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1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA FORO REGIONAL DE ARAUCÁRIA “Os governantes, nas três esferas, federal, estadual e municipal, não têm considerado a “educação” ou a “saúde” como prioridades sociais básicas, preocupando-se mais em executar obras faraônicas dispensáveis, como shows, memoriais, praças, etc..., onde são gastas somas fabulosas, enquanto não destinam verbas aos setores necessitados...” (Paulo Lúcio Nogueira, in Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, editora Saraiva, 1991, pág.280) O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, por sua Promotora de Justiça ao final assinada, no uso de suas atribuições legais e com fundamento no artigo 127, caput e artigo 129, incisos II e III, da Constituição Federal, nos artigos 1º, inciso IV, 3º e 5º da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, e artigo 54, incisos I, IV, artigo 208, incisos III e VII, 210 inciso I e 201, incisos V e VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE LIMINAR para a proteção de interesses transindividuais afetos à infância e juventude, contra o MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA, pessoa jurídica de direito público interno, com sede administrativa na Prefeitura Municipal, situada na Rua Pedro Druszcz, 111, nesta cidade e foro regional, na pessoa de seu representante legal, Sr. ALBANOR JOSÉ FERREIRA GOMES, Prefeito Municipal, pelas razões de fato e de direito que passa a expor:

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA

DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA COMARCA DA REGIÃO

METROPOLITANA DE CURITIBA – FORO REGIONAL DE

ARAUCÁRIA

“Os governantes, nas três esferas, federal, estadual e municipal, não têm considerado a “educação” ou a “saúde” como prioridades sociais básicas, preocupando-se mais em executar obras faraônicas dispensáveis, como shows, memoriais, praças, etc..., onde são gastas somas fabulosas, enquanto não destinam verbas aos setores necessitados...” (Paulo Lúcio Nogueira, in Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, editora Saraiva, 1991, pág.280)

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ,

por sua Promotora de Justiça ao final assinada, no uso de suas atribuições legais e com

fundamento no artigo 127, caput e artigo 129, incisos II e III, da Constituição Federal, nos

artigos 1º, inciso IV, 3º e 5º da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, e artigo 54, incisos I, IV,

artigo 208, incisos III e VII, 210 inciso I e 201, incisos V e VII, do Estatuto da Criança e

do Adolescente, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE LIMINAR

para a proteção de interesses transindividuais afetos à infância e

juventude, contra o MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA, pessoa jurídica de direito público

interno, com sede administrativa na Prefeitura Municipal, situada na Rua Pedro Druszcz,

111, nesta cidade e foro regional, na pessoa de seu representante legal, Sr. ALBANOR

JOSÉ FERREIRA GOMES, Prefeito Municipal, pelas razões de fato e de direito que

passa a expor:

2

I - DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Inquestionável a legitimação ativa do Ministério Público para

pugnar judicialmente pela defesa dos interesses difusos relativos à infância e à

adolescência, conforme se infere dos artigos já mencionados.

Nesta seara, o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece

expressamente a possibilidade do Ministério Público ajuizar a competente ação civil

pública, buscando tutelar os interesses relacionados à criança e ao adolescente, conforme

se constata do disposto no artigo 208, inciso III e 210, ambos da Lei n° 8.069/90.

Além do mais, predominantemente a doutrina e a jurisprudência

têm apontado a possibilidade do Parquet propor ação civil pública na hipótese de

constatação de lesão ou ameaça de lesão a interesses difusos e coletivos, como demonstra

o seguinte aresto:

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO. 1. “Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido”. (STJ, RESP 493811, 2ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, j. 11/11/03, DJ 15/03/04).

Isso se deve à sua vocação institucional, de legítimo protetor de

interesses não individualizados, impessoais, supra-individuais, assumindo relevante papel

na defesa de bens maiores; dentre eles, os referentes à garantia de acesso e permanência da

3

população infantil às creches e pré-escolas, consoante será exposto a partir do item

seguinte.

II - DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DA INFÂNCIA E

JUVENTUDE PARA APRECIAR A MATÉRIA:

Não há dúvida que a competência absoluta para o processo e

julgamento desta causa é da Vara da Infância e da Juventude.

Com efeito, o artigo 148, inciso IV, do Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990), estabelece que:

Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para: [...] IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209;

O artigo 209, por seu turno, dispõe que “as ações previstas neste

Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou

omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvada a

competência da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores.”

Vale dizer, apenas a competência da Justiça Federal e dos Tribunais

Superiores prefere a da Vara da Infância e da Juventude.

A análise dos artigos em questão demonstra com segurança a

competência absoluta em razão da matéria do Juízo da Infância e da Juventude.

4

III - DOS FATOS

A gritante insuficiência da oferta de vagas e a constatação de que é

cada vez maior o número de crianças que esperam por lugares em creche e pré-escolas

neste Município, tem sido apontada constantemente pelo Conselho Tutelar, conforme

ofícios anexos, bem como noticiada diariamente nesta Promotoria, por meio de pais e

responsáveis (Doc. n°. 01).

De fato, informações dão conta de que são atendidas nas creches

da rede municipal 2844 (duas mil oitocentos e quarenta e quatro) crianças, por meio de 31

(trinta e um) Centros Municipais de Educação Infantil, enquanto em lista de espera a

significativa demanda é de 1493 (mil quatrocentas e noventa e três) pessoas (Ofício n°.

2169/09 de Lavra da Secretaria de Educação – Doc. n°. 02), isto em novembro de 2009.

Após verificação da gravidade da situação, esta Promotoria

conduziu diversas tratativas juntamente ao Prefeito Municipal, à época, Sr. Olizandro José

Ferreira, no intuito de dar atendimento universal a crianças de zero a seis anos de idade do

Município de Araucária, com garantia de acesso e permanência em creches e pré-escolas,

tentando inclusive, para tanto, a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (Doc.

n°. 03), o qual, contudo, acabou por não ser firmado.

Comprometeu-se o referido Prefeito, nestas oportunidades, a

adotar para o ano de 2009 providências no sentido de ofertar vagas, de acordo com

levantamento prévio de demanda, a ser realizado pelo Município, até o último dia do mês

de dezembro do ano de 2008, o que, à obviedade, não ocorreu.

Na busca ainda de solução adequada e célere, esta Promotora

reuniu-se com a Secretária de Educação, Sra. Maria José Basso de Paula Lima Dietrich, nas

datas de 24 de março de 2009 e 1 de julho de 2009 (Doc. n°. 04), contando nesta última

5

ocasião com presença do atual Prefeito Municipal, Sr. Albanor José Ferreira Gomes,

sendo, no ensejo, traçadas metas, as quais não foram sequer iniciadas (Ofício n°. 101/2009

– Doc. n°. 05).

Em decorrência da evidente negligência do Poder Público, foi

encaminhada a esta Promotoria denúncia anônima solicitando providências (Doc. n°. 06),

bem como requerimento oriundo da Câmara Municipal, por intermédio do Vereador

Wilson Roberto David Mota, no qual é noticiado o problema enfrentado pelos pais à

cujos filhos é negada vaga (Doc. n°. 07).

A oferta irregular de vagas em creches - para crianças de 0 (zero) a

3 (três) anos de idade -, e de pré-escola - para infantes de 4 (quatro) a 6 (seis) anos de

idade -, no Município de Araucária merece ser exemplarmente combatida, pois vem

crescendo a cada ano, constituindo-se em grave violação do direito fundamental à

educação a que faz jus um grande número de integrantes da população infantil deste Foro

Regional, demonstrando que o requerido abandonou ou relegou tal direito fundamental a

segundo plano, em total falta de observância à doutrina da proteção integral, orientadora

do Estatuto da Criança e do Adolescente vigente.

Diante deste triste quadro, em total e flagrante desrespeito ao

preconizado na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, o

MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA muito pouco fez, ante a demanda apurada, para

adequar-se à política de atendimento aos direitos da infância e da juventude estabelecida

pela Lei nº 8.069/90 e reclamada pelos órgão afeitos à Infância e Juventude, não tendo,

assim, cumprido seu dever no sentido de evitar – ou ao menos minorar – os malefícios

que a falta desta importante etapa da educação básica1 acarreta a um número cada vez

maior de crianças araucarienses.

1 A creche e a pré-escola são sinônimo de educação infantil, sendo a primeira etapa da educação básica, que ainda compreende o ensino fundamental e o ensino médio.

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Conquanto também seja dever da família e da sociedade, o

MUNICÍPIO, na forma da Lei nº 8.069/90, Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional) e, acima de tudo, da Constituição Federal, tem o dever de, com

absoluta prioridade, assegurar o direito à educação de sua população infantil.

Embora a tal dever de ordem constitucional corresponda o

direito de todas as crianças de 0 (zero) a 6 (seis) anos terem acesso a creche e pré-escola

(pois a educação se constitui numa política social básica, nos moldes do previsto no

art.87, inciso I, da Lei nº 8.069/90), seu injustificado – e injustificável – descumprimento

por parte do requerido é particularmente danoso às crianças oriundas de famílias carentes,

ou seja, aquelas que vivem próximas da chamada "linha da pobreza", que ante a manifesta falta de recursos materiais, não conseguem garantir a adequada formação e

desenvolvimento de seus filhos, inclusive acarretando-lhes forte carência nutricional, fator

que repercute negativamente no aprendizado da criança e influencia negativamente no

sucesso escolar quando esta vier a freqüentar o ensino fundamental.

Isto porque, embora a creche e pré-escola façam parte da política

básica de EDUCAÇÃO, não se lhes pode negar um caráter também assistencial, pois

nos centros de educação infantil as crianças encontram, além dos necessários estímulos à

sua aprendizagem e pré-alfabetização, tão necessários (de acordo com a medicina) para

formar as ligações nervosas que irão determinar, no futuro, seu grau de inteligência,

alimentação e abrigo, enquanto seus pais trabalham.

Estudos e pesquisas estão a demonstrar que as crianças que não

têm acesso à creche e pré-escola, notadamente quando oriundas de famílias de baixa

renda, apresentam déficit nutricional e de aprendizagem, ingressando no ensino

fundamental – e na própria vida – em condições de desvantagem em relação às demais.

7

Ademais, tendo em vista que estas mesmas famílias carentes,

enquanto os pais trabalham, naturalmente não têm condições de contratar “babás” ou

pessoas habilitadas que tomem conta de seus filhos, as crianças que não têm acesso à

creche e pré-escola acabam por permanecer, durante o dia, trancadas sozinhas em suas

casas e/ou em companhia de irmãos mais velhos (que não raro têm de abandonar os

estudos para delas cuidar) ou outras pessoas desqualificadas, ou ainda acompanhar seus

pais em seu trabalho, ficando em qualquer hipótese expostas a um gravíssimo risco que,

na forma do disposto no art.70, da Lei nº 8.069/90, todos – e em especial o Poder

Público (e na sua omissão o Poder Judiciário) – têm o dever de evitar. Quando menos, a

falta de acesso à creche e pré-escola impede um dos pais (geralmente a mãe), de trabalhar,

e, com isso, melhorar a condição de vida da família, situação que também deve ser evitada.

Para ao menos minimizar as desigualdades e as injustiças sociais

(como, aliás, preconiza o art. 3º, de nossa Constituição Federal como um dos objetivos

fundamentais da República Federativa do Brasil – e, por conseguinte, de todos os entes

federados, com destaque para os municípios) e no intuito de que as crianças e os

adolescentes efetivamente possam ser tratados como sujeitos de direito, titulares de

prerrogativas na ordem jurídica, não pode mais o MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA

descurar de suas responsabilidades e obrigações.

Por isso que o MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA deve implantar,

manter e operacionalizar programa de atendimento de todas as crianças de 0 (zero) a 6

(seis) anos de idade em creches e pré-escolas, principalmente aquelas oriundas de famílias

carentes de recursos materiais, com o escopo de evitar as ocorrências acima

exemplificadas e garantir o direito das mesmas a um maior desenvolvimento pessoal.

Importante fazer notar que tais fatos, embora notórios (pelo que a

rigor independeriam de prova, ex vi do disposto no art.334, inciso I, do Código de

8

Processo Civil), serão adequadamente demonstrados no decorrer da instrução processual,

embora a prova documental já juntada efetue prova, por si só, destes fatos.

Em razão da justa preocupação de coibir a conduta (diga-se, a

omissão) nociva aos interesses das 1.493 (mil quatrocentos e noventa e três) crianças

araucarienses que se vêem indevidamente privadas do exercício de seu direito à

educação, forçoso recorrer ao Poder Judiciário no sentido de reverter a situação irregular

mantida pelo requerido que deixa de respeitar a garantia de prioridade absoluta

preconizada no artigo 4º da Lei nº. 8.069/90.

Os encaminhamentos dirigidos a esta Promotoria de Justiça pelo

Conselho Tutelar deste Município, são claros no sentido de demonstrar que o

MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA não está agindo de forma a respeitar a prioridade

absoluta e as diretrizes legais, o que infelizmente tem inviabilizado as providências

adotadas pelos Órgãos de Proteção e Justiça da Infância e da Juventude, comprometendo

a solução, inclusive, dos problemas já existentes nesta seara.

Por força constitucional e legal, o requerido, como visto acima, tem

o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a efetivação

do seu direito à educação (apenas para ficar mais restrito, tendo em vista que tal

premissa também se estende à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à

cultura, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária), devendo para

tanto, além de implementar uma política própria, para qual deverá destinar os

recursos que se fizerem necessários (cf. art.4º, par. único, alíneas “c” e “d”, da Lei nº

8.069/90), promover a adaptação de seus órgãos, programas e serviços (cf. art.208 e

par. único – a contrario sensu – e art.259, par. único, da Lei nº 8.069/90). Ao tratar do

assunto, Wilson Donizeti Liberati assinala que:

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“Por absoluta prioridade devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes, pois “o maior patrimônio de uma nação é o seu povo, e o maior patrimônio de um povo são suas crianças e jovens” (Gomes da Costa, A. C.). Por absoluta prioridade entende-se que, na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante.”2

Não há qualquer justificativa para a omissão do MUNICÍPIO DE

ARAUCÁRIA em ampliar o número de vagas em creche e pré-escola nos moldes do

reivindicado pelo Ministério Público, uma vez que o requerido possui os recursos

necessários para, gradativamente, ano a ano, assegurar o acesso a creche e pré-escola a

todas crianças necessitadas de tal atendimento, sendo oportuno destacar que o Município

figura entre os de maior arrecadação do Estado.

Por conseguinte, resta claro que o requerido, deixando de seguir as

regras legais e pouco se atentando para o pleiteado pelos Órgãos de proteção dos direitos

infanto-juvenis, tem contribuído para perpetuação do problema, não proporcionando,

como deveria, o necessário planejamento e a adequação de seu orçamento (ex vi do

disposto nos arts.4º, caput e par. único, alíneas “c” e “d” e 259, par. único, da Lei nº

8.069/90 e arts.205, 211, §2º e 227, caput, da Constituição Federal) ao atendimento da

demanda local para educação infantil.

Cabe, pois, ao Poder Judiciário, usando de sua prerrogativa

constitucional, fazer valer as disposições legais e constitucionais expressas, que como dito

2 LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 16-17.

10

e será adiante melhor analisado, estabelecem o dever do município em proporcionar – e

com a mais absoluta prioridade – creche e pré-escola a todas as crianças de 0 (zero) a 6

(seis) anos de idade, garantindo a estas o pleno e regular exercício de seu DIREITO

FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO.

IV - DO DIREITO:

O direito fundamental à educação é tema afeto a inúmeros

diplomas legais em todas as órbitas da Federação.

Além de objeto da Constituição da República, é também alvo de

leis nacionais como a que estabelece diretrizes e bases para a educação (Lei 9.394/96) e o

próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).

IV.1 – Da Constituição Federal:

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, dentre os seus

princípios fundamentais e como alicerce do Estado Democrático de Direito, a dignidade

da pessoa humana e a cidadania (artigo 1º, incisos II e III), determinando, ainda, como um

de seus objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade justa, livre e solidária.

Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida

social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo

social.

A perda desse status cria a exclusão social, fomentando a injustiça,

gerando espírito anti-fraterno, causador de indesejáveis conseqüências, incentivando a

violência, tão comum e crescente em nossos dias.

A educação deve ser uma das prioridades, porque é através dela

que se alcança, de forma efetiva, a cidadania.

11

Pensando nisto, a Constituição Federal definiu a educação como

direito social fundamental, conforme disposto em seu art.6º:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Com vista ao seu pleno exercício, a Constituição Federal prevê,

como instrumento fundamental, a universalização do direito à educação (notadamente à

educação básica, que compreende a educação infantil, o ensino fundamental e o

ensino médio), tendo definido, já no enunciado de seu art.205, que a educação é um

“direito de TODOS” e um “DEVER do Estado”:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art.208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: (...) IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade:

De fato, a instituição educativa, a serviço do bem estar social,

complementa, ao lado da família, o desenvolvimento pessoal e social das crianças e dos

adolescentes e contribui decisivamente para a melhoria de vida de cada cidadão.

Por isso que a Constituição Federal estabelece ser a educação um

direito de todos, e que todos – inclusive em razão do princípio, também de ordem

constitucional, da isonomia, devem ter garantidas iguais condições de acesso e

permanência nos diversos níveis de ensino:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

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I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

Não bastassem as disposições específicas relativas à educação,

contidas nos arts.205 e seguintes, da Constituição Federal, o constituinte também não

deixou de fazer expressa referência àquele direito fundamental quando tratou da

“Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente”, dispondo no art.227, caput, de nossa Carta Magna que:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Magna Carta deu ainda um valor especial ao capítulo da

educação, pois mesmo vedando a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou

despesa, ressalvou, no artigo 212, a destinação de recursos para a manutenção do ensino,

determinando que os Municípios aplicarão, anualmente, nunca menos de vinte e cinco

por cento da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de

transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (aí compreendida

obviamente a educação infantil), sendo que idêntico proceder deve ocorrer na área da

saúde.

De modo a evitar o já tradicional “jogo de empurra” entre os

diversos entes federados no que concerne à responsabilidade pela oferta dos diversos

níveis de ensino, o art.211, também de nossa Carta Magna, confere claramente ao

município o dever de ofertar, prioritariamente, o ensino fundamental e a educação

infantil:

Art.211.

13

[...] §2º. Os municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.

Tudo isso para que crianças em tenra idade possam, desde os

primeiros anos de sua existência, praticar, exercer e conduzir adequadamente a

inteligência, seus afetos, sentimentos, imaginação, conhecimento e valores, de forma a

propiciar seu pleno desenvolvimento.

IV.2 – Da Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do

Adolescente:

O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, em inúmeros

de seus dispositivos, registra o dever do Poder Público para com a educação, dando ênfase

ao ensino fundamental e à educação infantil, premissas maiores de intervenção do

Município na condução da gestão educacional.

Assim, na esteira do art.227 da Constituição Federal, o Estatuto da

Criança e do Adolescente estabelece, em seu artigo 4º, in verbis:

Art.4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

A garantia de prioridade absoluta compreende-se nas diretrizes

a serem observadas pela Administração e estão sintetizadas no mesmo dispositivo, quando

resta explicitada:

Art. 4º. [...] Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: [...]

14

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude.

E a preferência que deve haver tanto na formulação quanto na

execução das políticas públicas deve, na forma do disposto no art.87, inciso I, da Lei nº

8.069/90, começar já com as políticas sociais básicas, dentre as quais se inclui

obviamente a educação infantil.

Art. 87. São linhas de ação da política de atendimento: I – políticas sociais básicas.

Como se observa, a Constituição Federal e a legislação

infraconstitucional não tratam a educação como um fim em si mesmo, ou mero aparato de

enriquecimento cultural, mas um verdadeiro caminho ou instrumento para construção de

uma sociedade rica e desenvolvida, bem como algo que deve ser garantido à criança e ao

adolescente com prioridade absoluta.

E não deixa de prever, também, que o dever do Estado para com a

educação será efetivado mediante a garantia de atendimento em creche e pré-escola às

crianças de zero a seis anos de idade, preceito normativa reforçado no artigo 54, inciso IV,

do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ainda na Lei nº 8.069/90, é possível depreender que:

“Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

15

Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 (zero) a 6 (seis) anos de idade;

Não satisfeito, o legislador do Estatuto da Criança e do

Adolescente, como resposta ao contido em seu art.5º (que promete a punição, na forma

da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos direitos fundamentais

assegurados a crianças e adolescentes), em seu art.208, inciso III, c/c arts.213 e 216,

deixa claro que o não oferecimento ou a simples oferta irregular de vagas em creches e

pré-escolas, acarreta a responsabilidade do agente público omisso em cumprir suas

obrigações, autorizando o art.212, do mesmo Diploma Legal, a utilização de “todas as

espécies de ações pertinentes”, para assegurar o pleno exercício deste direito pela

população infanto-juvenil local:

Art. 208. Regem-se pelas disposições desta lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: [...] III – de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; Art.213. Na ação que tenha por objeto obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Art.216. Transitada em julgado a sentença que impuser condenação ao Poder Público, o Juiz determinará a remessa de peças à autoridade competente, para apuração da responsabilidade civil e administrativa do agente a que atribua a ação ou omissão.

Por fim, em seu art. 259, par. único, a Lei nº 8.069/90 realça a

necessidade de que o Poder Público municipal promova as adequações necessárias

16

(obviamente a começar pelo remanejamento dos correspondentes recursos

orçamentários), para o cumprimento das regras e princípios estatutários:

Art.259. [...] Parágrafo único. Compete aos Estados e Municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta lei.

IV.3 – Da Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional:

O tema da educação é de tal importância que há lei federal recente

com quase uma centena de artigos estabelecendo exclusivamente as diretrizes e bases para a educação. Esse diploma, a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, no que se refere ao

dever do Estado para com a educação, destaca principalmente que:

Art. 4º - O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: [...] IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;

Art. 11 – Os municípios incumbir-se-ão de:

[...]

V - Oferecer educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.

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Ainda em relação à educação infantil, o Título V, Capítulo II, Seção

II da Lei 9.394/96, assim disciplina a matéria:

Art. 29 - A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. Art. 30 - A educação infantil será oferecida em I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II - pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade;

Importante salientar a responsabilidade do Município, uma vez que

o artigo 211, parágrafo 2º da Magna Carta, e o artigo 88, inciso I, do Estatuto da Criança e

do Adolescente, indicam-no como agente prioritário na ação em prol do ensino

fundamental e pré-escolar, no estabelecimento de programas com vista a garantir o acesso

e a permanência da criança e do adolescente na escola, bem como o estabelecimento de

medidas para possibilitar o tratamento do toxicômano, dentre outras, estabelecendo a

municipalização desses atendimentos como primeira diretriz da política da infância e

juventude.

V – DO DEVER DO MUNICÍPIO EM ASSEGURAR O

DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL PARA CRIANÇAS DE 0 A 6 ANOS :

Diante das disposições expressas, contidas nos diversos diplomas

legais acima transcritos e na própria Constituição Federal, pouco resta a dizer, no sentido

18

da obrigatoriedade do município em proporcionar a educação infantil à sua população

infantil de 0 (zero) a 6 (seis) anos de idade.

A respeito da matéria, no entanto, vale colacionar o escólio de

Afonso Armando Konzen, que ao comentar a Lei nº 9.394/96, assinala que:

“A oferta da educação infantil, sinônimo de creche e pré-escola, passou a ser obrigação do Poder Público. Não há a obrigatoriedade de matrícula. No entanto, toda vez que os pais ou o responsável quiserem ou necessitarem do atendimento, nasce a correspondente obrigação pela oferta. A Lei de Diretrizes e Bases, ao incumbir aos Municípios a responsabilidade pela oferta ( artigo 11, inciso V ), também retirou a creche e a pré-escola do âmbito das políticas de proteção especial e também transferiu todo o encargo para o sistema educacional. Assim, a creche e a pré-escola não podem mais ser consideradas uma espécie dos programas de apoio sócio-familiar, como até então, em geral, vinham entendendo os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, e tampouco integram as políticas de assistência social de caráter supletivo, mas passaram constituir em política básica de educação.”

Resumidamente, in casu, o Ministério Público está defendendo um

interesse coletivo, transindividual, pois como visto acima o acesso a creche e pré-escola é

um direito constitucional de todas as crianças de 0 (zero) a 6 (seis) anos, ao qual

corresponde o dever do MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA.

Embora já se tenha, de antemão, uma relação dos nomes e

endereços das crianças que apresentam maior premência – (pelos fatores sócio-

econômicos acima mencionados, ou porque aguardam há mais tempo) – para obtenção de

vagas nas creches e pré-escolas desta Capital, o contingente a atender é muito maior,

sendo necessário a todos ainda individualizar. Desse modo, essa indeterminação de

sujeitos a qual deriva, em boa parte, do fato que não há vínculo jurídico a agregar os

19

sujeitos afetados, leva a conclusão de que estamos diante de interesses transindividuais,

posto que disseminados por toda a coletividade.

Não poderíamos deixar de citar a lição de Paulo Afonso Garrido de

Paula, ao ministrar que o remédio adequado para a defesa dos direitos indisponíveis das

crianças e dos adolescentes é a ação civil pública, conforme adiante exposto:

“A ação civil para a defesa de interesses difusos e coletivos afetos à infância e juventude é um caminho ímpar de resgate da enorme dívida social para com os pequenos grandes marginalizados deste país: as crianças e os adolescentes. É chegada a hora da justiça cobrar responsabilidade dos governantes, colocando-os como réus quando de suas omissões no trato desta questão crucial, de sorte a verdadeiramente amparar os desvalidos efetivamente protegendo-os da descúria estatal.”3

De todo o exposto, justifica-se o pedido e, de resto, demonstrada

está conduta contra legem do Réu.

VI - DO AGIR VINCULADO DO ADMINISTRADOR

PÚBLICO:

Resta, portanto, irrefutável que para o Poder Público o atendimento

em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade constitui-se em um poder-

dever indeclinável, não se tratando de mera discricionariedade do Poder local.

Assim afirma-se, pois, as premissas expostas encontram respaldo na

legislação e obrigatoriamente são consideradas de eficácia plena, funcionando como

limitador do campo de atuação discricionária do Administrador Público.

3 PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Menores, Direito e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p.126.

20

Assinala-se que a Administração tem liberdade para decidir o que

convém e o que não convém ao interesse coletivo, podendo examinar o momento e a

forma de fazê-lo, mas não ficar inerte, pois os comandos legais não se subordinam à

vontade do administrador.

De regra, o dever de agir é um dos princípios da Administração,

para quem a execução, a continuidade e a eficácia dos serviços públicos constituem

imperativos absolutos.

Por isso se diz que, sendo outorgado para satisfazer interesses

indisponíveis, todo “poder administrativo” tem para a autoridade um caráter impositivo,

convertendo-se, assim, em verdadeiro dever de agir.

Além do mais, o princípio da prioridade absoluta aos direitos

das crianças e dos adolescentes constitui vetor de limitação ao agir discricionário do

administrador público. Na verdade, constitui-se norma superior a orientar a execução e

a aplicação das leis, bem como a feitura de diplomas de inferior hierarquia, dentro da mais

estrita legalidade.

E nada mais natural, dada constatação elementar que

“discricionariedade” não é sinônimo de arbitrariedade, mas sim apenas se constitui

na maior ou menor “liberdade” que o administrador tem para agir dentro dos estritos

parâmetros estabelecidos pela lei e pela Constituição Federal, tendo sempre por

norte os princípios e objetivos por estas definidos.

Ocorre que, como visto acima e melhor explicitado adiante, tanto a

Lei quanto a Constituição Federal definem, de maneira expressa, qual deve ser a área de

atuação prioritária da administração pública, restringindo sobremaneira – quando não

suprimindo por completo – a dita “discricionariedade” do administrador público.

21

Com efeito, de forma inédita no Direito Positivo brasileiro, o

Constituinte de 1988 fez sentir, no artigo 227, o chamado princípio da prioridade

absoluta, quando determina ser dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à

criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,

à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Essa nota diferencial em relação a outros campos de atuação das

políticas públicas, a fim de que não pairasse qualquer dúvida quanto à aplicabilidade do

preceito constitucional (que alguns ainda insistem em taxar de meramente programático),

veio reiterada e esmiuçada na Lei nº 8.069/90, mais conhecida como Estatuto da Criança e

do Adolescente, mais precisamente em seu artigo 4º e parágrafo único, que mais uma vez

transcrevemos:

Art.4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

(...)

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude.

O dispositivo é auto-explicativo, mormente para quem está

imbuído do espírito da lei e dos critérios que devem nortear sua interpretação – e

conseqüente cumprimento por parte de seus destinatários (dentre os quais se destaca o

Poder Público).

22

O artigo 6º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, traça os

rumos da hermenêutica a ser empregada por seu aplicador, destacando os fins sociais a

que se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a

condição peculiar da criança e do adolescente de pessoas em desenvolvimento.

Ainda que não o fizesse, é mister ao intérprete abrir mão da

chamada “hermenêutica tradicional”, que nunca valorou corretamente a força normativa

dos princípios, e realizar um trabalho exegético multilateral, que leve em conta não só a

valoração política, como a social e até a econômica.

Prioridade, segundo o mais popular dos dicionaristas brasileiros,

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é:

1. Qualidade do que está em primeiro lugar, ou do que aparece primeiro; primazia. 2. preferência dada a alguém relativamente ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros; primazia. 3. Qualidade duma coisa que é posta em primeiro lugar numa série ou ordem.4

Absoluta, segundo o mesmo dicionário, significa “ilimitada, irrestrita, plena, incondicional”.

A soma dos vocábulos já nos indica o sentido do mencionado

PRINCÍPIO de ordem jurídico-constitucional: a mais absoluta qualificação dos

direitos assegurados à população infanto-juvenil, a fim de que sejam inseridos na ordem

do dia com primazia sobre quaisquer outros, inclusive como forma de resgatar o

histórico descaso com que crianças e adolescentes sempre foram tratados pelo Poder

Público – em especial pelo Poder Público municipal, que somente após a Constituição

4 “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, p. 1393, Ed. Nova Fronteira.

23

Federal de 1988 passou a ter expressamente o dever de implementar políticas públicas a

estes destinadas – e até hoje (como Araucária não é exceção) não o fez a contento.

Consigne-se a lição do Promotor de Justiça Wilson Donizeti

Liberati, especialista em direitos das crianças:

Por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupações dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes (...). Por absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante.5

O jurista Dalmo de Abreu Dallari comentando o artigo 4º, do

Estatuto da Criança e do Adolescente, destaca a necessidade de serem priorizados o apoio

e a proteção à infância e juventude, por mandamento constitucional. Mais, preceitua não

ter ficado ao alvedrio de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às

crianças e aos adolescentes.

Exsurge com clareza, das considerações tecidas, não ser possível

qualificar a norma esculpida no art. 227 da Constituição Federal como sendo de eficácia

contida (na classificação exemplar de José Afonso da Silva); nem como sendo “not self-

executing”, na já superada taxionomia do Direito Americano.

5 “O Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários”, pp. 4/5, Ed. IBPS.

24

A norma é clara, passível até de uma exegese meramente gramatical,

aquela que exige do intérprete o mínimo esforço racional, embora seja recomendável

avançar no “iter” hermenêutico e lançar mão dos métodos lógico e teleológico, quando,

então, virão a lume os dispositivos dos artigos 4º e 6º, do Estatuto da Criança e do

Adolescente.

A prioridade absoluta, enquanto princípio-garantia

constitucional vem sendo reconhecida em diversos julgados de nosso País, inclusive

aqueles oriundos dos Tribunais Superiores, recentemente publicados, como melhor

veremos adiante.

Tal conclusão decorre, em primeiro lugar, do próprio princípio da

legalidade que deve nortear toda a pauta de ações dos integrantes do Poder Executivo,

dogma esse inserido no artigo 37 da Constituição Federal.

Não há que se falar, por essa razão, em ingerência ou em falta de

atribuição do Judiciário para determinar como deve ser o agir do Administrador,

porquanto é a própria lei, e a Lei Maior, que o descreve no tocante aos direitos das

crianças e adolescentes.

O fato de o princípio da prioridade absoluta encontrar assento

constitucional denota seu sentido norteador, verdadeira super-norma a orientar a

execução e a aplicação das leis, bem como a feitura de diplomas de inferior hierarquia,

tudo dentro da mais estrita legalidade.

Na discussão sobre a implementação dos bens-interesses previstos

no Estatuto da Criança e do Adolescente jamais pode ser denegada qualquer pretensão

deduzida em juízo sob o argumento de que o Administrador Público tem o discricionário

“poder” de eleger prioridades e estabelecer prioridades, já que a Constituição Federal, em

25

seu artigo 227, minudenciada pelo artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, não

estabelece qualquer hierarquia entre os direitos ali reconhecidos como prioritários.

Partindo da premissa elementar de que a norma do artigo 227 de

nossa Carta Magna é de eficácia plena (distanciando-se em tudo daquelas que alguns

insistem em catalogar como sendo de conteúdo meramente programático, cada vez mais

raras em nosso ordenamento jurídico), temos de reconhecê-la, sim, como um fator a mais

a limitar (quando não tolher por completo) o campo de atuação discricionária do

administrador público.

Pensar de outra maneira é converter o artigo 227, da Constituição

da República, e o microssistema criado pela Lei nº 8.069/90, com vista à proteção

integral - e em regime de prioridade absoluta - à criança e ao adolescente, em meras

cartas de intenções, desvirtuando-os de seu sentido efetivo e factual.

A respeito da matéria, interessante colacionar recente julgado do

Supremo Tribunal Federal, que de maneira expressa reconhece a obrigatoriedade do

município adequar seu orçamento ao atendimento das necessidades básicas da

população, notadamente no que diz respeito à oferta de vagas em creches e pré-

escolas para crianças de zero a seis anos de idade:

CRECHE E PRÉ-ESCOLA - OBRIGAÇÃO DO ESTADO - IMPOSIÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE NÃO VERIFICADA - RECURSO EXTRAORDINÁRIO - NEGATIVA DE SEGUIMENTO. 1. Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado à educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. O Estado - União, Estados propriamente ditos, ou seja, unidades federadas, e Municípios - deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa. Eis a enorme carga tributária suportada no Brasil a contrariar essa eterna lengalenga. O

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recurso não merece prosperar, lamentando-se a insistência do Município em ver preservada prática, a todos os títulos nefasta, de menosprezo àqueles que não têm como prover as despesas necessárias a uma vida em sociedade que se mostre consentânea com a natureza humana. 2. Pelas razões acima, nego seguimento a este extraordinário, ressaltando que o acórdão proferido pela Corte de origem limitou-se a ferir o tema à luz do artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal, reportando-se, mais, a compromissos reiterados na Lei Orgânica do Município - artigo 247, inciso I, e no Estatuto da Criança e do Adolescente - artigo 54, inciso IV. 3. Publique-se. (STF, Decisão Monocrática, RE N. 356.479-0, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 30/04/04, DJ 24/05/04 – grifamos)

E mais:

“DIREITO CONSTITUCIONAL À CRECHE EXTENSIVO AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS. NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ART. 54 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA. 1- O direito constitucional à creche extensivo aos menores de zero a seis anos é consagrado em norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Violação de Lei Federal. "É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino; IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de (zero) a 6 (seis) anos de idade." 2 - Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos

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valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país. O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado. 3 - Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública. 4 - A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. 5 - Um País cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais. 6 - Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional. 7 - As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação. 8 - Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.

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9 - Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e aluar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional. 10 - 0 direito do menor à freqüência em creche, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua rede própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e atender a outros, é o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade humana. 11 - O Estado não tem o dever de inserir a criança numa escola particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias sequer previstas na Constituição. O que o Estado soberano promete por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos. Visando ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade privada, etc. O que não ressoa lícito é repassar o seu encargo para o particular, quer incluindo o menor numa 'fila de espera', quer sugerindo uma medida que tangendo a legalidade, porquanto a inserção numa creche particular somente poderia ser realizada sob o pálio da licitação ou delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa manu do Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe as vezes. 12- Recurso especial provido.” (STJ – Primeira Turma- RESP 575280/SP, j. em 09.09.2004 – DJU de 25.10.2004 – Rel. para o acórdão Min. Luiz Fux –sem grifos no original). Na mesma linha decidiu o Egrégio Supremo Tribunal Federal, em

decisão monocrática proferida pelo Min. Carlos Velloso no RE n° 352686, publicada no

Diário de Justiça de 08/11/2004.

Ainda a respeito do tema, oportuno transcrever a lição do eminente

Desembargador gaúcho SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, consignado em acórdão do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

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"...sabe-se que a atividade administrativa caracteriza-se menos como um poder do que como um dever, encaixando-se na idéia jurídica de Função. Função, em linguagem jurídica, designa um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrem, sendo que, este sujeito - o obrigado - para desincumbir-se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover..."

E prossegue o eminente magistrado, citando CELSO ANTÔNIO

BANDEIRA DE MELLO6:

"Uma distinção clara entre a função e a faculdade ou o direito que alguém exercita em seu prol. Na função, o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e o exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se perceber que o eixo metodológico do direito público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever. Conscientizando-se dessas premissas, constata-se que deste caráter funcional da atividade administrativa, desta necessária submissão da administração à lei, o chamado poder discricionário tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal, ou seja, sempre e sempre o bem público, o interesse comum".

Acerca da possibilidade de controle judicial da discricionariedade do

administrador, o nobre julgador prossegue em sua brilhante exposição:

“Pois bem, assentando-se que o Judiciário também é órgão de Poder (e portanto também comprometido, teleologicamente, com o bem comum), e que é inafastável o caráter político de sua atuação (não, evidentemente, no sentido partidário do termo, mas entendida a política como arte da busca do bem comum), não há como afastar o juiz, aprioristicamente, do conhecimento de opções ditas

6 In "Discricionariedade e Controle Judicial", São Paulo, Malheiros, 1992, p.13.

30

discricionárias dos demais poderes. O que jamais se poderá permitir é que o juiz busque substituir o critério do administrador ou do legislador pelo seu próprio. Não é disso que se trata. O que se defende é a possibilidade comportada (diria até, exigida) pelo sistema de o juiz apreciar as manifestações de vontade política (no sentido supra assinalado) dos demais poderes, confrontando-o com o sistema legal, especialmente constitucional, para verificar sua adequação ao mesmo”.

E, ao arremate, citando ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO

CINTRA7, consigna que “(...) se diz, freqüentemente, e com razão, que a

discricionariedade administrativa não se confunde com arbitrariedade. Mas essa afirmativa

não passaria de fútil manifestação de um desejo se, na realidade, o exercício do poder

discricionário ficar inteiramente incontrolável ou sujeito apenas a um controle por

indícios, decorrentes da própria ação administrativa, considerada por fora, sem a

justificativa do administrador (...) certamente pensamos também no controle da

discricionariedade administrativa. Ao nosso ordenamento jurídico não repugna esse

controle (...). Para vedar ao Poder Judiciário o exame dos aspectos discricionários do ato

administrativo costuma-se invocar o princípio da separação dos poderes. O substrato

desta doutrina, no entanto, está na idéia de que 'le pouvoir arrête le pouvoir', ou seja,

exatamente aquilo que ocorreria se o poder Judiciário impedisse a atividade discricionária

do Poder Executivo, na medida em que reputasse inconveniente ou inoportuna. Na

verdade, a doutrina da separação dos poderes foi concebida para garantir a liberdade

individual em face do Estado, mas não para assegurar a absoluta liberdade de ação de cada

um dos poderes do Estado em face dos demais. Lembre-se, aliás, que o direito comparado

proporciona expressivos exemplos de controle jurisdicional do mérito administrativo”

(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Sétima Câmara Cível. Apelação Cível nº

596.017.897, de Santo Ângelo. j. em 12/03/1997 - grifamos)8.

7 In "Motivo e Motivação do Ato Administrativo", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1979. 8 O texto do referido acórdão foi extraído da obra “Adolescente e ato infracional”, de autoria do eminente Juiz Gaúcho JOÃO BATISTA DA COSTA SARAIVA, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, pags.143 a 172.

31

Os referidos julgados reconhecem, enfim, que a dita

“discricionariedade” do administrador público está subordinada aos ditames da lei e,

acima de tudo, da Constituição Federal, que lhe fornecem os parâmetros dentro dos

quais tem (relativa – e restrita) liberdade de agir.

Reconhecem, ainda, de maneira clara, que o Poder Judiciário não

apenas pode, mas tem o verdadeiro dever institucional, na condição de garantidor da

ordem jurídica e do chamado “Estado Democrático de Direito”, que pressupõe o

respeito às leis e às disposições constitucionais soberanas, obrigar o administrador

público, sempre que necessário, em cumprir aquilo que lhe incumbem a lei e a

Constituição Federal.

E nem poderia ser diferente.

Em sendo inequívoco, como dito acima, que “discricionariedade”

não é sinônimo de arbitrariedade, haja vista que a atuação do administrador público está

sempre subordinada aos comandos da lei e da Constituição Federal, e partindo da

constatação elementar de que é esta mesma Magna Carta que, em seu art.227 estabelece

que é dever do Poder Público assegurar à criança e ao adolescente, com a mais absoluta

prioridade, o pleno exercício de toda uma gama de direitos fundamentais, dentre os quais

relaciona de maneira expressa o direito à educação, e que segundo o art.205, também da

Constituição Federal, a educação, em todos os seus níveis, é “direito de todos e dever do Estado”, sendo a educação infantil, segundo o art.211, §2º, do mesmo Diploma

Constitucional, de responsabilidade do município, é deveras elementar que cabe ao

Poder Público municipal o atendimento de todas as crianças de zero a seis anos que

venham a se matricular neste nível de ensino.

Mais do que um mero “enunciado vazio” contido na Constituição

Federal, ou uma norma de cunho meramente “programático”, a obrigação do Poder

32

Público municipal oferecer vagas em creches e pré-escolas para todas as suas crianças de

zero a seis anos é reafirmada pela Lei nº 8.069/90 e Lei nº 9.394/96, tendo a primeira

reconhecido de maneira expressa que a oferta irregular de tal serviço público pode levar à

responsabilidade do agente público omisso, estabelecendo inúmeros mecanismos

judiciais que podem ser acionados para ver o comando jurídico-constitucional

respectivo (ao qual corresponde o direito das crianças em receber a educação

infantil), fielmente respeitado pelo administrador, que, para tanto terá de promover as

necessárias adequações, a começar pelo orçamento público, nos moldes do disposto nos

arts. 4º, par. único, alíneas “c” e “d”; 87, inciso I e 259, par. único, todos da Lei nº

8.069/90.

É a própria Constituição Federal, por fim, que confere ao Poder

Judiciário a prerrogativa de zelar pelo cumprimento da lei por TODOS, inclusive o

Poder Público, pois do contrário, de nada valeriam quer o princípio da

inafastabilidade da jurisdição, insculpido no art.5º, inciso XXXV da própria Carta

Magna, quer os inúmeros mecanismos judiciais de exigibilidade de direitos

relacionados no art.208 e seguintes da Lei nº 8.069/90, alguns dos quais, como nos casos

dos arts.212, §2º e 213 c/c 216, expressamente destinados a serem utilizados contra o

Poder Público.

VII – DA URGÊNCIA DO PROVIMENTO

JURISDICIONAL:

No presente caso, necessária há urgência em compelir o

MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA a proporcionar, já neste período letivo iniciado, a

ampliação da oferta de vagas em creches e pré-escolas, de modo a atender, num

primeiro momento, ao menos aqueles casos de maior risco envolvendo crianças em lista

de espera e as nominadas pelo Conselho Tutelar, minimizando assim o sofrimento dessa já

combalida parcela da população araucariense, bem como reduzindo os mencionados

efeitos deletérios resultantes da omissão do requerido, resguardando assim a ordem

33

jurídica violada.

O provimento jurisdicional em caráter liminar exige a presença de

dois requisitos essenciais: fumus boni iuris (juízo de probabilidade e verossimilhança da

existência de um direito) e periculum in mora (fundado temor de que a demora na solução do

litígio inviabilize a sua “justa composição”).

No caso em exame, não resta qualquer dúvida quanto à

possibilidade ou probabilidade do direito alegado, consoante se infere dos argumentos e

dispositivos legais antes mencionados.

Com efeito, a plausibilidade do direito invocado, qual seja o fumus

boni iuris, está plenamente evidenciado pela flagrante desobediência às referidas normas

constitucionais e infraconstitucionais, haja vista que boa parte das crianças encontra-se

privada de atendimento em creche e pré-escola.

Os diversos julgados acima transcritos não apenas reconhecem de

maneira expressa o direito à igualdade de acesso de todas as crianças de 0 (zero) a 6

(seis) anos idade à educação infantil, com o correspondente dever do Poder Público

(mais especificamente, do município), em proporcioná-la – inclusive, na forma da lei, sob

pena de RESPONSABILIDADE, como também o poder-dever da Justiça da Infância

e Juventude em determinar o cumprimento dos comandos legais e constitucionais

respectivos, coibindo assim a omissão do Estado (latu sensu) tão lesiva aos interesses

infanto-juvenis.

Por outro lado, não permitir a continuidade do agir (ou melhor do

não agir) do requerido, mostra-se conveniente – e necessário – para minimizar os danos

causados à população infantil deste Município, trazendo especial benefício àquelas que

aguardam vagas nas intermináveis “filas de espera” e aos nascituros, que no futuro

próximo verão, finalmente (e mais de vinte e um anos depois do advento da

34

Constituição Federal de 1988), garantido seu direito à educação infantil.

A continuidade dos atos lesivos a esses interesses só pioraria e

agravaria a atual situação que não foi e nunca será bem aceita pelas entidades de atuação

em benefício da infância, bem como pela comunidade de Araucária.

Quanto mais tempo perdurar a negligência e omissão do requerido,

maiores os prejuízos àqueles que já aguardam vaga em creche e pré-escola – e como dito,

enquanto isto permanecem expostos a toda sorte de perigo – e maior a chance de a

solução às graves violações apontadas aos direitos das crianças e dos adolescentes

tornarem-se inviáveis de serem alcançadas (até porque as crianças não pararão de nascer e

crescer, assim como os riscos e problemas decorrentes da negativa do exercício do citado

direito fundamental não cessarão, enquanto se aguarda uma solução).

Diante dos argumentos apresentados, conclui-se que a situação

caótica em que se encontra a população infantil do MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA,

principalmente aquela oriunda de famílias de renda mais baixa, não pode perdurar

indefinidamente, sob pena de se tornar um problema de proporções e conseqüências

gravíssimas e insuperáveis.

Assim sendo, resta patente o requisito do periculum in mora, já que a

permanência desta situação poderá gerar lesões graves e de difícil reparação às

crianças mais carentes, tendo em vista a impossibilidade de receberem educação

escolar, retardando e prejudicando o pleno desenvolvimento físico, nutricional,

mental e intelectual.

Muitos são os prejuízos das crianças que ficam em casa ou em

outro lugar expostas ao perigo, tendo em vista que os pais necessitam trabalhar e não têm

onde deixar seus filhos. Além disso, as crianças estão deixando de aprender as primeiras

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noções da vida em sociedade e deixando de receber estímulos físicos e psíquicos cuja falta

repercutirá em toda sua vida.

Caso persista, portanto, a negligência e omissão do MUNICÍPIO

DE ARAUCÁRIA, as crianças, repita-se, principalmente as carentes, já privadas de uma

gama imensa de direitos, poderão sofrer danos irreparáveis em face do descaso municipal

em lhes prestar o atendimento devido.

No caso em tela, depreende-se que se encontram presentes os

requisitos necessários à concessão da medida liminar, na forma do artigo 12 da Lei

7.347/85, sem que seja necessária justificação prévia.

VII.1 – DO PEDIDO LIMINAR:

Desta forma, presentes os requisitos necessários, requer o

Ministério Público seja concedida medida liminar, inaudita altera parte, determinando que o

MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA, no prazo máximo de 03 (três) meses (ou seja, de

modo a permitir a matrícula ao menos para o segundo semestre letivo de 2010), promova

o atendimento em creche e pré-escola, em período integral (manhã/tarde) a, no mínimo,

mais 746 (setecentas e quarenta e seis) crianças, o que representa 50% (cinqüenta por

cento) do número de infantes em lista de espera, especialmente para aquelas que, muito

embora solicitadas pelo Ministério Público, através de ofícios, não tiveram as vagas

disponibilizadas (Doc. n°. 08).

Ademais, no mesmo ato, requeiro que seja determinado ao

MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA, também em caráter liminar, a criação e implantação,

até a data de 31 de dezembro de 2010, de mais 745 (setecentas e quarenta cinco)

vagas para crianças em pré-escolas e creches, de acordo com o demanda já conhecida

pelo Município.

Na hipótese do MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA não providenciar

o requerido, nos prazos e períodos mencionados, requer o Ministério Público seja o

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requerido condenado a arcar com multa cominatória diária de R$ 10.000,00 (dez mil

reais), nos termos do artigo 213, § 2º, da Lei nº 8.069/90 e artigo 12, §2º, da Lei nº

7.347/85, valor esse que deverá ser destinado ao fundo gerido pelo Conselho dos Direitos

da Criança e do Adolescente deste Município, na forma do artigo 214 do Estatuto da

Criança e do Adolescente c/c os artigos 11 e 13, da Lei nº 7.347/85.

VIII - DOS PEDIDOS FINAIS:

Ante todo o exposto, restando evidente a prática de atos

atentatórios aos direitos das crianças e dos adolescentes, requer-se:

VIII.1 - A concessão e confirmação da medida liminar pleiteada

e especificada no item anterior (746 vagas em creche e pré-escola, em caráter

emergencial, no prazo de 3 meses e outras 745 vagas até 31 de dezembro de 2010,

perfazendo um total de 1493 vagas a mais ao longo do ano), inaudita altera parte e

independentemente de justificação prévia ou, se entendendo necessária, observado o

prazo de 72 (setenta e duas) horas da Lei n° 8.437/92;

VIII.2 – A citação do MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA, na pessoa

de seu representante legal, para contestar, querendo, a presente ação, sob pena de revelia;

VIII.3 – A total procedência do pedido, no sentido de, já a título

de tutela antecipada, na forma do disposto no art. 273, do Código de Processo Civil,

também aplicado subsidiariamente a procedimentos afetos à Justiça da Infância e

Juventude por força do disposto no art. 152, da Lei nº 8.069/90:

a) Condenar o MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA a prestar o serviço

público educacional em creches às 1493 crianças que se encontram à espera de vagas e às

demais que assim o desejarem fixando multa diária e por criança não atendida como

coerção indireta ao adimplemento;

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b) Condenar o MUNICÍPIO DE ARAUCÁRIA a suprir a

demanda reprimida, em toda a área do Município, prestando o serviço público de

educação infantil em creches e pré-escolas para toda e qualquer criança de zero (0) a seis

(6) anos de idade, em condição de igualdade, cujos pais desejem matriculá-las, respeitados

os princípios da universalidade e gratuidade, sob pena de fixação de multa diária por cada

criança que não esteja sendo atendida, sem prejuízo da determinação do cumprimento da

obrigação mediante matrícula em creches e pré-escolas particulares às expensas do

Município, tudo conforme o artigo 213, parágrafo 2º, do ECA e artigo 461 e parágrafos,

do Código de Processo Civil;

VIII.4 – A produção de todas as provas legalmente admissíveis,

especialmente depoimento pessoal do réu, inquirição de testemunhas, juntada de

documentos (nos termos do artigo 397 do Código de Processo Civil) e exames periciais

que se fizerem necessários;

VIII.5 – Requer, ainda, a condenação do réu no ônus da

sucumbência, fixados em 20% (vinte por cento) do valor da causa, os quais deverão ser

revertidos ao Fundo Especial do Ministério Público do Estado do Paraná, por meio de

depósito próprio, nos termos da Lei Estadual n. 12.241/98;

Dá-se à causa para efeitos meramente fiscais, o valor de R$ 1.000,00

(mil reais).

Nestes termos,

Pede deferimento.

Araucária, 15 de março de 2010.

LEIDI MARA WZOREK DE SANTANA Promotora de Justiça