experiência mística e filosofia na tradição ocidental (henrique c. de lima vaz)

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5/25/2018 ExperinciaMsticaeFilosofiaNaTradioOcidental(HenriqueC.deLimaVaz)-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/experiencia-mistica-e-filosofia-na-tradicao-ocidental-henrique-c-de-lima 1/48 Submetido a uma de terioração semântica , o termo sti- ca acabo u p or design ar  uma esp éc i e de fana tis mo, com for te con te ú do pa s si on al e larga  d ose de i rra cionalida de - fenô me no i l ustr ad o pelas e xp ressões stica do pa rtido pol ític o , míst ic a  do clube  e sportivo e outras semelhan tes. or outro  la do, a ca pta ção da m ís t ica pela po lítica ar- rastou para  o campo da  re latividad e h istórica a  in tenção do Abs o l uto pr óp ria da ex pe riência m ís t ica e da ex periência r eli giosa em ge ral. or me io de um est udo histó ric o-teórico  r ig oroso e eru di to so bre  as form as legítimas  da  experiê nci a mística na tra dição  o cidental, em Experiên cia  mística e f ilosofia n a t radi- ção o cid ental LIMA V  z resga ta o  sentido  or iginal do  te rmo místic uma  for ma supe rio r de expe riê ncia, de nat ureza reli gio sa ou re lig ioso-filosófica, que se desenrola  n ormal m en te num plano transr aci onal, mas que mobili za  as mais po derosas ene rgias ps íq u icas do ser humano,  e levando-o às mais altas  fo rmas de co nhecimento  e de amo r q ue lhe é dado alcan ça r nessa vid  e apr ese nta a exp er iência mís ti ca e a exp er iência política como os dois pólos  o rdenadores do comp lex o e rico u niv erso da e xp eriência hum ana, tra du zindo as duas formas  m ais altas de auto-real iz a ção da pes soa humana: sua a be rtura para  o  Absoluto  e  sua abe rtu ra pa ra o outr o. enr i que C  d i mVaz na tradição ocidental A u to r: Vaz , Henri qu e C. d e Lima tul o : Experiê n cia mística e  fi losofia 1 2573 15 P UC Mina s BH Ac . 21 8752 N Pat. :2006 

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  • Submetido a uma deteriorao semntica, o termo msti-ca acabou por designar uma espcie de fanatismo, com for-te contedo passional e larga dose de irracionalidade -fenmeno ilustrado pelas expresses "mstica do partido poltico", "mstica do clube esportivo" e outras semelhan-tes. Por outro lado, a captao da mstica pela poltica ar-rastou para o campo da relatividade histrica a inteno do Abso luto prpria da experincia mstica e da experincia religiosa em geral.

    Por meio de um estudo histrico-terico rigoroso e erudi-to sobre as formas legtimas da experincia mstica na tra-dio ocidental, em Experincia mstica e filosofia na tradi-o ocidental, LIMA VAz resgata o sentido original do termo mstica- uma forma superior de experincia, de natureza religiosa ou religioso-filosfica, que se desenrola normal-mente num plano transracional, mas que mobiliza as mais poderosas energias psquicas do ser humano, elevando-o s mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe dado alcanar nessa vida- e apresenta a experincia ms-tica e a experincia poltica como os dois plos ordenadores do complexo e rico universo da experincia humana, tradu-zindo as duas formas mais altas de auto-realizao da pes-soa humana: sua abertura para o Absoluto e sua abertura para o outro.

    Henrique C. de Lima Vaz

    na tradio ocidental

    Autor: Vaz, Henrique C. de Lima Ttulo: Experincia mstica e fi losofia

    1111111111111111111111111111111111111111111!1111111111111111 2573 151

    PUC Minas BH Ac. 218752

    N" Pat. :2006

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    6. Experincia mstica e filosofia na tradio ocidental Henrique C. de Lima Vaz

    Henrique C. de Lima Vaz

    Experincia Mstica

    e Filosofia na Tradio Ocidental

    X fdkes Loyola

  • Preparao Danilo Mondoni Reviso Cristina Peres

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    ISBN: 85-15-02221-4

    EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil. 2000.

    SuMRIO

    Advertncia Preliminar ... 00 00 00 00.00. 00 00 00 00.00 00 oo oo 00 00 00 00 7

    Introduo . 00 00.00 00 00 00 00 00 00 00 00.00 00 00 00 9

    I Antropologia da experincia mstica 00 00 00 00 000000 00 00 00 00 0000 00 00 00 00 00 00 15

    11 Formas da experincia mstica na tradio ocidental 0000000000000 29

    a. A mstica especulativa ooooooooooooooOOooooooOOOOooooooooooooooooOOooooooo 30 b. A mstica mistrica OOooOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO 47 c. A mstica proftica 00000000000000000000000000000000000000000000000000000000 57

    Concluso a experincia mstica na modernidade ocidental 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 0000 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 0000. 77

    Anexo Mstica e Poltica 00 0000 00 00 00 00 00 00 00 0000 00 0000 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 81

    Biblioteca Jornal de Op!nif1o

  • ADVERTNCIA PRELIMINAR

    O texto que aqui publicamos foi primeiramente apresentado em um Seminrio sobre Mstica e Poltica promovido pelo !BRADES e pelo Frum de Cincia e Cultura da UFRJ (Rio de Janeiro, outubro de 1992). Posteriormente foi publicado pela revista Sntese 59 (1992): 493-541. Aqui o reproduzimos com diversas modifica-es, a comear pelo ttulo, e com alguma atualizao bibliogr-fica. Encontra-se anexo, com pequenas modificaes, o editorial "Mstica e Poltica" [Sntese 42 ( 1988): 5-12], que versa sobre o mesmo tema.

    Belo Horizonte, setembro de 2000.

    HENRIQUE C. DE LIMA v AZ

  • INTRODUO

    Uma das manifestaes mais caractersticas da cultura ou, me-lhor dizendo, da incultura da nossa poca a aparentemente incontrolvel deteriorao semntica a que nela esto submetidos alguns do termos mais venerveis e de mais rica significao da nossa linguagem tradicional. Lanados no jargo da mdia, e sem que seus usurios tenham condies de defini-los com um mnimo de rigor, acabam por no significar coisa alguma, servindo apenas para dar uma aparncia de respeitabilidade a certas linguagens convencionais sobretudo no jornalismo e na poltica. Um caso exemplar desse esvaziamento semntico o do termo "tica". Mas tambm ao termo "mstica" coube a mesma infeliz sorte. Decado de sua nobre significao original, acabou por designar uma espcie de fanatismo, com forte contedo passional e larga dose de irracionalidade. Assim o vemos nas expresses "mstica do partido poltico", "mstica do clube esportivo" e em outras semelhantes. Essas expresses seriam inocentes e no representa-riam mais do que impropriedades de linguagem se a elas no estivesse subjacente uma inverso profunda da ordem que deve reinar em nossa atividade psquica e espiritual. Com efeito, o sentido original, e que vigorou por longo tempo, do termo mstica e de seus derivados diz respeito a uma forma superior de expe-rincia, de natureza religiosa, ou religioso-filosfica (Plotino), que se desenrola normalmente num plano transracional - no aqum, mas alm da razo -, mas, por outro lado, mobiliza as mais poderosas energias psquicas do indivduo. Orientadas pela inten-cionalidade prpria dessa original experincia que aponta para uma realidade transcendente, essas energias elevam o ser humano s mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe dado

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    alcanar nessa vida. A utilizao moderna do termo "mstica" para designar convices, comportamentos ou atitudes, cujo obje-to est circunscrito aos limites do nosso ser-no-mundo e envolvido por uma nuvem passional que obscurece o claro olhar da razo, deve ser interpretada como indcio de uma inverso radical na ordem de nossas prioridades espirituais, que inflete para o dom-nio da imanncia o termo ltimo da intencionalidade constitutiva do esprito. Essa inverso tem lugar em face de um amplo espec-tro de atividades e dos respectivos objetos, tendo como conse-qncia, na maior parte das vezes, ou apenas um injustificvel desgaste psquico do indivduo, como nessas "msticas" banais que solicitam e aprisionam o homem desarvorado da nossa civilizao - tal a "mstica" do esporte -, ou ento uma notvel perda de objetividade no uso normal da razo, como nas sedutoras e am-biciosas "msticas" do progresso e do desenvolvimento.

    O sculo XX conheceu, no entanto, uma captao do termo "mstica" que acabou por designar talvez a mais profunda perver-so espiritual que a histria conheceu, tendo dado origem a cruis e devastadores efeitos sobre uma civilizao que se orgulhava de seus incontestveis xitos em todos os campos. Referimo-nos captao da mstica pela poltica (ver Anexo). justamente a ameaa permanente do retomo desse fenmeno teratolgico na vida da civilizao que justifica um estudo histrico-terico sobre as formas legtimas da experincia mstica na tradio ocidental, como o que aqui apresentamos em grandes linhas.

    Em que sentido a captao pela poltica representa a mais grave perverso da mstica? Uma primeira resposta pode ser dada pela simples considerao da natureza das duas experincias, a mstica e a poltica, do ponto de vista respectivamente do sujeito e do objeto. Do ponto de vista do sujeito, a experincia mstica tem lugar num plano transracional, ou seja, onde cessa o discurso da razo: inteligncia e amor convergem na fina ponta do esprito - o apex mentis - numa experincia inefvel do Absoluto, que arrasta consigo toda a energia pulsional da alma. Vale dizer que, da parte do sujeito, a experincia mstica absolutamente singular e, como tal, no pode ser partilhada. J o sujeito da experincia

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    INTRODUO

    poltica , por definio, o indivduo partilhando a vida de uma comunidade constituda pelo consenso racional em tomo de leis livremente aceitas e submetendo-se equnime distribuio de direitos e deveres. V-se, portanto, que a experincia mstica e a experincia poltica desenrolam-se em patamares distintos do es-prito e supem usos da razo inconfundveis por natureza: na primeira, a razo transcendendo-se a si mesma e voltada toda para a inteno do Absoluto; na segunda, a razo empenhada numa tarefa dialogal, tendo em vista um consenso racional entre os indivduos e guiada pela inteno da "melhor constituio" (Aristteles) para a comunidade. Assim sendo, podemos concluir que a experincia mstica, j agora considerada do ponto de vista do objeto, move-se na esfera de uma transcendncia real, movi-mento que implica, num primeiro momento, a posio entre pa-rnteses do mundo. A experincia poltica, ao invs, desenrola-se na relatividade do mundo histrico e das suas contingncias, e em nenhum momento deve transpor as fronteiras da imanncia para absolutizar seus objetivos e suas prticas1

    A experincia mstica e a experincia poltica configuram os dois plos ordenadores do complexo e extraordinariamente rico universo da experincia humana, traduzindo as duas formas mais altas de auto-realizao do indivduo na sua abertura para o Absoluto e para o Outro. A ordem desse universo repousa sobre uma identidade fundamental, a identidade reflexiva do Eu, capaz de diferenciar-se na multiplicidade de suas experincias - de suas expresses - e assegurando sua unidade na referncia s duas formas mais altas dessas experincias: a relao com o Absoluto na mstica, e a relao com o Outro na poltica. A mais grave, portanto, e a mais devastadora perturbao da ordem natural do nosso esprito tem lugar quando a poltica, numa iniciativa de suprema violncia espiritual, arrasta para o campo da relatividade

    1. Situando-nos no ponto de vista formal das categorias antropolgicas, pode-mos dizer que a experincia mstica desenrola-se no espao conceptual da categoria da transcendncia., ao passo que a experincia poltica tem sua estrutura conceptual no mbito da categoria da intersubjetividade. Ver, sobre essas categorias, H. C. DE LIMA V AZ, Antropologia Filosfica I/, So Paulo, Loyola, 1992, 93-137; 49-91.

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  • EXPERINCIA MSTICA E fiLOSOFIA NA TRADIO CIDENTAL

    histrica a inteno do Absoluto prpria da experincia mstica e da experincia religiosa em geral. Trata-se de uma desordem que revelou inequivocamente sua face aps a descoberta grega da racionalidade poltica. Ela passou a assinalar o lado sombrio dos sculos cristos aps a aliana entre cristianismo e ideologia im-perial a partir do sculo IV. Ai, no entanto, estava preservado o espao para o florescimento da experincia mstica autenticamen-te crist, que conheceu na Idade Mdia, e at o sculo XVII, sua idade de ouro. Mais profunda e realmente mortal foi a desordem nos espritos implantada pelas religies seculares da modernidade, que atingiu seu paroxismo no trgico sculo XX. A mstica passou ento a estar inteiramente a servio da poltica, e a prpria prtica crist foi tentada por formas de politizao do religioso que reve-lavam uma desordem espiritual muito mais grave do que a sacralizao medieval do poder poltico.

    A ordem que deve reinar no mundo das experincias huma-nas supe, evidentemente, a unidade na diferena do nosso ser, segundo a qual em cada uma das nossas operaes est empenha-da a unidade total do sujeito, segundo o princpio enunciado por Toms de Aquino: "No o intelecto que entende, mas o homem por meio do intelecto"2 essa implicao da unidade do sujeito na diferena das experincias que torna possveis tantas aberra-es e permite tentar arrastar numa s direo a riqueza multifor-me do esprito, como aparece no exemplo emblemtico da ms-tica captada pela poltica.

    A relao entre mstica e poltica na atual situao espiritual e cultural do Ocidente aparece, na verdade, paradoxal. O poltico, como previra Hegel, acabou por penetrar e envolver todas as esferas da existncia, canalizando para seus desgnios de poder as poderosas energias psquico-espirituais despertadas no ser huma-no pelo apelo do Absoluto e que devem confluir normalmente para a experincia mstica. Mas o pseudo-absoluto do poltico -d0 Estado - no , por definio, capaz de acolher, e muito

    2. SANTO ToMS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia., q. 72, a. 2 ad lm; ver Antropologia Filosfica, I/, 37, nota 8.

    12

    INTRODUO

    menos de satisfazer, a autntica inteno do Absoluto constitutiva do nosso esprito. Outros pseudo-absolutos iro proliferar som-bra desse primeiro, pois o ser humano, como j sentenciara Santo Agostinho (De Vra Religione, XXXIX, PL, 34, 154), no pode habitar este mundo sem a companhia de algum absoluto (o ver-dadeiro ou os falsos, a Verdade ou algum dolo). Daqui a multi-plicao das "msticas" e das pseudo-"experincias msticas" margem do dominante e opressivo "absoluto" do poltico. Nossa inteno no texto aqui apresentado tem em vista uma clarificao conceptual e histrica: pequena e modesta contribuio para res-gatar a natureza de uma autntica experincia mstica, na qual se exprime, como viu Bergson, a alma profunda de uma civilizao. Nossa informao obriga-nos a nos limitar tradio ocidental greco-crist, embora reconhecendo a existncia e a riqueza de outras tradies msticas como a judaica, a islmica ou a hindu. Nosso texto ser dividido em duas partes e uma concluso:

    1. Fundamentos antropolgicos da experincia mstica. 2. Formas da experincia mstica na tradio ocidental. 3. Concluso: experincia mstica e modernidade ocidental

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  • I

    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    No ponto de partida das nossas reflexes convm traar uma primeira figura conceptual do que entendemos por experincia mstica. Evidentemente a fonte principal, e mesmo nica, na qual podemos haurir uma informao segura sobre a natureza e o contedo desse tipo singular de experincia o testemunho dos prprios msticos. Na verdade, eles so os primeiros tericos da sua prpria experincia, e reconhecendo como autntico seu testemunho experiencial 1 e aceitando, em princpio, a interpreta-o por eles proposta que os estudiosos da mstica podem definir o objeto da sua prpria investigao. Essa, por sua vez, necessa-riamente pluridisciplinar, pois a experincia mstica um fen-meno totalizante, no qual esto integrados todos os aspectos da complexa realidade humana. Como primeira aproximao, pode-mos dizer que a experincia mstica tem lugar no terreno desse encontro com o Outro absoluto, cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situaes-limite da existncia, e diante do qual acontece a experincia do Sagrado. No entanto, a experincia mstica apresenta-se dentro da esfera do Sagrado caracterizada pela certeza de uma anulao da distncia entre o sujeito e o objeto imposta pela manifestao do Outro absoluto como tre-

    1. A distino entre experimental e experiencial, decisiva para o estudo da expe-rincia religiosa no cristianismo e, em particular, da experincia mstica, deve-se a JEAN MouRoux, L'exprience chrtienne, Paris, Aubier, 1952, 19-24. O experiencial o campo de uma experincia estritamente pessoal, mas obedecendo a uma estrutura defmida, ao passo que o experimental o domnio da experincia cientfica, com suas condies e regras. Ver igualmente L. GARDET, Thologie de la mystique, &vue Thomiste 71 (1971): 571-588.

    15

  • ExPERINCIA MsTicA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    mendum (para usar a terminologia de R. Otto); ela experincia do Outro absoluto como fascinosum, mas o fascinium aqui apelo a uma forma de unio na qual prevalece o aspecto participativo e fruitivo, tendendo dinamicamente a uma quase-identidade com o Absoluto e transformando radicalmente a existncia daquele que se v implicado nessa experincia. Desta sorte, podemos adotar inicialmente a definio de J. Maritain, segundo a qual a expe-rincia mstica consiste essencialmente numa "experincia fruitiva do Absoluto"2 Como experincia fruitiva, ela se exerce atravs de um tipo de conhecimento do seu objeto e de adeso afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer, e visa, em sua inten-cionalidade objetiva, o Absoluto, ultrapassando a contingncia e relatividade dos objetos que se oferecem nossa experincia or-dinria. A imensa cadeia de testemunhos que corre ao longo das mais variadas tradies religiosas no deixa dvidas quanto realidade e autenticidade dessa experincia, que se impe, por isso mesmo, como um dado antropolgico fundamental, tendo resistido vitoriosamente a todas as tentativas de reducionismo, sobretudo psicologista3, e oferecendo, por outro lado, campo conhecida interpretao do fato mstico que H. Bergson prope na sua teoria das duas fontes da moral e da religio4 A definio maritainiana nos permite, assim, excluir desde logo do terreno da experincia mstica toda uma srie de fenmenos extraordinrios ou anormais, espontneos ou induzidos, que podem acompanhar os estados msticos, porm so dele no apenas distintos, mas

    2. Ver o texto 'I1exprience mystique naturelle et !e vide', ap. J. MARITAIN, Oeuvres (7912-1939}, (d. H. Bars), Paris, Descle, 1975, 1125-1158. Sobre essa definio, ver O. LAcoMBE, Introduction, ap. L. GARDET-0. LACOMBE, L'exprience de soi: essai de mystique compare, Paris, Descle, 1981, 23.

    3. A esse respeito, permanecem clssicos os estudos de J. MARCHAL, Science empirique et psych~logie religieuse; Le sentiment de prsence chez les profanes et les mystiques, ap. Etudes sur la psychologie des mystiques, 2, Bruxelas/Paris, Vdition Universelle/Descle de Brouwer, 21938, I, 3-168; ver igualmente A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit, Graz, A. Pustet, 1947, 205-266.

    4. H. BERGSON, Les deux sources de la Morale et de la Religion, ap. Oeuvres, d. du Centenaire, Paris, PUF, 1959, 1159-1201.

    16

    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    separveis, e que, em geral, so objeto de severo controle e crtica por parte dos prprios msticos autnticos5

    A singularidade da experincia mstica como "experincia frui-tiva" e a unicidade do seu objeto como "absoluto" iro justamente conferir-lhe as caratersticas que, na tradio ocidental, foram de-signadas por uma constelao semntica formada por um grupo de vocbulos cuja significao abrange os dois plos - subjetivo e objetivo - da experincia e pode ser figurada pelo tringulo "mstico-mstica-mistrio"6 A experincia mstica, em seu teor ori-ginal, situa-se justamente no interior desse tringulo: na intencio-nalidade experiencial que une o mstico como iniciado ao Absoluto como mistrio; e na linguagem com que, num segundo momento, rememorativo e reflexivo, a experincia dita como mstica e se oferece como objeto a explicaes tericas de natureza diferente.

    Ora, a prpria originalidade da experincia mstica que nos obriga a colocar o problema de uma concepo antropolgica adequada capaz de interpret-la corretamente7 Se percorrermos, com efeito, as interpretaes do fenmeno mstico na literatura

    5. Ver J. LoPEZ GAY, Le Phnomene mystique, ap. A. SoLIGNAC ET AL., Mystique, Dictionnaire de Spiritualit, X (1980), cais. 1893-1902 (aqui, cais. 1897-1898); A. MA-GER, Mystik als seelische Wirklichkeit, 222-227. Com respeito mstica crist, ver C!. TRESMONTANT, La mystique chrtienne et l'avenir de l'homme, Paris, Seuil, 1977, 9-24.

    6. Eis a figura desse tringulo: _ . mtsttca

    mstico L mistrio O mstico o sujeito da experincia, o mistrio, seu objeto, a mstica, a reflexo

    sobre a relao mstico-mistrio. A derivao etimolgica desses termos vem de myein (fechar os lbios ou os olhos), donde, por uma transposio metafrica, "iniciar-se", do qual deriva o complexo vocabular: mystes, iniciado, mystiks, o que diz respeito iniciao, t mystik, os ritos de iniciao, mistiks (advrbio), secre-tamente e, finalmente, mystrion, objeto da iniciao. Essa terminologia vem do culto grego dos mistrios, ao qual mais adiante nos referiremos. Ver L. BouYER, Mystique: essai sur l'histoire d'un mot, La Vie Spirituelle, Supplment 3 (1949): 3-23; In., Mystrion, La Vie Spirituelle, Supplment 6 (1952): 397-412; LIDELL-ScorrjoNES, Greek-English Lexikon, ed. 1951, s. v. my.

    7. A ausncia de um definido pressuposto antropolgico responsvel pela equivocidade que afeta o termo mstica na linguagem contempornea.

    17

  • ExPERINCIA MsTicA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    moderna a respeito, no difcil perceber que so guiadas por procedimentos reducionistas inspirados nas diversas cincias hu-manas8. Mas a incontestvel originalidade da experincia mstica que transluz nos testemunhos autnticos e irrecusveis dos gran-des msticos mostra-se irredutvel a estreitos pressupostos reducio-nistas. A experincia mstica um dado antropolgico original. Sua interpretao exige, pois, uma concepo da estrutura do ser humano apta a dar razo dessa originalidade. De fato, todos os grandes textos, na tradio do Ocidente, que se podem considerar msticos, de Plato a So Joo da Cruz, transmitem-nos uma ima-gem do ser humano, traada segundo invariantes fundamentais, que permanece ao longo dos dois grandes primeiros ciclos da nossa civilizao, o greco-romano e o cristo-medievaJ!l. Essas in-variantes so representadas tradicionalmente pelas metforas es-paciais do inferior-superior e do interior-exterior. Elas designam, na estrutura ontolgica do ser humano, uma ordem hierrquica dos nveis do ser e do agir, segundo a qual o nvel supremo representa igualmente o ncleo mais profundo da identidade ou, se preferir-mos, da ipseidade humana. O superior-interior designado com o termo grego nos e com o latino mens. A ele refere-se Santo Agos-tinho numa passagem clebre quando, dirigindo-se a Deus, assim se exprime: Tu eras interior intimo meo et superior summo meo10 No mais ntimo da mente- aditum mentis -,que igualmente a sua fina ponta - apex mentis -, o Absoluto est presente na sua radical transcendncia - superior summo - e na sua radical ima-nncia - interior intimo. A elucidao antropolgico-filosfica da experincia mstica implica, pois, necessariamente, duas teses fun-

    8. A situao da mstica no universo cultural da modernidade descrita por M. DE CERTEAU no artigo Mystique da Encyclopdie Universalis, XI, 521-526; ver ainda, do mesmo autor, La fable mystique (XVI - XVII sicle), Paris, Gallimard, 1982, que tenta uma interpretao do destino da mstica na aurora dos tempos modernos, a partir da nova estrutura da epistme ocidental. Por outro lado, a incapacidade dos esquemas reducionistas para explicar o fato religioso em geral foi denunciada rc;centemente por L. DuPR, L'autre dimension: essai de philosophie de la religion (tr. fr.), Paris, Cerf, 1977, 65-105.

    18

    9. Ver H. C. LIMA VAz, Antropologia Filosfica I, So Paulo, Loyola, 1991, 27-75. 10. SANTO AGosTINHO, Conftssiones, III, 6.

    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    damentais: a) o esprito como nvel ontolgico mais elevado entre os nveis estruturais do ser humano"; b) a dialtica interior-exterior e inferior-superior como constitutiva do esprito-no-mundo, e que se articula segundo a figura de um quiasmo, ou seja, em que o inte-rior permutvel com o superior e o exterior permutvel com o

    inferior~. Vale dizer: o mais ntimo de ns mesmos o nvel ontolgico mais elevado do nosso esprito, e no fundo d~sa imanncia (interior intimo) que o Absoluto se manifesta como absoluta transcendncia (superior summo). A pode ter lugar a expe-rincia mstica. Ela , em suma, a atividade mais alta da inteligncia espiritua4 que , por sua vez, a atividade mais elevada do espri-to~:'. Como atos da inteligncia espiritua4 a contemplao metafsica e a contemplao mstica podem exercer-se na sua plenitude. Portanto, somente o discurso antropolgico que compreende em si a categoria do esprito, e admite como atos espirituais mais ele-vados os atos da inteligncia espiritua4 capaz de acolher e explicar adequadamente a autntica experincia mstica.

    A revoluo antropocntrica da filosofia moderna, invertendo na direo do prprio sujeito o vetor ontolgico do esprito~ trou-xe consigo a dissoluo da inteligncia espiritua4 provocando, em conseqncia, o desaparecimento, no campo da conceptualidade filosfica, do espao inteligvel no qual contemplao metafsica e contemplao mstica podem encontrar, do ponto de vista antro-polgico, os princpios da sua explicao14 . No obstante o esforo de um Schelling ou de um Hegel no sentido de operar uma trans-

    11. A categoria do esprito, denotando o nvel estrutural mais elevado do ser humano, foi exposta em Antropologia Filosfica I, 201-237.

    12. Essa dialtica pode ser assim representada pela figura do "quiasmo" interior superior

    inferior exterior

    Sobre a origem agostiniana dessa figura, ver Antropologia Filosfica I, 237, nota 106. Ver, a propsito, o excelente estudo de E. BoRNE, Pour une doctrine de l'intriorit, ap. lntriorit et vie spirituelle, Recherches et Dbats 7 (1954): 8-74.

    13. Ver o captulo sobre a "inteligncia espiritual" em Antropologia Filosfica I, 243-289.

    14. Antropologia Filosfica I, 289, nota 166, e 288, nota 175.

    19

  • ExPERINCIA MSTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    posio especulativa da experincia mstica segundo os princpios de uma filosofia da imanncia, ou de um Bergson para estabelecer o alcance heurstico dessa experincia na interpretao filosfica da moral e da religio, a filosofia moderna mostrou-se incapaz de oferecer um pressuposto antropolgico adequado para a compreen-so do fenmeno mstico na sua originalidade, e esse ficou aban-donado aos procedimentos reducionistas das cincias humanas. Um exemplo, entre todos o mais notvel, da perda da significao autntica da experincia mstica que se segue desconstruo da Metafsica, ou sua "superao", encontramos justamente no fil-sofo que se celebrizou pelo anncio do "fim da Metafsica". A experincia do Ser preconizada por M. Heidegger , na verdade, uma experincia mstica desfigurada que tenta exprimir-se numa linguagem potica e paraconceptual, na qual o que de fato se significa a pura presena do sujeito (ou do Dasein) a si mesmo na sua mais radical imanncia15

    A teoria da experincia mstica, seja a que est implcita no prprio testemunho dos msticos1, seja a que explicitada na re-flexo filosfica e teolgica, construda, portanto, sobre um fun-damento antropolgico, no qual a concepo do ser humano est aberta ao acolhimento de uma dupla dimenso de transcendncia:

    15. A experincia mstica desfigurada apresenta certa analogia com a experin-cia mstica natural, descrita por MARITAIN como experincia pura do esse substan-cial do esprito: Vexprience mystique naturelle et le vide, cit. supra, nota 2. A interpretao mstica do Sein heideggeriano foi brilhantemente exposta por um discpulo de Maritain: ver E. J. KoRN (H. SCHMITZ), La question de l'tre chez Heidegger, III: observations critiques concernant l'entreprise de Heidegger, Revue Thomiste 71(1971): 33-58; uma comparao entre o pensamento de He1degger e a mstica hindu proposta por L. GARDET, Exprience de sai et discours philosophi-que: propos de Heidegger, ap. L. GARDET-0. LAcoMBE, L'exprience de soi: essai de mystique compare, 319-370.

    16. Para um perfil dos grandes msticos cristos na tradio ocidental, ver CHAR-LES-ANDR BERNARD, Le Dieu des mystiques, Paris, Cerf, 1998. Para distinguir o aspecto experiencial e o aspecto terico da experincia mstica, convm distinguir: a) mistica para designar o exerccio da experincia mstica; b) mistologia: a refl:xo sobre a experincia e sua traduo em categorias tericas; c) mistagogw: a prahca da direo espiritual no domnio da mstica. Essas distines so explicadas por H. U. VON BALTHASAR, Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik, ap. Grund.fragen der Mystik, 49-52.

    20

    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    a) de um lado, a transcendncia da inteligncia espiritua4 seja sobre o entendimento discursivo e o livre-arbtrio, seja sobre as ativida-des prprias do psiquismo; b) de outro, a transcendncia ontol-gica do Absoluto sobre o sujeito finito que a ele se une na expe-rincia mstica. No obstante as profundas diferenas que iro distinguir a mstica crist daquela que se convencionou denomi-nar mstica pag, e cuja expresso conceptual ser recebida da tradio platnica (ver infra), o trao comum que as une encontra-se no mesmo modelo antropolgico dotado de uma estrutura vertical aberta coroada pela fina ponta do esprito (nos ou mens), capaz de captar a universalidade formal do ser e de afirmar seu existir real (Metafsica), ou de unir-se fruitivamente ao Absoluto (Mstica) 17 A concepo antropolgica subjacente experincia mstica - como tambm contemplao metafsica - deve ad-mitir, em conseqncia, o reconhecimento da capacidade do es-

    , h Pl - d " Ih d I "18 E " Ih pmto umano que ato enommou o o a a ma . sse o ar da alma" prolonga sua contemplao para alm da multiplicidade sensvel e imaginativa e da multiplicidade conceptual, e intuio simples da Idia ou do Absoluto ideal19

    A estrutura antropolgica vertical apresenta-se, pois, na tradi-o ocidental, como a condio de possibilidade da experincia mstica - e, mais geralmente, do conhecimento natural de Deus,

    17. Essa estrutura vertical ilustrada por uma das mais clebres transposies metafricas da literatura filosfica, aquela que estabelece uma proporo entre o olhar - coroando a estao vertical do ser humano, ver Antropologia Filosfica I, 30-31 e 51, notas 14 e 15 - e a faculdade superior do conhecimento (nous), que tem por objeto as realidades supra-sensveis (eidos, ida). Esse tema tratado exaustiva-mente por L. PAQUET, Platon et la mdiation du regard, Leiden, E. J. Brill; ver a Concluso, 458-463.

    18. A metfora do "olhar da alma" (PLATO, Repblica VI, 533 d 2) torna-se clssica na literatura mstica. Ver os textos de Alcher de Clairvaux e de Hugo de So Vtor citados por E. V. Iv&'IKA, Plato Christianus: bernahme und Umgestaltung des Platonismus durch die Viiter, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1964, 317; 326-327; 333.

    19. A intuio (nesis) situa-se, portanto, no extremo superior dos modos do conhecimento, ordenados linearmente: pstis (sensao), eikasa (imaginao), dinoia (raciocnio matemtico), nesis (intuio); PLATO, Repblica VI, 511 d-e. A essas operaes do conhecimento correspondem as duas grandes ordens da realidade: sensvel ou visvel (t orata} e inteligvel (t noeta).

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    bem como da recepo da revelao divina na F. A transcrio conceptual dessa estrutura se far segundo dois esquemas clssi-cos, obedecendo a dois procedimentos metodolgicos distintos de ordenao da complexa realidade do ser humano: a) o esquema dual corpo-alma20, construdo segundo um procedimento analtico - anlise da substncia "ser humano" em seus princpios consti-tutivos; b) e o esquema trial corpo-alma-esprito21, construdo se-gundo um procedimento dialtico - articulao do movimento de auto-expresso do ser humano na passagem da natureza dada forma manifestada22

    A teoria da mstica, implcita no testemunho dos msticos ou explicitada pela reflexo filosfico-teolgica, apia-se, portanto, num substrato antropolgico, que a natureza do esprito enquan-to este capaz de elevar-se por suas prprias foras - mstica natural - ou pela graa divina - mstica sobrenatural - expe-rincia fruitiva do Absoluto em si mesmo ou em alguma de suas manifestaes23 A investigao desse substrato antropolgico, que rene motivos platnicos, esticos e cristos, constitui um captulo importante da antropologia crist depois de Orgenes, vindo final-mente integrar-se no edifcio conceptual da mstica crist medie-val e de seus prolongamentos modernos24 . Sua sistematizao ds-

    20. Dual aqui no significa dualista. O dualismo antropolgico um caso-limite do esquema dual que, no entanto, no o implica necessariamente, como mostra a doutrina hilemrfica na antropologia aristotlica. Sob a antropologia subjacente experincia mstica, ver MAX HuOT DE LONGCHAMP, Mystique, Dictionnaire critique de la Thologie, (dir. J.-Y. Lacoste), Paris, PUF, 1998, cols. 774-778 (v. 777) [ed. br.: Edies Loyola-Paulinas, no prelo].

    21. Sobre a chamada "antropologia tripartida", ver H. DE LUBAC, Anthropologie tripartite, ap. Thologie dans l'histoire: L La lumiere du Christ, Paris, Descle, 1990, 113-199.

    22. Para o sentido do termo dialtica nesse contexto, ver Antropologia Filosfica L 165-167; H. C. LIMA V AZ, Antropologia tripartida e exerccios inacianos, Perspec-tiva Teolgica 23 (1991): 349-358 (v. 351-352).

    23. A distino entre mstica sobrenatural e mstica natural, objeto de longas discusses, pressupe, evidentemente, uma teologia da graa subjacente ao concei-t'l de "mstica sobrenatural". Alm do clssico artigo de Maritain (supra, nota 2), ver O. LAcoMBE, Introduction, ap. GARDET-LAcoMBE, L'exprience de soi, 26-29.

    24. Esse edifcio significa a estrutura ontolgica do esprito, a partir do seu fun-damento - designado pelo conceito estico de hegemonikn, traduzido pelos latinos como principale cordis - at o seu cimo ou o apex mentis, ver, a respeito, E. VON

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    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    sica ser levada a cabo por Toms de Aquino, ao reelaborar filo-soficamente a teoria agostiniana da menf-5, ou, segundo a termino-logia acima adotada, da inteligncia espiritual.

    Por conseguinte, desde que nos disponhamos, acolhendo o testemunho irrecusvel dos msticos, a atribuir experincia ms-tica, tal como se nos apresenta na tradio espiritual do Ocidente, uma forma e um contedo originais, somos forados igualmente a admitir que essa experincia s pode exercer-se num lugar antro-polgico prprio. A determinao conceptual desse lugar cabe, ento, reflexo filosfico-teolgica como parte integrante de uma teoria da mstica. Essa teoria deve, portanto, como tarefa preliminar, mostrar que o lugar antropolgico no qual a experincia mstica pode acontecer a torna irredutvel, na sua essncia, aos condicio-namentos psicolgicos, sociolgicos ou culturais que normalmente a acompanham26

    Recorrendo ao sistema de categorias exposto em nossa Antro-pologia Filosfica27, propomos situar o lugar antropolgico da expe-rincia mstica exatamente no espao intencional onde se d a passagem dialtica das categorias de estrutura para as categorias de relao, ou do sujeito no seu ser-em-si ao sujeito no seu ser-para-o-outro. Essa passagem, que articula ontologicamente o ser humano ao seu mundo, torna-se possvel pela "suprassuno" (Aujhebung, ou elevao que conserva) das estruturas do corpo prprio e do psiquis-

    IVANKA, Plato Christianus, 315-351 (v. 325-326), que distingue um modelo puramen-te platnico - continuidade do racional ao transracional - e um modelo plat-nico-estico - Orgenes, Agostinho e a mstica crist posterior - que admite uma descontinuidade entre o fundo da alma (principale cordis) e a razo discursiva.

    25. Sobre essa questo, ver a obra clssica de A. GARDEIL, La structure de l'me et l'exprience mystique, 2 vo1s., Paris, Gabalda, 1927. A primeira parte (I, 1-352) estuda a teoria da mens em Santo Agostinho e Santo Toms de Aquino. Ver igual-mente o amplo artigo de L. REYPENS, me, structure de I' ... , Dictionnaire de Spiri-tualit, I, cols. 433-469. Quanto ao exerccio da contemplao segundo Santo Agostinho, ver ibid., II, cols. 1912-1921; segundo Santo Toms, ver P. PHILIPPE, ibid., li, cols. 1983-1988.

    26. Sobre a determinao do lugar antropolgico da experincia mstica, ver]. SuDBRACK, Wege zur Gottesmystik, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1980, 9-49; e ainda MAx HuoT DE LoNGCHAMP, art. cit., nota 20 supra.

    27. Ver Antropologia Filosfica L 49-137.

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  • ExPERINCIA MsTicA E FILosoFIA NA TRADIo OciDENTAL

    mo ao nvel estrutural do esprito. Desta sorte, o ser humano pode abrir-se ao mundo, num primeiro nvel relacional, expresso pela categoria de objetividade; pode abrir-se ao outro e histria, num segundo nvel relacional, expresso pela categoria da intersubjetivi-dade; finalmente, pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais elevado nvel relacional, que se exprime pela categoria de trans-cendncirJ28. Mas, da mesma forma com que o ser humano s um ser-para - sujeito de uma relao propriamente humana - por-que nele o esprito suprassume o corpo prprio e o psiquismo 29, assim o seu mundo - termo intencional do ser-para - s se cons-titui como tal porque a relao de transcendncia suprassume, sob diversas modalidades, as relaes de objetividade e de intersubjeti-vidade. Vale dizer que o ser humano s se abre realidade obje-tiva na forma de um mundo humano porque movido intencional-mente pela sua ordenao profunda ao absoluto, seja o absoluto formal, como universalidade do Ser, seja ao Absoluto rea~ Deus. Eis por que a figura do absoluto, multiforme e nica, habita o universo intencional do ser humano e acompanha como uma sombra todas as suas formas de auto-expresso e a sua autoposio como sujeito, pela qual ele se faz presente entre os seres30 Igual-mente, no seu manifestar-se a si mesmo ou na sua reflexo sobre si mesmo, o ser humano desvela sua ordenao essencial ao Abso-luto31. Nessa dupla ordenao, objetiva e reflexiva, ao Absoluto reside a raiz metafsica da idolatria e dessa imensa procisso de

    28. Essas duas categorias so expostas em Antropologia Filosfica li, 49-137. 29. Antropologia Filosfica I, 224-225. 30. Antropologia Filosfica I, 163-164 e 170, nota 11. 31. Essa ordenao constitui, em suma, o dinamismo ontolgico fundamental do

    esprito. Esse dinamismo exprime a ordenao do ser humano, como ser inteligen-te, para a Verdade, e, como ser livre, para o Bem, dando ao esprito uma estrutura notico-pneumtica: ver Antropologia Filosfica I, 219-233. A concepo do dinamismo do esprito no campo da teoria do conhecimento foi amplamente exposta por J. MARC_HAL em sua obra Le point de dpart de la Mtaphysique, cah. V, 2, Bruxelas/ Paris, Ed. Universell~/Descle, '1947 e por ele aplicada interpretao da expe-rincia mstica em Etudes sur la psychologie des mystiques, I, 194-195; li, 481-483 e passim. Ver, a propsito, G. MOIOLI, Mystique chrtienne, Dictionnaire de la vie spirituelle (tr. fr.), Paris, Cerf, 1983, 742-754 (v. 750-751).

    24

    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    pseudo-absolutos que acompanha os passos do ser humano na histria32 Entre simplesmente ser e manifestar-se- que propria-mente o existir como ser espiritual - o ser humano cumpre um movimento intencional de natureza dialtica pelo qual ele ou manifesta-se a si mesmo - categorias de estrutura: corpo prprio, psiquismo, esprito - e ou manifesta-se em face da universalidade do ser - categorias de relao: objetividade, intersubjetividade, transcendncia. no curso desse movimento ou desse duplo movimento - para-si, para-o-outro - que a experincia mstica tem propriamente seu lugar antropolgico. Ela pode ser considerada como que uma tenso paroxstica entre ser e manifestao: entre o ser humano na sua finitude e nas condies da sua situao, e o dinamismo profundo ordenado ao Absoluto que move a sua automanifestao. Esse paroxismo ocorre num aflorar do Absoluto que, sendo o termo ltimo do movimento intencional do sujeito, est, por isso mesmo, presente na origem e no curso desse movi-mento e, formalmente presente nos atos de inteligncia e vontade com que o sujeito se auto-exprime: aqui, no apex mentis, acontecem a intuio e fruio do Absoluto, configurando o ato mais elevado da vida do esprito: a experincia mstica. Esse aparecer do Abso-luto pode assumir a modalidade do absoluto formal na afirmao metafsica do ser, quando esta acompanhada da intensidade de uma experincia (a experincia metafsica) que tem por objeto a unidade e universalidade absolutas com que o ser se apresenta como cognoscvel (Verdade) e como amvel (Bem); ou ento pode anunciar a presena do Absoluto real (Deus) que surge ao termo do movimento dialtico de auto-expresso do ser humano, pre-sena atingida seja indiretamente pela intuio do Absoluto como Fonte criadora - mstica natural - seja diretamente pela intuio do Dom absoluto de um Amor infinito -mstica sobrenaturaP:1

    32. a lei inelutvel formulada por Santo Agostinho: ( ... ) ut nemo ab ipsa veritate dejiciatur qui non recipiatur ab aliqua effigie veritatis (De Vera Religione, XXXIX, PL, 34, 154).

    33. A intensidade quase mstica da experincia metafsica uma das razes da mstica especulativa. Sobre a questo da intuio ou contemplao natural de Deus e sua natureza mstica ou quase mstica, ver R. ARNOU, Contemplation III-B, Dictionnaire de Spiritualit, II, cols. 1742-1762.

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    Por outro lado, o aparecer do Absoluto no movimento de auto-expresso do ser humano pode orient-lo seja reflexivamente, na forma de uma experincia do Si substancial atravessado pela energia divina do Ato criador ou pelo apelo transformante do Amor infinito, dando origem s msticas do nfase (ou da interio-ridade), seja objetivamente, ou na direo do Cosmos ou da Hist-ria contemplados luz do Absoluto que os envolve, ou na sada de si para a unio fruitiva com o prprio Absoluto, dando ento origem s msticas do xtasil4 Nas msticas do nfase o Absoluto experimentado como que constituindo o fundo abissal, o interior interior intimo do prprio sujeito. Nas msticas do xtase, na sua forma mais genuna, o Absoluto experimentado como Absoluto pessoal - superior summo -, manifestando-se como Dom de si mesmo que introduz o mstico na comunho da vida divina.

    A experincia mstica deve ser reconhecida, portanto, como um fato antropolgico singular, cuja singularidade s pode ser reco-nhecida e interpretada nos quadros de uma adequada filosofia do ser humano. Desta sorte, a essncia da experincia mstica no alcanada atravs dos procedimentos metodolgicos das cincias humanas, na medida em que estas permanecem no plano da cha-mada "compreenso explicativa"35, que trabalha com modelos abs-tratos aplicveis apenas a dados selecionados da experincia. No momento em que passam a ocupar-se com experincias humanas que escapam manifestamente s caractersticas da experincia or-dinria, mas que, por outro lado, ocorrem em sujeitos perfeita-mente normais, como acontece emblematicamente com a expe-rincia mstica, as cincias humanas so obrigadas a recorrer, tcita ou declaradamente, a pressupostos filosficos, e no difcil des-cobrir a filosofia que subjaz a algumas das mais conhecidas inter-pretaes "cientficas" da experincia mstica36 Nesse campo, alis,

    34. Sobre essa terminologia, ver L. GARDET, La Mystique, (co!. Que sais-je?), Paris, PUF, 1970, 27-28.

    35. Ver Antropologia Filosfica I, 13; 159-164. 36. Exemplos: o pragmatismo em Williamjames, o idealismo em Henri Dela-

    c:oix, o materialismo em ]ames Leuba. Sobre esses autores, ver J. MARCHAL, Etudes sur la psychologie des mystiques, vol. 1.

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    ANTROPOLOGIA DA EXPERINCIA MSTICA

    o problema filosfico coloca-se inevitavelmente, pois a experin-cia mstica faz sua apario no mbito de uma questo especifica-mente filosfica: a questo da transcendncia. A experincia mstica pode e, mesmo, deve ser estudada cientificamente. Mas neces-srio que as cincias humanas, ao aplicar-se a esse estudo, evitem todo tipo de reducionismo e/ ou explicitem a filosofia que as ins-pira, ou ao menos deixem aberto o espao s interpretaes filo-sficas ou teolgicas que dispem de instrumentos conceptuais adequados para captar, na sua essncia, o fenmeno da experin-cia mstica37 Como acabamos de ver, a tradio filosfica e teol-gica do Ocidente, at pelo menos os incios da modernidade, pensou a experincia mstica segundo um modelo antropolgico fundamental que, nas suas grandes variantes - modelo dual ou trial -, e no obstante as diferenas que separam as msticas grega e crist38, concebe a unidade do ser humano como uma unidade estrutural aberta, no nvel superior do esprito, univer-salidade do ser e ao conhecimento do Absoluto. esse modelo que iremos encontrar dando significao e unidade s grandes formas de experincia mstica que a tradio ocidental nos apresenta.

    37. Sobre a legitimidade da investigao cientfica, em particular psicolgica, da experincia mstica e sobre sua compatibilidade com a interpretao filosfico-teolgica, ver as observaes pertinentes de A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit: eine Psychologie der Mystik, 11-29. Convm lembrar igualmente as pginas clssicas de J. MARITAIN, Exprience mystique et philosophie, ap. Les Degrs du Savoir, Paris, Descle, 41946, 489-583. Ver tambm C!. TRESMONTANT, La mystique chrtienne et l'avenir de l'homme, 9-23.

    38. Ver supra, nota 9.

    27

  • 11

    fORMAS DA EXPERINCIA MSTICA NA TRADIO OCIDENTAL

    A investigao histrica e a reflexo filosfico-teolgica iden-tificaram, na tradio mstica do Ocidente, trs grandes formas segundo as quais a experincia mstica vivida pelos msticos e pensada pelos tericos da mstica. Os traos caractersticos dessas formas permitem descobri-las e descrev-las nesse ou naquele escritor mstico e nessa ou naquela escola de espiritualidade. Na experincia concreta, porm, tais formas aparecem freqentemen-te integradas no todo da experincia, tal como, na sua riqueza e complexidade, vivida e descrita pelos grandes msticos. Essa observao vale particularmente para a mstica crist, que herdou da tradio grega uma estrutura conceptual e nela transfundiu um esprito novo, vindo a surgir da um modelo ou modelos de ex-perincia mstica profundamente originais.

    Aqui tambm, pois, distinguir no separar, mas tornar pos-svel uma viso, ao mesmo tempo complexa e ordenada, da ver-dadeira fisionomia e das vicissitudes histricas desse evento espi-ritual aparentemente enigmtico que denominamos Mstica, que persiste em repetir-se na histria e que, como reconheceu Berg-son, uma fonte inesgotvel das mais altas aspiraes ticas e religiosas a que uma civilizao pode elevar-se.

    Distingamos, pois, trs grandes formas de experincia mstica na tradio ocidental:

    - a mstica especulativa; - a mstica mistrica; - a mstica proftica.

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  • ExPERINCIA MsTicA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    As duas primeiras so comuns aos misticismos grego e cristo, levando-se em conta a profunda diferena do contedo doutrinal nas duas tradies. J a mstica proftica prpria da tradio crist, sendo essencialmente uma mstica cristolgica.

    a. A mstica especulativa A chamada "mstica especulativa" pode ser considerada um

    prolongamento da experincia metafsica em termos de intensida-de experiencial. Ela se apresenta, pois, como a face do pensamento filosfico voltada para o mistrio do Ser, tentando mergulhar seu olhar nas profundidades propriamente insondveis e inefveis que assinalam a fronteira ltima do pensamento distinto e da palavra - do lagos. A mstica especulativa , portanto, o esforo mais audaz - na mstica natural - e o apelo mais radical - na mstica sobrenatural - para que o esprito humano, seguindo o roteiro do lagos, penetre no domnio do translgicoi. Ela floresce, assim, histo-ricamente, nas proximidades dos grandes surtos do pensamento metafsico que marcaram a histria da filosofia de Parmnides a HegeF. Nesse sentido, pode-se dizer que, em sua verso ocidental, a mstica especulativa originariamente grega, no obstante o vigoroso crescimento que conheceu em terras crists. Situa-se na vertente notica da conscincia, desabrochando como que no seu vrtice. , portanto, uma mstica do conhecimento, e essa a feio original que a distingue na histria da Mstica.

    em Plato que os estudiosos reconhecem habitualmente a fonte primeira da mstica especulativa. Ela nasceu de algumas passagens dos Dilogos, que se tornaram quase cannicas, e foi, sem dvida, alimentada pelas especulaes sobre o Bem e o Uno,

    1. Lembremo-nos de que o domnio da mstica no o domnio do algico ou do irracional, mas do translgico: a realidade que se alcana com um passo alm do lgico ou do pensamento conceptual. Ver A. BRUNNER, Der Schritt ber die Grenze, 30-38.

    2. Com efeito, alguns autores fazem remontar a Parmnides as origens histricas da mstica especulativa; ver, por exemplo, K. KoMOTH, Hegel und die spekulative Mystik, Hegel-Studien 19 (1984): 65-93.

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    FORMAS DA ExPERINCIA MsTICA NA TRADIO OciDENTAL

    que a tradio atribui ao ensinamento no-escrito do Filsofo3 justo, pois, afirmar-se que a mstica especulativa tem sua origem nesse singular intento de Plato, que foi o de unir o entusiasmo e a razo4 Independentemente da interpretao da theoria plat-nica, seja como uma viso terminal da Idia, de natureza quase mstica e em descontinuidade com a ascenso dialtica, seja a de uma intuio que coroa essa ascenso", inegvel que os temas e conceitos platnicos iro constituir um organismo terico que ser animado por correntes sucessivas de vida mstica na antigidade grega e no cristianismo dos primeiros sculos6 A mstica especu-lativa ser, pois, fundamentalmente uma mstica platnica, e ser sob o patrocnio de Plato que mstica e filosofia se uniro por estreitos laos na tradio do Ocidente.

    Fiel s suas origens platnicas, e desenvolvendo-se no campo temtico aberto pela filosofia dos Dilogos e pela tradio no-escrita, a mstica especulativa apresenta-se dotada de uma estrutu-ra fundamental que permanecer constante atravs de todas as vicissitudes de sua histria. Dois grandes eixos sustentaro essa estrutura:

    a) o eixo subjetivo, correspondendo a uma ordenao vertical e hierrquica das atividades cognoscitivas da alma (psych, ani-ma) e, por conseguinte, das formas de conhecimento, culminando

    3. A Primeira Academia, onde essas lies foram ministradas, pode ser consi-derada a primeira escola de mstica especulativa. A estrutura platnica da mstica especulativa sintetizada nos trs princpios essenciais do platonismo, segundo E. voN IvANKA (Plato Christianus, 499): a) real e ideal integrados na unidade de um Todo ordenado; b) a totalidade do ser fluindo de uma fonte nica, que tambm a unidade originria; c) a existncia do Uno originrio objeto, ao mesmo tempo, de certeza racional e de experincia mstica, sendo o fim ltimo da tendncia essencial do homem. Ver ibid., 450-459, sobre os problemas levantados a prop-sito da integrao dessa estrutura platnica na mstica crist.

    4. Essa expresso de V. GoLDSCHMIDT, Les Dialogues de Platon: structure et mthode dialectique, Paris, PUF, '1988, 337; ver p. 341 a descrio do momento em que entusiasmo e razo se unem na intuio da essncia. [ed. br.: Os Dilogos de Plato, So Paulo, Edies Loyola, 2001].

    5. A primeira dessas interpretaes foi exposta por A.J FESTUGIRE em sua obra clssica Contemplation et vie contemplative selon Platon, Paris, Vrin, '1950; com ela concorda substancialmente R. ARNou, Contemplation, II/2, 1719-1725.

    6. A comparao do organismo deve-se a A.J FESTUGIRE, op. cit., 5.

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  • EXPERINCIA MSTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OCIDENTAL

    com a inteligncia (nos, mens) no seu ato mais elevado (nesis, intuitio). A mstica especulativa, em suas formas clssicas, admite, portanto, que o conhecimento humano possa elevar-se, seguindo a continuidade de um mesmo movimento espiritual, at o cimo da mente (apex mentis), onde se d a intuio do divino ou de Deus7 O eixo subjetivo, que sustenta a experincia mstica na sua forma especulativa, orienta, desta sorte, a alma na direo que conduz ao exerccio pleno da sua capacidade de abrir-se ao Absoluto -capax entis, capax Dei" - por uma forma de conhecimento supra-racional, do qual se origina o xtase do amor, num quiasmo per-feito entre conhecimento e amor, cuja expresso ultrapassa os limites da razo discursiva9

    b) o eixo objetivo est em perfeita homologia com o eixo sub-jetivo na estrutura da mstica especulativa. Com efeito, esta repou-sa sobre a pressuposio de que, capacidade do ser humano de conhecer e amar o Absoluto, corresponde a realidade objetiva desse mesmo Absoluto intudo e amado - vigora aqui o objetivismo da gnosiologia antiga, em cujos quadros nasceu e se desenvolveu a mstica especulativa - numa paradoxal relao de sujeito a obje-to, que forma como que o cerne da mstica especulativa. De um lado, a se manifesta o supremo esforo do esprito humano para alcanar, pelo conhecimento e pelo amor, o vrtice da pirmide do ser, tal como parece elevar-se aos olhos da sua inteligncia. De

    7. Na mstica sobrenatural crist, a elevao pela graa - no caso, uma graa atual gratis data - do contemplante pressuposta ao ato da contemplao.

    8. Segundo a tradio platnica, esse eixo atravessa todas as camadas da alma at atingir seu cimo; ver, no entanto, supra, nota 24, cap. 21.

    9. Como sabido, remonta igualmente a Plato a doutrina da ntima inter-relao entre amor e conhecimento (eros e logos). A propsito, ver H. C. LIMA V A:z, Amor e Conhecimento: sobre a ascenso dialtica no Banquete, Revista Portuguesa de Filosofia 12 (1956}: 225-242. Sobre a dialtica amor-conhecimento, ver tambm P. MENESES, O conhecimento afetivo em Santo Toms (co!. CES}, So Paulo, Loyola, 2000. SAo GREGRIO MAGNO resumiu essa inter-relao numa sentena clebre: Amor ipse notitia est (Hom. in &echielem, II, hom. 27, 4; PL, 76, 1207}. Para o pleno exerccio dessa sinergia amor-conhecimento, impe-se a necessidade, j realada por Plato, da purificao (ktharsis) da alma como condio para a ascenso espiritual. O captulo da "purificao" permanecer fundamental no neoplatonis-mo (Plotino} e no cristianismo.

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    FoRMAs DA ExPERINCIA MsTICA NA TRADIO OciDENTAL

    outro, esse vrtice do ser, apenas entrevisto, distancia-se ao infini-to, mergulhado numa profundidade insondvel, para alm de toda intuio distinta10 A homologia que mantm em equilbrio os dois eixos, subjetivo e objetivo, da mstica especulativa exprime-se na equao ontolgica inteligncia = ser. essa mesma homologia que permite construir igualmente o edifcio da Metafsica. Nesta, porm, a inteligncia procede por via discursiva e/ ou elabora, utilizando o procedimento analgico, o conceito universalssimo de ser (absoluto formal) ou avana, na linha da afirmao judicativa, at a posio do Absoluto realn. Na mstica especulativa a inteli-gncia elevada como que acima de si pelo mpeto profundo de atingir 12 em si mesmo o Absoluto na sua plenitude absoluta de ser. Mas como atingi-lo desta sorte sem identificar-se, de alguma maneira, com ele e sem descobrir em si mesma uma identidade original com o Absoluto? Tal , fundamentalmente, o roteiro desenhado pela mstica especulativa para seu itinerrio, e que ser a fonte de todos os problemas que sua prtica e sua expresso terica encontraro ao serem recebidas pela tradio crist13 O eixo objetivo da mstica especulativa aponta tradicionalmente em duas direes o caminho para se atingir o Absoluto: o caminho do nfase e o caminho do xtase. Ou o caminho da descoberta do Absoluto no ntimo do Si substancial ou o caminho da sua desco-berta no pice da ordem ascendente dos seres. Em ambos os casos, o atingir assume a forma de um ver transracional, de um excessus mentis. Por outro lado, como falar do objeto dessa contem-plao, seno transgredindo as regras da linguagem ordinria? O

    10. Deve-se igualmente a l'L\TAO a frmula para designar a transcendncia absoluta que eleva o vrtice da realidade para alm do ser determinado, quando declarou a Idia do Bem "para alm da essncia em majestade e poder" ( epkeina ts ousias prebeia kai dynmei hyperchontos, Rep., VI, 509 b}. As msticas neoplatnica e crist usaro as preposies hyper = supra e mel = trans, para designar a trans-cendncia do termo da ascenso mstica.

    11. Sobre o fundamento antropolgico da Metafsica, ver o captulo sobre a categoria da relao de transcendncia, ap. Antropologia Filosfica 11, 93-137.

    12. Os verbos "atingir" e ''tocar" ( thingnein, attingere) so usuais na linguagem da mstica especulativa. Ver Antropologia Filosfica I, 286, nota 161.

    13. Esses problemas so discutidos por E. v. IvANKA, Plato Christianus, 453-457.

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIo OciDENTAL

    problema da linguagem da mstica especulativa est, pois, intima-mente ligado ao problema da sua natureza: o paradoxo da lingua-gem de um savoir incommunicable\ que vem sendo transmitido desde Plato a toda a linguagem da mstica especulativa e uma das fontes, seja dito de passagem, da no raro desconcertante linguagem filosfica de Hegel.

    A tradio da mstica especulativa se desdobra em duas gran-des fases: a mstica neoplatnica e a mstica crist. A essas con-vm acrescentar as formas filosficas modernas de secularizao da mstica.

    O neoplatonismo , na verdade, a matriz terica e lingstica da mstica especulativa. Ela tem nos textos de Platina como que suas escrituras cannicas. A discusso sobre a natureza da mstica plotiniana deu origem a uma vasta literaturai5 Seus traos funda-mentais, cuja presena se prolongar de modo muito profundo na teologia mstica posterior e nas modernas verses filosficas da mstica, de um lado dizem respeito estrutura da alma e da in-teligncia e aos degraus correspondentes para a subida contem-plativa; de outro, referem-se natureza da unio final no pice da theoria entre a inteligncia e o Uno16 Nesses dois temas da mstica plotiniana esto presentes aqueles que sero os tpicos clssicos da mstica especulativa: estrutura do esprito, degraus da ascenso mstica, contemplao terminal, natureza do Absoluto e lingua-gem da contemplao. Depois de Platina a mstica especulativa neoplatnica recebe uma importante contribuio por parte de seus sucessores, a comear por Porfrio, merecendo destaque Pro-elo (sculo V), que estabelece didaticamente a distino entre

    14. J. MARITAIN, Les Degrs du Savoir, 615-618. O silncio na intuio mstic~ ou quase mstica foi assinalado por SANTO AGOSTINHO na narrao do xtase de Ostia ( Confessiones, IX, 3, 2-3).

    15. Ver Antropologia Filosfica I, 276, notas 55 e 57 e R. ARNou, Contemplation II, 4, Dictionnaire de Spiritualit, II, c ois. 1727-1738. Ver ainda J. MARCHAL, Le seu! seu! avec Dieu dans l'extase d'aprs Plotin, ap. tudes sur la psychologie des mys-ttques, 51-87; W. BEIERWALTES, Reflexion und Einigung zur Mystik Plotins, ap. HANS U. v. BALTHASAR (org.), Grundfragen der Mystik, 7-16; O. LAcoMBE, Plotin, ap. GARDET-LAcoMBE, L'exprience du soi, 51-84.

    16. Ver a penetrante exposio de O. LACOMBE, Plotin, art. cit., 62-67.

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    FoRMAS DA ExPERINCIA MsTICA NA TRADIO OciDENTAL

    conhecimento cataftico (afirmativo) e conhecimento apoftico (ne-gativo), distino que se tornar clssica na tradio teolgico-filosfica posterior. Depois de Proclo a theoria neoplatnica deriva para formas de theurgia Qmblico, sculo VI), que recorrem a prticas de tipo mgico para forar a ao de Deus na transforma-o psicossomtica daquele que se entrega theoria. esse o ltimo captulo da mstica especulativa grega.

    Na tradio crist, a mstica especulativa ir conhecer um lon-go e complexo itinerrio. Trata-se de um caso exemplar do encon-tro entre cristianismo e platonismo, na medida em que, ao longo de todo o seu desenvolvimento, foi marcado pela estrutura de pensamento e pelas categorias neoplatnicas. Por outro lado, no entanto, ser a prpria tradio crist, fluindo das fontes bblicas, que ir plasmar definitivamente a forma da mstica especulativa no ciclo cristo da sua histria. Sendo fundamentalmente a mstica especulativa uma mstica do conhecimento17 na sua forma mais ele-vada, ou seja, a contemplaoi8, ser, de fato, em torno do problema da contemplao que iro constituir-se e diferenciar-se os diversos ramos da mstica especulativa crist. Em primeiro lugar convm acentuar que sua originalidade em face da mstica filosfica grega provm do seu ntimo entrelaamento com a verso crist da mstica mistrica e com a mstica proftica (v. infra). Com efeito, a mstica crist deve ser considerada um tronco nico, cujas razes mais profundas esto no Novo Testamento e do qual crescero, como ramos freqentemente entretecidos de maneira inextricvel, as msticas especulativa, mistrica e proftica. Em particular, a mstica especulativa estar necessariamente presente em toda ocorrncia do fato mstico, pois a contemplao o termo normal da expe-

    17. Referimo-nos aqui ao termo grego gnosis, cuja fortuna, como sabido, foi imensa na Antigidade tardia. A partir de Clemente de Alexandria (sc. III) esse termo recebeu a acepo especificamente crist que comeara a ser elaborada por So Paulo. Ver J. LEMAiTRE ET AL., Contemplation III, I, ap. Dictionnaire de Spiri-tualit, II, cols. 1762-1768.

    18. Theoria, termo de origem filosfica (Plato, Aristteles) tem uma significao estritamente intelectual, distinguindo-se assim de gnosis, termo dotado, a partir da poca helenstica, de uma componente religiosa. Sobre as significaes de gnosis, ver J. LEMAiTRE, loc. cit., co!. 1766.

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  • EXPERINCIA MSTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OCIDENTAL

    rincia mstica, cuja interpretao terica v-se diante do proble-ma maior de pensar distintamente e de exprimir na linguagem o objeto da contemplao: tarefa prpria da mstica especulativa19

    A parte histrica do grande artigo sobre a contemplao do Dictionnaire de Spiritualit, no obstante os quase cinqenta anos que se passaram desde a sua publicao (1953), continua sendo uma fonte extremamente rica e uma referncia obrigatria para quem deseja acompanhar a histria da theoria ou contemplao e, por conseguinte, da mstica especulativa na tradio crist. Ele ser nosso guia nas pginas seguintes.

    A histria da contemplao percorrida pelos colaboradores do Dictionnaire de Spiritualit na parte principal que se refere contemplao crist - ela precedida por um importante estudo de R. Amou sobre a contemplao entre os gregos -, seguindo duas tradies que crescem paralelamente, mas com caractersticas prprias: a mstica especulativa na Patrstica grega e seus prolon-gamentos na teologia bizantina, e a mstica especulativa na Patrs-tica latina e seus prolongamentos na teologia ocidental. necess-rio, porm, observar que a matriz da mstica especulativa crist formou-se inicialmente entre os Padres gregos, mais prximos por tradio, lngua e cultura da filosofia grega e, sobretudo, do mdio neoplatonismo. Podemos, pois, considerar como patronos da ms-tica especulativa crist alguns dos representantes mais ilustres da Patrstica grega: os alexandrinos Clemente e Orgenes (sc. III), o capadcio So Gregrio de Nissa (sc. IV), denominado o "pai da mstica crist"20, Evgrio Pntico (sc. IV), os escritos chamados pseudodionisianos (provavelmente incios do sc. VI), Mximo Confessor (sc. VII). A obra do Pseudo-Dionsio, cuja influncia foi enorme no Oriente e, a partir do sculo IX (primeiras tradu----------

    19. A partir do sculo XVII continuam florescendo na Igreja admirveis voca-es msticas, mas a era das grandes obras msticas aparentemente termina. A era da sabedoria mstica sucede aparentemente a era da cincia da mstica.

    :W. Ver M. VILLER~K. RAHNER, Askese und Mystik in de Vdterzeit, Freiburg i. B., Herder, 1990, 1:13-145. Sobre Gregrio de Nissa, ver a obra clssica deJ D.\:\ILOL, Platonisme et thologie mystique, Paris, Aubier, 1946, e uma sntese em Contempla-tion III, Dictionnaire de Spiritualit, II, cols. 1R72-188!i.

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    FoRMAS DA ExPERINCIA MsTicA NA TRADIO OciDENTAL

    es) no Ocidente, acabou por fixar definitivamente a estrutura conceptual e a terminologia da mstica especulativa crist21 Por sua vez, a mstica ocidental latina reconhece como seu mestre indiscu-tvel Santo Agostinho (scs. IV-V), que deu uma expresso latina e genuinamente crist terminologia e estrutura conceptual da contemplao neoplatnica. A obra de Santo Agostinho, junta-mente com a de So Gregrio Magno (sc. VI), constituem a fonte principal da doutrina da contemplao na mstica especulativa crist no Ocidente, fonte que, a partir do sculo IX, misturar suas guas com a corrente provinda dos escritos pseudodionisianos.

    Nossa ateno volta-se sobretudo para a histria da mstica especulativa crist no Ocidente. Menos especulativa, talvez, que a mstica de expresso grega, ela conhece, no entanto, um surto vigoroso de crescimento que ir culminar na mstica espanhola do sculo XVI e na chamada "invaso mstica" (Henri Bremond) no sculo XVII francs. Um dos problemas fundamentais, e que representa a vertente especulativa dessa tradio mstica, o pro-blema da intuio de Deus no cimo da contemplao. Foi estuda-do particularmente por ]. Marchal, que investigou minuciosa-mente a respeito os escritos de Santo Agostinho e de Santo Toms de Aquino22 Na histria da mstica especulativa do Ocidente manifestam-se duas tendncias principais23 : a) a tendncia agosti-niano-gregoriana, que prevalece no sculo XII, sem dvida o sculo de ouro da mstica medieval; b) e a tendncia neoplatnico-dio-nisiana, que domina a produo dos textos msticos nos sculos XIV e XV.

    O grande lan mstico do sculo XII conhece duas direes principais: a) a mstica cisterciense - e, em sua rbita, a mstica

    21. Sobre a mstica dionisiana, ver R. ROQUES, Contemplation III, Dictionnaire de Spiritualit, II, cols. 1885-1911. Com os escritos pseudodionisianos a expresso "teologia mstica" (mystike theologia) entra definitivamente na terminologia da lite-ratura mstica crist.

    22. Ver tudes sur la psychologie des mystiques, II, 20-47; 145-362. 23. O universo espiritual do sculo XII reconstitudo admiravelmente por J

    LECLERCQ, L'amour des lettres et le dsir de Dieu, Paris, Cerf, 21953; Jnitiation aux auteurs monastiques du Moyen-ge, Paris, Cerf, 1956; e por M.-D. CHENC, La thologie au X!Ie. siecle, Paris, Vrin, 1957.

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OCIDENTAL

    eremtico-cartusiana; b) a mstica vitoriana, representada pelos mestres da escola que floresce na Abadia de So Vtor em Paris. Na mstica cisterciense eleva-se a grande figura de So Bernardo de Claraval, qual deve ser associada a de seu amigo Guilher-me de Saint-Thierry. A doutrina mstica de So Bernardo, de Guilherme de Saint-Thierry e seus discpulos procede direta-mente do ensinamento de Santo Agostinho e de So Gregrio Magno. Ela une o rigor terico e a componente afetiva numa sntese original, cuja influncia foi decisiva na histria da espi-ritualidade ocidentaF4 A mstica vitoriana, cujos mestres princi-pais foram Hugo e Ricardo de So Vtor, une tradio agos-tiniana a influncia dos escritos dionisianos, o que acentua seu carter especulativo2".

    O sculo XIII ser, como sabido, o sculo das grandes cons-trues teolgicas. Seus grandes mestres iro, pois, aprofundar a natureza da contemplao mstica do ponto de vista da cincia teolgica e determinar sua significao na economia da vida cris-t. Nessa tarefa destacam-se os grandes nomes de Santo Alberto Magno, So Boaventura e Santo Toms de Aquino. Alberto Mag-no, inspirando-se nos escritos dionisianos, ser o iniciador da corrente de mstica especulativa que ir culminar na chamada "mstica renana" no sculo XIV. So Boaventura levou a cabo uma sntese magistral entre a mstica especulativa de tendncia dionisiana e a mstica afetivo-especulativa da tradio cisterciense, tendo como paradigma a vida mstica de So Francisco de Assis.

    24. A coerncia da doutrina mstica de So Bernardo e sua vertente especulativa foram magistralmente estudadas por E. GILSON, La thologie mystique de Saint Ber-nard, Paris, Vrin, '1947. Ver igualmente P. DELFGAAUW, Saint Bernard, maitre de l'amour divin, Paris, FAC ditions, 1994, e os estudos reunidos em R. BRAGUE (org.), Saint Bernard et la philosophie, Paris, PUF, 1993. O livro de jEA:'i LECLERCQ, Saint Bernard mystique, Paris, Descle, 1948, oferece uma excelente introduo e uma antologia de textos bernardinos sobre a mstica. Sobre Guilherme de Saint-Thierry, ver a tese de A. BAUDELET, L'exprience spirituelle selon Guillaume de Saint-Thierry, Paris, Cerf, 1985; J. M. DCHANET, Contemplation V, Dictionnaire de Spi-ritualit, II, cais. 1961-1966.

    25. Sobre Ricardo de So Vtor, ver o artigo de J. CHTILLON, Richard de Saint-Victor, Dictionnaire de Spiritualit, XIII, cais. 594-654.

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    FORMAS DA ExPERINCIA MsncA NA TRADIO OciDENTAL

    Sua obra ocupa um lugar proeminente entre os clssicos da ms-tica crist26 Toms de Aquino o artfice de uma "teologia da mstica" - distinta da "teologia mstica" -, na qual a vida con-templativa e o ato da contemplao recebem seu estatuto teolgi-co e adquirem o perfil conceptual que sero reconhecidos como definitivos va teologia catlica27 Por outro lado, ao introduzir na anlise da contemplao mstica, como fruto do dom da sabedoria que acompanha a virtude teologal da caridade, a categoria de origem aristotlica do "conhecimento por conaturalidade"28, San-to Toms delineia uma soluo genial para o problema central da mstica especulativa crist, qual seja, o problema do amor que conhece, do conhecimento (ou cincia) que procede do amor ou que conhece amando. Toms de Aquino se nos apresenta, assim, como o grande mestre da inteligncia espiritual coroada pela con-templao mstica29 - sendo ele mesmo um grande mstico -, ou ainda como o grande doutor do "saber comunicvel" sobre a contemplao (teologia especulativa da contemplao), assim como So Joo da Cruz ser o grande doutor do "saber incomunicvel" (teologia prtica da contemplao)30

    26. A ordenao de toda a teologia contemplao exposta por So BoAVEN-TURA em seus opsculos Breviloquium, Itinerarium mentis in Deum, De reductione artium ad Theologiam. Texto latino e traduo em L. DE BoNI ET AL., Obras escolhidas, Porto Alegre, Sulina, 3-218.

    27. As passagens clssicas de SANTO ToMS a respeito encontram-se na Summa Theologiae, lia. Ilae, qq. 179-182, onde tratada a distino entre vida contemplativa e vida ativa, e a relao entre ambas; nas questes sobre o dom da inteligncia (lia. Ilae, q. 8, aa. 1-8) e sobre o dom da sabedoria (lia. Ilae, q. 45, aa. 1-6). Sobre a doutrina da contemplao em Santo Toms, ver LuciEN RoY, Lumire et Sagesse; la grce mystique dans la thologie de Saint Thomas d'Aquin, Montral, IJimmacule Conception, 1948; P. PHIUPPE, Contemplation V, Dictionnaire de Spiritualit, II, cais. 1~83-1987; J.-P. ToRRELL, Saint Thomas d'Aquin, Maitre spirituel, Friburgo S./ Paris, Ed. Universitaires/Cerf, 1996.

    28. Summa Theologiae, lia. Ilae, q. 4.5, a. 2. 29. Ver Antropologia Filosfica, I, 254-260. 30. Essas expresses so de J. MARITAIN, Saint Jean de la Croix, praticien de la

    contemplation, ap. Les Degrs du Savoir, 615-697, com a ressalva de que a Teologia una, sendo eminentemente especulativa e prtica. Uma exposio magistral da doutrina da contemplao inspirada em Santo Toms deve-se a J.-H. NICOLAS,

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  • EXPERINCIA MSTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OCIDENTAL

    A mstica especulativa na tradio mstica ocidental ir conhe-cer um vigoroso crescimento nos sculos XIV e XV, no contexto histrico e cultural conhecido como Baixa Idade Mdia. No sculo XIV floresce a chamada "mstica renana" e no sculo XV a "mstica flamenga", esta, de resto, estritamente dependente daquela, de modo a justificar-se a expresso "mstica renano-flam.enga", com a qual conhecido o mais significativo movimento espiritual de fins da Idade Mdia. A influncia dos escritos pseudodionisianos toma-se dominante e, por conseguinte, a influncia dos motivos neoplatnicos. Trata-se, pois, de uma corrente mstica na qual o problema do conhecimento do Absoluto, da sua possibilidade, das suas condies, dos seus modos e da expresso do seu objeto ocupa um lugar proeminente. A tendncia intelectualista mais visvel na mstica renana. Como observamos acima sua origem remonta ao ensinamento de Alberto Magno (sc. XIII), e seus principais representantes pertencem ordem de So Domingos: Ulrico de Estrasburgo, o clebre Mestre Eckhart, o beato Henri-que Suso,Joo Tauler31 O estudo da mstica renana desperta atual-mente acentuado interesse e conhece grandes progressos32 Para tanto, contribuem as edies crticas das obras de seus principais representantes, o que permite um conhecimento mais exato de suas fontes, a determinao mais exata de seus principais temas e do seu exato contedo doutrinaP3 Convm lembrar ainda que a mstica especulativa renana desempenhar papel importante na transformao moderna da mstica em filosofia especulativa, que

    Contemplation et vie contemplative en Christianisme, Friburgo S./Paris, d. Universitai-res, 1980, 48-95.

    31. A esse tipo de mstica os historiadores alemes deram o nome de "mstica essencial" ( Wesensmystik), distinguindo-a da "mstica nupcial" (Brautmystik), de car-ter mais afetivo. "Essncia" diz respeito aqui no ao objeto, mas ao modo da contemplao. Ver A. DEBLAERE, Mystique Il, Dictionnaire de Spiritualit, X, co!. 1912. Sobre a distino entre "mstica essencial" e "mstica nupcial", e sua pertinn cia, ver A. DE LiBERA, Introduction la mystique rhnane, Paris, O. E. I. L. 1984, 235.

    32. Para situar essa poca no desenvolvimento da mstica medieval, ver A. DEBLAERE, Mystique Il, Dictionnaire de Spiritualit, X, 1902-1919.

    33. Ver a excelente sntese de A. DE LiBERA na obra citada Introduction la mystique rhnane.

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    FoRMAS DA EXPERINCIA MsTICA NA TRADIO OciDENTAL

    culmina em HegeP4 Por sua vez, a mstica especulativa flamenga, cuja origem os historiadores identificam na comunidade espiritual de Groenandel e no magistrio universalmente reconhecido de seu maior representante,Jan Ruysbroeck (t 1381), apresenta uma vertente afetiva mais marcante do que a mstica renana. Dela proceder a chamada devotio moderna (G. Groote, t 1384, Thomas a Kempis, scs. XIV-XV), que se desenvolve no sculo XV e assinala igualmente o declnio do lan especulativo da mstica renano-flamenga.

    O fim da Idade Mdia assistiu igualmente, importante assinal-lo, a um esforo de sistematizao didtica da mstica crist, inau-gurando um gnero literrio que perdurar at nossos dias. Trata-se de definir o lugar da mstica e, em particular, da mstica especula-tiva, no edifcio da vida espiritual. a poca que v surgir os tratados De mystica theologia, como os de Thomas Gallus e Hugo de Balma (sc. XIII), de H. Herp (Harphius) (sc. XIV), e os do clebre chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson (scs. XIV-XV), conhecido pelas crticas mstica especulativa flamenga e, ao mes-mo tempo, como sistematizador da teologia mstica nas suas duas obras De mystica theologia speculativa e De mystica theologia practica.

    A histria da mstica especulativa crist no Ocidente atinge, pois, seu apogeu em fins da Idade Mdia, para declinar nos in-cios da Idade Moderna. A modernidade ver surgir, em lugar da mstica especulativa, a filosofia especulativa, na trilha do movi-mento geral de secularizao do pensamento35.

    34. Ver K. CoMETH, Hegel und die spekulative Mystik, 76-77. As relaes da mstica especulativa com a notica ps-tomsica so resumidas por A. DE LIBERA, La Philosophie mdivale, (co!. Que sais-je?), Paris, PUF, 1989, 110-113.

    35. A idade de ouro da mstica moderna, ou seja, o sculo XVI espanhol, assinala-se, como sabido, pela inflexo psicolgica que ento dada anlise da vida espiritual (estrutura psicolgica da orao e seus mtodos). Santa Teresa de Jesus a mestra consagrada da anlise psicolgica da experincia mstica, e sua obra tem um eminente carter pedaggico nos caminhos da orao. Ver a sntese recente de T. ALVAREZ, Threse de Jesus (vila), Dictionnaire de Spiritualit, fase. XCVIII (1990): cols. 611-658. So Joo da Cruz pe decididamente em relevo a vertente especulativa da ascenso mstica, tendo esse aspecto de seu ensinamento sido interpretado em perspectiva idealista por J. BARUZI em sua obra clssica Saint Jean de la Croix et le problme de l'exprience mystique, Paris, Alcan, 21931. Uma

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    Com efeito, o destino da mstica especulativa nos tempos mo-demos estar intimamente ligado ao destino da inteligncia espiritua~ rgo prprio da contemplao metafsica e da contemplao ms-tica:l6. A inteligncia espiritual submete-se, a partir de Descartes, inflexo notica determinada pela primazia gnosiolgica e, por conse-guinte, ontolgica do sujeito, em cuja imanncia absorvida a di-menso transcendente do Ser. A cultura profana dos tempos mo-demos assiste, desta sorte, a uma seculari;:p,o da mstica, desenvol-vendo-se em vrias direes e atingindo primeiramente a mstica especulativa na sua inteno de alcanar uma forma supradiscursiva ou intuitiva de conhecimento do Absoluto. A secularizao da mstica comea por atingir o prprio termo "mstica". Da sua significao elevada ao cimo da linguagem teolgica nos tratados De mystica theologia da Baixa Idade Mdia, ele dessacralizado, banalizado e mesmo rebaixado a uma significao pejorativa no clima raciona-lista ou empirista da filosofia dos sculos XVIII e XIX37 Na verda-de, porm, o prprio contedo e a significao profunda da mstica especulativa que sofrem uma profunda transformao ou, mais exatamente, uma completa inverso da direo do seu vetor inten-cional ao longo da cultura e da filosofia modernas. Essa inverso desdobra-se, por sua vez, em duas linhas: a primeira estende-se pelo campo da reflexo filosfica com a formao da metafsica da subjetividade, que atinge sua forma acabada em Hegel; a segunda avana pelo campo da vida cultural e poltica, onde a intenciona-lidade mstica do Absoluto dobra-se s exigncias da absolutizao

    interpretao penetrante, de matiz hegeliano e, sob alguns aspectos, discutvel, a de G. MoRE L, Le sens de l'exstence selon Saint Jean de la Croix, 3 v ois. O estatuto terico da mstica sanjuanista foi magistralmente estabelecido por J. MARITAIN em "Saintjean de la Croix, praticien de la contemplation" e "Todo y Nada", ap. Les Degrs du Savoir, 615-765.

    36. Ver Antropologia Filosfica L 260-271. 37. Ver H. V. LESSING, Mystik, mystisch, Hstorsches Worterbuch der Philosophie VI

    (1984): cols. 268-279 (aqui, co!. 270). A recuperao do termo "mstico", mas j num sentido profundamente diferente da antiga acepo teolgica, tem incio com o romantismo e com LESSING (ibid., 271-272). A acepo teolgica estrita conser-vada na terminologia da teologia catlica. No sculo XX o termo reabilitado filosoficamente na corrente fenomenolgica (Scheler, Heiler etc.) e por H. Bergson.

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    FoRMAS DA EXPERINCIA MsTicA NA TRADIO OciDENTAL

    ps-hegeliana da prxis, vindo desembocar no niilismo moderno e, j agora, ps-moderno. Ambas essas linhas desenrolam-se sob o signo do que foi chamado o "titanismo'\18 - evocando a revolta dos Tits contra os deuses na mitologia grega - da cultura moderna ps-crist. Esse titanismo caracteriza-se pela transfuso de antigos motivos gnsticos no projeto verdadeiramente titnico de inverso radical do anncio cristo da Encarnao do Verbo de Deus: pro-jeto de autodeificao do ser humano na imanncia da sua histria. Tanto na sua vertente terica ou filosfica, quanto na sua vertente prtica, esse projeto define perfeitamente a secularizao da mstica especulativa nos tempos modernos. Aqui a transcrio do especu-lativo no prtico - fenmeno tipicamente ps-hegeliano39 - mos-tra-se igualmente como sendo a transcrio, nos quadros de uma cultura da imanncia, do antigo problema das relaes entre ao e contemplao. A linha terica de imanentizao da mstica especu-lativa caminha, primeiramente, atravs da tradio teosfica alem inaugurada por Jacob Bohme, e cuja influncia sobre o Idealismo alemo conhecida40 Essa linha prolonga-se no Romantismo ale-mo, alimentada justamente pela vizinhana com os grandes siste-mas idealistas4I. No entanto, a herana da antiga mstica especula-tiva foi recolhida sobretudo pela vertente racionalista e idealista da filosofia moderna. A transformao da mstica em filosofia especu-lativa avana, de Espinoza a Hegel, para o reconhecimento de uma

    38. Ver H. U. v. BALTHASAR, Theodramatik, II, I, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1976, 385-391.

    39. essa a ruptura revolucionria do pensamento no sculo XIX estudada na obra clssica de K. LowiTH, Von Hegel z;u Nietz;sche: der revolutioniire Bruch im Denken des XIX]ahrhunderts, Stuttgart, Kohlhammer, 1956 (tr. Fr., Gallimard, 1969).

    40. Ver, sobretudo, H.-R. ScHMITZ (E. R. KoRN),Jacob Boehme et l'avenement d'un homme nouveau, Revue Thomste 78 (1978): 5-31; 561-617; e outros estudos sobre Boehme do mesmo autor na Revue Thomiste, que so utilizados e comentados por Y. FwucAT no captulo "Regard chrtien sur la siguification thologique et mystique de !'aventure philosophique moderne", ap. Mtaphysique et Religion: vers une sagesse chrtienne intgrale, Paris, Tqui, 1989, 159-172. Sobre a dimenso "pro-ftica" do pensamento de Boehme, ver H. DE LUBAC, La postrit spirituelle de joachim de Piore, Paris/Namur, Lethielleux/Culture et Vrit, 1979, I, 218-225.

    41. Ver E. BENZ, Les sources mystiques de la philosophie romantique allemande, (tr. fr.), Paris, Vrin, 1968.

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  • ExPERINCIA MsTICA E FILOSOFIA NA TRADIO OciDENTAL

    identidade entre ambas sob a gide da Razo dialtica ( VernunftJ, que a clarividncia hegeliana reconheceu e proclamou em face da rejeio da mstica pelas filosofias do Entendimento ( Verstand} 4~. O desfecho dessa absoro da mstica pela filosofia ter lugar, aparen-temente, na evoluo do pensamento de M. Heidegger, com o movimento inverso da dissoluo da filosofia numa espcie de pensamento mstico-potico, visivelmente imanentista, do Ser43

    A transformao, operada nos tempos modernos, da mstica especulativa em metafsica da subjetividade mostra, desta sorte, uma flagrante analogia com a transformao da Teologia especu-lativa em Filosofia da Religio, obedecendo, de resto, a uma l-gica que imanente formao da modernidade". Em ambos os casos, a primazia do Sujeito impe suas exigncias em confronto com a transcendncia metafsica do Ser. A teologia e a mstica devem, pois, submeter-se ao que Hegel denomina "a grandeza do ponto de vista do mundo moderno, esse aprofundamento do su-jeito em si, vem a ser, que o finito sabe-se como infinito e est, portanto, enredado com a oposio que impelido a dissolver"45

    assim que a dissoluo da oposio entre o finito e o infinito, designada como tarefa primordial da hybris da modernidade, atinge do modo mais radical a mstica especulativa, no momento em que

    42. Ver Einleitung in der Geschichte der Philosophie, (ed. Hoffmeister), Leipzig, Meiner, 1940, 209-210; Vorlesungen ber die Philosophie der Religion, (ed. Jaeschke), Teil 3, Hamburgo, Meiner, 1984, 205-208 (sobre o contedo especulativo do mys-trion): ver a nota do editor, p. 353; e a importante nota de HEGEL sobre as relaes entre filosofia e religio, Enzyklopiidie der philosophischen Wissenschaflen ( 1830), 573, nota. A leitura filosfica da mstica especulativa em Hegel obedece ao modelo neoplatnico, em que h continuidade entre o movimento dialtico e o seu termo (ver E. v. lvANKA, Plato Christianus, 453). Assim, a componente afetiva dos msticos tardo-medievais e a dialtica amor-conhecimento ficam fora da sua perspectiva. A filosofia como mstica, para Hegel, ter, em suma, seu fundamento na suprassun-o da religio na filosofia. Sobre a compreenso hegeliana do mistrio, ver E. BRITO, Dieu et l'tre d'aprs Thomas d'Aquin et Hegel, (co!. Thologiques), Paris, PUF, 1991, 42-56.

    43. Ver supra, nota 15, cap. I. 44. Ver H. C. LIMA V AZ, Religio e modernidade filosfica, ap. M. C. L. BINGEMER

    (org.), O impacto da modernidade na religio, So Paulo, Loyola, 1992, 83-107. 45. Vorlesungen ber die Philosophie der Religion 111 {Wt?rke, ed. Moldenhauer-Mi-

    chel, 17, p. 207).

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    FoRMAS DA EXPERINCIA MsTICA NA TRADIO OciDENTAL

    o alvo da unia mystica deixa de ser a profundidade insondvel do Deus transcendente e posto na Histria ou, mais exatamente, na prxis histrica do ser humano, absolutizada como prxis demirgica de um mundo onde impera a total autrkeia do ator histrico, celebrando o triunfo de um titanismo historicamente realizado. Desde esse ponto de vista, permitido considerar a teoria e a prtica da modernidade como o imenso processo da gnese do homem novo a partir do esprito da Mstica, para usar uma expresso nietzschea-na que j foi usada por Karl Joel para falar do nascimento da filosofia46 Com efeito, lcito supor que a poderosa energia espi-ritual que elevava o homem antigo-medieval em direo ao theon, ao divino, reflui nos tempos modernos para o prprio homem e arrasta-o nessas correntes que foram justamente denominadas de humanismo ateu47 Com efeito, o destino da mstica especulativa, na sua transmutao moderna em metafsica da subjetividade e em absolutizao da prxis, pode ser decifrado nas vicissitudes desse surpreendente e desafiador fenmeno que marca de maneira pro-funda a humanidade ocidental, e pode ser considerado o doloroso parto da primeira civilizao no-religiosa da histria. O tema do humanismo ateu objeto de uma vasta literatura. Lembramos ape-nas que ele conhece fases em seu desenvolvimento48, e que a di-reo de fundo desse desenvolvimento pode ser traada a partir do prometesmo dos incios at esse niilismo que se difunde na nossa civilizao como ltimo avatar da humanizao da mstica especu-lativa, banalizada na frentica mstica do consumo que se alastra sob a premncia do eras moriemur (amanh morreremos) 49 .

    46. K. JoEL, Die Geburt der Philosophie aus dem Gezste der Mystik ( 1906). 4 7. A obra clssica de H. DE LuBAC, Le drame de l 'humanisme athe, Paris, Spes,

    1945 (nouv. d., Cerf., 1983), embora em parte ultrapassada quanto documen-tao, continua de indiscutvel atualidade. A gnese do "novo homem" , por sua vez, analisada magistralmente por DE LcBAC em "La recherche d'un homme nouveau", ap. Ajfrontements mystiques, Paris, Tmoignage chrtien, 194~), 17-92.

    48. Uma tentativa de descrio dessas fases em H. C. LI~!.\ VAz, Religio e sociedade nos ltimos vinte anos ( 1965-1985), Sintese 42 ( 1988): 27-47.

    49. Em sua primeira obra, Apokalypse der deutschen Seele, 3 vols., Salzburg, A. Pustet, 1937-1939. cuja importncia foi ofuscada pela guerra, H. U. HJ:\ BA!:I'IIASAiZ caracteriza trs fases do atesmo, situando-as sob o signo de Prometeu (das Prome-

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  • ExPERINCIA MsTicA E FILosoFIA NA TRADIO OciDENTAL

    O sculo XIX foi, sem dvida, a poca que assistiu s mais espetaculares inverses da mstica especulativa - do prometesmo marxiano ao dionisismo nietzscheano50 Foi formulada mesmo a tentativa de nele se demonstrar, como sendo sua aspirao mais profunda, perseguida tenazmente, aquela que pode ser considera-da a essncia da inverso a que submetida a mstica especulativa na modernidade: a identidade entre mito e razo e sua celebrao nas diversas formas da religio da imanncia51 Essas formas en-contram as expresses mais representativas seja nos mitos liter-rios da idade romntica, seja nas gnoses filosficas, seja, enfim, nas utopias poltico-sociais que, germinando no sculo XIX, iro produzir em nosso sculo os frutos amargos que todos conhece-mos. Todas essas expresses podem ser, talvez, condensadas no lema religio da Humanidade, que A. Comte celebrizou e que de-finiu, para muitos, o espao mstico de uma forma de religiosidade ps-crist intensamente vivida52 Quanto utopia sociopoltica, representa, sem dvida, a forma mais dramtica de secularizao da mstica especulativa, aquela cuja incidncia nas peripcias da histria real segue uma trajetria paradigmtica para a definio das relaes entre mstica e poltica: a trajetria da mstica e do mito da Revoluo53 Aqui cumpre-se finalmente o destino da ms-tica especulativa na sua transmutao moderna em mstica da imanncia, manifestado no "desgnio que inspirou a vertente titnica

    theusprinzip), de Dionsio (das Dyonisiusprinzip) e da morte (das Thanatosprinzip). Um vigoroso esboo do tipo histrico que denominado o homem "sem medida" ( ohne Mass) - perfeita anttese do mstico em seu excessus in Deum - apresentado pelo mesmo autor em seu Theodramatik, 11, 1, Der Mensch in Gott, 382-393. Ver tambm M. CARROUGES, La mystique du surhomme, Paris, Gallimard, 1947.

    50. Ver a anlise penetrante sobre "Nietzsche mystique" de H. DE LuBAc, Affrontements mystiques, 143-183.

    51. a tese desenvolvida por PH. MuRAY, Le dix-neuvime sicle travers les ges, Paris, Denoel, 1984 [ver recenso em Sntese 34 (1985): 117-122].

    52. A propsito do caso exemplar de A. LorsY, ver a obra recente de E. PouLAT, Critique et Mystique: autour de Loisy ou la conscience catholique et l'esprit moderne, Paris, Le Centurion, 1984, 217-306. Ver igualmente P. BNICHOU, Le temps des prophtes, Paris, Gallimard, 1977.

    53. Descrevemos brevemente essa trajetria no texto "Destino da Revoluo", Sntese 45 (1989): 5-12.

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    FoRMAS DA EXPERINCIA MsTICA NA TRADIO OciDENTAL

    do Romantismo alemo, qual seja, o de dirigir para a imanncia do tempo e da histria - ou para o absoluto da Natureza - as torrentes de aspirao mstica abertas no mais profundo da alma humana pelo dom sobrenatural da graa54

    b. A mstica mistrica Essa designao , etimologicamente, um pleonasmo, pois

    "mstica" e "mistrio" provm da mesma raiz55, e toda mstica , por definio nominal, mistrica. Mas a denominao de "mistri-ca" atribui-se convencionalmente a uma fo!ma de experincia do divino (theinn) ou do "deus" (thes) que floresceu nos antigos cultos mistricos ou iniciticos da tradio grega. A experincia de Deus