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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS NO MUNDO E NO BRASIL Luis Felipe de Sousa e Silva Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM 1. As Imunidades Tributárias no Mundo As imunidades tributárias presentes na Constituição da República de 1988 são tema extremamente polêmico entre os estudiosos do Direito. Aparentemente independente das relativizações de tempo e espaço, as imunidades despertam controvérsia acerca de inúmeros aspectos que lhe são essenciais, genérica e especificamente. A discussão acerca de seu conceito e natureza não foge a esta regra, sendo necessário que apreendamos um parâmetro referencial para o início do presente estudo. Para este fim, utilizaremos as lições de Regina Helena Costa, que define com brilhantismo o instituto: A definição do conceito deve observar o fato de o instituto em estudo apresentar dúplice natureza: de um lado, exsurge a imunidade como norma constitucional demarcatória da competência tributária, por continente de hipótese de intributabilidade, e, de outro, constitui direito público subjetivo das pessoas direta ou indiretamente por ela favorecidas. (COSTA, 2015, p. 58) Mais adiante em sua obra, arremata: A imunidade tributária, então, pode ser definida como a exoneração, fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de competência tributária ou extraível, necessariamente, de um ou mais princípios constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação. (COSTA, 2015, p. 58)

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS NO MUNDO E

NO BRASIL

Luis Felipe de Sousa e Silva

Graduado em Direito pela

Universidade Federal do Amazonas -

UFAM

1. As Imunidades Tributárias no Mundo

As imunidades tributárias presentes na Constituição da República de

1988 são tema extremamente polêmico entre os estudiosos do Direito.

Aparentemente independente das relativizações de tempo e espaço, as

imunidades despertam controvérsia acerca de inúmeros aspectos que lhe são

essenciais, genérica e especificamente.

A discussão acerca de seu conceito e natureza não foge a esta regra,

sendo necessário que apreendamos um parâmetro referencial para o início do

presente estudo. Para este fim, utilizaremos as lições de Regina Helena Costa,

que define com brilhantismo o instituto:

A definição do conceito deve observar o fato de o instituto em estudo apresentar dúplice natureza: de um lado, exsurge a imunidade como norma constitucional demarcatória da competência tributária, por continente de hipótese de intributabilidade, e, de outro, constitui direito público subjetivo das pessoas direta ou indiretamente por ela favorecidas. (COSTA, 2015, p. 58)

Mais adiante em sua obra, arremata:

A imunidade tributária, então, pode ser definida como a exoneração, fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de competência tributária ou extraível, necessariamente, de um ou mais princípios constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação. (COSTA, 2015, p. 58)

Desta feita, pode-se assumir como ponto de partida para o presente

estudo a premissa segundo a qual a norma imunizante tem a natureza de

exoneração constitucional, cujo conceito delineia-se a partir de dois prismas:

um formal e outro teleológico.

No particular da imunidade dos templos, trata-se de delimitação da

capacidade tributária inserida no art. art. 150, VI, “b” da Constituição brasileira,

que tem por escopo proteger um valor fundamental para a ordem jurídica, qual

seja, a liberdade religiosa.

A imunidade dos templos religiosos é uma das mais tradicionais

espécies de intributabilidade, de gênese concomitante à criação dos primeiros

Estados. As religiões sempre foram, pode-se dizer, privilegiadas em matéria

tributária.

Sucede que, as imunidades tributárias têm acompanhado a civilização

há tanto tempo que assumiram diferentes feições de acordo com o período da

História em que se decida estuda-las.

1.1 As imunidades tributárias na Antiguidade

A Antiguidade marca o início da História e o fim da pré-História, tendo

como divisor de águas o desenvolvimento da escrita. Dentre os povos antigos

mais notáveis podemos destacar, sem a menor pretensão de atribuir-lhes

especial importância sobre outros: egípcios, hebreus, fenícios, gregos,

romanos, persas, sumérios, acádios, babilônios, assírios, etc.

Naturalmente, a medida em que essas civilizações se desenvolviam,

também interagiam entre si. Tais interações davam-se predominantemente de

duas maneiras: comércio e guerras.

Esta última marca o instrumento pelo qual a figura dos tributos ganhou

relevância inédita e determinante para o desenvolvimento dos conglomerados

humanos que surgiam e iniciavam a se organizar sob uma estrutura estatal

embrionária.

Neste sentido, não há dúvidas de que as imunidades surgiram

concomitantemente aos tributos, posto que estes últimos tiveram sua

concepção fundada em diferenciar pessoas. Apenas fazia sentido tributar

alguém, se em contrapartida outrem fosse isento daquele mesmo tributo.

Sobre este aspecto, Regina Helena Costa assevera que:

A exigência de tributos é um dos mais antigos expedientes utilizados para distinguir pessoas e atividades. Sílvio Meira, em sua obra, já clássica, Direito Tributário Romano, bem demonstra que desde a existência do tributo houve a exoneração dessa prestação para alguns. (COSTA, 2015, p. 31)

A partir das conquistas bélicas de uns povos sobre outros, portanto, o

tributo passa a ser o instrumento de impor a derrota de forma perene ao povo

dominado. Até por isso, a tributação assumiu historicamente um caráter

melindrante para certos indivíduos e enaltecedor para outros.

Desta feita, à medida que evoluíam as civilizações antigas, a cultura de

não tributar mostrou-se útil para outros fins além da sucção dos recursos de

outros povos vencidos em batalha.

Alguns interesses, obviamente aliados aos anseios destes estados

recém-nascidos e imaturos, mereciam alguns privilégios, para que

alcançassem sua máxima expressão. Sobrelevam-se, sob este prisma, as

religiões.

Nesse contexto, os primeiros templos religiosos surgiram em torno do 4o

milênio a.C., na antiga mesopotâmia, situada entre os rios Tigre e Eufrates,

dentre o povo Sumério. As construções eram de uma simplicidade extrema,

sempre com algum tipo de menção à divindade ali adorada. Na civilização

Babilônica, conhecida pela compilação do Código Hamurábi, as edificações

religiosas evoluíram e tornaram-se conhecidas como Zigurates. Também os

gregos, romanos, fenícios e hebreus aderiram à tradição de construir locais de

adoração às suas divindades.

Em suma, o culto ao transcendental manifestou-se em todas as

civilizações da antiguidade, tornando-se importante aspecto de sua

organização social, estrutura de estado e padrão comportamental.

O poder de todos os governantes sobre a Terra há vinte mil anos era, de

um modo ou outro, ligado ao divino. Não havia governo dentre os homens que

não refletisse a vontade de um ser superior, assim permitindo a máxima

expressão de poder e controle social. Expressão máxima disto foi o caso

egípcio, onde o Faraó não era sequer enviado, ou interlocutor, mas um Deus

propriamente dito1.

Vale mencionar que devido à cultura politeísta do povo egípcio – e,

portanto, à multiplicidade de entidades a serem homenageadas com templos,

liturgias, sacerdotes, etc. – a imunidade tributária dos templos e seus

sacerdotes ganhou enormes proporções, chegando a abranger praticamente

um terço de todas as terras daquele território.

Entendia-se que tributar o templo equivalia a tributar a própria divindade

homenageada com sua construção e, por isso mesmo, justificava-se a

exoneração para não despertar a ira daqueles deuses, a qual poderia resultar

em represália ao povo egípcio.

Ademais, sendo o Faraó um Deus, tributar “a morada” de seus similares

não era aceitável2. Surgiu assim, uma espécie primitiva de imunidade recíproca

entre os deuses: Faraó, Osiris, Isis, Set, Anúbis, Rá, etc.

Apesar da particularidade da imunidade recíproca entre as divindades

egípcias e o Faraó, a primeira óptica sob que se analisou a imunidade dos

templos encontrou eco em todo o mundo antigo. De um modo geral, evitava-se

tributar os templos, para não se tributar os próprios deuses.

Outros povos observaram, com percuciência, que a não tributação dos

templos poderia atender a interesses tão mundanos quanto divinos. Em sua

eminente tradição jurídica, os romanos desenvolveram o entendimento de que

melhor serviria aos interesses de Roma que algumas pessoas e situações

permanecessem desobrigadas a custear a sua sustentação, o que se

convencionou chamar de immunitas.3

Impossível deixar de citar a célebre Senatusconsulta SC et epístula

consultum de Oropis, onde consta uma carta dos Cônsules romanos, datada de

79 a.C., interpretando decreto do Ditador Sila, segundo o qual se havia

1 Destaque-se que os antigos egípcios eram politeístas, e por isso mesmo, refere-se ao Faraó

como UM deus e não O deus. 2 Acrescentamos que os Egípcios desenvolveram, no tocante à imunidade de seus templos,

dois entendimentos: 1) que se estaria tributando uma divindade e; 2) que o Faraó não poderia tributar seus similares, revelando um tipo de imunidade recíproca primitiva e divina.

3 Vocábulo que, etiomologicamente, significa negação de múnus ou encargo. Cf. MORAES, Bernardo Ribeiro de. A imunidade tributária e seus novos aspectos. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 34, p. 19-40, jul. 1998.

declarado isentos de tributos os fundos cujas rendas estivessem destinadas ao

culto dos deuses.4

Perceba-se, portanto, que as imunidades tributárias, e a de templos

especialmente, desenvolveram-se concomitantemente ao próprio Estado. Por

meio das conquistas bélicas de outros povos, surgiram como dois lados de

uma mesma moeda os tributáveis e os intributáveis.

Com as subsequentes invasões bárbaras e a derrocada do Império

Romano, o mundo ocidental viu-se mergulhado num fenômeno de

descentralização política e pulverização dos núcleos de poder. Marcava-se o

fim da Antiguidade e o início da Idade Média.

1.2 As imunidades tributárias na Idade Média

O último século de existência de Roma foi extremamente conturbado e

marcado pela estagnação das conquistas militares, fragilização do controle

fronteiriço que redundou em invasões de povos bárbaros, crise econômica,

divisão do território romano, êxodo urbano e, curiosamente, ascensão da igreja

católica.

Por meio dos Imperadores Constantino, e depois Teodósio I, a religião

católica saiu do patamar de seita perseguida para religião oficial do império.

Com a queda do Império Romano do Ocidente5, no ano de 476, deu-se início à

Idade Média.

Na nova organização política que surgiu com esta nova etapa da

História, a religião ganhou especial relevância, em especial a católica. A Igreja

Católica dominava o mundo ocidental e estava, ao lado da nobreza, como

estrato social desobrigado a pagar tributos.

Nesse contexto, observe-se que com o maciço êxodo rural que se

seguiu à queda do império romano, muitas pessoas que deixaram as cidades

precisavam de espaço para construir moradias, cultivar alimentos e se

desenvolver. Todavia, somente detinham terras a realeza e a nobreza. 4 A inteligência contida neste documento fora reproduzida pouco mais de 20 séculos depois, no

art. 150, § 4º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. 5 O império romano havia sido divido no século 4 pelo Imperador Teodósio, em Império

Romano do Ocidente, cuja capital era Roma, e Império Romano do Oriente, cuja capital era Constantinopla. Esta última manteve-se como capital do império romano do oriente até 1453, quando fora conquistada pelos Turcos.

O casamento entre a necessidade de trabalho em massa e a absurda

concentração de terras em poder de reis e nobres, originou a estrutura do

feudo, que se pautava em duas premissas básicas: respeito entre suseranos

de igual nível, e troca de abrigo e por produção, entre suserano e vassalo.

Assim, as principais fontes de exigência de tributos nesta organização

estatal tornaram-se o Rei, o suserano e a Igreja. Os sacerdotes católicos eram

os líderes espirituais da coletividade, guardiões do justo e do divino. Inclusive,

por essa posição privilegiada, conquistaram enorme importância política ao se

posicionarem como elo de ligação entre o líder dos homens – Rei ou suserano

- e o líder dos céus.

Delineados, portanto, os estamentos que tinham tanto a imunidade

quanto parcela do poder tributante sobre a grande massa de camponeses:

realeza, clero e nobreza. Os tributos serviam exclusivamente à sustentação

destes grupos.

As imunidades tributárias, portanto, à época medieval, traduziam-se em

verdadeiras liberdades privadas, de titularidade dos estamentos dominantes,

para que se beneficiassem da arrecadação em detrimento da grande massa de

camponeses que os sustentavam.

A este respeito, assevera Ricardo Lobo Torres:

A liberdade na primeira fase do Estado Patrimonial se caracteriza como liberdade estamental ou corporativa. Os estamentos mantêm ou conquistam a liberdade diante do poder fiscal do rei. A liberdade aparece fracionada e dividida entre a realeza, o senhorio e a Igreja e vai consubstanciar no exercício da fiscalidade, na reserva da imunidade aos tributos, na obtenção de privilégios e no consentimento para a cobrança extraordinária de impostos. Em outras palavras, a nobreza e o clero são livres porque, além de não se subordinarem, senão excepcionalmente, à fiscalidade do príncipe (imunidades e privilégios), constituem fontes periféricas de normatividade. (TORRES, 1995, p. 8)

A imunidade tributária tornou-se, portanto, privilégio cujo único fim era

servir aos interesses dos estamentos dominantes e, nesse contexto, a

imunidade tributária dos templos ganhou expressão similar à dimensão do

poder alcançado pela Igreja Católica.

Interessante perceber, doutro giro, que ao contrário do que acontecia na

antiguidade, em que as civilizações mencionadas eram, via de regra,

politeístas, o catolicismo da Idade Média ocidental pressupunha a existência de

um único Deus.

Com efeito, enquanto a Igreja Católica gozava de ampla e irrestrita

liberdade fiscal – contexto em que inserida sua imunidade tributária – outras

religiões recebiam tratamento discriminatório e persecutório, com maior ou

menor intensidade a depender do lugar considerado para Estudo.

Tal concepção aristocrática de imunidade enquanto privilégio dos mais

abonados foi constante durante os séculos que marcaram a Idade Média, e

importaram na saturação dos estamentos inferiores em relação à sua pacata

sujeição ao desejo e à volúpia dos mais abastados.

O início do movimento de superação da chamada “Idade das Trevas”,

deu-se a partir do século XIII, com o declínio da organização administrativa-

econômica conhecida como feudalismo e, principalmente, e virtude do trinômio

guerra-peste-fome6.

Nascia nestes meados históricos o capitalismo, impulsionado pela

pujança comercial empreendida pelos burgueses, que embora revestidos de

poder econômico, ainda não haviam conquistado nenhuma relevância política

no Regime feudal típico da idade média.

A burguesia ansiando por projeção política e os Reis do feudalismo

ansiando por centralização econômica e administrativa, aliaram-se para virar a

mesa da organização política feudal, empreendendo novo processo de

organização político-social, que viria a ser conhecido como absolutismo.

1.3 As imunidades tributárias na Modernidade

Com a reorganização da sociedade ocidental e o advento de

movimentos filosófico-científicos – como o Renascimento do século XIV –

consolidou-se o Estado Patrimonial que vinha sido encubado na última fase da

Idade Média.

6 Referimo-nos à Guerra dos 100 anos, à insuficiência de produção de alimentos aliada à

severa tributação dos camponeses, e à Peste Negra que veio a dizimar 1/3 (um terço) da população europeia durante o século XIV.

As imunidades tributárias, contudo, resguardaram a sua característica de

privilégio estamental, oprimindo unicamente os que não se enquadravam em

nenhuma esfera titular dos malfadados benefícios.

Esta manutenção do estado das coisas, aliado ao poder supremo dos

monarcas absolutistas – sempre aliados e legitimados pelo poder religioso –

marcou o padrão social da Idade Moderna, que fora dominada pela nova

burguesia comerciante e pelas classes privilegiadas pelos reis.

Sucede que, o poder dos monarcas centralizou todo o Estado surgido

das relações modernas, conferindo imensa autoridade àqueles governantes.

Citamos, a título exemplificativo, o famoso caso de Luís XIV, autoproclamado

“O Rei Sol” e cujas palavras “O Estado sou Eu” eternizaram-se na História.

Sempre autorizados pelo direito divino do reinado7, os monarcas tinham

as ferramentas necessárias ao exercício de seu arbítrio e consecução de suas

vontades. Por isso mesmo, permitiram-se abusar dos antigos aliados,

ensejando conflitos principalmente com a burguesia, mas também com o

próprio clero8 9.

Nesse sentido, destacamos dois casos de maior relevância, que

sinalizaram a rotura da forma de organização estatal absoluta e do sistema

tributário estamental reminiscente da idade média: o surgimento do

constitucionalismo inglês e a Revolução Francesa.

O caso inglês foi resultante de um descompasso entre os estamentos

dominantes, diga-se Rei e nobreza. O Rei João Sem Terra passou a tributar

arbitrariamente os lords que lhe serviam e também seus subordinados.

À época, a nobreza e a plebe, reunindo esforços e se insurgindo contra o poder unipessoal de tributar, impuseram ao príncipe João um estatuto, visando a inibir a atividade tributária esmagadora do governo. Em outras palavras, objetivaram impor a necessidade de aprovação prévia dos súditos para a

7 A igreja católica continuou a servir-se de grande autoridade, por ser a intermediadora entre os

homens e o divino, tendo o papel de coroar o Rei para simbolizar a autorização divina à sua autoridade máxima.

8 A história registrou inúmeros episódios desde o conflito entre o monarca francês Luís XIV e o Papa Inocêncio XI.

9 A Igreja Católica era tão envolvida na política dos reinos, e tão preocupada com a manutenção de seus privilégios milenares, que sofreu a Reforma no século XVI. O movimento de Martinho Lutero inaugurou o protestantismo, dando ensejo ao luteranismo e ao calvinismo, que posteriormente viria a ser dissecado em sua estreita relação com espírito do capitalismo por Max Weber.

cobrança dos tributos, do que irradiou a representação “no taxation whitout representation.” (SABBAG, 2014, p. 57, grifo do autor)

Assim, da união entre números (camponeses que vieram a engrossar as

fileiras dos exércitos do lords) e recursos (a nobreza periférica à coroa

dispunha de recursos e homens treinados em armas), surgiu o movimento que

consagrou a primeira constituição inglesa, célebre Carta Magna Libertatum

(SABBAG, 2014).

Já o caso Francês, resultou de uma crescente onda de insatisfação por

parte dos estamentos inferiores: pobres e burgueses. A burguesia que se

desenvolvia na França ansiava por projeção política na sociedade francesa, e a

plebe já não suportava tão alta e injusta tributação. A este respeito, relata

Regina Helena Costa que:

A mesma situação ainda era verificada na França, no século XVIII, quando o Governo exigia impostos dos pobres, e não dos ricos. As classes privilegiadas – o clero e a nobreza – não admitiam que tivessem que pagar impostos como a gente comum, estando desobrigados do pagamento de praticamente todas as taxas da época. Tal fator contribuiu, como sabido, para a deflagração da Revolução Francesa. (COSTA, 2015, p. 33)

Num cenário de miséria generalizada, crises econômicas e agrícolas,

superpopulação e florescimento dos ideais liberais iluministas, reuniram-se

ingredientes explosivos para uma ruptura com regime opressor vigente. Com

propriedade, relata Thomas Piketty sobre a demografia francesa no século

XVIII:

A população francesa se expandiu em ritmo constante ao longo de todo o século XVIII, do final do reinado de Luís XIV até o de Luís XVI, aproximando-se dos tirnta milhões de habitantes nos anos 1780. Tudo leva a crer que esse dinamismo demográfico, desconhecido nos séculos anteriores, de fato contribuiu para a estagnação dos salários no setor agrícola e para o aumento dos rendimentos associados à propriedade da terra nas décadas anteriores à conflagração de 1789. Sem fazer da demografia a única causa da Revolução Francesa, parece evidente que essa evolução só fez aumentar a impopularidade crescente da aristocracia e do regime político em vigor. (PIKETTY, 2013, p. 45)

Nesse diapasão, tem-se que ao ser deflagrada a Revolução Francesa,

em 1789, a nova ordem buscou superar os símbolos de opressão do antigo

regime, contexto em que foi tomada a Bastilha, elaborada uma nova

constituição e, mais importante para o presente estudo, confiscados os bens e

propriedades da Igreja Católica.

Com efeito, o desenrolar da Revolução de 1789 foi extremamente

traumático para a Igreja Católica, pois veiculou as pretensões de burgueses e

plebeus em terminar, de uma vez por todas, com os privilégios clericais, e

retirar a instituição católica do espaço político francês.

Na perseguição deste objetivo, promoveu-se a supressão do dízimo,

utilização dos bens da Igreja para quitar as dívidas nacionais, Constituição Civil

do Clero, secularização dos registros civis, como casamento, nascimento e

óbito.

Durante o Período do Terror10, importante frisar que igrejas foram

apedrejadas, padres foram forçados a abdicar, imagens religiosas foram

destruídas e os cultos religiosos foram proibidos. Tentou-se ainda, vale citar,

instituir cultos à razão e ao Ser Supremo, que exaltavam a vitória da

consciência sobre a dominação da Igreja (NEC, 2009).

De fato, a ruptura com o antigo regime foi violenta e marcada pelo

ataque reiterado aos antigos instrumentos de dominação social e de

diferenciação fiscal. A partir da Revolução Francesa, e de seus ideais de

liberdade, igualdade e fraternidade, findou-se a identificação das imunidades

tributárias com privilégios estamentais ou corporativos. Abria-se caminho para

o liberalismo ditar as novas tendências estatais e tributárias.

1.4 As imunidades tributárias na Contemporaneidade

O novo capítulo da História que se iniciava hasteou-se em grande parte

no pensamento dos grandes contratualistas: Hobbes11, Locke12 e Rousseau13.

10 Período mais radical da Revolução Francesa, que consagrou a execução em massa e a

violência. Comandado por Robespierre, de 1792 a 1794. 11 Em O Leviatã, Hobbes parte da análise do homem para então compreender a sociedade.

Nesse sentido, assevera que “o direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e a razão lhe indiquem

Precursores das liberdades individuais e da relação delas com os poderes

constituídos a partir do pacto social, fizeram surgir a lógica de organização do

Estado moderno.

O novo conceito de Estado, embasado num compromisso fundamental,

num contrato tácito entre instituição governante e governados, teve seus

contornos delineados pelo Constitucionalismo moderno. Aos entes de direito

público era dada uma carta de fundação, estruturação, organização, dinâmica,

valores fundamentais e, delimitação de prerrogativas e obrigações.

Portanto, com o surgimento do Estado de Direito, à tradição legalista-

francesa, consolida-se o Estado Fiscal e se transforma radicalmente o conceito

de imunidade tributária (TORRES, 1995). Sobre esta transformação das

exonerações tributárias aduz Torres que:

como meios adequados a este fim”. Assim, abrindo mão do chamado direito de natureza, ínsito a todos os homens, constitui-se o Estado. Hobbes afirma: “diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem haja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões, a fim de viverem em paz uns aos outros e serem protegidos dos restantes homens. É dessa instituição de Estado que protegido todos os direito e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido”.

12 Em Segundo Tratado sobre o Governo Civil, Locke parte do pressuposto de que os homens são livres e iguais no estado natural, definido como “um estado em que eles (os homens) sejam absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas posses como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade”. Todavia, da incompatibilidade entre a natureza social do homem e o exercício arbitrário das liberdades absolutas e gerais do estado natural, surgem as sociedades políticas e o contrato social, cujo raciocínio revela que

“como nenhuma sociedade política pode existir ou subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade, e, para isso, punir as ofensas de todos os membros daquela sociedade, só existe uma sociedade política onde cada um dos membros renunciou ao seu poder natural e o depositou nas mãos da comunidade em todos os casos que os excluem de apelar por proteção à lei por ela estabelecida; e assim, excluído todo julgamento particular de cada membro particular, a comunidade se torna um árbitro; e, compreendendo regras imparciais e homens autorizados pela comunidade para fazê-las cumprir, ela decide todas as diferenças que podem ocorrer entre quaisquer membros daquela sociedade a respeito a qualquer questão de direito e puna aquelas ofensas que qualquer membro tenha cometido contra a sociedade com aquelas penalidades estabelecidas pela lei”.

13 Em O Contrato Social, Rousseau desenvolve a problemática fundamental de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente”. Para o filósofo francês, a resposta para esta necessidade do homem moderno é o pacto social, que o transmuda de ser natural em ser cívico. Sintetizou o contrato social nas seguintes palavras: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo.”

Deixa de ser forma de limitação do poder do Rei pela Igreja e pela nobreza para se transformar em limitação do poder tributário do Estado pelos direitos preexistentes do indivíduo. O Estado moderno é um expropriador, que aboliu as imunidades do antigo regime e as substituiu pelas imunidades dos cidadãos. O mesmo significante – imunidade – passou a agasalhar um outro significado. (TORRES, 1995, p. 27)

Cambiou-se as benesses putrefatas da Idade Média – mantida durante a

Idade Moderna, pela tutela aos direitos naturais do cidadão. As imunidades, no

Estado pós Revolução Francesa, ganham vestes mais democráticas, como

bem observa Regina Helena Costa:

Com o advento do liberalismo houve uma democratização das imunidades, e a partir de então, a imunidade deixou de representar um privilégio, para passar a traduzir uma garantia de que certas atividades estariam exoneradas de imposição fiscal, segundo as exigências sociais. (COSTA, 2015, p. 33)

Nesse contexto liberal, portanto, as imunidades assumiram natureza de

verdadeiras limitações ao poder fiscal. As liberdades individuais é que

impunham as imunidades sobre os governos, para que não constrangessem os

cidadãos em “suas reservas de privilégios e direitos particulares” (HAMILTON;

MADISON; JAY, p. 505).

Observe-se que a utilização das imunidades como método de tutela das

liberdades dos cidadãos recebeu estudo inédito e de relevância ímpar no

constitucionalismo norte-americano. Citamos o caso Corfield v. Coryell14, em

que o juiz B. Washington, da Suprema Corte Americana, definiu as imunidades

como o direito de adquirir e possuir propriedade de qualquer espécie, e de

procurar e obter felicidade e a segurança e de se locomover para outro Estado

ou nele residir com o propósito de comerciar ou exercer profissão (TORRES,

1995).

Importante mencionar que, em Corfield v. Coryell, a decisão de

Washington foi pioneira ao estabelecer a diferenciação entre os direitos

naturais que são imanentes à condição humana, e os direitos naturais que

decorrem da cidadania (UPHAM, 2005), estes últimos nitidamente originados a

14 O case data de 1825 e versou sobre a interpretação, pela suprema corte, do art. IV,

parágrafo 2, cl. 1 da Constituição norte-americana de 1789 (“The Citizens of each State shall be entitled to all Priviledges and Immunities of Citizens in the several States”).

partir do pacto social, enquanto liberdades individuais fundamentais oponíveis

ao poder de polícia fiscal do Estado.

Outro caso importante da história da Suprema Corte norte-americana, e

merecedor de nota, é o multicitado McCulloch v. Maryland (CORNELL

UNIVERSITY LAW SCHOOL, 2015)15. Naquela ocasião, o Chief Justice da

Suprema Corte Americana, John Marshall, extraiu do caso concreto a máxima

“the power to tax involves the power to destroy”16. Observou naquela ocasião

que:

[...] a aptidão para destruir não deve ser controlada apenas pela confiança (confidence), mas pela representação, pela estrutura do governo e pela supremacia da Constituição, daí resultando a isenção das ações e operações dos órgãos e instrumentalidades federais. (TORRES, 1995, p. 65)

Perceba-se, portanto, que toda a ideia por detrás dos privilégios e

imunidades dos cidadãos fundava-se em princípios naturais que passaram a

ser paulatinamente positivados – ou reconhecidos, nos países de tradição no

Common Law - nos textos constitucionais em todo o mundo.

Com a substituição dos direitos do homem pelos direitos do cidadão, o

epicentro das imunidades tributárias adequou-se às demandas do positivismo

jurídico dos séculos XIX e XX. Em busca da Teoria Pura do Direito, o jusfilósofo

Hans Kelsen17 tentou dar esfera própria à norma jurídica, livre das impurezas

que a tornaram concebível, assim construindo um conhecimento totalmente

contrário à metafísica.

Isso ocasionou o surgimento de um entendimento diverso sobre a

natureza jurídica das imunidades tributárias neste período.18 Perdida a ligação

entre imunidades e direitos fundamentais, construiu-se entendimento de que o

15Em McCulloch v. Maryland, foi levada a conhecimento da Suprema Corte situação em que o

Estado de Maryland pôs-se a lançar tributos sobre um banco instituído e subsidiado pelo Congresso Nacional. A decisão do Chief Justice John Marshal foi no sentido de que a criação do banco pelo Congresso Nacional revela-se como incidente do poder soberano da união e, por representar toda a coletividade – we the people of the United States – não poderia submeter-se ao poder destrutivo da tributação do Estado de Maryland.

16 Tradução livre: “o poder de tributar envolve o poder de destruir”. 17 Citamos a obra “Teoria Pura do Direito” (1934). 18 Jellinek falava em autolimitação ou auto-obrigação (Selbstverpfichtung), pois “o Estado se

obriga a si próprio no ato de criação do direito”. Para Kelsen o Estado é um sistema de normas e “os assim chamados direitos da liberdade” (die sogenannten Freiheitrechts) não existem “fora da ordem jurídica estatal” (TORRES, 1995, p. 33).

poder fiscal constituído era limitado pelo poder constituinte, no momento de sua

constituição – ou posteriormente, quando assim determinasse a Constituição

de determinado Estado.19

No particular das imunidades dos templos, sua gênese passou a

escorar-se na soberania do poder constituinte, que determinava o nascimento

do Estado Fiscal e também o autolimitava. Esta autolimitação dava-se por

conta de um direito constituído, positivado, que não preexistia ao Estado, mas

era concomitante ou posterior a ele.

Ricardo Lôbo Torres pondera, com habitual precisão, que:

Com a onda positivista, perdeu-se a ligação essencial entre as imunidades e os direitos humanos, aparecendo o poder tributário como ilimitado ou, quando muito, sujeito apenas à autolimitação, enquanto os direitos fundamentais ou eram concedidos pela Constituição ou brotavam espontaneamente da sociedade e se positivavam pelo trabalho do constituinte. (TORRES, 1995, p. 42)

O viés positivista das exonerações tributárias veio a ruir à medida que se

agigantava o imperativo de tutela aos direitos humanos, especialmente no final

do século XX. Com o desenvolvimento das disciplinas ligadas à condição

humana, e sua forte carga axiológica objetivamente posta nos mais variados

tipos constitucionais, tornou-se insustentável a tese de autolimitação do poder

tributário.

A este respeito, relata Torres que:

A tese positivista da autolimitação do poder tributário teve consequências indesejáveis: abriu caminho, aqui e alhures, para o autoritarismo fiscal e esmaeceu o significado dos direitos fundamentais, emburilhando-os com as medidas conjunturais e de pura utilidade representadas pela não-incidências teleológicas de estatura constitucional. (TORRES, 1995, p. 43)

19 No Brasil, verificou-se divergência no tocante ao momento em que se autolimitava o poder

fiscal. Oposição entre a tese da imanência da autolimitação – defendida por Gilberto de Ulhoa Canto, Celso Bastos, A. R. Sampaio Dória e Geraldo Ataliba – e a tese da constituição ilimitada do poder tributário e da ulterior supressão, no próprio texto constitucional, da competência tributária dos diversos entes políticos – defendida por Amilcar de Araújo Falcão, Paulo de Barros Carvalho, Bernardo Ribeiro de Morais.

Tal qual o movimento de um pêndulo, muito observado nas teorias que

buscam explicar a fenomenologia jurídica, o conceito das imunidades

tributárias passou a descrever um movimento de regresso aos direitos

humanos, fundamentais, imanentes. Esta nova fase da ciência jurídico-

tributária, chamaremos de contemporaneidade.

Sob este novo prisma, a luz das imunidades é desviada para direção

oposta embora não desconhecida do instituto. Não é mais o poder do Estado

que se autolimita assim determinando uma zona de não-extensão do poder

fiscal, mas sim o direito fundamental que se autolimita, determinando regiões

onde este cederá espaço para a atuação do Estado Fiscal.

Esta autolimitação dos direitos fundamentais é exatamente o que separa

o tributável do intributável, o contribuinte do imune. Traçada a linha limítrofe, o

Estado somente pode atuar onde o direito fundamental aceitou curvar-se à

atividade fiscal. Esta passa a ser a nova lógica das imunidades tributárias:

áreas cuja incolumidade é inarredável.

Nos dizeres de Torres:

A imunidade se confunde com o direito público subjetivo pré-estatal à não incidência tributária, com a pretensão à incolumidade fiscal, com os próprios direitos fundamentais absolutos, posto que é um dos aspectos desses direitos, ou uma sua qualidade, ou a sua exteriorização, ou o seu âmbito de validade. A imunidade, em outras palavras, exorna os direitos da liberdade e limita o poder tributário estatal, não sendo, de modo algum, uma das manifestações da soberania do Estado, nem outorga constitucional, nem uma autolimitação do poder fiscal, nem uma simples garantia principiológica como poderia dar a entender o caput do art. 150 da CF. Os direitos humanos, em síntese, são inalienáveis, imprescritíveis e intributáveis. (TORRES, 1995, p. 44)

Fazendo um adendo às prestimosas lições do multicitado mestre,

propomos rápido resgate ao conceito de contrato social, em que os indivíduos

entregam parcela de sua liberdade ao Estado para que este lhes reja a relação

entre si mesmos. Neste contexto, as imunidades tributárias fazem parte do

núcleo inegociáveis do pacto social, insuscetíveis de sacrifício no altar da

constituição social.

É exatamente aí onde se situa a imunidade tributária dos templos (e

todas as outras que se fundem em liberdades fundamentais): na zona de

inegociabilidade do pacto social. Não cedendo terreno à atividade fiscal do

Estado, são intributáveis os templos por promoverem o desenvolvimento das

liberdades de consciência e crença, de exercício dos cultos religiosos e de

organização das entidades que promovem as atividades eclesiásticas.

Neste sentido, Regina Helena Costa complementa o celebrado mestre:

Ricardo Lobo Torres lembra que, enquanto o liberalismo contemporâneo à constituição do Estado Fiscal buscou a ideia de imunidade tributária nos direitos naturais, o positivismo do século XIX e XX radicou-se no próprio direito e hoje procura-se ligá-la à natureza das coisas ou aos direitos morais, “preexistindo ao poder tributário como qualidade essencial da pessoa humana e correspondendo ao direito público subjetivo que erige a pretensão à incolumidade diante da ordem tributária objetiva. (COSTA, 2015, p. 33)

Portanto, deve-se partir do ser humano, titular de direito fundamental à

liberdade, para então compreender o papel do Estado expropriador. Com

efeito, tem-se que a este simplesmente não é dado atuar onde aquele não

admitir.

2. As imunidades tributárias e as constituições brasileiras

2.1 A Carta de Tomé de Sousa

O território brasileiro fora descoberto em 1500 e desde então a coroa

portuguesa pôs-se a investir recursos tanto na conversão dos nativos ao

catolicismo quanto na exploração das riquezas naturais de sua recém-

descoberta colônia, tendo como primeira iniciativa as capitanias hereditárias.

Apesar dessa espécie de empreendimento já ter sido testada, com êxito,

pelo povo luso nas ilhas do Atlântico (Madeira e Açores), veio a fracassar no

Brasil devido ao elevadíssimo investimento necessário, à distância em relação

à metrópole e à resistência oposta pelos indígenas (KOSHIBA; FRAYZE,

2007).

Reafirmando o propósito de povoamento das terras lusas além do

Atlântico, Dom João III – Rei de Portugal – outorgou em 1549 a Tomé de

Souza uma Carta20 que basicamente cuidava da disciplina administrativa da

nova fase colonial denominada Governo-geral.21

Em sua obra “Sessão Inaugural do Instituto de estudos Portugueses do

Liceu Literário Português”, Pedro Calmon afirma sobre a Carta de Tomé de

Sousa o seguinte:

[...] projetou-se sobre os climas de ultramar o humanismo português, sem perde na viagem, nenhuma de suas características apreciáveis. Dom João III comunicou à América as esperanças de sua forte política, e mandou-lhe, a par do cabo de guerra, o taumaturgo, para a pacificação dos índios, o juiz, para a definição do direito, o funcionário fiscal, para a contabilidade pública, os códigos dos reis anteriores, o equilíbrio jurídico que na Universidade se instalara com a remoçada seiva da jurisprudência latina, e o fortalecimento sensato e gradual da Nação nos seus interesses morais. (CALMON, 1943)

Esta foi, para muitos, a primeira Carta estrutural do Brasil e no seu

âmago trazia uma fortíssima carga valorativa cristã, incluindo em seu

preâmbulo a expressão in Nominé Domine, ou seja, “em nome do Senhor”,

deixando clara a mescla entre Estado e Igreja Católica, conforme verificamos

ser próprio do Século XVI em tópicos anteriores.

As imunidades tributárias, neste primeiro ato normativo traduziam-se

como protetoras de um imperativo colonial, ou seja, determinavam a

intributabilidade sobre quanto fosse necessário ao êxito da colonização.

Obviamente, os jesuítas que vieram ao Brasil comandados por Manoel da

Nóbrega22 mantinham integralmente os benefícios e privilégios da Igreja

Católica em Portugal.

Neste particular, interessante mencionar que o primeiro bispado no

Brasil foi criado em 1551, sendo D. Pero Fernandes Sardinha o primeiro bispo

de Salvador. Com as levas vindouras de colonizadores, vieram outros

20 Também chamada de “Regimento de Tomé de Sousa”. (KOSHIBA; FRAYZE, 2007, p. 45). 21 Embora se tratasse de uma nova fase colonial, visava a manter a divisão administrativa

consagrada por meio das capitanias hereditárias, atrelando-as a um governo central e assistindo-as para que permanecessem no ímpeto de vencer as adversidades brasileiras.

22 Juntamente do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, vieram para o Brasil os primeiros jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega, para iniciar a obra de evangelização dos indígenas.

contingentes de jesuítas, que cada vez mais compunham o caldo cultural da

colônia.

Com o avançar da História, o Brasil-Colônia viveu períodos instabilidade,

conhecendo inúmeras revoltas e levantes23 (eram, em sua maioria,

aristocráticos), quase que como um espelho dos acontecimentos no continente

europeu, o que o Hobsbawn veio a chamar de “A era das Revoluções”24.

No Brasil, ganharam cunho nitidamente separatista e emancipacionista a

Inconfidência Mineira e a Conjuração Bahiana, ambas em período posterior à

ebulição da Revolução Francesa.

Esta organização perdurou até o início do século XIX, quando em 1807 a

família Real e a nobreza lusitanas foram forçadas a fugir para o Brasil devido à

expansão napoleônica. Com a transferência da corte portuguesa para o Brasil,

produziu-se o efeito prático de encerramento do pacto colonial.

O então Rei de Portugal, D. João VI, apressou-se em adotar medidas

que garantissem maior liberdade à colônia. A primeira delas foi a abertura dos

portos às nações amigas – quebrando o exclusivo colonial - e a segunda foi a

autorização para instalação de manufaturas no Brasil (ambas as medidas

datadas do mesmo ano do desembarque). Em 1815 o Brasil foi elevado à

categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, por ocasião do Congresso de

Viena (1814-1815).

Tais medidas não deram conta, todavia, de sanar o sentimento

emancipacionista que tomava conta dos brasileiros inebriados pelo sabor do

liberalismo experimentado mundo a fora. Reforçando esta tendência estavam

as indecisões do monarca D. João VI sobre o retorno a Portugal, a

marginalização política dos senhores rurais brasileiros, a opressão fiscal e a

corrupção administrativa.

Com o acirramento das tensões sociais no Brasil - capitaneadas pelos

ruralistas brasileiros e homens não proprietários contra o domínio econômico

23 A Revolta dos Beckman, em 1684. A Guerra dos Emboabas, em 1709. A Guerra dos

Mascates, entre 1710-1711. A Revolta de Filipe dos Santos, em 1720. A Inconfidência Mineira, em 1789. A Conjuração Bahiana, em 1798.

24 Período compreendido entre 1789 e 1848.

português - e a agitação política em Portugal25, D. João deixa as terras

tupiniquins e nomeia seu filho e herdeiro – D. Pedro - como regente do Brasil.

2.2 A Constituição Imperial de 1824

Inicia-se a partir de então período histórico de extrema relevância,

produtor da primeira Constituição Brasileira. Afirma Pinto Ferreira que:

Ainda a independência não havia sido proclamada, e já havia o príncipe-regente D. Pedro convocado, em 23 de junho de 1822, uma constituinte, para votar o estatuto fundamental do país. Acelerada a agitação ideológica para libertação definitiva da nação dos laços de vinculação política a Portugal, reuniu-se a assembleia constituinte, entre 2 de maio e 12 de novembro de 1823. As tendências ultraliberais e revolucionárias dos seus trabalhos provocaram o contragolpe conservador de D. Pedro I, que a dissolveu, encarregando o Conselho de Estado da feitura de novo projeto, que se transformou na Constituição da monarquia brasileira, de 25 de março de 1824, outorgada pelo Imperador ao povo. (FERREIRA, 1978)

O novo texto constitucional outorgado arquitetou a estrutura de poder do

império nos seguintes termos:

Além do poder moderador, funcionavam os clássicos poderes executivo, legislativo e judiciário. O poder executivo era desempenhado por um ministério, sendo criada em 1847 a presidência do Conselho de ministros, nos moldes parlamentaristas franco-britânicos. O poder legislativo exercia-se por um Senado vitalício e uma Câmara temporária, com o número dos representantes populares proporcional ao da população, devendo-se aqui consignar que, em 1880, se decretou a eleição ireta, numa marcha trepidante para a democracia. Enfim, o poder judiciário era confiado ao Superior Tribunal de Justiça, aos Tribunais de Relação nas províncias, além dos juízes de direito. Afora essas instituições, cumpre ressaltar a existência do Conselho de Estado, que, salienta Joaquim Nabuco, foi com efeito uma grande concepção política, que mesmo a Inglaterra nos podia invejar, ouvido sobre todas as grandes questões, e “conservador das tradições políticas do império”. (FERREIRA, 1978)

25 “Desde a transferência da Corte para o Brasil, Portugal vivia um situação incômoda: em

1808, foi invadido pelo exército de Napoleão; posteriormente, coma expulsão dos franceses, passou a viver diretamente sob a tutela inglesa. Até 1820, Portugal foi governada por lorde Beresford.” (KOSHIBA; FRAYZE, 2003, p. 177).

Apesar de pouco cuidar da matéria tributária em si – e mais da

organização do Império – a Constituição de 1824 já abarcava as noções de

capacidade contributiva e de imunidade fiscal, todos alocados sob a égide da

redação de seu art. 179. Sobre este dispositivo, Regina Helena Costa aduz

que:

Após dedicas alguns dispositivos à Fazenda Nacional (art. 170 a 172), traz, em seu art. 179, inicialmente, a determinação de que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção de seus haveres” (inciso XV), preceito consagrador da essência dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva. (COSTA, 2015, p. 34)

Ainda sobre o art. 179 da Constituição Imperial de 1824, informa a

mesma autora:

O mesmo art. 179, em seu inciso XVI, estatui que “ficam abolidos todos os privilégios, que não foram essenciais, e inteiramente ligados aos cargos, por utilidade pública”, encerrando, assim, a concessão dos privilégios outorgados à nobreza. De outro lado, porém, salienta a manutenção de “privilégios essenciais”26 – vale dizer, de benefícios que não poderiam ser suprimidos – pelo quê entendemos residir aqui o embrião das imunidades tributárias no Direito Constitucional Brasileiro. (COSTA, 2015, p. 34)

A par do significado dos “privilégios essenciais”, é relevante o fato de ter

sido a Carta Fundamental outorgada “em nome da Santíssima Trindade”. No

artigo 5º do texto constitucional, havia a previsão de que:

A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórmula alguma exterior do templo. (BRASIL, 1824)

A liberdade religiosa consagrada na Constituição do Império era,

portanto, mitigada em nome da supremacia do catolicismo, religião oficial do

Império. As demais manifestações de credo deveriam ser confinadas a 26 Acrescentamos que as Constituições são produtos de processos históricos, sendo

necessário salientar que um privilégio essencial à época do Império não necessariamente será um privilégio essencial na atualidade, podendo até mesmo sinalizar um privilégio inconstitucional.

espaços privados. Já se previa, todavia, a impossibilidade de perseguição

religiosa, desde que respeitado o culto oficial do Império e a moral pública

(fortemente influenciada pela ética católica).

Daí se verifica que de fato o Imperador conteve o ímpeto

demasiadamente liberal que se manifestou na assembleia constituinte de 1823,

outorgando uma Carta que em muito conservava as características do antigo

regime.

2.3 A Primeira Constituição Republicana, de 1891

A experiência monarquista-constitucional no Brasil durou cerca de 65

anos, e veio a ruir no mesmo ritmo da decadência de seus pilares econômicos:

matriz de exploração e escravidão. Sobre estes elementos, ensina Marco

Antônio Villa (2011) que a abolição e as transformações oriundas do grande

desenvolvimento da economia cafeeira estavam levando ao nascimento de

uma sociedade mais plural.

No mesmo sentido, informa-nos o célebre jurista Pinto Ferreira:

A Revolução Republicana de 1889 refletiu a crise econômica que provocou o ocaso o Império. O bouleversement da economia agrária, propulsionado pela abolição, veio desagregar as pilastras em que assentava a nação, de sorte que a aristocracia rural, sentindo-se espoliada no seu direito sobre a propriedade escrava, engrossou as fileiras do partido republicano. A crise do Açúcar, que era pouco antes da República, a alavanca propulsora da econômica nacional, e a emancipação da escravatura, após campanhas onde se salientaram Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, tudo isso amalgamado com os entrechoques da monarquia contra o exército e o clero, vieram destarte esculpir nova forma de governo, vitoriosa com o movimento revolucionário. (FERREIRA, 1978)

Eis que nasce a República, sob o texto fundamental elaborado em 24 de

fevereiro de 1891 e posteriormente revisitado em 192627. Rui Barbosa – pai

espiritual da Carta de 1891 – esculpiu a Carta republicana inspirado pela

27 Para o fim de coibir algumas arbitrariedades favorecidas pela ambiguidade de passagens

constitucionais relacionadas à intervenção federal nos estados federados, restrição à concessão de habeas corpus e aptidão da União para regular o comércio em ocasiões específicas.

Constituição norte-americana, que trazia em seu seio as ideias diretoras do

presidencialismo, do federalismo, do liberalismo político, e da democracia

burguesa (FERREIRA, 1978).

A emancipação definitiva do povo brasileiro deu-se não somente em

face de Portugal, mas também de um regime político falido que há mais de um

século havia sido suplantado em diversas regiões do mundo, como América do

Norte e Europa.

Chamamos atenção, nesse aspecto, para o fato de que fora a

Constituição Republicana de 1891 que primeiro rompeu entre Igreja e Estado.

Não consta no preâmbulo qualquer menção a divindades, especialmente à

cristã, denotando que a secularização28 do mundo atingiu os ideais

republicanos, inclusive ganhando redação própria no texto fundamental.

O art. 11, §2º da CF/1891 vedou à União, bem como aos Estados,

estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. Em 3

de setembro de 1926, sobreveio Emenda Constitucional que acirrou ainda mais

a ruptura com o antigo regime de poder.

O art. 72, §§2º a 7º da então modificada Constituição de 1891

determinavam as seguintes medidas:

1. Deixou-se de admitir privilégios de nascimento e foros de nobreza, e

foram extintas as ordens honoríficas e todas as suas prerrogativas e regalias,

bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. (art. 72, §2º)

2. Abriu-se a prática religiosa para todos os cultos. O exercício religioso

tornou-se público e livre, permitidas a associação e a aquisição de bens para

essa finalidade, desde que observadas as disposições do direito comum. (art.

72, §3º)29

3. A única modalidade de casamento passou a ser a civil, extirpando-se

do poder religioso esta competência. (art. 72, §4º)

4. Os cemitérios passaram a ter caráter secular, ficando disponíveis a

todos os cultos para prática dos respectivos rituais religiosos em relação a seus

crentes. (art. 72, §5º)

28 Vide tópico 1.2. 29 Perceba-se que já a esta época, era dada às igrejas liberdade de adquirir bens para suas

finalidades eclesiásticas, discussão que ainda não chegou a termo atualmente.

5. O ensino em estabelecimentos públicos tornou-se prioritariamente

leigo. (art. 72, §6º)

6. Cindiu-se totalmente o elo entre Estado e Igreja, pela vedação à

subvenção oficial e à manutenção de relações de dependência ou aliança entre

os mesmos, nos diferentes níveis da federação. (art. 72, §7º)

O cenário delineado pela Constituição de 1891 consagrou e

democratizou a liberdade religiosa no Brasil, o que viria a produzir nos futuros

textos constitucionais a imunidade tributária dos templos como instrumento de

sua salvaguarda.

Outras imunidades tributárias debutaram na Constituição 1891, como a

recíproca30; a relativa a impostos de trânsito pelo território de um Estado, ou na

passagem de um para outro, sobre produtos de outros Estados da República

ou estrangeiros31; e a isenção relativa a impostos, no estado por onde se

exportar, a produção dos outros Estados32.

Sobre a Carta Constitucional de 1891, Regina Helena Costa assevera

que:

A Carta de 1891 contempla, originariamente, a “isenção” da produção dos outros Estados no Estado por onde exportar-se (art. 9o, 2o, §2o), além de vedar aos Estados e à União criar impostos de transito pelo território de um Estado, ou na passagem de um para outro, sobre produtos de outros Estados da República, ou estrangeiros, e bem assim sobre os veículos de terra e água que os transportarem, bem como de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos (art. 11, 1o e 2o). A imunidade recíproca entre Estados-membros e União (art.10) – a qual, saliente-se, é a única imunidade presente em todas as Constituições Republicanas – não abrangia os Municípios uma vez que o sistema federativo adotado nesse Texto Fundamental não os considerava. (COSTA, 2015, p. 34)

Conforme os ensinamentos de Pinto Ferreira (supra), tem-se que apesar

de inaugurar o período republicano, sinalizando inúmeras rupturas com o

antigo regime monárquico, o texto fundamental de 1891 não instituiu

30 Prevista no art. 10 da CF/1891. Atualmente previsto no art. 150, inciso VI, alínea “a” da CF/1988. 31 Prevista no art. 11, §1º da CF/1891. 32 Previsto no art. 9º, §2º da CF/1891.

mecanismos contra as fraudes eleitoras33, o que possibilitou a consolidação

das novas oligarquias brasileiras, centralizadas nos estados de São Paulo e

Minas Gerais34.

Além do panorama político, também merece atenção o cenário social no

decorrer da República Velha. É que a pujança econômica do café ocasionou

inchaço populacional, circulação de capitais e industrialização, ingredientes já

conhecidos do Velho Continente para o surgimento das demandas operárias.

Nesse contexto, curial o ensinamento de Koshiba e Frayze:

De fato, o crescimento urbano foi um fenômeno característico da Republica Velha. O exemplo mais espetacular foi a cidade de São Paulo, que reunia em 1900 cerca de 240 mil habitantes. Com isso, tornava-se a segunda maior cidade do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro, com quase 700 mil habitantes. A generalização do trabalho livre assalariado criava, tanto no campo como na cidade, um mercado para produtos manufaturados. Como nos primórdios da industrialização inglesa, as principais indústrias eram de tecido, seguidas das de alimentação. (KOSHIBA; FRAYZE, 2007, p. 338)

Com a urbanização e a industrialização, o Brasil ingressou na

modernidade e, com ela, novos problemas surgiram (KOSHIBA; FRAYZE,

2007). Diante disso, e da falência do sistema de alternância no poder

estabelecido entre a oligarquia mineiro-paulista, o ensaio republicano chegou

ao fim em 1930, quando ocorreu a Revolução que levou a termo instituiu o

governo provisório de Getúlio Vargas35.

Sobre o momento histórico, relata Pinto Ferreira:

No subsolo da sociedade se agitavam, porém, forças bem mais profundas, conflitos econômicos e sociais. Washington Luís, então Presidente da República, prosseguindo na sua política da estabilização da moeda pela valorização do café, apoiou abertamente a candidatura de Julio Prestes, representante dos interesses paulistas. Em sentido contrário se dividiam outras correntes políticas e sociais, a próprio simpatia das massas

33 “O voto, por exemplo, não era secreto, não existiam cédulas eleitorais nem havia uma justiça

eleitoral independente.” (KOSHIBA; FRAYZE, 2007, p. 338). 34 Era a chamada “política do café-com-leite”, em alusão aos produtos mais significativos

daqueles dois estados. 35 Com a crise de sucessão do presidente Washington Luís, e o golpe no vencedor das

eleições daquele ano de 1930, Júlio Prestes, os Estados de RS, MG e PB deram um golpe para instituir um governo provisório que pudesse atentar para as novas demandas da sociedade brasileira no período republicano.

proletárias, que acordaram para a consciência política nacional, daí resultando uma revolução de caráter nacional. Sobrevindo a vitória da Revolução, instalou-se uma junta governativa, sendo transmitido o Govêrno ao candidato da oposição Getúlio Vargas, que expediu o decreto institucional do Govêrno provisório, de 11 de novembro de 1930, lançando as bases do novo regime. (FERREIRA, 1978)

2.4 A Constituição da República de 1934

Tendo sofrido um golpe, a elite paulista não deixou que o governo

provisório tivesse grandes expectativas de perpetuação, posto que já em 1932

eclodiu movimento reacionário ao golpe de 1930, de face libertária, cuja pauta

principal cingia-se à convocação da assembleia nacional constituinte36.

Novamente, o mestre constitucionalista digere o bolo histórico com perfeição:

Convocada mais tarde uma constituinte, em 1933-34, cuja necessidade a Revolução constitucionalista de São Paulo de 1932 acentuou dramaticamente, dela promanou a Constituição de 16 de julho de 1934. A nova Carta Magna sofreu decisiva influência da Constituição de Weimar, é um reflexo sul-americano dela, catalogando-se o nosso regime não mais como uma democracia liberal, e sim como uma democracia social, com a poderosa ampliação da atividade do governo no campo econômico. A justiça do trabalho, o salário mínimo, a nacionalização das empresas, a limitação de lucros, a função social da propriedade privada, o sindicalismo, a representação profissional no Congresso, o intervencionismo estatal, em suma, as grandes bases da democracia social foram instituídas, guardando-se, em certas variantes, no mais, o modelo constitucional de 1981. (FERREIRA, 1978)

As demandas político-sociais que produziram a constituição de 1934 não

fizeram diminuir a preocupação quanto à matéria tributária albergada na Carte

de 1891, muito pelo contrário: os avanços conquistados até então foram

mantidos e outros mais viram-se alargados. Assim nos ensina Costa:

A Constituição de 1934, por sua vez, reitera a vedação ao embaraço aos cultos (art. 17, II), outorgando a exoneração tributária aos “combustíveis produzidos no país para motores

36 O Estado de São Paulo viu suas várias classes sociais mobilizarem-se – em virtude da

comoção gerada pela morte dos estudantes Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo (MMDC) em repressão policial a um ato político ocorrido no centro de São Paulo em 23 de maio de 1932 – para resistir militarmente ao governo provisório de Vargas. O movimento foi contido, mas forçou a mão do então governante para convocar a Assembleia Constituinte.

de explosão” (art. 17, VIII). Abriga, outrossim, a proibição de cobrança, sob qualquer denominação, de tributos interestaduais, intermunicipais, de viação ou de transporte, ou quaisquer tributos que, no território nacional, gravem ou perturbem a livre circulação de bens ou pessoas e dos veículos que os transportem (art. 17, IX). (COSTA, 2015, p. 35)

É digno de nota que, no tocante às imunidades recíprocas, este é o

primeiro registro na história constitucional brasileira de menção aos municípios

como participantes do rol das pessoas políticas da federação37. Ainda, surgem

as imunidades referentes a impostos que constranjam diretamente as

profissões de escritor, professor ou jornalista.38

Outra curiosidade acerca da Constituição de 1934, e aqui no tangente às

imunidades dos templos, é que não somente foi vedado aos entes estabelecer,

subvencionar ou embaraçar o exercício dos templos, como também quis o

constituinte proibir a manutenção de relações de aliança ou dependência com

qualquer culto, ou Igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do

interesse coletivo.

Esta passagem, contida no inciso III do art. 17 da Carta Fundamental de

1934, é importante por demonstrar a continuidade do toque secular dos

governos, mas principalmente por revelar o interesse do Estado brasileiro na

propagação dos templos de qualquer culto enquanto células de

desenvolvimento individual e consecução do bem social.

A liberdade religiosa já era, portanto, muito mais que uma atividade a ser

meramente tolerada pelo Estado. O constituinte de 1934 teve a sensibilidade

de compreender que da colaboração entre Estado e Igrejas – sem

estabelecimento, subvenção ou embaraço de umas em detrimento de outras –

pode resultar o bem coletivo e a formação de um senso moral comum, por isso

mesmo sendo interessante que estas associações atuassem perseguindo este

objetivo (o mesmo do Estado) tanto quanto possível.

2.5 A Constituição de 1937 e o Estado Novo de Vargas

37 Art. 17, X e parágrafo único da CF/1934. 38 Art. 113, item 36 da CF/1934.

Apesar da promulgação da Constituição de 1934, o Brasil não conheceu

o fim do governo provisório de Vargas, instituído desde a Revolução de 1930.

Ao invés disso, constatou-se esforços para sua manutenção no poder, tudo

possibilitado em virtude da conspiração das forças internacionais que

influenciavam os acontecimentos nacionais.

Diz-se isto porque, nos primeiros trinta anos do século XX, com a

ocorrência da Primeira Guerra Mundial e do crack da bolsa de Nova York – que

mergulhou o mundo inteiro em crise financeira, inclusive o Brasil – a Europa se

viu arrebatada pelo surgimento de ideologias antiliberais.

A Revolução de 1917 depôs os czares russos e deu origem à URSS39,

disseminando pelo mundo os ideais coletivistas do comunismo. Em resposta,

surgiram no ocidente europeu (Itália e Alemanha) movimentos – embora

antiliberais – anticomunistas como o nazismo e fascismo.

O Brasil obviamente não passaria ao largo da ebulição ideológica

mundial. Sobre a reação brasileira a estas forças internacionais, Koshiba e

Frayze ensinam que embora Getúlio não fosse nem comunista nem nazi-

fascista, ele foi a expressão, no Brasil, dessa tendência mundial.

O chefe do governo provisório – após a promulgação da Carta de 1934 –

apropriou-se da bandeira anticomunista40 41 para construir o momento político

necessário à tomada do poder antes das eleições marcadas para 193842.

Assim, Getúlio Vargas conduz o Brasil à sua primeira ditadura, que ficou

conhecida como Estado Novo.

Sobre este momento histórico do constitucionalismo brasileiro,

recorremos uma vez mais às lições de Pinto Ferreira:

O referido documento político [Carta Magna de 10 de novembro de 1937], expressão nítida das ondas ideológicas internacionais, e ajustado a determinadas condições históricas nacionais, reagia energicamente, destarte, contra a ação

39 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. 40 Em 1935, um grupo de militares ligados ao PCB encarregou-se de conferir veracidade ao

alarmismo varguista, ao promover um levante armado em Natal e no Recife, facilmente reprimido pelo governo. A rebelião ficou conhecida como “Intentona Comunista.”

41 A Farsa do Plano Cohen foi um plano imaginário de subversão comunista, alardeado pelos veículos de comunicação em setembro de 1937, que permitiu a Getúlio Vargas instaurar o Estado Novo em 10 de novembro de 1937.

42 Duas candidaturas prévias já haviam sido lançadas, em fins de 1936, para o pleito presidencial de 1938: a do paulista Armando de Sales Oliveira, e a do paraibano José Américo de Almeida.

violenta de certas forças imanentes da revolução proletária. A nova lei fundamental estabeleceu a preeminência do executivo frente aos poderes clássicos do legislativo e do judiciário, criando uma ditadura suis generis, que se propunha a conciliar os interesses do trabalhismo incipiente com as tendências conservadoras do capitalismo, na verdade uma conciliação difícil pelos antagonismos extremos das classes sociais. (FERREIRA, 1978)

Sobre a dominação ditatorial do Estado Novo citamos ainda Koshiba e

Frayze:

O Congresso Nacional foi dissolvido, juntamente com as casas legislativas estaduais e municipais. Vargas proibiu os estados de realizar empréstimos no exterior sem sua autorização; os gastos com as Forças Públicas foram limitados e os estados ficaram proibidos de equipá-las com armamentos pesados. (KOSHIBA; FRAYZE, 2007)

Nesta nova ordem constitucional, como se percebe pelo panorama

político-social que a produziu, a questão tributária foi relegada a papel de maior

coadjuvância. Costa relata que:

A Carta de 1937 foi a que menos se preocupou com o tema [das imunidades tributárias], prevendo, originariamente, apenas a vedação do embaraço aos cultos (art. 32, “b”), somente vindo a hospedar a imunidade recíproca com o advento da Emenda Constitucional 9, de 1945 (art. 32, “c”) (COSTA, 2015, p. 35)

Perceba-se, portanto, que em tempos de retrocesso social, de mitigação

das liberdades individuais e relativização de direitos fundamentais, as

imunidades – instrumentos de consecução destes primeiros – restam

igualmente prejudicadas. Ora, se a consequência natural das ditaduras é a

repressão ao que as imunidades protegem, então é natural que elas não

tenham sido objeto da redação do constituinte.

Nesse aspecto, devem ser feitas duas observações quanto aos

apontamentos de Regina Helena Costa, reveladores do tratamento dispensado

às imunidades recíproca e religiosa. Estas são as mais comuns nos textos

constitucionais e, ainda assim, encontraram-se mitigadas – poder-se-ia dizer

até suprimidas - nesta Constituição de 1937.

A pretensão de centralização do Poder, e o protagonismo do Executivo

sobre os demais poderes, nos leva a encontrar a justificativa para supressão da

imunidade recíproca no texto original da cártula fundamental posto que esta

exoneração é fundada no pacto federativo, conceito este oposto ao desiderato

varguista.

Por outro lado, verificou-se que a imunidade dos templos permaneceu

no texto original de modo simplificado, ou quase rudimentar. Optou-se por

restringir o estabelecimento, a subvenção e o embaraço aos cultos religiosos e

nada mais, ou seja, sem outras considerações a este respeito a nível

constitucional – nítido retrocesso em relação às Constituições Republicanas de

1891 e de 1934.

2.6 A Constituição Democrática de 1946

A Constituição de 1946 marcou O Retorno Liberal (CHACON, 1987) e o

fim do Estado Novo. Após ser pressionado – pelos Estados Unidos da América

– para entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados, Vargas não

conseguiu mais sustentar a contradição entre luta externa por democracia e

regime interno ditatorial.

Contra o mal maior da ditadura, as forças sociais que vinham sendo

oprimidas e empurradas para a periferia das decisões políticas, firmaram um

compromisso de composição nacional pautada – nas palavras de Pedro

Calmon – “como um documento histórico-ideológico que assinala uma época

de apaziguamento” (FERREIRA, 1978).

Sob o percuciente analisar de Ferreira, o texto fundamental de 1946

bebeu de três fontes principais: a Constituição norte americana de 178743, a

Constituição francesa de 184844 e a Constituição alemã de Weimar45. Embora

43 Da Constituição norte americana veio o princípio da descentralização, com o federalismo e o

municipalismo. 44 Do sistema constitucional francês importou-se a moderação ao poder do Presidente da

República, permitindo certa infiltração do parlamentarismo, tal qual ocorrera na Constituição de 1934. Ainda, a influencia francesa determinou a responsabilização política dos Ministros de Estado, que deixaram de ser meros assistentes do Presidente da República.

45 Weimar fora o marco democrático-social, que viabilizara novas medidas de intervencionismo, planejamento, leis trabalhistas, sindicalismo, direito de greve e etc.

o autor denote certa decepção no tocante ao alcance do vetor social46, é

inegável que o Texto Fundamental de 1946 devolveu o país aos trilhos

constitucional-democráticos da modernidade.

Com o retorno das liberdades individuais e de suas garantias, as

imunidades tributárias ganharam tratamento mais refinado. Costa destaca

algumas destas tendências albergadas já no texto original:

A Democrática Constituição de 1946, em sua redação original, previa a “isenção” do imposto de consumo em relação aos artigos que a lei classificasse como o “mínimo indispensável” a habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica (art. 15, §1o), a imunidade recíproca (art. 31, V, “a”), a imunidade dos templos, partidos políticos, instituições educacionais e de assistência social (art. 31, V, “b”) e do papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros (art. 31, V, “c”). (COSTA, 2015, p. 35)

Digna de nota, ainda, a imunidade prevista no art. 203 da Carta de 1946,

que protegeu da incidência dos tributos diretos os direitos do autor e a

remuneração de professores e jornalistas. Com a Emenda Constitucional n. 9

de 1964, todavia, esta imunidade viu seu alcance limitado para excluir os

impostos gerais de sua esfera de exoneração (COSTA, 2015).

Posteriormente a Carta de 1946 veio a ser modificada – no tocante às

imunidades – pela Emenda Constitucional n. 10 de 1964, que imunizou os

proprietários no caso de desapropriação para fins de reforma agrária, na

transferência da propriedade desapropriada, em relação a impostos federais,

estaduais e municipais (art. 147, §6º) (COSTA, 2015).

O estudo das imunidades tributárias tal como as conhecemos traça sua

gênese até a constituição democrática de 1946, especialmente no que se

refere à imunidade de impostos. Isto porque a redação do atual art. 150, VI da

CF/88 reproduz em grande parte o que dispunha o art. 31, V do texto de 1946.

Chamamos atenção para a maior precisão que fora dada ao tratamento

das imunidades tradicionalmente postas nas constituições anteriores, e às

46 Afirma Pinto Ferreira que “a Constituição de 1946 insistiu em demasia na índole

conservadora da burguesia esclarecida, reproduzindo constantemente o teor democrático-social de 1934, da qual é uma reprodução mais apurada, de sorte que está antedata em relação ao seu Zeitgeist, ao espírito do seu tempo. A democracia socialista, e não a democracia social, é o imperativo do constitucionalismo moderno [...]”

novas que vieram a integram o diploma fundamental. Nesse sentido,

importante mencionar que o art. 31, V, prevê a impossibilidade dos entes

federados lançarem impostos uns sobre os outros (item a), sobre papel

destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros (item c), e

– finalmente - sobre templos de qualquer culto bens e serviços de Partidos

Políticos, instituições de educação e de assistência social, desde que as suas

rendas sejam aplicadas integralmente no País para os respectivos fins (item b).

Observe-se que os templos de qualquer culto foram posicionados no

mesmo item que abarcava outras entidades, revelando uma aparente

contradição entre a imunidade objetiva do templo e subjetiva daqueles outros

elementos. Todavia, tal confusão desaparece perante os comentários de

Carlos Maximiliano à Constituição de 1946:

248 – Mais completamente do que no art. 31, acha-se a doutrina de Jefferson condensada no art. 141, §§ 7º e 8º. O §3º, hoje §7º, restituiu às associações religiosas o direito de adquirir e o de vender bens. [...] Apenas se enquadram as corporações religiosas na regra geral: para adquirir, possuir e alienar bens, constituem-se em PESSOAS JURÍDICAS de conformidade com a lei (Código Civil arts. 16 a 18) (MAXIMILIANO, 1954, p. 381)

O art. 141, § 7º da Constituição de 1946 consagrava a liberdade

religiosa enquanto direito individual e consignou que, para seu exercício,

deveriam as corporações religiosas revestir-se de personalidade jurídica –

detentora de patrimônio e renda - justamente por permitir a sua interação com

os demais atores sociais.

Assim, percebe-se que o culto é viabilizado pela mesma pessoa jurídica

– Igreja – que mantém o templo dentro do qual os atos religiosos são

praticados47. Sendo a Igreja-entidade o elo entre o templo-objeto e o Estado

Fiscal, justificava-se sua presença entre as demais entidades elencadas no art.

31, V, “b” da Carta de 1946.

Outra contradição aparente entre os templos e as demais entidades ali

contidas – que se diga, não merece maior sobrevida - é que, enquanto a

liberdade religiosa impõe um comportamento negativo do Estado, ou seja, uma

47 Constatação que gerou muita controvérsia na doutrina nos anos vindouros.

postura de deferência diante do exercício religioso, as outras imunidades

revelam tutela a outros valores fundamentais da República48, que perseguidos

paralelamente ao Estado, merecem seu incentivo – e, portanto, clamam por

uma conduta estatal ativa.

Reforça esta aparente dicotomia os dispositivos – presentes em todas as

constituições brasileiras - que determinam a impossibilidade do poder público

subvencionar as religiões, consagrando intento diverso daquele de incentivar a

atuação dos partidos políticos, instituições de educação e assistência social.

Contudo, defende-se uma melhor análise sobre a vedação à subvenção

dos templos, tal qual fora consignado na Constituição de 1934 em seu art. 17,

inciso III49. O dispositivo fora temperado, naquela ocasião, pela concepção de

que seria possível ao Estado cooperar com as Igrejas – desde que

indiscriminadamente - no tocante às atividades que direcionassem a sociedade

para o bem comum50.

Assim sendo, veja-se que as entidades descritas no art. 31, V, “b” da

Constituição de 1946 eram subordinadas a uma condicionante

constitucionalmente qualificada: a aplicação integral de suas rendas no

território nacional. Posteriormente, os templos foram desmembrados, ganhando

item próprio, e as demais entidades imunes tiveram sua condicionante

ampliada pelo Código Tributário Nacional de 196651.

48 Os partidos políticos viabilizam a democracia, a representação popular, o sufrágio, e o

aparelho federativo. As instituições de educação e assistência social desempenham atividades que são competências do próprio Estado, e cuja execução interessa a toda a sociedade, atendendo a direitos individuais ligados ao mínimo existencial do cidadão brasileiro.

49 Vide item 1.5.3. 50 Importante observar que, a moral religiosa – seja ela qual for – revela-se como um

instrumento de controle social que, embora paralelo ao direito, muitas vezes aponta para a mesma direção dele. É o caso, por exemplo, dos ensinamentos de benevolência, retidão de caráter, comunitarismo. Todavia, deverá estar reservado ao direito seu campo de autonomia – como quer Streck – para eventualmente contrariar a moral religiosa em defesa da Constituição, como nos casos de casamento homoafetivo, descriminalização do uso de certas drogas, etc.

51 A discussão acerca do Código Tributário Nacional iniciaram-se em 1954, quando o então Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha encaminhou ao presidente da República o Projeto do CTN. Neste documento, as imunidades tributárias (art. 6o – Limitações da Competência Tributária) estavam dispostas tal qual no art. 31, V da Constituição. Levantou-se a questão do desmembramento do item II do art. 11 do Anteprojeto do CTN ( correspondente à letra “b” do art. 31, V da CR/1946) para dar aos templos regramento próprio e isolado, restringindo-lhes o alcance para o edifício ou parte dele destinada exclusivamente para as cerimônias religiosas. Preferiu-se deixar a disposição dos itens tal qual na Constituição da República. Todavia, com a Emenda Constitucional 18 de 1965 (em seu art. 2o, IV, “b” e “c”), cuja produção foi oriunda dos fecundos debates que geraram o CTN no ano seguinte, alterou o

Vale mencionar que muitas das controvérsias atualmente existentes em

relação à imunidade dos templos religiosos são reminiscentes dos debates

carreados quando da elaboração do Código Tributário Nacional, como a

natureza dessa imunidade, sua extensão e o papel da lei na sua disciplina. A

título de exemplo, consta do Relatório produzido por Rubens Gomes de Sousa

para a Comissão de Elaboração do Projeto do Código Tributário Nacional em

1954:

As sugestões 273 e 488, a primeira delas apoiada por numerosas solicitações que a Comissão registrou como sugestões 274 a 342, postularam que a alínea II definisse o conceito de templos, de modo a incluir veículos, edifícios não destinados à celebração do culto e mesmo instalações e pertences. Embora a interpretação ampliativa conte com subsídio doutrinário autorizado (BALEEIRO, op. Cit, p. 112) a Comissão, atentando para a ausência de qualificação no texto constitucional, preferiu considerar o problema como questão de fato. Coerente com essa orientação, suprimiu a ressalva constante da alínea II do art. 11 do Anteprojeto, que limitaria o conceito de templo exclusivamente a imóveis, sem que isso, por outro lado, importe em admitir no conceito os pertences e acessórios mobiliários, como imagens e alfaias, enquanto não incorporadas por acessão.52

É a partir da segunda metade da década de 1950, portanto, que as

imunidades ganham especial relevância constitucional, em virtude da

estruturação do Sistema Tributário Nacional pela Emenda Constitucional n.

18/1965 e também graças ao Código Tributário Nacional, que consolidava o

ideal federativo ao estabelecer competências específicas aos entes, limitá-las

quando preciso e compartilhá-las quando necessário.

2.7 As Constituições de 1967-69 e a Ditadura Militar

No ano de 1964 o Brasil viu-se novamente mergulhado num regime

militar. Utilizando-se do antigo pretexto varguista de iminência de um golpe

Sistema Tributário-Constitucional, promovendo a separação – em ambos os textos, constitucional e legal – entre templos e demais entidades (partidos políticos, instituições de educação e assistência social), sendo que estas últimas passaram a submeter-se aos requisitos de lei complementar (trazidos pelo art. 14 do CTN).

52 Importante destacar que as numerosas sugestões a que se referiu o Relator do Projeto – 274 a 342 – foram, em grande parte, propostas por entidades religiosas como a Confederação Evangélica do Brasil, a Igreja Presbiteriana de Madureira, dentre outros.

comunista, as Forças Armadas depuseram o atual presidente em exercício,

João Goulart, e instituíram a ditadura.

Inaugurando o Regime dos Atos Institucionais (SILVA, 2011), veio o AI

1, de 9 de abril de 1964, que mantinha a ordem constitucional vigorante – de

1946 – mas impunha várias cassações de mandatos e suspensões de direitos

políticos. Em seguida, foi eleito presidente o Marechal Humberto de Alencar

Castello Branco.

Sobre a ruptura com a ordem democrática anterior, José Afonso da Silva

leciona que:

Nova crise culminou com o AI 2, de 27.10.65, e outros complementares. Vieram ainda os AI3 e 4. Este regulando o procedimento a ser obedecido pelo Congresso Nacional, para votar nova Constituição, cujo projeto o governo apresentou. A 24.1.67, fora ela outorgada, o que veio a resumir as alterações institucionais operadas na Constituição de 1946, que findava após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso Nacional com base em seu art. 217, e o impacto de quatro atos institucionais e trinta e sete atos complementares, que tornaram incompulsável o Direito Constitucional positivo então vigente. (SILVA, 2011, p. 86)

O insigne doutrinador continua descrevendo os contornos que assumiu o

Texto Fundamental de 1967:

Sofreu forte influência da Carta Política de 1937, cujas características básicas assimilou. Preocupou-se fundamentalmente com a segurança nacional. Deu mais poderes à União e ao Presidente da República. Reformulou, em termos mais nítidos e rigorosos, o sistema tributário nacional e a discriminação de rendas, ampliando a técnica do federalismo cooperativo, consistente na participação de uma entidade na receita de outra, com acentuada centralização. Atualizou o sistema orçamentário, propiciando a técnica do orçamento-programa e os programas plurianuais de investimento. Instituiu normas de política fiscal, tendo em vista o desenvolvimento e o combate à inflação. Reduziu a autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937. (SILVA, 2011, p. 86)

Na questão tributária, a novel Constituição pouco inovou além do que

José Afonso da Silva aponta. Com relação especificamente às imunidades

tributárias, Regina Helena Costa assevera que se manteve – em linhas gerais –

aquilo que previa a superada Carta de 1946 e sua Emenda Constitucional n. 18

de 1965.

Com efeito, um ano após a outorga da Carta de 1967, produziu-se o Ato

Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. O ato veio romper com a ordem

constitucional, dando ao presidente da República o poder para: decretar o

recesso do Congresso Nacional; intervir nos Estados e Municípios; cassar

mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de

qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e

suspender a garantia do habeas-corpus dos presos políticos.

A partir daí, seguiu-se período tenebroso da história do Brasil, marcado

pela suspensão de direitos e garantias individuais, encerramento das garantias

de autonomia dos magistrados, prática de tortura e paralização da democracia,

o que viria a prolongar-se por 10 anos.53

Em outubro de 1969, a Carta de 1967 sofreu sua primeira Emenda. Em

verdade, “a emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que

verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado” (SILVA, 2011,

p. 86).

A Emenda que aludiu, pela primeira vez, à Constituição da República

Federativa do Brasil, apesar de manter quase que integralmente as disposições

de sua predecessora, com eventual deslocamento de dispositivos, trouxe a

relevante mudança no que diz respeito ao fim do princípio da anualidade

tributária, que obrigava a conter em lei orçamentária a previsão da cobrança do

tributo, para fins de fixação do princípio da anterioridade (GUIMARÃES, 2006).

Outras Emendas sucederam a de 1969, até que se chegasse à Emenda

Constitucional n. 26, de 1985. Esta não mais alterou o texto fundamental de

1967-69, mas convocou a Assembleia Constituinte para destruí-lo, inaugurando

nova ordem constitucional.

Este momento coincidiu com a queda da ditadura e a redemocratização,

após vinte penosos anos de autoritarismo e exceção institucional. Reunida a

Assembleia Nacional Constituinte, a partir de 1o de fevereiro de 1987, produziu-

se o texto final mediante aprovação em dois turnos de discussão e votação,

pela maioria absoluta dos seus membros.

53 O AI5 só veio a ser revogado em 31 de setembro de 1978, último dia de governo do

Presidente Ernesto Geisel.

A Constituição Federal de 1988, segundo José Afonso da Silva, constitui

um texto razoavelmente avançado, moderno, com inovações de relevante

importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial.

2.8. A Constituição Cidadã de 1988

2.8.1 Estrutura das imunidades tributárias na nova ordem constitucional

Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 é herdeira do

desejo liberal hospedado na Carta de 1946. A associação é natural quando se

verifica que as duas marcaram o término de regimes ditatoriais e opressores: a

ditadura militar e o Estado Novo de Vargas.

Todavia, não passaram ao largo da “Constituição Cidadã” os direitos

sociais e a preocupação com a grande massa proletária brasileira, que se

firmara no Texto fundamental de 1934.

Também veio a fazer parte de sua estrutura fundamental, a atenção

despendida à unicidade da federação, o ideal desenvolvimentista dotado de

proporcionalidade, o corporativismo tecnicista e a participação do Estado na

economia, típicos do período militar.

A Carta de 1988, desta feita, foi produto de intensa discussão no

Congresso Constituinte54 e buscou conciliar interesses esquerdo-progressistas

com direito-conservadores o máximo possível. Resultado foi a produção do

texto baseado em 9 títulos: dos princípios fundamentais; dos direitos e

garantias fundamentais; da organização do Estado; da organização dos

poderes; da defesa do Estado e das instituições democráticas; da tributação e

do orçamento; da ordem econômica; da ordem social; das disposições gerais

(SILVA, 2011, p. 88).

Em relação à tributação e ao orçamento, a novel Constituição estruturou

o Sistema Tributário Nacional, que contou com seções referentes (1) aos

princípios gerais, (2) às limitações do poder de tributar, à distribuição da

competência tributária para instituir impostos entre (3) União, (4) Estados e (5)

54 Termo a que se refere José Afonso da Silva para aludir à convocação dos membros tanto da

Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal para compor a Assembleia Constituinte que daria à luz a Constituição Federal de 1988.

Municípios, e (6) da repartição da receita tributária entre os entes da

federação55.

Importante destacar que as imunidades tributárias se inserem na Seção

“Limitações Do Poder De Tributar”, juntamente com princípios constitucionais

que opõem óbice ao livre exercício da competência tributária.

Nesse sentido, Misabel Derzi ao atualizar a obra do insigne Aliomar

Baleeiro – “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar” – assevera que

tanto os princípios como as imunidades produzem efeitos similares: limitam o

poder de tributar.56

Entendemos que identificar na imunidade tributária uma limitação ao

poder de tributar não deve ser vista como tentativa de defini-la, mas sim como

técnica útil à sua compreensão no contexto constitucional. Diante da

multiplicidade de elementos – princípios, imunidades, isenções com assento

constitucional – que limitam a competência tributária, e que com imunidade não

se confundem, não seria razoável apropriar-se do epíteto genérico para defini-

los em espécie.

Neste ponto, inclusive, importante salientar que a Constituição Federal

de 1988 não se utiliza do termo “imunidade tributária”. Em vez disso, serve-se

de expressões que redundam em demarcação da zona de incompetência

tributárias dos entes tributantes. É a lição de Regina Helena Costa57:

[...] em nenhuma passagem a Lei Maior contemplo o termo ‘imunidade’, utilizando-se da expressão ‘é vedado (...) instituir impostos sobre’ quando elenca as imunidades genéricas (art. 150, VI), reiterando, insistentemente, a expressão ‘o imposto (...) não incidirá’ em várias hipóteses de imunidades específicas e também fazendo referências, impropriamente, à isenção no que tange a impostos e contribuições. No que tange às taxas, a Lei Maior prefere referir-se à gratuidade do serviço.

Natural que surja o questionamento, diante desta constatação, acerca da

diferenciação entre isenção e imunidade, afinal, os termos desaguam em

55 Consagrando a tendência aflorada desde o período militar de Federação Participativa. 56 A doutrina normalmente diferencia imunidade de princípio, rechaçando sua correlação.

Regina Helena Costa aduz que princípios e imunidades desempenham um papel distinto no papel de limitar o exercício da competência tributária. Estes, porque orientam o válido exercício da competência tributária; aquelas, porque demarcam a amplitude das normas atributivas de competência.

57 In: GUIMARÃES, 2006.

concepções díspares para a ciência do Direito Tributário, muito embora sejam

empregados pela CF/88 indiscriminadamente.

As lições da mesma doutrinadora tornam de fácil deslinde o ponto nodal

proposto:

As diferenças entre os institutos [imunidade e isenção] podem, então, ser assim sumariadas: 1) a imunidade é, por natureza, norma constitucional, enquanto a isenção é norma legal, com ou sem suporte expresso em preceito constitucional; 2) a norma imunizante situa-se no plano da definição da competência tributária, alocando-se a isenção, por seu turno, no plano do exercício da competência tributária; 3) ainda que a isenção tenha suporte em preceito constitucional específico, a norma constitucional que a contém possui eficácia limitada, enquanto a imunidade abriga-se em norma constitucional de eficácia plena ou contida; e 4) a eliminação da norma imunitória somente pode ser efetuada mediante o exercício do Poder Constituinte originário, porquanto as imunidades são cláusulas pétreas, e a partir de então a competência tributária pode ser exercida, desde que não seja o caso de imunidade ontológica; uma vez eliminada a isenção, por lei, restabelece-se a eficácia da lei instituidora do tributo, observados os princípios pertinentes. (COSTA, 2015, p. 120)

Trocando em miúdos, extraímos do magistério de Costa que,

independentemente da técnica de redação constituinte, as imunidades poderão

ser percebidas sempre que se estiver diante de uma norma constitucional de

eficácia plena ou contível, delineadora de competência tributária – e não

presumidora desta demarcação (campo do exercício da competência).

Com efeito, estas expressões transportadoras de imunidades tributárias

estão em diversas passagens do Texto Fundamental de 1988, sendo mais

nitidamente visíveis no art. 150, VI da Constituição, que contém as chamadas

“imunidades genéricas”58, referentes a impostos.

Por outro lado, a Carta de 1988 também trouxe hipóteses de imunidades

tributárias específicas, destinadas a definir a intributabilidade em relação a

impostos, e.g: IPI sobre exportação de produtos industrializados; ITBI sobre os

direitos reais de garantia de bens imóveis; e impostos federais, estaduais e

municipais sobre as operações de transferência de imóveis desapropriados

para fins de reforma agrária; à taxas, e.g: pelo direito de petição aos poderes

58 É neste rol que se insere as imunidades dos templos de qualquer culto – art. 150, §4o da CF/88.

públicos; e pela obtenção de certidões em repartições públicas; e a

contribuições: e.g: dos necessitados da assistência social oficial; e das

entidades beneficentes de assistência social, relativamente às contribuições

para seguridade social.

Diante disso, as imunidades tributárias, sejam elas genéricas ou

específicas, são instrumentos de delimitação de competência tributária.

Enquanto as demais regras assentam a zona de tributabilidade, as imunidades

fixam a zona de intributabilidade, assim traçando o desenho constitucional de

distribuição das competências tributárias dos entes federativos.

Tanto é assim, que Paulo de Barros Carvalho observa que “[...] a

imunidade não exclui nem suprime competências tributárias, uma vez que

estas representam o resultado de uma conjunção de normas constitucionais,

entre elas, as de imunidade tributária”. (CARVALHO, 2004, p.172)

Na persecução deste desiderato estruturante da competência tributária,

as normas constitucionais reveladoras de imunidade revelam sempre um

aspecto formal atinente à impossibilidade de tributação, um obstáculo

intransponível à fixação da competência para determinado ente tributar um

objeto, atividade ou pessoa.

Sob este prisma formal da imunidade, aduz Costa que:

Sob o prisma formal a imunidade, em nosso entender, excepciona o princípio da generalidade da tributação, segundo o qual todos aqueles que realizam a mesma situação de fato, à qual a lei atrela o dever de pagar tributo, estão a ele obrigados, sem distinção. Assim, sob esse aspecto, a imunidade é a impossibilidade de tributação – ou intributabilidade – de pessoas, bens e situações, resultante da vontade constitucional.” (COSTA, 2014, p. 58, grifo nosso)

2.8.2 Substância das imunidades tributárias na nova ordem constitucional

A mesma doutrinadora, todavia, entende a imunidade como uma moeda

de duas faces, possuidora de dúplice natureza: além de norma constitucional

demarcadora de competência, constitui direito público subjetivo das pessoas

direta ou indiretamente por ela favorecidas (COSTA, 2014).

Esta face de direito público subjetivo justifica-se pela essência da norma

imunizante, sempre contendora de forte conteúdo axiológico, orientado à

concretização de princípios constitucionais.

Nesse sentido, impende observar que a Constituição de 1988

estabeleceu novo paradigma no que pertine à constituição de uma carta de

valores consagradora de princípios morais e direitos fundamentais inafastáveis,

frequentemente utilizados pelo constituinte como a própria substância das

imunidades.

A nova ordem é inaugurada com uma profunda reformulação ideológica

de seu texto. Com a vitória da democracia sobre a ditadura que durou 20 anos,

pela primeira vez o legislador constituinte entendeu por bem posicionar os

princípios fundamentais da República (COSTA, 2014) e os direitos e garantias

do cidadão como capítulos inaugurais do texto normativo-constitucional.

Chamamos a atenção para o fato de a Constituição democrática de 1946

apenas tratar dos direitos e garantias individuais a partir de seu art. 141,

integrante do Título IV daquele diploma fundamental.

É que tradicionalmente – nas constituições brasileiras - a preocupação

com a organização do Estado e com a arquitetura dos três poderes ganhavam

os primeiros Títulos das Constituições, sendo os direitos do cidadão (civis,

sociais, econômicos e políticos) relegados para um segundo momento da

preocupação do Constituinte.

A “Constituição Cidadã”, todavia, irrompeu o ciclo, para inaugurar nova

disposição geográfica dos títulos constitucionais, demonstrando a adoção de

proeminente preocupação com direito humanos, dignidade da pessoa e

garantias individuais e sociais.

Trouxe em seu seio uma perspectiva moderna e abrangente dos direitos

individuais e coletivos, dos direitos sociais dos trabalhadores, da nacionalidade,

dos direitos políticos e dos partidos políticos (COSTA, 2014). Dentro desta

nova lógica, e considerado a superação histórica de um regime ditatorial que

restringia as liberdades do indivíduo, as liberdades fundamentais ganharam

especial relevo no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Os chamados direitos fundamentais de “primeira geração”59, vieram a

encerrar liberdades públicas enquanto manifestações externas da liberdade

interna de escolha. Sobre estes dois prismas da liberdade, conceitua José

Afonso da Silva:

Liberdade interna é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade do mundo interior do homem. Por isso é chamada igualmente liberdade do querer. Significa que a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à vontade do indivíduo [...]. A questão fundamental, contudo, é saber se, feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. Isto é, se se têm condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e, aí, se põe a questão da liberdade externa. (SILVA, 2011)

Sobre esta última, continua o autor:

Esta. Que é também denominada liberdade objetiva, consiste na expressão externa do querer individual, e implica o afastamento de obstáculo ou de coações, de modo que o homem possa agir livremente. Por isso é que também se fala em liberdade de fazer, “poder de fazer tudo o que se quer.” (SILVA, 2011)

Estas liberdades fundamentais vieram a ser revestidas de garantias

contra abusos do Estado e de particulares. Quanto àquele, passou a ser

vedado o exercício da soberania invasiva e inibidora das liberdades individuais

(sem justa causa) e, sendo o poder de tributar um incidente daquela

soberania60, o mesmo veio a conhecer as imunidades enquanto demarcadoras

de sua incompetência em relação a determinados princípios constitucionais.

Percebe-se a associação direta entre estes elementos substanciais das

imunidades e aquelas expostas no rol genérico trazido pelo art. 150, VI, da

CF/88. É o texto:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]

59 Terminologia inicialmente desenvolvida por Karl Vasak e, posteriormente, desenvolvida por

Norberto Bobbio. A propósito, v. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro.

60 Vide Cornell University Law School , 2015.

VI - instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser. (BRASIL, 1988)

A letra “a” resguarda a conjugação necessária entre os princípios

federativo e da autonomia municipal (SILVA, 2011), ambos princípios

fundamentais da república. A letra “b” encerra salvaguarda às liberdade

fundamentais de crença e manifestação religiosa.

A letra “c” protege o pluralismo político e a cidadania, os valores sociais

do trabalho – fundamentos da república – e a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária, e promoção do bem – objetivos da República. A letra “d”

ampara os direitos fundamentais à informação e à liberdade de expressão e

manifestação do pensamento, bem como atua como catalisador dos objetivos e

fundamentos da República.

E, por fim, a letra “e”, adicionada ao texto fundamental pela Emenda

Constitucional n. 75 de 2013, dá suporte a alguns dos valores tutelados pela

alínea “d”, especialmente no que tange à liberdade de comunicação, à

liberdade de manifestação do pensamento e à expressão da atividade artística.

Em virtude do caráter fundamental da substância das normas

imunizantes – em especial das imunidades genéricas61 - seu entendimento

deve acompanhar o do objeto de sua proteção. Nesse sentido, Ingo Sarlet

entende os princípios fundamentais da República como detentores da

“qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem

constitucional, inclusive (e especialmente) das normas definidoras de direitos e

garantias fundamentais” (SARLET, 1988, p. 61).

61 As imunidades genéricas estão contidas em normas de maior amplitude ou de maior

abertura horizontal (COSTA, 2015).

No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres assevera que imunidade

tributária, do ponto de vista conceptual, é uma relação jurídica que

instrumentaliza os direitos fundamentais (TORRES, 1995).

Portanto, a correspondência entre as imunidades genéricas (art. 150, VI

da CF/1988) e os artigos 1o a 5o (insertos nos Títulos I e II: princípios

fundamentais e direitos e garantias fundamentais, respectivamente) da

Constituição Federal, demandam a aproximação do art. 60, §4o da CF/1988,

consagrador das cláusulas pétreas. É o texto:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988)

Em virtude de consubstanciarem instrumentos de efetivação de

clausulas pétreas, as imunidades não permitem ao legislador aboli-las, e nem

ao intérprete empreender exercício hermenêutico que venha a a menoscabar

seu conteúdo.

Ganha força a afirmativa quando considerada a rigidez da constituição

brasileira62. Nos dizeres de Costa:

Em outras palavras, quando a exoneração tributária é outorgada por uma Constituição, pretende-se seja perene. Se a Constituição é rígida, tal perenidade está assegurada em termos mais consistentes, diante do maior grau de dificuldade estabelecido para sua modificação. (COSTA, 2015, p. 75)

Nesse diapasão, as imunidades figuram no rol das mais rígidas

estruturas constitucionais, impassíveis de serem atacadas por qualquer ato

emanado do Poder Constituinte Derivado. Somente a convocação de nova

Assembleia Constituinte, apta a exercitar o Poder Constituinte Originário,

poderia vir a tolir estas normas delimitadoras da competência tributária estatal.

62 Sobre a rigidez das constituições, apropriamo-nos do conceito de José Afonso da Silva, para

quem rigidez constitucional significa imutabilidade da Constituição por processos ordinários de elaboração legislativa.

2.8.3 Método de interpretação das imunidades tributárias

Do cotejo entre os aspectos teleológico e formal das imunidades

tributárias, exsurgem preocupações. É que os vetores liberdade fundamental e

soberania tributária precisam produzir imunidade que mantenha o equilíbrio das

normas constitucionais.

É papel do intérprete da Constituição, portanto, mergulhar nas entranhas

do texto constitucional para então retirar-lhe o significado. A tarefa não é nada

fácil, como bem lembra Canotilho ao aduzir que “a questão do método justo em

Direito Constitucional é um dos problemas mais controvertidos e difíceis da

moderna doutrina juspublicística” (COSTA, 2015, p. 124).

A justiça no método de conjunção dos vetores acima denominados,

encontra-se nas lições de Marco Aurélio Greco apud Regina Helena Costa:

Em função dessa duplicidade de feições, a interpretação das limitações, ao mesmo tempo (e este é o grande desafio), não pode resultar nem numa conclusão que implique em ela se tornar maior que o próprio poder que está sendo limitado (pois limitação não é negação do poder, mas restrição na sua amplitude e no seu exercício), nem pode dar à norma constitucional que a prevê um sentido tão restrito que iniba a proteção ao valor subjacente. (COSTA, 2015, p. 127)

Completa a autora pontuando que:

Desse modo, a interpretação da norma imunitória deve ser efetuada na exata medida; naquela necessária a fazer dela exsurgir o princípio ou valor nela albergado. Sendo assim, não se apresenta legítima a interpretação ampla e extensiva, conducente a abrigar, sob o manto da norma imunizante, mais do que aquilo que quer a Constituição, nem a chamada “interpretação literal”, destinada a estreitar, indevidamente, os limites da exoneração tributária. Em ambos os casos, o querer constitucional estaria vulnerado. (COSTA, 2015, p.128)

Extrai-se destas lições que à norma constitucional não deve ser dada

demasiada extensão, e nem excessiva restrição, sendo certo que ambas as

situações não se coadunam com a intenção do constituinte, ou seja, são

igualmente reprováveis.

Rechaçada a interpretação literal das imunidades tributárias, entendida

como “a mais pedestre das interpretações”63, a autora supracitada sugere que,

consideradas as particularidades enfrentadas pelo intérprete ao interpretar

normas constitucionais (supremacia da Constituição, a natureza da linguagem,

o caráter político e a especialidade de seu conteúdo), sejam privilegiados os

métodos sistemático e teleológico. É o texto:

A partir da identificação do objetivo (ou objetivos) da norma imunizante, deve o intérprete realizar a interpretação mediante a qual aquele será atingido em sua plenitude, sem restrições ou alargamentos do espectro eficacial da norma, não autorizados pela própria Lei Maior. Em outras palavras, a interpretação há que ser teleológica e sistemática – vale dizer, consentânea com os princípios constitucionais envolvidos e o contexto a que se refere. (COSTA, 2015, p. 127)

Sobre o elemento teleológico da norma, discorre Carlos Maximiliano

que:

Segundo os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, descobrem-se o sentido e o alcance de uma regra de Direito, com examinar as circunstâncias e os sucessos históricos que contribuíram para a mesma, e perquirir qual seja o fim do negócio de que se ocupa o texto; põem-se em contribuição, portanto, os dois elementos – a Occasio legis e a Ratio juris. Conclui o repositório de ensinamentos jurídicos: “este é o único e verdadeiro modo de acertar com a genuína razão da lei, de cujo descobrimento depende inteiramente a compreensão do verdadeiro espírito dela. (MAXIMILIANO, 2000)

E, por fim, arremata o mesmo autor, em sintonia com as lições outrora

expostas:

Não se deve ficar aquém, nem passar além do escopo referido; o espírito da norma há de ser entendido de modo que o preceito atinja completamente o objetivo para o qual a mesma foi feita, porem dentro da letra dos dispositivos. (MAXIMILIANO, 2000)

É interessante observar que o próprio Maximiliano, apesar de

reconhecer que o método teleológico deva assumir precedência na

63 Frase do constitucionalista e Vice-Presidente da República, Michel Temer (CÂMARA DOS

DEPUTADOS, 2009).

interpretação constitucional, reconhece que o mesmo não é absolutamente

infalível.

Mais uma vez, tornam-se relevantes as instruções de Regina Helena

Costa, no sentido de aliar ao elemento teleológico o método de interpretação

sistemática, especialmente porque sendo as imunidades garantias de

liberdades fundamentais, acabam por conectar outras regras e princípios.

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