exmo(a) juiz(a) de direito da comarca de conceiÇÃo do … · 2020-05-15 · do chamado...
TRANSCRIPT
EXCELENTÍSSIMO(A) JUIZ(A) DE DIREITO DA COMARCA DE ITABIRITO – MG
A desproteção de um bem cultural aniquila as
raízes formadoras de uma nação. Apunhala o
povo na forma mais severa, não só a sua
dignidade humana (também princípio
fundamental da República) como também extirpa
a própria identidade personificada do meio em que
se vive - Celso Antonio Pacheco Fiorillo e
Marcelo Abelha Rodrigues
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, pelos
Promotores de Justiça ao final assinadas, com fulcro nos artigos. 129, III, 216 e 225 da CF/88,
e demais dispositivos legais abaixo invocados, embasado nos autos do Inquérito Civil nº.
MPMG-0319.14.000065-8, vem à presença de Vossa Excelência propor a presente:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL
COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA
Em face do MUNICÍPIO DE ITABIRITO/MG, pessoa jurídica de direito público
interno, inscrita no CNPJ com o n.º 18.307.835/0001-54, a ser citado na pessoa do seu
Prefeito Municipal, Sr. Alexander Silva Salvador de Oliveira, com endereço na Avenida
Queiroz Júnior, n.° 635, Centro de Itabirito/MG, CEP n.° 35450-000;
Pelas razões de fato e de direito adiante expendidas:
I – DO OBJETO DA LIDE
O objeto da presente ação civil pública em defesa do patrimônio cultural está
circunscrito na obtenção de provimento judicial, de natureza declaratória, que afirme o valor
cultural da área referente ao Complexo Arqueológico de Arêdes, localizado no Município de
Itabirito/MG, para fins de promoção e proteção para as presentes e futuras gerações.
II - DOS FATOS
1. O local conhecido como Arêdes1 pertence ao município de Itabirito e encontra-se
implantado próximo à antiga mina de Cata Branca e ao Pico do Itabirito, integrando a região
do chamado Quadrilátero Ferrífero.
A história de Arêdes é a história da ocupação da região central de Minas Gerais e
produziu vestígios que resistiram ao tempo e são valiosos elementos para compreensão da
dinâmica social da região à época do Ciclo do Ouro.
Segundo o Relatório Final da Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes2,
A memória coletiva local aponta ainda para a presença da tribo
dos Aredês, Arêdes ou Aredez, grupo indígena habitante da Cadeia do
Espinhaço na altura das cabeceiras do Rio das Velhas que podem ter
sido os primeiros povoadores da região de Itabirito. Ainda, há
rumores que o topônimo local de Arêdes seja uma referência ao
sobrenome de um colonizador português. Todavia, desconhecem-se,
até o momento, quaisquer documentos que comprovem tal afirmação.
(...) a Fazenda Arêdes remonta ao primeiro quartel do século
XVIII, tendo pertencido à família Abreu. Dedicada à exploração do
ouro, a propriedade teria entrado em decadência no decorrer da
segunda metade do século XVIII. (...) A Fazenda Arêdes é citada no
Traslado do testamento do Alferes Maximo Rodrigues de Abreu,
1 Antes da colonização do território pelos portugueses, a região de Itabirito contava com a presença de várias tribos
indígenas, sendo que a origem do nome Arêdes pode estar associada à existência de uma destas tribos, ou, segundo uma outra versão, a denominação seria o sobrenome de um português que colonizou a região. 2 RELATÓRIO FINAL: Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes – Município de Itabirito/MG Cooperativa dos Empreendedores em Ações Culturais – Cooperativa Cultura e Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG - Coordenação: Prof. Carlos Magno Guimarães.
realizado no ano de 1817, como propriedade do Alferes adquirida de
sua mãe, Dionísia de Abreu, através de compra. O Alferes é citado por
Eschwege (1814) como proprietário da lavra Arêdes, onde
trabalhavam 16 escravos e produzia-se 50 oitavas de ouro. Em
documento datado de 1822 deu-se o auto de seqüestro dos “bens de
Manoel Roiz de Abreu, testamenteiro de Maximo Rodrigues de
Abreu”, segundo o qual a herança das propriedades localizadas em
Arêdes deveriam obrigatoriamente passar a fazer parte do cabedal de
Joaquim Dias Leite, também citado por Eschwege como proprietário
da lavra Arêdes, onde trabalhavam cinco escravos. Tratava-se de (...)
huma Fazenda com lavras, seos capoens com campos de criar, cazas
de vivenda, senzalas, capela, huma caza grande de pedra que serve de
venda, todas cobertas de telha com suas agoas respetivas (...).
Posteriormente a propriedade foi adquirida por Francisco de Sousa
Coutinho, o Conde de Linhares. Em 1832 a concessão de exploração e
lavra das minas de ouro de Arêdes foi adquirida pela empresa de
capital inglês, Brazilian Company, que explorou a região até 1844,
quando, em função de um acidente, foi fechada e vendida para a St.
John d’El Rey Mining Company, Limited, cujas atividades se
concentraram mormente na Mina de Morro Vermelho em Nova Lima.
A partir deste período Arêdes foi desativada. Somente entre fins do
século XIX as terras próximas ao Pico do Itabirito foram revalorizadas
para a extração do minério de ferro. (...)
No que se refere aos vestígios identificados, é possível dizer que os mesmos remetem
às diferentes atividades econômicas e ao cotidiano da população que habitou e explorou a área.
Considerados em grandes tipos, podem ser identificados
vestígios relacionados à atividade de mineração, como canais, arrimos
e cortes, açudes/tanques, montes de refugo/rejeito, cavas, áreas de
desmonte, mundéus, encabeçamentos de bicame; vestígios associados
à pecuária, como currais, muros de divisa e áreas de pastagem;
vestígios relacionados ao comércio, principalmente no conjunto
principal de habitação, o que foi inferido principalmente pela
documentação realizada; e vestígios associados à religiosidade, sendo a
capela o mais significativo exemplo. Foram averiguados ainda
vestígios associados à escravidão, atestados pela existência de uma
senzala, além de outros indícios que apontam para um trabalho
escravo coletivo sob um comando unificado; e vestígios que remetem
ao cotidiano do local, localizados principalmente no entorno das
habitações. Um exemplo disso são os vestígios de um moinho (que
remete a uma atividade de transformação).
2. Desta feita, segundo o Relatório Final da Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre
Arêdes, a área abriga um significativo conjunto de ruínas, que, associado a vários outros
vestígios arqueológicos (canais, catas, muros de contenção) permite considerá-la como um
verdadeiro “complexo arqueológico”, apresentando grande potencial para estudos e
pesquisas.
De fato, a região estudada apresenta expressivo acervo arqueológico, a maior parte
relacionada às antigas atividades de mineração de ouro, dentro do contexto do Ciclo do Ouro,
definindo sua relevância para a História de Minas Gerais, apesar do enorme impacto
provocado por mineradoras nas últimas décadas.
A relevância, entretanto, não se circunscreve ao século XVIII, adentrando pelo século
XIX no contexto da implantação das grandes mineradoras estrangeiras, como ocorreu no caso
das Minas de Cata Branca. Os vestígios arqueológicos de maior visibilidade são certamente
aqueles constituídos pelas estruturas remanescentes de antigas edificações. As ruínas de
Arêdes, dentre as quais se destaca a capela, os currais e a provável senzala, possuem presença
marcante na paisagem impactada em que se encontram inseridas. São estruturas construídas
em alvenaria de pedras que ainda se encontram bem preservadas.
Outras importantes ocorrências arqueológicas podem ser identificadas na região, dentre
as quais pode-se destacar lavras, galerias, canais, muros, tanques, montes de rejeito e trilhas.
3. O valor cultural do Complexo Arqueológico de Arêdes é, portanto, inegável.
Expressamente, o Relatório Final da Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes
conclui que:
A estratégia adotada para a prospecção arqueológica permitiu
captar a relevância do Complexo de Arêdes. A área de ocorrência dos
vestígios arqueológicos é muito maior do que aquela imaginada
inicialmente, bem como a riqueza dos vestígios nela localizados, que
são de grande expressão para estudos mais aprofundados visando
compreender a dinâmica das atividades relacionadas à mineração
colonial e provincial desenvolvida em Minas Gerais. É necessário
reafirmar a necessidade de se preservar esse sítio que guarda um
importante acervo de informações que irá contribuir para a
reconstituição do processo histórico das Minas Gerais dos séculos
XVIII e XIX.
No mesmo sentido, o Laudo Técnico n º 32/2013 produzido pela CPPC concluiu que
Deve-se considerar que o patrimônio arqueológico constitui
testemunho essencial sobre as atividades humanas do passado.
Portanto, sua preservação é indispensável não apenas em nome das
gerações futuras, como também do ponto de vista da produção do
conhecimento científico. (...)
A região que compreende a Estação Ecológica de Arêdes
apresenta elevado potencial arqueológico, sobretudo, no que diz
respeito à Arqueologia Histórica, tendo em vista que abrigou, dentre
outros, grandes empreendimentos minerários ao longo dos séculos
XVIII e XIX. Embora a região continue sendo intensamente
explorada e já tenha sofrido danos irreversíveis, os vestígios
arqueológicos remanescentes possuem inegável relevância do ponto
de vista científico-cultural. Paradoxalmente, as ocorrências
arqueológicas presentes na região, que tiveram origem a partir da
mineração, estão sob risco de impacto imediato justamente em função
da prática das atividades minerárias que ainda imperam na região. Os
interesses de exploração e aproveitamento de recursos minerais no
entorno da Estação Ecológica de Arêdes são diversos e crescentes,
comprometendo a integridade do conjunto arqueológico que nela se
encontra inserido. O Complexo Arqueológico de Arêdes possui valor
cultural, ou seja, possui atributos e significados que justificam a sua
preservação. Acumula valores paisagísticos, turísticos, históricos (de
antiguidade), de testemunho, raridade e identidade. Portanto, sugere-se
sua proteção por meio do tombamento municipal. O Poder Público,
através desta medida, estará contribuindo para assegurar a proteção
deste importante patrimônio que se insere no universo dos bens
culturais relevantes do município de Itabirito.
O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais - IEPHA,
por meio do ofício n.° 322/2013 (fl. 54 do IC), reconheceu a necessidade de proteção do
Complexo Arqueológico de Arêdes:
(…) este Instituto por meio da Diretoria de Proteção e Memória
avaliou que, realmente, o Complexo Arqueológico de Arêdes,
Situado no Município de Itabirito, merece receber proteção não
só pelo Valor Cultural, como também para minimizar os danos
provocados pela atividade mineradora, presente na região (...)
Ainda, o laudo CEAT ID 20662573, elaborado pela Central de Apoio Técnico do
Ministério Público estabelece:
A região que compreende a Estação Ecológica de Arêdes
apresenta elevado potencial arqueológico, sobretudo, no que diz
respeito à Arqueologia Histórica, tendo em vista que abrigou, dentre
outros, grandes empreendimentos minerários ao longo dos séculos
XVIII e XIX. Embora a região continue sendo intensamente
explorada e já tenha sofrido danos irreversíveis, os vestígios
arqueológicos remanescentes, ainda que inseridos numa
paisagem profundamente impactada, possuem inegável
relevância do ponto de vista científico-cultural.
No mesmo sentido, manifestou-se o IEF4:
(...) Desta maneira, considerando a questão patrimonial,
Arêdes, visto enquanto um conjunto arqueológico, apresenta grande
potencialidade para gerar novos conhecimentos para a história do
Estado de Minas Gerais, e assim necessita de medidas que o
3 CEAT – Laudo Técnico - ID: 2066257 - SISCEAT: 16154645 – Disponível em http://patrimoniocultural.blog.br/wp-content/uploads/2018/02/Protocolo-CEAT-ID-2066257-PAAF-0024.12.007.722-7-an%C3%A1lise-da-Esta%C3%A7%C3%A3o-Ecol%C3%B3gica-de-Arêdes.pdf 4 Apud CEAT - SGDP: 2545221/CPPC: Parecer Técnico 06/2015 – Disponível em http://patrimoniocultural.blog.br/wp-content/uploads/2018/02/SGDP-2545221-Esta%C3%A7%C3%A3o-Ecol%C3%B3gica-de-Ar%C3%AAdes-EEA.pdf
preservem de forma integral. Além de ser um patrimônio cultural,
este local também possui potencial para a realização de
pesquisas científicas voltadas para a arqueologia e recuperação
de áreas mineradas.
Ainda, o laudo técnico produzido pelo Instituto Prístino (IP. 016.2018):
A expressão deste sítio do ponto de vista arqueológico,
histórico, cultural e paisagístico é tamanha que todos os estudos
consultados formam posição unânime acerca da sua relevância e
necessidade premente de conservação, por caracterizar uma
unidade produtiva diversificada do período colonial. Os primeiros
registros históricos são de 1723, no período colonial, e também há
evidências de uso e ocupação ao longo do século XIX e XX. Foram
reconhecidos vestígios de atividades diversas que conformaram,
no passado, um núcleo produtivo e populacional expressivo a
ponto de ter sido mencionado por diversos viajantes, autoridades e
cronistas históricos.
Por este motivo, os vestígios identificados caracterizam uma
das poucas unidades arqueológicas que ainda detém sua
integridade material, contextual, sintática e paisagística na região
das minas coloniais, atual Quadrilátero Ferrífero. Por esta
completude, poderia ser considerado o testemunho arqueológico
histórico de maior expressão da região, com caracteres
representativos de outros sítios arqueológicos ao mesmo tempo
em que apresenta acentuada singularidade em relação aos demais.
Silva (2016) assim caracteriza alguns valores arqueológicos imbricados
no sítio em questão, exaltando sua relevância:
“O Complexo de Arêdes pode ser um importante testemunho
de antigas atividades agrícolas que caminhavam em paralelo com as
atividades de extração aurífera, representando um dos raros vestígios
dessa atividade e pode auxiliar a redimensionar a importância
dessas atividades na historiografia.” Silva, p.349
De se mencionar que a riqueza existente na região de Arêdes sempre foi notória na
sociedade. Em 26 de agosto de 2005, foi publicado no jornal “Gazeta de Itabirito5”, artigo
5 SANTOS, Célio dos. Gazeta de Itabirito, 26/08/2005.
escrito por Célio dos Santos, intitulado “Região dos Arêdes – Patrimônio Natural, Ambiental,
Histórico e Turístico”, donde se extrai:
Felizmente, ainda guarda, apesar de relegada à própria sorte,
características e vestígios da era do ciclo do ouro, como catas; sítios
arqueológicos; diversas e magníficas edificações de pedras, “em
ruínas”, - dignas de pesquisa e estudos de avaliação pelo Conselho
Consultivo Municipal de Patrimônio Histórico e Artístico de Itabirito,
(que atualmente é tão bem composto por arquiteto, jurista,
historiadores e outros). Espera-se que este colendo Conselho
promova “o processo de Tombamento Municipal desta Região”,
contemplando também o entorno e não só o maciço do Pico de
Itabirito mas também as ruínas da Mina de Cata Branca. Fazendo o
necessário encaminhamento ao IEPHA e ao IPHAN para que
procedam os respectivos tombamentos estadual e nacional. Contrasta
com uma paisagem de beleza cênica, notadamente exuberante
vegetação de matas de galeria, cerrados e campos rupestres; inúmeras
“nascentes” e as de “águas minerais” que jorram naturalmente como
um poço artesiano; córregos e o “Ribeirão do Silva com água classe I,
que ó o principal tributário formador do Rio Itabirito. Essa região é
cortada pela histórica e lendária “Estrada do Prata”, que segue pelas
“Calçadas e passa defronte a Fazenda do Cocho, contornando o lado
Sul do Pico do Itabirito – Monumento natural – segue pela Fazenda
do Sapecado (hoje, com trecho interrompido pela extração do minério
da Mina do Sapecado), continuando e atravessando o córrego do
Bugre (que secou causado pela atividade mineraria, hoje com vazões
intermitentes, através de bombeamentos) ; passando pelo Arêdes em
direção à Moeda (atravessa a Br 040). Foi um importante elo de
ligação entre Itabirito e a cidade de Moeda, por onde passavam os
tropeiros transportando alimentos para abastecer os diversos garimpos
da época. Nessa região há significativas jazidas de minério de ferro e
minério de ferro com alto teor de manganês, que vem sendo
explorado de modo questionável.”
No mesmo sentido, a obra Arêdes6: Recuperação Ambiental e Valorização de um Sítio
Histórico-Arqueológico:
6 Arêdes: recuperação ambiental e valorização de um sítio histórico-arqueológico. Alenice Baeta e Henrique Piló. Belo Horizonte: Orange Editorial, 2016
(…)
A história de Arêdes se confunde com a história da ocupação
da região central de Minas Gerais. A substituição do domínio indígena,
a sedimentação dos colonizadores, a experiência inglesa e a expansão
indiscriminada da exploração mineral representam, conforme o
tempo, mudanças nas formas de significar o espaço e de exercer o
poder.
Por isso, a conservação de suas terras e, principalmente, de
suas ruínas, longe de ser um mero fetiche preservacionista, significa a
possibilidade de compreender o passado de Arêdes e de refletir sobre
o modelo de desenvolvimento sustentável e de proteção patrimonial e
ambiental que tanto se almeja. (p. 124)
(…)
Arêdes apresenta grande relevância de ordem ecológica e
cultural, contudo ela não foge à exceção quanto às pressões políticas
para atender interesses econômicos. Devido à presença de atividades
minerárias no seu entorno, houve tentativas de buscar, através do
poder legislativo, a desafetação de partes importantes da Unidade de
Conservação em benefício da exploração mineral. (p. 352)
A preservação das origens mais antigas das populações
coloniais mineiras é fundamental para que nossa sociedade mantenha
suas referências históricas no tempo e no espaço para evitar o
desenraizamento e o esfacelamento identitário, tão marcantes no
mundo contemporâneo. Cabe ao poder público promover sua efetiva
proteção, a fim de que a sociedade mineira tenha assegurado o direito
de ter acesso tanto a um meio ambiente saudável, tanto o seu
patrimônio arqueológico.
Se os olhos são a janela da alma, as inúmeras janelas
remanescentes de Arêdes são os olhos que testemunharam as
transformações do uso e ocupação da paisagem ao longo do tempo,
de um empreendimento agrominerário baseado na mão de obra
escrava, na criação de uma unidade de conservação de proteção
integral. Segundo o arqueólogo Julian Thomas, os elementos
antrópicos de uma paisagem também fazem parte da cultura material
que tem o poder de nos provocar diversas percepções sensoriais a
partir das cores, dos cheiros, dos sons, das dimensões, das formas, etc.
(THOMAS, 2001, 2008; MACGRECOR, 2013), e a monumentalidade
do Complexo Arqueológico de Arêdes, principal atrativo dessa
Unidade de Conservação, tem a capacidade de atrair, surpreender e
luminar.
Diante da notória relevância cultural do complexo de Arêdes, foi então elaborado um
dossiê7 para seu tombamento, que conclui que
(...) O Complexo Arqueológico de Arêdes, localizado na
Estação Ecológica de Arêdes, Zona Rural do município de
Itabirito/MG, apresenta grande valor histórico, arqueológico e
ambiental que permitem indentificá-lo com um Bem Cultural que
merece ser tombado, para que se efetive sua preservação, conservação
e valorização.
(…)
Considerando-se os riscos de impacto que a região vem
sofrendo em função da atividade das empresas mineradoras situadas
no entorno, o tombamento municipal permitirá ao Poder Público de
Itabirito atuar, ao lado do Instituto Estadual de Florestas, e do
Ministério Público Estadual como mais um parceiro, fortalecendo os
mecanismos de proteção do patrimônio Cultural.
Registre-se que o mencionado dossiê, acostado às fls. 385/533 do Inquérito Civil que
instrui a presente ação, com cópia às fls. 124/265, indica o tombamento de um perímetro de
23.266,68m e área de 1.19663ha, coincidente com a estrutura fundiária de propriedade do
Estado de Minas Gerais, delimitado pelos pontos descritos às fls. 482-verso/492-verso. O
perímetro de entorno de tombamento também foi indicado no dossiê, conforme se verifica às
fls. 494/498.
Há que se destacar que, diante da importância da região, em 14 de junho de 2010, foi
criada a Estação Ecológica de Arêdes, como uma Unidade de Conservação de proteção
integral do Estado de Minas Gerais, por meio do Decreto n.º 45.397, com área de
1.157,8556ha e perímetro de 22.523,29m, compreendida dentro dos limites do município de
Itabirito.
A Estação Ecológica de Arêdes foi criada, dentre outras finalidades, para promover o
desenvolvimento de pesquisas científicas e proteção do patrimônio arqueológico. Segundo o
artigo 4º do Decreto Estadual n.º 45.397, de 14 de junho de 2010:
7 Dossiê de Tombamento do Complexo Arqueológico de Arêdes. Elaborado por Adriana Paiva de Assis e Carlos Magno Guimarães. p. 519
Art. 4º – São declarados essenciais aos objetivos de
conservação e manejo da Estação Ecológica de Arêdes:
I – o complexo arqueológico de Arêdes e todas as suas
ocorrências e vestígios;
II – os antigos conjuntos de ruínas das Fazendas Arêdes e
Águas Quentes: casa sede, senzala, capela e curral de pedras;
(...)
Segundo Nota Técnica para a criação da Estação Ecológica de Arêdes, elaborada pelo
IEF em junho de 2010, a inclusão de tal unidade na categoria Estação Ecológica, teve como
principais justificativas justamente:
Estudos Preliminares de Aproveitamento e Valorização
da Área, elaborados pela Fundação João Pinheiro (1976), previam a
potencialidade para a instalação de um Centro de Altos Estudos;
Recomendações contidas no Estudo de Prospecção
Arqueológica (2010), que ressaltam a necessidade de desenvolvimento
de projetos de pesquisa para que o patrimônio possa vir a ser
conhecido e sua apresentação ao público possa ser viabilizada através
da criação de uma infraestrutura adequada às visitações. Nessa
perspectiva, são fundamentais ações de recuperação ambiental e a
adoção de critérios rigorosos para evitar que a área e o patrimônio
arqueológico continuem a ser alvo de impactos destrutivos e de
vandalismo.
Possibilidade de visualização do histórico e
desenvolvimento das atividades minerárias, levando-se em conta desde
os sítios arqueológicos ali existentes (ciclo do ouro) até os processos
atuais ainda em atividade no entorno da unidade de conservação;
Existência de sítios arqueológicos e necessidade de
estudos que possibilitem sua compreensão, conservação, restauração
(quando cabível) e melhor destinação;
Ocorrências Geológicas únicas que possibilitam a
interpretação dos eventos tectônicos e vulcânicos de formação de
nosso planeta;
Inexistência de atrativos comumente destinados ao uso
público turístico em unidades de conservação;
A criação da Estação Ecológica significou o primeiro passo para proteção de uma
unidade de extrema relevância, cuja área é de propriedade do Estado de Minas Gerais (CETEC
e IEF), sendo uma das poucas Unidades de Conservação que não apresentam problemas com
regularização fundiária.
O laudo elaborado pelo Coordenador do Laboratório de Arqueologia da
Fafich/UFMG esclarece que
A área da Estação Ecológica de Arêdes contém (em seu
espaço delimitado) um imenso acervo arqueológico que está ligado às
origens da colonização das Minas Gerais através da atividade
minerária, (que inclusive determinou o nome do próprio estado). O
referido acervo não está limitado pelo contorno da Estação ecológica,
mas ultrapassa, de muito, os seus limites. (...) Os diferentes tipos de
vestígios arqueológicos configuram um imenso conjunto o que
evidencia sua importância nos contextos da História de Minas Gerais
dos séculos XVIII e XIX. (...)
A proteção do patrimônio arqueológico contempla ainda a
possibilidade de proteção/recuperação ambiental. Determinados tipos
de vestígios arqueológicos criam espaços protegidos para a fauna e a
flora, possibilitando assim recuperação e a preservação da
biodiversidade no contexto ambiental em que estão inseridos.
Exemplos deste tipo são inúmeros na Estação Ecológica de Arêdes.
Outro aspecto que deve ser destacado: o potencial
acadêmico/educacional que a Estação Ecológica de Arêdes tem
apresentado desde sua criação. Professores da UFMG têm se
beneficiado da Estação Ecológica na condição de sítio-escola, onde
alunos de diferentes cursos têm oportunidade de estabelecer contatos
com múltiplos aspectos da realidade ambiental atual e/ou
arqueológica, que remete ao passado.
4. No entanto, como será exposto, a criação da unidade de conservação não foi medida
suficiente para garantir a proteção deste importante patrimônio cultural mineiro, que se
encontra ameaçado.
4.1. Apesar do inegável valor cultural da região de Arêdes, o Município de Itabirito
está se esquivando de proceder ao tombamento do Complexo Arqueológico de Arêdes, por
motivos que não guardam relação com seu valor cultural.
Conforme verifica-se do Inquérito Civil Público, o Ministério Público recomendou ao
município de Itabirito - Recomendação Conjunta n.° 02/2013 - a abertura de procedimento
administrativo objetivando a efetivação do tombamento de todo o Complexo Arqueológico de
Arêdes.
Entretanto, decorridos quase cinco anos da expedição da mencionada recomendação, o
tombamento não foi efetivado pelo Município de Itabirito.
Não obstante a existência de parecer subscrito pelo Secretário Municipal de Patrimônio
Cultural e Turismo de Itabirito, manifestando-se de forma favorável à deliberação do Conselho
Deliberativo e Consultivo Municipal do Patrimônio Cultural e Natural de Itabirito quanto ao
tombamento municipal do Complexo Arqueológico de Arêdes, a Secretaria Municipal de
Patrimônio Cultural e Turismo, por meio do Memorando n.° 033/2015 (fls. 116/119),
informou à Procuradoria do Município de Itabirito que, em reunião do Conselho Deliberativo
e Consultivo Municipal do Patrimônio Cultural e Natural local, dois conselheiros
representantes do Poder Público alegaram que a realização do tombamento do Complexo
Arqueológico de Arêdes, na forma sugerida pelo dossiê, “traria um comprometimento inconveniente
para o desenvolvimento econômico do município”. Resta patente que tais conselheiros estão subjugando
o relevantíssimo valor cultural de Arêdes ao interesse econômico de empresas mineradoras.
Em declarações prestadas junto ao Ministério Público, no dia 1° de março de 2018,
Ubiraney de Figueiredo Silva, Secretário Municipal de Cultura e Presidente do Conselho
Municipal de Patrimônio Cultural de Itabirito, ao ser indagado quanto ao valor cultural do
Complexo Arqueológico de Arêdes, “respondeu que não há dúvida sobre o valor cultural do bem, pois as
referências dizem respeito a trajetória do desenvolvimento histórico-cultural cidade.” (fl. 705-verso do IC).
Contudo, o Conselheiro Ubiraney também afirmou que não houve a devida proteção
do complexo arqueológico porque alguns conselheiros alegaram uma série de situações, “como o
raio de proteção muito grande”, sendo que “fizeram várias tentativas de diminuir essa área e os impactos que
causariam, principalmente quanto à ocupação urbana, uma vez que a cidade tem possibilidade de crescimento
para aquela região. (Fls. 705-verso e 706)
De se destacar, contudo, que a área do Complexo Arqueológico de Arêdes para a qual
se pretende tombamento pertence ao Estado de Minas Gerais e é cercada de minerações, não
havendo previsão de ocupação urbana no local.
Ao seu turno, Maura Fátima Mendonça de Goffredo Costa dos Santos, que integrou o
COMPATRI de Itabirito, em declarações prestadas ao Ministério Público, conforme fl. 707 e
verso, afirmou que “acredita que há uma confusão grande de delimitação da área do que
realmente precisa ser protegido” e “que a área é muito grande e para o conselheiro que não
tem formação técnica, é complicado definir a delimitação da área da forma como foi
apresentado”.
A ex-conselheira ainda revelou ter votado pelo tombamento isolado das estruturas
integrantes do complexo arqueológico, não por questões técnicas, mas por influência de outros
dois conselheiros, representantes do Poder Público.
Por sua vez, Antônio Marcos Generoso Cotta, Secretário Municipal de Meio Ambiente
de Itabirito e membro do COMPATRI, declarou ao Ministério Público, nos termos de fls.
708/709 do IC, que não existem dúvidas quanto ao valor cultural do complexo arqueológico
de Arêdes, mas ao ser indagado o motivo de não promover o tombamento do complexo como
um todo, respondeu apenas que os estudos realizados estariam “errados”.
Nesse mesmo sentido, Marco Aurélio Rocha, Secretário Municipal de Urbanismo de
Itabirito e membro do COMPATRI, declarou ao Ministério Público, nos termos de fls.
710/711 do IC, declarou que “nunca houve dúvida quanto ao valor cultural” do complexo
arqueológico de Arêdes, mas “a dúvida está no motivo do tombamento de uma área tão grande”, “porque
o entorno da área é cheio de disputas, como por exemplo com relação às mineradoras que estão no entorno de
Arêdes, quais as consequências econômicas que poderiam causar ao município quanto ao tombamento da área
que se pedia”, uma vez que “o município é extremamente dependente de mineração”.
Verifica-se, portanto, que os conselheiros agem com PATENTE DESVIO DE
FINALIDADE visto que, embora reconheçam o valor cultural do Complexo Arqueológico de
Arêdes - cuja área, repita-se, pertence integralmente ao Estado de Minas Gerais -, estão
permitindo que os interesses de empresas mineradoras que querem explorar a área em proveito
próprio prevaleçam sobre os interesses da sociedade.
Não se pode deixar de ressaltar que ao deixar de reconhecer o valor cultural do
Complexo Arqueológico de Arêdes, o Município de Itabirito está abrindo mão de receita
oriunda de repasses estaduais à título de ICMS Cultural. Os interesses privados estão se
sobrepondo ao interesse público, portanto.
Ainda, tecnicamente, é necessário o tombamento de todo o Complexo Arqueológico –
o qual ainda possui áreas sequer estudadas – e não de estruturas isoladas e descontextualizadas
que, inclusive, sofrerão riscos em razão de sua fragilidade.
Não se pode olvidar que, segundo lição do Professor Carlos Magno Guimarães,
Coordenador do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG8:
O referido conjunto, do ponto de vista arqueológico, só pode
ser entendido na sua totalidade. A proposta de tombamentos
individualizados dos vestígios conforme aprovada pelo Conselho do
Patrimônio do Município de Itabirito-CONPATRI, significa a
destruição de suas conexões, eliminando qualquer possibilidade de seu
usufruto enquanto um patrimônio coletivo, enquanto um bem da
União. A proposta de tombamento individual pressupõe a ideia de que
os vestígios não são conectados/ligados/integrados em um único
grande sistema ou Complexo Arqueológico.
Em decorrência é relevante destacar que no Complexo
Arqueológico de Arêdes os vestígios que se destacam por suas
dimensões não são os únicos que devem ser contemplados para efeito
de proteção. Todos os vestígios pouco visíveis são tão importantes
8 Carlos Magno Guimarães - Contra a destruição do Patrimônio Arqueológico e Ambiental da Estação Ecológica de Arêdes – 16/03/2018
quanto os demais. Na realidade, eles estabelecem a conexão entre os
demais vestígios configurando o grande sistema aqui denominado
Complexo Arqueológico. Esta constatação permite afirmar que o
tombamento individualizado é um despropósito e uma agressão a um
bem público, cuja destruição será uma perda irreparável. Cabe lembrar
que o Patrimônio Arqueológico pertence também às gerações futuras,
não cabendo aos atuais mandatários o direito de destrui-lo.
É nesse mesmo sentido o teor do Parecer Técnico n.° 03/2018, elaborado pelo Setor
Técnico da Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e
Turístico de Minas Gerais:
Deste modo, fica evidente que patrimônio arqueológico deve ser
tratado sob a perspectiva de conjunto, considerando a articulação
entre vestígios e estruturas inseridos em um todo. O tratamento
isolado de estruturas arqueológicas certamente compromete a
compreensão da totalidade do sítio, na medida em que não considera a
interação entre todos os elementos que o compõem, fragmentando o
sistema.
(…)
Por todo o exposto, conclui-se que, seria impróprio
tecnicamente o tombamento isolado das estruturas arqueológicas que
compõem a Estação Ecológica de Arêdes, na medida em que estão
intrinsecamente articuladas. A retirada de uma delas do contexto de
proteção fragmentará o sistema, comprometendo sua leitura como um
todo.
Some-se a isso o fato de que o patrimônio arqueológico é um
recurso cultural frágil e não renovável e que os projetos de
desenvolvimento constituem uma das maiores ameaças físicas a sua
integridade. Deste modo, as estruturas arqueológicas ficam sujeitas à
destruição caso sejam praticadas nas suas proximidades atividades
causadoras de impacto.
Sendo assim, para proporcionar uma proteção efetiva ao
patrimônio arqueológico, recomenda-se que a poligonal de
tombamento do sítio histórico abranja todas as estruturas
identificadas, bem como as áreas atualmente preservadas que se
encontram entre as mesmas, sem descontinuidades, de forma
coincidente com a poligonal da unidade de conservação estação
ecológica de Arêdes descritas pelo Decreto nº 45.397, de 14 de junho
de 2010, e alterada pela Lei nº 19.555, de 09 de agosto de 2011.
Ainda, o laudo técnico do Instituto Prístino (016.2018):
(...) Assim, o conjunto de vestígios listado a seguir deve ser
considerado parte integrante e fundamental à manutenção e
conservação arqueológica, histórica, cultural e estrutural do
Complexo de Arêdes. A desconsideração das relações existentes
entre os sítios registrados separadamente extirpa o Complexo de
seus significados históricos e culturais e resultaria numa avaliação
subestimada das perdas decorrentes da desafetação da Estação
Ecológica. Destaca-se a importância de se tratar o contexto
arqueológico regional da forma mais abrangente possível. Com isto
garante-se proteção e visibilidade aos vestígios arqueológicos
associados a Arêdes, não somente nas áreas onde se encontram as
ruínas de maior visibilidade como também nas demais áreas de
uso no passado, para quaisquer atividades.
4.2. Ademais, segundo apurado no incluso Inquérito Civil Público, apesar de sua
inquestionável relevância, o patrimônio arqueológico existente na Estação Ecológica de Arêdes
sofre sérias ameaças de destruição.
A ação das intempéries e as intervenções antrópicas, relacionadas às atividades
minerárias contemporâneas, são os principais fatores que podem ser apontados como
responsáveis pelo profundo impacto sofrido pela paisagem da região. O Relatório Final da
Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes9 aponta que
Tal como acontece no Pico do Itabirito, o patrimônio cultural
existente na localidade de Arêdes também se encontra ameaçado pela
ação das empresas mineradoras, especialmente por se implantar em
terrenos com proeminente potencial mineral. O impacto destrutivo
ocasionado ao patrimônio histórico-arqueológico foi brutal,
considerando-se que muito se perdeu sem que tivesse sido conhecido.
Através de um levantamento prévio realizado em Arêdes no ano de
9 RELATÓRIO FINAL: Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes – Município de Itabirito/MG Cooperativa dos Empreendedores em Ações Culturais – Cooperativa Cultura e Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG - Coordenação: Prof. Carlos Magno Guimarães.
2008, foram evidenciados vestígios arqueológicos na forma de
remanescentes de edificações, incluindo-se uma capela, uma fazenda e
uma possível senzala, além de antigas estruturas de mineração.
Merece ser ressaltada a situação da antiga senzala, que teria sido utilizada como
alojamento de trabalhadores das empresas mineradoras, sofrendo diversas intervenções
descaracterizantes. O telhado da referida edificação encontra-se coberto por telhas de amianto
e em seu interior foram construídas pequenas instalações sanitárias. Diversos objetos de uso
cotidiano, tais como colchões, cadeiras e mesas, encontram-se acumulados no local, que conta
ainda com a presença de telhas e madeiras depositadas em seu interior.
4.3. Ainda, tem havido várias tentativas de retirar a proteção ao Complexo
Arqueológico Arêdes conferida pela instituição da Unidade de Conservação Estação Ecológica
em seu território, o que demonstra o risco que o bem cultural corre e a necessidade de seu
reconhecimento e proteção por outras formas.
Em 2011, a Lei Estadual nº. 19.555, autorizou a redução dos limites da E.E. Arêdes,
para a instalação da Estrada de ligação Mina do Pico - Mina Fábrica, pelo empreendedor Vale
S.A. Em 2013, a E.E. Arêdes teve seus limites alterados pelo Decreto nº 46.322, de 30 de
setembro de 2013, fragmentando a UC em três glebas.
Nova tentativa de alteração dos limites da Estação Ecológica de Arêdes ocorreu com a
Proposição de Lei nº 22.287, que foi vetada pelo Governador do Estado em 06 de agosto de
2014. O veto do Governador foi rejeitado pela Assembleia Legislativa que, em 22 de dezembro
de 2014, promulgou a Lei nº 21.555, alterando os limites e confrontações da estação ecológica
estadual, cuja superfície foi dividida em 3 (três) glebas.
Foi proposta ação direta de inconstitucionalidade face à Lei nº 21.555/2014 (ADI nº
0507085-21.2015.8.13.000). Em 27 de janeiro de 2016, foi deferida a liminar para suspender a
eficácia da lei. Em 22 de fevereiro de 2017, foi declarada a inconstitucionalidade da Lei
Estadual 21.555/2014, tendo sido publicado o dispositivo do acórdão em 24 de março de
2017.
Os fortes interesses econômicos antagônicos com a necessidade de proteção daquele
que é importante patrimônio cultural mineiro provavelmente estão por trás da Lei Estadual nº.
22.796, promulgada em 28 de dezembro de 2017, que novamente alterou os limites e
confrontações da Estação Ecológica Estadual de Arêdes (EEA). De acordo com a Lei
Estadual nº. 22.796/2017, os limites da Estação Ecológica foram fracionados em três sub-
regiões: Gleba I, Gleba II e Gleba III, tal qual era previsto na inconstitucional Lei nº
21.555/2014.
Cinco conjuntos arqueológicos encontram-se inteiramente localizados na área
desafetada e perderam a proteção conferida pela Unidade (Conjuntos 02, 03, 04, 05 e
15). Destes, destaca-se que os Conjuntos 02 (cata/lagoa), 03 (habitação) e 04 (provável forja
de ferro) estão entre aqueles fundamentais à criação da UC. Os conjuntos 01 (que caracteriza
as ruínas principais, Fazenda Arêdes pilares da criação da UC) e 07 tiveram mais de
50% de sua área desafetada (64,42% e 50,28% respectivamente). Já os conjuntos 06, 09 e
11, por sua vez, tiveram menos de 50% de sua área desafetada (37,33%, 40,10% e 46,91%,
respectivamente). Em síntese, cerca de 60% da área desafetada corresponde a sítios
arqueológicos, sendo que as maiores perdas estão concentradas naqueles conjuntos
arqueológicos que motivaram a criação da Estação Ecológica de Arêdes, especialmente as
ruínas principais da fazenda Arêdes, a antiga cata de mineração, a habitação e a forja de ferro.
Não se pode deixar de mencionar que houve abaixo-assinado popular com mais
de 1200 (um mil e duzentas) assinaturas de cidadãos contrários à desafetação da
estação ecológica e consequente destruição do Complexo Arqueológico.
4.4. Além disso, conforme consta da certidão de fl. 831, não obstante a existência de
recomendação do Ministério Público em sentido contrário, a Agência Nacional de Mineração,
autarquia que substituiu o Departamento Nacional de Mineração, recentemente permitiu a
abertura de processos para concessão de títulos minerários em áreas inseridas no Complexo
Arqueológico de Arêdes.
Eventual permissão para mineração na área põe em risco o patrimônio cultural
arqueológico mineiro e brasileiro, em favor tão somente dos interesses econômicos das
empresas.
A sociedade mineira não pode ser lesada por conduta de tal jaez.
5. A desproteção perpetrada pelo Pode Público até o presente momento – por meio da
desconstituição da Unidade de Conservação em parte do Complexo Arqueológico, o que já foi
declarado inconstitucional; bem como pela inércia do Conselho Municipal de Patrimônio
Cultural de Itabirito – mostra a necessidade de atuação do Poder Judiciário para proteção do
bem cultural.
Por tudo isso, busca-se com a presente Ação Civil Pública a imposição ao réu o
cumprimento de suas obrigações legais acerca da preservação e conservação do Patrimônio
Cultural local, com a realização do tombamento do Complexo Arqueológico de Arêdes, em
Itabirito/MG.
III - DO DIREITO
A) Patrimônio Cultural – Patrimônio Cultural Arqueológico – Importância
1. O patrimônio cultural tem importância cada vez maior para as sociedades. Muito
mais que cimento, madeira, aço e formas arquitetônicas visíveis de um tempo já esquecido, os
bens culturais exprimem valores de cidadania que foram agregados e cultivados pelas gerações
que constituíram, de maneira dinâmica, a comunidade.
Flávio de Lemos Carsalade ensina que
São os bens históricos que, também, nos orientam quando
percorremos nossas cidades, através dos marcos arquitetônicos, por
exemplo, ou que nos referenciam quando fruímos a nossa cultura ou
quando compartilhamos nossa memória comum. Faz parte ainda
dessa função social a consolidação de uma identidade coletiva, a qual
faz reconhecer-nos como elos de uma comunidade e que estimula
nossos laços efetivos e de cidadania10.
Essa necessidade de se preservar a memória, nos dizeres de James M. Fitdi11, “é um
fenômeno no mundo contemporâneo e responde à necessidade das pessoas restabelecerem
algum contato vivencial com a evidência material de seu próprio passado. A validade desse
processo não pode ser questionada”.
A proteção ao patrimônio cultural, que objetiva a tutela de interesses pertencentes ao
gênero humano, trata-se de direito transindividual difuso, uma vez que pertence a todos ao
mesmo tempo em que não pertence, de forma individualizada, a qualquer pessoa, não sendo
juridicamente admissível qualquer lesão a tal bem jurídico.
Neste sentido, merece menção a Carta do México de 1982, resultante da Conferência
Mundial sobre as Políticas Culturais do ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e
Sítios, que estabelece:
A cultura constitui uma dimensão fundamental do processo de
desenvolvimento e contribui para fortalecer a independência, a
soberania e a identidade das nações. O crescimento tem sido
concebido frequentemente em termos quantitativos, sem levar em
conta a sua necessária dimensão qualitativa, ou seja, a satisfação das
aspirações espirituais e culturais do homem. O desenvolvimento
autêntico persegue o bem-estar e a satisfação constantes de cada um e
de todos. (...) Só se pode atingir um desenvolvimento equilibrado
mediante a integração dos fatores culturais nas estratégias para
alcançá-lo; em consequência, tais estratégias deverão levar sempre em
conta a dimensão histórica, social e cultural de cada sociedade.
Também, a Declaração sobre Responsabilidades das Gerações Presentes para as
Futuras Gerações adotada em 12 de novembro de 1997 pela Conferência Geral da UNESCO,
em sua 29ª sessão, prevê
Artigo 5 – Proteção do meio ambiente (...)
10 CARSALADE, Flávio de Lemos. A Ética das Intervenções. Artigo disponível em Mestres e Conselheiros. Manual de Atuação dos Agentes do Patrimônio cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009, p.78. 11 FITDI, James M. Preservação do Patrimônio Arquitetônico, publicações do Curso de Preservação do Patrimônio Ambiental Urbano - USP, São Paulo, 1981, p. 61
4. As gerações presentes devem considerar possíveis consequências
para as gerações futuras de grandes projetos, antes de esses serem
executados.
A Constituição da República de 1988 afirmou a pluralidade cultural brasileira e
demarcou o conceito de patrimônio cultural, passando a salvaguardar os bens de natureza
material e imaterial, individualmente ou em conjunto, que se referem à identidade, à ação e à
memória dos diferentes grupos que compõem a Nação brasileira:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico12.
Veja-se que para além dos sítios pré-históricos, que detém vestígios de produções
humanas pré-cabralinas, a Constituição Brasileira assegura expressa proteção, indistintamente,
a todos os sítios arqueológicos, lato sensu, entre os quais se encontram os sítios arqueológicos
históricos, que detém vestígios de produção humana no período pós-descobrimento.
2. O patrimônio arqueológico13 constitui o registro básico das atividades humanas
passadas. A sua proteção e a sua correta gestão são, por isso, essenciais para permitirem aos
arqueólogos e a outros estudiosos estudarem e interpretarem-nas, tendo em vista as gerações
atual e futuras e o seu benefício.
12 Idêntica redação é encontrada no artigo 3º da Lei de Política Cultural do Estado de Minas Gerais - Lei Estadual 11.726/94. 13 Segundo a Carta de Lausanne (1990): Artigo 1. Definição e introdução O "patrimônio arqueológico" é a parte do nosso patrimônio material para a qual os métodos da arqueologia fornecem os conhecimentos de base. Engloba todos os vestígios da existência humana e diz respeito aos locais onde foram exercidas quaisquer atividades humanas, às estruturas e aos vestígios abandonados de todos os tipos, à superfície, no subsolo ou sob as águas, assim como aos materiais que lhes estejam associados.
De fato, o conhecimento e a compreensão das origens e do desenvolvimento das
sociedades humanas é de fundamental importância para a identificação das suas raízes culturais
e sociais. Assim, o patrimônio arqueológico constitui legado das gerações do passado,
representada pelos vários segmentos formadores da sociedade nacional, e a geração presente
não pode interromper esse legado às gerações futuras.
A Carta Patrimonial de Nova Delhi, na Índia (1956), traz a recomendação advinda da
conferência geral da UNESCO sobre os princípios internacionais a serem aplicados em matéria
arqueológicas, estipulando:
4. Cada Membro-Estado deveria garantir a proteção de seu
patrimônio arqueológico, levando em conta, especialmente, os
problemas advindos das pesquisas arqueológicas e em concordância
com as disposições da presente recomendação.
5. Cada Estado-Membro deveria, especialmente: (...) f)
dedicar-se ao estabelecimento de critérios de proteção legal dos
elementos essenciais de seu patrimônio arqueológico entre os
monumentos históricos.
Posteriormente, com a divulgação da Carta de Lausanne14 (1990) sobre a proteção e a
gestão do patrimônio arqueológico, fica mais concreta a percepção do conceito de patrimônio
arqueológico. Essa mesma Carta reconhece o patrimônio arqueológico como uma riqueza
cultural frágil e não renovável, e, quanto à legislação, prevê:
A proteção do patrimônio arqueológico deve ser considerada
uma obrigação moral de cada ser humano. Mas é também uma
responsabilidade pública coletiva. Esta responsabilidade deve traduzir-
se pela adoção de uma legislação adequada e pela garantia de fundos
suficientes para financiar, eficazmente, os programas de conservação
do patrimônio arqueológico.
A legislação deve garantir a conservação do patrimônio
arqueológico em função das necessidades da história e das tradições de
cada país e de cada região, dando especial relevo à conservação "in
situ" e aos imperativos da investigação.
14 Documento internacional aprovado na Convenção do ICOMOS/ICAHM (Intern acional Committee of Monuments and Sites) da UNESCO, em 1990, que enuncia recomendações e princípios voltados para a proteção e a gestão do patrimônio arqueológico.
A legislação deve assentar na ideia de que o patrimônio
arqueológico é uma herança de toda a humanidade e de grupos
humanos, e não de pessoas individuais ou de nações em particular.
Sobre manutenção e conservação, a Carta Patrimonial estabelece que
O objetivo fundamental da conservação do patrimônio
arqueológico deverá ser a manutenção "in situ" dos monumentos e
sítios, compreendendo a sua conservação a longo prazo e o cuidado
dispensado aos respectivos arquivos, colecções, etc. Qualquer
translação viola o princípio segundo o qual o patrimônio deve ser
conservado no seu contexto original. Este princípio acentua a
necessidade de operações de manutenção, de conservação e de gestão
adequadas.
Trata-se, portanto, de importante patrimônio cultural, reconhecido mundialmente, e
que, por sua importância, é passível de proteção por meio do tombamento.
De fato, a lei inaugural de proteção ao Patrimônio Cultural brasileiro - qual seja, o
Decreto Lei 25/37, ainda vigente não obstante dependente de leitura conforme a Constituição
– prevê expressamente a possibilidade de tombamento do patrimônio arqueológico,
estabelecendo, inclusive, a existência de livro próprio para inscrição dos bens:
Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
(...)
Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas
as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:
1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica,
etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º
do citado art. 1º.
B) Proteção do patrimônio cultural: dever de todos os Poderes do Estado
As constantes transformações em curso em nossa sociedade, que a cada momento
possuem maior velocidade e intensidade, conduzem à necessidade premente de proteção ao
meio ambiente cultural, sob pena de não podermos repassá-lo às futuras gerações.
De fato, os bens naturais e culturais sofrem ameaças não apenas decorrentes do ciclo
natural de vida, pelas causas tradicionais de degradação, mas principalmente devido à evolução
no modo de viver e de produzir riquezas.
A preservação desses bens constitui tarefa sempre instigante e demanda procedimento
conciliatório com o desenvolvimento socioeconômico de forma a, harmonicamente, manter-se
a qualidade do meio ambiente, o equilíbrio ecológico e de se resguardar a memória das
tradições representada pelos bens materiais e imateriais.
Diante do fato de que a degradação ou desaparecimento de um bem do patrimônio
cultural e natural constitui empobrecimento nefasto do patrimônio de todos os povos -
conforme defende o preâmbulo da Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial
Cultural e Natural da UNESCO, de 197215 -, os bens de valor histórico, paisagístico e cultural
encontram proteção especial na Constituição da República (artigo 23) e na Constituição do
Estado de Minas Gerais (artigo 11), cabendo ao Poder Público com a colaboração da
comunidade, a sua preservação e, se necessário, a repressão ao dano e a ameaça àquele referido
patrimônio:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios: (...)
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais
notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de
obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou
cultural;
Dispõe o Artigo 30, inciso IX, da Constituição da República, que “compete ao
Município promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e
a ação fiscalizadora federal e estadual”.
Ainda estabelece a Carta Magna que
15 Convenção ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Lei 74, promulgado pelo Decreto 80.978
Art. 166 - O Município tem os seguintes objetivos prioritários:
(...)
V - estimular e difundir o ensino e a cultura, proteger o
patrimônio cultural e histórico e o meio ambiente e combater a
poluição;
3. Por seu turno, a Constituição do Estado de Minas Gerais dispõe:
Art. 207 - O Poder Público garante a todos o pleno exercício
dos direitos culturais, para o que incentivará, valorizará e difundirá as
manifestações culturais da comunidade mineira, mediante, sobretudo:
(...)
VI - adoção de ação impeditiva da evasão, destruição e
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico,
científico, artístico e cultural;
Especificamente no tocante ao município de Itabirito, ao qual complexo Arqueológico
de Arêdes faz parte, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do
Estado de Minas Gerais dispõe que:
Art. 83 - A lei estabelecerá, sem prejuízo de plano permanente,
programas de emergência que resguardem o patrimônio cultural
do Estado de Minas Gerais, notadamente o das cidades de
Mariana, Ouro Preto, Sabará, São João Del-Rei, Serro, Caeté, Pitangui,
Tiradentes, Minas Novas, Itapecerica, Campanha, Paracatu, Baependi,
Diamantina, Januária, Santa Bárbara, Grão-Mogol, Conceição do Mato
Dentro, Santa Luzia, Estrela do Sul, Prados, Itabirito, Congonhas,
Nova Era, Lagoa Santa, Barão de Cocais, Itabira, São Tomé das
Letras, Chapada do Norte e o de outros núcleos urbanos que
contenham reminiscências artísticas, arquitetônicas e históricas do
século XVIII.
4. A Lei de Política Cultural do Estado de Minas Gerais - Lei Estadual 11.726/94
dispõe:
Art. 2º - A política cultural do Estado compreende o conjunto
de ações desenvolvidas pelo poder público na área cultural e tem
como objetivos: (...)
III - proteger os bens que constituem o patrimônio cultural
mineiro;
(...)
Art. 5º - O Estado zelará pela preservação dos bens,
tomados isoladamente ou em conjunto, que se relacionem com a
história, a arquitetura e a arte em Minas Gerais e que sejam
representativos da cultura mineira em suas diversas manifestações,
contextos e épocas.
Art. 6º - As ações do Estado relativas aos bens de valor
histórico, artístico, arquitetônico e paisagístico levarão em conta a
diversidade das formas de manejo do patrimônio e serão dirigidas
para:
I - a preservação das edificações e dos conjuntos arquitetônicos
ameaçados pela expansão imobiliária, sobretudo nos grandes centros
urbanos;
II - a compatibilização das necessidades de proteção dos bens
com as de expansão urbana, sobretudo nas cidades de médio e
pequeno porte; (...)
5. Em Itabirito, a legislação Municipal também reconhece a importância do patrimônio
Cultural e necessidade de sua proteção e preservação.
5.1. A Lei Municipal n.º 2.466, de 14 de dezembro de 2005, que institui o Plano Diretor
de Itabirito, estabelece de forma bem clara que:
Artigo 3º. - São também princípios fundamentais do Plano
Diretor:
(...)
II- a preservação do meio ambiente natural e cultural do
Município;
(…)
§ 1º. - A cidade cumprirá a sua função social quando assegurar
como direitos de todo cidadão o acesso à moradia, transporte público,
saneamento básico, energia elétrica, iluminação pública, saúde,
educação, cultura, creches, lazer, segurança pública, espaços e
equipamentos públicos e a preservação do Patrimônio Cultural.
Artigo 5º. - São objetivos do Plano Diretor de Itabirito:
I- ordenação do crescimento do Município, em seus aspectos
físicos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e administrativos;
II- pleno aproveitamento dos recursos administrativos,
financeiros, naturais, culturais e comunitários do Município,
respeitando a capacidade de suporte dos recursos naturais e as
características culturais, históricas e sociais locais;
(…)
V- preservação do Patrimônio Cultural do Município, nos
termos do que reza o artigo 216 da Constituição Federal de 1988;
Artigo 11 - A intervenção do Poder Público para submeter o
exercício do direito da propriedade urbana ao interesse coletivo, tem
como finalidade:
(…)
V- condicionar a utilização do solo urbano aos princípios de
proteção ao meio ambiente e de valorização do Patrimônio Cultural;
Artigo 13 - Integram o Plano Diretor, as diretrizes, normas
gerais e demais instrumentos legais que regerão a política de
desenvolvimento sustentável do Município e a ordenação do seu
território, visando, em termos gerais:
(…)
VI- proteger o Patrimônio Cultural, compatibilizando o
desenvolvimento urbano com a proteção do meio ambiente, através
da racionalização do patrimônio natural, histórico-cultural e
construído, promovendo sua conservação e recuperação em benefício
das gerações atuais e futuras;
Artigo 30 - As diretrizes de Política Urbana do Município de
Itabirito, em consonância com o disposto no Estatuto da Cidade e em
complementação às atribuições da União sobre a matéria e sem
prejuízo do que determina a legislação superior, são as seguintes:
(…)
XII- Preservar e valorizar o Patrimônio Cultural de Itabirito, no
âmbito da política de desenvolvimento municipal e da Política Urbana,
em consonância com o disposto no inciso XII do artigo 2º. do
Estatuto da Cidade.
5.2. A Lei Orgânica Municipal, por sua vez, estabelece que:
Art. 10 - São objetivos prioritários do Município:
(…)
V - estimular e difundir o ensino e a cultura, protegendo o
patrimônio cultural, histórico e o meio ambiente e combater a
poluição;
Art. 12 - É da competência administrativa comum do
Município, da União e do Estado, observada a Legislação
Complementar Federal, o exercício das seguintes medidas:
(…)
V - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais
notáveis e os sítios arqueológicos;
Art. 160 - O Município estimulará o desenvolvimento das
ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, observado o
disposto na Constituição Federal.
§1º - Compete ao Município a preservação de nossa História e
seu ensino.
(…)
§5º - Ao Município cumpre proteger os documentos, as obras e
outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos através de:
(…)
VIII - o Município, com a colaboração da comunidade,
protegerá o patrimônio histórico religioso e cultural municipal, através
de inventário, pesquisas e vigilância e, com a supervisão das
autoridades religiosas locais, colaborará na preservação do patrimônio
religioso da cidade e dos distritos, com assistência dos órgãos
governamentais competentes nas diversas esferas de governo, na
forma da lei.
a) a alienação onerosa de bens tombados, fica sujeita ao direito
de preempção do Município de Itabirito, na forma da lei.
IX – todo o acervo histórico de Itabirito, será preservado de
acordo com estudos técnicos dos órgãos governamentais competentes
nas diversas esferas de governo.
6. Pelo exposto, conclui-se que o legislador dispensou tratamento especial impondo ao
Poder Público com a colaboração da sociedade o dever solidário de proteger e assegurar
nossos bens culturais preservando suas singularidades e da responsabilidade de transmiti-los,
na plenitude de sua integridade, as gerações vindouras.
A doutrina assim se manifesta:
Configurando direito fundamental de todo cidadão, bem de uso
comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida das gerações
presentes e futuras, incumbe irrenunciavelmente ao Poder Público nas
três esferas de governo, a promoção, proteção e preservação do
patrimônio cultural.
Em decorrência do princípio da supremacia do interesse difuso
sobre os interesses público e privado, compete ao Poder Público os
inafastáveis deveres de proteção e preservação do meio ambiente
cultural.
A defesa do patrimônio cultural atribuído ao Poder Público não
se restringe apenas ás funções de promoção, proteção e preservação,
mas também passam pelo controle preventivo e pela Administração
Pública, posto que não somente o uso e ocupação do solo estão sob o
crivo ordenador, censório e limitador do Poder Público, vez que o
controle oficial é estendido a toda e qualquer intervenção,
empreendimento, atividade, obra ou serviço potencialmente
modificador das características físicas, químicas, bióticas, culturais,
estéticas, arquitetônicas, paisagísticas, arqueológicas e antrópicas dos
bens do patrimônio ambiental cultural.
A atuação controladora do Poder Público mais se sobressai nas
hipóteses de existência de monumentos arqueológicos e pré-
históricos, pesquisados ou não, bem como de bens tombados em
processo de tombamentos, porquanto intervenções potencialmente
alteradoras de seus elementos característicos necessitam de prévia e
expressa autorização do Poder Público16.
Segundo Lúcia Reisewitz17, a promoção do acesso à cultura, que depende também da preservação
dos bens culturais, é um serviço público por determinação da Constituição. Neste sentido, leciona a Autora:
A partir do momento que os bens culturais são considerados
como bens coletivos relevantes para o direito, faz-se necessário que a
administração pública, quer municipal, estadual ou federal, controle e
reprima as atividades potencialmente degradadoras desses bens. Isso
16 FIGUEIREDO, Herberth Costa. O município e a Tutela do Patrimônio Ambiental Cultural. Revista do Ministério Publico do Estado do Maranhão. São Luis, n 14, jan./dez. 2007. p.124-126 17 P.124
implica o controle da iniciativa privada e do poder público por meio
de autorizações, licenças, vigilância, fiscalizações etc.
O Poder Público tem o poder/dever de intervir na preservação
dos bens culturais, cumprindo uma de suas funções, sob pena de ser
omisso, de promover o desrespeito à norma jurídica. Estamos com
PAULO AFFONSO LEME MACHADO, para quem “a intervenção
estatal é obrigatória”. E ainda afirma que: “Em decorrência dessa
intervenção, o próprio Poder Público haverá de se limitar, tombando
seus próprios bens, e limitará os bens privados, dentro das fronteiras
dessa mesma Carta.”18.
C – Proteção ao Patrimônio Cultural pelo Poder Judiciário – Reconhecimento
do valor cultural: ato declaratório
Indene de dúvida a necessidade de o Poder Público – Executivo, Legislativo e
Judiciário - reconhecer e adotar medidas para a proteção do patrimônio cultural.
Essa proteção do patrimônio cultural será promovida pelo Poder Público, por meio da
adoção de formas diversas de acautelamento e preservação. A preservação não possui uma
única face, devendo traduzir-se, em verdade, num conjunto de ações que devem ser tomadas
visando à manutenção da memória de uma população com referência a fatos e dados
históricos.
O reconhecimento de um bem como parte integrante da cultura de um povo -
elemento formador da noção de cidadania, da consciência coletiva e da ideia de pertencimento
a uma comunidade - é uma dessas formas de garantir a proteção.
A Professora Sônia Rabello de Castro (1991) dedicou capítulo de introdução para
asseverar sobre a importância do tema, ensinando que19:
Comumente costuma-se entender e usar como se sinônimos
fossem os conceitos de preservação e de tombamento. Porém é
importante distingui-los, já que diferem quanto a seus efeitos no
mundo jurídico, mormente para a apreensão mais rigorosa do que seja
o ato de tombamento. Preservação é o conceito genérico. Nele
18 p. 123 19 CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na Preservação de bens Culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, P.05.
podemos compreender toda e qualquer ação do Estado que vise a
conservar a memória de fatos ou valores culturais de uma Nação. É
importante acentuar este aspecto já que, do ponto de vista normativo,
existem várias possibilidades de formas legais de preservação. A par da
Legislação, há também as atividades administrativas do Estado que,
sem restringir ou conformar direitos, caracterizam-se como ações de
fomento ou têm como consequência a preservação da memória.
Portanto, o conceito de preservação é genérico, não se restringindo a
uma única lei, ou forma e preservação específica.
Como ensina a melhor doutrina:
Afinal, nada impede que um bem tenha acentuado valor
cultural, mesmo que ainda não reconhecido ou até mesmo se negado
pelo administrador; quantas vezes não é o próprio administrador que
agride um bem de valor cultural?!
O tombamento, na verdade, é um ato administrativo complexo:
de um lado, declara ou reconhece a preexistência do valor cultural do
bem; de outro, constitui limitações especiais ao uso e à propriedade do
bem. Quanto ao reconhecimento em si do valor cultural do bem, o
tombamento é ato meramente declaratório e não constitutivo desse
valor; pressupõe este último e não o contrário, ou seja, não é o valor
cultural que decorre do tombamento20.
De fato, a efetividade que se exige da Constituição Federal em um Estado Democrático
de Direito, por sua vez, não pode admitir que a realização dos valores constitucionalmente
determinados fique submetida ao bel prazer daqueles encarregados de seu cumprimento,
alternando-se conforme as vontades dos governantes de ocasião.
No caso dos autos, o ajuizamento da presente Ação Civil Pública decorre da
constatação, diante do até agora narrado e provado, da necessidade da intervenção do Poder
Judiciário como última linha de defesa da integridade do patrimônio cultural de Itabirito e,
mais especificamente, do Complexo Arqueológico de Arêdes.
De fato, se não for reconhecido o valor cultural do Complexo Arqueológico de Arêdes,
nada impedirá sua destruição por terceiros.
20 MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo - meio ambiente, consumidor e patrimônio cultural. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991. três. ed. revis. ampl. e atual. p. 85.
Busca-se, portanto, assegurar a efetividade das normas constitucionais e
infraconstitucionais citadas.
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece a possibilidade de o Poder
Judiciário declarar o valor cultural de um bem e especialmente protegê-lo, ao prever
como crime as condutas de destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente
protegido por decisão judicial e de alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local
especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor
paisagístico, ecológico, turístico, histórico, cultural ou monumental, consoante art. 62 e art. 63 da Lei nº
9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais):
Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo
ou decisão judicial;
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação
científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses
a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.
Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local
especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico,
artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou
monumental, sem autorização da autoridade competente ou em
desacordo com a concedida:
Desta feita, se é crime alterar o aspecto de local especialmente protegido por decisão
judicial, bem como destruir bem especialmente protegido por decisão judicial, é cogente se
admitir que pode o Poder Judiciário declarar um local ou bem como de interesse cultural e,
portanto, como especialmente protegido, independentemente da decisão dos demais Poderes
do Estado.
Assim é a lição de Edis Milaré:
Como se disse, e não faz mal repetir, o reconhecimento de
que determinado bem tem valor cultural não é privativo do
Poder Legislativo ou do Executivo, podendo também ser
emanado do Poder Judiciário.
Essa a linha preconizada pela Lei nº 7.347/85, que tornou
possível a inclusão de bens no patrimônio cultural brasileiro por meio
de decisão judicial, independentemente do critério administrativo.
Aliás, pode ocorrer que a falta de proteção de tais bens decorra
exatamente da omissão do poder público, ou seja, do ato de
tombamento, de forma que, se esse fato ocorre, é através da ação civil
pública que os legitimados buscarão a necessária tutela jurisdicional. A
propósito não custa lembrar que o tombamento não constitui, mas
apenas declara a importância cultural de determinado bem, motivo
pelo qual mesmo coisas não tombadas podem ser tuteladas em ação
civil pública.
Realmente, a identificação do valor cultural de um bem não
emerge da mera criação da autoridade, visto que ele já tinha existência
histórica no quadro da sociedade. O fato de um bem determinado
pertencer ao patrimônio cultural ou, como diz a lei, ser bem ou direito
'de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico', pode ser
provado no curso da ação civil pública e referendado por provimento
jurisdicional"21.
A lição do professor e promotor de justiça do Estado de Minas Gerais Marcos Paulo
de Souza Miranda é no seguinte sentido:
Hodiernamente, em casos de omissão do Poder Público no
dever de zelar pela integridade dos bens culturais, é incontroversa a
possibilidade de se buscar a proteção de determinado bem através de
um provimento emanado do Poder Judiciário.
Ao Poder Judiciário, a quem incumbe, por força de preceito
constitucional, apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça de direito,
também é dada a tarefa de dizer do valor cultural de determinado bem
e ditar regras de observância obrigatória, no sentido de sua
preservação ante a omissão do proprietário e do poder público22.
21 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.193 22 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza – Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro – Doutrina – Jurisprudência – Legislação – Ed. Del Rey 2006, pg. 177/178
É importante repetir: a Constituição da República de 1988, ao tratar do tombamento
(art. 216, §1º da CF/88), elenca outras formas de proteção como os inventários, registros,
vigilância e desapropriação, ressaltando não serem tais instrumentos os únicos hábeis a tal
proteção.
No tocante aos instrumentos para essa proteção, a nossa Carta Magna estabelece que a
preservação, conservação e manutenção dos bens pertencentes ao patrimônio cultural não é
mera faculdade e sim uma imposição de ordem pública e interesse social em prol do bem
coletivo:
§1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas
de acautelamento e preservação.
Por seu turno, a Constituição do Estado de Minas Gerais dispõe:
Art. 209 - O Estado, com a colaboração da comunidade,
protegerá o patrimônio cultural por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, de outras formas de
acautelamento e preservação e, ainda, de repressão aos danos e às
ameaças a esse patrimônio.
Ou seja, a Constituição cita como exemplo cinco instrumentos de proteção ao
patrimônio cultural e deixa espaço para que outras formas de acautelamento e preservação
sejam também utilizadas. Assim, conclui-se, por exemplo, que o tombamento – o mais antigo e
conhecido instrumento de proteção no Brasil – é apenas uma das muitas formas de
preservação de um bem que possui valor cultural. Entretanto, a preservação não possui uma
única face, traduzindo-se, em verdade, num conjunto de ações que podem ser tomadas pelo
Poder Público ou mesmo por particulares que visem à manutenção da memória dos grupos
formadores da nação brasileira. Em cada caso concreto deve ser verificado qual o melhor
instrumento para a proteção específica do bem, não havendo uma predeterminação abstrata.
De fato, o próprio texto constitucional destaca outras formas de acautelamento e
preservação ao patrimônio cultural como o direito de petição (art. 5º, XXXIV, "a", da CF), a
ação popular (art. 5º, LXXIII, da CF) e a ação civil pública (art. 129. inc. III LXXIII, da CF).
A Ação Civil Pública, aponta a melhor doutrina, é o instrumento correto à consecução
deste mister:
Além da defesa de outros interesses difusos e coletivos, cuida
expressamente a Lei n° 7.347/85 da defesa em juízo dos bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a
que se vem convencionando chamar em doutrina de patrimônio
cultural (artigo 1°, III, da Lei da Ação Civil Pública). A Constituição
de 1988, nos seus artigos 215-6, alargou bastante a abrangência dos
interesses culturais, que evidentemente passam a merecer proteção
também por via judicial.23
Discorrendo acerca desta última, José dos Santos Carvalho Filho ensina:
Importante e moderno instrumento protetivo é a ação civil
pública, regulada pela Lei n. 7.347, de 24.07.85. O grande objetivo da
lei é a proteção dos interesses coletivos e difusos da sociedade, ou seja,
aqueles interesses transindividuais que têm natureza indivisível e que
hoje são objeto de profundos estudos e debates dentro da doutrina
moderna.
Segundo o art. 1º, III, desse diploma, são protegidos pela ação
civil pública, dentre outros direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico, podendo ser postulado pelo autor
pedido condenatório (mandamental ou pecuniário) e constitutivo. Em
relação ao patrimônio público, o mais comum é que as pessoas
legitimadas para a ação formulem pedido no sentido de que o Poder
Público, réu, faça ou deixe de fazer alguma coisa, ou, em outras
palavras, seja condenado a diligenciar para a proteção do bem ou
abster-se de conduta que vise à sua destruição ou mutilação, isso
independentemente de prévio ato de tombamento24.
Destaque-se que a existência ou não de tombamento realizado pelo Poder Executivo
não pode ser erigida a óbice ao acolhimento, pelo Poder Judiciário, de pretensões veiculadas
com fins a proteção deste bem, mormente quando a ameaça de dano decorre exatamente da
ação de um dos entes federativos competentes tanto para o tombamento quanto para a
proteção do bem.
23 Hugo Nigro Mazzilli, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 5ª edição, revista, ampliada e atualizada, 1993, Editora Revista dos Tribunais, pág. 102 24 Manual de Direito Administrativo, 5ª ed., Lumen Juris, 1999, p. 551
Neste sentido, o escólio do nunca assaz citado Hugo Nigro Mazzilli:
Fica claro, no exame da legislação, que tanto se protege o
patrimônio público tombado como o não tombado. Em caso de
tombamento, temos proteção administrativa especial. Sempre que o
legislador, por qualquer razão, quis exigir tombamento, ele o
explicitou claramente. Na Lei 7.347/85, entretanto, o legislador não
limitou a proteção jurisdicional de valores culturais apenas aos bens
tombados - e seria rematado absurdo se o fizesse.
Afinal, nada impede que um bem tenha acentuado valor
cultural, mesmo que ainda não reconhecido ou até mesmo se negado
pelo administrador; quantas vezes não é o próprio administrador que
agride um bem de valor cultural?!
O tombamento, na verdade, é um ato administrativo complexo:
de um lado, declara ou reconhece a preexistência do valor cultural do
bem; de outro, constitui limitações especiais ao uso e à propriedade do
bem. Quanto ao reconhecimento em si do valor cultural do bem, o
tombamento é ato meramente declaratório e não constitutivo desse
valor; pressupõe este último e não o contrário, ou seja, não é o valor
cultural que decorre do tombamento25.
E continua:
Admitir que necessário fosse o prévio tombamento para
posterior defesa em juízo, seria, na verdade, tornar inócua na maioria
das vezes a proteção jurisdicional. Se só bens tombados (definitiva ou
provisoriamente) pudessem ser protegidos pela ação civil pública, por
absurdo nem mesmo uma cautelar, dita satisfativa, destinada a impedir
um dano iminente, poderia ser proposta, se o bem de valor cultural
não estivesse tombado... Frustrar-se-ia o escopo das leis, seja o da Lei
n. 7.347/85 (que cuida não só da reparação do dano, como de sua
prevenção), seja até mesmo o escopo da Constituição da República
(cujo art. 216, § 4º, prevê punição não só pelos danos, como pelas
próprias situações de risco causadas ao patrimônio cultural).
Além do mais, partindo do raciocínio de que o bem tenha valor
cultural para a comunidade, titulares deste interesse são os indivíduos
25 MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo - meio ambiente, consumidor e patrimônio cultural. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991. três. ed. revis. ampl. e atual. p. 85.
que compõem a coletividade (por isso que o interesse é difuso). Ora,
seria inadmissível impedir, por falta de tombamento, o acesso ao
Judiciário para proteção a valores culturais fundamentais da
coletividade. Não há nenhuma exigência da lei condicionando a defesa
do patrimônio cultural ao prévio tombamento administrativo do bem,
que, como se viu, é apenas uma forma administrativa, mas não sequer
a única forma de regime especial de proteção que um bem de valor
cultural pode ensejar.26
10. Assim, perfeitamente viável a petição veiculada na presente Ação Civil Pública de
reconhecimento pelo Poder Judiciário do valor cultural e histórico do Complexo Arqueológico
de Arêdes, bem como da imposição de medidas em prol de sua conservação. É o que se pede.
D) DO PERIGO DE DANO – NECESSIDADE DA TUTELA DE
URGÊNCIA
Por todo exposto até então, mostra-se cogente o deferimento de pedido de TUTELA
DE URGÊNCIA, nos termos do art. 300 e seguintes do NCPC.
1. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o magistrado atenderá aos fins sociais e às
exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e
observando a proporcionalidade, a razoabilidade e a eficiência.
2. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a
probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, podendo o
Juiz determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória (art.
300 do NCPC).
Para tanto, exige o Código de Processo Civil, no seu artigo 300, o preenchimento dos
seguintes requisitos:
• Probabilidade do direito;
• Fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;
• Risco ao resultado útil do processo.
26 MAZZILI, Hugo Nigro, obra cit., p. 86.
2.1 No presente caso, a probabilidade do direito advém das disposições
constitucionais e infraconstitucionais que determinam a proteção ao Patrimônio Cultural, os
documentos internacionais, mencionados na inicial, somados à certeza do valor cultural do
bem.
O valor cultural do Complexo Arqueológico de Arêdes está exaustivamente
comprovado por meio dos diversos documentos e laudos técnicos que instruem a inicial da
ACP, quais sejam:
- Relatório Final: Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes – Município de
Itabirito/MG Cooperativa dos Empreendedores em Ações Culturais – Cooperativa Cultura e
Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG - Coordenação: Prof. Carlos Magno Guimarães;
- Laudo Técnico n º 32/2013 produzido pela Coordenadoria das Promotorias de
Justiça de Defesa do Patrimônio Cultura e Turístico – CPPC;
- Laudo Técnico CEAT ID 2066257, elaborado pela Central de Apoio Técnico do
Ministério Público do Estado de Minas Gerais;
- Laudo técnico elaborado pelo Instituto Prístino (016.2018);
- Parecer Técnico n.° 03/2018, elaborado pelo Setor Técnico da Coordenadoria das
Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais – CPPC;
- Dossiê de Tombamento do Complexo Arqueológico de Arêdes. Elaborado por
Adriana Paiva de Assis e Carlos Magno Guimarães;- Livro Arêdes: recuperação ambiental e
valorização de um sítio histórico-arqueológico. Alenice Baeta e Henrique Piló. Belo Horizonte:
Orange Editorial, 2016;
Ademais, o valor cultural foi reconhecido documentalmente pelo IEPHA, IEF e
Conselho Municipal de Patrimônio Cultura de Itabirito. Porém, este reconhecimento não se
deu formalmente, o que garantiria efetivamente a proteção.
O valor intrínseco, também conhecido como valor de existência, refere-se ao valor que
a coisa tem simplesmente por aquilo que é. Neste sentido, o valor cultural intrínseco é o valor
atribuído pelas sociedades a algum aspecto do ambiente físico, em virtude do seu significado
social, da importância daquele bem para a memória, história ou identidade social. O valor
intrínseco dos bens de valor cultural consubstancia um testemunho de civilização e que todos
têm o dever de salvaguardar e transmitir às gerações futuras.
Considerando que o valor cultural de um bem emerge historicamente da sociedade, o
Poder Público apenas reconhece e declara esse valor quando realiza tombamento, inventário
ou o registro de um bem. Isto significa que pode haver bens com valor cultural já conferido
pela sociedade, porém, sem reconhecimento formal pelo Poder Público. Este é o caso dos
autos.
Essa omissão – que pode ser imputada aos agentes que compõem o Poder Público -,
no entanto, não pode ser causa da inércia desse mesmo Poder Público em realizar atos
materialmente necessários para evitar a destruição do bem cultural.
2.2. Por seu turno, o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação
está representado pelas sérias ameaças de destruição sofridas ao longo dos anos pela Estação
Ecológica de Arêdes, por meio da ação das intempéries e das intervenções antrópicas,
relacionadas às atividades minerárias contemporâneas, devidamente descritas no Relatório
Final da Pesquisa Histórico-Arqueológica sobre Arêdes.
Somam-se a isso as diversas tentativas de desafetação da Estação Ecológica de Arêdes,
motivadas pelo interesse econômico das atividades minerárias.
Conforme demonstrado acima, a E.E.A. teve seus limites reduzidos por meio da Lei
Estadual nº. 19.555/2011 e pelo Decreto nº 46.322/2013. Posteriormente, a Lei Estadual nº
21.555/2014, promulgada em 22 de dezembro de 2014 (declarada inconstitucional por meio
da ADI nº 0507085-21.2015.8.13.000) e a Lei Estadual nº. 22.796, promulgada em 28 de
dezembro de 2017, alteraram os limites e confrontações da Estação Ecológica Estadual de
Arêdes (EEA), colocando em risco iminente o patrimônio arqueológico e cultural do
Complexo Arqueológico de Arêdes. O mapa abaixo demonstra que importantes estruturas
arqueológicas estão na área agora desafetada, ficando vulneráveis à degradação.
O interesse minerário da área em questão pode ser visualizado por meio da tabela
constante do Laudo técnico elaborado pelo Instituto Prístino (016.2018), que destaca os títulos
minerários outorgados pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM, 2017),
inseridos na área desafetada da Estação Ecológica de Arêdes por meio da Lei Estadual nº.
22.796/2017.
Abaixo, tabela demonstrando os novos pedidos de exploração mineral na área do
Complexo Arqueológico de Arêdes que se pretende proteger:
Título
Minerário
Titular Fase Substância Última atualização no sítio
ANM
811903/1971 Minas Mineração Aredes
Ltda
Concessão de
Lavra
Ferro Conc Lav/barragens Declar
condição estabilidade
protocolizado em 08/01/2018
831218/2014 Elétrica Help Ltda Requerimento de
pesquisa
Ferro Cumprimento exigência
protocolizada em 05/03/2018
833358/2006 José Francisco Pereira da
Silva de Pádua
Autorização de
pesquisa
Ferro Alvará de retificação solicitado
em 26/02/2018
831964/1999 Gilberto Transporte Ltda Autorização de
Pesquisa
Manganês Documento diverso
protocolizado em 21/11/2017
2.3. Ainda, há risco ao resultado útil do processo visto que, desprotegida, a área pode
ser degradada, de forma que o patrimônio arqueológico e cultural estarão irremediavelmente
comprometidos.
3. Ademais, a necessidade de concessão da tutela de urgência é cogente em razão dos
princípios do direito ambiental da precaução e da prevenção, norteador da tutela do meio
ambiente e segundo o qual deve ser dada prioridade às medidas que evitem o nascimento ou
continuidade do dano ao meio ambiente cultural, de modo a reduzir ou eliminar as causas
de ações suscetíveis de alterar a sua qualidade.
Por essas razões, nas ações versando sobre o meio ambiente em seus aspectos natural,
cultural e urbano, o exame das liminares, considerando que o dano é muitas vezes irreparável,
deve ser orientado pelo brocardo “in dubio pro cultura”, prevalecendo tal preocupação em
detrimento dos interesses econômicos ou particulares.
Conforme ensina Luiz Guilherme Marinoni27:
Admitir-se o desenrolar de um contraditório que evidencia a existência
de uma situação ilícita, retirando-se do juiz o poder de conferir a tutela
jurisdicional adequada para a respectiva cessação, é desconsiderar não
só o espírito das normas em questão, como também o fato de que elas
objetivam evitar, inclusive em nome da garantia de importantes
direitos protegidos constitucionalmente, a degradação da tutela efetiva
do direito”.
4. Por isso, requer o Ministério Público a concessão da tutela de urgência, sem
oitiva da parte contrária, para que:
A) Seja, reconhecendo-se o valor cultural do Complexo Arqueológico de Arêdes - nos
limites e termos do dossiê de tombamento elaborado pelo Município de
Itabirito/MG (fls. 385/533 do Inquérito Civil) -, declarado desde já o conjunto
como área especialmente protegida (art. 62 da Lei 9605/98), e/ou
B) desde já havendo fundados indícios do valor cultural do Complexo Arqueológico
de Arêdes, seja proibida a prática de atos tendentes à destruição, inutilização
ou deterioração (art. 62 da Lei 9605/98) da área compreendida nos limites e
termos do dossiê de tombamento elaborado pelo Município de Itabirito/MG (fls.
385/533 do Inquérito Civil), bem como determinado ao réu que não expeça
qualquer autorização, licença ou anuência para atividade tendente a destruir,
inutilizar ou deteriorar o local especialmente protegido (Complexo Arqueológico de
Arêdes no perímetro estabelecido na declaração de valor cultural).
IV. DOS PEDIDOS
Isto posto, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, nos termos previstos no
artigo 129, III, da Constituição Federal e artigo 5º, da Lei Federal nº. 7.347/85, dentre outros
dispositivos, vem requerer:
27 Tutela inibitória individual e coletiva. 2000. São Paulo: RT, p. 129-130.
1 - Seja o réu citado, e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação na
forma do art. 334, do Código de Processo Civil, com a maior brevidade possível; ou, não
desejando autocomposição, para apresentação de contestação no prazo legal.
2 – Após devido processo legal, confirmando a tutela de urgência eventualmente
deferida, seja declarado o valor cultural do Complexo Arqueológico de Arêdes - nos
limites e termos do dossiê de tombamento elaborado pelo Município de Itabirito/MG (fls.
385/533 do Inquérito Civil) - e reconhecido o conjunto como área especialmente
protegida (art. 62 da Lei 9605/98).
3 - Seja determinada a averbação da sentença declaratória na matrícula de todos os bens
imóveis atingidos pela declaração, nos termos do art. 246 da Lei de Registros Públicos.
4 - Seja o Município réu condenado a:
a) exercer vigilância permanente no Complexo Arqueológico de Arêdes,
bem como a exercer o Poder de Polícia Administrativo, impedindo
qualquer ato tendente à destruição, demolições e/ ou mutilações no
conjunto protegido;
b) Não expedir qualquer autorização, licença ou anuência para
destruir, inutilizar ou deteriorar o local especialmente protegido
(Complexo Arqueológico de Arêdes no perímetro estabelecido na
declaração de valor cultural), sob pena de multa diária no valor de R$
100.000,00 (cem mil reais), contada da data da emissão do ato até seu
desfazimento, a ser revertida em favor do Fundo Estadual do Ministério
Público – FUNEMP (conta corrente 6167-0 da agência 1615-2 do Banco
do Brasil);
c) Ultimar o processo de tombamento do Complexo Arqueológico de
Arêdes - nos limites e termos do dossiê de tombamento elaborado pelo
Município de Itabirito/MG e nos estudos que instruem esta ação, sem
fracionamento do complexo arqueológico – com a devida inscrição do
bem no Livro dos Tombos Municipal respectivo.
5 - Seja o réu condenado ao pagamento de honorários, periciais e demais despesas
extraordinárias que se façam necessárias para a instrução.
6 - Seja invertido o ônus da prova, como regra de procedimento, a teor do disposto no
artigo 6º, inciso VIII c/c artigo 117, ambos do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº.
8.078/90), artigo 373 do NCPC e do princípio da prevenção.
7 - A intimação pessoal do Ministério Público do Estado de Minas Gerais de todos os
atos e termos processuais, nos termos do art. 41, inc. IV, da Lei 8.625/1993 e do art. 180 c/c
183, §1o, do CPC.
O autor provará os fatos acima articulados por todos os modos probatórios em direito
admitidos, incluindo pericial, documental, testemunhal, por depoimento pessoal, entre outros,
caso necessário complementar a prova documental produzida e encartada com a presente.
Finalmente, observando-se que o autor está isento recolher custas processuais, nos
termos do artigo 18 da Lei Federal nº 7.347/85, atribui à causa para efeitos fiscais – não
obstante inestimável – o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), para efeitos fiscais.
Itabirito, 10 de abril de 2018.
Vanessa Campolina Rebello Horta
Promotora de Justiça
Curadora do Patrimônio Cultural de Itabirito
Giselle Ribeiro de Oliveira
Promotora de Justiça
Coordenadora das Promotorias de Justiça de
Defesa do
Patrimônio Cultural de MG
Andressa de Oliveira Lanchotti
Promotora de Justiça
Coordenadora do Centro de Apoio de Meio
Ambiente – CAOMA
Francisco Chaves Generoso
Promotor de Justiça
Coordenador Regional das Promotorias de
Defesa do Meio Ambiente das Bacias dos
Rios das Velhas e Paraopeba