantado

    um seringal com produo anual entre 10 e 15 toneladas de borracha.

    Nesse tempo, porm, essas terras foram solicitadas por uma empresa do sul do pas que se

    identificava como proprietria. Alimentados pela idia de que ainda no haviam chegado no

    lugar ideal para instalao da sua Nova Jerusalm, seguiram para Pauini, Amazonas. O novo

    local indicado pelo INCRA, situar-se-ia s margens do igarap do Mapi, um local isolado

    dentro da floresta aonde s se chega aps dois dias de viagem de canoa.

    Para identificar como aps sair da cidade do Rio Branco para o interior da floresta

    Amaznica, o culto do Santo Daime expande-se para zonas urbanas, s que dessa vez num

    contexto bem mais amplo, precisamos retomar algumas circunstncias. preciso recordar que

    nos encontramos no perodo ditatorial militar, contexto amplamente repressivo que comea a

    despertar ideologias e atitudes, principalmente entre os jovens, de resistncia e recusa do status

    quo. Levantam-se crticas sociedade blica, aos valores fteis do consumismo crescente,

    excluso social.. Valorizam-se idias anti-burguesas, h uma busca pelas filosofias orientais, por

    prticas religiosas nativas e acredita-se que as revolues sociais deveriam ser precedidas por

    mudanas internas. Em linhas gerais, cresce o nmero daqueles que anseiam por novos modelos

    de existncia no pautados pela asceno social, dentre estes, muitos abandonaram suas

    ocupaes para sair em busca de novos estilos. Muitos jovens da classe mdia comeam a fazer

    peregrinaes, a maioria costumava ir ao Peru, s runas de Machu-Pichu, mas alguns tambm se

    dirigiram para o Acre.

    Muitos encontraram respostas a seus anseios na Colnia 5.000 pois, como disse MacRae:

    encontravam l uma comunidade agrcola implantada, liderada pelo venervel e

    hospitaleiro Padrinho Sebastio, que lhes acenava com sua ecltica doutrina de

    origem indgena e apontava para uma bem demarcada senda de conhecimento

    inicitico. Atravs do uso da ayahuasca, desde o incio se poderia ter acesso a

    30

  • experincias de xtase e iluminao que os seguidores de outras escolas

    espiritualistas s pensam em alcanar no fim de suas vidas.54

    Com o retorno desses visitantes s suas cidades e com a divulgao dos seus novos

    ideais, comeam-se a produzir condies que desembocaro na criao de vrios ncleos

    daimistas, agora j num contexto scio-econmico bem distinto, o das classes mdias urbanas.

    Primeiro na cidade do Rio de janeiro criou-se em 1982 o Centro Ecltico Fluente Luz Universal

    Sebastio Mota de Melo (CEFLUSME). Ainda no Estado do Rio, criam-se centros em Visconde

    de Mau, Pedra de Guaratiba e Friburgo; em Minas Gerais nas cidades de Belo Horizonte, Santa

    Luzia, Caxambu e Aiuruoca, tambm em Braslia, Florianpolis e So Paulo.

    1.3.2 - A Barquinha.55

    Em 1945 na capital do Acre, Rio Branco, Daniel Pereira de Matos criou o Centro Esprita

    e Culto de Orao Casa de Jesus Fonte de Luz, a Barquinha. O criador da Barquinha nasceu em

    So Lus do Maranho. Filho de escravos, ainda na infncia Daniel foi incorporado Marinha.

    Sabe-se que na dcada de 20 ele j se encontrava no Acre. Trabalhava como barbeiro e descrito

    como grande bomio, isso at antes da criao da Casa de Cultos. Seu envolvimento com as

    farras e bebedeiras est, inclusive, intimamente ligado histria da sua converso.

    Voltando embriagado de uma de suas celebraes com os amigos, adormeceu beira do

    caminho. A mesmo recebeu uma revelao, a viso de um livro azul que lhe era entregue por

    dois anjos. Sem dar muita ateno ao significado da viso que tivera, Daniel no sabia que o

    evento voltaria a lhe ocorrer algum tempo depois, aps j ter sido iniciado nos trabalhos com a

    ayahuasca.

    Abusando das bebidas alcolicas, Daniel passou a sofrer de graves problemas de fgado.

    Mestre Irineu, que freqentava a barbearia do seu conterrneo, tomando conhecimento das

    dificuldades que o amigo enfrentava, convida-o a tratar-se espiritualmente com o Santo Daime, o

    que comea a acontecer a partir de 1936. Certa vez, de volta da colnia onde o Mestre Irineu

    realizava suas atividades religiosas, Daniel, ao adormecer pelo caminho, tem novamente a viso

    dos anjos com o livro azul a lhe falarem de uma misso que ele deveria cumprir.

    Daniel conseguiu a liberao informal de uma propriedade desabitada onde construiu

    uma pequena casa de taipa, que depois ficaria conhecida como capelinha. A comeou a fazer o 54 Op. cit., p. 78 55 Todas as informaes aqui recolhidas so frutos das pesquisas de ARAJO, 1999 e 2002, op. Cit.

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  • que considerava como obras de caridade, atendendo crianas, adultos com problemas de sade e

    familiares, casos de alcoolismo etc. Assim nasce a Barquinha.

    Falecido em 1958, desde o ano anterior, o Mestre Daniel comeou a anunciar aos seus

    seguidores que faria uma viagem, ambiguamente entendida ora como possvel retorno sua terra

    natal, ora como seu fale