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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO Amor e Fidelidade

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Amor e Fidelidade

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Amor e Fidelidade

Johan Konings

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Edições LoyolaRua 1822 no 347 — Ipiranga04216-000 São Paulo, SPCaixa Postal 42.335 — 04218-970 — São Paulo, SP

(11) 6914-1922

(11) 6163-4275

Home page e vendas: www.loyola.com.brEditorial: [email protected]: [email protected]

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podeser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ouquaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópiae gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco dedados sem permissão escrita da Editora.

ISBN: 85-15-XXXXX-X

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2005

DIAGRAMAÇÃO: Carlos Volpato

CAPA: Maria Clara R. Oliveira

ILUSTRAÇÃO: Ricardo MontanariInspirada pelo calendário inca, representa a rosa-dos-ventos e a Trindade a orientaro povo na luta pela vida digna, tendo no centro, em redor da cruz de Cristo, oanel de sete pontos (a totalidade, os sete dias), irradiando doze flores (patriarcas,apóstolos), e quarenta elementos decorativos (número das grandes experiênciasbíblicas), o todo abraçado por doze estrelas (as da Mulher-Povo de Deus noApocalipse). Cada qual das sete seções do comentário tem uma cor dominante,o conjunto constituindo o arco-íris, a aliança da Paz (Gênesis 9,12-17).

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Sumário

LISTA DOS EXCURSOS ......................................................................... 000

ABREVIATURAS ......................................................................................

PREFÁCIO .................................................................................................

INTRODUÇÃO ..........................................................................................1. O texto de ontem, hoje .................................................................2. Aspectos literários .........................................................................

2.1 O texto do Evangelho ............................................................2.1.1 A conservação do texto ...............................................2.1.2 Unidade e coerência do texto ......................................2.1.3 Estrutura e dinâmica ....................................................2.1.4 Gênero narrativo-dramático e estilo de revelação ......2.1.5 O ponto de vista do autor ...........................................2.1.6 Simbolismo e dualismo ...............................................2.1.7 Mal-entendido e linguagem de iniciação ....................2.1.8 “Bilingüismo” e teor semítico .....................................2.1.9 “Amém, amém” ............................................................

2.2 Relação com outros escritos ..................................................2.2.1 Antigo Testamento e judaísmo ....................................2.2.2 Novo Testamento ..........................................................

2.3 Autor e destinatários ..............................................................2.3.1 A relação de autor e leitor dentro do texto ................2.3.2 Quem foi esse autor? ...................................................

3. O Quarto Evangelho no seu contexto ..........................................3.1 A história literária do Quarto Evangelho ..............................

3.1.1 A trajetória do Quarto Evangelho ...............................3.1.2 Esquema: o Evangelho de João no seu tempo ..........3.1.3 João e a tradição evangélica anterior .........................

3.2 As comunidades do Quarto Evangelho no “mundo” ...........3.2.1 Aspecto econômico e social ........................................3.2.2 Aspecto político ...........................................................

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3.2.3 Aspecto religioso ..........................................................3.2.4 Aspecto cultural ...........................................................3.2.5 Conclusão .....................................................................

3.3 Índole própria do Quarto Evangelho.....................................3.3.1 Testemunho e fé ...........................................................3.3.2 Iniciação e perseverança ..............................................3.3.3 Evangelho místico e contemplativo ............................3.3.4 Evangelho “espiritual” .................................................3.3.5 Evangelho “teo-lógico” ................................................3.3.6 Evangelho da cruz, e da glória do amar ....................3.3.7 Cristologia ....................................................................3.3.8 Escatologia ....................................................................3.3.9 Pneumatologia ..............................................................3.3.10Ensinamento moral .......................................................

3.4 A alternativa cristã segundo João ...........................................3.4.1 A messianidade de Jesus e a nova comunidade ........3.4.2 Contracultura, comunidade contrastante, resistência ......3.4.3 Visibilidade cristã: o amor fraterno ............................

4. Recepção e efeito ..........................................................................4.1 Canonicidade...........................................................................4.2 Best-seller dos gnósticos ........................................................4.3 Evangelho intelectual e espiritual? ........................................

5. Nossa leitura ..................................................................................5.1 Chaves .....................................................................................5.2 Livro da Vida .........................................................................5.3 Amor e fidelidade ..................................................................5.4 Leitura que volta à origem e não tem fim ...........................

ENTRADA (1,1-18) ...................................................................................

O LIVRO DOS SINAIS (1,19–12,50) .....................................................

OS PRIMÓRDIOS (1,19–4,54) .........................................................................O testemunho do Batista e os primeiros discípulos (1,19-52) ........O primeiro sinal: as bodas de Caná (2,1-11) ..............................O gesto profético no Templo (2,12-22) .......................................Em Jerusalém: catequese a um notável judeu (2,23–3,21) .........Na Judéia, Jesus batiza, João testemunha (3,22-36) ...................Na Samaria, Jesus e a samaritana (4,1-42) ..................................Na Galiléia, a fé do funcionário real (4,43-54) ...........................

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A OBRA DE JESUS E O CONFLITO COM O JUDAÍSMO (5,1–12,50) ....................Jesus cura um aleijado em dia de sábado (5,1-47) .....................O episódio dos pães (6,1-71) ........................................................A festa das Tendas (7,1–8,59) ......................................................O cego de nascença e o bom pastor (9,1–10,21) ........................A festa da Dedicação (10,22-39) ..................................................O episódio de Lázaro (10,40–11,54) ............................................Os últimos dias da atividade pública (11,55–12,36) ...................

BALANÇO DOS “SINAIS” (12,37-50) .............................................................

O LIVRO DA GLÓRIA (13,1–20,31) ......................................................

O ADEUS DE JESUS (13,1–17,26) .................................................................O lava-pés e o anúncio da traição (13,1-30) ...............................O “adeus” (13,31–14,31) ...............................................................A vinha verdadeira e seus frutos (15,1-17) .................................A inimizade do mundo e a vitória de Jesus (15,18–16,33) ........A oração do Senhor glorioso (17,1-26) .......................................

O ENALTECIMENTO DE JESUS (18–20) ...........................................................A) Paixão e morte (18,1–19,42) .................................................

Jesus preso e interrogado pelas autoridades judaicas (18,1-27) ............................................................................Jesus perante a autoridade romana (18,28–19,16a) ..............Morte e sepultura (19,16b-42)

B) A Ressurreição (20,1-29) .......................................................No jardim, junto do sepulcro (20,1-18) ................................No cenáculo (20,19-29) .........................................................

CONCLUSÃO DO EVANGELISTA (20,30-31) ......................................................

EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA (21) ............................................Narrativa: A aparição junto ao lago (21,1-23) .........................................Final do editor (21,24-25) .........................................................................

A PERÍCOPE DA MULHER ADÚLTERA (7,53–8,11) .........................

EPÍLOGO DO COMENTADOR

VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO ....................................

ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA ..........................................................

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Excursos

1,1 Palavra ou Verbo? .................................................................................. 000

1,14 Graça e verdade, amor fiel ...................................................................1,25 Ritos batismais e purificatórios no tempo do Quarto Evangelho .......

1,42 Messias/Cristo/Filho de Deus ................................................................1,46 Jesus, o nazareno ...................................................................................

1,51 Uma minicristologia: Filho de Deus/Filho do Homem .......................2,13 Jesus e as páscoas (festas) ....................................................................

2,18 O Templo, Herodes e o turismo ...........................................................2,22 Por que João pôs o conflito do Templo no começo? .........................

2,23 Crer e “crer no nome” ..........................................................................3,5 O novo nascimento do batismo ............................................................

5,30 A obediência de quem ama ...................................................................5,36 A obra, as obras e os sinais ..................................................................

6,11 A soberania no agir de Jesus ................................................................6,35 Jesus se revela em símbolos .................................................................

6,36 Ver e crer — e conhecer .......................................................................6,58 A autenticidade do “discurso eucarístico” ............................................

7,4 Os irmãos de Jesus ................................................................................7,36 A doutrina do judaísmo no mundo grego ............................................

7,38 A profecia de Zacarias e a festa das Tendas .......................................7,52 A origem do Messias .............................................................................

8,25 “Eu sou”/ “Eu sou o que sou” ..............................................................8,36 A liberdade como Aliança .....................................................................

9,23 Jâmnia e a exclusão dos cristãos ..........................................................10,13 O Pastor e o Messias ............................................................................

11,5 Os que Jesus ama ..................................................................................11,15 O sono da morte e a ressurreição do batismo .....................................

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11,27 Ressurreição “no último dia” ou vida eterna já? .................................12,3 Maria de Betânia, Maria Madalena e as três Marias ..........................

12,8 Honrar Jesus, sem esquecer os pobres (segundo Marcos e João) ......12,26 A diaconia eclesial .................................................................................

12,34 O “en-altecimento” do Filho do Homem, a luz e a vida eterna ........13,1 “Chegou a hora” ....................................................................................

13,19 O cumprimento das Escrituras e da palavra de Jesus, em João .........13,23 O Discípulo Amado ...............................................................................

14,6 Caminho, verdade, vida .........................................................................14,9 Ver Deus… em Jesus ............................................................................

14,14 Pedir no nome de Jesus ........................................................................14,17 Espírito Santo — Paráclito ...................................................................

15,1 A vinha de Israel e a videira Jesus ......................................................15,4 “Permanecer”: inabitação/imanência mútua .........................................

15,12 A fonte e o destino do amor segundo João .........................................15,17 Amor afetivo e amor efetivo ................................................................

16,11 O processo com o mundo e com seu chefe ........................................16,22 Alegria ....................................................................................................

16,23a “Aquele dia...” — hoje! ........................................................................17,15 No mundo, não do mundo ....................................................................

17,19 Santidade ou amor? ...............................................................................

17,23 Unidade: para dentro ou para fora .......................................................17,26 Era Jesus astronauta? .............................................................................

18,32 A pena capital ........................................................................................18,38a A verdade e o testemunho de Jesus .....................................................

19,15 O Rei de Israel ......................................................................................19,24 As Escrituras acerca do Justo perseguido ............................................

19,25 As mulheres junto à cruz ......................................................................19,39 Os costumes funerários do judaísmo no tempo de Jesus ...................

20,10 As Escrituras anunciando a ressurreição ..............................................20,23 Perdoar os pecados ................................................................................

20,31 Passar a crer ou continuar na fé? .........................................................21,6 Pescadores de homens? .........................................................................

21,19 Pastoreio ou primado? ...........................................................................

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AbreviaturasaC antes de Cristo

AT Antigo (ou Primeiro) Testamento

ca. cerca de

cf. confira/conforme

cap. capítulo(s)

dC depois de Cristo

lit. literalmente

LXX Septuaginta, tradução grega do AT

Siglas BíblicasAb Abdias Hb Hebreus Nm Números

Ag Ageu Is Isaías Os Oséias

Am Amós Jd Judas 1Pd 1 Pedro

Ap Apocalipse J1 Joel 2Pd 2 Pedro

At Atos dos Apóstolos Jn Jonas Pr Provérbios

Br Baruc Jo João Rm Romanos

Cl Colossenses 1Jo 1 João 1Rs 1 Reis

1Cor 1 Coríntios 2Jo 2 João 2Rs 2 Reis

2Cor 2 Coríntios 3Jo 3 João Rt Rute

1Cr 1 Crônicas Jó Jó Sb Sabedoria

2Cr 2 Crônicas Jr Jeremias Sf Sofonias

Ct Cântico dos Cânticos Js Josué Sl Salmos

Dn Daniel Jt Judite 1Sm 1 Samuel

Dt Deuteronômio Jz Juízes 2Sm 2 Samuel

Ecl Eclesiastes (Coélet) Lc Lucas Sr Sirácida (Eclesiástico)

Ef Efésios Lm Lamentações Tb Tobias

Esd Esdras Lv Levítico Tg Tiago

Est Ester 1Mc 1 Macabeus 1Tm 1 Timóteo

Ex Êxodo 2Mc 1 Macabeus 2Tm 2 Timóteo

Ez Ezequiel Mc Marcos 1Ts 1 Tessalonicenses

F1 Filipenses Ml Malaquias 2Ts 2 Tessalonicenses

Fm Filêmon Mq Miquéias Tt Tito

Gl Gálatas Mt Mateus Zc Zacarias

Gn Gênesis Na Naum

Hab Habacuc Ne Neemias

NT Novo Testamento

p.ex. por exemplo

par. paralelo a/e textos paralelos

v.(vv.) versículo(s)

>Intr. ver Introdução (segue parágrafo)

>com. ver comentário (segue referência)

>exc. ver excurso (segue referência)

>Voc. ver Vocabulário (no fim)

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Prefácio à Segunda Edição

Exatos cinco anos depois da primeira edição tenho o prazer de prefaciara segunda. No prefácio da primeira, escrevi: “É no intuito de servir queentrego às comunidades e seus biblistas este comentário sobre o Evangelhosegundo João. O leitor saiba, porém, que a obra não está acabada. Mas, sequem gosta de construir esperasse até acabar a construção, nunca ocupariasua casa...”. Nesses cinco cinco anos, não foi possível completar muito aconstrução, apenas introduzi certo número de correções pontuais e, no fimdo volume, um epílogo do comentador e orientações bibliográficas.

A grande novidade é a apresentação diferente, mais arejada, em formatomaior. E essa novidade se explica por outra: a coleção “Comentário Bíblico”passou por uma reestruturação. Doravante chamar-se-á “Comentário BíblicoLatino-Americano”, pondo-se a serviço da leitura bíblica nas comunidadescristãs da América Latina. Nesse sentido, iniciou-se a ampliação do elencodos colaboradores.

*O Comentário Bíblico Latino-Americano está sendo editado por Edições

Loyola, à qual nosso especial agradecimento pela presente estréia da novacoleção.

Retomo alguns pontos de vista do prefácio da primeira edição.

O Comentário Bíblico Latino-Americano não visa proclamar dogmas oufornecer erudição. Quer apenas ajudar a compreender o texto e a assimilarseu sentido na vida, no contexto de nossas comunidades. Mas, mesmo nessasimplicidade, o estudo de João exige certos aprofundamentos de ordem lite-rária, histórica e teológica. Em vista do inter-relacionamento das diversaspassagens e para vitar repetições, desenvolvi bastante a introdução, inseriexcursos (elencados no sumário) e acrescentei um vocabulário histórico e

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exegético, concebido em função deste comentário, sem pretensão enciclo-pédica. No fim de cada episódio aparece um quadro com sugestõeshermenêuticas para a atualidade.

Procurei mostrar o sentido de João a partir da coerência interna do texto.Daí as referências a outras partes do próprio evangelho e aos demais livros daBíblia, pois o autor tinha mentalmente presente a tradição cristã (em vias dese tornar o Novo Testamento) e as Escrituras de Israel (Lei, Profetas e Escri-tos), como mostram as numerosas citações e alusões. Assim, a única bibliotecaque o leitor deste comentário necessita é a Bíblia — de preferência com oslivros deuterocanônicos (ou apócrifos, na terminologia protestante).

Caracterizando o Quarto Evangelho como “o livro da vida das comuni-dades joaninas”, procurei articular a objetividade do estudo histórico-literá-rio com a “leitura na vida” que deve acontecer em nossas comunidades.

Ofereço este comentário aos promotores e aos participantes da leitura daBíblia com o povo em nossas comunidades.

Natal de 2004

JOHAN KONINGS

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Introdução

1. O TEXTO DE ONTEM, HOJE

Os evangelhos são aquilo que os evangelistas, na segunda metade doprimeiro século depois de Cristo, desejavam que seus leitores, ou ouvintes,contemplassem a respeito dos gestos e palavras de Jesus de Nazaré, paraalimentar, na comunidade e na vida, sua prática de fé.

Ler os evangelhos é tornar-se presente a esse momento; mas, ao fazer-mos isso, somos quem somos: levamos nosso momento presente conosco,dentro de nós.

Para saborear um texto no sentido em que foi escrito, precisamos reviverà luz do momento presente o impacto que produziu nos primeiros destina-tários. Importa captar as perguntas, as circunstâncias, as preocupações, acultura, as tensões e os conflitos vividos pelos primeiros destinatários. Comonão dispomos de muitas informações externas a respeito disso, devemosinferir esse conhecimento a partir do próprio texto.

Mas para que isso nos diga alguma coisa, devemos também ter consciên-cia do momento que estamos vivendo!

Quais são nossas perguntas, qual nossa inquietude? Imaginando, então,o efeito do texto nos primeiros destinatários, podemos conferir isso comaquilo que nós mesmos percebemos ao lê-lo em nossa realidade atual. Seráque um sentido comparável ao que perceberam as primeiras comunidades seabre também para nós? Se este for o caso, estabelece-se um diálogo entre acompreensão das primeiras comunidades e a nossa. O que vivemos hojesensibiliza-nos pelo que perceberam os primeiros destinatários. E, vice-ver-sa, participar daquilo que os antigos sentiram sensibiliza-nos mais profunda-mente por nossa realidade e conflitos atuais. Assim, os dois momentos seinterpenetram.

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2. ASPECTOS LITERÁRIOS

O acesso ao Quarto Evangelho começa por aquilo que está mais perto denós: o próprio texto. Só depois podemos considerar coisas menos segurascomo sejam o autor e seu ambiente. Muitas vezes só chegaremos a imaginaro autor e seu ambiente a partir daquilo que o texto nos mostra, pois asindicações externas são escassas. Convém, pois, neste momento, fazer umaprimeira leitura do Quarto Evangelho inteiro, se ainda não o fizemos — sópara conhecer o terreno.

2.1 O texto do Evangelho

2.1.1 A conservação do texto

Em resposta àqueles que lançam dúvidas sobre a autenticidade do textode João que hoje possuímos, seja dito que praticamente não existe obraliterária profana ou religiosa da Antiguidade conservada de modo maisconfiável que o Evangelho de João. Nestas últimas décadas foram reencon-tradas cópias manuscritas que datam do século II, menos de cem anos depoisda redação do Evangelho, o que é excepcional para esse tipo de literatura.E essas cópias coincidem admiravelmente com os grandes manuscritos dosséculos IV e V conhecidos há muito tempo. No comentário assinalamosalgumas dúvidas quanto à forma original do texto, mas nenhuma delas acar-reta conseqüências substanciais.

2.1.2 Unidade e coerência do texto

O Evangelho de João foi comparado à túnica sem costura de Jesus (cf.Jo 19,23; veja, porém, § 3.1). A narrativa é aparentemente contínua, o estilo,homogêneo, as mesmas expressões se repetem até à monotonia. Com 80%do tamanho de Lc, João usa apenas a metade do vocabulário. É até maispobre em vocabulário que o curto e singelo evangelho de Mc. Essa mono-tonia, porém, é a de uma bela liturgia oriental: hierática, expressiva, envol-vente e, se necessário, vigorosa (como as profecias de Ezequiel). Os mesmostemas se repetem, com leves modificações, como as colunas num temploantigo; e numerosas referências, implícitas ou expressas, ligam entre si asdiversas partes. As freqüentes frases parentéticas (observações como queentre parênteses), os comentários ao próprio texto (§ 2.1.5), as meditaçõesque o autor acrescenta, não chegam a romper a unidade; antes, a realçam(sobretudo 3,16-21.31-36; 12,37-50). Somente o cap. 21 tem caráter diferente.

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INTRODUÇÃO

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Não obstante a forte unidade, percebe-se, ao percorrer o Quarto Evange-lho, mais mudanças de espaço e de tempo que nos outros evangelhos.A primeira parte (capítulos 1–12) é progressiva e movimentada, a segunda(13–20), mais solene e situada num único lugar: os capítulos 13–17 evocamos discípulos reunidos em torno do Mestre, enquanto os capítulos 18–20focalizam o ato supremo da entrega da vida de Jesus e sua subida ao Pai,acompanhada do dom do Espírito.

2.1.3 Estrutura e dinâmica

Para compreender o Quarto Evangelho convém observar sua estruturaestática e sua estrutura dinâmica. A estrutura estática é como o mapa dacidade, mostrando ruas, praças, edifícios… A estrutura dinâmica, menosdemonstrável, são os processos que geram a vida da cidade.

A estrutura estática do Evangelho de João é comparável a um díptico,um quadro com dois painéis articulados por uma dobradiça. No primeiropainel, Jo 1,19–12,50, encontram-se cenas da vida pública de Jesus, princi-palmente os grandes milagres, aos quais João chama de “sinais”. Costuma-se designar esta parte como “Livro dos Sinais”. Neste painel, Jesus leva suaobra e sua palavra ao mundo, enquanto “ainda não chegou a hora” (2,4; 7,30;8,20…). O segundo painel, 13,1–20,31, representa Jesus na sua “hora” (13,1;17,1), a hora de passar deste mundo para o Pai e receber sua “glória” (17,5).Jesus revela seu mistério para os seus, e, ao passo que o “mundo” o rejeitae crucifica, o Pai o glorifica. Este painel é chamado o “Livro da Glória”. Oconjunto é precedido por um prólogo (1,1-18) e completado por um epílogoeditorial, o cap. 21, trazendo informações sobre o autor e sua comunidade.

Importa também ver a estrutura dinâmica, em primeiro lugar o vaivémentre as diversas partes do livro, sobretudo entre as duas partes maiores: asegunda parte determina a perspectiva da primeira, enquanto a primeiraconstitui a memória que é aprofundada na segunda, de modo que o sentidoda primeira parte se revela na segunda. Os fatos públicos da vida de Jesus(os “sinais”, Jo 1–12) recebem seu significado último em torno da cruz (queé a “glória” de Jesus, Jo 13–20).

Parece uma catequese tanto de iniciação como de perseverança. O Quar-to Evangelho introduz e confirma os fiéis na celebração do mistério de JesusCristo. No início, o interlocutor parece um candidato à fé (Nicodemos, asamaritana). No fim, é o fiel adulto das primeiras gerações pós-apostólicasque, na ausência física de Cristo, é levado a encontrar, iluminado pela memoriaChristi no Espírito-Paráclito, a verdade plenificada em cada momento (16,13);é incentivado a continuar firme na fé, mesmo sem a presença física das

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade

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testemunhas da primeira hora (20,29.30). É um processo de fé. É como seo livro começasse com uma catequese de iniciação para catecúmenos e ter-minasse numa catequese de perseverança para os iniciados, uma mistagogia.Neste sentido, a estrutura dinâmica ajuda a aprofundar a compreensão e avivência do mistério no qual os fiéis são introduzidos.

Podemos comparar a dinâmica do Quarto Evangelho também ao ato deentrar num templo. O pórtico ou adro é constituído pelo Prólogo (1,1-18).No espaço acessível a todos (1,19–12,50), vemos suceder-se, como os qua-dros na nave de uma igreja barroca, os momentos significativos (os “sinais”)da apresentação do dom de Deus por Jesus de Nazaré, organizados em or-dem de crescente apelo à decisão da fé. Depois (13–17), entramos na partereservada aos iniciados, aos quais é revelado o sentido presente e futuro dogesto supremo de Jesus: é o presbitério, no fundo do qual reluz a cruzgloriosa (18–20). (Para completar a comparação, poderíamos dizer que ocap. 21, com seu conteúdo eclesial, é a casa paroquial).

1,1-18 1,19–12,50 13–20 21Prólogo 1a parte 2a parte Epílogo

obra e sinais perante o “chegou a hora”:mundo: “ainda não a hora” a “exaltação”

a Palavra 1,19–4,54 5–12 13–17 18–20 o Ressuscitadodo Pai ao início dos sinais, conflito crescente despedida a obra e a comunidade

mundo apresentação do e opção de fé dos “seus” consumadadom

Na realidade, as duas “partes” não são fortemente demarcadas. Inclusive,a primeira parte inicia com um simples “E este é o testemunho…” (1,19,remetendo a 1,6-8.15). Tanto a primeira como a segunda parte têm umaconclusão (resp. 12,37-50 e 20,30-31) que em certo sentido “fecha” com oPrólogo (cf. as linhas curvas).

No interior da primeira parte encontramos transições que impedem a di-visão em partes estanques: 2,1; 2,12; 3,22-24; 4,1-3; 5,1-2; 6,1; 7,1; 10,40-42;11,54. Uma divisão mais analítica da primeira parte poderia ser a seguinte:

• 1,19–2,12: os primórdios;• 2,13–4,54: Jerusalém, Samaria, Galiléia: em torno da primeira Páscoa;• 5,1-47: uma festa em Jerusalém;• 6,1-71: a Páscoa na Galiléia;• 7–12: Jerusalém: de Tabernáculos até a Páscoa final.

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INTRODUÇÃO

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A transição para a segunda parte, em 13,1, é teologicamente carregada.Marcando a passagem de Jesus deste mundo para o Pai, constitui o pivôcentral, que une, mediante o tema da hora, a primeira parte do evangelho àsegunda. Ela é preparada em 12,20-36 (12,23.27: a hora) e na reflexão-dobradiça de 12,37-50 (>com.).

A unidade e progressividade na narrativa produzem um clímax dramático,que aproxima o Quarto Evangelho do gênero literário dramatúrgico (teatro).

2.1.4 Gênero narrativo-dramático e estilo de revelação

Quanto ao gênero literário, o Evangelho de João está entre a narrativae o drama, ou teatro. (No ambiente cultural do Quarto Evangelho, o teatroera um elemento muito forte.) Alguns episódios se deixam encenar perfeita-mente por qualquer turminha de catequese. Nos episódios da samaritana, docego, de Lázaro, na história da Paixão e Ressurreição encontramos diálogoscheios de vida, indicações de tempo e lugar, mudanças de cena.

É bom ter claro esse caráter dramatúrgico, para não cair na ilusão de queo Evangelho de João seja um detalhado relatório histórico no sentido moder-no da palavra. Sua preocupação é tornar as cenas visíveis, não fornecerdados à pesquisa. Nem todos os detalhes geográficos e temporais devem sertomados ao pé da letra. Mas não estão aí sem razão. Assim, Caná parecesobressair, seja porque lá ocorreu uma importante atividade de Jesus, sejaporque ali existia uma comunidade joanina importante. Também outros de-talhes tanto podem mostrar a familiaridade do evangelista com a paisagem,quanto conter alguma referência simbólica ou comunitária.

Além do caráter cênico de diversos episódios, impressiona-nos a consis-tência dos diversos personagens através do evangelho todo: Pedro, o impulsi-vo, André, o singelo, Filipe, o sóbrio, Tomé, o realista, Nicodemos, o medroso,Caifás, o cínico, Pilatos, o céptico... Também os personagens que só aparecemuma ou duas vezes são muito bem talhados: Natanael, a samaritana, Maria deBetânia, Maria Madalena... O Discípulo Amado é um caso à parte (>exc.13,24), mas como personagem dramático revela alta consistência.

Outra característica, relacionada com a anterior, é a presença de (quase)monólogos do ator principal, que é Jesus. Isso é muito comum no teatro.Certos comentadores querem ver nesses monólogos restos de uma tradiçãopeculiar das palavras de Jesus, mas o modo de falar supõe como ouvintesuma comunidade eclesial já catequizada, não os contemporâneos de Jesus.Outros quiseram ver nos discursos uma adaptação de fontes esotéricas,gnósticas (§ 3.2.4), mas hoje sabemos que estas são posteriores a João; se

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tais fontes demonstram semelhança com as palavras de Jesus, muitas vezesexibem uma forma menos original que os evangelhos canônicos.

O que chama a atenção é o modo como o evangelista deixa Jesus falar:discursos de conteúdo tão profundo, que o próprio Jesus observa que os discí-pulos “agora” não são capazes de entender. Só no fim de seu ensinamento elesconstatam que “agora fala claramente” (16,29). Tal modo de falar é um proce-dimento literário enraizado no Antigo Testamento e no estilo da homilia judeo-helenista da diáspora, onde o Evangelho de João também lança suas raízes. Éo estilo de “revelação sapiencial”. No Antigo Testamento, encontramos duasvertentes, uma nos profetas, especialmente em Is 55, sobre a palavra que sai deDeus e a ele volta depois de produzir seu efeito. A outra vertente se encontranos livros sapienciais, especialmente no Sirácida (que retoma partes de Provér-bios), Baruc e Sabedoria. Estes livros, porém, não eram aceitos nas comunida-des judaicas dominantes. Aqui reside uma das diferenças entre a comunidadejudeo-cristã de João e as sinagogas judaicas, diferença que está por trás dealgumas das brigas teológicas entre as duas: liam livros diferentes.

Por falar em estilo de revelação: nas comunidades joaninas, Jesus mesmoera o revelador. Isso aparece no livro do Apocalipse, onde Jesus revela, àmaneira dos apocalípticos judaicos (Henoc etc.), as coisas que estão paraacontecer, o destino da comunidade (p.ex. Ap 1,1). No Evangelho, Jesusprofere “discursos de revelação”, relacionados com a narrativa de sua prá-tica. O Jesus-revelador não vem ensinar doutrinas superiores, esotéricas,coisas fora do mundo; revela o sentido profundo daquilo que ele próprio faz.No estilo dos profetas, por palavra e ação, ensina que o que ele faz é o queviu junto do Pai. E sua ação principal é: dar a própria vida.

2.1.5 O ponto de vista do autor

Entre as características literárias devemos mencionar as observaçõesexplicativas que aparecem no texto, como quando o diretor de um filme derepente comenta sua própria obra falando em off, fora do roteiro: abandonapor um momento o ponto de vista da narrativa, sai do papel de narrador etorna-se comentador. Tais observações ou parênteses do autor são de diver-sos tipos, mas praticamente sempre no estilo e vocabulário do resto do evan-gelho. Não parecem acréscimos de algum redator, mas comentários reflexi-vos que o autor acrescenta a seu próprio texto.

Alguns desses comentários são indicações de cenário para que o leitor acom-panhe melhor o movimento dramático (p.ex. 5,9; 9,12). Outras são alusões àtradição evangélica geral (3,24), o que comprova que este evangelho foi escritonão para pessoas que nunca ouviram falar de Jesus, mas para pessoas que já

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INTRODUÇÃO

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estão no caminho da fé. Ora, alguns desses comentários fazem mais do queesclarecer a narrativa. Têm valor teológico. Evocam a origem e o conhecimentopeculiar de Jesus, esclarecem a mensagem escondida que o texto veicula eexplicam expressões simbólicas ou de duplo sentido, incompreensíveis para “osde fora”, revelam o sentido escondido das ações de Jesus etc. Assim, mostrama solidariedade do autor com a comunidade fiel (p.ex. 2,22; 6,6; 12,16.33).

O Quarto Evangelho é um evangelho refletido e comentado pelo próprioautor. Seus comentários induzem o leitor a superar o nível da narrativa, areconhecer sentidos mais profundos no texto, a perceber o simbolismo eprocurar um sentido de atualidade, em uma palavra, a interpretar o texto.

2.1.6 Simbolismo e dualismo

João usa com freqüência metáforas, símbolos e figuras, a tal ponto queos discípulos, na hora da despedida, observam que “agora” Jesus tira o véuestendido sobre sua auto-revelação em linguagem simbólica (16,25.29). Essecaráter simbólico se comunica às próprias narrativas, que se tornam símbolosem forma narrativa daquilo que Jesus em pessoa vem trazer — ou é. PoisJesus é aquilo que ele providencia: o vinho novo, o pão da vida, a luz domundo, a ressurreição… O doador e o dom coincidem.

Um caso específico desse simbolismo é o “dualismo”, ou simbolismobipolar, do Quarto Evangelho: em cima/embaixo, carne/espírito, luz/trevas,verdade/mentira, vida/morte. Mediante símbolos arquetípicos, o autor insisteassim na necessidade de uma opção entre os dois âmbitos ou atitudes evocadospor estes termos. Tal linguagem aparece já antes dele no ambiente semítico,desde os profetas e os salmos até a comunidade de Qumran (>Voc.). Por trásdisso não está o dualismo cósmico (a explicação do universo por um princípiodo bem e outro, do mal), como na mitologia persa e na gnose helenística, massim a provocação profética para “descer do muro” e fazer uma opção.

Há em João uma dualidade, não entre os fiéis e o mundo como realidadecósmica, mas (1) entre “este mundo” (precário) e o mundo vindouro (oâmbito de Deus no mundo); (2) entre “o mundo” como parcela incrédula eos que pertencem a Jesus. O “mundo” em João não é um poder cósmico, mascriatura de Deus, embora ingrata!

2.1.7 Mal-entendido e linguagem de iniciação

O Quarto Evangelho se destina a insiders. O simbolismo e a linguagemsóbria, usando poucas palavras para dizer muita coisa, resultam em quevários termos sejam ambíguos para os de fora, mas não para os iniciados nafé. Esse é um procedimento literário do tipo “iniciático”: mostra que os

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iniciados sabem mais que os de fora e, portanto, não devem procurar o“conhecimento” fora da comunidade; e que os de fora precisam aprender(ainda que sejam “mestres em Israel”, como Nicodemos, 3,11), entrar econhecer (“Mestre, onde moras?” — “Vinde e vede”, Jo 1,39).

2.1.8 “Bilingüismo” e teor semítico

O Quarto Evangelho é “bilíngüe” em dois sentidos.

1) Por vezes traduz termos hebraico-aramaicos para o grego: rabbi (1,38),messias (1,41), Kefas (1,42), rabbûni (20,16) etc. Ele escreve emgrego, para leitores de língua grega, mas certos termos foram guarda-dos na tradição de sua comunidade em língua aramaica, idioma faladopor Jesus e os primeiros discípulos. Não é por acaso que esses termosaparecem precisamente na vocação dos primeiros discípulos e notestemunho da ressurreição. Dão um gostinho de vivência direta.

2) João é “mentalmente bilíngüe”. Sente e pensa em categorias semíticasou judaico-bíblicas, enquanto escreve no grego chamado comum(koiné), aceitável ao judeu ou sírio vivendo nas cidades do mundohelenístico. O Quarto Evangelho está cheio de semitismos (o Apoca-lipse, muito mais ainda). Usa hiná (“para que”) no sentido de “que”ou “de modo que”, põe o elemento importante na frente para depoisver como vai construir a frase (prolepse) etc.

João pensa em termos da tradição judaico-bíblica. Por trás de cada imagem,de cada expressão mais acentuada, está a tradição bíblica, lembrada ora confor-me o texto hebraico, ora conforme o texto grego, ora conforme o comentárioaramaico, o targum (§ 2.2.1). Já na primeira frase do evangelho, o termo logos(“palavra”, ou “verbo” como se costumava traduzir antigamente) deve ser inter-pretado a partir do AT e pouco tem a ver com o Logos da filosofia grega (a“razão”), embora chame a atenção de um público que nas praças ouvia os“filósofos” usar esse termo. Assim também expressões como “de cima (do alto)/de baixo”, que fazem pensar no dualismo helenístico (mundo em dois andares),na realidade servem de coordenadas para o “enaltecimento do Filho doHomem”, teologia bem judaica com raízes em Daniel e Isaías. Aconteceu tam-bém que certos termos judaicos tradicionais foram entendidos erroneamente.Assim, para não alimentar saudades do messianismo político, João prefere nãofalar em “Reino de Deus”, mas usa a expressão “vida eterna”, aparentementemais helenística.

A coragem de traduzir assim a linguagem da fé para novos tempos enovos ouvintes é um exemplo para nós. Ora, os destinatários de João, em

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INTRODUÇÃO

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grande parte de tradição semítica, percebiam o substrato bíblico. Nós hojeprecisamos da análise histórico-literária para descobrir o sentido semítico,oriental, presente como fermento na massa do texto joanino, para compreen-der o teor profundo e não nos deixar enganar por nossa mentalidadeocidentalizada. E uma vez percebido o teor profundo, podemos tentarapresentá-lo em termos que sejam abertos às culturas de raiz em nosso meioou à nova cultura urbana.

2.1.9 “Amém, amém”

Na trilha da observação anterior, observamos que João usa de modocaracterístico um duplo “amém” (= “firme, fidedigno”) para introduzir certaspalavras de Jesus. O traço é tão chamativo que conservei a expressão tal qualno texto português. Se as comunidades de língua grega gostavam de ouviressas palavras em aramaico, por que não nós? Provavelmente introduzemfrases-chave, que hoje em dia apareceriam no texto em negrito ou numquadrinho, para a gente decorar. Isso não quer dizer que tenham saído taisquais da boca de Jesus, mas que o evangelista as acha especialmente repre-sentativas do ensinamento de Jesus. É Jesus que fala hoje, ainda que seutexto tenha sido reescrito pelo evangelista. Não esqueçamos que o Jesus queaparece ao visionário apocalíptico da comunidade joanina se chama: “o Amém,a testemunha fidedigna e verdadeira” (Ap 3,14).

2.2 Relação com outros escritos

2.2.1 Antigo Testamento e judaísmo

O Antigo Testamento está presente em todas as páginas do Quarto Evan-gelho: a Torá (Pentateuco, Lei: p.ex. 7,22), os textos proféticos (p.ex. 12,38-40) e sapienciais (p.ex. 1,1). Todavia, a referência ao AT nem sempre é direta,mas mediada pela leitura e pela homilia praticadas na comunidade judaica, naqual a comunidade joanina tem suas raízes. Naquele tempo, ninguém guardavauma Bíblia na cabeceira da cama; conhecia-a pela preleção na sinagoga. Aassembléia assistia assiduamente (e não só ocasionalmente como os nossos“fiéis”) à leitura contínua da Torá — cada sábado um trecho. Feita em hebraico,um tanto difícil para o ouvinte comum, a leitura da Torá era seguida pelaparáfrase aramaica (chamada targum) e completada com trechos dos profetase comentários homiléticos. O que era lido e comentado era gravado na memó-ria (ainda não dispersada pela TV). Assim, os ouvintes sabiam praticamente decor a Torá e os principais trechos dos Profetas. Já na diáspora usava-se paraa leitura a tradução grega da Bíblia, a Septuaginta (LXX).

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A citação do Antigo Testamento no Novo é geralmente considerada como“cumprimento das Escrituras”. Mas isso deve ser entendido direitinho. Nãosignifica que alguma “profecia” do AT se “cumpra” ao pé da letra. Significaque o AT ganha um sentido pleno, e isso, de diversas maneiras, seja porqueacontece mais ou menos o que a profecia disse, seja porque alguma palavraou texto é reconhecido como imagem ou símbolo daquilo que aparece emCristo (isso se chama tipologia), seja por outros procedimentos de associa-ção de idéias. Deveríamos conhecer melhor os padrões de interpretação daTorá que estavam em voga no ambiente de João, pois a Torá era apresentadaacompanhada da interpretação. Assim, ao citar o AT, João pode estar sereferindo à leitura midrash (explicação homilética do sentido), conhecidapelos leitores, mas não por nós. Por isso, somos prudentes em alegar refe-rências do AT; outros estudiosos avançam bem mais nesse terreno.

Nem sempre é claro se João cita o texto hebraico, a LXX ou o targum.Havia certa liberdade, permitindo optar pela forma que mais convinha ou atémodificar levemente o texto em função daquilo que se queria mostrar (Jo 2,17muda o verbo do passado para o futuro, para anunciar a morte de Jesus). Emdiversos lugares João parece aludir aos livros deuterocanônicos (assumidos naLXX), sobretudo Sr e Sb. Ora, o judaísmo refundado pelo sínodo de Jâmnia(§ 3.2.3) recusava esses livros, usados entre os judeus de língua grega, dosquais nasceram a maioria das comunidades cristãs. Reconhecemos aqui o divisorde águas que passa entre João e o “judaísmo formativo” dos mestres. Chegaa ser irônico: no cap. 5, os fariseus acusam Jesus de se tornar igual a Deus porchamar Deus de Pai. Mas é exatamente isso que faz o justo perseguido descritono texto de Sb 2 (deuterocanônico). Se os fariseus quisessem ler os livrosdeuterocanônicos e participar da comunidade cristã, eles compreenderiam!

Menos claras são, em João, as alusões a textos extrabíblicos ou apócri-fos. Pode-se apontar certa analogia, embora meramente formal, com os tex-tos de Qumran quanto ao “dualismo” luz-trevas ou verdade-mentira. Quantoaos textos gnósticos, por vezes comparados com João, esses são ulteriores aele e não podem ser considerados como fonte de João, mas talvez comoresultado de sua influência.

2.2.2 Novo Testamento

1 — Os evangelhos sinópticosO quadro da página 25 mostra que por um lado João segue o esquema

geral dos evangelhos, exemplarmente resumido na pregação de Pedro em At10,37-43. Por outro lado, apresenta a atividade pública de Jesus de mododiferente, abrangendo três anos e não um só, como nos sinópticos.

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INTRODUÇÃO

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Mt Mc Lc Jo

prólogo 1,1-4 1,1-18

Ev. da Infância 1,1–2,22 1,5–2,50

vida pública (cf. At 10,37-43):

* “a partir da Galiléia, após o 3,1–4,11 1, 1-13 3,1-4,13 1,19–2,12batismo por João”

* “Deus o ungiu com o Espírito 4,12–20,34 1,14–10,52 4,14–19,27 2,13– 6,71:Santo e poder... andou 2,13 Páscoa/Jerusalém;fazendo o bem e curando 4 passagem pela Samariatodos os possessos do 5,1 festa/Jerusalém;demônio, pois Deus estava 6,4 Páscoa/Galiléiacom ele... tudo o que fezna região dos judeus”

viagem única, da Galiléia(Lc: pela Samaria)...

* “e em Jerusalém” 21,1–25,50 11,1–13,37 19,28–21,38 7,1–12,50 (Jerusalém);7,1 Tabernáculos;

10,22Dedicação;11,55Última Páscoa

...à Páscoa final em Jerusalém

* “pregaram-no na cruz” 26,1–27,56 14,1–15,47 22,1–23,56 13,1–19,42

* “Deus o ressuscitou no 28,1-20 16,1-8 24,1-53 20,1-31terceiro dia e deu-lhemanifestar-se...”

João não usou os evangelhos sinópticos da maneira como Mt e Lc usa-ram Mc como escrito básico de sua redação. Muitos textos de Jo não têmparalelo nos sinópticos. Mas nas chamadas “perícopes sinópticas” de João(2,13-21; 4,45-54; 6,1-21[60-71]; 12,1-19) e na narrativa da paixão e ressur-reição (Jo 18–20), João parece claramente reinterpretar a narrativa dossinópticos. O que importa é ver em que sentido João conduz sua interpreta-ção (>§ 3.1.3). Contudo, os textos mais próximos dos sinópticos não perten-cem necessariamente ao estágio mais antigo do Quarto Evangelho; algunstemas sinópticos podem ter sido assumidos (e reinterpretados) num estágiojá avançado da redação, quando os evangelhos sinópticos se tornaram maisconhecidos nas comunidades.

2 — As Cartas de João

As Cartas de João mostram muita semelhança temática com os discursosde Jesus no Quarto Evangelho, especialmente Jo 15–16; como este trecho,

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são elas fortemente marcadas pelo problema da coerência da comunidade. Oconjunto de 1Jo parece aprofundar a mensagem do amor fraterno (cf. Jo 15).1Jo 1,1-4 mostra parentesco com o prólogo do Evangelho. Embora pareçarefletir o pensamento da fase final do Evangelho, 1Jo não menciona a dis-cussão com a sinagoga, pois o assunto não é a briga com os de fora, mas osproblemas da comunidade: a caridade e a profissão da fé. Mais momentâneasque o Evangelho, as Cartas refletem a situação pontual do fim do primeiroséculo, quando a questão do judaísmo já recuou para o segundo plano e seimpôs a questão do reto conhecimento de Cristo e a imitação de sua prática,em contraste com a falsa gnose. (Isso mostra também que o aparenteantijudaísmo do Evangelho é meramente casual: se o Evangelho momenta-neamente defendeu a comunidade contra ataques provindos da sinagogajudaica, as Cartas, com o mesmo vigor, lutam contra adversários dentro daprópria comunidade cristã.)

3 — O Apocalipse

O Apocalipse atribuído a João é muito diferente do Evangelho. Exata-mente por isso nos impressionam certas semelhanças exclusivas, como afigura do Cordeiro para representar Jesus e o nome de “palavra de Deus”dado a este (Ap 19,13). O Evangelho de João e o Apocalipse situam-se nomesmo ambiente eclesial, como insinua a tradição que refere o Evangelho deJoão a Éfeso (Ásia Menor), região das sete Igrejas do Apocalipse (Ap 2–3).Outras semelhanças são, em primeiro lugar, o tema do martírio e, maissutilmente, o das núpcias messiânicas (Ap 21–22, cf. Jo 2,1-10). Menosexclusivo, mas de toda maneira significativo, é o tema do Espírito que falaàs Igrejas, papel que o Quarto Evangelho atribui ao Paráclito (cf. também “oDeus do espírito dos profetas”, Ap 22,6). E as imagens grandiosas da lutacontra o Dragão/Satanás, no Apocalipse, não deixam de lembrar a veemênciado desmascaramento de Satanás em Jo 8,39-47.

A diferença entre o Evangelho de João e o Apocalipse está em primeirolugar na linguagem e no gênero literário (para o gênero apocalíptico, cf. oscomentários do Apocalipse). É bastante provável que os dois livros não tenhamsido escritos pelo mesmo escritor. Mas as meditações do Quarto Evangelho nãosão inconciliáveis com os sonhos consignados no Apocalipse. Nem mesmo aaparente diferença quanto à escatologia é tão grande assim. O Apocalipse usa,por definição, imagens apocalípticas para falar do juízo e da vitória de Deus, doCordeiro e dos fiéis, e assegura aos fiéis que eles não conhecerão “a segundamorte”. O Evangelho de João acentua que a opção por Jesus na fé é equivalenteao Juízo e confere a “vida eterna” (“Já passaram da morte para a vida”, Jo 5,24).

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INTRODUÇÃO

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São duas maneiras de exortar os crentes a ficar firmes na sua fé e a “seguir oCordeiro aonde ele for” (Ap 14,4; cf. Jo 12,26; 13,36-37).

4 — Os outros escritos do Novo Testamento

A comunidade joanina partilha realmente a fé das outras comunidadescristãs do primeiro século? Houve quem viu na pregação joanina o testemu-nho de um “herege”, de alguém que não passaria pelo crivo da “ortodoxia”que em breve se estabeleceria na Igreja. Decerto, a pregação dos apóstolosera muito diversificada, e Paulo nos dá prova escrita de que ele não deixavaque outros impusessem seu modo de pregar o Evangelho e de organizarIgrejas (Gl 1,11-12).

Essa relativa autonomia dos primeiros pregadores e de suas comunidadestorna mais significativas ainda as semelhanças entre os diversos escritos doNovo Testamento, especialmente entre o “herege” João e os demais: a mes-sianidade de Jesus, seu senhorio, sua missão divina, seu pastoreio, seu atoconsagrador, o valor salvífico de sua morte, a salvação pela fé, a presençada vida nova, a primazia do mandamento do amor, a comunidade e a frater-nidade… Se a Igreja canonizou os escritos em que esses temas aparecem(p.ex. os sinópticos, Paulo, Hb, 1Pd), devemos atribuir grande importânciaà sua convergência.

João não apenas está em conformidade com os demais, mas ajuda-nos ainterpretá-los. Aborda sob outro ângulo o mesmo mistério. Se, por exemplo,João acentua que a escatologia está presente aqui e agora, podemos leroutros autores do NT na mesma linha, mesmo que sua linguagem seja maisfuturista. João não é apenas um texto para ser lido em si, mas também umachave para os outros escritos (não importa se são anteriores ou posteriores),abrindo o potencial de sentido que eles contêm.

2.3 Autor e destinatários

2.3.1 A relação de autor e leitor dentro do texto

A análise literária pode traçar o perfil do autor como se auto-implica notexto, mesmo que nada se saiba de sua biografia. Se abordamos o QuartoEvangelho com essa pergunta, percebemos que o autor geralmente se compor-ta como um narrador que “submerge” no texto (não aparece). Por outro lado,identifica-se com a comunidade no meio da qual ele faz seu relato. Transpa-rece no plural comunitário usado no Prólogo (v. 14.16), em palavras de Jesus(3,11; 4,22), em palavras dos discípulos (1,41.45; 6,68-69!). Fala de dentro dacomunidade, como numa homilia — provável origem do Quarto Evangelho.

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Como já apontamos, o autor transparece também nos comentários aopróprio texto (§ 2.1.5). Em 19,35, aparece a testemunha ocular: será que oautor se identifica com essa figura, ou torna-se apenas seu porta-voz? Umacoisa é clara: o autor se apresenta como articulador do testemunho e daconfissão de fé da comunidade (20,30-31). (No Epílogo, em 21,24, a óticaé diferente; ali fala o editor a respeito da autoridade que está por trás doEvangelho, ou seja, a “testemunha”, que é o autor, pelo menos intelectual,da mensagem.)

E como o texto vê o leitor? O texto é, essencialmente, uma narrativa; oleitor, portanto, tem o papel de alguém que fica conhecendo a história do“herói”. Mas o público visado de fato recebe mais do que isso. Pelas ironiaspor conta dos “judeus” (§ 2.1.7), pelas explicações colaterais (em off) que opróprio evangelista fornece (§ 2.1.5), pelo simbolismo acessível apenas parainiciados ou pessoas em processo de iniciação (§2.1.6-7), pelo ritmo iniciáticodo livro (§ 3.3.2), pela mistagogia e parênese (condução e exortação dosfiéis), podemos concluir que o autor vê o leitor (ou ouvinte) como seu dis-cípulo no processo da fé. Podemos até supor que o Jesus-rabi de diversaspassagens visualiza a figura do autor. E o tratamento “filhinhos”, que Jesus naCeia usa ao dirigir-se aos discípulos, é muito significativo: é o mesmo trata-mento que o presbítero das Cartas joaninas usa para seus leitores/ouvintes.

A relação autor-destinatário é muito intensa. Poderíamos dizer que o autorestá mais interessado na reação de fé de seu destinatário do que na história deNicodemos ou do cego que ele está contando. Além disso, ele transpõe ossessenta anos entre a história e o destinatário, como aparece neste esquema:

autor destinatários

como supõe o quadro narrador ouvintes que acompanhamliterário a narrativa de Jesus ano 30

como se dá na realidade teólogo, catequeta membros da comunidadejoanina ano 90, recebendoreforço na fé

2.3.2 Quem foi esse autor?

Na maioria dos escritos bíblicos a identificação do autor é problemática,porque antigamente a atribuição de um escrito a determinado “autor” nãoservia para pagamento de direitos autorais, mas para respaldar o uso nacomunidade. Expressava o valor do escrito para a fé. A questão do autor éa da experiência de fé que se expressa na obra, experiência que pode serfruto de prolongado processo, deixando na obra vestígios de diversos modos

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INTRODUÇÃO

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de ver e de compreender, sem que se deva suspeitar intervenções espúrias.O caráter apostólico da obra não consiste em ter sido escrita por um apóstoloem pessoa, mas em expressar e transmitir a fé dos Apóstolos, fundamento dafé das comunidades (o Concílio Vaticano II, Dei Verbum, 18-19, distingueentre os Apóstolos e os autores sagrados).

Os “títulos” dos evangelhos “segundo…” (Mateus, Marcos, Lucas, João)não fazem parte do texto original, mas foram acrescentados no século II.Por razões de objetividade, citamos aqui as testemunhas mais antigas (doséculo II) a respeito da autoria joanina, que não têm a clareza nem o pesoque épocas passadas lhes atribuíram. (Para mais detalhes, veja os comentá-rios eruditos.)Escreve Ireneu de Lião (c. 180): “Depois, João, o discípulo do Senhor,aquele que se reclinou sobre seu peito, também ele editou o evangelho,enquanto residia em Éfeso da Ásia” (Adversus Haereses, III). O documentochamado Cânon de Muratori (c. 200) diz que, reunidos com João, os outrosdiscípulos decidem que ele deve “escrever tudo sob seu nome”. Clementede Alexandria escreve: “João, o último de todos, vendo que nos evangelhosse mostra o corporal, incentivado pelos amigos, divinamente levado peloEspírito, compôs o evangelho espiritual” (das Hipotiposes, cit. por Eusébiode Cesaréia, História Eclesiástica). Os antigos Prólogos latinos dos evange-lhos (antes de 200) ensinam que “esse evangelho foi dado às igrejas enquan-to João ainda vivia, como narra Pápias de Hierápolis […] que o escreveudiretamente por ditado de João”.Ao lado destes, deve-se referir a citação de Papias, testemunha mais antiga,porém conhecida apenas por meio de Eusébio de Cesaréia (século IV), queo interpreta mal. Depois de ter mencionado alguns apóstolos e evangelistas— André, Pedro, Filipe, Tomé, Tiago, João, Mateus —, Pápias se refere “aoque dizem Aristião e o ancião João, discípulos do Senhor”. Eusébio pensaque o primeiro João mencionado, o apóstolo filho de Zebedeu, seja o autordo Evangelho, e o segundo, o ancião, o autor do Apocalipse — mas essanão é necessariamente a opinião de Pápias, e sim, a de Eusébio, no séculoIV. Na realidade, o testemunho de Pápias aponta em outra direção: o autordas Cartas joaninas, intimamente relacionadas com o Evangelho, se intitula“Ancião” (2Jo 1; 3Jo 1), enquanto o do Apocalipse se identifica como João(Ap 1,1.4.9; 22,8), mas não como ancião, e sim como irmão (1,9), exercen-do o profetismo eclesial (22,6.9; cf. 1,3; 22,7.10.18.19). Por isso, o anciãoJoão pode antes ter sido o autor do Evangelho e das Cartas. Assim, éprovável que a mais antiga tradição tenha apontado para o Discípulo AmadoJoão, o ancião, e que posteriormente este tenha sido confundido com oapóstolo João, filho de Zebedeu. É mais provável que a atribuição ao An-cião se tenha transformado em atribuição ao Apóstolo do que o contrário —pois um apóstolo vale mais…

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O raciocínio para identificar o Discípulo Amado com o apóstolo João é oseguinte: na narrativa da vocação em 1,36-41 está presente um discípuloanônimo, ao lado de André, que chama Pedro, e ao lado de Filipe, quechama Natanael. E a partir do cap. 13 aparece na narrativa o DiscípuloAmado, que se reclinou na ceia sobre o peito de Jesus, também designadocomo “o outro discípulo” (13,23; 18,15; 20,2.3.8; 21,7.20.23.24) (>com.13,23). Ora, a narrativa da vocação nos sinópticos menciona André e Pedro,e Tiago e João, filhos de Zebedeu. Infere-se que o anônimo em Jo 1,36-41deve ser o apóstolo João, do grupo dos Doze, filho de Zebedeu, irmão deTiago e ainda idêntico ao Discípulo Amado, que só aparece em Jo 13–20,em Jerusalém, e é conhecido do sumo sacerdote (só no epílogo, cap. 21, eleaparece na Galiléia). Íntimo de Jesus, ele deve ter presenciado a transfigu-ração e a agonia (Tiago, Pedro e João, cf. Mc 9,2 par.; 14,33 par.; cf. aindaMc 5,37 par.). Mas tudo isso não está em João, e sim nos sinópticos. Ora,João só menciona os Doze em 6,13.67.70.71, texto excepcionalmente influ-enciado pelos sinópticos, sem aludir ao apóstolo João. Parece pouco prová-vel que os demais textos se refiram ao João da lista dos Doze. Temos aimpressão de que a tradição ulterior a respeito do autor do Quarto Evange-lho reuniu em torno do filho de Zebedeu dados que nos evangelhos sereferem a diversos personagens.Citemos ainda que, por causa da real proximidade teológica com Mc, háquem veja em “João” o João Marcos de At 12,12 etc., membro da altasociedade de Jerusalém e presumível autor do Segundo Evangelho. Issocombinaria bem com o ponto de vista jerosolomitano do Quarto Evangelho(>§ 3.2.3:1).Outra pergunta é se — prescindindo da identificação com o apóstolo João— se pode identificar o autor com o Discípulo Amado? O grande argumen-to em favor disso é que o epílogo afirma que este discípulo é o autor (21,24;com analogia em 19,35). Mas será que o Discípulo Amado é uma figurareal, e não apenas simbólica, pois o personagem do Discípulo Amado pa-rece representar o discípulo iniciado e “perfeito”, comungante no mistériode Jesus? Pensamos que todo verdadeiro fiel se projeta nesta figura, quedeve ser entendida como figura corporativa, representando a comunidadefiel. Mas isso não exclui que por trás desta figura esteja o evangelista fielque conduziu a comunidade no caminho da fé. O Discípulo Amado pode serhistórico e simbólico ao mesmo tempo.

Respeitemos, portanto, o anonimato do autor. Se ele não quis se dar aconhecer, não fará muita falta sabê-lo. Para nossa finalidade, chamaremos de“autor” ou “evangelista” o produtor literário principal, que compôs, subs-tancialmente, o evangelho na forma em que chegou até nós. Por razões depraticidade chamamo-lo de “João”, e sua comunidade, de “comunidadejoanina”, conscientes de que ela pode ter percorrido um longo e complicado

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INTRODUÇÃO

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percurso. Não façamos, porém, do autor um mero “expoente da coletivida-de”, sem personalidade própria. Por mais que o evangelho seja fruto de umprocesso em que intervieram um pregador da geração apostólica e umacomunidade transmissora, o Evangelho de João é inegavelmente obra de umescritor qualificado, capaz de manejar a arte retórica e dramatúrgica, mas,sobretudo, revelador de uma profundidade teológica que ultrapassa a expres-são coletiva.

3. O QUARTO EVANGELHO NO SEU CONTEXTO

3.1 A história literária do Quarto Evangelho

3.1.1 A trajetória do Quarto Evangelho

Jesus morreu por volta do ano 30. Depois de sua morte, seus seguidoresvoltaram a se reunir. Animados pelas aparições do Ressuscitado, viviam naexpectativa de sua volta ao mundo como Senhor e Juiz, para realizar defi-nitiva e universalmente o Reino de Deus, do qual sua vida terrena forasemente e amostra.

A prática daquilo que Jesus tinha ensinado e mostrado fez a comunidadecrescer e se espalhar, como se pode ler nos Atos dos Apóstolos. Durantevários decênios, os seguidores formaram comunidades que se alastraram naGaliléia e em Jerusalém, na Samaria e entre os judeus espalhados pelo Pró-ximo e Médio Oriente (a “diáspora”) — e, graças ao apostolado de Paulo,também entre os “gentios”, inclusive na Europa. O encontro dos apóstolosem Jerusalém, em 48/49 dC, é um marco na consolidação da unidade daIgreja, composta de comunidades culturalmente diversificadas de judeo-cris-tãos e de pagãos convertidos; as cartas de Paulo por um lado e a de Tiagopor outro ilustram estas duas grandes correntes. À pluralidade das comuni-dades do cristianismo nascente correspondem os diversos evangelhos conser-vados no Novo Testamento, pequenos compêndios da pregação apostólica arespeito de Jesus.

A convivência da Igreja-mãe em Jerusalém com os outros judeus torna-se problemática, certamente a partir de 62 dC, quando seu chefe, TiagoMenor, é morto por instigação das autoridades do Templo. Por aqueles anosa comunidade se muda para Péla, cidade da Transjordânia. Em 66 dC édeflagrada a “guerra judaica”: os zelotes declaram guerra aos romanos eocupam o Templo. Outros, inclusive saduceus, aderem à revolta. Em 70, osromanos destroem o Templo. Em 73, os zelotes acabam num suicídio cole-tivo em Massada, no deserto de Judá. Como depreendemos do Evangelho de

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Mc (escrito entre 65 e 70), muitos cristãos viam nesses acontecimentos umindício da volta próxima do Senhor Jesus. Para eles não tinha sentido engajar-se na luta dos zelotes, mesmo porque o Templo devia ser substituído, quandochegasse o Fim, por algo totalmente novo.

Depois da destruição do Templo, que acarretou o fim dos sacrifícios e dosacerdócio, os rabinos (mestres leigos) da tendência farisaica de Hillelreconstituem a comunidade em torno do estudo da Torá, em Javne/Jâmnia,perto da atual Tel-Aviv. A relação entre a sinagoga judaica e a comunidadecristã é agora de conflito aberto. O Evangelho de João conheceu sua redaçãofinal na atmosfera de conflito com esse novo judaísmo, chamado de “judaís-mo formativo”, depois de 80. Talvez as alusões à exclusão da sinagoga (Jo9,22; 12,42) se refiram a uma decisão do grupo de Jâmnia (mas a persegui-ção dos cristãos nas sinagogas pode ser bem mais antiga, como provam ostextos de Marcos e da fonte Q usada por Mateus e Lucas).

O conflito com o judaísmo formativo não permite deduzir que o QuartoEvangelho foi escrito na Palestina. A restauração do judaísmo pelos rabinosnão se limitou ao território da Palestina; partilhava com o cristianismo amobilidade, a orientação para a diáspora e o confronto com o helenismo. Umcaso análogo de conflito entre a sinagoga e os judeo-cristãos transparece noEvangelho de Mateus, cuja origem se situa provavelmente na Síria. Os es-tudos recentes tendem a confirmar a opinião tradicional de que as comuni-dades às quais se destina o Evangelho de João provavelmente viviam naregião de Éfeso, no fim do século I.

Por baixo da redação final do Quarto Evangelho escondem-se camadasmais antigas, que deixaram seu traço no texto atual. O caráter profundamentejudaico de todo o evangelho e a exatidão da topografia da Judéia — especial-mente de Jerusalém — indicam que a origem remota do Evangelho de Joãoestá no judeo-cristianismo da Palestina, talvez mesmo em Jerusalém, emborao peso dado a “Caná da Galiléia” (2,1.11; 4,46; 21,2) aponte também paraesta região. Sua trajetória passou depois pela trilha de comunidades consi-deradas periféricas ou até heterodoxas, como os seguidores de João Batista,ativos ainda depois de Jesus (cf. At 19,1-7), e os samaritanos (cf. João naSamaria, At 8,14).

Fazendo a média de algumas reconstituições da trajetória joanina doevangelho, podemos imaginar

1) um estágio inicial de pregação oral por um discípulo de Jesus, nosâmbitos judaicos e afins (Jerusalém, Galiléia, Samaria, círculos batis-tas, diáspora), até a metade do século I.

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INTRODUÇÃO

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2) Antes da destruição de Jerusalém (70 dC) pode ter havido uma primei-ra redação escrita dessa pregação, que, além do anúncio de Jesus res-suscitado como Messias e Senhor (o “querigma”), continha elementosde iniciação cristã (catequese batismal) e de explicação das Escrituraspara os membros já integrados. Este evangelho já tinha as feições es-pecíficas que o tornam diferente dos demais: os “sinais”, o simbolismo,a cristologia da cruz e da glória, a escatologia “inaugurada”.

3) Depois da destruição do Templo (70 dC), que ensejou a restauração dojudaísmo (Jâmnia) nos anos 80-100, situar-se-ia a redação final da obracomo chegou até nós, acentuando a referência à comunidade e seuconflito com o nascente judaísmo rabínico. À redação final parecempertencer certas releituras e complementos (Jo 3,16-21.31-36; 6,51-58;12,37-50; os capítulos 15–16, talvez 17, e provavelmente, o Prólogo).

4) Alguns retoques e o cap. 21 pertencem a um acabamento dado nomomento em que o escrito foi posto em circulação entre as comuni-dades pelo assim chamado “editor” do Evangelho de João. (O trecho7,53–8,11, a perícope da adúltera, é ainda muito mais tardio; não estános manuscritos mais antigos; foi inserido no século IV; por isso, étratado à parte, no fim deste comentário.)

Como, todavia, o estilo é homogêneo, a distinção entre as fases 2 e 3 éproblemática. Também não é fácil referir o texto a determinados momentosconcretos da comunidade. João esfumou tais referências, apresentando umrelato da obra de Jesus. Certos estudiosos vêem uma oposição teológica eeclesiológica entre a redação primeira (fase 2) e a redação final (fase 3), oque faria do Quarto Evangelho uma veste mal-remendada em vez de uma“veste sem costura” (alusão a 19,23). É uma opinião que merece considera-ção. Mas, conforme a boa metodologia, partiremos sempre da análise dotexto como ele se apresenta atualmente, supondo sua coerência; lançaremosmão de hipóteses de incoerência somente quando a coerência do texto semostrar insuficiente.

A intervenção do “editor” (fase 4) aparece com clareza no fim do cap.21. Atualmente o Evangelho de João tem duas conclusões: 20,30-31, trechoque, pelo conteúdo, deve ser atribuído à redação final do autor principal(fase 3), e 21,24-25, fórmula nitidamente “editorial” (fase 4). Este “segundofinal” do Quarto Evangelho garante o testemunho daquele que escreveu oevangelho, dando a impressão de que ele já morreu. A “edição” do Evange-lho de João seria, portanto,póstuma.

Pelo que foi dito, podemos ver no Quarto Evangelho uma releitura dapregação cristã, releitura que supera um vão de mais de meio século. Nesse

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lapso de tempo aprofundou-se o sentido das palavras e dos fatos. Ora, o atualEvangelho de João sobrepõe, muitas vezes, os diversos sentidos, como aliás jáacontece no AT. É um evangelho “ruminado” (cf. § 3.3.4). Os mesmos temassão retomados em vários níveis de reflexão, situados em vários horizontes: oda vida de Jesus, o da primeira pregação cristã, o das comunidades do fim doséculo I. Deste modo, o Quarto Evangelho torna-se um exemplo daquilo quea tradição e a pregação cristã sempre deverão ser: uma contínua releitura.

3.1.2 Esquema: o Evangelho de João no seu tempo

literatura cristã

ca. 50: as “sentençasde Jesus” (Q)

50-60: cartas de Paulo

primeira redação doEvangelho de João?

ca. 65: ev. de Marcos,Carta de Tiago(?)

Império Romano

desde 14: Tibérioimperador

desde 26: Pilatosprocurador

ca. 35: massacre dossamaritanos porPilatos

41: Cláudio Imperador

49: expulsão dosjudeus de Roma

52: Félix procurador

54: Nero imperador

60: Pórcio Festoprocurador

comunidade judaica

desde 18: Caifás sumosacerdote

? João Batista

ca. 35: perseguição dacomunidade cristãjudeo-helenista

44: morte de Agripa I

49: Agripa II “inspetor”do Templo

62: o sumo sacerdoteAnã manda apedrejarTiago, o “irmão doSenhor”

66: início da “GuerraJudaica” (zelotes)

comunidade de Jesus

ca. 30: atuação, mortee ressurreição deJesus

ca. 35: evangelizaçãoda Samaria e da Síriaconversão de Saulo

ca. 43: martírio deTiago Maior em Jeru-salém (sob Agripa I)

48-49: “concílio” dosApóstolos

ca. 60: processo dePaulo

62(?) saída dacomunidade judeo-cristã de Jerusalém

64(?) martírio de Pedro(e de Paulo?) emRoma

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INTRODUÇÃO

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70: o general Titodestrói o Templo

72/73: suicídio coletivodos zelotes emMassada

ca. 80: reconstituiçãodo judaísmo formativoe sínodo de Jâmnia

3.1.3 João e a tradição evangélica anterior

Antigamente supunha-se que João, filho de Zebedeu e Discípulo Amado,testemunha ocular e intérprete por excelência, escreveu seu “evangelho es-piritual” de modo autônomo, embora conhecendo os outros, os quais com-pletou e, sobretudo, aprofundou.

Nos tempos do historicismo exacerbado (século XIX e início do séculoXX), tal originalidade e autoridade foi questionada. Enquanto uns procura-vam mostrar que o Quarto Evangelho usou fontes e portanto não era obra deuma testemunha ocular, outros insistiam na sua originalidade e valor teste-munhal, com o intuito de o contrapor aos evangelhos sinópticos, recheadosde milagres e julgados menos fidedignos. No meio do século XX, pareceuimpor-se a tendência de ver o Quarto Evangelho como independente emrelação aos evangelhos sinópticos. Mas também nisso as opiniões divergiam.Para uns, João era testemunha de tradições históricas valiosas, paralelas àtradição sinóptica; já outros o julgavam baseados em fontes marginais docristianismo, como a suposta “fonte dos Sinais” (semeia), ou até em fontessincretistas ou gnósticas, como a suposta “fonte dos Discursos” de Jesus.

Hoje em dia, essas teorias estão superadas. É melhor imaginar que Joãousou, de modo eclético, narrativas e palavras de Jesus veiculadas nos círcu-los cristãos, especialmente nas comunidades “joaninas”, sem excluir os evan-gelhos sinópticos. O Evangelho de João reflete o essencial da pregação re-petida nas comunidades joaninas, supondo, porém, certos elementos nãoexpressos de modo explícito, elementos da tradição evangélica mais amplae mesmo dos escritos sinópticos. Procedendo por meio de amostras (cf.20,30-31), o Evangelho de João espelha a vida da comunidade, mas nãotodos os detalhes, nem de sua experiência, nem de sua tradição.

69: Vespasianoimperador

79: Tito imperador

81: Domicianoimperador

ca. 80: ev. de Mateus,ev. de Lucas e Atos

ca. 90: ev. e cartas deJoão, Apocalipse

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O Evangelho de João é “o livro da vida da comunidade” (>§ 5.2). Articulaa vida da comunidade com aquilo que é anunciado a respeito de Jesus, atradição recebida, tradição em primeiro lugar oral, em parte também escrita.A palavra viva do apóstolo era o principal tesouro da comunidade. O Após-tolo ou a comunidade talvez possuísse algum escrito, cuidadosamente guar-dado, lido de vez em quando. Alguma carta, algum outro evangelho… quasecertamente Mc, conhecido também nas comunidades de Mt e de Lc. O autorteve alguma contato com (trechos de) estes últimos?

Ora, a mão de João é mágica: transforma tudo que toca. Seu procedi-mento na hora de redigir o texto modifica profundamente a letra e o teor dastradições que utiliza. Por isso, o sentido que João quer dar a seu texto nãose encontra em primeiro lugar pela comparação com suas fontes — emboraútil, quando possível —, mas pela descoberta atenta da coerência do textoque temos diante de nós. Para apreciar um tecido, vale mais ver a arte de suatextura do que saber onde os fios foram comprados.

3.2 As comunidades do Quarto Evangelho no “mundo”

A tradição cristalizada no Quarto Evangelho teve diversos horizonteshistóricos — em primeiro lugar, o da vida histórica de Jesus; depois, o da(s)comunidade(s) joanina(s) e, finalmente, o da redação final. Este último é omais acessível e engloba os anteriores. Sem desconsiderar eventuais elemen-tos das fases anteriores, perguntamos em que contexto foi levada a termo aobra na forma em que chegou até nós.

Antes de contemplar o panorama sócio-histórico, lembramos que o Evan-gelho de João é menos circunstancial que outros escritos bíblicos. Já o amplouso de símbolos e arquétipos lhe dá um alcance mais universal, o que per-mite seu aproveitamento para falar de nossa experiência hoje. João escreveem face da realidade de sua comunidade, mas não apenas em função dela.Reage à expulsão dos cristãos da sinagoga judaica, mas em termos queultrapassam essa circunstância. Reflete o conflito com o judaísmo, mas nãoé um tratado sobre esse conflito, muito menos um escrito antijudaico. Dos“judeus”, seu fraseado desliza para categorias mais amplas, o mundo, astrevas. Ao mencionar Judas, “um dos Doze”, ele evoca “o chefe deste mun-do”. São casos particulares de uma realidade universal, que diz respeito atodos os leitores de todos os tempos. João transcende seu momento histórico,e por isso mesmo suas palavras podem facilmente servir para iluminar outrascircunstâncias. Com a condição de apreendermos bem a circunstância dotexto, para que a ampliação do sentido não se torne uma traição.

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INTRODUÇÃO

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Os diversos aspectos que vamos considerar pertencem a uma realidadeabrangente, denominada “o mundo” (kósmos). O sentido básico deste termoé a criação, de modo especial a humanidade, no sentido neutro, inclusivecomo destinatária da salvação divina. O sentido mais freqüente, porém, éhostil. É a parcela do mundo que resiste à oferta de Deus e rejeita seuEnviado e sua comunidade. Por isso, tanto o Enviado como a comunidadesão estranhos para esse “mundo”, estão no mundo mas não são do mundo,não lhe pertencem, não lhe são subservientes.

mundo

Império Romanocultura helenista

“os judeus”

comunidade:“no mundo,

não do mundo

Esse “mundo” (no sentido hostil) não se deixa identificar sem maiscom o sistema político (o poder absoluto do Império Romano servindo-seda hegemonia local dos “judeus”), nem com o sistema econômico-social(mercantilismo, concentração dos meios de produção e escravismo), nemcom o sistema cultural (cultura global do helenismo) ou religioso (a “re-ligião lícita” do judaísmo no Império Romano). O “mundo” é tudo isso emuito mais! É um polvo que, embora definitivamente reduzido à impotên-cia, estende seus tentáculos pelo universo, no espaço e no tempo, até hoje.É o domínio do opositor de Deus — o diábolos, o “chefe deste mundo”.

Devemos, pois, evitar uma hermenêutica unilateral, por exemplo, lendoo Quarto Evangelho exclusivamente sob o ângulo do poder e tirando deleuma mensagem que se refira apenas às instituições de poder. Importa fa-zer também uma hermenêutica cultural, pensando na subjetividade no mun-do de João e no nosso. Por isso, os aspectos considerados a seguir nadatêm de exaustivo, são antes exemplificações para apreendermos como a co-munidade joanina se autopercebia e de que modo podemos assumiro seu legado.

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3.2.1 Aspecto econômico e social

A linguagem do Quarto Evangelho está muito longe do ambiente prepon-derantemente rural que se reflete nos outros evangelhos e na tradição queeles assumem. A linguagem do evangelho respira um ar de cidade.

1 — Pobres e ricos

A narrativa do Quarto Evangelho não realça, geralmente, o mundo dospobres. Em vez de camponeses sofridos, como nos sinópticos, encontramosJoão Batista, de família sacerdotal; uma família oferecendo ampla festa debodas em Caná; um fariseu e chefe dos judeus, Nicodemos; um funcionárioreal em Cafarnaum, que se converte com “toda a sua casa”, isto é, família,servos etc.; a família de Lázaro, que oferece um banquete a Jesus e recebevisita dos judeus influentes de Jerusalém; e um discípulo predileto familia-rizado com a casa do sumo sacerdote (18,15). Os discípulos são apresentadoscomo capazes de dar esmolas (13,29), e Judas não despreza a caixinha dogrupo (12,6). No fim aparecem José de Arimatéia e Maria de Mágdala,personagens notoriamente abastados. Talvez o Evangelho de João reflita atécerto ponto a sociedade urbana helenista, com sua estrutura clientelista, naqual cabia aos cidadãos influentes o cuidado dos pobres a eles ligados. Aparticipação desses cidadãos na comunidade (cf. também Tg 2,1ss; 4,13–5,11) era, por um lado, edificante e benfazeja, mas, por outro, problemática:facilmente se tornavam os donos do campo (p. ex. Diótrefes, na 3Jo). Exa-tamente essas pessoas de prestígio eram as mais visadas pela concorrênciada Sinagoga, que procurava trazer os judeo-cristãos de volta para seu meio(cf. Jo 12,42-43).

A pobreza e o uso do dinheiro não são a preocupação primordial de João.Os únicos textos que mencionam o dinheiro são retomados tais quais datradição sinóptica (6,7 e 12,5) ou representam o estereótipo de que Judas eraladrão (12,6 etc.) — talvez um indício de que João considera o amor aodinheiro como algo típico do traidor, dominado pelo diabo (13,2).

2 — Os excluídos

Por outro lado, o Quarto Evangelho é fortemente comunitário. Como assinagogas judaicas, a comunidade joanina certamente garantia proteção e pre-vidência social para os pobres. A prática da esmola, herança do judaísmo, épressuposta em Jo 12,5-6; 13,29. E, se não aparece um ensinamento específicoe concreto em relação aos pobres, tanto mais pronunciado é o ensinamentogeral do amor fraterno a exemplo do Senhor. Insistindo no serviço mútuo

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INTRODUÇÃO

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(13,14) e no amor fraterno comunitário (13,34-35), o Quarto Evangelho incluinaturalmente o cuidado dos pobres, e a Primeira Carta exprime claramente odever de partilhar os bens com os irmãos necessitados (1Jo 3,17; 4,20).

Quando da redação final do Quarto Evangelho, as comunidades joaninasestavam sofrendo a exclusão por parte do judaísmo rabínico (cf. § 3.2.3). Talexclusão tinha conseqüências enormes, mais ou menos como a excomunhãona cristandade medieval. Para entender bem o peso da exclusão na sociedadejudaica, devemos imaginar a forte coerência e solicitude comunitária que exis-tia quer no clã, quer na irmandade religiosa. Hoje em dia, coisa semelhanteencontra-se ainda entre os árabes, os palestinos, os povos islâmicos, menosinfluenciados pelo individualismo que marcou os povos ocidentais. Pertencerao grupo era questão de vida ou morte. O excluído tornava-se um pária, umapessoa sem referência social, sem proteção e sem lastro econômico. Para ospobres, a excomunhão significava a mendicância; para os ricos, a perda doprestígio e de suas relações sociais (“honra”, cf. Jo 12,43). A exclusão doscristãos que parece ter acontecido em relação ao judaísmo restaurado, signi-ficava a perda do reconhecimento como religião permitida por Roma (cf. §3.2.3). Abria o caminho à arbitrariedade (cf. a figura de Pôncio Pilatos emJo). Olhando esse pano de fundo, compreende-se melhor a história do cegode nascença (Jo 9): Jesus e, a seu exemplo, as comunidades cristãs “inclu-íam” os excluídos da sinagoga!

3 — O “povão”

Se João não acentua a pobreza econômica, ele não esconde sua simpatiapara com os desprezados. No cap. 7, os policiais do Templo, por não teremaprisionado Jesus e, pelo contrário, testemunhado a força excepcional de suapalavra, são malditos pelos fariseus por não conhecerem a Lei. Eles sãotratados como o am ha-árets (o “povo da terra”, termo que, depois do exílio,designava o povão que não conhecia a restauração da Lei efetuada por Esdras).Mas são testemunhas de Jesus!

Coisa semelhante acontece a outras personagens que estão longe do grupodominante: o aleijado de Bezata (cap. 5) e sobretudo o cego de nascença,implicado num interrogatório sobre a observância do sábado, enquanto tes-temunha que Jesus é profeta (cap. 9). Também a samaritana é apresentadacomo alguém à margem da sociedade: mulher e samaritana (4,9), porémtestemunha de Jesus. Enfim, em 12,19, os fariseus mostram desprezo pelasmultidões que prestigiam Jesus.

A todas essas pessoas é oferecido o dom de Deus em Jesus e, logicamente,a acolhida em sua comunidade.

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4 — O Quarto Evangelho e a mulher

No sistema religioso do judaísmo rabínico, as mulheres ocupavam, maisdo que na época patriarcal ou mesmo no Israel clássico, um lugar secundá-rio. No Quarto Evangelho, ao contrário, o papel desempenhado pelas mulhe-res é notável, a ponto de o escrito prestar-se para relevante leitura feminista.

Jesus realiza seu primeiro sinal depois de uma sugestão de sua mãe (2,4-5).A primeira pessoa a colher da boca de Jesus a declaração messiânica “Eu (o)sou” é a samaritana (4,26), que depois se torna “apóstola” dos samaritanos.Em 11,27 é notável a profissão de fé de Marta. É movido pela intervençãode Maria de Betânia que Jesus reergue Lázaro (11,32). A mesma Mariaoferece a Jesus a unção que nos outros evangelhos é atribuída a uma mulheranônima (12,1-8). A primeira a visitar o túmulo e a ver o ressuscitado éMaria Madalena, que depois é enviada a anunciar aos “irmãos” a notícia daressurreição (20,10-18).

O evangelista caracteriza essas personagens femininas com surpreenden-te adequação. Por outro lado, tem consciência de que tal realce é insólito (cf.4,27 e talvez 4,9) e, na cena da unção, não deixa de defender com força ogesto de Maria (12,7).

Não cremos que seja possível, como já se tentou, identificar como mu-lheres os discípulos anônimos (em 1,40; 18,15; 21,2) e o Discípulo Amado(13,23 etc., sobretudo 19,26!). Mas, com razão, a leitura feminista observouque o Discípulo Amado é uma “personagem aberta”, que pode ser preenchi-da por uma figura masculina ou feminina, permitindo ao leitor/leitora “en-trar” na experiência dos discípulos. O anonimato do Discípulo Amado faci-lita o envolvimento do leitor/leitora no texto. Mesmo se supomos que portrás do Discípulo Amado esteja uma personalidade histórica (cf. § 2.3.2), seuanonimato permite ao leitor/leitora projetar-se nele: uma mulher pode incor-porar-se no discípulo por excelência.

O Quarto Evangelho foi gerado num clima de abertura à mulher maiorque o costumeiro no mundo judaico de então, dominado pelo modelo patri-arcal. A situação da comunidade joanina na fronteira do judeo-helenismo edo mundo grego pode ter facilitado tal abertura. Mas talvez devamos ir maislonge. A abertura à mulher parece não apenas um traço cultural, mas umaopção consciente. A maneira adequada com que João apresenta as persona-gens femininas leva a supor um papel ativo de mulheres na evangelização ena vida da comunidade.

No Quarto Evangelho a mulher se sente em casa. E em nossas comu-nidades?

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INTRODUÇÃO

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3.2.2 Aspecto político

1 — O messianismo judaico

O Evangelho de João não se entusiasma com o messianismo políticojudaico. Segundo João, Jesus não concorda com o messianismo nacionalista(>com. 6,14-15). Jesus não anuncia o Reino de Deus no sentido em que osjudeus o entendiam, mas dizendo “meu reino não é deste mundo” situa o“reino” para lá de sua vitória sobre o “chefe deste mundo”, que se dá na suaglorificação (>com. 18,36). O título “rei dos judeus” é tratado com “ironiajoanina” (>com. 19,19-22).

Todavia, João pretende mostrar que Jesus é o Messias (Jo 20,31). AceitarJesus como Messias era o que distinguia os cristãos dos (outros) judeus,porém, dando a “Messias” um conteúdo diferente. Importa descobrir qual éo sentido próprio de “Messias” (= Cristo) no Quarto Evangelho. A combi-nação com “Filho de Deus”, em 20,31, é indício desse sentido diferente (cf.ainda 11,27; 18,36 + 19,7; e 1,49, com o termo “rei de Israel”).

2 — O Império Romano

O Quarto Evangelho não exibe interesse especial pelo Império Romano(à diferença, p.ex., dos escritos lucanos). Todavia, a maneira como é tratadoo processo de Jesus perante Pilatos (18,28–19,22) esbanja tanta ironia arespeito do governador romano e sua autoridade que se deve concluir que,no mínimo, João não busca a simpatia dos romanos. João apresenta Pilatoscomo fantoche nas mãos dos “judeus” ou como cínico em relação a eles ea Jesus; sua declaração da inocência de Jesus nada significa (>com. 19,38).João está longe de Lucas, que vê no Império Romano uma proteção e veí-culo para a expansão do evangelho.

3.2.3 Aspecto religioso

1 — A “perspectiva jerosolomitana” e o Templo

João escreve na perspectiva de Jerusalém. De sua narrativa, 80% se situaem Jerusalém (nos sinópticos: 25%), e os restantes 20% se dividem entre aGaliléia e a Samaria (cf. § 2.2.2). Além disso, o significado de Jerusalém, emJoão, é bem diferente do que se percebe em Lucas, que faz do Templo amoldura de seu evangelho e de Jerusalém, nos Atos, o ponto de partida damissão cristã. Em João, como em Marcos, Jerusalém é o lugar do conflito,é “o mundo”.

Embora a acentue, João de modo algum “privilegia” Jerusalém (cf. Ap11,8: “a cidade onde é crucificado o Senhor”!). Jesus não sobe a Jerusalém

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por causa de seu brilho (Jo 7,1-10). Neste sentido, deve-se entender o lugarprogramático da purificação do Templo logo no início do Quarto Evangelho(2,13-21): João deixa claro que o Templo (e o que ele representa) “já era”.A perspectiva jerosolimitana de João é irônica.

2 — Raízes no judaísmo sinagogal

Desde a volta do exílio e a gradativa articulação do judaísmo antigo, noséculo V aC, começaram a surgir reuniões para o estudo da Lei. Na diáspora,onde se falava grego, receberam o nome de synagogé (= reunião), indicandoem primeiro lugar a reunião como tal e mais tarde também a casa da reunião,geralmente uma simples casa de família. Na sinagoga lia-se um trecho da Leide Moisés (o Pentateuco) e um trecho menor de algum profeta, e depoisdisso qualquer varão da comunidade podia fazer uma atualização: “Quesignifica isso para nós hoje?” A sinagoga dominava o interior da Palestinae mesmo em Jerusalém havia grande número de sinagogas, apesar da predo-minância do Templo.

O próprio Jesus não se criou à sombra do Templo, mas no ambiente dassinagogas da Galiléia, animadas por mestres (rabinos) da linha farisaica. Elemesmo iniciou suas atividades fazendo comentários (homilias) depois dasleituras sinagogais da Lei, o que era perfeitamente permitido a um leigocomo o era Jesus (cf. Jo 7,15). Os apóstolos, que eram galileus, surgiram dojudaísmo sinagogal. Podemos supor que as comunidades joaninas mantive-ram uma herança disso. Daí o caráter homilético de muitos trechos do Quar-to Evangelho (sobretudo nos caps. 5–12). Tanto mais traumática deve tersido, no fim do século I, a exclusão das comunidades joaninas da Sinagoga.

Já desde o tempo de Jesus existiam, no seio do judaísmo tradicional emsuas diversas formas, fenômenos que reencontraremos no Quarto Evangelhoe na comunidade que ele reflete. Assim, o discipulado (tanto em Qumrancomo nas “irmandades” farisaicas, as haburot). O uso do tratamento “mes-tre” para Jesus e de “filh(inh)os” para os discípulos (13,33) vem da tradiçãosapiencial (cf. Sr 24,23-24 etc.), que é, no fundo, uma tradição de discipu-lado, de escola. Mas o Evangelho de João revela, afinal, um conceito bas-tante diferente de discípulo: Jesus é mestre e servo ao mesmo tempo, e seusdiscípulos, amigos (>com. 13,16; 15,15).

Pode-se perguntar, enfim, se a comunidade joanina tem algo a ver com ojudaísmo carismático que existia no tempo de Jesus (taumaturgos etc.). O modosóbrio como João trata as curas (cf. 5,1-9; 9,5-7) não aponta nessa direção.

Essas raízes judaicas nos obrigam a uma atitude paradoxal: uma leitura“judaica” do Evangelho de João — ler a partir da herança de Israel o

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evangelho que mais ataca “os judeus”! Somente em solidariedade com atradição de Israel seremos capazes de compreender a crítica que João faz àparcela de seu povo que, a seus olhos, renegou o Enviado de Deus. (Só“sintonizado” é que se pode fazer crítica construtiva do Brasil.)

3 — Comunidade perseguida

As comunidades joaninas são ao mesmo tempo missionárias e perseguidas.Ameaçadas pelo “mundo”, dão testemunho de Jesus. Esse “mundo” é concre-tizado em dois círculos concêntricos: um mais amplo, a sociedade do ImpérioRomano, e um mais restrito, representado pelo termo “os judeus” (§ 3.2, intr.).Assim, as comunidades do Quarto Evangelho dão a impressão de constituirum grupo em autodefesa, quase um gueto na sociedade daquele tempo.

Um indício freqüentemente citado para situar o Quarto Evangelho no seucontexto sócio-histórico é a referência à expulsão dos cristãos da sinagoga(9,22 e 12,42; cf. também 16,2). No nível da história contemporânea de Jesus,esse tema é certamente um anacronismo. Os outros evangelhos não deixamtransparecer decisão alguma neste sentido da parte das autoridades judaicasdurante a vida de Jesus; pois neste momento, o grupo de seus seguidores eraainda insignificante. Mas, bem cedo, pouco depois da morte de Jesus, já ocor-reram perseguições no âmbito das sinagogas judaicas, como mostram as narra-tivas sobre Estêvão e Paulo em At 6–7 e At 9 (veja também Mc 13,9-13 par.).

João testemunha que tornar-se cristão ou continuar a sê-lo era problemá-tico nas comunidades que ele representa, e veremos que isso tem implica-ções notáveis para a interpretação do texto. Continua aberta a questão se esseconflito com a sinagoga deve ser localizado no fim do primeiro século,quando do sínodo rabínico de Jâmnia e quando da inserção, na oração ma-tinal dos judeus, da “bênção contra os hereges” (a birkat ha-minim, ca. 85dC), ou já em décadas anteriores.

4 — Os “judeus”

Qual é o significado da expressão “os judeus” usada por João? Estetermo aparece com freqüência para indicar os opositores de Jesus e de seusseguidores. Ora, Jesus e seus discípulos eram judeus. Portanto, quando usadopor João com conotação adversativa, esse termo não indica os judeus emgeral. Indica um grupo especial no ambiente judaico: o grupo oposto a Jesuse a seus discípulos e, de modo especial, os líderes ou autoridades desse grupo.Neste sentido específico, grafamos geralmente “os judeus” entre aspas.

A maneira joanina de falar em “os judeus” só faz sentido se já houveuma ruptura entre os (judeo-)cristãos e esses judeus “anticristãos”. Os evange-

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lhos sinópticos nunca falam assim. Nos escritos paulinos, o termo “judeu”pode ter (1) o sentido estritamente religioso, que indica os judeus enquantoadeptos da Lei de Moisés (mesmo se participam da comunidade cristã, comoé o caso dos “judaizantes” na comunidade); ou (2) o sentido étnico, indican-do a “etnia” judaica, dispersa pelo mundo, e da qual o próprio Paulo fazparte. Lucas usa o termo nos mesmos sentidos que Paulo, mas nos Atos,quando da morte de Tiago Maior por iniciativa do rei Herodes Agripa (42dC), o termo “os judeus” aparece num sentido comparável ao do QuartoEvangelho (At 12,3), revelando o distanciamento entre a comunidade(judeo-)cristã e os judeus não-cristãos.

Focalizando o Quarto Evangelho mais de perto, percebemos que “osjudeus” no sentido adversativo são um grupo que tem peso político e sociale até certo poder de decisão. Embora situados principalmente em Jerusalém(Jo 1,19 etc.), encontram-se também na Galiléia como opositores de Jesus(Jo 6,41.52). São aqueles que não aderiram a Jesus, nem quando da vidadele, nem, sobretudo, no tempo da pregação apostólica. São judeus conscien-tes, avessos aos que reconheciam Jesus como Messias e lhe davam o títulode “Filho de Deus”. Ora, não se esqueça de que, étnica e culturalmente,muitos cristãos — também nas comunidades joaninas — eram judeus! “Osjudeus” são, portanto, irmãos dos cristãos, com a diferença de não aceitarema messianidade e missão divina de Jesus. O próprio Evangelho de João podeser chamado o mais judaico de todos, dada a profunda influência da tradiçãobíblica neste escrito.

O Prólogo estabelece um paralelismo entre o mundo e o povo eleito: “(APalavra) estava no mundo..., mas o mundo não a reconheceu; ela veio parao que era seu (= Israel), mas os seus não a acolheram” (Jo 1,10-11). Estasfrases, porém, não são válidas de modo absoluto, pois João continua: “Aquantos porém a acolheram...” (1,13), incluindo bom número de judeus. Joãotrata “os judeus” com animosidade profética. Não, porém, por serem judeusno sentido étnico. Nas Cartas, certos “cristãos” são criticados com o mesmorigor (cf. 1Jo 2,19! também 4,3; 4,8; 2Jo 9; 3Jo 9-10).

Em suma, ao usar o termo “os judeus” em sentido hostil, João aponta ogrupo judaico dominante quer no tempo de Jesus, quer no tempo das comu-nidades joaninas (constituídas de judeus e não-judeus). O problema é queJoão não distingue esses dois momentos e projeta anacronicamente a situa-ção ulterior sobre a narrativa do ministério de Jesus. Funde em um só ohorizonte do ano 30 e o do ano 90. De toda maneira, não há razão paradeduzir, do uso desse termo, que o Evangelho de João seja antijudaico. Aimpressão de antijudaísmo poderia ser evitada se tivéssemos outro termo

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para expressar tudo o que João quer dizer por judeu (no tempo de Jesus: opovo judeu, os habitantes da Judéia, as autoridades judaicas; e meio séculomais tarde, o novo judaísmo, enquanto oposto aos cristãos).

Acusar João de anti-semitismo seria um anacronismo. Mas quando seinstituiu o regime de cristandade, os cristãos deixaram aos judeus só umlugar marginal na sociedade; na Idade Média, os cristãos, proibidos de co-brar juros entre si, faziam isso por intermédio dos judeus. Foi então que asexpressões de João se tornaram lenha na fogueira do antijudaísmo.

Uma pergunta final. João diz que os judeus não entenderam Jesus (e seusseguidores): pensam que Jesus se faz igual a Deus etc. (5,18 e.o.). Mas seráque João entendeu bem os judeus? O judaísmo rabínico restituiu ao povo oencontro com Deus, não mais no Templo (destruído em 70 dC), mas na Torá.João vê a “Morada” de Deus em Jesus ressuscitado unido à sua comunidade(2,22; 14,23). Uma coisa exclui a outra? Serão tão diferentes? Não renovaJesus o antigo mandamento do amor fraterno em nome da paternidade do Pai(1,34-35; cf. 1Jo 2,7-11)? São questões a ser retomadas em forma de diálogo,depois de dois milênios de inimizade. E coisa semelhante vale para a relaçãoda comunidade cristã com outros caminhos de salvação. O caso do judaísmoé emblemático.

5 — João Batista

O Quarto Evangelho demonstra um interesse muito grande pela figura deJoão Batista e por seus discípulos. Já no Prólogo encontramos dois parênte-ses que explicam que João não era a “luz”, mas deu testemunho dela (1,6-8) e de sua preexistência (1,15). A narrativa propriamente inicia-se por umelaborado testemunho do Batista (1,19-36), resultando no encaminhamentode seus discípulos para Jesus (1,35-36). O Batista e os discípulos voltam àcena, para outro testemunho (referindo-se ao primeiro), em 3,22-30. Em5,33-35, Jesus mesmo aponta o testemunho de João como lâmpada passageiraque anunciava a luz verdadeira. Em 10,40-42 desponta ainda uma vez, discre-tamente, a ratificação do povo a respeito do testemunho de João Batista. Oritmo e tamanho das referências vai decrescendo ao longo do Evangelho,ilustrando a palavra do Batista em 3,30: “Ele deve crescer, eu, decrescer”.

O que o evangelista quer com esse testemunho do Batista? Em At 18,24–19,7 ficamos sabendo que ainda pela metade do século I existiam, na diásporade Éfeso, discípulos de João Batista, “joanitas”. Será que João busca apro-ximar esses “joanitas” da comunidade cristã? Não temos certeza de que acomunidade “joanita” ainda existia no fim do século. Será que a comunidadedo Batista desapareceu, e seu lugar foi assumido pela de Jesus? Isso é pro-

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vável: os discípulos do Batista se mudam para Jesus (1,35-36), seu movi-mento deve minguar diante de Jesus (3,30), foi provisório (5,33-35), mastestemunha a favor de Jesus (10,40-42). Sobretudo, João parece erguer oBatista em testemunha-mor de Jesus no “processo” provocado pelos “ju-deus”, pois estes podiam citá-lo contra os cristãos por ser anterior a Jesus enão ter desacatado a interpretação judaica da Lei (cf. Lc 16,16). Em Jo, emvez de servir de testemunha para os “judeus”, o Batista depõe a favor daoutra parte: foi por ocasião dele que o Cordeiro e Filho de Deus “foi mani-festado a Israel(!)” (Jo 1,19-34).

6 — Samaritanos e gregos

Os samaritanos, habitantes da Palestina central, têm raízes no antigo “reinodo Norte”, que se separou de Judá depois de Salomão (1Rs 12). A oposiçãoirreconciliável entre judeus e samaritanos (Jo 4,9!) parece ser de data maisrecente, especialmente depois da construção do Templo samaritano do Garizim,no século IV, e sua destruição, em 128 aC, pelo rei judeu João Hircano (cf.4,19). Contudo, mesmo se entre os dois existe ódio, há muito que os une. Sãodo mesmo sangue, “filhos de Israel”. Os samaritanos celebram a Páscoa,memorial do Êxodo. Lêem a parte principal da Bíblia, os Livros de Moisés,o qual é para eles o protótipo do profeta que deve vir ao mundo (cf. Jo 4,25).Têm sua diáspora, os samaritanos dispersos pelo mundo, possuindo até umatradução própria da Torá em grego. Jo 11,52 parece aludir à promessa messiâ-nica da nova união entre judeus e samaritanos (cf. também 10,16).

É difícil saber quem são “os gregos” de que fala Jo 7,35; 12,20. Serãogentios (não-judeus achegados ao judaísmo, como os “tementes a Deus” e os“prosélitos” mencionados nos Atos dos Apóstolos)? Ou serão judeus helenistasda diáspora, aparentemente menos agressivos contra o grupo cristão que osjudeus de Jerusalém no ano 30 e os de Jâmnia nos anos 80? Voltaremos aessa questão no comentário a Jo 7,35.

7 — João e o culto

Alguns comentadores vêem no Evangelho de João um evangelho “sacer-dotal”. Não apenas certos trechos (p.ex., cap. 17) mostram estilo e vocabu-lário sacerdotais, como o misterioso Discípulo Amado parece conhecer bemo ambiente sacerdotal em Jerusalém. A isso se acrescenta o interesse, emboraambíguo, que João demonstra pelo Templo (o próprio evangelho pareceintroduzir o leitor/ouvinte num espaço sagrado). Finalmente, o nome deJoão, atribuído ao autor, é um nome freqüente nas famílias sacerdotais dotempo dos Macabeus e de Jesus.

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Tais indícios, por interessantes que sejam, devem ser interpretados comcuidado. Em nenhum lugar transparece uma atitude conivente com o sistemado Templo. Aliás, João distancia-se das instituições judaicas em geral: falaem “festa dos judeus” (2,13; 5,1; 6,4; 7,2; 11,55), “vossa Lei” (8,17; 10,34;cf. “Lei deles”, 15,25). Onde a linguagem de João parece sugerir um novoculto (>com. 4,22-24), esse se situa na linha do culto “espiritual” ou “racio-nal” das cartas do Novo Testamento (Rm 12,1; Hb 13,15; 1Pd 2,5). E, seJo 17,19 (como Hb) vê na prática de Jesus, fiel até a morte, uma “consagra-ção”, isso não deve ser entendido no sentido do culto antigo, mas sim comorealidade nova, que torna supérfluo o culto antigo. João substitui os grandessímbolos do sistema religioso de Israel pela pessoa de Jesus Cristo.

8 — Atitudes diversificadas dos primeiros cristãos diante do judaísmo

Para compreender melhor o conflito com o judaísmo no Quarto Evange-lho, podemos compará-lo com as diversas atitudes assumidas pelos primei-ros cristãos em relação ao judaísmo.

Segundo o início dos Atos dos Apóstolos, a primeira comunidade deJerusalém era praticamente um dos subgrupos do judaísmo, continuando avisitar o Templo (At 2,42-47 etc.). At 7 (discurso de Estêvão), porém, deixatransparecer que pelo menos alguns judeo-helenistas dentre os cristãos deJerusalém faziam críticas ao judaísmo do Templo. Neste contexto surge Paulo,judeu militante, fariseu. Tendo presenciado, em Jerusalém, o martírio deEstêvão (At 8,1), torna-se perseguidor dos cristãos que se refugiaram emDamasco. Mas no caminho de Damasco revela-se a ele Jesus glorificado (At9,1-5), e Paulo se torna seu mais intrépido propagandista. Baseando-se emsua missão pelo Cristo glorioso (Gl 1,13-24), começa a defender a admissãouniversal dos não-judeus na comunidade, pois o que acontecera a Jesussignificou a superação do regime da Torá, considerado provisório.

Na Carta de Tiago, entretanto, encontramos uma “sinagoga” (Tg 2,2)judeo-cristã da diáspora, longe do Templo, que nem sequer é mencionado. Acomunidade de Tiago vê na caridade fraterna, “lei régia”, o aperfeiçoamentoda “Lei da liberdade” (Tg 1,25; 2,8). Não se percebe nela ruptura com ojudaísmo em geral.

Se em Tiago a relação com a matriz judaica se apresenta intacta e emPaulo, pelo contrário, o laço umbilical parece radicalmente cortado, Mateusfica num meio-termo. Escrevendo mais tarde que Paulo (depois da reorgani-zação do judaísmo por volta de 80), porém num ambiente mais judaico, Mateusquer mostrar que os discípulos de Jesus observam a Torá melhor que os escribase os fariseus (Mt 5,17-20) — observância, naturalmente, no sentido novo

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proposto por Jesus (Mt 5,21-48). Mateus não rompe com o judaísmo, mascompara e compete. Reconhece que o Jesus terreno foi um mestre para asovelhas perdidas de Israel (Mt 10,6; 15,24), embora depois de sua ressurreição“todas as nações” devam ser acolhidas como discípulos seus (28,19).

João, numa situação semelhante à de Mateus, rompe tão radicalmentecom o judaísmo dominante quanto Paulo. Deixa Jesus falar aos escribas efariseus em termos de “vossa Lei” etc. Sobretudo, relata com ironia a desis-tência dos “judeus” da aliança e da expectativa messiânica, quando dizem:“Não temos outro rei senão César” (19,15).

3.2.4 Aspecto cultural

1 — O Quarto Evangelho e a cultura em geral

Se a atitude das comunidades joaninas para com o sistema religiosodominante é conflitiva, como se situam em relação à cultura daquele tempo,especialmente a cultura helenista que permeia o Império Romano? Será osilêncio um indício de sua posição? Nenhuma referência aos sábios do mundogrego, nenhuma admiração a respeito da “filantropia” dos magistrados greco-romanos. João não mostra interesse por essa realidade. Parece antes distantedo “mundo”.

Até pouco tempo atrás, talvez deslumbrados pelo Prólogo, muitos admi-ravam o Evangelho de João como evangelho filosófico. Mas o termo logos,no Prólogo, pouco tem a ver com a especulação filosófica; é antes a “Pala-vra” dos profetas que o “Verbo” dos filósofos e teólogos gregos (>com. 1,1).Se o Quarto Evangelho é “teo-lógico” (cf. § 3.3.5), não o é no sentido daespeculação, mas no sentido de ver em Jesus a manifestação de Deus; suateologia não se dirige a uma elite filosófica. É vazada em termos simbólicos,acessíveis a qualquer pessoa que tenha sensibilidade. Os pressupostos cul-turais em João são: familiaridade com os grandes temas da Escritura (raízesjudaicas!) e sensibilidade pelos grandes símbolos da humanidade (os arqué-tipos: luz e trevas, verdade e mentira, vida e morte...).

Não se deve buscar em Jo muito diálogo com as outras religiões: estenão era problema seu. As “outras ovelhas, não deste rebanho”, em 10,16,significam grupos cristãos. A abertura para com os samaritanos só vale namedida em que aceitam a palavra de Jesus (4,41-42). A “religião em Espíritoe verdade” que Jo 4,23 opõe tanto ao judaísmo quanto ao samaritanismo nãoé outra senão a confissão da comunidade cristã e nada tem a ver com umareligião mundial e não-institucional, como alguns entendem (>com.). Toda-via, se não devemos procurar em João uma resposta explícita para a questão

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do pluralismo religioso, o aprofundamento que ele produz na sensibilidade ena meditação em torno do evento de Jesus-Messias nos prepara muito bempara o diálogo com as religiões e mundividências de hoje, porque João vai aoessencial. João não é “global” no sentido do eclectismo e da superficialidade,mas universal por sua profundidade. Liga tudo, não pela superfície, mas pelaraiz. João não fala da filantropia, do amor “em geral”, mas do amor fraternoconcreto, legado por Jesus em testamento à comunidade cristã (Jo 13,34-35).Este é testemunho para o mundo (13,35), portanto, ponto de partida para aconversa com os não-cristãos. A fé cristã não se propaga por sofisticadostratados intelectuais, por mirabolantes elucubrações esotéricas ou por espalha-fatosos programas de TV, mas pelo testemunho do amor que conhecemos, demodo único e incomparável, em Jesus de Nazaré. É exatamente a partir da féconfessada em Jesus que podemos partilhar esse legado com todos.

2 — Sabedoria judaica e conhecimento gnóstico

Em linguagem bíblica, cultura se chama “sabedoria”. As lideranças ju-daicas, sobretudo os escribas e os fariseus, davam muito valor ao conheci-mento, especialmente ao empenho de “perscrutar as Escrituras” (5,39). Poroutro lado, desprezavam os simples que “não conhecem a Lei” (7,49). OJesus joanino, porém, mostra que o que essas lideranças consideravam co-nhecimento para nada serve se não acreditam nele (3,10; 5,39 etc.). Emcompensação, os cristãos “conhecem” Deus em Jesus. Sem se entregar àsabedoria dos sistemas judaicos ou helenistas, os que acreditam em Jesuschegam ao verdadeiro conhecimento salutar. (Isso encontra-se mais elabora-do em 1Jo.)

O “conhecer” preconizado pelo Quarto Evangelho nada tem de elitista.O próprio Jesus passa não instruído (Jo 7,15). O “conhecer”, no QuartoEvangelho, distingue-se assim da sabedoria dos escribas judaicos. E tambémda “gnose”, que se espalhava pelo Império romano. No século II dC surgiuno Egito um “Evangelho da Verdade” (reencontrado em Nag-Hammadi), quemanifesta um saber pseudocristão de tipo gnóstico, prometendo aos inicia-dos uma vida fora deste “mundo mau”. Ora, o gnosticismo do “Evangelhoda Verdade” e de outros textos afins, que procuram meramente a salvaçãoindividual longe deste mundo mau, é uma interpretação egocêntrica do saberevangélico proposto por João. Para João, o saber “criterioso” não pode pre-terir o amor fraterno (cf. Jo 13,34-35; 1Jo 4,20–5,2). A gnose era narcisista,porque fazia do saber uma posse e não uma fonte de serviço ao irmão.Também hoje a busca de saber religioso pode transformar-se em desejo deposse, para sentir-se superior aos outros: há pessoas que dizem conhecer o

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evangelho a fundo, porém não percebem nele a transformadora mensagemdo amor fraterno.

Na coleção de sentenças de Jesus conhecida como Q, nos evangelhossinópticos, encontra-se uma que recebeu o nome de “lógion joanino” (Mt11,25-27 = Lc 10,21-22): Jesus agradece a Deus, seu Pai, porque revelou aossimples e pequenos aquilo que ficou escondido aos sábios e entendidos. Essapalavra põe em contraste simples e entendidos. Os entendidos, em João, sãoos escribas, os fariseus e os sumos sacerdotes, que na realidade nunca enten-dem a mensagem de Jesus (§ 2.1.7). Os simples seriam os discípulos, quetampouco entendem, mas pelo menos vão crescendo na sua adesão a Jesuse se tornam suas testemunhas, como o mendigo cego da porta do Templo (Jo9)! João tem em comum, não só com os sinópticos, mas também com Paulo(1Cor 1,20.26 etc.) e Tg (3,1-2.13), a convicção de que o verdadeiro sabernão é a cultura deste mundo, mas o conhecimento de Jesus e do Pai — queconhecemos nele (Jo 17,2). Esse saber não vem pela sabedoria deste mundo,mas pelo amor a Cristo.

3.2.5 Conclusão

O Quarto Evangelho se ambienta numa comunidade de tipo judeo-cristãohelenista, comparável sob certos aspectos às de Tiago e de Mateus, porém,vivendo em conflito aberto com o judaísmo dominante do último quartel doséculo I (Jâmnia) e em crescente distanciamento de outras esferas do “mun-do” (o Império Romano, a cultura helenista). Não obstante, assume decidi-damente sua missão “no mundo”, no testemunho da fé e da caridade a partirda experiência de Jesus de Nazaré.

3.3 Índole própria do Quarto Evangelho

O caráter próprio do Quarto Evangelho não se deixa deduzir por com-pleto dos acima mencionados aspectos políticos, sociais, culturais ou religio-sos. João não se opõe ao judaísmo da sinagoga apenas por esses fatores, maspor causa de uma intuição diferente naquilo que é a Palavra de Deus.

Quando surgiu a comunidade dos “nazarenos” por um lado e, depois dadestruição do Templo, o judaísmo sinagogal renovado, por outro, defrontaram-se duas maneiras diferentes de conceber a presença salvífica de Deus, a shekiná.Para o judaísmo renovado, a presença de Deus se dava na Torá ou Instrução(escrita e oral), fortemente orientada para a prática da vida, mormente nahalaká (ordenações rituais e morais, interligadas entre si). Para o cristianismo,a presença de Deus se dava na práxis de Jesus de Nazaré, da qual a comuni-

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dade cristã, vivendo o tempo final na presença do Espírito, pretendia ser acontínua atualização na prática do amor fraterno (Jo 16,13-15).

Mas essa diferença teológica distingue a “via joanina” não apenas dojudaísmo, mas também de todos os outros caminhos de salvação (cultos demistérios, gnose…) e, sobretudo, dos caminhos do desamor. Nesse sentido,João passa com facilidade da discussão com o judaísmo ao conflito com “omundo”, não porque o judaísmo seja simplesmente representante do mundomau, como alguns pensam, mas porque em ambos os casos a comunidadejoanina se vê obrigada a distanciar-se.

Vejamos pois a especificidade propriamente teológica do Quarto Evangelho.

3.3.1 Testemunho e fé

O Quarto Evangelho quer ser lido ou escutado como o testemunho apos-tólico de que Jesus é o Messias e Filho de Deus, para que na firmeza dessafé o ouvinte tenha “vida” (20,31).

Esse testemunho fala diversas vezes da missão e, sobretudo, apresentaJesus como o grande Enviado do Pai. Talvez os fiéis da comunidade joaninase reconhecessem na figura do Enviado. Nessas comunidades ainda existiamos missionários itinerantes que, pelo que se supõe, marcaram o início docristianismo; textos como Jo 13,20 e, sobretudo, 3Jo 5-8 confirmam isso.

Que anunciavam esses missionários? O Quarto Evangelho pouco fala doReino de Deus, conteúdo primordial do anúncio missionário. Provavelmente,como na missão de Paulo, não o “Reino”, mas Jesus mesmo era o centro doanúncio dos missionários joaninos. João menciona o “Reino” apenas numcaso muito específico, quando ele reproduz a linguagem da expectativa ju-daica (Jo 3,3.5). Não parece afinado com o “reino de Deus” no sentido daesperança judaica daquele tempo. Prega, sim, a messianidade e o papel sal-vífico daquele “de quem falam a Lei e os Profetas” (1,45), embora sugiratambém em relação a isso correções fundamentais (>com. 6,14; 12,34). Poroutro lado, a discussão com a sinagoga rabínica faz pensar que, no tempo daredação final do Evangelho, a própria comunidade joanina já estivesse orga-nizada como sinagoga alternativa e a vida itinerante era antes exceção queregra. Também isso transparece nas cartas joaninas. Seguir Jesus não é ne-cessariamente sair pela rua afora; seguimento parece antes significar a con-fissão de fé, até o martírio (= testemunho) de sangue.

3.3.2 Iniciação e perseverança

Se o Evangelho de João urge a confissão de fé, a ponto de parecerfechado aos de fora, poderá ser chamado de “esotérico” (do grego eso,

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“dentro”)? Prefiro dizer que é um evangelho para iniciandos e para inicia-dos. Usa uma linguagem, uma terminologia específica, que os de fora nãoentendem, com duplo sentido, ironia, mal-entendido (§ 2.1.7). É um evange-lho para os que têm a luz, a verdade (cf. Jo 12,36), em oposição aos quevivem na mentira, nas trevas, fora (§ 2.1.6).

O Evangelho de João não é esotérico no sentido dos sistemas gnósticos(cf. § 3.2.4). A semelhança de sua linguagem “dualista” à do gnosticismosistematizado no século II não nos deve enganar: tal linguagem já se encon-tra abundantemente no AT e no ambiente contemporâneo da comunidadejoanina, como provam as cartas de Paulo, os evangelhos sinópticos e, sobre-tudo, os textos de Qumran. Como no caso do “saber” (§ 3.2.4), também aquinão se deve julgar Jo pelos escritos do século II. É verdade que o Evangelhode João foi o evangelho preferido dos gnósticos, mas isso não significa queele é gnóstico no sentido esotérico. A Primeira Carta de João talvez seja oantivírus que protege, contra a cooptação esotérica, o seu Evangelho, que éaceito pela “grande Igreja”. Para João, a iniciação não consiste na possenarcisista da verdade, mas na consciência de ser envolvido pela verdade e dedever testemunhá-la (cf. a expressão “nós sabemos/conhecemos” em 3,14;4,22; e sobretudo 1Jo 2,3.5; 3,16.24; 4,13.16; 5,2.20). Essa verdade nunca éposse, mas sempre dom, conferido a partir do “enaltecimento” de Jesus pelo“Espírito da Verdade” (Jo 7,39; 14,17; 15,26).

Embora pareça um escrito polêmico contra “os de fora”, o Quarto Evan-gelho é antes de tudo um evangelho para os de dentro. De fato, os leitores/ouvintes visados são os membros da comunidade cristã, não os rabinos ju-daicos! É um escrito que conduz o leitor/ouvinte por um itinerário da fé,caracterizado pela articulação de iniciação e perseverança. Recorda osprimórdios (Jesus nos anos 30) para reforçar a fé no tempo da crise (acomunidade nos anos 90), abrindo a perspectiva para as gerações que hão devir (20,29!), assistidas pelo Paráclito que, em cada época, os conduzirá “naplena verdade” (>com. 16,13). Por isso, “redesenha”, com liberdade, os fatose as palavras de Jesus, tornando-os eloqüentes para as gerações ulteriores, àsquais ele destina a bem-aventurança daqueles que crêem sem terem sidotestemunhas de primeira hora (20,29). Assim se desenha o seguinte processo:

• capítulos 1–4: convite para a novidade do mistério;• capítulos 5–12: o conflito, levando à opção da fé;• capítulos 13–17: na intimidade dos discípulos fiéis;• capítulos 18–20: contemplando o “enaltecimento”.

Reconhecemos nesses passos a iniciação e a perseverança na fé. Joãoprocura fortalecer a fé e desenvolver as conseqüências radicais para os que

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a abraçaram. Visando à comunidade dos que creram antes de nós, o Evan-gelho de João atinge também a nós, hoje. Nós, igualmente, estamos emcontraste com um mundo que ameaça nossa comunidade e nossos corações,e que exclui os que crêem e agem em coerência com sua fé.

Lido na perspectiva da verdade de Deus que nos envolve no mistério deCristo, ele é o verdadeiro evangelho “gnóstico”, conduzindo-nos ao conhe-cimento verdadeiro (gnose). Todavia, tal leitura não foge da percepção daopressão e da exclusão que pesam sobre nossa sociedade, nem do projeto detransformá-la.

3.3.3 Evangelho místico e contemplativo

Em vez de nos enclausurar no intimismo esotérico, o Evangelho de Joãonos introduz no novo Templo que é Jesus, o Jesus eclesial (2,22), espaço deencontro com Deus para todos (4,22-24). Aí contemplamos a sua glória(1,14), como Isaías já a contemplara profeticamente no antigo Templo, se-gundo Jo 12,41. Neste sentido, o Evangelho de João é con-templativo.

O Evangelho de João é místico, mas não mistificado nem mistificante.Acena à realidade de Deus, que não “pertence” a “este mundo”, mas nele seinscreve. Os discípulos não são do mundo, mas estão nele (17,14-15). É nomundo que se vive a vida unida a Jesus, perseguido e excluído pelo mundo.Ora, “este mundo” penetra até dentro da comunidade cristã, em forma dedesamor, ambição, apostasia, traição. Por isso, João se opõe violentamenteà “cobiça do mundo” (cf. 1Jo 2,16).

“A mística é uma questão social.” Sobre o pano de fundo de nossasociedade, que apesar dos “milagres econômicos” continua a oferecer umespectáculo de graves distorções, a mística, como iniciação no mistério deDeus, é um fator de liberdade. É a percepção íntima da grandeza incompa-rável de Deus, fonte de resistência à exploração que se pretende necessáriae inevitável. O Evangelho de João nos faz contemplar a grandeza de Deus— a glória — no dom da vida de Jesus de Nazaré (cf. 1,14).

Na mutação cultural, econômica e social que atinge nosso mundo nolimiar do terceiro milênio, isso traz benfazeja luz e renovado incentivo paraos que se sentem ameaçados, deprimidos e de diversas maneiras excluídosda sociedade e abalados em sua fé. João reformula de modo decisivo a novaTorá do amor fraterno (13,34-35), que não apenas exclui o medo (1Jo 4,18),mas tudo o que não condiz com Deus que é Pai — a exclusão no sentidomais radical. Assim, desperta-nos para uma ação solidária abrangente, quevai além dos fatores econômicos e procura as raízes da existência cristã. Aíestá a força mística deste evangelho.

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3.3.4 Evangelho “espiritual”

O Evangelho de João foi chamado, por Clemente de Alexandria, de“evangelho espiritual”, à diferença dos outros três, que seriam mais somáticos(“corporais”), já que descrevem mais de perto a história exterior de Jesus.Embora um tanto simplista, essa contraposição nos convida a perguntar emque sentido João é espiritual. Certamente não no sentido “espiritualista”.Não apregoa um cristianismo alheio ao mundo histórico e material em quevivemos. “Espiritual”, no caso do Quarto Evangelho, significa que a vida ea mensagem de Jesus são interpretadas à luz do Espírito de Deus, que nosfaz descobrir sentidos sempre novos e atuais (cf. 16,13).

Nesse sentido, é um evangelho aberto. Assim como limita ao mínimo alista de fatos narrados (uma boa dúzia, em vez da meia centena de Marcos),João não fornece receitas para o agir histórico nem regras concretas deconduta pessoal. Nada sobre a legislação social nem sobre a vida conjugale familiar... Só o mandamento do amor fraterno. Não nos dá o peixe nem alinha de pescar, só nos mostra o rio... Não alista preceitos e receitas concre-tas, mas situa os conflitos imediatamente num nível mais profundo, no níveldo conflito entre “luz e trevas”, “verdade e mentira”, “vida e morte”. À luzde Jesus, Palavra de Deus “na carne”, João mostra no mundo duas posiçõesintrinsecamente incompatíveis, entre as quais é preciso escolher. O resto éconseqüência dessa opção.

3.3.5 Evangelho “teo-lógico”

O Quarto Evangelho é “teo-lógico”: fala de Deus, e de Jesus como Filhode Deus. Chama Jesus de “o Filho”, sem mais, porque Deus é o horizonteonipresente daquele cujos “sinais” são narrados neste evangelho (20,30; 1,18).

Para João, falar de Cristo (cristologia) é falar de Deus (teologia): oassunto é Deus! Como cristãos compromissados sublinhamos a prática dajustiça e do amor solidário, conforme o ensinamento e a prática dos profetase, sobretudo, de Jesus de Nazaré. Mas não podemos relegar a questão de“Deus” ao segundo plano. Nestes últimos anos, muito falamos da Igreja,bastante de Jesus, mas quase nada de Deus em sua transcendência e em suaimanência. Ora, sem essas dimensões não se entende o Quarto Evangelho:“Eu não vim (falei/agi) por mim mesmo”, soa o refrão de Jesus. Ele veio,falou e agiu porque o Pai, Deus, estava nele e assim lhe ordenou.

O Evangelho de João nos ensina que a prática de Jesus é a prática deDeus mesmo — de Deus “na carne”, em existência humana histórica. Jesusnão apenas apresenta uma doutrina sublime, como se acentuava no século

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XIX, ou uma prática libertadora e exemplo radical, como nós costumamosacentuar. Em Jesus se dá a conhecer Aquele que ninguém jamais viu, masque é a referência última de tudo o que somos e fazemos. Por isso podemoscrer em Jesus, aderir a ele, confiar nele de modo radical. Nele, nosso vivertem seu ponto de referência inabalável.

A genialidade teológica do Quarto Evangelho consiste em não ter faladode Deus em termos teológicos abstratos, conceptuais. Ao descrever a práti-ca de Jesus Cristo, João “conta” Deus, conta a história de Deus entre oshomens (1,18). Em Jesus, Deus torna-se “história”, existência humana atu-ante no mundo. É isso que quer dizer o termo “carne” em Jo 1,14.

Nosso tempo ainda é capaz de falar seriamente de Deus? Não virou Deusproduto de supermercado? Para ler João é preciso admitir o Transcendenteverdadeiro e real. O que chamamos experiência de Deus não é um enlevomístico, eventualmente provocado por incenso oriental ou ervas alucinóge-nas. A experiência religiosa é “tocar pelo limite interno o ilimitado que nosenvolve”. É comparável ao contato que o feto, no útero, tem com a mãe.Tocar o Infinito por dentro é o que João nos proporciona ao retratar Jesus,nosso irmão, que na hora do “en-altecimento” nos fala de “meu Pai e vossoPai, meu Deus e vosso Deus” (20,17). Pois não podemos nos colocar fora domistério de Deus, sob pena de não mais sermos. Se não podemos incluir oMistério em nossa cabeça, podemos colocar todo o nosso ser no Mistério.Segundo João, a vida de Jesus nos dá a conhecer como isso acontece (Jo 1,18).

3.3.6 Evangelho da cruz, e da glória do amar

Assim como um gráfico (uma estatística, por exemplo) só pode ser lidoa partir do ponto zero, no qual se cruzam o eixo horizontal e o vertical, assim“lemos” a nossa vida a partir da cruz de Jesus de Nazaré, que desenha oseixos para que nossa vida se inscreva na dinâmica do amor a Deus (vertical)e do amor ao próximo (horizontal), inseparavelmente unidos (>com. Jo15,9.12; cf. 1Jo 4,20-21).

Teve muito sucesso, ultimamente, a estimulante “biografia de Deus” deJack Miles. Infelizmente, não vai além do Antigo Testamento. Para João, orelato de Deus é a vida de Jesus. Mas para que esse Deus não seja meroobjeto de conhecimento exterior, importa fitar, a partir de Jesus, com umolho Deus e com o outro, os nossos irmãos. Pois o que o Jesus joanino“conta” de Deus, Deus o fez porque tinha os olhos voltados para seus filhosno mundo e lhes deu, em Jesus, a sua Palavra de amor e fidelidade. Assim,Deus, Jesus e os irmãos se fundem numa visão única.

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3.3.7 Cristologia

No afã de fazer transparecer nesse Jesus de Nazaré o agir de Deus, Joãono-lo apresenta com todos os “títulos” da cristologia, mas nenhum é tãosignificativo e abrangente quanto o de “Filho”. A messianidade e a divindadede Jesus devem ser entendidas a partir de seu amor filial, sua “paixão” porfazer o que o Pai deseja e por revelar o que o Pai lhe dá a conhecer. “Eu eo Pai somos um” (10,30), “Quem me vê, vê o Pai” (14,9), “O Pai é maiordo que eu” (14,28): nessas três frases resume-se a cristologia joanina.

Nossa busca e nosso agir serão orientados pelo que vemos de Deus emJesus (14,9). Nos dias de hoje, quando todos os tipos de religião e de filosofiade vida se vendem nos supermercados, tal “cristocentrismo” parece até sectá-rio, mas talvez leve as pessoas estressadas e estraçalhadas, as comunidadesdesfeitas e desmontadas a reencontrar um ponto de integração. Não adiantacolher um pouco de todas as religiões: quem quer tudo não ganha nada, masquem se apaixona por algo ou alguém que faz viver, viverá de verdade.

Não se trata, porém, de fazer de Jesus um “outro Deus”, como incriminamos “judeus” no Evangelho segundo João (5,18; 10,33), porque não entendem o“mistério do Filho”. Jesus é um com Deus enquanto Filho (por isso, o dogmada Trindade mais tarde distinguirá as “pessoas” divinas). A “divindade” de Jesusse manifesta a nós no seu amor e obediência filiais. Deus é maior que Jesus.

Assim, o “cristocentrismo” não exclui a abertura para com todos aque-les que buscam Deus por outros caminhos. O que importa é termos a certezade que o Deus verdadeiro manifesta seu rosto em Jesus de Nazaré.

É no quadro deste cristocentrismo que se compreendem os sinais narra-dos no Quarto Evangelho. Não são “provas” de sua divindade, mas sinaispelos quais Deus manifesta que está com ele (Jo 3,2) e realiza nele as suasobras (14,11). Portanto, seu valor não consiste em terem acontecido taisquais, mas em deixar-nos descobrir o Pai que está presente em Jesus.

Temos, em João, uma cristologia ao mesmo tempo narrativa e simbólica:Se Jesus é “o relato do Deus Invisível”, a narrativa é fundamental. Ora, essanarrativa é banhada nos símbolos que assinalam o lado indizível da obra deJesus: luz, vida, alimento…

3.3.8 Escatologia

Cristologia e escatologia são inseparáveis, pois o Cristo/Messias deve inau-gurar o tempo do Fim, o reinado de Deus no mundo, tempo de paz e deplenitude (shalom) — depois de vencidos os inimigos. Mas porque tais repre-sentações não expressavam bem a missão de Jesus, João evita falar em “reino

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INTRODUÇÃO

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de Deus” (>com. 3,3.5; >exc. 19,15). Substitui praticamente esse conceito por“vida eterna”: a vida que vivemos na opção de fé assumida diante da palavrae da prática de Jesus é o exercício da vontade de Deus, desde já — ou seja,aquilo que o “reinado de Deus”, profundamente, significa.

Quem crê em Jesus vive aquilo que condiz com Deus, o que é definiti-vamente válido, enquanto for fiel. “Quem ouve minha palavra e crê naqueleque me enviou tem a vida eterna e não vai a juízo, mas já passou da mortepara a vida” (Jo 5,24).

“Vida eterna” deve ser entendido não como um prolongamento matema-ticamente infinito desta vida — não valeria a pena! —, mas como vida domomento novo que vem substituir este tempo desgastado, “este mundo”. Éum salto qualitativo, que começa já, na fé em Cristo e no seguimento de suaprática. E porque a morte/ressurreição de Cristo foi a manifestação claradesta vida de Deus que, no dom da vida, supera a morte, chamamos essa“escatologia-já” de “existência pascal”.

Outra imagem escatológica é a “nova Aliança”, evocada no coração datradição evangélica, nas palavras eucarísticas de Jesus (Lc 22,20; 1Cor 11,25;cf. Mt 26,28; Mc 14,24). Mais adiante remetemos a textos que anunciam arenovação de Israel e da Aliança pela conversão e pelo ensinamento de Deusno “coração (novo)” dos que dão ouvido a Jesus (cf. Jr 33,31-33; Ez 36; Is54,13 etc..). A observância do “mandamento”, condição-base da Aliança, éum tema forte dos caps. 13–17. Apesar disso, o termo “Aliança” falta porcompleto em João. Tem-se a impressão de que João nos transmite o conteú-do da nova Aliança em outra embalagem, talvez para não criar a ilusão deuma mera renovação do tempo antigo — assim como evita o termo “Reinode Deus”, preferindo falar em “vida eterna” (cf. supra).

3.3.9 Pneumatologia

João dá um grande lugar ao Espírito Santo, dom escatológico por excelên-cia. João Batista diz que o Espírito Santo desceu sobre Jesus e permaneceu,pois ele é quem batiza com o Espírito Santo. Esse dom do Espírito vempropriamente quando Jesus, glorificado na morte de cruz (cf. 7,39!), volta aoPai e nos confia o campo do mundo para nós realizemos “obras maiores” doque ele realizou (14,12). Naquele momento, no tempo de nossa existênciapascal, ele rogará ao Pai para que nos envie o “Espírito da verdade”, chamadotambém o Paráclito (14,16-17; >exc. 14,17), para ser nosso auxílio na missãono mundo e nosso defensor no processo com o mundo (16,7-11), guiando-nosna plena verdade de cada momento histórico (16,13). Ressuscitado, Jesus dá,no dia da Páscoa, aos discípulos o dom do Espírito Santo (20,19-23).

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3.3.10 Ensinamento moral

O ensinamento moral de João pode ser resumido em dois termos-chave:verdade e amor. Ambos têm sua fonte em Deus e sua mediação em Jesus(>exc. 15,12). Deus é verdadeiro (cf. 7,26; 8,26) no sentido da autenticida-de, totalmente oposto à mentira e à falsidade. Por isso ele é fiel, sua palavranão muda, sua promessa se cumpre, sua Aliança é eterna… E sua palavra édigna de toda confiança. Essa palavra é Jesus. Nele se encarna a verdade/fidelidade de Deus, juntamente com o amor, a graça (>com. 1,14). Por isso,na boca de Jesus, a verdade significa a manifestação da verdade do Pai nele.Deus é amor (cf. 1Jo 4,8.16). Com base no amor que o Pai tem a seu “Filhounigênito” (= incomparavelmente querido), este ama os que o Pai lhe deu eque acolhem sua palavra, a ponto de dar sua vida por eles. E isso serve deexemplo para nós (cf. 1Jo 3,16-18).

Eis as coordenadas da ética cristã segundo João: veracidade/fidelidade eamor fraterno fundados em Deus e vividos segundo o modo revelado porJesus (“como eu vos amei”, Jo 13,34-35; 15,12; “como eu vos fiz”, 13,15).

João não oferece listas de mandamentos específicos, à maneira do AntigoTestamento, ou de virtudes, à maneira da sabedoria grega. Confiava que oscristãos adultos conheciam as regras de comportamento que certamente lheseram lembradas na comunidade. Deixa a cada geração a tarefa de inventaras formas concretas da ética cristã.

3.4 A alternativa cristã segundo João

Será que o Evangelho de João apresenta uma alternativa para a socie-dade não libertada em que vivemos? Isso muito tem a ver com a questão seJesus é o Messias, pois, no pensamento bíblico, o Messias vem libertar opovo e sanear a sociedade.

3.4.1 A messianidade de Jesus e a nova comunidade

Como Marcos, também João apresenta Jesus como Messias desconheci-do e recusado. Mas João acentua que, conhecido como tal ou não, Jesus éde fato o Messias e Filho de Deus. Se Marcos mostra que primeiro o Servodeve sofrer, morrer e ressuscitar, antes que sua messianidade possa ser com-preendida (Mc 8,27-33), João aponta a missão divina e a presença da “gló-ria” em Jesus desde o início (1,41.45). A glória de Deus se vislumbra na“carne”, a existência humana de Jesus. Coisa semelhante deve-se dizer de nos-sa participação na sua glória, a “vida da eternidade” que, para quem crê, nãocomeça depois da morte, mas desde já (5,24).

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Embora a “carne” não salve (Jo 6,63), o Jesus de João não desprezaa carne; pelo contrário, nela “encarna” as primícias da vida nova que eletorna acessível para nós. O caso mais claro é a ressurreição de Lázaro.Depois da bela confissão de fé na “vida eterna já” pronunciada por Marta(11,25-27), Jesus não acha supérfluo ressuscitar Lázaro materialmente. As-sim também, no episódio da multiplicação dos pães, apesar de o pão materialnão produzir por si a vida da eternidade, Jesus alimenta de fato cinco milpessoas com cinco pães e dois peixes. Por sua materialidade, os sinais mostramque a salvação trazida por Jesus não despreza a materialidade. Isso nos develibertar definitivamente da leitura “espiritualizante” do Evangelho de João.Como bom judeu, João sabe que “espírito” significa nova criação (3,3-5; cf.Gn 1,2; Sl 104,29-30), sopro de Deus tomando forma material em vida nova.

Muitas vezes, em João, o termo “(este) mundo” tem sentido negativo (re-cusa Jesus e Deus, tem o diabo por chefe). Olhando a partir do Jesus do QuartoEvangelho, será que existe uma alternativa histórica em face “deste mundo”?A fraternidade? Mas não uma fraternidade qualquer, como as haburot dos fariseus,que João situa no lado do “mundo”. Para João, a comunidade alternativa é afraternidade radicada na fé em Jesus, o Cristo, vencedor do príncipe do mal.

3.4.2 Contracultura, comunidade contrastante, resistência

O modo negativo com que João fala do “mundo” lembra os movimentosde contracultura que sempre de novo surgem na história da humanidade.Contudo, João não pretende fundar uma outra cultura, oposta à dominante.Não pretende prescrever um novo programa ao mundo, mas defender olegado de Jesus em contraste com o mundo dominante. É uma comunidadecontrastante, que contém elementos de resistência cultural, inclusive no ní-vel da doutrina e das práticas religiosas. No Antigo Testamento encontramosa comunidade contrastante dos recabitas (Jr 35). Na história cristã conhece-mos os anacoretas (monges do deserto), os cátaros (comunidades heterodo-xas à margem da cristandade medieval), os mendicantes e poverelli(franciscanos etc.), os anabatistas (protestantes radicais) e tantos outros. Seráque o Quarto Evangelho deixa transparecer algo neste sentido?

O que o evangelho joanino recusa não são pessoas individuais, masestruturas socioculturais. A “cultura dominante” para a comunidade do Quar-to Evangelho tinha duas vertentes: (1) a cultura geral do helenismo do séculoI, veiculada pelo comércio internacional e respaldada pelas instituições doImpério Romano; (2) a cultura particular das comunidades judaicas dadiáspora, que mantinham laços estreitos com Jerusalém, ao mesmo tempoque desejavam viver em bons termos com a administração romana. O que

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João recusa, nesse mundo renitente, é sua rejeição de Jesus e de sua comu-nidade. Em função disso, que valor tem para ele o cotidiano dessa cultura?

Imaginemos concretamente as comunidades joaninas, vivendo em tornodas cidades da Síria e da Ásia Menor, comunidades compostas de pequenosnegociantes, artesãos, agricultores autônomos ou arrendatários, escravos liber-tos e até algumas pessoas de status superior — antigos líderes farisaicos,sacerdotes, funcionários imperiais etc. Essas pessoas tinham até certo pontoacesso à cultura do mundo helenístico, ao qual o judaísmo estava acostumadodesde o tempo de Alexandre (do século IV aC em diante). No ambiente doQuarto Evangelho deve ter sido normal a instrução escolar não só para ler aTorá, mas também para lidar com o comércio, a administração e a culturagreco-romana. A interpenetração da cultura judaica com a oriental e a grega jáse tinha revelado no Sirácida (século II aC) e sobretudo na Sabedoria de Salomão(sé-culo I aC), escritos conhecidos no âmbito de João. O próprio judaísmoabrigava muitas maneiras de compreender o mundo e não ficava alheio aoplatonismo médio. Isso era possível porque o judaísmo não é um sistemafilosófico, mas a observância de tradições morais e rituais prescritas pela Torá,interpretadas em diversos sentidos, geralmente simbólicos. Salvaguardado orespeito pela Torá, o judaísmo daquele tempo permitia muitas mundividências.

Esse ambiente cultural era aceitável para João e sua comunidade? Sim,na medida em que fosse capaz de abrigar o apelo absoluto de Jesus comoPalavra de Deus e abrisse espaço para a comunidade que confessava a mis-são divina de Jesus.

O Evangelho de João participa da cultura de seu tempo. Sua linguagemé um bom grego médio (koiné), ele lança mão dos recursos literários que seaprendiam nas escolas helenísticas: narrativa, retórica, dramática, poesia.Usa termos “da moda” na cultura helenista, p.ex. logos, ainda que o conteú-do não seja tão grego assim (>com. 1,1). Ora, João “está no mundo, mas nãoé do mundo”. Mantém distância, pois a missão divina de Jesus era entendidapelos judeus da sinagoga como divinização indevida de Jesus (Jo 5,18 etc.)e, pelos pagãos, como alienação em relação à festiva religiosidade mediter-rânea, praticada em torno de eventos religioso-civis, atribuindo caráter divi-no às “instâncias reguladoras” da produção, do mercado e da política, osdeuses de diversas “especializações”, Eros, Fortuna e até o próprio Impera-dor. Imagina-se que fiéis que proclamam a glória da cruz não se misturemcom essas festanças. Mas também a vertente judaica causa problemas. Acomunidade joanina abrira-se aos não-judeus e, no fim do século, estavasendo expulsa ou até perseguida pelo judaísmo restaurador de Jâmnia. Oscristãos eram tão estranhos no mundo quanto o próprio Enviado do Pai, que

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o mundo recusou. O que aconteceu à Palavra (Jo 1,10-11) é o retrato daquiloque estava acontecendo à sua comunidade.

Isso explica por que João não transmite um “humanismo cristão” como,por exemplo, os escritos lucanos. O mundo como ambiente dominante épercebido como odioso (15,18). A comunidade vive em autodefesa, necessi-tando coesão, fidelidade e amor fraterno. O ponto de contato entre a comu-nidade joanina e o mundo é o testemunho do amor fraterno (13,35). Com seucaráter pneumático-profético, a comunidade joanina faz pensar em certascomunidades “crentes” tradicionais, um tanto fechadas em si, mas admirá-veis por sua fraternidade e solidariedade (não falo de certos grupos sectáriosou movidos pelo amor ao dinheiro). Como vemos em relação a isso asnossas comunidades de base?

3.4.3 Visibilidade cristã: o amor fraterno

Costuma-se falar hoje em dia na visibilidade da Igreja. O Evangelho deJoão mostra desconfiança em relação à fé baseada em sinais (embora admi-tindo a necessidade pedagógica: 4,48) e aponta os mal-entendidos a respeitode Jesus. Certamente nos ensina prudência na questão da visibilidade. Talvezpossamos ver em 13,35 a chave da visibilidade da nova vida manifestada ecomunicada por Jesus: “Nisto (na prática do amor fraterno) todos reconhe-cerão que sois discípulos meus”. É o “Vede como eles se amam” citado porLuciano de Samosata.

A aparente distância de João em relação ao “mundo” não deve ser interpre-tada como indiferença para com o mundo. Nem poderia! Deus amou o mundo aponto de dar seu Unigênito (3,16). Mas o que se deve mostrar ao mundo é algoque não provém do mundo na sua auto-suficiência, algo que recebemos comodom, na vida e na morte do Unigênito: a comunhão com ele e com os nossos ir-mãos e irmãs. Viver isso com todas as suas conseqüências e mostrá-lo ao mundo,não em sinal de auto-afirmação grupal, mas como convite para que os outrostambém adiram a esse “discipulado”, eis a visibilidade cristã segundo João.

4. RECEPÇÃO E EFEITO

4.1 Canonicidade

O Quarto Evangelho cedo foi aceito na Igreja, como mostram duas tes-temunhas do fim do século II dC: o “Cânon de Muratori”, documento daIgreja de Roma, provavelmente dirigido contra o sectarismo de Marcião; eSto. Ireneu de Lião, que defende João contra a interpretação gnóstica.

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Reservas vieram dos antimontanistas, que reagiam contra os montanistas,movimento rigorista que apoiava fortemente seu caráter “pneumático” emtextos de João. Outra resistência veio dos “álogos”, que rejeitaram o evan-gelho do Logos por causa de sua divergência em relação aos sinópticos e porcausa de seu caráter quase gnóstico; atribuíam-no ao gnóstico Cerinto. Nãopodemos dizer que a recepção do Quarto Evangelho tenha sido realmentepolêmica, mas os que a ele se opuseram apontam o ponto perigoso: espiri-tualismo, gnosticismo.

4.2 Best-seller dos gnósticos

O primeiro comentador de João foi um gnóstico: Heracleão, adepto dagnose valentiniana, na metade do século II, no Egito. A gnose encontrou noEvangelho de João um Logos celeste, revelador de verdades superiores, umJesus “doceta” (do grego dokein, “parecer”; Jesus seria um enviado celestialsem ser verdadeiramente humano, mortal, mas apenas parecendo “carne”;>com. 1,14; exc. 17,26). Diziam que o Logos deixara Jesus antes da mortena cruz, ou até que quem morreu foi Simão de Cirene. É verdade que Sto.Ireneu e muitos outros depois dele tentaram ler o Quarto Evangelho e asCartas (1Jo 4,1-2; 2Jo 7) num sentido antignóstico, antidocetista. Mas seJoão tivesse sido tão claro nesse ponto, como os gnósticos poderiam ter-seapoiado nele? Provavelmente deu azo às duas maneiras de ler.

Simplificando, podemos dizer que para Irineu a frase principal do Pró-logo é: “A palavra se fez carne” (1,14a); para os “docetas”, porém: “Nóscontemplamos a sua glória” (1,14c). Mas ao contemplar essa glória do“revelador” não descobriram nele a revelação principal, a da “graça e ver-dade” (1,14e), do amor fiel até o fim, da “glória do amar”, que se manifestana cruz (>exc. 17,26).

4.3 Evangelho intelectual e espiritual?

Ora, não foram só os gnósticos egípcios que desfiguraram a leitura deJoão por um quadro de interpretação demasiadamente dualista. Também naIgreja “fiel”, o Evangelho de João foi objeto de mal-entendidos por causa deum quadro de interpretação inadequado. Muitos cristãos até hoje vêem noCristo do Quarto Evangelho um ser extraterrestre e, conseqüentemente, ali-mentam em si mesmos uma “espiritualidade” bem afastada da realidade.

O Evangelho de João foi visto como um evangelho intelectual, por causado Logos mencionado no Prólogo. Foi considerado o evangelho espiritualpor excelência. Assim, sua leitura foi levada a um espiritualismo dualista: as

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idéias supostamente “sublimes” da esfera espiritual ficavam longe da reali-dade “vulgar” do dia-a-dia e da matéria.

Ora, quanto à interpretação intelectualista, observe-se que o Logos doPrólogo pouco ou nada tem a ver com a Inteligência ou Razão da filosofiagrega — como se pode ver no comentário a seguir. É a Palavra convocadora,que chama à existência a criação, que provoca os profetas para a causa deDeus e, sobretudo, “descreve”, por seu agir, o rosto do Deus invisível.

Já quanto ao Quarto Evangelho ser um evangelho espiritual, apontamosacima o que isso significa: um evangelho escrito e a ser lido à luz do Espíritoque animou Jesus e que continua animando sua comunidade (§ 3.3.4). Nãonos leva para alturas etéreas, mas nos confronta com o Espírito de Deus navida e na história, com a realidade decisiva da opção da fé por Jesus, nacomunidade, e com o mandamento do amor fraterno, pelo qual o Pai e oFilho estabelecem morada no meio de nós (Jo 14,23).

A leitura dualista despojou o Quarto Evangelho de seu caráter histórico(comprometido com a história humana) — por mais que se procurasse en-contrar nele detalhes supostamente históricos. Deu-lhe uma aura estética,indevidamente considerada como mística. O Quarto Evangelho é místico,sim, mas no sentido de nos entrosar na comunidade de fé e de amor fraterno(§ 3.3.3). Se não nos levar a amar os irmãos “com atos e em verdade” (1Jo3,16-17), a exemplo de Cristo, sua leitura é inoperante, tempo perdido.

5. NOSSA LEITURA

5.1 Chaves

1 — O olhar de João

João é simbolizado pela águia (um dos quatro seres vivos de Ez 1,5-21e Ap 4,7), porque levanta vôo alto e sobreolha o panorama com um olharabrangente. Será verdade? Não olha João quase que exclusivamente para suacomunidade? A comparação com a águia sugeriu a muitos o alto vôo filo-sófico do Prólogo. Prefiro interpretar a imagem de outra maneira: João vê aomesmo tempo o passado — o tempo de Jesus — e o presente — o tempoda comunidade.

João apresenta os gestos e as palavras de Jesus sobre um duplo pano defundo, o do ano 30, tempo histórico de Jesus, e o do ano 90, tempo dacomunidade; une, de modo sugestivo, como duas imagens sobrepostas, ohorizonte do ano 30 e o do ano 90. Com isso, mostra a atualidade, nacomunidade, daquilo que aconteceu a Jesus: “Se o mundo vos odeia, sabei

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que primeiro odiou a mim (15,18)”. Ele nos ensina a ler e a ver Jesus notempo da comunidade atual. Deixa Jesus — o “Jesus eclesial” — falar comose ele vivesse no tempo da comunidade. Assim, dá-nos um exemplo deleitura atualizada. O que aconteceu a Jesus e seus discípulos aconteceu àcomunidade meio século mais tarde, e ainda hoje.

2 — A memória de Jesus

O Quarto Evangelho guarda a memória de Jesus. Ainda que seletivamen-te, escreve a narrativa daquilo que Jesus fez (20,30), para os que devem crersem ter visto (20,29). Jesus é “o relato de Deus” (1,18). Não se pode sercristão sem dar crédito ao modo de agir de Jesus de Nazaré, homem semprestígio (1,46!), porém profeta confirmado por sinais (3,2; 20,30), dirigin-do-se aos discípulos do Batista (1,38), a um fariseu proeminente (3,1), aossamaritanos (4,4-42), a um funcionário do rei (4,46-54), a um enfermo su-persticioso (5,1-14), aos galileus (6,1-15), a um mendigo cego (9,1-41), àminicomunidade de Betânia (11,1-41)...

Ao descrever essa atividade confirmada por sinais, João carrega nastintas, como faz qualquer bom pintor. Projeta, por assim dizer, uma auréolaem torno da cabeça de Jesus, um halo em torno de seus gestos. Mas isso nãodesfaz a realidade do fato: o retratado é o próprio Jesus, que superou osistema do Templo (2,13-21), para que também o leitor supere as estruturascaducas do seu tempo. Que se revelou aos “sincretistas” samaritanos, a pontode ser com eles identificado (8,48), para que os cristãos não tenham medode ir aos “sincretistas” de hoje. Que proferiu suas últimas palavras públicasna presença de “gregos” (12,20-36), em sinal de que ele quer atrair todos asi (12,32). Que morreu na cruz (12,33) e se tornou um desafio para que nóstambém demos a vida pelos irmãos (1Jo 3,16).

Sem a memória da práxis de Jesus, nossa fé é vazia, paira no ar, nãoatinge o chão.

3 — Jesus fala hoje, e Deus nele

No Evangelho de João, Jesus fala hoje. A figura do Paráclito que nosguia em toda a verdade (16,13) realiza precisamente isto: recorda as palavrasde Jesus em tradução para nós hoje. Reino de Deus torna-se “vida (eterna)”,“Aliança” torna-se “amor, verdade/fidelidade”. Mas não se trata somente depalavras. Trata-se da realidade histórica, sempre evolutiva, vista sob ângulossempre novos, porém com o olhar de Jesus como Enviado do Pai, Luz domundo. Jesus é o profeta e revelador por excelência da comunidade joanina(no Livro do Apocalipse ele aparece precisamente como testemunha e

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revelador). Na sua ausência física, o “outro Paráclito” exerce esse papel, emtotal união com ele. É o Paráclito, o Espírito da Verdade, que fala às Igrejas.Mas isso não terminou no ano 90 dC. Continua até hoje. Por isso foi bomque Jesus deixasse o mundo: para que no lugar dele viesse o Espírito, supe-rando a limitação de tempo e espaço (16,7). Guiados pelo Espírito de Jesus,devemos traduzir sua mensagem sempre em termos novos, como os que oevangelista João teve a coragem de colocar na boca do próprio Mestre. E porisso devemos também “discernir os espíritos” (1Jo 4,1-2).

4 — A presença do Espírito-intérprete

Enquanto vivia, Jesus podia explicar e aplicar suas palavras de viva vozpara a circunstância de seus discípulos. Não precisava dizer tudo (16,4).Depois de sua despedida, é preciso que suas palavras sejam interpretadas àluz da nova realidade. Quem faz isso é aquele que conduz a comunidade naverdade de cada novo momento, a verdade plenificada, atualizada: o Paráclito,o Espírito da Verdade (16,13). Na ausência física de Jesus, ele faz a mesmacoisa que Jesus quando presente: põe os seus em contato com a Verdade doPai, o projeto de Deus a respeito do mundo e de todos nós. Ele é o “outroParáclito” (14,16), aquele que toma o lugar de Jesus na revelação de Deuse de sua vontade. Ele é “a diferença entre Jesus e o Pai”: ele preenche oespaço que sobrou entre Jesus-carne, limitado no tempo e no espaço, e o Pai,Deus em sua transcendência. Por isso se chama “espírito”. Pois “o Espíritode Deus enche o universo” (Sb 1,7).

O Apocalipse nos mostra “o Espírito da profecia” nas comunidades joaninas.As cartas às sete Igrejas (Ap 2–3) são “o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap2,7 etc.). Também hoje o Espírito fala às Igrejas. João nos ensina a ver a Igrejacomo realidade pneumática, conduzida pelo Espírito que Jesus nos deixou.Ora, qual é esse Espírito? 1Jo estabelece critérios para ver se é realmente oespírito de Cristo que fala às Igrejas: “De Deus é todo espírito que professaa fé em Jesus Cristo que veio na carne” (1Jo 4,2). O que o Espírito produznão são os sentimentos subjetivos e muito menos a afirmação pessoal, mas aconfissão do Jesus que “veio em carne”, aquele que o evangelho nos dáa conhecer, não aquele que nossa filosofia ou fantasia inventam!

João escreveu seu evangelho para aqueles que crêem sem ter sido teste-munhas oculares (Jo 20,29 + 30-31) e transmite às gerações posterioresaquele que por sua vida “conta” quem é Deus (Jo 1,18). A fidelidade a esteCristo, encontrado no testemunho do NT e na prática de seu mandamentotransmitida na comunidade, é o critério para saber se é o Pneuma, o Espíritoda Verdade, que fala à Igreja e nos conduz na plena verdade (Jo 16,13).

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5 — A assimilação da identidade cristã

Ser cristão é professar a fé em Jesus, proclamando-o Cristo/Messias eFilho de Deus (Jo 20,30). Esta chave completa a anterior. O Evangelho deJoão revela traços de iniciação cristã (§ 3.3.2), entrosa o destinatário com aspalavras do Mestre e com os símbolos que exprimem seu valor único comodom de Deus e centro da nova Aliança. Introduz-nos no “espaço” de Jesus,novo Templo, mediante os grandes símbolos do Israel antigo: a Aliança doÊxodo, o conhecimento de Deus proporcionado pela Torá e pela Sabedoria…Nos símbolos do culto antigo e na linguagem religiosa da humanidade uni-versal surgem discretamente, em segundo plano, os símbolos cristãos, batis-mo, Eucaristia, a vida movida pelo Espírito que nos anima e que interpretaa herança de Jesus hoje, a caridade e o serviço fraternos.

Perceber o valor vital de Cristo e assimilar sua expressão em palavras,símbolos e gestos concretos, essa deve ser a preocupação dos leitores e dascomunidades hoje, se quiserem depreender do Quarto Evangelho o que eletem de mais específico a oferecer.

6 — Comunhão e diálogo

João parece fechado na perspectiva da comunidade, pouco ecumênico,irônico para com os de fora. Mostra abertura para os discípulos do Batistae os samaritanos, desde que reconheçam Jesus, mas não abre brecha algumapara os mestres judaicos, e as outras religiões nem entraram no seu horizon-te. Que devemos pensar disso?

“Eu sou a porta”, diz o Jesus joanino, com exclusivismo chocante (Jo10,7.9). João escreve para os membros de sua comunidade (e de outras,afins, 10,16), para confirmá-las na certeza de que o rosto de Deus, Pai deJesus, se manifesta no amor do Filho, testemunhado pelos “que viram” (Jo19,35; 20,30-31; 1Jo 1,1-4). Não escreve para dialogar com outros caminhospelos quais se espalharam “as sementes da Palavra” — termo adotado peloConcílio Vaticano II. Escreve para fortalecer os fiéis contra a apostasia epara que a comunidade continue vivendo o amor que Jesus lhe ensinou,enxergando nele o rosto do Pai e mostrando este rosto ao mundo por suaprática “monitorada” pelo Paráclito.

João prioriza as relações de fraternidade, participação e comunhão dentroda comunidade. Se estas não são levadas a sério, não podemos seriamenteentrar em diálogo com o mundo, pois é por nosso amor fraterno que omundo nos reconhece (Jo 13,35). Por outro lado, o diálogo com o mundofora de nossas comunidades nos ajuda a valorar o que Jesus nos legou. Nopróprio Evangelho de João constatamos atitudes diferenciadas: abertura para

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com um fariseu bem-intencionado, Nicodemos, para com os samaritanos eos gregos, mas polêmica irônica para com o judaísmo dominante. A nóstambém cabe usar de discernimento em nossas relações de diálogo. Aberturapara com os que procuram honestamente, talvez mais honestamente que nós,aquilo que reconhecemos em Jesus; mútua participação em tudo o que forpossível, diálogo sincero, solidariedade… Mas determinação quando se tratade afirmar nossa referência: o próprio Jesus e seu gesto de amor até o fim,sua morte que é a revelação de Deus.

7 — Simbolismo e sacramentos

O símbolo é a parte visível da realidade invisível, torna presente o que nãose vê. O Evangelho de João está cheio de símbolos. Jesus providencia vinhopara revelar a hora das núpcias messiânicas. Cura um aleijado para revelar odom da vida que supera o desânimo e o pecado. Providencia pão para revelarque ele é o alimento de Deus que nos faz viver, sobretudo pelo dom da própriavida. Jesus abre os olhos do cego porque é a luz do mundo. Ressuscita Lázaroporque é a ressurreição e a vida. Lava os pés dos apóstolos porque é o Servode Deus que dá sua vida por todos. Aparece a Madalena como um operárioporque está presente na comunidade dos irmãos.

Os olhos vêem a aparência, o coração vê o que está escondido. O sentidodos símbolos em João só é percebido com os olhos da fé. Mas a fé écomunitária. Por isso, certos símbolos vão fazer parte da vida da comunida-de. É o caso do pão, que faz reconhecer em Jesus o dom do conhecimentodo Pai e o dom da vida — especialmente quando aquele que é Pão dá aprópria vida para que o mundo tenha vida (Jo 6,51). O pão repartido é o ladovisível desse mistério: é o sacramento da Eucaristia. Coisa semelhante seproduz quando a água de Siloé restabelece aquele que não enxergava, eassim o inclui na comunidade dos que crêem, enquanto a sinagoga o exclui(Jo 9,1-41): Siloé é o Enviado (9,7), o banho no “Enviado” simboliza obatismo em Cristo, chamado de “iluminação” pelos primeiros cristãos: abreos olhos da fé e inclui na comunidade.

Assim, em diversos lugares o Quarto Evangelho evoca os sinais sagra-dos da comunidade, os sacramentos. Faz parte deste evangelho “iniciático”introduzir ou confirmar o leitor no espaço sagrado que leva o nome deCristo, na prática da comunidade fraterna e nos seus sinais sagrados, prin-cipalmente o batismo (Jo 3,1-21; 9,1-41; e cf. 4,4-27) e a Eucaristia (Jo 6,1-58), e talvez o perdão dos pecados (20,19-23). Ora, João respeita o carátersimbólico. Assim como nos sinais milagrosos o acento não está no fatomaterial, mas no sentido que ele revela, assim também as alusões aos sa-

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cramentos não são prescrições rituais, mas evocações simbólicas que deixamtransparecer o sentido do sacramento. Assim, quando, no cap. 6, desenvolveos diversos sentidos do pão da vida, João parece estar sugerindo: “Eis o quevivemos quando comemos e bebemos pão e vinho na Eucaristia”; e no cap.9: “Eis o que acontece quando pelo batismo alguém é acolhido na comuni-dade de Jesus”.

8 — Conhecimento e firmeza para quem participa

O Evangelho de João parece difícil de compreender… mas é o que maisatrai as pessoas simples. Transmite um sentido que ninguém consegue ex-pressar. Dá um conhecimento que não exige diploma universitário, mas apenassupõe sensibilidade e contemplação. Faz conhecer o mistério por dentro,como o feto conhece o útero da mãe. Mas quem não está por dentro nãoentende. Só compreende quem participa. Um exemplo: João fala do amor.Mas que amor? Aquele de que falam as revistinhas e o videopornô? Sóentende quem se integra na comunidade que guarda a prática de Jesus.

O Evangelho de João não é para meros curiosos, nem para medrosos quenão querem comprometer-se. É para quem quer participar. Só vivendo epraticando é que se alcança o conhecimento verdadeiro, não de coisas estra-nhas (como os “mistérios” helenistas ou as “profundezas de Satanás” de quefala Ap 2,24), mas do amor de Deus, que nos envolve mediante o amorfraterno vivido segundo a palavra e o exemplo de Jesus.

Por isso, é um evangelho de iniciação e de perseverança. Entrar e par-ticipar na comunidade é essencial para saborear esse conhecimento maravi-lhoso de Deus, o qual ninguém viu, em Jesus, que no-lo contou por suaprópria “vida de palavra” (1,18). “Para que creiais e, firmes nessa fé, tenhaisa vida”, essas são, significativamente, as últimas palavras do Evangelho deJoão (20,31; o cap. 21 é um epílogo).

9 — O confronto com “o mundo”

O Evangelho de João tem traços de catequese de perseverança, de resis-tência. As comunidades joaninas passaram por diversas situações, e comolinha geral podemos imaginar um endurecimento das pressões que estavamsofrendo da parte de seu ambiente, especialmente o judaísmo restauradoapós a destruição do Templo (ano 70) e o sínodo de Jâmnia (c. de 80 dC).

Essa situação tem certa analogia com as comunidades mais conscienteshoje. O novo Pentecostes do Concílio Vaticano II suscitou, na América Latinae em outras partes do mundo, comunidades que procuravam sinceramente

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INTRODUÇÃO

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identificar-se com a prática de Jesus de Nazaré, com a opção pelos pobrese com a fraternidade radical da partilha do pão e da vida. A atual tendênciada sociedade a aceitar o predomínio do mercado, a perplexidade diante da“cultura global” e o próprio esquecimento do Concílio Vaticano II abriramespaço para movimentos de “restauração modernizadora” na Igreja. O Evan-gelho de João foi redigido numa situação semelhante. Aos olhos da comu-nidade joanina, o judaísmo restaurador tentava restituir, na forma do “santuá-rio do estudo da Lei”, o Templo destruído. A alternativa das comunidadesjoaninas (e de todas as comunidades genuinamente cristãs), pelo contrário,vê o novo santuário na prática de Jesus: amor filial ao Pai e dom da vidapelos irmãos. Aí está a presença permanente de Jesus e do Pai (14,23).

No que acontece hoje aos cristãos vemos duas formas de apostasia. Aprimeira é a dos que saem da Igreja. Se João propunha, aos hesitantes, acomunidade fraterna e solidária radicada no Filho e Servo, também os hesi-tantes de hoje necessitam de nova experiência de comunidade para ser con-firmados na fé e resistir à pressão exercida por todos os lados. A segundaforma de apostasia é querer voltar atrás, para um sistema baseado em regrase poder, que já mostrou sua inviabilidade. A tentação de voltar atrás apresen-ta-se sob a forma de fidelidade e de piedade, mas é na realidade uma desis-tência, um entregar-se ao “mundo” do individualismo e da não-participação,que nos envolve cada dia mais.

10 — Escatologia já

Em Jesus nos confrontamos com a palavra decisiva sobre nossa vida.“Quem crê não vai a julgamento, mas já passou da morte para a vida” (Jo5,24). Para João, o julgamento é agora, diante da palavra de Jesus, melhor,diante de Jesus-Palavra. A hora do enaltecimento de Jesus como Juiz/Filho doHomem é a hora de sua atuação histórica, a hora de sua morte na cruz. Diantedesse Juiz cada pessoa com ele confrontada opta pela vida ou pela morte. Porisso, a hora de Jesus é a hora em que o Chefe deste mundo é expulso (13,31),como nas visões do Apocalipse Satanás é expulso do âmbito de Deus.

Se em Jesus o Pai está conosco, a plenitude já chegou até nós. Quempela fé está unido a Jesus recebe do Pai a vida de qualidade divina, que asvicissitudes deste mundo não podem desfazer — a vida do âmbito de Deus,a vida que permanece, a “vida da eternidade”, salto qualitativo para outronível. Podemos dar este salto desde já, unindo-nos a Jesus, seguindo os seuspassos, participando de sua comunhão na comunidade da fé. Para João, avida eterna começa aqui. E quem não consegue vivê-la aqui dificilmenteagüentará uma eternidade com Jesus.

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O Juízo não é uma ameaça arbitrária, mas o resultado de nossa opçãodiante de Jesus “enaltecido”. Mas como fica aquele que nem conhece a fécristã? Mesmo que João não o diga expressamente, a realidade de Jesusultrapassa o âmbito da confissão cristã. A realidade do amor encarnado eradical de Deus se apresenta também fora da pregação e das estruturas cris-tãs, e diante dessa realidade cada pessoa pode optar a favor ou contra a Vida.Neste sentido, o próprio Jesus é “sacramento”, parte visível de uma realidadeinvisível: o Pai, que é maior que ele (cf. 14,28). (E os que optam contra isso“morrerão no seu pecado”, 8,21? Deixemos essa questão para o Pai.)

A razão profunda por que João insiste tanto na dimensão presente darealidade última encontra-se em 14,9: “Quem me vê, vê o Pai”. Pois issorepresenta nada menos que a “visão beatífica” que, segundo o velho catecis-mo, nos aguarda no céu. O que se pode esperar mais do que ver Deus? ODeus que ninguém jamais viu — nem mesmo Moisés —, nós o vemos aocontemplar Jesus na hora de sua entrega à morte por amor, pois Deus é amor.A quem guarda seu legado, o mandamento do amor fraterno, ele e o Pai“virão a ele e farão nele sua morada” (14,23). É como se a Jerusalém celestedo Apocalipse de repente se instalasse na vida dos fiéis. É o céu na terra.Que ninguém nos remova dessa morada!

5.2 Livro da Vida

O Quarto Evangelho é o livro da vida da comunidade. Em diversossentidos.

É o livro que se lia na assembléia dominical (no “primeiro dia da sema-na”, Jo 20,1.19.26), reunida para a memória, à luz da Páscoa, de seu MestreJesus. Focaliza, em forma de narrativa, essa vida que é a de Jesus: o mistériodo Enviado do Pai, do Cordeiro que tira o pecado do mundo, do Filho doHomem, cuja palavra é a espada de dois gumes da opção vital, do Filho querealiza plenamente a obra do Pai, no “en-altecimento” na cruz e na glória.

Vida atualizada pelo Paráclito que conduz a comunidade na plena verda-de. Daí, João projeta, nessa vida, a vida da comunidade, a comunidade dosque procuram onde Jesus mora, que são iniciados na presença divina nele.Comunidade confrontada (cf. figura § 3.2), num primeiro círculo, comparentes de sangue que procuram desanimá-la, para que volte à sinagoga dojudaísmo restaurado. Confrontada, num segundo círculo, com o “mundo”helenístico-romano, com sua ideologia imperial, com seu comércio respalda-do pelo braço militar — mundo identificado, pelo profeta da comunidade (noApocalipse), com a Fera e com a prostituta Babilônia. Comunidade pro-

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INTRODUÇÃO

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curando ser uma ilha de fraternidade no meio de um mundo hostil e, assim,um testemunho do amor do Pai e do Filho, para todos (13,34-35).

Se o Livro da Vida, de Sta. Teresa, é uma biografia espiritual, podería-mos dizer que o livro da vida escrito por João é uma biografia pneumáticado Jesus pascal e de sua comunidade, contemplada nele.

Mas é livro da vida ainda num outro sentido: “Estes sinais foram con-signados por escrito para que creiais que Jesus é o Cristo e, nesta fé, tenhaisvida em seu nome”. É o livro da opção pela vida, do mandamento antigo enovo, do hoje da decisão. O Quarto Evangelho foi chamado o Deuteronômiodo Novo Testamento, não apenas porque expõe amplamente a despedida deJesus, mas também porque propõe a opção da vida: “Eu, hoje, ponho diantede ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade — eu que hoje te ordenoames o Senhor teu Deus, guardes os seus mandamentos, suas leis e seuscostumes: então viverás… Tomo como testemunhas a teu respeito o céu e aterra: foi a vida e a morte que pus diante de ti, a bênção e a maldição.Escolherás a vida…” (Dt 30,15-20). A opção de fidelidade a Jesus e à suapalavra, melhor, a Jesus que é a Palavra de Deus, é a opção pela vida, hoje.Para isso foi escrito este livro (20,31).

5.3 Amor e fidelidade

Por que demos a este comentário o subtítulo “Amor e Fidelidade”?

1) Porque o Evangelho de João fala do amor e da fidelidade de Deus, quese manifestam em Jesus de Nazaré (“graça e verdade”, 1,14), especi-almente ao dar sua vida pela vida do mundo. Isso, não porque Deusdesejava sangue, mas porque Jesus mesmo encarnou o amor fiel até ofim: não desistiu de sua mensagem e prática de vida em comunidadecom os seus e enfrentou a morte violenta. “Amou-os até o fim” (13,1).

2) Porque o Evangelho de João urge de nós amor e fidelidade. Amor aosnossos irmãos, que constitui o fruto da missão do Filho enviado peloPai e a alegria do próprio Pai; e fidelidade à sua palavra, a seu man-damento e à prática de vida que ele instaurou, prática que continuasendo conduzida pelo Espírito da Verdade, o Paráclito, que ele nosenvia da parte do Pai (16,13).

5.4 Leitura que volta à origem e não tem fim

Uma maneira proveitosa de beber o texto de João é entrar na pele dosdestinatários originais, membros da comunidade em processo de iniciação ou

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade

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de consolidação da fé. Os primeiros capítulos (1–4) nos familiarizam com osgrandes símbolos do dom de Deus em Jesus; em 5–12 ficamos envolvidosno conflito que exige a opção da fé; a partir da “hora” de Jesus unimo-nosaos fiéis maduros para produzir fruto (13–17) e unimo-nos à consumação desua obra, seu “en-altecimento” na cruz e na glória (18–20).

Neste processo habituamo-nos à leitura em diversos níveis:• a sobreposição do tempo de Jesus (ano 30) e o da comunidade (anos 90);• a sobreposição do sentido narrativo (a história contada) e do sentido

simbólico;• a realização das prefigurações do plano de Deus (AT) na prática de

Jesus, consumação da obra do Pai;• a memória da prática de Jesus atualizada em nosso hoje.

É uma “leitura sem fim”. E assim podemos dizer, a respeito das semprerenovadas leituras do Evangelho de João, o que o editor diz a respeito dascoisas que Jesus fez (Jo 21,25):

“Se fossem descritas todas,creio que nem o mundo inteiro

poderia conter os livros que seria preciso escrever”.

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ENTRADA(1,1-18)

1 1No princípio era a Palavra,e a Palavra estava junto de Deus,e a Palavra era Deus.

2Ela estava, no princípio, junto de Deus.3Tudo foi feito por meio dela,e separado dela foi feita coisa nenhuma.

No que foi feito, 4ela era vida,e a vida era a luz dos homens.

5E a luz brilha nas trevas,e as trevas não a conseguiram deter.

6Houve um homem, enviado por Deus;seu nome era João.7Ele veio como testemunha,para dar testemunho da luz,para que todos pudessem crer por meio dele.8Não era ele a luz, mas devia dar testemunho da luz.

9Era essa a luz verdadeira, que, ao vir ao mundo,ilumina todo ser humano.10Estava no mundo, e o mundo foi feito por ela,mas o mundo não a reconheceu.11 Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram.

12A quantos, porém, a acolheram,deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus:

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ENTRADA

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são os que crêem no seu nome,13que foram gerados não do sangue, nem do impulso da carne,nem do desejo do varão, mas de Deus.14E a Palavra se fez carnee estabeleceu morada entre nós;e nós vimos sua glória,glória como do unigênito do Pai,pleno de graça e de verdade.

15João dá testemunho dele e proclama:“Foi dele que eu disse:‘Aquele que vem depois de mim passou adiante de mim,porque era antes de mim’”.

16Todos nós, de sua plenitude, recebemos graça por graça.17A Lei foi dada por meio de Moisés,a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.18A Deus, ninguém jamais o viu;o unigênito, que é Deus e está no seio do Pai, no-lo descreveu.

Jo 1,1-18, o assim chamado “Prólogo do Quarto Evangelho”, é uma peçasui generis. Não é o um proêmio literário como Lc 1,1-4 ou o prólogo doEclesiástico (Sr). Parece, antes, um hino, lembrando os antigos hinos cris-tãos, Fl 2,5-11; Cl 1,12-20; Ef 1,3-10. Mostra também algum parentesco coma abertura da Primeira Carta de João (1Jo 1,1-4) ou da Carta aos Hebreus(Hb 1). Muitas vezes é comparado à ouverture de uma sinfonia. Consideran-do que o Quarto Evangelho nos introduz no mistério de Jesus-Messias, oprólogo seria o “hino de entrada”; ou, se compararmos o Evangelho de Joãocom um espaço sagrado no qual somos introduzidos, o Prólogo seria o pór-tico de entrada (>Intr. § 3.3.2-3).

Ora, muitos comentadores modernos insistem em reconstruir uma formasupostamente mais original do hino de entrada, livre de acréscimos ulteriores.Mas como essas teorias nem concordam nem convencem, e para não causarconfusão terminológica, evitaremos o termo “hino” para falar do Prólogo1.

1. Famosa tornou-se a tentativa de R. Bultmann de atribuir o hino preexistente a discípulos deJoão Batista influenciados pelo gnosticismo judaico-iraniano. O autor do Quarto Evangelho seria umdesses “joanitas”, que, por ocasião de sua passagem à comunidade cristã, teria “cristianizado” o hino.Todavia, o hino se explica perfeitamente a partir do judaísmo sapiencial e dos hinos das comunidadescristãs (p. ex., Fl 2,6-11), sem outros intermediários. O Prólogo se baseia em temas do AT: a criação,Gn 1,1-3, a missão da palavra de Deus para produzir seu fruto, Is 55,10-11, a inabitação da sabedoriaem Israel, Sr 24 etc.

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1,1-18

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À luz do cap. 17, fica claro que o Prólogo é a expressão do pensamentomais profundo do autor do Evangelho. Num nível que precede a criação,Jesus participa da glória de Deus (17,5). Ele participou com Deus na criação(= “o que foi feito/veio a ser”, 1,3) e assumiu de modo radical a condiçãodas criaturas (“se fez/veio a ser carne”, 1,14). Deste feito, manifestou-se emsua existência criatural a glória eterna de Deus, pois graças ao “vir a sercarne” Jesus manifesta de modo histórico o que, para lá da contingênciahistórica, Deus sempre é: graça e verdade (1,14; cf. Ex 34,5-6). A afirmaçãoda preexistência da Palavra não diminui, mas reforça o teor revelador de suaexistência humana, de sua “práxis” histórica.

O Prólogo consta de dois painéis, constituindo um díptico. Cada painel éencabeçado pela explicitação do sujeito ho logos (a Palavra), nomeado só nosvv. 1 e 14 (mas a maioria das traduções introduz o termo também no v. 9).Cada painel contém uma referência parentética a João Batista, o Precursor.A articulação do primeiro painel com o segundo é feita pelo tema do acolhi-mento da Palavra pelos que se tornam “filhos de Deus” (vv. 12-13). O ritmoda linguagem é o da poesia, com palavras de encadeamento, quiasmos etc.,menos nos parênteses sobre o Batista (vv. 6-8 e 15). Há uma disposição quiástica(simetria inversa) entre os vv. 1 (Palavra, Deus) e 10-11(rejeitado pelo mundo/pelos seus) por um lado e 14 (morando no meio de nós) e 18 (Unigênito, Deus)por outro. A menção do nome e título messiânico “Jesus Cristo”, no fim (v.17), funciona como desenlace depois do anonimato mantido no texto inteiro.

— a PALAVRA (3x) está junto deDeus e é Deus, mediadora dacriação, luz e vida do mundo (1-5)

— parêntese sobre o testemunho deJoão Batista à luz (6-8)

— vem como luz ao mundo, rejeitada pelomundo e pelos “seus” (9-11)

— superação da Lei pela graça everdade em JESUS CRISTO,

“Deus” junto do Pai, manifestaçãodo Deus Invisível (16-18)

— parêntese sobre o testemunhode João Batista (15)

— a PALAVRA torna-se carne, mora nomeio de nós, “graça e verdade” de Deus (14)

(dobradiça) acolhida pelos “filhos de Deus” (12-13)

Pode-se reconhecer no Prólogo certo caráter de midraxe, a partir detextos como Gn 1,1-3 (Pr 8; Sr 24; Is 55) e Ex 33–34 (cf. infra).

Enfim, para a boa compreensão do Prólogo, convém observar que ele foiburilado em sua forma final quando o evangelho já estava pronto (como énormalmente o caso dos prólogos). Isso explica que ele contém alguns acen-tos que são menos pronunciados no evangelho, como, por exemplo, a acentu-

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ENTRADA

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ação da “carne” contra a alienação gnosticizante (Intr. § 4.2; cf. também 1e 2Jo) e, sobretudo, a designação de Jesus como “a Palavra”: é uma sínteseda atuação de Jesus: Deus que vem à fala.

*As primeiras palavras já mostram o pano de fundo sobre o qual se perfila

o Prólogo: o AT, mais precisamente, Gn 1,1, a criação do universo. O v. 1traz três enunciados sobre Deus e sua Palavra, usando cada vez o verbo “era”(no português moderno se usam os verbos havia/existia, estava e era):

• 1a: no princípio “era” (= existia) a Palavra, o ato de comunicação deDeus. A história que se vai contar deve ser entendida a partir do desejode Deus de se comunicar.

• 1b: a Palavra “era” (= estava) junto de Deus (ou “diante de/voltadapara Deus”), qual anjo pronto para ser enviado (cf. Ap 1,20; 15,1 etc.).Deus tinha perto de si a sua Palavra, toda pronta a seu serviço (cf. Is55,8-10; Sb 18,14-16).

• 1c: a Palavra “era” Deus, ela participava do seu ser/agir. De tudo queela realizasse, Deus seria o autor. Isso vale para tudo o que é narradoa respeito de Jesus no Quarto Evangelho: “É o Pai que, permanecendoem mim, realiza suas obras” (14,10).

O que vai ser contado não é a história de Deus em si, mas a história damanifestação de sua vontade salvífica, expressa nas suas “palavras” (termo que,em hebraico, inclui os feitos, debarim), desde a criação, a Lei e os profetas atéas palavras/feitos de Jesus (cf. Hb 1,1). Jesus se identifica a tal ponto com “aspalavras” — da criação e dos profetas — que ele pode ser chamado “a Palavra”.

Palavra ou Verbo?

Traduzimos o termo grego logos por “Palavra”, de preferência a “Verbo”,utilizado em outras traduções. “Verbo” lembra as especulações filosóficas gre-gas sobre o Verbo divino, mas o pano de fundo do pensamento joanino não éa filosofia grega do Logos, nem a teologia patrística dos séculos IV-V, desen-volvida em diálogo com o pensamento grego, mas a palavra de Deus criadora,profética e sapiencial evocada no AT. Deus criou por sua palavra e dirigiu suapalavra, não seu “verbo”, aos profetas e a nós. A Lei, especialmente os DezMandamentos, eram “palavras” (debarim) de Deus. Jesus é a Palavra única.

O v. 2 é o resumo do v. 1; repetindo mais uma vez o verbo “era”, retoma1ab (no princípio, junto de Deus). Assim, “a Palavra era Deus” (1c) encon-tra-se no centro dos vv. 1-2. Se o AT falava na preexistência da sabedoriajunto de Deus (>com. v. 3), nunca chegou a chamá-la de “Deus”. Aí está a

1,1-2

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1,1-18

77

audácia inédita de João, e esse será o grande tema de discussão do evangelhotodo: em que sentido pode-se atribuir a Jesus o predicado “Deus”?

O termo “princípio” (ou “início”) pode ter diversas significações em Jo,conforme o contexto. A comparação com 1Jo 1,1 sugere que João talvezpense, não apenas na criação no início, mas no agir de Deus, princípio detudo, que conseqüentemente se manifesta na criação do universo e se atua-liza na missão de Jesus. No seio dessa atuosidade geradora de Deus está aPalavra. O v. 2 poderia então ser interpretado assim: “O Logos existia juntode Deus quando este tomou a iniciativa de sua atuação”. A presença nacriação é conseqüente (vv. 3-4).

A Palavra estava na presença de Deus como sua auto-expressão. A teo-logia judaica chegou a considerá-la uma “hipóstase” de Deus, uma realidadeem que Deus se torna presente. Tais hipóstases são, além da Palavra (Memrá),a Sabedoria, o Trono, a Voz, a Morada (Shekiná), a Lei/Instrução (Torá). Porisso, podemos aproximar nosso texto de uma antiga poesia a respeito daSabedoria de Deus:

“Antes que surgissem as montanhas, antes das colinas, eu fui gerada […],eu estava lá quando Ele firmou os céus […], ao seu lado estava eu, qualmestre de suas obras […], brincando o tempo todo em sua presença; juntoà humanidade encontro minhas delícias” (Pr 8,22-31).

Este texto conheceu uma releitura em Sr 24,3: “Eu saí da boca do Altíssimo[…]”. Ora, como anteriormente já tinha falado o Terceiro Isaías, a Palavranão sai da boca de Deus sem produzir aquilo para que foi enviada, tanto nocoração da humanidade como na criação (Is 55,10-11, texto que se aplica àvisão joanina de Jesus que sai do Pai e a ele volta depois de ter cumpridosua obra; cf. 13,3; 16,28).

Por sua Palavra, Deus chamou tudo à existência (cf. Sl 33,6.9 e, próximodo Quarto Evangelho, Sb 9,1: “fizeste o universo por tua palavra e por tuasabedoria criaste o ser humano”). A primeira coisa que Deus, pela Palavra,chama à existência é a luz. Deus disse: “Que a luz seja”, e veio a ser a luzque vence as trevas do caos inicial (Gn 1,1-3)2.

3-4

2. Há duas maneiras de dividir os vv. 3-4 (a numeração dos versículos não importa, pois nãofaz parte do original). Em tradução literal:

(A) 3Tudo veio a ser por meio dela, e fora dela veio a ser coisa nenhuma que foi feita. /4Nelaestava a vida, e a vida era a luz dos homens.

(B) 3Tudo veio a ser por meio dela, e fora dela veio a ser coisa nenhuma. /[Quanto a]o quefoi feito, 4nisso [ela] era vida, e a vida era a luz dos homens.

Embora a primeira maneira (A; cf. a Vulgata etc.) seja a mais aceita, a segunda (B; cf. GreekNew Testament etc.) corresponde melhor ao ritmo poético e tem sabor bem semítico. Seja como for,nas duas maneiras de ler, o sentido é que a Palavra é a vida naquilo que por Deus foi criado.

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ENTRADA

78

A Palavra — como a Lei, que é chamada “árvore de vida” pelo Targum— é vida na criatura. O v. 4b especifica: “essa vida era a luz dos homens”,das criaturas humanas (cf. 8,12; 9,3-5; >Voc. Luz; Vida). A luz é vital; sema luz, nenhuma plantinha pode brotar. “Em ti está a fonte da vida; em tua luzvemos a luz” (Sl 36,10; cf. também Sl 27,1; 56,13). Mas a Palavra de Deusnão significa apenas a palavra criadora, fonte de nosso viver, como tambéma luz que ilumina nosso caminho de vida (Sl 119,105.109; cf. Jo 12,35; 1Jo1,5-7; 2,9-11 etc.). Pois caminhando na luz encontramos a vida verdadeira,plenamente realizada.

Com o verbo no tempo presente, transcendendo as fases históricas, oPrólogo continua: “A luz brilha nas trevas” (cf. Gn 1,2-3). É para isso queela vem (12,46; cf. Mc 4,21 par.). E, por mais que a combatam, as trevas nãoconseguem detê-la, dominá-la, prendê-la em seus laços. Por meio da luz,Deus conduziu o povo na saída do Egito (cf. Sb 17,1–18,4; aludindo àPalavra, 18,14-16). Jesus realiza sua missão como luz do mundo (8,12; 9,5)e, no fim de sua pregação pública, adverte os ouvintes para que não sedeixem dominar pelas trevas, mas andem na luz, enquanto está presente(12,35). Assim, João estabelece uma inclusão literária entre o início (1,5) eo fim da primeira parte do evangelho (12,35)3.

Nesta altura, o autor evoca a figura de João Batista, precursor e testemu-nha por excelência dessa Luz que veio ao mundo (cf. 1,19-36; 3,22-30; 5,35;10,42). Nas referências ao Batista (em 1,6-8.15) revela-se o desejo de erigira figura do Batista em testemunha de Jesus (cf. 1,35-36 e >Intr. § 3.2.3:5).Talvez o autor anuncie assim o momento decisivo da história da Luz nomundo, a saber, a apresentação de Jesus ao mundo (v. 10) e, mais especifi-camente, a Israel (v. 11), quando do testemunho de João Batista (cf. 1,31).

No v. 9 é retomada a história da Luz, interrompida no fim do v. 5. Osujeito da frase não é expresso: é o mesmo do v. 5 (e anunciado no v. 8b). APalavra, descrita como luz no v. 5, é a luz verdadeira que vem a este mundo(8,12; 9,5; cf. 12,46), para, com sua vinda, iluminar a todos. Luz verdadeira,porque realmente é luz e, também, única em sua plenitude (cf. 5,33-35)4.

3. O verbo que traduzimos por “deter” (impedir, subjugar, seqüestrar, prevalecer), no sentidode uma atitude agressiva, outros o traduzem por uma atitude acolhedora (“as trevas não compre-enderam/acolheram a luz”); este, porém, não é o sentido óbvio do verbo. Nos outros usos em Joãoo verbo tem o sentido de “dominar/deter/impedir” (12,35, mesmíssima imagem e vocabulário; cf.também a variante textual em 6,17). Sb 7,29-30 ensina que as trevas não prevalecem sobre a luz.

4. Prefira-se, no v. 9, a tradução “[a luz verdadeira] que, ao vir ao mundo, ilumina todohomem”, à outra, “[…] que ilumina todo homem que vem ao mundo”. João costuma falar em Jesusque vem ao mundo como luz (3,19-21; 8,12; 9,3-5; 12,46).

6-8

5

9

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1,1-18

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Ela, a Luz, estava no mundo (v. 10), mas “o mundo” (no sentido negativo)não a reconheceu como luz enviada por Deus. Depois, a câmera focalizao zoom na parcela mais “interessante” do mundo: “o que era seu” (v. 11), oquinhão de Deus no mundo, o povo eleito — aqueles de quem Deus diz: “Elesserão meu povo, e eu, o Deus deles” (fórmula da Aliança com Israel, Ex 19,5).A estes dirigiu-se a Palavra na Lei, mas foram “duros de cerviz” (cf. Dt 9,6.13etc.; a crítica profética) e não observaram a Aliança (Ex 32). Também “osseus” não acolheram a Palavra que ilumina a vida (cf. Sl 119,105; 19,8-9). Nãose converteram à pregação do Batista (cf. Lc 7,30 par. Mt 21,32). O não-conhecer do mundo (v. 10) e o não-acolher dos “seus” (v. 11) constituem umparalelismo, mas há também um crescendo: o segundo caso é mais grave!

Cabe aqui lembrar um pensamento oriental: a sabedoria de Deus veio àterra, mas não foi acolhida pelos homens; por isso, doravante, a sabedorianão se encontra na terra, mas no céu… Em Sr 24,1-12 temos uma releiturajudaica desse mito: a Sabedoria, que “sai da boca do Altíssimo” (cf. Pr. 8,22-30; >com. v. 3), depois de percorrer todo o universo, encontra morada de-finitiva no povo de Israel, em Sião (Sr 24,8). Mas, segundo João, nem no“mundo”, nem junto aos “seus” a Palavra encontrou acolhida!

Foi junto a outras pessoas que a Palavra encontrou acolhida, e a essasdeu a capacidade (lit. “poder, competência”) de se tornarem “filhos de Deus”(tekna, termo que em 8,37-39 contrapõe a filiação moral à descendênciabiológica, sperma). O ser humano não se promove a filho de Deus pelo merofato de acolher a Palavra na fé, nem pela iniciação nos “mistérios” (>Voc.)ou pela busca da gnose ou experiências religiosas em geral. Quem age é aPalavra de Deus, que dá a capacidade para o novo nascimento (cf. 3,5), nãode ordem humana (“sangue” = o princípio vital biológico; “carne” = a na-tureza humana limitada, o ser-para-a-morte dos filósofos; “querer do varão”= a procriação física), mas de Deus. “Foram gerados de Deus”, como diz 1Jo2,29 a respeito da comunidade dos fiéis de Jesus (cf. ainda 1Jo 3,1.2.10; 5,2;Rm 8,14.16.17.19.21; 9,7.8; Gl 3,26; 4,6; e a adoção como filhos: Gl 4,5; Ef1,5; para o termo “filh(inh)os”, >com. 13,33)5.

Embora constituindo o pivô central, os vv. 12-13 não são o ponto alto doPrólogo, pois este focaliza não tanto o novo nascimento dos fiéis, e sim o pro-tagonista que torna possível esse novo nascimento. Como mostra a Primeira Carta

10-11

12-13

5. A filiação divina é tema de diversas cartas paulinas e encontra-se também nos textosintertestamentários, como Jubileus 1,24-25: “Serei o seu pai, e eles serão os meus filhos; todosserão chamados filhos do Deus vivo”, cf. Ez 36,26-28 e a idéia da nova Aliança. — A antigaVulgata lia no v. 13 o singular: “[no nome dele] que foi gerado” (= Jesus); mas a Nova Vulgataabandona essa leitura, que é uma correção dogmática.

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ENTRADA

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de João (1Jo 3,18 e.o..), havia quem se considerasse “iluminado”, seguro da vidaeterna, sem nenhuma verificação na prática da vida. Por isso, o Prólogo, escritona mesma época, focaliza a prática de Jesus. Sem isso, o Prólogo não seriacompleto. Até aqui, João cantou a origem e a “equivalência divina” de Jesus (cf.v. 1); nos versos seguintes, articula isso com a sua prática histórica (v. 14). Domesmo modo, o novo nascimento, a “geração divina” do fiel (vv. 12-13) deve serarticulada com uma atuação histórica, “em obras e em verdade” (cf. 1Jo 3,1.18).

Depois da dobradiça (vv. 12-13, a “geração divina” dos fiéis) apresenta-se, no v. 14, o segundo painel do díptico. Só agora é citado novamente o títulodo Logos: “A Palavra”, que se encontra também no início do primeiro painel(v. 1). Ali, o Prólogo falou da Palavra como existindo junto de Deus desde aeternidade. Mas essa Palavra “preexistente” junto de Deus não era congeladaou petrificada. Pelo contrário, para realizar sua missão, ela “se fez/tornou (lit.:veio a ser) carne”, existência humana, limitada e mortal (>com. 1,13; 6,63).

14a

v. 1

a Palavra ên, “era” [existia, estava]…:tempo da duração, da permanência.

v. 14

A Palavra egéneto, “veio a ser”:tempo do acontecer pontual (como a criação“veio a ser”, egéneto, v.3).

Ora, mesmo precária, a “carne” se presta à práxis salvífica (cf. 6,51). Aen-carna-ção de Jesus nos salva, porque diz respeito não somente ao início,mas sobretudo à consumação de sua vida. Não só o Natal, mas sobretudo aSexta-Feira Santa é festa da Encarnação. O presépio e a cruz são da mesmamadeira! A Palavra que é da eternidade vai morrer, mas essa morte é mistériode vida, pois a Palavra é vida (v. 4). Como isso se dá? É isso que o Evan-gelho de João vai nos contar!

Também alhures, João insiste na “vinda em carne” de Jesus (cf. 1Jo 4,2;2Jo 7). Podemos ver nas primeiras palavras do v. 14 uma afirmação provoca-dora contra os que se acham bem à vontade com a supostamente intocávelposse da luz trazida por Jesus (>Intr. § 3.2.4:2). A esses fiéis que vivem coma cabeça nas nuvens, embora com os pés na lama, e que só querem saber daglória (como brilho), João apresenta o paradoxo da encarnação (desde o nas-cimento até a cruz), sem o qual a existência cristã não é autêntica e completa:

A Palavra veio a ser carne […]e nós contemplamos sua glória.

A carne e a glória estão mútua e inseparavelmente imbricadas. O tipo deglória que João vai descrever só pode manifestar-se em carne. A carne nãoserve para esconder a glória, mas para manifestá-la.

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1,1-18

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A Palavra “estabeleceu morada” entre nós. Em primeiro lugar, quem é esse“nós”? A comunidade joanina como tal? Em 20,30-31, essa é tratada como“vós”. O “nós” (também em 3,11; 4,22) parece antes indicar aqueles que trans-mitem o testemunho à comunidade (o “nós apostólico”; cf. também 1Jo 1,1-4).

O verbo “estabeleceu morada” (eskénosen) significa, literalmente: “ar-mou tenda entre nós”. No AT, Deus se manifestava a Israel, no deserto, na“Tenda do Encontro” (Ex 26; Nm 7,89 etc.). Mais tarde, a Tenda tornou-seo templo de Jerusalém. Os judeus chamavam a Tenda/o Templo de “mora-da”, em hebraico, shekiná, uma das hipóstases de Deus (>com. 1,1). O termogrego é até parecido (skene). Daí nossa tradução: “estabeleceu morada”. NaTenda (Templo, Morada) do AT, Deus morava no meio de seu povo, tornava-se presente, deixava-se encontrar (“da Tenda”, Deus fala com Moisés, Lv1,1; no Templo, Isaías contempla a glória do Senhor, Is 6,1-4; cf. Jo 12,41).Para nós, o lugar onde Deus mora e nós o encontramos é, por excelência, aPalavra de Deus feita carne (cf. Jo 2,22) — sem esquecer que também aqueleque observa seu mandamento é habitação do Pai e do Filho (14,23).

Os grandes santos do antigo Israel desejavam — e ao mesmo tempo temi-am — ver a glória de Deus (>exc. 14,8), a manifestação esplendorosa de suapresença. Moisés, desesperado com a infidelidade do povo, quis ver se Deusestava ainda com eles, quis “ver a sua face” (= presença: Ex 33,18ss, cf.33,11). Mas Moisés não pôde ver Deus diretamente, pôde vê-lo apenas decostas (Ex 33,22-23). Naquela ocasião, Deus se revelou a Moisés como “cheiode bondade e fidelidade“ (Ex 34,5-6; cf. Sl 61,8; 98,7). “Ora”, diz o evan-gelista, falando pela comunidade, “nós contemplamos a sua glória”. Masnosso olhar não pode parar no enlevo de contemplar essa glória, como fazemcertos pseudognósticos, pseudomísticos. Jesus não tem essa glória de simesmo: a glória cabe a Deus! Como Filho “unigênito” (>com. 3,16), incom-parável e imensamente querido, ele recebe do Pai essa glória — “plena/pleno(a expressão pode qualificar Deus, Jesus ou a glória) de graça e de verdade”.

Graça e verdade, amor fiel

O termo hebraico hèsed traduzido por “graça” (em grego, geralmente, khárisou éleos) tem diversas significações (benevolência, favor, graça, gratuidade,bondade, misericórdia, amizade, amor), que apontam para a solidariedade,a atitude de aliança. Isso é sumamente claro em Ex 34,5-6, texto quedescreve a renovação da Aliança, quando Deus manda refazer as tábuas daLei depois que o povo rompeu a Aliança (o bezerro de ouro, Ex 32). A graçaé dada de graça, não em virtude de alguma obrigação. Ela exprime a pu-ra bondade e livre iniciativa de quem a oferece. Contudo, apesar de gratuita,ela é também exigente, como toda amizade que pretende ser duradoura.

14b-d

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ENTRADA

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O termo èmet (“firmeza/fidelidade/lealdade/verdade/veracidade”; gregoaletheia), que geralmente complementa a hèsed, realça a firmeza duradourae a veracidade dessa atitude de aliança.

Em Jesus transbordam os atributos de Deus segundo Ex 34,5-6: “graça”, nosentido de amor (hèsed), e “verdade” não é apenas verdade em palavras, masem tudo o que ele é — veracidade, fidelidade (èmet). A “graça e a verdade” éo amor fiel e leal de Deus — podemos até dizer: a Aliança — que em Jesus setorna presente e visível. Na “carne” que é Jesus (= na sua existência humana emortal), contemplamos a glória de Deus, que é seu amor e fidelidade (cf. 1Jo4,8.10: “Deus é amor”). Isso se verifica sobretudo quando Jesus se despoja desua vida “na carne”, impulsionado por um amor fiel até o fim (ver 13,1). Nessemomento, ele poderá dizer: “Quem me vê, vê o Pai” (14,9).

Num breve parêntese, o Quarto Evangelho evoca novamente (cf. supra,vv. 6-8) a testemunha (humana) de Jesus por excelência, João Batista, cujadeclaração continua ressoando (“proclama” = perfeito com efeito no presen-te): “Aquele que vem depois de mim passou à minha frente, porque antes demim já existia” (>com. 1,30).

Reatando com o fim do v. 14, o Prólogo anuncia o efeito da revelaçãode Deus em Jesus, pleno de graça e de verdade: “Nós todos (= o evangelistae a comunidade) recebemos da sua plenitude”. Sua plenitude transbordou“graça por graça”. Se a Lei, dada por intermédio de Moisés, foi uma graça,a “graça e a verdade”, amor fiel por excelência, “vieram [a ser]” (tornaram-se realidade) por Jesus Cristo.

Moisés

Lei (Torá, instrução)

foi dada

Jesus Cristo (Messias)

graça e verdade (amor fiel)

vieram a ser

Esta é a primeira vez que João pronuncia o nome daquele em quem Deusnos mostra que ele “é amor” (cf. 1Jo 4,8). Até aqui, no estilo enigmático quelhe é próprio, João levou o leitor a “descobrir o que já sabia”. O anonimatoprovisório teve o efeito de acentuar mais a realidade divina da Palavra e daglória; a referência de identificação era sempre o Pai. Agora vem o desen-lace: esse dom do Pai é Jesus, proclamado Cristo ou Messias.

O termo “por meio de” denota mediação. No AT, Moisés era o mediador porexcelência. No NT, ele é substituído, nessa função, por Jesus. A graça e averdade vieram a ser, tornaram-se realidade presente, pela mediação de Jesus,assim como, segundo o v. 3, a criação veio a ser por ele. Realiza-se a manifes-tação eficaz de Deus na história: a prática de Jesus é a manifestação verdadeirae decisiva do Deus da “graça (amor) e verdade (fidelidade)” de Ex 34,5-6.

15

16-17

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1,1-18

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O Prólogo volta agora ao ponto inicial, o âmbito de Deus. Evoca a pergun-ta da Sabedoria: “Quem viu Deus?” (cf. Jb 42,5; Sb 9,13 etc.), sobretudo:

Quem o viu, para ser capaz de descrevê-lo? (Sr 43,31)

A Deus, ninguém jamais viu (cf. 5,37; 6,46), nem mesmo Moisés (Ex33,20-23). Jesus, porém, é “unigênito, Deus” (como lêem os melhores ma-nuscritos) — “unigênito”, no sentido de Jo 3,16: filho querido (cf. Gn 22,2.12LXX); e “Deus” no sentido de participante do ser e atuar de Deus (>com.1,1c e 10,30). Ele é íntimo do Pai (lit.: “[voltado] para o peito do Pai”; cf.1,1b): Jesus tem o Pai diante dos olhos e, por isso, pode revelá-lo.

Ninguém jamais viu Deus, mas, conhecendo, como íntimo, o Pai, oUnigênito no-lo dá a conhecer. Pela prática de sua vida, Jesus narra, “des-creve” (sentido literal do verbo no v. 18c; cf. Sr 42,15; 43,31) como Deusé, fazendo-nos ver seu verdadeiro rosto (cf. 14,9). Por isso, é preciso narraressa vida, no evangelho que vai seguir. Não podemos inventar ou imaginarum Cristo qualquer, a nosso gosto; devemos procurar conhecer aquele quea narrativa de João nos propõe. Não um Cristo mesquinho ou “moralista”,nem um fazedor de milagres baratos ou um santo dos impossíveis, nem umfilósofo ou um esotérico flutuando por cima da terra (>exc. 17,26), mas simaquele Jesus que João, ruminando a tradição evangélica, em linguagem al-tamente simbólica, nos faz apreender.

A Palavra chama à vida. Sem a palavra, é como se nada existisse.Nada recebe nome, nada é. Somos, porque outros nos chamam pelonome, nos dirigem a palavra. Tanto mais somos, radicalmente, porqueDeus nos chama, e a Palavra que nos chama tem um nome: Jesus.

Poderíamos resumir o Prólogo assim: “Desde sempre”, diz Deus, “eutenho uma palavra que quero dirigir a vocês, uma palavra que manifestemeu amor: Jesus!” Essa palavra nos comunica tudo o que Deus nos quermostrar desde que ele é Deus: que ele nos ama feito doido, até o fim.E não precisamos de êxtases místicos para ver Deus. Para ver Deus comoele é, basta olhar para Jesus, na “hora” de sua glória, à qual o Evangelhode João nos conduz (cf. 14,9).

Vimos também que entre os dois momentos do Prólogo — o que aPalavra é na obra de Deus e o que ela se torna no meio de nós — sesitua, como dobradiça, a acolhida da Palavra, a conversão, a vida nova,que faz do ser humano um filho, alguém que é de Deus. A narrativa doacontecer da Palavra no meio de nós servirá para provocar a opção quenos capacita a essa graça.

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O LIVRO DOS SINAIS(1,19–12,50)

A primeira parte do Evangelho de João descreve essencialmente a ativi-dade pública de Jesus na Galilélia e na Judéia, até a véspera de sua morte.O arranjo das matérias parece regido por duas linhas estruturais, combina-das de modo um tanto imprevisível:

1) a linha temporal: esboça uma semana inaugural, continua numa se-qüência de festas judaicas e culmina na semana final, os últimos diasde Jesus em Jerusalém;

2) a linha temática: as sucessivas seqüências podem, em princípio, serorganizados em torno dos “sinais” proféticos que Jesus realiza.

Da combinação dessas duas linhas segue o seguinte esquema:

• a semana inaugural, com o sinal da água transformada em vinho:primeiro sinal em Caná (1,19–2,11);

• a subida à Páscoa em Jerusalém e a apresentação da mensagem emdiversos âmbitos, culminando na cura do filho do funcionário: segun-do sinal em Caná (2,12–4,54);

• a cura do aleijado de Bezata, quando de uma festa em Jerusalém, comas discussões subseqüentes (5,1-47);

• quando da Páscoa na Galiléia, o sinal dos pães e a caminhada sobreas águas, com as discussões na sinagoga em Cafarnaum (6,1-71);

• a presença em Jerusalém por volta da festa das Tendas, com a cura docego de nascença e discussões (7,1–10,21);

• o período desde a Dedicação até a semana pascal, centrado em tornoda ressurreição de Lázaro (10,22–11,54);

• o início da semana final a partir de 11,55 e 12,1.

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12,37-50 constitui uma grande reflexão retrospectiva, que justifica a tra-dicional separação feita no fim do cap. 12. Em 13,1 inicia-se solenementeum novo momento, que cronologicamente se situa na semana final, mas emvirtude de seu significado recebe tanto espaço que chega a constituir a se-gunda parte do evangelho (>intr. ao cap. 13).

Como, na Bíblia, é comum as matérias serem organizadas na base donúmero sete, número da perfeição, muitos estudiosos querem contar na pri-meira parte do Evangelho de João sete sinais (contando 6,1-13 e 6,16-21como dois). Já outros pensam que na primeira parte aparecem apenas seissinais, enquanto o sétimo, o sinal por excelência, é a ressurreição (>com.2,18-21; 20,30 — coisa semelhante ocorre nos setenários de Ap, em que osétimo elemento fica suspenso). Deixamos a questão aberta.

Na primeira parte do Quarto Evangelho (cap. 1-12) podem-se distinguircom certa clareza dois momentos principais:

1) os primórdios, em que Jesus se apresenta aos candidatos à fé semmaiores conflitos (1,19–4,54);

2) o período do conflito (5,1–12,50), comentado pelo próprio evangelis-ta no fim desta primeira parte (12,36-50). Todavia, não poucoscomentadores situam mais uma subdivisão em 7,1, na qual se iniciaa grande atividade final de Jesus em Jerusalém (7,1–12,50).

OS PRIMÓRDIOS (1,19–4,54)

Num primeiro ciclo geográfico, desenvolvido em diversos cenários, oscaps. 1–4 mostram os primórdios da atuação pública de Jesus e propiciam aoleitor/ouvinte contato inicial com os grandes temas da comunidade: o batis-mo, o novo nascimento, a água viva, a palavra vivificadora de Jesus. Ospersonagens que se apresentam são abertos à mensagem, são candidatos parao seguimento de Jesus. O episódio final (o funcionário de Cafarnaum) des-creve uma “conversão em regra”. Quanto ao processo da fé, esta parte repre-senta a primeira iniciação no mistério de Cristo.

O testemunho do Batista e os primeiros discípulos (1,19-52)

I — 19Este é o testemunho de João, quando os judeus mandaram, deJerusalém, sacerdotes e levitas para lhe perguntar: “Quem és tu?”.20Ele confirmou e não negou; ele confirmou: “Eu não sou o Cristo”.21Perguntaram: “Quem és, então? Tu és Elias?” Respondeu: “Nãosou”. — “Tu és o profeta?” — “Não”, respondeu ele. 22Pergunta-

1,19–12,50

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O LIVRO DOS SINAIS

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ram-lhe: “Quem és, afinal? Precisamos dar uma resposta àquelesque nos mandaram. Que dizes a respeito de ti mesmo?” 23Ele decla-rou: “Eu sou a voz do que grita no deserto: ‘Aplanai o caminho doSenhor!’”, como disse o profeta Isaías.24Eles tinham sido mandados do meio dos fariseus. 25Perguntaram aJoão: “Por que, então, batizas, se não és o Cristo, nem Elias, nemo profeta?” 26João lhes respondeu: “Eu batizo com água. Mas entrevós está alguém que vós não conheceis: 27aquele que vem depois demim, e do qual eu não sou digno de desamarrar as correias dasandália!”28Isso aconteceu em Betânia, do outro lado do Jordão, onde Joãoestava batizando.

II — 29Na manhã seguinte, João viu que Jesus vinha a seu encontro edisse: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo.30É dele que eu falei: ‘Depois de mim vem um homem que passouadiante de mim, porque era antes de mim’! 31Eu também não oconhecia, mas para que ele fosse manifestado a Israel é que eu vim,batizando com água”.32João ainda testemunhou: “Eu vi o Espírito descer do céu, comopomba, e permanecer sobre ele. 33Pois eu não o conhecia, mas aque-le que me enviou a batizar com água disse-me: ‘Aquele sobre quemvires o Espírito descer e permanecer, é ele quem batiza com EspíritoSanto’. 34Eu vi, e por isso dou testemunho: este é o Filho de Deus!”

III — 35Na manhã seguinte, João estava lá, de novo, com dois dos seusdiscípulos. 36Vendo Jesus a caminhar, disse: “Eis o Cordeiro deDeus”! 37Os dois discípulos ouviram essa declaração de João epassaram a seguir Jesus. 38Jesus voltou-se para trás e, vendo queeles o seguiam, perguntou-lhes: “Que procurais?” Eles responde-ram: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde permaneces?” 39Ele res-pondeu: “Vinde e vede”! Foram, viram onde ele permanecia e per-maneceram com ele aquele dia.Era por volta da hora décima. 40André, irmão de Simão Pedro, eraum dos dois que tinham ouvido a declaração de João e seguidoJesus. 41Ele encontrou primeiro o próprio irmão, Simão, e lhe falou:“Encontramos o Cristo!” (que quer dizer Messias). 42Então, condu-ziu-o até Jesus. Jesus, fixando o olhar nele, disse-lhe: “Tu és Simão,filho de João. Tu te chamarás Cefas!” (que quer dizer Pedro).

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IV — 43Na manhã seguinte, ele quis partir para a Galiléia e encontrouFilipe. Jesus disse a este: “Segue-me”! (44Filipe era de Betsaida, acidade de André e de Pedro.) 45Filipe encontrou-se com Natanael edisse-lhe: “Encontramos Jesus, o filho de José, de Nazaré, aquelesobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas”. 46Natanaelperguntou: “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” Filipe res-pondeu: “Vem e vê”!47Jesus viu Natanael vindo-lhe ao encontro e disse a respeito dele:“Eis, verdadeiramente, um israelita em quem não há falsidade!”48Natanael disse-lhe: “De onde me conheces?” Jesus respondeu:“Antes que Filipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira,eu te vi”. 49Natanael exclamou: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu éso Rei de Israel!” 50Jesus lhe respondeu: “Estás crendo só porque tedisse que te vi debaixo da figueira? Coisas maiores verás”. 51Edisse-lhe ainda: “Amém, amém, vos digo: vereis o céu aberto e osanjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem!”

Costuma-se ver em Jo 1,19–2,11 uma espécie de “semana inaugural”,pois a contagem dos dias leva a sete. Podemos distinguir nessa “semanainaugural” dois momentos:

1) Nos quatro primeiros dias, explicitamente distinguidos pelo evange-lista (“na manhã seguinte”: 1,29; 1,35; 1,43), João narra o testemunhodo Batista (1o e 2o dias) e a constituição do primeiro grupo de discí-pulos a partir desse testemunho (3o e 4o dias).

v. 29-28 João não é “a luz” (cf. vv. 6-8), não é figura messiânica, mas voz (vv. 21-23)

v. 29-34 Jesus, Cordeiro de Deus, o ulterior que é primeiro (vv. 29-30)

v. 35-42 Jesus à frente de João: os discípulos de João vão a ele: “Encontramos oMessias” (v. 41)

v. 43-51 “…para que fosse manifestado a Israel” (v. 47-49; cf. v. 31)

Em alguns aspectos, esta matéria lembra os evangelhos sinópticos: otestemunho de João Batista (Mc 1,7-8 par.), o batismo de Jesus (Mc1,9-11 par.) e a vocação dos primeiros discípulos (Mc 1,16-20 par.);mas o tratamento dado pelo Quarto Evangelho é muito diferente (acomparação com o material sinóptico serve para perceber melhor oacento próprio do Quarto Evangelho).

2) “No terceiro dia” depois desses quatro dias, Jesus realiza seu primeirosinal, ao qual dedicamos a seção seguinte deste comentário (2,1-11).

1,19-52

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O LIVRO DOS SINAIS

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A modo de exemplo esquematizamos aqui o movimento dos “atores”neste episódio (tal análise pode ser aplicada aos demais episódios).

Dia Dia Dia Noseguinte seguinte seguinte terceiro dia

1,19 1,29 1,35 1,40 1,43 1,45 2,1

judeus/fari-seus

João Batista ➝ ➝

(anuncia) Jesus ➝ ➝ ➝ ➝ ➝

discíp. ➝de JB: ➝ ➝ ➝ nova

André + comunidadeanônimo

Simão ➝ ➝ ➝Pedro

Filipe ➝ ➝

Natanael ➝

I. Primeiro dia: João Batista (1,19-28)

O primeiro dia se divide em dois painéis: (A) 1,19-23: João Batista dátestemunho de que ele não é o Messias, mas a voz anunciada por Is 40,3;(B) v. 25-27: ele anuncia o Messias. A dobradiça é a indicação cênica do v.24. O v. 28 forma com o v. 19 a moldura topográfica.

(A) Como Marcos (Mc 1,1-8 par.), João inicia a narrativa com o tes-temunho do Batista, já anunciado no Prólogo (Jo 1,6-8.15). Mas se em Mc1,5 “toda a Judéia e Jerusalém” confessam seus pecados em conseqüênciada pregação do Batista, no Evangelho de João os figurantes não mostrammuita vontade de conversão. Trata-se de uma delegação de sacerdotes(sacrificadores do Templo) e levitas (funcionários do Templo, especialistasem questões levíticas, como sejam as abluções e purificações). São envia-dos por uma instância chamada “os judeus”, o que dá a entender que o

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evangelista e sua comunidade já não se incluem nesse grupo (>Intr. §3.2.3:4). O ensejo dessa delegação é que o Batista está introduzindo umrito que não pertence aos ritos costumeiros do judaísmo e que sugere achegada do tempo final (>com. v. 25), implicando graves mudanças, entreelas o desaparecimento do Templo (>com. 2,13-22). (Essa missão investi-gadora será lembrada em 3,28.)

Quando perguntam: “Quem és tu?”, o Batista suspeita da intenção: que-rem saber se ele é o Messias, coisa que não era para se dizer em plena luz(cf. a insinuação de Nicodemos em 3,2). Mas a resposta dele não é discreta:“confessou e não negou; ele confessou: ‘Eu não sou o Cristo’”. A termino-logia insiste no caráter de confissão que marca a resposta do Batista. Issorepercute a circunstância da comunidade joanina, em que confessar Jesuscomo o Cristo e Senhor (cf. 20,31) era de importância vital (tempo de per-seguição e apostasia). A confissão do Batista deixa claro, em primeira ins-tância, que ele não é o Messias (cf. 1,6-8).

Os investigadores continuam perguntando se ele é Elias, ou “o Profeta”.A comparação com Mc 6,14-16; 8,27-29 mostra que Elias e o Profeta faziamparte da imaginação em torno do Fim. Para o Evangelho de João, o Batistaé nenhuma dessas figuras escatológicas.

Messias (Cristo): é o messias davídico, o “ungido”/enviadoescatológico imaginado como um novo Davi, capaz de livrar o povodo jugo estrangeiro e de reconquistar o território do reino de Davi.

Elias: segundo Ml 3,24-25, Elias devia voltar antes do Fim (Mc 9,11-13 par. iguala o Batista a Elias). No mesmo sentido: Sr 48,10.

Moisés: Dt 18,15.18 promete outro profeta como Moisés para mediarentre Deus e o povo (no lugar dos adivinhos cananeus, Dt 18,14.16s).O texto de Dt pensa nos profetas em geral, mas como o é usado nosingular, foi entendido mais tarde no sentido de um Messias-Profeta.

Pressionados pelas autoridades, os inquisidores querem então saber oque ele diz a respeito de si mesmo. João não é o Messias que dá início aotempo final; ele é apenas “a voz de alguém que grita no deserto: ‘Aplanaio caminho do Senhor!’” — conforme anunciado pelo profeta Isaías. (Em Is40,3 está: “a voz que grita: ‘Abri no deserto um caminho para o Senhor’”,imagem bastante material, saudando a volta dos exilados como se fosse Deusconduzindo suas tropas através do deserto, repetindo o que fez quando doêxodo do Egito. A tradução grega, porém, espiritualizou o texto e interpre-tou: “a voz que grita no deserto: ‘Aplanai...’”. Assim, na esteira do texto

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grego, os evangelhos já não evocam a volta dos exilados, mas a volta docoração. Mc 1,4 par. deixa claro que o deserto onde ressoa a voz é o desertode Judá, onde João exerce sua atividade.)

(B) Os investigadores vêm da parte dos fariseus (ou “eram dentre osfariseus”, segundo outra interpretação gramatical). João alude aqui à situaçãono tempo da comunidade joanina, depois de 70 dC, quando os fariseus são oslíderes incontestes do judaísmo; no tempo de Jesus ainda não eram isso (> Intr.§ 3.2.3:3). Considerados especialistas em matéria de religião e ritos, insistem:“Por que, então, batizas, se não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta?”

Ritos batismais e purificatórios no tempo do Quarto Evangelho

Na linguagem bíblica não há distinção clara entre aspergir, batizar e puri-ficar (>com. 2,6); “batismo” como termo técnico-sacramental pertence àlinguagem cristã. O judaísmo dominante (farisaico) no século I conhecia,além das purificações legais (levíticas), o batismo dos prosélitos. O judaís-mo de Qumran era caracterizado pela freqüência de banhos de purificação;não se exclui que João Batista tenha conhecido Qumran. Ora, que signifi-cavam essas diversas formas de ablução ou imersão? Os dois sentidos prin-cipais são a purificação ritual ou “levítica” (Jo 1,19 menciona sacerdotes elevitas) e o significado escatológico (cf. o “derramamento” escatológico doEspírito anunciado em Jl 3). Em Qumran, os dois sentidos se completavammutuamente, pois para participar da “guerra do fim do mundo” e pertenceraos “santos dos últimos dias” era necessário estar em estado de pureza. Obatismo de João é caracterizado como um batismo para a conversão (Mc 1,4par. Lc 3,3; Mt 3,11), acompanhada da confissão dos pecados (Mc 1,5 par.);o fato de se situar explicitamente no rio Jordão talvez simbolize a conversãocomo nova travessia do Mar Vermelho (Ex 12–14) ou do rio Jordão (Js 3–4) para (re)entrar na terra/herança do povo eleito, como faz pensar a citaçãode Is 40,3, que lembra a volta dos exilados (cf. Jo 1,23).

A purificação escatológica é subentendida no texto de Mt 3,11 = Lc 3,16 (deQ): “Ele vos batizará com Espírito Santo e com fogo”. O fogo é, como aágua, um elemento purificador (cf. Is 1,25; Zc 13,9; e sobretudo Ml 3,2.3,no contexto que fala de Elias como figura escatólogica, evocada também emJo 1,21).

João Batista responde: “Eu batizo com água...”. A resposta parece incom-pleta, deixa-nos em suspense. Em vez de anunciar, como Mc 1,8 par., aqueleque batiza com Espírito Santo (isto segue em 1,33), o Batista aponta: “Entrevós está alguém que vós não conheceis: aquele que vem depois de mim(>com. v. 30), e do qual eu não sou digno de desamarrar as correias da

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sandália (cf. Mc 1,7)!” A insistência no caráter desconhecido daquele quevem depois dele — feição ausente nos sinópticos — lembra o tema judaicodo Messias desconhecido: ninguém o conhece, talvez esteja escondido nasgrutas do deserto… Mas coaduna-se também ao caráter “iniciático” do QuartoEvangelho (>Intr. § 3.3.2): João quer conscientizar o judaísmo e, sobretudo,sua própria comunidade, “seduzida” pela sinagoga, a respeito do desconhe-cimento dos “judeus” em relação a Jesus (cf. 3,11; 7,28 etc.); o verdadeiroconhecimento a respeito do Messias e da salvação só se encontra na comu-nidade cristã (cf. 17,3).

Essa entrevista se deu em Betânia, na outra margem do rio Jordão, ondeJoão estava batizando. É possível que a localização “no outro lado do Jordão”queira evocar a travessia do Jordão. Ou talvez tenha existido naquela regiãouma comunidade de seguidores de João Batista (cf. 10,42; >Intr. § 3.2.3:5)6.

II. Segundo dia: João apresenta Jesus como Cordeiro de Deus(1,29-34)

Também no segundo dia temos duas cenas: a aparição em cena de Jesus,“Cordeiro de Deus” (A: 1,29-31) e o testemunho do Batista a respeito doEspírito que desce e permanece sobre Jesus, que batiza com Espírito Santoe é filho de Deus (B: v. 32-34).

O texto apresenta assim em forma de quiasmo as duas dimensões damissão de Jesus:

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6. Existe outra Betânia, perto de Jerusalém: Jo 11,1.19; 12,1. Alguns manuscritos antigos, nointuito de distinguir as duas localidades, houveram por bem “corrigir” o texto e escreveram Betabara(lugar da travessia) ou Betarabá (lugar do Mar Morto).

29(A) Na manhã seguinte, João vê Jesus aproximar-se e diz: “Eis o Cor-deiro de Deus que tira o pecado do mundo”. O título “Cordeiro (de Deus)”é raro no NT; fora de Jo 1,29.36, só se encontra no Ap, onde é freqüente (Ap5,6.8...). De onde vem essa figura do “Cordeiro que tira (ou “leva/carrega”)o pecado”?

1) Os judeus costumavam oferecer, diariamente, no Templo, cordeirospara expiar os pecados. Deste modo, alguém que reconcilia as pesso-

Cordeiro de Deus

tirar o pecado do mundo

batizar com o Espírito Santo

Filho de Deus

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as com Deus pode ser comparado ao cordeiro do sacrifício; é o quesugere Is 53,4-12 a respeito do Servo Sofredor (>com. 12,38).

2) A imagem do cordeiro pode lembrar também o cordeiro pascal (cf.“Cristo, nossa páscoa”, i. é, cordeiro pascal, em 1Cor 5,7; >com. Jo19,14.33.37).

No pano de fundo está a idéia da purificação/santificação. Em cadafesta da Páscoa, os israelitas imolavam o cordeiro pascal para rememorarsua libertação e receber sua própria purificação. Em Jo 11,55 os ritospascais são indicados pelo termo “santificar/purificar-se”. Jesus vem liber-tar-nos do pecado, e essa é a missão que, ressuscitado, no fim do evange-lho, ele confia aos discípulos (cf. 20,23). Mas a lembrança do Servo So-fredor nos obriga a valorizar também o matiz “leva/carrega o pecado” (cf.Is 53,4a). O Salvador não tira simplesmente o pecado, mas torna-se soli-dário com aqueles sobre os quais pesa o pecado. Ele mesmo sofre debaixodesse peso, não como culpado ou sendo castigado em nosso lugar, mascomo pessoa que, por sua fidelidade, através do conflito e da morte, abreum novo modo de existir (>com. 6,51). Na tradição apocalíptica, o cordei-ro é um poderoso carneiro (“um carneiro em pé”, Dn 8,3), mas no apocalipsejoanino, esse carneiro vencedor é ao mesmo tempo o Cordeiro sofredor eimolado: “de pé, como que imolado” (Ap 5,6 etc.) — coisa inimaginável,bem ao gosto de um apocalipse.

O “pecado” que o Cordeiro afasta não deve ser entendido no sentidoindividualista, moralista (os pecados da listinha). É o pecado “do mundo”,a realidade pecaminosa que parece dominar a convivência humana, o pe-cado que desde a origem da humanidade é obra do “príncipe deste mundo”(cf. o comentário de Sb 2,24 sobre Gn 3) — o qual, porém, é vencido porJesus (cf. 14,30; 16,11.33). Esta vitória se prolonga na sua comunidade apartir da Páscoa, quando é dado o Espírito para tirar o pecado do mundo(20,19-23).

O Batista identifica agora aquele que, no dia anterior, havia anunciadocomo “desconhecido”. É de Jesus que ele falava: “Depois de mim vemalguém que passou (lit. “veio a ser”) adiante de mim, porque era antes demim” (cf. vv. 27 e 15). No intuito de diminuir a importância de Jesus, os“joanitas”, e também os “judeus”, podiam recorrer ao princípio rabínicosegundo o qual o que vem primeiro tem a precedência. Assim, o mestre andaà frente de seus discípulos. Poderiam alegar que o mestre era João, e Jesuse seus seguidores, discípulos. Mas, segundo o Quarto Evangelho, no caso deJoão Batista e Jesus, a prioridade fica com aquele que vem depois, porque,

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na realidade, é desde a eternidade (cf. 1,1). João parece ser o primeiro, masJesus o é... (ver 8,58)7.

Anteriormente, nem o próprio Batista conhecia o enviado de Deus (afi-nal, ele não fazia parte da comunidade dos iniciados!). O Batista andavapregando a conversão sem saber que Jesus era o Messias esperado (cf. otexto de Q em Mt 11,2s par. Lc 7,18s). Mas ele tornou-se testemunha darevelação de Jesus a Israel. O importante não era o batismo que administra-va, mas o encontro com Jesus que o batismo proporcionou: o batismo deJoão serviu de ocasião para que Deus manifestasse seu Filho a Israel (“fossemanifestado” = passivo teológico). Esta é uma parte da resposta à perguntados “judeus” no dia anterior (1,25). E há mais.

(B) O Batista chegou a conhecer Jesus por um sinal de Deus: “Sobrequem vires o Espírito descer e permanecer, é ele quem batiza com EspíritoSanto”. O Espírito de Deus “permanece” sobre Jesus, diz o Batista: não setrata de um dom passageiro (como o Espírito dado aos profetas em Nm11,25): Jesus é quem derrama o Espírito Santo sobre nós, quando leva atermo a sua obra (cf. 7,39). Segundo o v. 34, João Batista é testemunha detudo isso e, por isso, proclama: “Este é o Filho de Deus” (cf. 20,31; cf.também a tradição sinóptica, Mc 1,11 par). E seu testemunho continua válido(os verbos “testemunhar” e “proclamar” estão no tempo perfeito: ação con-sumada, com efeito no presente).

III. Terceiro dia: os discípulos de João, André e Simão, vão a Jesus(1,35-42)

No terceiro dia, sucedem-se duas cenas: dois dos discípulos de Joãoseguem Jesus (A: 1,35-39b), e um dos dois, André, chama seu irmão, SimãoPedro (B: 1,39c-42). As cenas são unidas por uma nota cronológica (v. 39c)e pelo personagem de André, que com Filipe (veja abaixo, IV) forma a duplados helenistas no discipulado de Jesus (cf. 12,21-22).

(A) Na manhã seguinte, João apresenta Jesus, o “Cordeiro que tira o pecadodo mundo” (>com. 1,29), a dois de seus discípulos. Um desses dois discípulos éAndré (cf. infra, v. 40). O outro não pode ser identificado pelo texto. Será oDiscípulo Amado? Não é impossível que o anônimo, que discretamente desapa-

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7. Com base em textos judaicos é possível ver no “desligar a correia da sandália” e no temada precedência do “homem” (lit. aner, “varão”) uma alusão ao levirato (a acolhida da esposa deum parente falecido; cf. Dt 25,5-10; Mc 12,18-27 e par.) e às núpcias messiânicas, tema que pareceestar no pano de fundo em Jo 2,1-11 e também em Jo 3,29-30, onde igualmente é focalizado opapel do Batista. Se esse simbolismo for válido, significaria que não João, mas Jesus tem o direitodo levirato em relação a Israel.

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rece, seja aquele que, na “hora” de Jesus, reaparece como discípulo que entendee crê, sendo também a testemunha da morte (cf. 13,23; 19,35; 20,9); neste caso,sua presença em 1,35-36 significaria que ele foi testemunha desde o início. Masem vista do que segue, preferimos pensar que João vai desdobrando seus perso-nagens: o primeiro dos discípulos, André, vai chamar Pedro. E no v. 43 é mostradoo outro, que ficou anônimo em 1,35-39: Filipe (que sempre acompanha André noQuarto Evangelho): chamado por Jesus, ele chama por sua vez Natanael.

Embora a narrativa tenha algumas semelhanças com a de Mc 1,16-20 par., épreciso lê-la em sua particular configuração joanina. O primeiro traço caracterís-tico é exatamente o fato de os primeiros seguidores de Jesus serem discípulos deJoão Batista. Portanto, quem quer apelar a João Batista para diminuir Jesus (>Intr.§ 3.2.3:5) deve saber que ele mesmo dirigiu seus discípulos pa-ra Jesus. O discipulado do Batista é doravante o seguimento de Jesus (cf. também3,22-30). Assim, os discípulos do Batista “seguem” Jesus — maneira bíblicade dizer “tornar-se discípulo”; e Jesus será chamado rabbi, “mestre” (v. 38).

O segundo traço típico é o caráter sapiencial desta cena. Já vimos noPrólogo que o Quarto Evangelho vê em Jesus a Sabedoria (Palavra) de Deus.Em 1,38-41.43-45, João usa a terminologia “procurar–encontrar”, que é tí-pica do tema da Sabedoria. Antes que os dois discípulos perguntem algo,Jesus toma a iniciativa, assim como no AT a Sabedoria se antecipa aos quea procuram (Sb 6,13[14]). “Que procurais?”, pergunta Jesus. Eles respon-dem: “Rabi, […] onde permaneces (= moras)?” O verbo “permanecer” émuito importante para o Quarto Evangelho (>com. 15,4). Querem permane-cer com ele como discípulos, assim como os membros da comunidade de-vem “permanecer” unidos a Jesus. Então, Jesus os convida: “Vinde ver”,convite que recebe seu sentido profundo em 17,24: “…estejam comigo…contemplem minha glória”. Eles aceitam, e “permanecem” com ele: perten-cem à sua comunidade. (Para os que não entendem a língua dos judeus ounão estão acostumados a certos termos aramaicos em uso na comunidadejoanina, João acrescenta ao termo “rabi” a tradução: “mestre”.)

A busca dos discípulos, como também sua exclamação, “encontramos”,(vv. 41.45) representa uma profissão de fé no Messias esperado. Emboratenha de ser corrigida — pois Jesus é tão “inesperado” quanto esperado —, sua associação à busca da Sabedoria significa uma avaliação positiva. Nãoé por uma parte dos “judeus” ter resistido a Jesus que se deve menosprezara expectativa de Israel (cf. adiante o israelita autêntico, Natanael). A expec-tativa de Israel é valiosa como preparação para o encontro com a Palavra deDeus que veio morar entre nós. E isso vale para todas as expectativas ebuscas de Deus, em todas as culturas.

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(B) Para introduzir o segundo momento do dia, João faz uma pequenatransição: é “a décima hora”, quatro horas da tarde. Passado o calor do meio-dia, antes do pôr do sol, um dos dois discípulos, André, sai para avisar seuirmão, Simão (conhecido pelos leitores como Pedro): “Encontramos o Messias”.João diz messias, na língua dos judeus, certamente para acentuar a realização daexpectativa de Israel (em parêntese, traduz para os leitores de fala grega: khristós— em português, “ungido”). Como no dia anterior, a apresentação inicial (“Cor-deiro de Deus”, v. 36) recebe no segundo momento sua especificação (o Cristo,v. 41), constituindo-se uma inclusão em torno do buscar e encontrar.

Messias/Cristo/Filho de Deus

O Evangelho de João pretende antes de tudo ensinar que Jesus é o Messias,em grego, o Cristo (20,30-31). O termo hebraico-aramaico messias significa“ungido” e evoca em primeiro lugar o rei ungido de Israel (p.ex. 1Sm2,10.35; 12,3.5; 16,6; 24,6.10; Sl 2,2; Lm 4,20), mais especificamente Davi(2Sm 12,7) e o descendente ideal de Davi, no qual repousa a promessa dapresença salvadora de Deus — promessa de proteção e de paz, shalom, dommessiânico por excelência. Também reis não-israelitas são chamados ungidos(Hazael, rei da Síria, 1Rs 19,15) e podem tornar-se instrumentos do plano deDeus (Siro, rei da Pérsia, Is 45,1). Ungidos são também os sacerdotes (p.ex.Ex 40,13; Nm 3,3), o profeta Eliseu (19,16); o profeta que anuncia a restau-ração do povo, em Is 61,1, se diz ungido com o Espírito de Deus.

O termo Messias ganhou, pois, um sentido amplo. Messias é cada pessoa queexerce a missão divina de salvar o povo e de trazer a paz. Os samaritanos,que não tinham muito amor à casa de Davi e não almejavam um descendentedele como salvador, colocavam sua esperança messiânica em “aquele quedevia vir/voltar”, Moisés, o profeta por excelência (cf. Jo 4,25.29). Nos livrospós-exílicos, sobretudo do gênero profético-apocalíptico, a noção é muitoampla (cf. os dois ungidos de Zc 4,14; o “messias suprimido” de Dn 9,25-26…), tão ampla que nem mais precisa referir-se a uma pessoa individual. OMessias pode ser um sujeito coletivo. Pode ser fundido com outras figuras,especialmente com a do Filho do Homem (cf. Dn 7,13-14). Na interpretaçãodeste texto, o povo dos santos do Altíssimo parece exercer função messiânica(Dn 7,22.27). Os escritos de Qumran parecem revelar a esperança de doismessias, um régio e um sacerdotal. Talvez o Quarto Evangelho conheça atradição a respeito de um rei-profeta messiânico (cf. Jo 6,14-15).

Nos evangelhos, muito próximo de Cristo/Messias está o título “Filho deDeus” (Mc 1,1; Jo 20,30-31; cf. infra, 1,49), certamente com base em 2Sm7,14 e Sl 2,2.7 (cf. Mc 1,11), mas João aprofunda, como veremos, noevangelho inteiro as dimensões da filiação de Jesus em relação a Deus, Paide Jesus e nosso Pai.

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O importante não é saber descrever exatamente o Messias esperado, masreconhecer em Jesus aquele que, de modo surpreendente e inesperado, por-tanto incompreendido, cumpre, não tanto as confusas expectativas humanas,mas a promessa e o amor fiel de Deus.

Quando André conduz Simão até Jesus, este lhe dá um nome novo, queimplica uma missão: “Tu és Simão, filho de João. Tu te chamarás Cefas!”Cefas é um nome aramaico, que em grego se traduz Petros — “pedra”, emportuguês. Pedro deverá ser a pedra que dará firmeza à Igreja (cf. Mt 16,18).Os textos do NT mostram que o apelido de Pedro era conhecido tanto emgrego como em aramaico (Paulo, nas suas cartas, o chama de Cefas: 1Cor1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gl 1,18; 2,9.11.14).

IV. Quarto dia: Filipe, Jesus e Natanael (1,43-51)

As duas cenas do quarto dia são o encontro de Jesus com Filipe (A: 1,43-44) e o encontro de Filipe com Natanael (B: 1,45-51). A articulação das duascenas está na pessoa de Filipe, companheiro de André (cf. acima, III).

(A) Na manhã seguinte, Jesus se prepara para ir à Galiléia, afastando-seda proximidade com o Batista (em 2,1, o grupo se encontra na Galiléia).Jesus vai ter com Filipe, que é de Betsaida, cidade de André e Simão (nanossa interpretação, Filipe é o segundo dos dois discípulos do Batista em1,35-36). Convida-o para segui-lo (= ser discípulo). Filipe não se faz derogado. Assim como fez André em relação a Simão Pedro, Filipe logo diza Natanael: “Encontramos Jesus, o filho de José, de Nazaré, aquele de quemescreveram Moisés, na Lei, e também os Profetas”. Se André disse a Pedro:“Encontramos o Ungido” (v. 41), Filipe diz a Natanael: “Encontramos […]aquele de quem escreveram…”. Em Jesus se cumprem as Escrituras.

Natanael pergunta, ironicamente, se de Nazaré pode vir algo de bom.Filipe responde como Jesus respondeu a ele: “Vem ver...” (>com. v. 39). AGaliléia (cf. 7,41.52) e sobretudo Nazaré não eram lugares de onde pudessemsurgir messias! Jesus é o messias inesperado. A única maneira de verificar ovalor messiânico de Jesus — e isso é uma resposta aos investigadores da Leie dos Profetas que eram os fariseus, mas também a todos aqueles que queremprovas seguras de antemão — é: “Vem ver, experimenta” (cf. Jo 7,17).

Jesus, o nazareno

Para a informação do leitor mencionamos aqui as diversas tentativas deexplicar o apelido de Jesus, “o nazareno”; aliás, seria melhor escrever o“nazoreu”, pois nem todos concordam que o termo seja derivado da cida-

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de de Nazaré. Desde os primeiros tempos até hoje os cristãos são chama-dos, em hebraico, de notsrim. Para a origem deste termo alegam-se, alémde Nazaré, as seguintes etimologias: (1) a raiz ntsr “guardar, observar” (os“observantes”, ou talvez o particípio passivo, “os guardados”); (2) nêtser,o “ramo messiânico” de Is 11,1; (3) nazir, “nazireu”, consagrado a Deuspor um voto. A ligação entre o apelido de Jesus e a cidade de Nazaré podeser uma “etimologia popular”, combinando duas coisas originalmente in-dependentes: o lugar de residência e o apelido que evocava alguma qua-lidade especial. Seja como for, os evangelistas relacionam o apelido deJesus com Nazaré (cf. v. 46). Relacionar a origem de Jesus com Nazarédeve ter um fundamento muito forte, pois a tendência seria dizer que Jesusé de Belém (cf. Mt 2,1; Lc 2,4), cidade do Messias (Mq 5,2). Veja, con-tudo, Jo 7,42!

(B) Na segunda parte da narrativa, Jesus toma novamente a iniciativa (cf.v. 38). Como mostrou a Simão, Jesus mostra também a Natanael que oconhece: “Eis, verdadeiramente, um israelita em quem não há falsidade!” Nofim do evangelho vamos ver quem são então os israelitas falsificados: os queentregam Jesus como “rei dos judeus” (não “de Israel”!), afirmando nãoterem outro rei senão o Imperador de Roma (>com. 19,15; cf. também 8,44s).

Natanael estranha que Jesus o conheça. Por isso, Jesus lhe dá um mi-núsculo sinal de seu conhecimento profético (cf. 4,16-19): “Antes queFilipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira, eu te vi”. “Debaixoda figueira” não indica o lugar onde Filipe encontrou Natanael; o que Jesusdiz é que o conheceu quando se encontrava debaixo da figueira antes queFilipe o chamasse. Será que a figueira, árvore predileta em Israel, temalguma conotação simbólica — lugar do bem-estar de Israel, “sombra eágua fresca”? Talvez um lugar quieto para o estudo da Escritura? (Filipeapresentara Jesus a Natanael como o anunciado pelas Escrituras.) Ou seráuma alusão à imagem de Os 9,10 (Jo 15,1 corresponde à seqüência destetexto, Os 10,1)? O simbolismo nos escapa, mas não o conhecimento deJesus. Pode até ser mais que o conhecimento profético: o conhecimento“antes dos tempos” (cf. Sl 139). De toda maneira, Natanael reconhece emJesus o Messias, usando qualificações equivalentes: “Rabi, tu és o Filho deDeus, tu és o Rei de Israel!” (>com. 19,15). O israelita sem falsidade nãoentrega Jesus ao poder romano (como fazem “os judeus” em 18,30), mas oreconhece como rei messiânico e Filho de Deus (cf. 20,31).

Jesus aceita a adesão de Natanael, mas acrescenta uma precisão. Natanaelacredita porque Jesus lhe deu a entender que o viu no secreto (v. 38, cf. Sl 139).Ora, ele vai fazer a experiência de coisas bem maiores. Ele e todos os que crêem

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vão ver a manifestação da glória de Deus em Jesus, “o céu se abrindo e os anjosde Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem” (como no sonho deJacó-Israel, Gn 28,10-17). Essa manifestação é o assunto do Evangelho de Joãodo início até o fim; e ela vai ter início logo a seguir (cf. 2,11).

Ao ler, no v. 51, que “os anjos sobem e descem” sobre o Filho doHomem, estamos inclinados a pensar que a ordem dos verbos deveria serinversa. Mas esses verbos traduzem o serviço dos anjos, como na visão deJacó (Gn 28,12): eles sobem ao trono de Deus para receber sua incumbênciae depois descem para executá-la. Assim também acontece a Jesus, “Filho doHomem” (cf. Mc 1,13: “os anjos serviam-no”). Aliás, o “Filho do Homem”pertence à esfera celestial (esse título não significa a humanidade de Jesus;cf. Dn 7,13-14; cf. excurso a seguir).

Uma minicristologia: Filho de Deus/Filho do Homem

Os títulos dados a Jesus fazem deste capítulo uma “minicristologia”: Cor-deiro de Deus, Cristo-Messias, mestre, filho de José, Filho de Deus, Rei deIsrael, Filho do Homem. Casualmente sete!

Encontramos aqui pela primeira vez o título Filho do Homem. João usa depreferência os títulos Filho do Homem e Filho de Deus para designar Jesus.“Filho de” é uma maneira semítica para indicar que alguém pertence adeterminado âmbito ou categoria.

1. Filho de Deus significa que alguém pertence a Deus e é por ele amado,alguém que obedece completamente a Deus e por isso é do seu agrado (cf.Mc 1,11 par.; 9,7 par.). Essa “união moral” com Deus faz com que Jesuspossa ser chamado “um” com Deus (10,30), ainda que “o Pai seja maior”(14,28). O título é também aplicado aos fiéis (>com. 1,13).

2. Filho do homem pode significar “ser humano” (Ez 2,1.3.6 etc.), mas, naboca de Jesus e dos evangelistas, é quase sempre uma lembrança da visãode Dn 7,13-14, em que aparecem primeiro os reinos deste mundo, represen-tados por quatro feras, e depois, o Reino de Deus, representado por um serhumano (um “como que filho do homem”), que vem da parte de Deus edomina as feras. Portanto, pertence à esfera celeste, o âmbito da glória deDeus. No tempo de Jesus acentuava-se muito que esse Filho do Homemtinha autoridade para proferir o juízo em nome de Deus (sobretudo no livroapócrifo de Henoc). João reforça esse traço no sentido de que Jesus tem opoder de outorgar, com o juízo, a vida eterna (>com. 5,26-27).

Enquanto “Filho de Deus” designa mais a união do homem Jesus com o Pai,o segundo título, “Filho do Homem”, acentua sua missão divina. Não acen-tua sua humanidade. (Nem precisava, pois essa não constituía problemaalgum para os primeiros cristãos; o problema era a missão divina de Jesus!)

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A seqüência desses quatro dias (1,29-51) nos mostra as bases dacomunidade joanina: ela nasceu da confluência do movimento de JoãoBatista com a obra de Jesus, que, graças ao Batista, é apresentado aIsrael como aquele que restaura o povo, carregando e retirando seupecado, tendo o Espírito permanentemente sobre si. Na comunidadeque cresce a partir da obra do Batista ele é reconhecido, pela parteautêntica de Israel, como rei de Israel, Messias. Jesus, porém, ultra-passa essa compreensão, dando-se a conhecer como o Filho do Ho-mem e anunciando a manifestação maior da glória. Esta se iniciarálogo a seguir.

Para assimilar o que João aqui apresenta, podemos considerar aconfluência das raízes: Israel e o movimento do Batista assumidosnuma síntese nova e original por Jesus. As instituições envelhecem, osmovimentos passam. Aquele que dispõe do Espírito de modo perma-nente transforma nossas raízes, mesmo ressequidas, em realidade nova,desde que o sigamos e permaneçamos com ele, afirmando por nosso“permanecer” o valor daquele que encontramos. Então veremos coi-sas maiores.

O primeiro sinal: as bodas de Caná (2,1-11)

2 1E no terceiro dia houve núpcias em Caná da Galiléia, e a mãe deJesus estava lá. 2Também Jesus e seus discípulos foram convidadospara as núpcias. 3Faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Elesnão têm vinho!” 4Jesus lhe respondeu: “Mulher, que desejas de mim?A minha hora ainda não chegou”.5Sua mãe disse aos que estavam servindo: “Fazei tudo o que ele vosdisser!” 6Estavam ali seis talhas de pedra, destinadas às purificaçõesrituais dos judeus, cada qual contendo dois a três baldes. Jesus lhes disse:“Enchei as talhas de água”! E eles as encheram até a borda. 8Entãodisse: “Agora, tirai e levai ao encarregado da festa”. E eles levaram.9O encarregado da festa provou da água mudada em vinho, semsaber de onde viesse, embora os serventes que tiraram a água osoubessem. Então chamou o noivo 10e disse-lhe: “Todo mundo serveprimeiro o vinho melhor e, quando os convidados já tomaram bas-tante, serve o inferior. Tu guardaste o vinho melhor até agora”.11Este princípio dos sinais, Jesus o realizou em Caná da Galiléia.Ele manifestou sua glória, e os seus discípulos acreditaram nele.

2,1-11

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O episódio 2,1-11 parece dar seqüência ao contexto de 1,19-51. Se “noterceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo2,1-11 completa uma “semana inaugural”. O “milagre” bastante sensacionalde 2,1-11 seria então uma primeira exemplificação da frase final do episódioanterior: “Coisas maiores verás” (1,50), e a “semana inaugural” terminariaem 2,11. (Todavia, há quem veja um novo início em 2,1 e faça de 2,1-11 ocontrapeso de 4,45-54, numa estrutura abrangendo 2,1–4,54, “de Caná aCaná”. Mas isso não convence, pois temos um novo início em 2,12. Por essae outras razões — p.ex., a ligação com “e” (2,1) —, cremos que 2,1-11continua e conclui a seqüência iniciada em 1,19.)

2,1-11 apresenta-se como narrativa de milagre. Jesus presencia uma festade casamento. Quando se constata a falta de vinho, sua mãe o incentiva aintervir. Depois de breve diálogo com a mãe, Jesus manda encher de águaos jarros da purificação e servir essa água, que ao ser servida se revela vinho.Esta narrativa não aparece na tradição sinóptica, mas tem analogia com ossinais de Elias (1Rs 17,1-16) e sobretudo de Eliseu (2Rs 4,1-7).

O diálogo com a mãe representa uma quebra na narrativa: Jesus pareceresistir à sugestão de sua mãe (v. 4). Essa quebra, bem no estilo de João,fornece a chave de compreensão para o relato como João o entende: ainda nãoé a hora de Jesus. Mesmo que seja uma manifestação de glória, é apenas umsinal, início de sua obra, não a plenitude daquilo que Jesus vem realizar (v. 11).

*

“E no terceiro dia” celebram-se “núpcias” em Caná da Galiléia. Tradu-zimos “núpcias”, porque pensamos nas núpcias messiânicas (cf. vv. 10-11).Na comunidade joanina é conhecida a idéia das “núpcias do Cordeiro” (cf.Ap 19,7.9); e “Cordeiro” (1,29) é o primeiro título dado a Jesus na “semanainaugural”, que aqui chega à sua conclusão (1,19–2,11). Imaginação demais?Não esqueçamos que a Bíblia é a história de um caso amoroso entre Deuse o povo…

O “terceiro dia” não deve ser entendido apenas como elemento narrativo,mas como indício de simbolismo. Na Bíblia “o terceiro dia” não deve serentendido matematicamente; geralmente indica um breve lapso de tempo, àsvezes relacionado com o (pronto) agir divino (Gn 22,4; 31,2; 34,25; 40,20).Não convém, pois, perguntar como Jesus podia viajar da região do Jordão atéCaná nesse parco tempo! Foi no “terceiro dia” que Deus entregou a Torá(Lei, ou melhor, Instrução) ao povo (19,11.15.16). É no terceiro dia tambémque Deus socorre o povo (Os 6,2! cf. Lc 13,32; Mt 16,21 par.) e que Jesus

1-2

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é, por Deus, ressuscitado (cf. Jo 2,18). Por causa da correspondência estrutu-ral entre a “semana inaugural”, Jo 1,19–2,11, e a “semana final” (cf. aindicação do tempo em 12,1), não podemos excluir uma correspondênciacom o “terceiro dia” da ressurreição, ainda mais por ser o sinal de Caná amanifestação inicial da glória de Jesus (2,11), seguido por um gesto profé-tico de Jesus anunciando a ressurreição (2,13-21). Observemos ainda que o“terceiro dia”, ao mesmo tempo que indica continuidade (sobretudo aqui,somando com os quatro dias anteriores uma semana), sugere também novi-dade, intervenção de Deus.

Entre os convidados é mencionada primeiro “a mãe de Jesus” (Joãonunca a chama pelo nome) e, depois, ele mesmo com os seus discípulos. Nonível do simples relato, a menção prioritária da mãe pode corresponder a seupapel familiar ou social. Mas no nível do simbolismo joanino pode tambémser uma maneira de destacar a mãe de Jesus no início da obra, assim comoserá destacada na “hora” da consumação (>com. 19,25-27). Pode até sugeriro papel da mãe na introdução do “noivo” das núpcias messiânicas ou naentronização do “rei de Israel” (cf., na cena anterior, 1,49).

Ora, que núpcias são essas! Falta vinho, símbolo da alegria e do amor(Ct 1,2; 7,10; 8,2 etc.)! A mãe de Jesus o notifica a seu filho. “Eles não têmvinho”. Quem carece de “vinho”? O judaísmo? Jesus responde: “Mulher”(termo de tratamento normal para uma senhora; cf. Jo 19,26; 20,13.15; 8,10),“que desejas de mim?”, literalmente: “Que há entre ti e mim”, maneira demarcar distância, interesse diferente (cf. 2Sm 19,23; Mc 1,24 par.) ou suspense(cf. 2Rs 3,13; Os 14,8). O porquê do suspense aparece logo: “A minha horaainda não chegou”. Jesus não rechaça a mãe, mas está sugerindo que o queele vai fazer agora ainda não é sua obra propriamente, obra que ele cumpriráquando chegar a sua “hora” (>com. 13,1). O que ele vai fazer agora é um“sinal” de sua competência, como explicita o v. 11, mas não a obra em si.

O suspense, marca do agir soberano de Jesus (>com. 6,11), resulta numapalavra de confiança da mãe. Primeira dos que crêem, Maria orienta a con-fiança do povo para Jesus: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Nessas palavrasressoa aquilo que o Faraó disse a respeito de José do Egito quando este iaprover sustento para seus irmãos, Gn 41,55; Jesus é o “gerente” da casa doPai. Mas lembram também a soberania de Deus, cf. Ex 19,8: “Faremos tudoo que disse o Senhor”. Jesus age com soberania divina, nem sequer se dirigeao mestre-sala para resolver o problema. Este, aliás, causará uma significa-tiva confusão (v. 10).

Estão aí seis talhas de pedra, das bem grandes (lit. “de dois a três metretas[almudes]”, uns oitenta litros). Elas são de pedra (como o Talmud aconselha

3-5

6-8

2,1-11

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por causa da pureza) e serviram para as purificações rituais, que o judaísmo,sobretudo de tendência farisaica, tanto preza. Só que agora estão lá deitadas,vazias, sem função. Os utensílios do judaísmo ficaram inúteis, mas agoravão servir para uma realidade nova. Jesus dá às talhas novo destino: mandaenchê-las com água. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essanão falta, vinho sim — falta a alegria messiânica.

Os que servem à mesa executam a ordem de Jesus. (João chama osserventes de “diáconos”: palavra rara, mas de uso na comunidade cristã —talvez uma alusão ao serviço da comunidade; >exc. 12,26.)

“A água feita vinho”: não se diz como isso aconteceu, mas a voz passivasugere uma ação de Deus ou de seu enviado, sua Palavra criadora (cf. 1,3).Jesus manda levar essa água-vinho ao encarregado da festa, que não sabe “deonde” vem. O termo “de onde”, em Jo, sempre faz a gente refletir sobre aorigem última do dom ou do enviado de Deus (1,48; 2,9; 3,8; 4.11; 6.5; 7.27-28; 8.14; 9,29-30; 19,39). Mesmo em se tratando, aparentemente, de reali-dades terrestres, a resposta última é sempre: “de Deus”.

O encarregado da festa prova da água e constata que é vinho! Vinhoexcelente, a tal ponto que comenta para o noivo: “Todo mundo serve primei-ro o vinho bom e, quando já tomaram bastante, manda servir o inferior. Mastu guardaste o vinho melhor até agora!” Ora, em Israel, quem oferece a festade casamento é o noivo. Ao responsabilizar o noivo pela inversão das coisas,o encarregado está na realidade responsabilizando Jesus, o verdadeiro man-dante da festa, ou seja, o verdadeiro noivo. Jesus é quem providencia “ago-ra” o vinho melhor e abundante do tempo messiânico (veja Is 25,6; Am 9,13-15; Jr 31,12-13 etc.; Gn 49,11!); ele faz a vez do Esposo do tempo final,anunciado pelos profetas, que também anunciaram as novas núpcias (Alian-ça) de Deus com o povo (entre os textos do AT que descrevem o povo comonoiva escatológica, veja, p. ex., Is 62,5; cf. também, no ambiente joanino, Ap21,9; 22,17).

Deste modo, Jesus inicia, em Caná da Galiléia, seus “sinais” proféticos,levantando uma ponta do véu da glória divina que nele se esconde e serevela (cf. 1,14.16; 1,51). E seus discípulos passam a crer nele. Mas aindanão é a fé madura e completa, que só será possível no termo da obra deJesus, quando não será mais preciso ver sinais (cf. 20,29).

João chama as obras maravilhosas de Jesus de “sinais” (>Voc.), nunca demilagres (lit. “poderes”), como os sinópticos. Isso certamente se deve à ma-neira do AT, que chama assim os gestos pelos quais os profetas provam quesão mandados por Deus, como Moisés nas suas tentativas de convencer o

9-10

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Faraó (o termo bíblico para as “dez pragas” do Egito é “sinais”; cf. Ex 4.8.9etc.). O “sinal” não recebe seu sentido de si mesmo, mas daquilo que “assi-nala”. O sinal de trânsito não tem seu sentido em si (p.ex., suas cores bonitas),mas no perigo que assinala. O sinal de Caná não aponta para um fornecimentoespetacular de vinho, mas para a missão messiânica de Jesus, a qual eleassinala. Com uma conotação especial: Jesus mesmo está no centro da Aliançaentre Deus e o povo — embora João não use esse termo (>Voc.).

É o início dos sinais, não a plenitude. Em 2,4 Jesus disse que “sua hora”ainda não tinha chegado. Sua hora será a da plenitude, do amor consumado,quando disser: “Está consumado” (19,30; lit.: “plenificado”; >com. 13,1).Portanto, a manifestação de sua glória é, aqui, apenas inicial. Se, pois, osdiscípulos crêem nele, é também de modo inicial. A fé por causa de um sinalé apenas um primeiro passo. Contudo, neste início dos “sinais” (>exc. 5,36),João ainda não insiste na precariedade da fé que busca sinais (cf. 2,23-25;4,48) e no perigo de só ver a materialidade, sem ver o que é assinalado (cf.6,26). Antes, envolve no discreto simbolismo o candidato à fé, que vislum-bra, num primeiro contato, o mistério, a manifestação da glória. Ainda nãoé a hora de fazer o discernimento crítico que virá depois.

Jesus conduz seus discípulos para que presenciem a nova Aliança deDeus com o povo, propicia a alegria das núpcias messiânicas, mani-festa de maneira incipiente a glória que o Pai lhe deu.

Jesus consolidou essa experiência por um sinal, que não tem valorpor si mesmo, mas por aquilo que significa. Será que a comunidadecristã age ainda assim? Apresenta sinais de “competência messiâni-ca” para um povo necessitado de restauração e alegria, sinais queapontem para algo que ultrapassa a competência humana (“deonde?”)?

E, antes disso, somos ainda capazes de imaginar um Deus que quercasar com o povo? Tal pensamento até nos incomoda! Não será nossopuritanismo pseudo-teológico um indício de termos interditado a Deusnosso afeto e nossa alegria? Com a conseqüência de a comunidadecristã tornar-se uma “sociedade”, mantida com base em dogmas edeveres, até o dia em que o povo não precisa mais dela e volta seuolhar para outros horizontes… Será que os que se apresentam emnome de Deus querem “casar com o povo” e celebrar com ele aalegria do amor de Deus?

2,1-11

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O gesto profético no Templo (2,12-22)

I — 12Depois disso, Jesus desceu para Cafarnaum, com sua mãe, seusirmãos e seus discípulos. Lá, eles permaneceram apenas alguns dias.13Estava próxima a Páscoa dos judeus; Jesus, então, subiu a Jeru-salém. 14No (pátio do) Templo, ele encontrou os que vendiam bois,ovelhas e pombas, e os cambistas nas suas bancas. 15Ele fez umchicote com cordas e a todos expulsou do Templo, juntamente comos bois e as ovelhas; ele jogou no chão o dinheiro dos cambistas ederrubou suas bancas, 16e aos vendedores de pombas disse: “Tiraiisso daqui. Não façais da casa de meu Pai um mercado”! 17Osdiscípulos se recordaram do que está na Escritura: “O zelo por tuacasa há de me devorar”.

II — 18Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras paraagires assim?” 19Jesus respondeu: “Destruí este santuário, e em trêsdias eu o erguerei”. 20Os judeus, então, disseram: “Construíram du-rante quarenta e seis anos para erguer este santuário, e tu seriascapaz de erguê-lo em três dias?” 21Ora, ele falava isso a respeito dosantuário que é seu corpo. 22Depois que Jesus fora reerguido dosmortos, os discípulos se recordaram de que ele tinha dito isso e creramna Escritura e na palavra que ele, Jesus, tinha falado.

Marcando novo início (“depois disso”), o v. 12 é na realidade uma tran-sição. Lembra a estadia temporária de Jesus em Cafarnaum, que conhecemospelos evangelhos sinópticos (cf. Mt 4,13 par.). Mas, para João, Caná é maisimportante que Cafarnaum (cf. também 4,46). Cafarnaum, nó de estradase porto do lago de Genesaré, é um ponto de partida para viagens. Tal via-gem é desenvolvida nos episódios que se seguem: Jesus vai manifestar-se emJerusalém (2,13–3,21) e, depois do testemunho de João Batista (3,22-36), naSamaria (4,1-42). No fim, preterindo Cafarnaum, voltará a Caná (4,43-54).

O primeiro episódio em Jerusalém, a purificação do Templo, é narradotambém nos sinópticos, até com semelhanças verbais (cf. Mt 21,10-17 par.).Mas há diferenças notáveis. Nos sinópticos, a purificação do Templo se dápor ocasião da única subida de Jesus a Jerusalém, no fim de seu ministério,pouco antes da Páscoa de sua morte. Em João, ela encabeça a atividade deJesus. Essa posição no início é muito significativa: desde o início, Joãoexpressa que os grandes símbolos do judaísmo são suplantados por aquiloque se inicia em Jesus.

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João relaciona com a purificação do Templo ainda dois temas encontra-dos em outro contexto nos sinópticos: (1) João insere aqui a pergunta pelaautoridade de Jesus (Jo 2,18), que nos sinópticos vem num episódio separadoe recebe outra resposta (Mt 21,23-37 par.); (2) João põe aqui na boca deJesus a palavra sobre a destruição do Templo, que nos sinópticos se encontrana boca dos falsos acusadores e daqueles que zombam de Jesus crucificado(Mc 14,58.62; 15,29 par.; cf. At 6,13-14; e cf. o anúncio apocalíptico dadestruição, Mc 13,1-2 par.)

Mt Mc Lc Jo

21,1-11 11,1-11 19,28-44 entrada em Jerusalém 12,12-19

21,18-22 11,15-19 19,45-48 purificação do Templo 2,13-17

21,23-27 11,27-31 20,1-8 autoridade de Jesus 2,18

24,1-2 13,1-2 23,5-6 anúncio apocalíptico dadestruição do Templo

26,61 14,48; 15,19 palavra sobre o Templodestruído e reerguido

Para o comentário, distinguimos duas cenas:

I. 2,12-16 narra como Jesus, subindo de Cafarnaum a Jerusalém, rea-liza um gesto profético, que deve ser imaginado no pátio do Templo;o v. 17 é um texto ilustrativo do Sl 69 alegado pelo autor;

II. o v. 18 (pedido de um sinal) faz a transição para a palavra sobredestruir-reerguer o Templo (v. 19-20), que se deve imaginar diante doedifício sagrado propriamente, o “santuário”; os v. 21 e 22 são co-mentários do evangelista.

I. A subida ao Templo (2,12-17)

João marca a transição à sua maneira costumeira: “depois disso”. Jesusdesce para Cafarnaum, cidade à beira-mar, com sua mãe, seus irmãos e seusdiscípulos. Isto nos lembra alguns episódios dos evangelhos sinópticos: Je-sus atua (Mc 1,21) ou mesmo se instala (Mt 4,13) em Cafarnaum, e seus“irmãos” ficam em sua proximidade (cf. Mc 3,31 par.). Segundo João, elespermanecem lá apenas alguns dias (sobre “os irmãos”, >com. 7,3).

Enquanto os outros evangelistas destacam muito a atuação prolongada deJesus nos arredores de Cafarnaum, expulsando os demônios e as doenças,João quer deixar claro que é em Jerusalém que se desenvolve o conflitofundamental de Jesus. No quadro pintado aqui, nosso “catequista” quer mos-trar aos iniciandos na nova comunidade que o sistema antigo não vale mais.

12

2,12-22

2,19-21

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Em Caná, Jesus deu novo destino às talhas da purificação judaica. Agora fazcoisa semelhante com o culto do Templo de Jerusalém.

Terminados os dias de Cafarnaum, Jesus sobe a Jerusalém para a romariada Páscoa (em 6,4, porém, parece que não sobe a Jerusalém para a Páscoa).

Jesus e as páscoas (festas)

João é o único evangelista a mencionar três páscoas (2,13; 6,4; 11,55), cadavez com a precisão “dos judeus”, totalmente supérflua como informaçãopara os leitores. O sentido é que a Páscoa dos judeus já não é a Páscoa doscristãos. Na primeira, Jesus causa confusão em Jerusalém; na segunda,permanece na Galiléia; na terceira, faz a refeição na noite anterior à Páscoados judeus (cf. a nota cronológica na introdução à segunda parte, Jo 13–20).

Além disso, João mostra Jesus subindo a Jerusalém por uma (anônima)“festa dos judeus” (5,12), participando da festa das Tendas, “festa dos ju-deus” (7,2), e presente na festa de Dedicação (10,22).

Ao chegar a Jerusalém, vai ao Templo, onde encontra um escandalosocomércio de gado, ovelhas e pombas, que os romeiros deviam comprar paraoferecer os sacrifícios. Pois os que vinham do interior (da Galiléia) nãopodiam trazer tudo isso de sua roça, para não falar dos romeiros que vinhamda diáspora no estrangeiro ou de além-mar. Nesse comércio, ocupam impor-tante lugar os cambistas que trocam o dinheiro comum em moeda do Templo— pois o dinheiro do Templo tinha de ser “puro” (não podia trazer efígiespagãs)! Para Jesus, tudo isso não tem sentido. Irado, ele faz um chicote eexpulsa até os animais, que devem ter sido muitos, visto a proximidade daPáscoa (sacrificavam-se até 18.000 animais por essa ocasião). E quanto aosnegociantes, derruba suas bancas, gritando: “Tirai isso daqui e não façais dacasa de meu Pai um mercado!” (cf. Zc 14,21).

Em comparação com os sinópticos, João é mais radical na crítica ao culto.Nos sinópticos, Jesus critica o fato de o Templo ter-se tornado um covil deladrões (Mc 11,17 par., cf. Jr 7,11), um centro de exploração contra o povo jáduramente castigado pela presença das potências estrangeiras. (É geralmentenessa perspectiva que o texto hoje é explicado nas comunidades dos oprimi-dos.) Todavia, a perspectiva de João é outra. Em João, Jesus não fala em “covilde ladrões”, mas em “mercado” (Jo 2,16); e não se demora nessa idéia, masacrescenta, no v. 17, outra palavra da Escritura, que concentra a atenção emJesus mesmo. Nos sinópticos, Jesus protesta contra a profanação; em João, eleacaba com o culto como tal. Os sinópticos não mencionam a ação contra osanimais do sacrifício, nem falam em chicote; João mostra Jesus usando ochicote precisamente para expulsar os animais e, com eles, os sacrifícios (cf.

13-16

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a “crítica aos bois do sacrifício” em Is 1,11-17; Os 5,6-7; 8,13; Am 4,4-5; Sl50,8-13 etc.)! Mas a conotação social não falta. Incluindo a expulsão dosanimais no mesmo gesto que a investida contra os banqueiros e comerciantes(v. 15), João pode estar sugerindo que tanto os sacrifícios como o comércioestavam manchados de injustiça (cf. Sr 34,18-20!).

João sugere assim de maneira radical a abolição de uma das grandesinstituições do judaísmo e sugere a suplantação dos sacrifícios e do próprioTemplo por Jesus. Em relação com isso, ele sublinha o sentido cristológicoda cena (vv. 17 e 21).

Depois da morte e ressurreição, os discípulos irão se lembrar de que, porsua atuação no Templo, Jesus cumpriu a palavra da Escritura que diz: “Ozelo de tua casa me há de devorar” (Sl 69,9; >exc. 19,24). O zelo é a paixão,o ciúme profético pela casa de Deus (cf. Elias, segundo Sr 48,1-11). E queé essa “casa”? O Prólogo nos ensinou que Jesus é a morada onde contem-plamos a glória de Deus (1,14; cf. infra, v. 22). O Templo de Jerusalém jánão serve para isso. Por isso, Jesus expulsou os animais usados no culto,abolindo assim a função do Templo de Jerusalém (cf. 4,22-24).

II. A palavra sobre o Templo (2,18-21)

As autoridades pedem a Jesus credenciais para justificar sua ação: “Quesinal fazes?” Jesus realizou um gesto profético, e um profeta tem de legiti-mar-se por algum sinal (cf. Is 38,7). Jesus responde: “Destruí [ou: “Vósdestruís”] este santuário, e eu, em três dias, o levantarei”. “Ridículo”, retru-cam, “este santuário está em reconstrução há 46 anos e as obras ainda nãoterminaram. E tu o reerguerias em três dias?” De fato, Herodes Magno haviainiciado as obras de ampliação e embelezamento do Templo em 19 aC (cf.Flávio Josefo, Antiguidades judaicas, XV, 11, 1), de modo que por volta de28-30 dC, no tempo da atividade de Jesus, a construção estava levando 46ou 47 anos. (As obras terminariam em 64 dC, pouco antes da destruiçãodefinitiva, que se deu no ano 70!)

O Templo, Herodes e o turismo

Em outros livros da Bíblia, inclusive nos evangelhos (Mc?), o Templo podeaparecer, pelo menos lateralmente, como um centro de exploração econômi-ca. Em João, isso é menos evidente. Mas a alusão às obras de embelezamentoempreendidas por Herodes nos dá uma pista para descobrir o que Joãopensava do Templo, não só no nível teológico (o Templo superado, como éevidenciado em 2,13-21 e 4,21-23), mas também no sociocultural. O con-traste irônico entre a longa duração de sua construção e o pouco tempo do

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“reerguimento” de Jesus, sabendo também que o Templo embelezado só fun-cionou durante uns cinco anos depois do fim das obras, dá o que pensar.Na realidade, na Jerusalém herodiana, o Templo exercia uma função turística.Por um lado, Herodes investiu nele com a mesma mania de grandeza que olevara a construir Massada, o Heródion, a cidade de Cesaréia Marítima e atéo Templo de Augusto na nova capital da Samaria, Sebaste! Tudo isso certa-mente não era inspirado por sua convicção religiosa judaica. Alias, seus pa-lácios eram ornamentados com imagens que a Lei judaica execrava. Por outrolado, Jerusalém era um problema econômico. Ora, quando uma metrópole oucapital se torna problemática, porque come demais e produz de menos, umasaída é transformá-la em pólo turístico. A receita é válida até hoje.

O primeiro Templo de Jerusalém, construído por Salomão, por volta de 950 aC(1Rs 6,1.37ss), tinha sido destruído em 586 aC por Nabucodonosor, rei daBabilônia. Depois da conquista da Babilônia por Ciro, o persa, em 538 aC, esteencarregou Zorobabel de sua reconstrução, por volta de 520 aC. O segundoTemplo era bem menos rico que o primeiro, e faltava nele a Arca da Aliança.

Quando Herodes iniciou o embelezamento em 19 aC, intencionava construiro maior templo do mundo. Contando com a lei das peregrinações, queobrigava os judeus piedosos a “subir” três vezes por ano ao Templo, e comos laços dos judeus da diáspora com ricos simpatizantes no mundo greco-romano, Herodes quis, mediante o Templo, fazer de Jerusalém uma metró-pole que competisse com as outras — Alexandria, Atenas e a própria Roma.Só para se ter uma idéia do tamanho da ambição de Herodes: o pórtico deentrada, na frente do “Santo”, tinha uma fachada de 50 x 50m, com umportão de 45m de altura! O teto era dourado e brilhava ao sol de modo quefosse visto a muitos quilômetros de distância.

Enquanto no início da narrativa (vv. 13.14.15) e nos demais episódios quese situam no Templo João usa o termo hieron (“templo” como conjunto do lugarsanto, inclusive o magnífico pátio, os pórticos etc.), aqui, e só aqui (vv. 19.20.21),usa o termo naós, “santuário” (mais exato seria dizer “capela” ou “nave”). Issose deve às tradições que ele combina, a da purificação do Templo (vv. 13-16)e a da destruição-reconstrução do “santuário” (vv. 19-20), articuladas, no 18,pela palavra sobre a autoridade de Jesus (cf. Mc 11,28 par.). Também nossinópticos o termo hieron é usado na purificação do Templo (Mc 11,11.15.16par.), e o termo naós, na palavra sobre a destruição-reconstrução do Templo (Mc14,58 par.; 15,38 par.). Naós é mais apto para sugerir a idéia de uma construção;aponta o edifício cultual propriamente, subdividido em o “santo” (onde atuamos sacerdotes) e o “santo dos santos” (ou “santíssimo”), considerado o espaçoreservado a Deus, e onde somente o sumo sacerdote pode entrar, uma vez porano, no dia da Expiação (cf. Lv 16). Naós, traduzido por “santuário”, além deindicar o coração do templo, combina bem melhor com a palavra sobre o

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destruir e “(re)erguer”. Quanto ao termo “(re)erguer”, João se afasta da tradiçãosinóptica, que fala em “(re)construir”. João usa a terminologia da ressurreiçãode Jesus, para deixar clara a alusão a esta, como mostra o v. 21.

Numa típica “reflexão joanina” (como no v. 17), o evangelista comentaque Jesus estava falando não do templo de pedras, e sim do santuário queé ele mesmo (v. 21: “seu corpo”). Ele é quem vai ser destruído e “erguido”em três dias. Jesus é o verdadeiro santuário, o lugar ou morada em que Deusse deixa encontrar e na qual contemplamos a sua glória (veja 1,14). O templode pedra e os sacrifícios de animais ficaram obsoletos e enganadores. Jesusos suplanta. Isso nos faz entender melhor por que João introduz aqui o temada palavra sobre a destruição do Templo. Nos sinópticos, a palavra sobre adestruição–reconstrução não é citada como palavra de Jesus, mas como acu-sação na boca de “falsas testemunhas” (cf. Mc 14,58.62; 15,29 par.; At 6,13-14); a própria purificação do Templo como reação contra a profanação mostraque Jesus respeitava o Templo (ainda que, segundo Mc 13,2 par., anunciassesua destruição apocalíptica). Em João, Jesus suplanta o Templo; a palavrasobre a destruição–reerguimento aparece na boca de Jesus mesmo, comopalavra de duplo sentido, porém verdadeira (>Intr. § 2.1.7). Por isso, Joãouniu, mediante a questão da autoridade (2,18), os temas da purificação (paraele: abolição) do Templo e da destruição–reerguimento.

No v. 22, conforme seu costume (cf. vv. 17 e 21), João acrescenta umcomentário a seu próprio texto: os discípulos compreenderam o gesto e apalavra de Jesus somente “depois que Jesus fora reerguido” (terceiro uso doverbo “[re]erguer” nos vv. 19-22); então passaram a crer “na Escritura e napalavra que Jesus lhes tinha falado”. Transparece aqui o ponto de vistapascal do Quarto Evangelho (cf. 20,9). O evangelista — e o leitor com ele— compreende o que os discípulos não podiam compreender durante a vidaterrena de Jesus. A ressurreição nos faz compreender as palavras de Jesus etambém as Escrituras que falam a seu respeito (cf. 12,16; 20,9). Aliás,mencionando em um só fôlego a palavra de Jesus e as Escrituras, João dáa entender que as palavras de Jesus têm (no mínimo!) o mesmo valor que asEscrituras: são “palavra de Deus”.

Por que João situou o conflito do Templo no começo?

Historicamente falando, o gesto de Jesus no Templo deve ter sido uma dascausas de sua morte. Segundo Mc, Jesus é o Profeta-Servo que no fim deseu caminho denuncia a degeneração do Templo (Mc 11,15-17) e anunciasua destruição (Mc 13,2), e é bastante provável que foi isso que lhe custoua vida, ao menos da parte das autoridades judaicas (cf. Mc 14,58). João

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situa a cena três anos antes, no início do evangelho; mas essa cronologiapode não ser histórica: é provável que João atribuiu ao gesto de Jesus umsignificado fundamental, que devia marcar o evangelho todo. A colocaçãono início é programática. Para João, o Templo é o símbolo e a síntese dosistema religioso que “já era”. Em Jesus manifesta-se a presença da novi-dade radical, o “novo céu e nova terra” e a nova Jerusalém de que fala oApocalipse (Ap 21,1.2.5; cf. 2Pd 3,13). Neste sentido, o gesto do Templovem completar o sinal de Caná (Jo 2,1-11), porque este simboliza as núpciasmessiânicas de Deus com sua comunidade no tempo final, ou seja, exata-mente aquilo que a nova Jerusalém de Ap 21,5 sugere: a esposa (a comu-nidade) preparada para o Esposo (Cristo). Também em Mc o “novo” éapresentado no início do evangelho, mediante as palavras sobre o jejum dosconvidados às núpcias e sobre o vinho (Mc 2,18-22).Para João, Jesus é desde o início o “lugar santíssimo” de Deus (em 11,48, porironia, os sumos sacerdotes e os fariseus estão ainda preocupados com o “lugarsanto”, coitados!). Jesus toma o lugar do sistema religioso. É ele o centro danovidade escatológica, que se manifestará em sua glorificação na cruz. A atua-ção de Jesus é a santidade de Deus presente no meio de nós. Enquanto ossinópticos vêem o gesto de Jesus como gesto “ético” (indignação diante dosabusos, como em Mc 11,15-17), João o vê antes como gesto “religioso” (sinaldo novo lugar santo de Deus em Jesus Cristo). Contudo, seria errado oporessas duas perspectivas, pois Jesus é santo exatamente porque ele é ético (cf.a ética baseada no “Sede santos porque eu sou santo”, Lv 19,2).

Jesus não substitui o Templo, ele o suplanta. Substituir significaria quenele (na sua comunidade) se poderia fazer o que se fazia no Templo:oferecer sacrifícios de ovelhas e de bois ou coisa semelhante. A partir deJesus, tal coisa já não pertence à “economia da salvação”. Jesus asuplantou por aquilo que acontece em sua pessoa: comunhão fraternaem torno de sua vida doada, que é manifestação da presença de Deus,morada de Deus. Pelo zelo dessa morada, Jesus será devorado (2,17).

Quem aceitar isso deve deixar os antigos “templos” para trás. Não quese deva desprezar a linguagem, as formas expressivas da própria ou deoutras tradições religiosas. Mas importa ter claro que o lugar onde Deusmora no meio de nós é Cristo e aquilo que ele iniciou.

É isso que João mostra aos “iniciandos”, por enquanto. Mais tarde,revelará o segredo da atualidade permanente desse novo centro: a res-surreição e o Paráclito. Mas isso é para os avançados na fé(2ª parte do evangelho). Por enquanto basta deixar o(s) antigo(s) templo(s)para trás, para acompanhar Jesus.

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Em Jerusalém: catequese a um notável judeu (2,23–3,21)

I — 23Enquanto Jesus estava em Jerusalém, na festa da Páscoa, muitoscreram no seu nome, vendo os seus sinais que realizava. 24Jesus, noentanto, não lhes dava crédito, porque conhecia a todos 25e nãoprecisava de ser informado a respeito do ser humano. Ele bem sabiao que havia dentro do homem.

II — 3 1Havia alguém dentre os fariseus, chamado Nicodemos, um doschefes dos judeus. 2À noite, ele foi se encontrar com Jesus e lhedisse: “Rabi, sabemos que vieste como mestre da parte de Deus, poisninguém é capaz de fazer os sinais que tu fazes, se Deus não estácom ele”. 3Jesus respondeu: “Amém, amém, te digo: se alguém nãonascer do alto, não poderá ver o Reino de Deus!” 4Nicodemos per-guntou: “Como pode alguém ainda nascer, se já é velho? Ele poderáentrar uma segunda vez no útero de sua mãe para nascer?” 5Jesusrespondeu: “Amém, amém, te digo: se alguém não nascer da águae do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. 6O que nasceuda carne é carne; o que nasceu do Espírito é espírito. 7Não te ad-mires do que eu te disse: ‘É necessário para vós nascer do alto’. 8Ovento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de ondevem, nem para onde vai. Assim se dá também com todo o que nasceudo Espírito”.9Nicodemos, então, perguntou: “Como é possível isso?” 10Jesus res-pondeu: “Tu és mestre em Israel e não conheces estas coisas? 11Amém,amém, te digo: nós falamos do que conhecemos e damos testemunhodo que vimos, mas vós não recebeis nosso testemunho. 12Se nãoacreditais quando vos falo das coisas da terra, como ireis crer quan-do vos falar das coisas do céu? 13Ninguém subiu ao céu senão aque-le que desceu do céu: o Filho do Homem. 14Assim como Moisésalteou a serpente no deserto, assim também será alteado o Filho doHomem, 15a fim de que todo o que nele crer tenha vida eterna”.

III — 16Pois de tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho único,para que todo o que nele crer não morra, mas tenha vida eterna.17Pois Deus mandou o seu Filho ao mundo, não para condenar omundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. 18Quem crê nelenão será condenado, mas quem não crê já está condenado, porquenão acreditou no nome do Filho unigênito de Deus. 19Ora, o julga-mento consiste nisto: a luz veio ao mundo, mas as pessoas amarammais as trevas do que a luz, porque suas obras eram más. 20Pois todo

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o que pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para quesuas ações não sejam denunciadas. 21Mas quem pratica a verdade seaproxima da luz, para que suas ações sejam manifestadas, já que sãopraticadas em Deus.

Uma nova situação de tempo e lugar abre um novo episódio, ainda emJerusalém, durante a festa da Páscoa, alguns dias depois do episódio anterior(cf. 2,13). Trata-se de um diálogo com um judeu importante, Nicodemos. Osoutros evangelhos não mencionam esse personagem. Encontramos nesteepisódio pouca coisa que lembre a tradição evangélica geral. É a única vezque João menciona o “reino de Deus” — visto como expectativa de umjudeu. Em Mc 10,15 e Mt 18,3, a participação do reino de Deus está ligadaa tornar-se como criança. O desenvolvimento joanino pode ter nisso seuponto de partida.

Dividimos o episódio como segue (existem outras propostas):I. o entusiasmo geral pelos “sinais” de Jesus em Jerusalém (2,23-25);

II. o foco um personagem no cenário geral: Nicodemos e as coisas docéu (3,1-15);

III. um comentário teológico sobre o dom de Deus (3,16-21).

I. Na Páscoa, em Jerusalém (2,23-25)

Jesus permanece alguns dias em Jerusalém, participando da festa daPáscoa e realizando sinais. Por causa desses sinais, muitos acreditam nele,mas Jesus não lhes dá crédito... (João faz um jogo de palavras, usando omesmo verbo para “acreditar” e “dar crédito”). Emoções sensacionalistas,mesmo provocadas por sinais aparentemente messiânicos, são fogo de palha.Tal fé precisa de aprofundamento. É bom que os evangelizadores cristãossaibam isso. Devem conhecer os limites da fé baseada em sinais e superá-los (ver 4,48). Fé suscitada por um megashow não inspira confiança.

Jesus sabe como são as pessoas. Ninguém precisa ensinar a Jesus “o quehá no homem” (v. 25, traduzido literalmente). Seria como ensinar o Pai-nosso ao vigário. Essa observação do v. 25 — no estilo de um comentárioao próprio texto — deixa transparecer a cristologia do evangelista: Jesuspossui o conhecimento divino acerca do ser humano.

Crer e “crer no nome”

Nos evangelhos sinópticos, Jesus concede cura milagrosa às pessoas porquecrêem. Em João, Jesus não dá crédito aos que crêem em seu nome porverem seus sinais milagrosos. Trata-se de dois tipos de fé diferentes.

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A fé que, nos sinópticos, é ratificada por Jesus com curas milagrosas é aexpectativa confiante que as pessoas põem nele, a abertura para a d¥namis,a força de Deus que age nele. Mas o que João chama “crer no seu nome”exige algo mais: declarar-se por Jesus (“nome” = “pessoa”). E isso, numcontexto bem diferente daquele das curas nos sinópticos. As curas nos sinópticossão situadas num ambiente pacífico, em que Jesus aparece como portadorde dons especiais, que suscitam uma renovada esperança e confiança emDeus. João, pelo contrário, pensa numa fé “cristológica”: fé em Jesus Cris-to, professando o nome dele em meio a um ambiente hostil, como é o quecerca sua comunidade. Para tal fé o entusiasmo suscitado pelos sinais mi-lagrosos não fornece base suficiente, embora possa ser um primeiro passo(cf. 4,48). A fé na d¥namis de Jesus podia acontecer sem sair da comunidadejudaica, mas a fé confessional, cristológica, implicava mudança de quadrovital, mudança de comunidade, e isso não é pouca coisa, como é exemplificadonos casos de Nicodemos (3,1-15) e dos cripto-cristãos (12,42).

Este assunto merece atenção hoje. Assistimos a um surto de sentimentosreligiosos, que talvez representem um primeiro passo em direção a Jesus.Mas isso não basta; pode até desviar do compromisso profundo! “Mostro adireção, mas ficam olhando o dedo em vez de seguir a direção”: assim é afé “vidrada” em sinais (cf. 4,48; 6,2.14 etc.). Aderir a Jesus é outra coisaque entusiasmar-se com sua beleza e seu poder. É assimilar o escândalo dacruz (>com. 3,15), seguindo-o (12,26).

II. Nicodemos (3,1-15)

Em meio ao sensacionalismo dos habitantes da cidade e dos romeiros(cf. 4,43-45), apresenta-se Nicodemos, membro da fina flor de Jerusalém:fariseu, chefe dos judeus, membro do Conselho (veja tb. 7,50; 19,39). Nãoquerendo comprometer-se com Jesus diante dos colegas (cf. 12,42-43!),Nicodemos vai vê-lo durante a noite. É verdade que os rabinos estudavamaté de noite, mas João sublinha intencionalmente esse detalhe, pois Jesus vairevelar-se a ele como luz que brilha nas trevas (vv. 19-21). O próprio cenáriojá sugere a oposição joanina de luz e trevas.

Nicodemos, como as demais pessoas de Jerusalém (cf. 2,23-25), tinhaficado impressionado com os sinais de Jesus. Ele reconhece o valor proféticodos sinais: “Rabi, sabemos que vieste como mestre da parte de Deus, poisninguém é capaz de fazer os sinais que tu fazes, se Deus não está com ele”.O “sabemos” é irônico: o diálogo que segue vai mostrar que Nicodemos eos que ele representa não sabem (3,10), enquanto “nós sabemos” (v. 11).

Há uma coisa que Nicodemos pensa, mas não diz: Jesus talvez seja umprofeta mandado por Deus para acelerar a chegada do reino de Deus median-

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te a observação da Lei, como acreditavam os fariseus. É certo que no ano 30Jesus anunciou a chegada do Reino de Deus (cf. Mc 1,15). Mas, na ótica dacomunidade joanina no ano 90, o que Jesus (ou seu Espírito) ensina a res-peito da expectativa do “Reino de Deus”? A destruição do Templo não pôsfim à expectativa do reinado de Deus?

Jesus diz que Nicodemos (como os que representa) deve “nascer do alto”ou “de novo”, pois no idioma do Quarto Evangelho, “do alto” pode tambémsignificar “de novo”. Nicodemos, entendendo que Jesus quer dizer “nascerde novo” responde: “Como pode um homem ainda nascer, se ele já é velho?Poderá entrar no útero de sua mãe para nascer?” Como geralmente nos mal-entendidos joaninos, aquele que se equivoca entende ou expressa parte daverdade. Nicodemos deveria nascer de novo. Não simplesmente de novo,porém, sobretudo, do alto. Jesus explica que não se trata de repetir umarealidade terrena, como é o parto, mas de participar de algo superior: “Amém,amém te digo: se alguém não nascer de água e Espírito, não poderá entrarno Reino de Deus”. O leitor — cristão instruído ou em vias de instrução —sabe de que se trata: “água e Espírito” assinalam o batismo cristão e a vidana comunidade dos que crêem em Jesus. É isso que falta a Nicodemos. MasNicodemos não pode saber isso: ele não conhece o “ponto de vista pascal”(cf. 2,22) do leitor cristão... Temos aqui um exemplo da linguagem “iniciática”(>Intr. § 2.1.7) do Quarto Evangelho. A explicação que vai ser dada aNicodemos serve também para nós. Fazendo Jesus falar a Nicodemos, oevangelista se dirige ao cristão que ainda não entendeu bem a radicalidadeda fé em Jesus.

O novo nascimento do batismo

O jogo de palavras de João (“de novo/do alto”) parece querer explicar aoscatecúmenos o que é, radicalmente, aquilo que na catequese cristã era co-nhecido como novo nascimento, palingenesia. Esse termo, que fazia parteda cultura ambiente das comunidades cristãs, tem origem na linguagem dos“mistérios” helenísticos. A possível confusão com esses mistérios pode seruma razão por que João não apenas evita o termo (>com. Jo 9,6-7), masexplica aqui o sentido cristocêntrico. João substitui o termo pálin, que sig-nifica simplesmente “de novo”, por anôthen, que significa ao mesmo tempo“de novo” e “do alto”. Não só para Nicodemos, mas para qualquer cristão,o “banho do novo nascimento”, como era chamado o batismo (cf. Tt 3,5),significa mais do que um rito de entrada numa nova religião. Significa umsalto qualitativo para uma realidade de nível superior, não mais “carne”,mas “Espírito” (cf. Jo 3,7-8).

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Hoje muita gente quer fazer a experiência de um renascer, de um novo nas-cimento. Deixar as drogas, mudar de religião são experiências nesse sentido.Podem até ser benfazejas. Mas não representam o salto qualitativo e a adesãoespecífica a Jesus Cristo que é o nascimento do alto proposto por João.

Quem nasce do Espírito passa por uma transformação radical: “O quenasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é espírito!” Carne significa arealidade humana, limitada e mortal. Quem apenas nasce da “carne” continuasendo um mero ser humano, fechado no seu egoísmo. Quem nasce do Espíritotransforma-se em pessoa impulsionada por Deus. Isso se expressa na água dobatismo cristão, mas a água ritual do batismo não basta; o Espírito é que deveser derramado sobre nós e dentro de nosso coração, levando-nos a um modode viver que nós mesmos desconhecíamos. Então é que se nasce, não “denovo”, como entendeu Nicodemos mas “do alto”! Ora, isso é perigoso!Quando sopra o Espírito, o “sopro de Deus”, a gente o ouve soprar, mas nãosabe “de onde” (>com. 2,9) vem, nem para onde vai. Pode levar a gente parabem longe!

Se lemos João num duplo quadro temporal — o de Jesus e o da comu-nidade — Nicodemos deve ser visto à luz da separação entre os cristãos ea sinagoga judaica nos anos 90. Nascer da água e do Espírito significa paraele aderir à comunidade de Jesus, deixar de ser fariseu e dignitário judeu,cortar os laços com os seus... É muita coisa para alguém que, medroso,procura Jesus durante a noite. Vai ficar sem nada, despojado qual criançarecém-nascida. Por isso, os que se assemelham a Nicodemos escondem suafé (Jo 12,42). Podemos aplicar isso a nós mesmos. Também para nós, hoje,receber o Espírito simbolizado pela água do batismo significa uma radicalmudança de vida; devemos optar, por exemplo, por dedicar-nos aos exclu-ídos da sociedade em vez de querer estar na crista da onda. “Assim se dátambém com todo o que nasceu do Espírito”!

Quem não conhece a experiência da comunidade de Jesus não entendeisso. Nicodemos pergunta: “Como é possível isso?” Com fina ironia, Jesuslhe pergunta se acaso ele não é “mestre em Israel”, professor de religião paraos judeus! E usando o plural, como que representando a comunidade cristã,continua: “Nós falamos do que compreendemos e damos testemunho do quevimos”. Os cristãos viram o Pai em Jesus (1,14; 14,9; 1Jo 1,1-3), mas osjudeus representados por Nicodemos não aceitam esse testemunho. Nãoadianta falar-lhes das coisas “do céu” (= de Deus), se nem entendem ascoisas da terra (= aquilo que se pode ver com os próprios olhos, inclusiveem Jesus; ou aquilo que falam os mestres da terra, daqui em baixo). Mc

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4,11-12 diz que os ouvintes não entendiam o sentido das parábolas, imagenstomadas da terra para explicar o Reinado de Deus: é a ininteligência, a“dureza do coração” (= paquidermia mental) apontada por Is 46,12; Ez 2,4;Sl 95,8. Ora, apesar da inutilidade para os mestres cegos, mas tendo em vistaos verdadeiros destinatários do evangelho, os iniciandos e iniciados da co-munidade cristã, João deixa Jesus falar de coisas que não são dessa terra,mas “do céu”, do âmbito de Deus. Jesus vai explicar como Deus age (cf. asparábolas do Reino nos sinópticos).

Talvez aludindo aos temas apocalíptico-sapienciais (os reveladores celes-tes, como Henoc etc., ou a procura extraterrestre da sabedoria de Deus, a quealudem textos como Pr 30,1-6; Br 3,15.29-31; Sb 9,16-18, sem esquecer Dt30,11-14), João leva à tona o tema do Filho do Homem (>com. 1,51). Este,e só ele, pode falar coisas do céu, pois ele pertence ao “céu”, a Deus. Eledesce de junto de Deus, da sua intimidade (cf. 1,1.18; cf. 17,5). Ele subiu aocéu definitivamente (tempo perfeito, com efeito no presente).

Mas, se esse Filho do Homem é Jesus, o crucificado, como se pode dizerque ele é do alto? Exatamente porque sua cruz é o seu “en-altecimento”. As“coisas do céu” que Jesus dá a conhecer não são outras coisas senão opróprio enaltecimento, que mostra o agir de Deus. Jesus vai ser “en-altecido”em sinal de salvação, como a serpente de bronze levantada num estandartepor Moisés (Nm 21,8), prefigurando o estandarte da cruz (“enaltecimento”,>exc. 12,34). Os que olhavam para a serpente levantada por Moisés eramcurados (Nm 21,9; Sb 16,5-6 destacam o agir salvífico de Deus nesse epi-sódio). Os que dirigem com fé o olhar para Jesus enaltecido na cruz (19,37)têm “vida eterna” (>exc. 11,27).

No seu enaltecimento, Jesus revela-se sabedoria que desce de junto deDeus (cf. 1Cor 2,6-9). O lugar do Filho do Homem é o âmbito de Deus, o céu,a glória (cf. Jo 17,5; 6,62; cf. Dn 7,13-14); daí, ele desce; mas a descida doFilho do Homem e sua subida pertencem a uma mesma realidade “do céu”. Arevelação trazida por esse revelador é o escândalo da cruz, aquilo que aconteceà sua própria pessoa. Só se assimilar esse escandaloso “enaltecimento” deJesus (cf. 6,62!), Nicodemos poderá realmente nascer do alto e participar da“vida eterna” — novo nome do “reino de Deus” (cf. vv. 3.5).

III. O dom de Deus (3,16-21)

Nos vv. 16-21 não fica claro se Jesus é quem continua a falar ou, maisprovavelmente, o evangelista (dirigindo-se diretamente ao leitor, em off,>Intr. § 2.1.5). Dá no mesmo, pois o Jesus do Quarto Evangelho fala por sua

13-15

16-17

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comunidade. Os vv. 16-21 comentam os vv. 14-15. Aprofundando a interpre-tação salvífica do episódio da serpente de bronze, o v. 16 (“Pois de tal modo…”)parece retomar o v. 14 (“Assim como…”). Há, porém, uma novidade: passan-do do “Filho do Homem” para o “Filho” (cf., em ordem inversa, 5,25-27), oevangelista nos mostra a raiz profunda do mistério que está sendo evocado.Deus nos amou tanto que nos deu seu “filho unigênito” (>Intr. § 5.1:3).

O termo “unigênito” (cf. 1,18), que pode ser traduzido mais familiarmen-te por “único”, significa “imensamente querido”, como foi Isaac para Abraão(que, de fato, teve outros filhos, com a escrava; cf. Gn 16,4). Em Gn 22,16,Abraão é louvado por não poupar “seu único filho” (yahid, o que o gregotraduz por “querido”). Deus deu seu filho imensamente querido para nossalvar. Não o enviou para nos julgar e condenar (atribuição típica do Filhodo Homem no tempo do NT, cf. o Livro de Henoc), mas para nos salvar.

“Deus deu seu Filho...”: o verbo usado não é “entregou”, mas “doou”!Deus não enviou Jesus especificamente para sofrer, não o entregou paraque pagasse com seu sangue os nossos pecados. Deus não é um sanguiná-rio que quer ser pago com sangue. A verdade é que Jesus é um “dom“ deDeus para manifestar seu amor e sua graça. Decerto, isso o levará a ser fielaté a morte, quando tiver de enfrentar a oposição mortal, mas quem quis essamorte não foi Deus, e sim os homens. Deus e Jesus só quiseram mostraramor e fidelidade (cf. 1,14).

O v. 18 aprofunda o verbo “julgar/condenar” do v. 17. Quem aceita essedom, quem na fé adere a Jesus não é condenado por ele. Mas quem não crêjá se condenou a si mesmo. Isso, se realmente conheceu Jesus. Hoje hámuitos que, apesar da presença da Igreja no mundo inteiro, nunca ouviramfalar de Jesus numa maneira que os atingisse! Não é a estes que visa acondenação da incredulidade, mas àqueles que percebem o valor vital deJesus e nem mesmo assim o querem aceitar.

Não “acreditam no nome do unigênito Filho de Deus”: João não estáfalando a quem nunca ouviu falar de Jesus, mas a quem já conhece a mensa-gem cristã. “Vocês engajam sua vida por esse Jesus que vocês conheceramcomo dom de amor de Deus?”, essa é a pergunta que o texto lança ao leitor/ouvinte (cf. 6,67-68). Para quem despreza esse dom, a vinda de Jesus aomundo como luz significa julgamento (cf. 9,41; >exc. 12,34). Tais fogem daluz como baratas! Preferem ficar nas trevas, porque cometem coisas que nãoagüentam a luz. Mas quem “pratica a verdade” e age com lealdade em rela-ção a Deus e aos irmãos, esse aproxima-se da luz que é Jesus. Suas obras são“feitas em Deus”, sua prática é solidária com a obra de Deus, e isso merece

18-21

2,23–3,21

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ser manifestado, exposto à luz que é o próprio Jesus. (“Praticar a verdade”significa agir segundo a verdade, o reto proceder que Deus, de diversas ma-neiras, nos dá a conhecer, especialmente na própria prática de Jesus.)

Nascer do alto. Nicodemos tem de nascer de novo já sendo velho. Temde se libertar de seu status de fariseu e chefe dos judeus. Em primeirolugar, interiormente. E algum dia, talvez, exteriormente, quando aopção por Jesus o exigir. Embora produzido pelo Espírito, será umnovo nascimento em termos sociológicos e materiais — Nicodemosfará parte de uma comunidade excluída, ostracizada. Será que Joãoaponta para esse momento quando mostra Nicodemos assumindo osepultamento de Jesus (cf. 19,38-42)?

Nascer de novo da água e do Espírito. Não basta a água. Há muitoscristãos “batizados na água” que nunca nasceram de novo. Nuncadeixaram de ser meramente carne, nunca se tornaram Espírito. Nuncase deixaram mover por aquele vento perigoso. Pois quem só é cristãopor nascimento e educação está tão por fora quanto Nicodemos. NaAmérica Latina “cristã” de hoje, quem é cristão sem opção pessoalestá na situação de “os judeus” do tempo da comunidade joanina.Estar registrado como cristão não dispensa o novo nascimento, coma radical transformação interna e externa, inclusive cultural e socio-lógica, que ele implica.

Nascer de novo não é simples. E não basta uma vez. O novo nasci-mento nunca é coisa definitivamente adquirida. A leitura “iniciática”do Quarto Evangelho pode enganar-nos nesse ponto: poderíamospensar que João escreve isso só para a primeira iniciação. Ora, o queassumimos na (primeira) iniciação deve continuamente ser atualiza-do. Nosso “batismo” — sinal da iniciação assumida — deve ser con-tinuamente renovado. Por isso renovamos, na noite pascal, o compro-misso batismal, à luz do “enaltecimento” de Cristo. Mas não basta arenovação ritual, a atualização deve acontecer na prática de nossavida. Cada dia deve ser um novo “nascer do alto”. O foco centraldeste texto não é o batismo nem a comunidade confessional, mas a luzque é a palavra de Cristo, à qual expomos a prática de nossa vida.“Praticar a verdade” é que nos faz participar da vida definitiva queo dom do Filho do Homem propicia.

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Na Judéia, Jesus batiza, João testemunha (3,22-36)

I — 22Depois disso, Jesus e seus discípulos foram para a região da Judéia.Ele permanecia lá com eles e batizava. 23João também estava batizan-do, em Enon, perto de Salim, onde havia muita água. As pessoas iamlá para serem batizadas. 24João ainda não tinha sido jogado na prisão.25Surgiu então, da parte dos discípulos de João e um judeu, umadiscussão a respeito da purificação. 26Eles foram falar com João:“Mestre, aquele que estava contigo do outro lado do Jordão, e dequem tu deste testemunho, está batizando, e todos vão a ele”. 27Joãorespondeu: “Ninguém pode receber coisa alguma, se não lhe for dadado céu. 28Vós mesmos sois testemunhas daquilo que eu disse: ‘Eu nãosou o Cristo, mas fui enviado à sua frente’. 29Quem recebe a noiva éo noivo, mas o amigo do noivo, que está aí e o escuta, enche-se dealegria, quando ouve a voz do noivo. Essa é a minha alegria, e elaficou completa. 30É necessário que ele cresça, e que eu diminua”.

II — 31Aquele que vem do alto está acima de todos. Quem é da terrapertence à terra e fala coisas da terra. Aquele que vem do céu estáacima de todos. 32Ele dá testemunho do que viu e ouviu, mas nin-guém aceita o seu testemunho. 33Quem aceita o seu testemunho selouque Deus é verdadeiro. 34De fato, aquele que Deus enviou fala aspalavras de Deus, pois ele dá o espírito sem medida. 35O Pai amao Filho e entregou tudo em suas mãos. 36Aquele que crê no Filho temvida eterna. Aquele, porém, que se recusa a crer no Filho não veráa vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.

Mais uma vez a expressão “depois disso” (cf. 2,12) abre um novo epi-sódio. O momento temporal não é especificado, mas a geografia é precisa:a região (= o interior) da Judéia. Os personagens são João Batista e seusdiscípulos, Jesus e seus discípulos, e um “judeu”. Não há texto paralelo nosoutros evangelhos, mas no v. 24 aparece uma alusão que supõe conhecida atradição sinóptica a respeito de João Batista.

A partir do v. 31, como no v. 16 acima, quem toma a palavra parece sero próprio evangelista, tecendo um comentário teológico às palavras do Ba-tista e do próprio Jesus.

I. O amigo do esposo (3,22-30)

Depois da “catequese batismal” ministrada a Nicodemos, Jesus percorrea região da Judéia, batizando (cf., porém, 4,2), acompanhado dos discípulos.

22-24

3,22-36

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Na mesma época, João Batista exerce sua atividade batismal a certa distân-cia, em Enon, perto de Salim (na Samaria? na Decápole?). Aí há muita água,pois João é aquele que batiza com água (1,26.33). Isso, antes de ser jogadono cárcere por Herodes Antipas (o evangelista supõe que o leitor conheça ahistória contada nos sinópticos, Mc 6,17-29 par.).

A história narra um novo testemunho de João Batista no quadro de umadiscussão com o judaísmo, portanto, no mesmo quadro da “catequese” ini-ciada no diálogo com Nicodemos. Os discípulos de João (representando umgrupo minoritário dentro do judaísmo) e algum “judeu” (adepto do judaísmodominante) se envolvem numa discussão sobre “purificação” (equivalente a“batismo”, na terminologia judaica). Talvez interpretassem a atividade batismalde Jesus como sinal de missão escatológica, messiânica. Os profetas falamdo batismo ou purificação com “espírito” (cf. Jl 3,1; Is 32,15; 44,3; Ez39,29) e mesmo com fogo (cf. Is 1,25; 4,4 etc.). Mt 3,8 par. mostra que issose esperava também para o tempo do Messias. Quem batiza legitimamente,Jesus ou João? Qual dos dois é o enviado escatológico (cf. Jo 1,19-27)? Emqual deles acreditar? João começou a batizar primeiro, mas Jesus está ga-nhando muitos adeptos: todos vão a ele (cf. 12,19).

João responde que sua missão não lhe pertence como propriedade pes-soal. É dom de Deus. E lembra que ele mesmo se apresentou como sendoapenas o mensageiro do Messias; os próprios entrevistadores foram testemu-nhas disso (cf. 1,19-18). João não é o esposo escatológico (cf. 2,10). Ele éapenas o amigo do esposo, e sua alegria se realiza quando percebe a “voz”do esposo que recebe a sua amada (cf. o texto escatológico de Jr 33,10-11).João é como a lua, que perde seu brilho quando o sol cresce na abóbadaceleste (v. 30).

O foco desta história não é, portanto, comparar o batismo de João como de Jesus. Decerto, Jesus não apenas se deixou batizar pelo Batista, mastambém partilhou com ele o rico simbolismo do batismo (como recebeudiscípulos dele, cf. 1,35-36). Contudo, a questão aqui não é a comparaçãodos dois batismos, para ver qual vale mais. A questão é que João e seubatismo pertencem ao passado, conforme o testemunho do próprio João.Chegou agora aquele que é do alto e que tem o Espírito sem medida.

II. O Enviado do alto (3,31-36)

Nos vv. 31-36, novamente (como nos vv. 16-21), o evangelista faz umcomentário dirigindo-se diretamente ao leitor, em off. Explica a diferençaentre Jesus e os enviados “inferiores”, como foi João. Estes são da terra,humanos, e nada mais. Jesus é aquele que vem “do alto”, de junto de Deus

27-30

25-26

31-33

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(vv. 31, cf. 3,13). Está acima de todos. Os outros podem falar coisas huma-nas, Jesus tem palavras divinas; “dá testemunho daquilo que viu” junto deDeus (1,18). Ele conhece Deus por dentro, mas sua mensagem não é aceita(ver 1,10-11). Contudo, os que a recebem ratificam (“selam”), por sua fé,que Deus fala a verdade. Jesus, o Enviado de Deus, fala as palavras de Deus.No judaísmo, o enviado (de uma sinagoga para outra, ou do Sinédrio parauma comunidade) tinha valor de instituição. Representava plenamente quemo enviou, mais ou menos como um embaixador. Um bom embaixador nãofala arbitrariamente, mas transmite a mensagem do governo que representa.E a atitude tomada em relação a um embaixador é ratificada como concernindoao governo que o envia. Receber a mensagem de um “enviado” é firmar comum selo o que ela contém. Quem aceita o testemunho do enviado que é Jesusconfirma com selo “que Deus é verdadeiro”, veraz (v. 33b); ratifica quenesse testemunho se revela o Deus verdadeiro e fiel.

O enviado, Jesus, não fala suas próprias palavras, mas as de Deus. Deusfala por meio dele. “Pois não é de modo comedido que ele dá o Espírito”,acrescenta o v. 34b. Isso pode significar (1) que Deus, sem medida, confioua Jesus o Espírito (para que falasse a palavra de Deus, ou para que comu-nicasse o Espírito aos fiéis); ou (2) que Jesus não usa medida para comunicaro Espírito (da parte de Deus). Dá no mesmo!8

Por amá-lo e ter nele seu agrado (cf. Mc 1,11 par.), Deus deu a Je-sus plena representatividade como enviado (v. 35). E quem, na fé, adere a Jesus— quem “crê no Filho” — tem vida que supera o âmbito da carne, do tempoe do espaço: vida “da eternidade” (>com. a 11,25). Participa da comunhão devida com Deus mesmo, pois já está vivendo conforme o desejo de Deus. Essacomunhão é a realidade última e definitiva de nossa vida. Quem, ao contrário,diante da mensagem de Jesus só mostra rejeição, desse não se pode dizer, comoé dito do crente, que “não vai a juízo e já passou da morte para a vida” (5,24).Pelo contrário, o juízo (a “ira”) continua pairando sobre ele.

O “segundo testemunho” do Batista encerra a atividade simultâneade Jesus e do Batista. Doravante o Batista será mencionado somenteem flashback (5,33-35; 10,40-42). O “é preciso” do plano divino feza lua minguar diante do sol nascente (v. 30). O iniciando percebe queo que pode ter sido sua trilha de acesso a Jesus — o movimento do

34

8. Mas inclinamo-nos pela primeira interpretação: Jesus é qualitativamente superior aos pro-fetas do AT, pois sobre esses o Espírito descia “comedidamente” (cf. Nm 11,25: “não continua-ram”), enquanto Jesus tem o Espírito ilimitadamente (“permaneceu sobre ele”, Jo 1,32).

35-36

3,22-36

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Batista — pertence ao passado. O que houve de positivo na comuni-dade do Batista (ou em qualquer outra via de acesso a Jesus) estáagora assumido, assimilado na comunidade de Jesus, pois aí está oEspírito que lhe é dado ou que ele dá sem medida.

Os “judeus” se opuseram ao Messias, enquanto o Batista se alegroucom sua chegada, mas tanto o judaísmo dominante como a comunidadedo Batista eram instituições provisórias. Num certo sentido, isso valetambém a respeito do cristianismo no qual crescemos. A instituição nomáximo nos conduz até o Messias, mas não pode aderir a ele em nossolugar. A verdadeira comunidade é a dos que optaram por Jesus.

A nós mesmos compete expor-nos à luz que o Filho do Homem projetasobre nossa práxis, sabendo que esse Filho do Homem é o Filhoamado, dom de amor do Pai, superior a tudo o que conhecemos emnossa vida empírica, portador plenipotenciário de sua verdade e deseu Espírito. Será que, sem amarras ao já adquirido, vamos con-fiar-nos, na fé, a esse Enviado?

Na Samaria, Jesus e a samaritana (4,1-42)

I — 4 1Foi quando Jesus soube que os fariseus ouviram dizer que elereunia mais discípulos e batizava mais do que João 2(se bem queJesus mesmo não batizasse, mas os seus discípulos). 3Jesus entãosaiu da Judéia e voltou para a Galiléia.4Era preciso que ele passasse pela Samaria. 5Chegou, pois, a umacidade da Samaria, chamada Sicar, perto da propriedade que Jacótinha dado a seu filho José. 6Havia ali a fonte de Jacó. Jesus, can-sado da viagem, sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta.7Veio uma mulher da Samaria buscar água. Jesus lhe disse: “Dá-mede beber!” 8Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algopara comer. 9A samaritana disse a Jesus: “Como é que tu, sendojudeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” Defato, os judeus não se relacionam com os samaritanos. 10Jesus res-pondeu: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz:‘Dá-me de beber’, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. 11Amulher disse: “Senhor, não tens sequer um balde, e o poço é fundo;de onde tens essa água viva? 12Serás maior que nosso pai Jacó, quenos deu este poço, do qual bebeu ele mesmo, como também seus

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filhos e seus animais?” 13Jesus respondeu: “Todo o que bebe dessaágua, terá sede de novo; 14mas quem beber da água que eu darei,nunca mais terá sede: porque a água que eu darei se tornará neleuma fonte de água jorrando para a vida eterna”.15A mulher disse então a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, paraque eu não tenha mais sede, nem tenha de vir aqui tirar água”. 16Elelhe ordenou: “Vai chamar teu marido e volta aqui!” 17– “Eu nãotenho marido”, respondeu a mulher. Ao que Jesus retrucou: “Disses-te bem que não tens marido. 18De fato, cinco maridos tiveste, e o quetens agora não é teu marido. Nisto falaste a verdade”.19A mulher lhe disse: “Senhor, vejo que tu és um profeta! 20Os nossospais adoraram sobre esta montanha, mas vós dizeis que em Jerusalémestá o lugar em que se deve adorar”. 21Jesus lhe respondeu: “Mulher,acredita-me: vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jeru-salém adorareis o Pai. 22Vós adorais o que não conheceis. Nós ado-ramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. 23Mas vema hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Paiem espírito e em verdade. Estes são os adoradores que o Pai procura.24Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e emverdade”. 25A mulher disse-lhe: “Eu sei que virá o Messias (isto é, oCristo); quando ele vier, nos fará conhecer todas as coisas”. 26Jesuslhe disse: “Sou eu, que estou falando contigo”.

II — 27Nisto chegaram os discípulos e ficaram admirados ao ver Jesusconversar com uma mulher. Mas ninguém perguntou: “Que procu-ras?”, nem: “Por que conversas com ela?”. 28A mulher abandonoua sua bilha e foi à cidade, dizendo às pessoas: 29“Vinde ver umhomem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?”30Saíram da cidade ao encontro de Jesus.31Enquanto isso, os discípulos insistiam com Jesus: “Rabi, come!”32Mas ele lhes disse: “Eu tenho um alimento para comer que vós nãoconheceis”. 33Os discípulos comentavam entre si: “Será que alguémlhe trouxe alguma coisa para comer?” 34Jesus lhes disse: “O meualimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar plena-mente sua obra. 35Não dizeis vós: ‘Ainda quatro meses, e aí vem acolheita!’ Pois eu vos digo: levantai os olhos e vede os campos,como estão dourados, prontos para a colheita! 36Aquele que colhe járecebe o salário; ele ajunta fruto para a vida eterna. Assim, o quesemeia se alegra junto com o que colhe. 37Pois nisto está certo oprovérbio ‘Um é o que semeia e outro é o que colhe’: 38eu vos enviei

4,1-42

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para colher o que não é fruto do vosso cansaço; outros se cansarame vós colheis o fruto do seu cansaço”.

III — 39Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus por causada palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eufiz”. 40Os samaritanos foram a ele e pediram que permanecesse comeles; e ele permaneceu lá dois dias. 41Muitos outros ainda creram porcausa de sua palavra. 42E até disseram à mulher: “Já não é por causadaquilo que contaste que cremos, pois nós mesmos ouvimos e sabemosque este é verdadeiramente o Salvador do mundo”.

Depois da evocação da novidade cristã no contexto do judaísmo rabínico-farisaico (Nicodemos) e no contexto do “judaísmo joanita” (de João Batista),a apresentação do dom de Deus em Jesus se desloca para o contexto dascomunidades samaritanas.

Um novo momento (“quando Jesus soube”) abre o episódio seguinte,situado na Samaria (os vv. 1-3 são uma transição). Este episódio não refletea tradição sinóptica. Possivelmente revela o interesse específico do evange-lho joanino pelos samaritanos, talvez por causa das primeiras comunidadescristãs fundadas ali, sobretudo se existir alguma relação entre o Quarto Evan-gelho e o apóstolo João, filho de Zebedeu (>Intr. § 2.3.2), que, em At 8,14-25, é mencionado como “visitador apostólico” dessas comunidades.

O episódio se divide em três momentos:

I. Jesus e a samaritana junto do poço de Jacó (4,1-26);II. Jesus e os discípulos (4,27-38);

III. Jesus e os samaritanos, que passam a crer nele (4,39-42).

I. Jesus e a samaritana (4,1-26)

De maneira típica, acentuando o conhecimento e domínio que Jesus temde seu destino, o autor anota que Jesus sabe da preocupação dos fariseus arespeito de seu sucesso, que supera o do Batista (ver 3,25-26). Reconhece-mos por trás disso a situação da comunidade cristã, muito mais “intragável”para o judaísmo dominante que o grupo do Batista, que não põe em xequeseus conceitos nem confessa Jesus como “filho de Deus” (cf. 5,18; 10,30;>Intr. § 3.2.3:5). Conhecendo o zelo dos fariseus e achando que é muito cedopara provocar o conflito decisivo, Jesus se retira para a Galiléia9.

1-3

9. O v. 2 corrige o v. 1, dizendo que Jesus não batizou pessoalmente. Na redação final doQuarto Evangelho notamos certa harmonização com a tradição sinóptica, que não menciona ativi-dade batismal alguma do próprio Jesus.

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“Era preciso que ele passasse pela Samaria”: a expressão “era preciso”é típica para indicar o plano do Pai na atuação de Jesus (cf. Mc 8,31 par.).Jesus passa através da Samaria por causa de sua missão, não por necessidadedo trajeto, pois poderia seguir pela outra margem do Jordão (como parece sero caso em Mc 10,1: “além do Jordão”, passando por fora da Samaria). Joãoinsiste que Jesus, embora judeu (4,9.22!), não evita os samaritanos; ele atéchegará a ser identificado com os samaritanos (8,48).

Assim, chega perto da cidade de Sicar, onde fica o sítio que o patriarcaJacó deu a seu filho José e que serviu de cemitério para as famílias dospatriarcas (Gn 33,19; 48,22; Js 24,32). Sendo perto do meio-dia (lit.: “a horasexta”), com o sol a pino, Jesus descansa à beira do poço, que o evangelistachama a “fonte de Jacó”. Os dois termos, “fonte” e “poço” alternam, comoem Gn 24 (poço de Nacar), que parece ter influenciado bastante Jo 4. Masa dupla terminologia pode ser intencional, pois se trata de um poço não deágua parada, mas com uma mina de água corrente no fundo: daí a confusãoem torno da “água viva”, v. 10. O poço de Jacó remete especificamente a Gn29,1-14: foi aí que Jacó encontrou seu grande amor, Raquel. E o ouvintecertamente se lembrará do louvor ao poço de Moisés no deserto, Nm 21,16-18 (quanto ao simbolismo da água, >com. v. 14-15).

Chega uma mulher da cidade vizinha, Sicar, para tirar água do poço. Elaé três vezes o oposto do “catecúmeno” anterior, Nicodemos (3,1). Este erahomem, chefe dos judeus, fariseu; ela é mulher, samaritana e de vida poucoexemplar (cf. v. 18). E se Nicodemos veio de noite (3,2), a samaritana vemem pleno dia (a “hora sexta”, meio-dia).

Jesus lhe pede de beber. Como os discípulos foram à cidade compraralimentos, Jesus e a mulher ficam a sós, e ela admira que um homem judeupeça de beber a uma mulher samaritana; pois judeus e samaritanos evitavamqualquer coisa em comum, e homem que se preze evita falar a sós com umamulher que não é a sua — ainda mais uma mulher com esse currículo! Jesusrompe duas barreiras, a religiosa e a social-sexista. Faz pensar em Gl 3,28:“Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher”: a dis-criminação dessas categorias desaparece na hora do Messias.

Com a resposta de Jesus no v. 10, inicia-se um “diálogo de revelação”,semelhante ao diálogo com Nicodemos, “iniciático” e inacessível aos não-iniciados. O leitor, devidamente catequizado, sabe de que se trata, mas asamaritana não. No nível da narrativa, Jesus fala à mulher, mas no nível dacomunidade é o “Jesus eclesial” que se dirige aos que precisam ser iniciadosno seu mistério. À observação da mulher, Jesus responde, misteriosamente:

4

5-6

7-9

10-15

4,1-42

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“Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: ‘Dá-me debeber’, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”.

A mulher entende por “água viva” a água corrente da mina no fundo dopoço: “Senhor, não tens sequer um balde, e o poço é fundo; de onde tens essaágua viva?” O “de onde?” remete para a mesma realidade sugerida em 2,9:aquilo que vem “do alto” (ver 2,9; 3,3.7). A samaritana achava o poço deJacó o máximo; o “pai Jacó” era muito importante para os samaritanos, quecostumavam indicar-se a si mesmos com o nome de Jacó-Israel. Será Jesusmaior que Jacó, o patriarca dos samaritanos, que deu esse poço à sua gentee dele bebeu, como também dele beberam seus filhos e seus animais?

O iniciado — cristão instruído — sabe que Jesus é maior que Jacó! Esabe também que a “água viva” não é a água da mina no fundo do poço, masa água do batismo e tudo o que o batismo significa. A samaritana não sabe.Como Nicodemos, ela representa os que estão sendo instruídos. Jesus con-tinua a iniciação: “Todo o que bebe dessa água, terá sede de novo; mas quembeber da água que eu darei, nunca mais terá sede”.

Para entender a fineza da resposta de Jesus é bom saber que, no simbo-lismo do AT, a água profunda (Pr 18,4; 20,5), a água viva (Sr 21,13; 24,23-34), representa a Sabedoria e a Lei (cf. também Pr 13,14; 16,22; Br 3,12; Sr24,21; Is 55,1). Mas o símbolo da água pode significar também o Espíritode Deus (Is 32,15; 44,3; Jl 2,28; Ez 36,25-27). É assim que o interpreta Jo7,39 (>com.). Esses dois simbolismos parecem convergir aqui, como emoutros textos de João e da catequese batismal dos primeiros cristãos. Ora, aSabedoria deixa a gente com sede (Sr 24,21), mas Jesus não: “A água queeu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (cf.6,35). Jesus é mais que Jacó, mais que a Sabedoria dos livros bíblicos. Acomunhão com Jesus, simbolizada pela água do batismo, é uma fonte devida que não estanca e que nos comunica o Espírito (cf. Jo 7,37-39).

Mas a samaritana ainda não entende. Quer receber a água que Jesus lheoferece, porém, por razões bem materialistas: para não precisar mais tirarágua do poço!

Conhecendo-lhe a miséria espiritual, e com o intuito de conscientizá-la, Jesus manda-a chamar seu marido. Encabulada, ela responde que nãotem marido. E, qual profeta, de visão aguda e palavra provocante, Jesusendossa: “Bem disseste que não tens marido, pois cinco tiveste, e o quetens agora não é teu marido”. O acento, na resposta de Jesus, está antes detudo no seu conhecimento do ser humano, como em 1,48 (cf. 2,25), outalvez na denúncia profética da idolatria. Pois suspeita-se aqui uma alusãoao sincretismo samaritano, o culto aos ídolos misturado com o culto ao

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Deus de Israel, como aconteceu nos “cinco povos” da Samaria, conforme2Rs 17,27-33. Pois “marido”, bà‘al — cinco vezes repetido aqui (vv. 16-18)—, era o nome que os cananeus davam a seus ídolos. Se essa hipótese estivercerta, poderíamos concluir que o sincretismo não torna os samaritanos indig-nos do evangelho, que se dirige tanto aos sincretistas quanto aos ortodoxos(cf. vv. 21-24).

A mulher reconhece em Jesus um profeta, alguém que vê com os olhosde Deus e fala do seu ponto de vista. Por isso, começa logo a falar dereligião (como faz o malandro que percebe que seu vizinho no ônibus épadre...). Pergunta quem está certo, os judeus, que adoram Deus no templode Jerusalém, ou os samaritanos, que o adoram no monte Garizim. O monteGarizim se enxerga do lugar onde Jesus se encontra. Existia aí, 150 anosantes, um templo, que foi destruído pelos judeus (pelo rei hasmoneu JoãoHircano, em 128 aC). Juntamente com o poço de Jacó, o monte Garizim éum dos principais símbolos da comunidade samaritana.

Jesus responde que essa briga já não tem vez: “Vem a hora em que hãode adorar o Pai nem nesta montanha, nem em Jerusalém”. Pois o verdadeirolugar de encontro com Deus não é o templo de Jerusalém, nem o do Garizim,nem qualquer outro, mas Jesus mesmo (veja 1,14; 2,21; e 7,37-39: ele osantuário do qual brota a água viva do Espírito). Com uma alusão à idolatria(“deuses que não conheceis”, Dt 13,7), Jesus afirma que a salvação tem suasraízes no judaísmo: na Lei e nos Profetas, na casa de Davi e no monte Sião(Is 2,3). Mas agora vem uma nova realidade. Uma vez cumprida a vocaçãodo judaísmo, prolongar o “judeucentrismo” seria uma discriminação semrazão de ser. Diante do culto a Deus que se realiza na pessoa de Jesus, tantoa ortodoxia judaica como a “heresia” samaritana se transformam em merasvias de acesso (e o mesmo deve-se dizer do cristianismo enquanto religiãosociológica). “Vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradoresadorarão o Pai em espírito e verdade”, isto é, movidos pelo sopro de Deusque é o Espírito (cf. 14,16) e fiéis à manifestação de Deus em Cristo, queé a verdade (cf. 1,14).

“Deus é espírito”: entenda-se essa expressão no sentido de Deus ser ocontrário da “carne”. “Carne” é o âmbito humano, limitado no tempo e noespaço, e em muitas outras coisas. Não sendo “carne”, Deus não está con-dicionado por brigas nacionalistas ou religiosas. Está acima dos escusosinteresses humanos, acima dos partidarismos. É preciso adorá-lo “em espí-rito” (>Voc.). E também “em verdade” (>exc. 18,37). “Verdade” exprimeaqui a relação de lealdade e fidelidade para com a verdade fontal, que é amanifestação de Deus em Jesus como “amor até o fim” (ver 13,1). A expres-

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são “adorar Deus em espírito e verdade” não significa, pois, um culto “me-ramente espiritual”, nas nuvens, mas implica a vida conforme à verdade queDeus manifesta em Jesus, a prática do amor fraterno, como bem explica 1Jo3,17; 4,7. (O mesmo se diga do culto “racional” de Rm 12,1 ou “espiritual”de 1Pd 2,5. Observou-se que o “em espírito e verdade” em João significa,quanto ao conteúdo, a mesmo coisa que o “em Cristo” de Paulo.)

Embora não entenda tudo isso, a mulher se candidata a participar desseculto verdadeiro. Diz que está esperando o Messias (= Cristo), que deve vir aomundo e que será um Profeta que fará conhecer (lit. “anunciará”) todas ascoisas, esperadas e inesperadas. João resume aqui muito bem a forma samaritanada expectativa messiânica: os samaritanos não esperavam um messias descen-dente de Davi, já que se separaram da casa de Davi (1Rs 12,16), mas umprofeta como foram suas figuras mais queridas, Moisés e Elias. InterpretavamDt 18,15 (“um profeta como eu”) como anúncio de um Messias-Profeta. Dian-te dessa confissão de esperança messiânica da mulher, Jesus declara: “Sou eu,que estou falando contigo”. (Falar é próprio do profeta.)

Nisto se esconde uma lição para nós. A esperança não precisa ter exata-mente a mesma forma em todos os povos, e certamente não a forma daesperança concebida por nossa cultura ocidental. Jesus corresponde ao dese-jo mais profundo da humanidade em todas as suas formas.

II. Jesus e os discípulos (4,27-38)

A conversa é interrompida pela chegada dos discípulos que voltam dacidade. Não pedem explicações a Jesus por estar conversando com asamaritana, mas ficam com ciúmes (como aparece também no v. 33!). Amulher vai embora, abandonando o balde: encontrou água melhor que a dopoço! O balde ficou tão supérfluo quanto as talhas das purificações dosjudeus em Jo 2,6: também o culto samaritano pertence ao passado diante denova oferta.

A mulher vai contar aos habitantes da cidade que talvez “esse homem”seja o profeta que sabe tudo, o Cristo. Imediatamente, o pessoal sai da cidadepara ver Jesus. Lembramo-nos do profeta da Samaria, Oséias, que tomou pormulher uma prostituta, dada ao culto idolátrico. Chamou seus filhos “Não-Amada” e “Não-Meu-Povo”, mas sua pregação consistiu em anunciar a volta;“Dizei aos vossos irmãos: Ami, meu povo; e às vossas irmãs: Ruhamá, bem-amada” (Os 2,3). É o que está se cumprindo.

Entretanto, junto ao poço, Jesus conversa com os discípulos. Oferecem-lhecomida, mas ele observa: “Tenho um alimento para comer que vós não con-heceis”. Como a mulher e como Nicodemos, também os discípulos não enten-

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dem a linguagem de Jesus; também eles devem ainda “aprender o catecismo”.Pensam que alguém — essa samaritana? — lhe ofereceu algo de comer.

Jesus explica: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me envioue levar a termo a sua obra”. E qual é a vontade do Pai? A missão escatológica(“levar a termo”, v. 34). Esta missão está na fase madura. “Não dizeis vós:‘Ainda quatro meses, e aí vem a colheita!’ Pois eu vos digo: levantai osolhos e vede os campos, como estão dourados, prontos para a colheita!” Otempo final está aí! Os profetas tinham anunciado com essa imagem o tempoda conversão. Para Oséias, Samaria é a semeadura da nova Aliança (Os2,25). Para o outro profeta de Samaria, Amós, no tempo do Fim o ceifadorapertará os passos do semeador (Am 9,13 — o mesmo texto ao qual aludeo vinho de Caná). É o que está acontecendo: “Aquele que semeia e aqueleque recolhe celebram juntos”.

Além de expressar a presença escatológica (imagem da colheita), esta frasedá a entender que o semeador e o ceifador, embora próximos um do outro, nãosão a mesma pessoa. Confirma-se o provérbio: “Um é que semeia, outro o querecolhe.” Os ceifadores são os apóstolos, mas Jesus os manda recolher numcampo onde outros “se cansaram” de semear. Quem foi que semeou? Osprofetas antes deles? João Batista, que batizou na Samaria (cf. 3,23)? Outrosevangelizadores, que prepararam o chão entre os samaritanos, no tempo deJesus ou no tempo dos apóstolos (p. ex., o “evangelista” Filipe, ativo naSamaria, cf. At 8,5)? Ou talvez Jesus mesmo, o “cansado” do v. 6, cujotrabalho é a obra do Pai, que logo vai dar fruto nas mãos dos discípulos?10

Embora real, a distinção entre semeador e ceifador, entre quem se cansoue quem não se cansou, já não conta. O campo de Deus não é propriedadeprivada de quem semeia. Aquele que semeia, os que se cansaram e os quesem cansaço recolhem se alegram juntos: eis a realidade do tempo final (cf.a parábola dos operários na vinha, Mt 20,1-16).

III. Jesus e os samaritanos (4,39-42)

A câmera se volta para os samaritanos que estão chegando da cidade parafalar com Jesus. Pedem a Jesus que “permaneça” com eles, e ele aceita. A“morada” de Deus que é Jesus fica no meio dos samaritanos (cf. 1,14)! Elesescutam com alegria sua mensagem. Antes haviam acreditado que Jesustalvez fosse o Profeta por causa do relato da mulher, mas agora dizem: “Nós

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10. Esta interpretação corresponde melhor ao triplo paralelismo do v. 37b (lit.: [A] outro équem semeia [B] e outro quem ceifa) — 38a ([A] eu enviei-vos a ceifar [B] e vós não voscansastes) — 38b ([A] outros se cansaram e [B] vós entrastes no cansaço deles).

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mesmos ouvimos e reconhecemos que este é verdadeiramente o Salvador domundo!” (cf. “que tira o pecado do mundo”, 1,29). No Evangelho de João,a primeira comunidade que acredita em Jesus é a dos samaritanos! Ora,qualificado com o título “Salvador do mundo”, o Jesus-Messias dossamaritanos supera de longe os limites do judaísmo (o Messias é o Salvadorde Israel), mas também do próprio samaritanismo. Os samaritanos são osprimeiros frutos da colheita mundial.

Jesus permanece só dois dias. É tempo de missão. O caminho continua(cf. Lc 13,32).

O episódio da Samaria suscita simpatia pela “semeadura” poucoortodoxa de Jesus, mas não deixa de ser uma história de conversão.Jesus, consciente de sua identidade judaica e da missão de Israel, nãoexclui o israelitismo marginal que é o da Samaria. Todavia, emboraaproveitando seus símbolos — o poço de Jacó, o Garizim —, declara-o tão superado quanto o judaísmo ortodoxo.

Temos hoje grande sensibilidade pelos excluídos, também pelos cultu-ral e religiosamente excluídos. Aí está nossa colheita, pronta! Talvezaté em primeiro lugar, como foi o caso dos samaritanos, “primeiracomunidade cristã”. Seu potencial é riquíssimo, mas não podemoscontentar-nos em louvar o que eles já têm, deixando de lhes oferecera verdadeira água viva, o dom de Jesus e de seu Espírito. Longe denós a falsa vergonha! Jesus não se envergonhou de ser judeu e de men-cionar a missão única de seu povo. Mas não condicionou sua mensa-gem a isso, e sim à fé dos samaritanos.

Aí talvez esteja o segredo da missão cristã. Nossa tradição é o que erao ser judeu para Jesus. É o veículo de nossos símbolos, que permitemarticular nossa mensagem. Mas no contato com o destinatário, sem-pre novo, sempre diferente, quer por pertencer a outras raízes, querpor ser de uma nova geração, nossos símbolos se unem aos dele paraarticular a mensagem que não se identifica com nenhuma cultura, porser “espírito e verdade”. Nosso vocabulário, formas e símbolos po-dem ser os da tradição cristã, a Palavra porém é espírito, ação pró-pria de Deus, não condicionado definitivamente por nosso “veículoreligioso e cultural”. A Palavra supera — graças a Deus — oparticularismo inerente a toda tradição, para se dirigir a todo aqueleque quiser escutá-la com fé.

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Na Galiléia, a fé do funcionário real (4,43-54)

I — 43Passados os dois dias, Jesus foi para a Galiléia. (44Jesus mesmotinha declarado, de fato, que um profeta não é reconhecido em suaprópria terra.) 45Quando então chegou à Galiléia, os galileus o re-ceberam, porque tinham visto tudo o que fizera em Jerusalém, porocasião da festa, pois também eles tinham ido à festa.

II — 46Jesus voltou a Caná da Galiléia, onde tinha mudado a água emvinho. Havia um funcionário do rei, cujo filho se encontrava doenteem Cafarnaum. 47Quando ouviu dizer que Jesus tinha vindo da Judéiapara a Galiléia, foi ao seu encontro e pediu-lhe que descesse atéCafarnaum para curar o seu filho, que estava à morte.48Jesus lhe disse: “Se não virdes sinais e prodígios, nunca passareisa crer”. 49O funcionário do rei disse: “Senhor, desce, antes que meufilho morra!” 50Ele respondeu: “Podes ir, teu filho vive”. O homemacreditou na palavra de Jesus e foi embora. 51Enquanto descia paraCafarnaum, os empregados foram-lhe ao encontro para dizer queseu filho vivia. 52O funcionário do rei perguntou a que horas o meninotinha melhorado. Eles responderam: “Ontem, à hora sétima, a febrepassou”. 53O pai verificou que era exatamente nessa hora que Jesuslhe tinha dito: “Teu filho vive”. Ele, então, passou a crer, juntamentecom toda a sua casa.54Este segundo sinal, Jesus o fez novamente depois de voltar daJudéia para a Galiléia.

Depois de nova indicação de tempo, o último episódio da apresenta-ção de Jesus aos candidatos à fé situa-se na Galiléia, mais exatamente emCaná (4,54; compare 2,11). Os atores são Jesus, os galileus, um funcionárioreal de Cafarnaum. Distinguimos entre (I) a notícia geral sobre a fé dosgalileus e (II) a cura do filho do funcionário.

I. A fé dos galileus (4,43-45)

Jesus continua a viagem (veja 4,3). Chega à sua terra, a Galiléia, ondeele é bem recebido pelos galileus, porque tinham presenciado em Jerusalémseus sinais prodigiosos — referência não muito favorável (cf. 2,23-25!).

Num dos seus típicos parênteses, o evangelista lembra a conhecida pala-vra de Jesus (cf. Mc 6,4 par.) dizendo que “nenhum profeta recebe honra em

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sua própria terra” (v. 44). Ainda que a interpretação dessa observação sejaproblemática, ela dá a entender que o negócio de Jesus não é fazer sucesso11.

II. A fé do funcionário real (4,45-54)

Assim como no episódio de Jerusalém (2,23–3,21) o autor isolou umpersonagem dentre os participantes da festa (Nicodemos, 3,1), assim tambémaqui ele focaliza um personagem dentre os galileus que acolheram Jesus: umbasilikós, “alguém do rei”, um funcionário ou partidário (cliente) do rei. Notempo de Jesus, o título de “rei” podia referir-se ao César de Roma, mas naperspectiva local significava comumente o tetrarca Herodes Antipas, quetinha recebido dos romanos o governo sobre a Galiléia (cf., p.ex., Mc 6,14:“o rei Herodes”). Ainda que no tempo do Quarto Evangelho já não houvesserei na Palestina, a narrativa parece ter conservado o significado antigo: al-guém ligado a Herodes. Nesse caso, a narrativa joanina não falaria de umpagão, como Mt e Lc (o “centurião” de Cafarnaum, Mt 8,5 par. Lc 8,2), masde um galileu de certa importância.

O funcionário mora em Cafarnaum, onde está seu filho, gravementedoente. Jesus, entretanto, já tinha passado de Cafarnaum para Caná, na re-gião montanhosa da Galiléia. O funcionário vai a seu encalço e pede a Jesusque desça com ele, para dar uma bênção de saúde ao filho, lá em Cafarnaum.

De imediato, Jesus conscientiza o homem de que a cura que ele pededeve servir para a pedagogia da fé: “Se não virdes sinais e prodígios, nuncapassareis a crer!” (v. 48). Jesus fala no plural: o aviso vale para todos, paraos galileus (cf. 4,45; cf. 2,23-25) e também para nós. Os “sinais” são umpasso provisório, uma necessidade pedagógica na caminhada da fé. Mas20,29 enuncia que, no fundo, o tempo dos sinais está superado.

Esta frase tem a mesma função que a observação de Jesus em 2,4: criauma distância entre aquilo que as pessoas pedem ou esperam de Jesus e oque ele vai fazer. Seu agir é soberano (>exc. 6,11), ultrapassa de longe o queseus interlocutores esperam. É de outro nível. Portanto, o que segue não deve

11. Levantamos quatro interpretações: (a) João considera Jerusalém como a verdadeira “pá-tria” de Jesus (onde está a “casa do Pai”), e então 4,43-45 significaria que não fora bem aceito emJerusalém (cf. 4,1-3), ao passo que os galileus lhe prepararam boa acolhida. (b) A frase alude aofato de que Jesus, ao voltar à Galiléia, se dirige a Cafarnaum e finalmente a Caná, preterindoNazaré, sua “pátria” conforme Mc 6,1-6 par., texto em que exatamente essa frase tem seu lugaroriginal. (c) Jesus não vai conhecer acolhida condigna à sua missão na sua região-pátria, a Galiléia.A fé dos galileus é sensacionalista. Eles recebem Jesus de bom grado, pois na romaria em Jeru-salém viram os sinais que ele fazia (4,45), num entusiasmo pouco confiável (veja 2,23-24). No cap.6, eles abandonarão Jesus. (d) Não receber honra é coisa boa para Jesus. Como está fugindo dafama que granjeou na Judéia (4,1-3), Jesus passa da Samaria para a Galiléia, pois segundo suapalavra um profeta não ganha notoriedade na própria terra.

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ser lido como uma simples cura, tampouco como Jo 2,5-10 se referia a umsimples fornecimento de vinho! (>com. 2,11).

O homem insiste em querer levar Jesus consigo. Mas Jesus acha desne-cessária tal complicação. “Podes ir, teu filho vive!” O homem acredita e vai.No meio do caminho, seus empregados vêm ao seu encontro para lhe comu-nicar que seu filhinho vive. Ele verifica que a melhora começou exatamentena hora em que Jesus disse: “Teu filho vive” (João repete o termo pelaterceira vez). Então ele adere à fé em Jesus, e toda a sua casa (= família ecriadagem) com ele. É um modelo de conversão cristã dos primeiros tempos.

Assim se deu o segundo sinal de Jesus, quando voltou da Judéia à Ga-liléia. A formulação de 4,54 (“segundo sinal… novamente”) evoca 2,11,acentuando assim o peso da Galiléia, mais especificamente de Caná, queprovavelmente foi um centro da comunidade joanina.

Chegamos ao fim daquilo que, no nível da narrativa, foi a primeiraviagem missionária de Jesus. No nível do ouvinte, foi a primeira ro-dada da iniciação cristã (ou da reevangelização). Diversos tipos depessoa, diversos acessos a Jesus, diversas situações comunitárias,com uma característica comum: por si mesmas, as pessoas não enten-dem o dom de Deus.

No centro dessa seção está Jesus, o Filho do Homem que vem do alto,e sua grande revelação será o momento em que ele for levado ao alto(3,14-16). É preciso criar abertura para isso pela superação das ex-pectativas estabelecidas, ainda que seja a expectativa do poder sobre-natural de Jesus. Fé como disponibilidade e abertura à Palavra, eiso ganho desta primeira rodada.

A OBRA DE JESUS E O CONFLITO COM O JUDAÍSMO(5,1–12,50)

Depois do primeiro ciclo de atividades nos diversos cenários da Palestina(Jo 1–4), a atuação de Jesus torna-se mais conflitiva e contestada, situando-se principalmente em Jerusalém (a não ser quanto à multiplicação dos pães,tradicionalmente ligada à Galiléia). Nos caps. 5–12, João combina os sinaisde Jesus com amplas discussões sobre sua missão, realçando o conflito coma incredulidade. Estamos numa nova fase da “catequese” joanina: Jesus nãoé mais apenas apresentado como aquele a quem se dirige a fé, mas como

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aquele que enseja um conflito e, portanto, uma opção, como se verá clara-mente no fim do cap. 6.

Todos os episódios culminam agora em conflitos, de crescente veemên-cia, com aqueles que João chama “os judeus”. Quanto à resposta do leitor/ouvinte, percebe-se que este é levado à profissão explícita da fé no nome deJesus, não obstante as pressões contrárias exercidas sobre ele. O ponto cul-minante desta parte é o desejo de crer dos “gregos” em contraste com aincredulidade dos “judeus” (12,20-36.37-50).

Jesus cura um aleijado em dia de sábado (5,1-47)

I — 5 1Depois disso, houve uma festa dos judeus, e Jesus subiu a Jeru-salém. 2Existe em Jerusalém, perto da Porta das Ovelhas, uma pis-cina com cinco pórticos, chamada Bezata em hebraico. 3Muitosdoentes, cegos, coxos e paralíticos ficavam ali deitados. [3b-4]. 5En-contrava-se ali um homem enfermo havia trinta e oito anos. 6 Jesuso viu ali deitado e, sabendo que estava assim desde muito tempo,perguntou-lhe: “Queres ficar curado?” 7O enfermo respondeu: “Se-nhor, não tenho ninguém que me leve à piscina quando a água semovimenta. Quando estou chegando, outro entra na minha frente”.8Jesus lhe disse: “Levanta-te, pega a tua maca e anda”. 9No mesmoinstante, o homem ficou curado, pegou sua maca e começou a andar.

II — Aquele dia, porém, era um sábado. 10Por isso, os judeus disseram aohomem que tinha sido curado: “É sábado. Não te é permitido car-regar a tua maca”. 11Ele respondeu: “Aquele que me curou disse:‘Pega tua maca e anda!’” 12Então lhe perguntaram: “Quem é quete disse: ‘Pega a tua maca e anda’?” 13O homem que tinha sidocurado não sabia quem era, pois Jesus se tinha afastado, porquehavia muita gente nesse lugar. 14Mais tarde, Jesus encontrou o ho-mem no templo e lhe disse: “Olha, estás curado. Não peques mais,para que não te aconteça coisa pior”.15O homem saiu e contou aos judeus que tinha sido Jesus quem o haviacurado. 16Por isso, os judeus começaram a perseguir Jesus, porquefazia tais coisas num dia de sábado. 17Jesus, porém, deu-lhes esta res-posta: “Meu Pai trabalha sempre, e eu trabalho também”. 18Por isso,os judeus ainda mais procuravam matá-lo, pois, além de violar o sába-do, chamava a Deus de Pai, fazendo-se assim igual a Deus.

III — 19Jesus então deu-lhes esta resposta: “Amém, amém, vos digo: o Fi-lho não pode fazer nada por si mesmo; ele faz apenas o que vê o Pai

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fazer. O que o Pai faz, o Filho faz também. 20O Pai ama o Filho e lhemostra tudo o que ele mesmo faz. E lhe mostrará obras maiores ainda,de modo que ficareis admirados. 21Assim como o Pai ressuscita osmortos e lhes dá a vida, o Filho também dá a vida a quem ele quer.22Na verdade, o Pai não julga ninguém, mas deu ao Filho o poder dejulgar, 23para que todos honrem o Filho assim como honram o Pai.Quem não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou.24Amém, amém, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naqueleque me enviou possui a vida eterna e não vai a juízo, mas passou damorte para a vida. 25Amém, amém, vos digo: vem a hora, e é agora,em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouviremviverão. 26Pois assim como o Pai possui a vida em si mesmo, domesmo modo concedeu ao Filho possuir a vida em si mesmo. 27Alémdisso, deu-lhe o poder de julgar, pois ele é o Filho do Homem. 28Nãofiqueis admirados com isso, pois vem a hora em que todos os queestão nos túmulos ouvirão sua voz, 29e sairão. Aqueles que fizeram obem ressuscitarão para a vida; aqueles que praticaram o mal, para acondenação. 30Eu não posso fazer nada por mim mesmo. Julgo segun-do o que eu escuto, e o meu julgamento é justo, porque procuro fazernão a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou.

IV — 31“Se eu dou testemunho em causa própria, o meu testemunho nãoé verdadeiro. 32Um outro é quem dá testemunho em minha causa, eeu sei que o testemunho que ele dá a meu favor é verdadeiro. 33Vósmandastes perguntar a João, e ele deu testemunho a favor da verda-de. 34Ora, eu não recebo testemunho da parte de uma pessoa huma-na, mas eu digo isso para a vossa salvação. 35João era a lâmpadaque iluminava com sua chama ardente. Vós, com prazer, por umtempo vos alegrastes com a sua luz.36“Mas eu tenho um testemunho maior que o de João: as obras queo Pai me deu para que as leve a termo. Estas obras que faço dãotestemunho em meu favor, pois mostram que o Pai me enviou. 37Sim,o Pai que me enviou dá testemunho a meu favor. Mas vós nuncaouvistes a sua voz, nem vistes a sua face, 38e não tendes a suapalavra permanecendo em vós, pois não acreditais naquele que eleenviou. 39Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna,e são elas que dão testemunho de mim. 40Vós, porém, não quereis vira mim para terdes a vida!41“Eu não recebo glória que venha dos homens. 42Pelo contrário, euvos conheço: não tendes em vós mesmos o amor de Deus. 43Eu vim

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em nome do meu Pai, e vós não me recebeis. Mas, se um outro viesseem seu próprio nome, a este receberíeis. 44Como podereis acreditar,vós que recebeis glória uns dos outros e não buscais a glória quevem do Deus único? 45Não penseis que eu vos acusarei diante doPai. Há alguém que vos acusa: Moisés, no qual colocastes a vossaesperança. 46Se acreditásseis em Moisés, também acreditaríeis emmim, pois foi a meu respeito que ele escreveu. 47Mas, se não acreditaisnos seus escritos, como podereis crer nas minhas palavras?”

Com o costumeiro “depois disso”, João abre um novo episódio, situadoem Jerusalém e composto dos seguintes momentos: (I) um encontro de Jesuscom um aleijado, ao qual ele cura; (II) uma inquisição em torno da cura feitano sábado resultando em acusação de Jesus pelas autoridades judaicas; (III)defesa de Jesus a respeito de sua missão e autoridade; (IV) o tema do tes-temunho a favor de Jesus.

Embora não se encontre tal qual na tradição sinóptica, a história revela mui-tas semelhanças, estruturais ou até verbais, com as curas de aleijados e asdiscussões por causa do sábado na tradição sinóptica, a ponto de se suspeitar queno relato joanino se tenha operado uma “conflação” entre um relato semelhanteao de Mc 2,1-12 par. (a combinação de enfermidade e perdão) e um relato dotipo “cura no sábado” (como em Mc 3,1-6 par.; Lc 13,10-16; 14,1-6).

O episódio chega a um fim abrupto em 5,47. Alguns comentadores jul-gam que 5,47 poderia continuar no cap. 7, enquanto o cap. 6 ficaria melhordepois de 4,54. Pensam que houve uma troca de páginas: a ordem originalteria sido: cap. 4+6, cap. 5+7. Discutiremos isso no início do cap. 6.

I. Jesus cura o aleijado (5,1-9b)

Jesus sobe a Jerusalém por ocasião de “uma festa” (cf. 2,13; quanto àrelação com a festa do cap. 6 e a hipótese de troca de páginas, >com. 6,4). Emdeterminado momento, ele se encontra perto da porta da cidade por onde asovelhas eram conduzidas ao Templo para o sacrifício: a Porta Probática (= dasovelhas). Existe aí um reservatório de águas consideradas curativas. O lu-gar chama-se, em aramaico, Bezata; era a “cidade nova”, povoada por forastei-ros, logo fora da porta das Ovelhas. A água terapêutica faz pensar num tipo desincretismo pagão na “cidade nova”, se não no tempo de Jesus, pelo menos logodepois. As galerias em redor do reservatório ficam cheias de doentes (v. 3a)12.

12. A maioria dos manuscritos acrescenta: “…esperando a água borbulhar — de fato, um anjodescia de vez em quando para movimentar a água da piscina, e o primeiro doente que nela entrassedepois do movimento da água ficava curado de qualquer doença que tivesse” (vv. 3b-4), mas issofalta nos manuscritos mais antigos. — No bairro de Bezata foi escavada uma piscina dupla, onde

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Um desses doentes está ali há 38 anos (o tempo que os hebreus passaramesperando no deserto antes de entrar na terra prometida, segundo Dt 2,14).Jesus lhe pergunta se quer ficar curado. O homem nem sequer diz “sim”.Responde somente que não tem quem o ajude a descer na água por primeiro,quando ela se põe a borbulhar. (A crença popular atribuía força especial aoprimeiro borbulhar da água, alimentada por uma fonte subterrânea — comoexplica o acréscimo dos vv. 3b-4).

Será que o homem espera que Jesus o ajude? Não se sabe. De todamaneira, Jesus toma a iniciativa — como sempre no Evangelho de João —e lhe diz: “Levanta-te, pega tua maca e anda”. O homem obedece: estácurado! Sinal de que o tempo messiânico, anunciado pelos profetas, se cum-priu: “Firmai os joelhos debilitados” (Is 35,3).

II. Inquisição dos “judeus” em torno do sábado (5,9c-18)

Com certo atraso (como em 9,14), o v. 9c menciona que era sábado! Dáa impressão de que Jesus o tinha esquecido. Entram novos atores: os “ju-deus”. Eles não querem enxergar o sinal que Jesus realizou (cf. 9,39-41). Sópensam no preceito do repouso sabático, do qual eles se consideram osguardiães. Não querem ver que o incapacitado se tornou capaz de açãoautônoma e livre! Só vêem que carrega uma maca — talvez apenas umaesteira — em dia de sábado, o que a seus olhos é inadmissível (carregar umacarga pela porta da cidade em dia de sábado, cf. Jr 17,21; mas Jeremiaspensou em atividade comercial). Interpelam o homem, mas ele explica quefez isso por ordem de quem o curou. Quando lhe perguntam quem foi, eleresponde que não o sabe, pois Jesus se tinha retirado.

Mais tarde, Jesus encontra o homem no Templo. O lugar é significativo:como aleijado, não podia entrar no Templo (>com. 9,1). Agora ele estáintegrado na comunidade judaica, demais até (cf. v. 15!). Jesus lhe diz:“Olha, estás curado, não peques mais, para que não te aconteça coisa pior”.Até agora não se falou em pecado. Mas é comum associar pecado e doença(cf. Jo 9,2). Em Mc 2,1-12, a cura da paralisia é sinal do perdão. Jo 5,14parece recorrer, implicitamente, ao mesmo simbolismo. Na visão do QuartoEvangelho a doença, materialmente falando, não é conseqüência do pecado(cf. 9,3), mas pode se tornar símbolo do pecado, da falta em relação a Deus

talvez tenha havido quatro galerias em redor e uma no meio, portanto cinco. Mas os cinco pórticosou galerias podem também se referir aos banhos terapêuticos que foram encontrados em redor,inclusive com vestígios de cultos pagãos (ao deus Asclépio/Esculápio). Ainda que datem de umaépoca ulterior (depois da destruição da cidade em 135 dC), esses banhos parecem confirmar aexatidão essencial da informação de Jo 5,2.

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e aos irmãos (cf. 9,39-41) — assim como a cura pode se tornar símbolodo perdão (5,14), sinal da obra de Deus (9,3c). Se a debilidade foi sinal dopecado, a cura é sinal de libertação do pecado. “Não peques mais”: pior quepecar é voltar a pecar. Quem é curado por Jesus não pode mais voltar àquiloque manteve os hebreus e o aleijado afastados da libertação durante 38 anos(cf. v. 5)! Mas é exatamente o que vai acontecer…

Como os discípulos, Nicodemos, a samaritana... o homem que foi curadonão entende as dimensões profundas da atuação de Jesus. Aparentementesem maldade, mas também sem compromisso com Jesus, o homem (pressio-nado? cf. 9,13-23) vai contar às autoridades judaicas que foi Jesus quem ocurou. Depois de aguardar seus 38 anos, como Israel no deserto (>com. v. 5),em vez de entrar na liberdade da Terra Prometida, entra numa nova escra-vidão, a da Lei seqüestrada pelas autoridades. O leitor poderá depois com-parar o comportamento do ex-aleijado com o testemunho valente do ex-cego,no cap. 9, e espelhar nisso seu próprio crescimento na fé (as duas narrativasde cura têm muito em comum).

Tal volta à não-liberdade, hoje em dia, ocorre menos em relação à religião(que era dominante no tempo de João), mais em relação aos setores comerciaise “culturais”. A pessoa se livra de uma dependência e se entrega a outra, maisrecentemente propagada pela mídia… É difícil ser livre (>com. 8,32).

Em conseqüência da declaração do ex-aleijado, os “judeus” começam aimportunar Jesus por ter mandado o homem carregar um peso em dia desábado. Jesus se defende (a forma peculiar do verbo “responder” que Jesususa nos vv. 17 e 19 tem esse sentido): “Meu Pai trabalha sempre (lit.: atéagora) e eu também trabalho”. Deus santificou o sétimo dia da criação, osábado (Gn 2,2-3). Descansou, mas não se aposentou! Não deixou de cuidarde seus filhos. Também Jesus cuida dos filhos de Deus no sábado: faz comoo Pai (isso será desenvolvido nos vv. 19-21). Transparece aqui o mesmotema de Mc 2,28: o Filho do Homem é senhor até do sábado; mas João vaifalar de outras competências do Filho do Homem (v. 27).

Quando Jesus chama Deus de Pai, os “judeus” acham que com isso elese torna igual a Deus (v. 18). Por isso, começam a persegui-lo com ódiomortal. Indevidamente. Jesus não se declarou igual a Deus; são os “judeus”que interpretam assim o fato de ele chamar a Deus de Pai. Podemos suspei-tar que se trata de uma discussão viva no tempo do evangelista: sinagogaacusando os cristãos de colocar Jesus no mesmo nível de Deus. (Sobre aacusação de Jesus igualar-se ao Pai, >com. 10,30.)

Se no AT o rei e os justos são chamados de “filhos de Deus”, eles podemconsiderar Deus como Pai. O povo eleito chama Deus de “nosso Pai” (Is 63,14;

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64,7; cf. Tb 13,4). No AT, o Livro da Sabedoria conta que o justo é perseguidopelos ímpios porque chama Deus de Pai (Sb 2,10-22). Assim, os perseguidoresem Jo 5,18 tornam-se iguais aos “ímpios” que perseguem o justo de Sb 2 porchamar Deus de Pai! Ironia: os “judeus” (= o judaísmo dominante no tempo deJoão) não admitiam o Livro da Sabedoria entre as Sagradas Escrituras (édeuterocanônico). Portanto, não se podiam reconhecer no texto de Sb 2. Mas oscristãos conheciam esse texto e o aceitavam como Sagrada Escritura...

III. Missão e poder de Jesus (5,19-30)

Jesus se defende (mesmo verbo que no v. 17) com uma espécie deparábola, cuja inspiração parece vir da marcenaria de José de Nazaré (usa-mos intencionalmente minúsculas para “pai” e “filho”): o pai mostra ao filhocomo fazer e o filho faz o que vê o pai fazer (v. 19). Filho de verdade nãofaz suas obras por conta própria, mas conforme a instrução do pai (>com.v. 36), e um pai que gosta do seu filho não lhe esconde seu modo de agir.Mostra-lhe tudo o que faz (v. 20a; cf. 3,35). Se o Pai (com maiúscula) cuidadas criaturas, sempre, mesmo no sábado, o Filho faz igual.

Observe-se a “inclusão”: “o filho não pode fazer nada por si mesmo”(v. 20) — “eu não posso fazer nada por mim mesmo” (v. 30). São palavrasdecisivas para a compreensão da defesa de Jesus. Ele não se torna iguala Deus, mas suas obras são obras de Deus porque Deus assim o quer, porqueDeus lhas dá. Jesus não é um usurpador, ele mesmo é um dom de Deus.

Ora, o Pai vai designar-lhe “obras maiores” (maiores do que a autoritativacura do aleijado no dia de sábado), e os judeus vão estranhar mais ainda.Pois o Pai é quem ressuscita os mortos para lhes dar a vida. Deus “faz descerao sheol (= a morada dos mortos) e de lá voltar” (1Sm 2,6). No dia do Juízo,Deus ressuscitará os mortos para outorgar a vida a quem a merece (Dn 12,2-3). Assim faz igualmente o Filho. Ele participa não apenas da criação (cf.1,3), mas também do poder de dar vida — poder que está relacionado como julgamento (v. 20b-21).

A “obra maior” a que Jesus se refere é especificamente o poder deexecutar o julgamento. Os fariseus crêem que Deus vai julgar o mundo.“Não é bem assim”, diz Jesus: “o Pai entregou ao Filho o poder de julgar”.Todos devem respeitar o Filho como respeitam o Pai. Quem não respeita oFilho tampouco respeita o Pai, que o enviou ao mundo. Isso se aplica natu-ralmente de modo especial à sinagoga do tempo de João, a qual, ao excluiros cristãos, rejeita o Filho.

Com o duplo “amém”, que marca em Jo as palavras de peso — prova-velmente decoradas pelos ouvintes —, Jesus declara: “Aquele que presta

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ouvido à minha palavra e, assim, mostra sua fé naquele que me enviou, tema vida eterna e não vai a juízo. Ele passou da morte para a vida” (v. 24).Morte e vida têm aqui o sentido do “dualismo joanino” (>Intr. § 2.1.6): amorte é o lado da carne, daquilo que passa, a vida é o lado de Deus, doEspírito, daquilo que vence e permanece. Quem não se une a Deus pela féem Jesus permanece no lado da morte. Quem acredita em Jesus está desdejá no lado da vida, e com a morte física sua opção se torna definitiva; elenão vai a juízo. O juízo não está mais à sua frente, pois sua vida já estádecidida pelo opção por Jesus, melhor, por Deus em Jesus.

Com um novo “amém, amém”, Jesus anuncia que, de fato, o julgamentovindouro já está presente (>Intr. § 3.3.8; 5.1:10): “Vem a hora — e é agora— em que os mortos vão ouvir a voz do filho de Deus e os que lhe prestaremouvido terão a vida” (v. 25). A expressão “é agora” exclui que Jesus estejaapenas anunciando o julgamento como próximo, como imaginavam muitosdos primeiros cristãos (cf. 1Ts 4,13-18). O “agora” tem o sentido forte: desdejá (>com. 11,25-27). Quando aderimos a Jesus, possuímos desde agora avida definitiva, que nos une a Deus — enquanto formos fiéis, naturalmente(pois ninguém pode jogar-se na rede com o pretexto de que “a ressurreiçãojá aconteceu”, cf. 2Tm 2,18). Deus é o criador da vida, ele tem a vida emsi mesmo e dá ao filho o poder de “dar vida” (no sentido de comunhão como Deus da vida) e de julgar aqueles que não se abrem para a vida que vemde Deus.

No v. 27, João passa do termo “Filho”, que evoca em primeiro lugar oamor do Pai e a união com ele, para “Filho do Homem”: o Filho tem poderde julgar, pois ele é o “Filho do Homem” (cf. 1,51), aquele que vem de Deuspara derrotar as forças do mal no mundo (cf. Dn 7,13-14). Convém combinaressas frases com as de 3,16-21: o Filho não veio para julgar, mas para salvar;todavia, quem se fecha na incredulidade assina seu próprio julgamento (cf.também 12,47-48).

Isso não deve causar admiração ou ofensa, acrescenta Jesus, pois a horavirá em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho doHomem, e os que fizeram o bem vão sair para a ressurreição da vida, maspara os que fizeram o mal, a ressurreição levará à condenação. Isso é umacitação livre do texto de Dn 12,2, dando a entender que o julgamento queDeus deve realizar no dia do Juízo agora é atribuição do Filho do Homem— identificado, no v. 27, com Jesus. Essa atribuição pode justificar-se apartir de outro texto de Daniel, 7,13-14, segundo o qual os plenos poderesde Deus (“soberania, glória e realeza”) são atribuídos ao Filho do Homem(João combina portanto Dn 7,13-14 com 12,1-3).

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Jesus encerra esta parte da “defesa” com o tema do início: como Filho,ele não age por conta própria, mas transmite o juízo que “ouve” do Pai; nãofaz o que ele quer, mas o que o Pai quer (>com. v. 19).

A obediência amorosa de quem ama

A palavra “obediência” não tem boa aceitação em nosso meio. Expressõescomo “Jesus foi obediente até a morte” (cf. Fl 2,8) nos escandalizam. Por nãoentendermos qual é essa obediência, fizemos dela uma caricatura, imaginandoum Jesus sem personalidade, que deve dar satisfação, por seu sangue, emnosso lugar, a um Deus cruel, que escandalosamente é chamado de “pai”…

A razão por que a “obediência” nos repugna é que estamos acostumados aum conceito de obediência de escravos. Está na hora de acabar com essacaricatura. O sentido profundo da obediência, na Bíblia, está na realidade daAliança e do Amor. Obediência, tanto nas línguas bíblicas como na nossa,vem de audiência, ouvir. Significa atenção, escuta (“Escuta, Israel”, Dt 6,4).Jesus dá radicalmente ouvido ao projeto de Deus: para manifestar em suavida a graça e a verdade da glória de Deus (cf. Jo 1,14), ele ama até o fim(13,1), consuma a obra que lhe foi confiada (19,30), a obra do Pai (14,10).Por isso, Jesus é chamado “filho”, porque ama a Deus como um filho quese identifica com o projeto de seu pai, a ponto de dar sua vida por esseprojeto. Segundo os evangelhos sinópticos, ele é o Filho em quem Deusdeposita seu pleno agrado, seu beneplácito, sua confiança total (Mc 1,1 par;cf. Jo 1,33). É por isso que chama a Deus de Pai e, em Jo, na hora do“enaltecimento”, estende tal uso a nós: “meu Pai e vosso Pai” (20,17). Aobediência de Cristo não é obediência escrava a um Deus tirânico, mas asolidariedade com o desejo e o projeto do Pai, em amor filial apaixonado,disposto a enfrentar a “Paixão”. É obediência amorosa. Em virtude de talobediência, Jesus se torna “Senhor”, solidário com Deus na glória (Fl 2,11).

IV. Testemunho a favor de Jesus (5,31-47)

Se, nos versículos anteriores, Jesus fala com tanta autoridade, ele precisade credenciamento. Quem respalda Jesus, quem dá testemunho a seu favor?Já que ninguém pode ser testemunha em causa própria — embora o caso deJesus seja diferente… (cf. 8,14.18) —, há outro que testemunha a favor deJesus, e Jesus sabe perfeitamente que o testemunho que aquele dá a seurespeito é “verdadeiro” (poderíamos traduzir “válido”, mas em João o termo“verdadeiro” tem um gostinho especial). Quem será esse “outro”, tão próxi-mo de Jesus. João Batista testemunhou a favor dele. Mas o Batista é apenasuma testemunha em nível humano, precário (v. 34); foi uma lâmpada que

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brilhou por tempo determinado (v. 35), e isso não é desprezível (cf. Elias,segundo Sr 48,1), mas não era “a Luz” (cf. 1,6-8.9).

Jesus tem um testemunho a seu favor que pesa muito mais que o de João:as obras que o Pai lhe deu a realizar. Deus mesmo está por trás daquilo queJesus faz (cf. vv. 17 e 19-20). Suas obras e toda sua atuação atestam queDeus foi quem o enviou; os sinais que Jesus faz não são façanhas para tersucesso; são um atestado de Deus a seu favor.

A obra, as obras e os sinais

Neste cap. 5, João fala das obras de Jesus (cf. v. 20). Devemos distinguir,em João: (1) a obra de Jesus; (2) as obras; (3) os sinais. “A obra” de Jesusé sua missão, que ele levará a termo na cruz (4,34; 17,4; e cf. 19,30). “Asobras” são as suas atividades de diversos tipos, inclusive as suas palavras,estas obras mostram que Deus está agindo por intermédio dele (5,20.36;9,3.4; 10,25.37.38; 14,10.11.12; 15,24; e cf. 7,21; 10,32.33). “Os sinais”(>Voc.) são os gestos extraordinários (“miraculosos”) que mostram, à ma-neira dos sinais proféticos, que Deus está com Jesus. Em João, os sinais,além de mostrar o respaldo dado por Deus ao seu Enviado, são tambémsímbolos da dádiva que ele é para o mundo.

“As obras que o Pai me deu para que as leve a termo”: não se trata defaçanhas em vista do sucesso próprio, nem de obras para cumprir exigênciasdo sistema religioso, mas das obras que o Pai lhe confia, de pai para filho,para que as “leve a termo”, tanto do ponto de vista pessoal (o dom da vidapor amor até o fim: 13,1; 19,28-30), como do ponto de vista do Pai (arealização escatológica, acabamento da obra do Pai). Aliás, as duas perspec-tivas coincidem (cf. 10,30; >exc. 5,30). As obras de Deus que Jesus completaem si e no projeto escatológico não são outras senão as da justiça e do amorfraterno, que Jesus exibe em sua prática e que qualquer judeu conhece pelaLei e pelos Profetas. É neste sentido, e não por algum texto tomado ao péda letra, que a Escritura testemunha a favor de Jesus (cf. v. 39).

Sim, Deus enviou Jesus. O Pai testemunha a favor dele. Os mestres dosjudeus não ouviram a voz de Deus, não viram o Deus invisível (à diferençado Unigênito no seio do Pai; cf. 1,18). Será que João está desprezando o queEx 19 e 24 escrevem sobre Moisés e os anciãos? De toda maneira, por maissábios que sejam, os mestres dos judeus não têm a palavra de Deus “moran-do” (ou “permanecendo”) no âmbito deles... (alusão à “morada”, shekiná?).Dizer isso é um desaforo. Os rabinos acham que a “Lei”, cujos livros elesciosamente conservam, é a palavra de Deus presente no meio deles. Jesusnega isso. Pois eles não dão crédito àquele que Deus enviou e que é a

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Palavra de Deus em pessoa, o único que faz conhecer Deus de maneira segura.Os rabinos perscrutam as Escrituras, quer para encontrar regras concretas paraa vida prática, a moral, os ritos (a halaká), quer para conhecer melhor asprofecias a respeito do Messias. Foram os rabinos que, na época do QuartoEvangelho, reconheceram assim o Messias em Bar-Kokbá, “Filho da Estrela”,que tragicamente pereceu no segundo levante judaico (132-135 dC). É sobre-tudo (mas não só!) neste sentido que João considera inútil o trabalho deles:“Nós [já] encontramos aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os pro-fetas” (1,45). Que os rabinos estudem quanto quiserem a Lei, as Escrituras...precisamente elas dão testemunho de Jesus! O problema é que não procuramna Escritura as obras de amor e de justiça que Jesus faz e ensina (>com. v. 36).Eles não querem “ir a Jesus” (= crer) para possuírem a vida!

Jesus repete que ele não depende de testemunhos meramente humanos aseu respeito (cf. v. 34). Ele sabe muito bem que o meramente humano não estáà altura de sua missão (cf. 2,25). Muito menos os que o acusam: eles não têmamor a Deus no coração; e se fossem a favor de Jesus, seria preciso desconfiarde Jesus! Jesus veio no nome de Deus, seu Pai, e eles não o receberam (cf.1,10-11). Mas quando alguém vem em seu próprio nome, procurando proveitopróprio, então lhe dão crédito. Como se explica isso? Eles vivem à base daambição e da competição, procurando sucesso e reconhecimento da parte de seussimilares, e por isso não têm abertura para receber a glória que vem de Deus,ou seja, aquilo que é comunicado pelo Único que possui a “glória” como justapropriedade sua (cf. 1,14). Só a Deus pertence a glória! (João faz aqui um jogode palavras com a dupla conotação de “glória”; na semântica hebraica, glóriasignifica substância, o verdadeiro ser de alguém; no sentido grego, significaapenas o brilho, que pode ser falso.)

Essa crítica da ambição e da competição ultrapassa a perspectiva dabriga da comunidade de João com a Sinagoga. É algo universalmente huma-no, pois seria ingênuo pensar que só os rabinos de Jâmnia procuravam re-ceber glória uns dos outros…

Jesus sabe que suas palavras são uma acusação. Mas não é ele que aprofere. O próprio Moisés, do qual os mestres se gabam (cf. Mt 23,2), acusa-os diante de Deus (segundo Dt 31,26-27, o livro da Lei acusa a incredulidadede Israel diante de Deus). Se acreditassem em Moisés, acreditariam tambémem Jesus. Mas se eles não acreditam naquilo que eles consideram SagradaEscritura, aquilo que Moisés escreveu, como acreditarão nas simples pala-vras que Jesus fala?

O retrato que o Jesus joanino pinta dos mestres judaicos provavelmentenão valia para todos, nem mesmo no tempo do Quarto Evangelho. Por outro

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lado, tem alguma atualidade para nossa realidade hoje. No obsessivo apego àsEscrituras, aos rolos que conservam e perscrutam, esses mestres se comportamcomo os que querem provar as suas opiniões com textos da Bíblia, manipu-lados de qualquer jeito, enquanto ficam surdos àquilo que Deus lhes fala pormeio do que é óbvio, o clamor dos pobres, dos pequenos e dos excluídos…

O centro deste capítulo não são os mestres judeus, mas Jesus. Elemostra um sinal da parte de Deus, um sinal de vida, sinal de que eleé o dom da vida e que diante dele se decide a vida verdadeira, a vidaque não está exposta ao juízo e já passou da morte.

À diferença do homem curado na piscina de Bezata, que mal percebeuo que lhe ocorreu, e que sumiu desde o momento em que Jesus setornou objeto de censura, os membros da comunidade cristã são con-vidados a acompanhar a defesa de Jesus, os testemunhos a seu favor.O testemunho principal é a própria prática de Jesus, na qual trans-parece o Pai que lhe designa suas obras.

É o que temos a responder quando somos criticados pelo valor “di-vino” que atribuímos a Jesus, quando ficamos envolvidos no conflitocom o mundo. Tomamos partido por Jesus, que chama a Deus seu Pai.Visamos à “referência última” por meio de Jesus. E teremos de jus-tificar isso diante do mundo pela própria obra de Jesus, rememoradae continuada por nós. Mas para que isso seja possível, devemos apren-der ainda muita coisa, como veremos nos capítulos seguintes.

O episódio dos pães (6,1-71)

I — 6 1Depois disso, Jesus foi para para o outro lado do mar da Galiléia,ou seja, de Tiberíades. 2Uma grande multidão o seguia, vendo ossinais que ele fazia a favor dos doentes. 3Jesus subiu a montanha esentou-se lá com os seus discípulos. 4Estava próxima a Páscoa, afesta dos judeus.5Levantando os olhos e vendo que uma grande multidão vinha a ele,Jesus disse a Filipe: “Onde vamos comprar pão para que essa gentepossa comer?” 6Disse isso para testar Filipe, pois ele sabia muitobem o que ia fazer. 7Filipe respondeu: “Nem duzentos denários depão não bastariam para dar um pouquinho a cada um”. 8Um dosdiscípulos, André, irmão de Simão Pedro, disse: 9“Está aqui ummenino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para

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tanta gente?” 10Jesus disse: “Fazei as pessoas sentarem-se”. Naque-le lugar havia muita relva, e lá se sentaram os homens em númerode aproximadamente cinco mil. 11Jesus tomou os pães, deu graças edistribuiu aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez omesmo com os peixes. 12Quando todos estavam satisfeitos, disse aosdiscípulos: “Juntai os pedaços que sobraram, para que nada seperca!” 13Eles juntaram e encheram doze cestos com os pedaços quesobraram dos cinco pães de cevada que comeram.14À vista do sinal que Jesus tinha realizado, as pessoas exclamavam:“Este é verdadeiramente o profeta, aquele que deve vir ao mundo”.15Quando Jesus percebeu que queriam levá-lo para proclamá-lo rei,novamente se retirou para a montanha, sozinho.16Ao anoitecer, os discípulos desceram para a beira-mar. 17Entraramno barco e foram na direção de Cafarnaum, do outro lado do mar. Jáestava escuro, e Jesus ainda não tinha vindo a eles. 18Soprava umvento forte, e o mar estava agitado. 19Os discípulos tinham remadouns cinco quilômetros, quando avistaram Jesus andando sobre as águase aproximando-se do barco. Eles ficaram com medo. 20Jesus, porém,lhes disse: “Sou eu. Não tenhais medo!” 21Eles queriam receber Jesusno barco, mas logo o barco atingiu a terra para onde estavam indo.

II — 22No dia seguinte, a multidão que tinha ficado do outro lado do marnotou que antes havia aí um só barco e que Jesus não entrara nelecom os discípulos, os quais haviam partido sozinhos. 23Entretanto,outros barcos chegaram de Tiberíades, perto do lugar onde tinhamcomido o pão depois de o Senhor ter dado graças. 24Quando amultidão percebeu que Jesus não estava aí, nem os seus discípulos,entraram nos barcos e foram procurar Jesus em Cafarnaum. 25En-contrando-o do outro lado do mar, perguntaram-lhe: “Rabi, quandochegaste aqui?”26Jesus respondeu: “Amém, amém, vos digo: estais me procurandonão porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfei-tos. 27Trabalhai não pelo alimento que se perde, mas pelo alimentoque permanece até à vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará.Pois a este, Deus Pai o marcou com seu selo. 28Perguntaram então:“Que devemos fazer para praticar as obras de Deus?” 29Jesus respon-deu: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou”.30Eles perguntaram: “Que sinais realizas para que possamos ver eacreditar em ti? Que obras fazes? 31Nossos pais comeram o maná nodeserto, como está na Escritura: ‘Deu-lhes a comer pão do céu’”.

6,1-71

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O LIVRO DOS SINAIS

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32Jesus respondeu: “Amém, amém, vos digo: não foi Moisés quemvos deu o pão do céu. É meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão docéu. 33Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida aomundo”. 34Eles então pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão!”35Jesus lhes disse: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terámais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede. 36Contudo, euvos disse que me vistes, mas não credes. 37Todo aquele que o Pai medá, virá a mim, e quem vem a mim não lançarei fora, 38porque descido céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele queme enviou.

“39E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não percanenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia.40Esta é a vontade do meu Pai: quem vê o Filho e nele crê tenha vidaeterna. E eu o ressuscitarei no último dia”.41Então, os judeus começaram a murmurar contra Jesus, porquedisse: “Eu sou o pão que desceu do céu”. 42Diziam: “Este não éJesus, o filho de José? Não conhecemos nós o seu pai e sua mãe?Como pode, então, dizer que desceu do céu?”43Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós. 44Ninguém pode vir amim, se o Pai que me enviou não o atrair. E eu o ressuscitarei noúltimo dia. 45Está escrito nos Profetas: ‘Todos serão discípulos deDeus’. Ora, todo aquele que escutou o ensinamento do Pai e o apren-deu vem a mim. 46Ninguém jamais viu o Pai, a não ser aquele quevem de junto de Deus: este viu o Pai. 47Amém, amém, vos digo: quemcrê tem vida eterna. 48Eu sou o pão da vida. 49Os vossos pais come-ram o maná no deserto e, no entanto, morreram. 50Aqui está o pãoque desce do céu para que não morra quem dele comer.51“Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pãoviverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne, dada pelavida do mundo”.52Os judeus discutiam entre si: “Como é que ele pode dar a sua carnea comer?” 53Jesus disse: “Amém, amém, vos digo: se não comerdesa carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereisvida em vós. 54Quem mastiga minha carne e bebe meu sangue temvida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. 55Pois minha carne éverdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida. 56Quem masti-ga minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele.57Como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo por meio dele, assimviverá, por meio de mim, aquele que me mastiga. 58Este é o pão que

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desceu do céu. Não é como aquele que vossos pais comeram — e noentanto morreram. Quem mastiga este pão viverá para sempre”.

III — 59Jesus falou essas coisas ensinando na reunião sinagogal, emCafarnaum. 60Muitos discípulos que o ouviram disseram então: “Essapalavra é inaceitável. Quem consegue escutá-la?” 61Percebendo queseus discípulos estavam murmurando por causa disso, Jesus pergun-tou: “Isto vos escandaliza? 62Que será, então, quando virdes o Filhodo Homem subir para onde estava antes? 63O Espírito é que dá vida,a carne de nada serve. As palavras que vos falei são Espírito e sãovida. 64Mas há alguns entre vós que não crêem”. Jesus sabia desdeo início quem eram os que acreditavam e quem havia de entregá-lo.65E acrescentou: “É por isso que eu vos disse: ‘Ninguém pode vir amim a não ser que lhe seja dado pelo Pai’”.66A partir daquele momento, muitos discípulos o abandonaram e nãomais andavam com ele. 67Jesus disse aos Doze: “Vós também quereisir embora?” 68Simão Pedro respondeu: “A quem iremos nós, Senhor?Tu tens palavras de vida eterna. 69Nós cremos firmemente e reconhe-cemos que tu és o Santo de Deus”. 70Jesus respondeu: “Não vosescolhi doze? Contudo, um de vós é um diabo!” 71Ele falava de Judas,filho de Simão Iscariotes, pois este, um dos Doze, iria entregá-lo.

O cap. 6 é um minievangelho. Contém a mensagem essencial de Jesus ea respeito de Jesus. É uma unidade dramatúrgica perfeita. Introduzida pelocostumeiro “depois disso”, começa pelo relato da multiplicação dos pães e dacaminhada de Jesus sobre a água (6,1-21). Esse relato tem forte semelhança,na estrutura e no vocabulário, com o de Mc 6,32-52 (par. Mt 14,3-33; cf. Lc9,7-9). Como no cap. anterior (Jo 5), também aqui o relato do “sinal” ensejauma discussão com os adversários (6,22-58). No fim, o episódio culmina numadramática cena de opção a favor ou contra Jesus (6,59-71).

Aparece assim uma estrutura concêntrica, que tem como centro o discur-so do “Pão da Vida”, pronunciado na sinagoga de Cafarnaum.

Narrativa Transição Diálogo de revelação Transição Desenlace/Opção

1-15 22-24 A. 25-50 59 60-65Sinal do pão e Ida a Diálogo “sapiencial” Sinagoga Desistência

retirada de Jesus Cafarnaum de Cafarnaum de muitos

16-21 B. 51-58 66-71Manifestação de Releitura Confissão de féJesus aos Doze “eucarística” dos Doze/Pedro

6,1-71

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O LIVRO DOS SINAIS

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Quanto à posição deste episódio existe um problema de crítica literária.O discurso do cap. 5, em Jerusalém, é interrompido em 5,47. Por outro lado,o cap. 7 parece pertencer à mesma situação do cap. 5, aludindo inclusive aeste (7,19.21). Alguns estudiosos acham que o cap. 6 foi deslocado, talvezpor uma troca acidental das páginas, e inserem nos seus comentários o cap.6 logo depois de 4,54.

Ordem atual Ordem hipotética

4,46-54 Galiléia 4,46-54 Galiléia

5,1-47 “uma” festa em Jerusalém, 6,1-71 perto da Páscoa, nacura no sábado Galiléia

6,1-71 perto da Páscoa, na 7,1-13 os “irmãos” na Galiléia/subidaGaliléia à festa das Tendas, Jerusalém

7,1-13 os “irmãos” na Galiléia/subida 5,1-47 no início da festa (das Tendas),à festa das Tendas, em Jerusalém, curaJerusalém no sábado

7,14... no meio da festa 7,14… no meio da festadas Tendas, das Tendas, alusãoalusão à cura do cap. 5 à cura no sábado

Que pensar disso? A modificação da ordem original, se houve, pode serintencional (remanejamento pelo autor ou editor) ou acidental (troca depáginas). Visto que em 5,1 e 7,1 se constatam indícios de adaptação àordem atual, concluímos que o “organizador” do texto se deu conta datroca! Por que então não “destrocou”? É mais fácil supor que não houvetroca nenhuma, mas que o autor, na fase da redação final, inseriu o “mini-evangelho” do cap. 6 — situado na Galiléia — entre os episódios deJerusalém que ocupam os capítulos 5 e 7–8. Se, assim, a seqüência 5–7–8 ficou interrompida, em compensação, o maravilhoso minievangelho docap. 6 veio a constituir o centro de toda a primeira parte de Jo (1–12).

O cap. 6 tem fortes semelhanças com os dois milagres dos pães em Mc6 e 8 e até com a reelaboração de Mc por Mt (p. ex. a semelhança entreJo 6,1-3 e Mt 15,29-31, em que Mt transformou um milagre de Mc numacena geral de milagres). Com Lc, João tem em comum que ele une aconfissão de fé de Pedro e dos Doze ao primeiro sinal do pão, prescindindodo segundo. No sinal profético do Templo, João uniu diversos “blocos” datradição sinóptica; tal parece ter sido seu procedimento redatorial tambémaqui (blocos A, B, C e D).

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Além disso, no discurso central há uma reminiscência do confronto deJesus com seus parentes na Galiléia (6,41-42, cf. Mc 6,1-6 par., texto queprecede imediatamente a seção dos pães em Mc).

Ora, os traços sinópticos e a hipótese de inserção tardia não significam quea matéria do cap. 6 seja mais recente que o resto do evangelho. O caráterprofundamente judaico da parte discursiva faz pensar que se trata de materiallongamente curtido na pregação joanina, certamente no contexto da Eucaristia.

I. O sinal dos pães e o caminhar sobre a água (6,1-21)

O fim aparentemente abrupto (em 5,47) do episódio anterior pode serinterpretado como significando que, aos olhos do autor, o discurso de defesa5,15-47 foi suficiente para o leitor ter uma idéia inicial do conflito entre afé em Jesus e os “judeus” de Jerusalém. Esse conflito vai aprofundar-sesempre mais. O cap. 6 é um exemplo disso.

A cena se desloca, sem transição, da capital para o interior, a Galiléia.Jesus se encontra à beira do lago da Galiléia (ou de Genesaré, ou de Tiberíades,como é chamado no fim do século I, no tempo do Quarto Evangelho). Eleatravessa o lago. Muita gente vai atrás dele (por terra? cf. Mc 6,33), por tervisto “os sinais” que ele realiza em prol dos enfermos (cf. Mt 15,29-31).

Mc Mt Lc Jo

A transição 6,32-33 14,12-14 9,10-11 6,1-4

1º sinal dos pães 6,34-44 14,15-21 9,12-17 6,5-15

Jesus anda sobre 6,45-52 14,22-33 6,16-21o lago (+ acresc. ce-

na de Pedro)

Genesaré 6,53-56 14,34-36 6,22-24(Cafarnaum)

B dicussões 7,1-30 15,1-28

curas 7,31-37 15,29-31 [6,1-3]

C 2º sinal dos pães 8,1-10 15,32-39

pedido de sinal 8,11-13 16,1-4 6,30

mistério do pão/ 8,14-21 16,5-12 6,25-66ininteligência

D confissão da fé 8,27-33 16,13-20 9,18-21 6,67-71

1-2

6,1-71

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O LIVRO DOS SINAIS

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A terminologia “ver os sinais” já nos põe de sobreaviso: aponta para umafé superficial (cf. 2,23-24; 4,45.48; >exc. 6,36). Como as narrativas de Jo 2–4, também esta deve ser lida em primeira instância como uma iniciação, umacatequese para os que não entendem o sentido simbólico do sinal operadopor Jesus. Mas a discussão que se segue ao gesto de Jesus ultrapassa o nívelda iniciação; como no cap. 5, acrescenta-se o elemento de conflito. E oprocesso irá um passo mais longe ainda: levará o conflito até o nível daopção e da confissão de fé (6,60-71).

Jesus toma consigo os discípulos e sobe a região montanhosa que ladeiao lago de Tiberíades. Senta-se, rodeado dos discípulos, como para ensinar.Juntamente com a menção aos enfermos no v. 2, a descrição lembra a ence-nação do Sermão da Montanha em Mt 4,23–5,2: uma introdução muito so-lene, contrapondo Jesus aos mestres do judaísmo. (Há também semelhançacom outra cena composta por Mateus, a introdução da segunda multiplicaçãodos pães, Mt 15,29-31.)

A fim de despertar nossa atenção para o simbolismo daquilo que vaiseguir, o evangelista lembra, num parêntese, a proximidade da festa da Pás-coa, comemoração do êxodo de Israel do Egito, quando Deus alimentou opovo no deserto. A festa é chamada, com um ar de distância, “a Páscoa dosjudeus” (v. 4). Aliás, Jesus não vai a Jerusalém para a festa. Talvez Joãoqueira apresentar uma “alternativa cristã” para rememorar as tradiçõesda Páscoa e do Êxodo. Talvez possamos ver aqui o esquema teológico deJoão que consiste em substituir as instituições judaicas por Jesus (cf., p.ex.,2,6; 2,18-21). O congraçamento de Israel na festa da Páscoa no Templo(como desejava o rei Josias, 2Rs 23) é substituído pelo congraçamento emtorno de Jesus, no lugar onde estiver ele com a multidão que o segue. Daío tema seguinte: a oferta de Jesus a essa multidão em busca de sinais (v. 2)e necessitada de descobrir a verdadeira fé.

Conforme Mc 6,32-34, Jesus se vê surpreendido pela multidão, que frus-tra seu plano de ficar a sós com os discípulos; e quando a pregação seprolonga, os discípulos têm de insistir para que mande embora a multidão(Mc 6,35-36 par.). Segundo João, Jesus não mostra surpresa nenhuma, maspassa seu olhar sobre a multidão e, como um mestre a seu discípulo (cf. v. 3!),faz uma pergunta a Filipe: “De onde vamos comprar pão para que essa gentepossa comer?” É uma pergunta didática — Jesus bem sabe o que quer —, alémde teológica: em Jo, a pergunta “de onde?” sempre evoca uma origem mis-teriosa, aquilo que vem do alto, de Deus (veja 2,9; 3,8). Mas Filipe pensa emtermos da terra e conclui, por um rápido cálculo, que “duzentos denários nãobastam para que cada um receba um bocadinho” (um denário é a diária

3

4

5-7

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de um lavrador: Mt 20,2). Para Mc 6,37, essa seria a soma necessária;conforme João, nem sequer bastaria. Assim, João aumenta discretamente oparadoxo.

André, irmão de Pedro e inseparável companheiro de Filipe, observa quehá aí um rapaz com cinco pães de cevada e dois peixinhos — ainda maismiseráveis que os cinco pães (de trigo) e os dois peixes que, segundo osevangelhos sinópticos, os discípulos, provocados por Jesus, descobrem nosseus alforjes (Mc 6,38 par.). O rapaz e os “pães de cevada” lembram o“profeta do pão”, Eliseu (2Rs 4,42-44), que permitiu a uma tropa de cemhomens famintos saciar-se com uns vinte pãezinhos de cevada, pães sagra-dos (“pães da proposição”). Jesus é maior que Eliseu, como é maior queAbraão, Jacó, Moisés…

Mas para os aprendizes Filipe e André, a merenda do rapaz não basta!Estão diante de um impasse, como Maria em Caná (cf. 2,3). Humanamente,não há “de onde” conseguir alimento para tanta gente.

Então, Jesus entra em ação. Manda os discípulos acomodar as cinco milpessoas na grama daquele lugar ermo (compare com Mc 6,39-40.44 par.).Depois, toma os pães, dá graças e distribui aos que estão sentados, fazendoo mesmo com os peixes — de tudo “tanto quanto queriam”. Na narrativasinóptica, Jesus deu o pão aos discípulos para que eles o distribuíssem (Mc6,41 par.). Em João, Jesus mesmo distribui o pão (>exc. a seguir). Os sinópticosdescrevem a refeição do Reino, aludindo à organização do povo e ao serviçoministerial. João não realça estes aspectos, mas, de toda maneira, o gesto ea terminologia fazem pensar na fração do pão sob ação de graças (= euca-ristia), característica da assembléia cristã dos primeiros tempos — refeiçãoao mesmo tempo fraterna e messiânica. Tal alusão à bênção e fração/distri-buição do pão por Jesus (cf. também o v. 23) prepara a parte “eucarística”do diálogo, Jo 6,51-58.

A soberania de Jesus no agir

Se comparamos Jo com os outros evangelhos, a figura de Jesus Cristo ocupamais expressamente o primeiro plano. Nas narrativas, muitos detalhes acen-tuam a iniciativa e a soberania de Jesus no seu agir. Na vocação dos discí-pulos, eles o procuram, mas ele toma a palavra (1,38). Nas bodas de Caná,ele corta a iniciativa de Maria (2,4), para depois realizar o sinal que elepretende. Na cura do filho do funcionário, critica a mentalidade milagreira(4,48), para que o sentido cristológico do gesto fique claro. Ao aleijado deBezata, oferece a cura sem ele pedir (5,6). Na multiplicação dos pães, nãosão os discípulos que observam a fome do povo (como nos sinópticos), mas

8-9

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O LIVRO DOS SINAIS

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Jesus, desde o início, pensa em realizar o sinal do pão (6,5-6). Jesus mesmodistribui o pão, não os discípulos (6,11). Em 7,1-13, recusa o convite deseus irmãos, mas sobe a Jerusalém de acordo com seu próprio plano (queé o do Pai). Nos caps. 9 e 11, afasta as intervenções dos discípulos, paradepois realizar os sinais (ao cego e a Lázaro) conforme seu próprio projeto.Mais fortemente, porém, essa soberania de Jesus no agir aparece na históriada Paixão. Judas nem precisa beijar Jesus para o entregar, Jesus mesmo seentrega, e os guardas caem de costas (18,4-11). Diante do sumo sacerdote,fala com autoridade (18,21-23), diante de Pilatos, afirma sua realeza, em-bora “não deste mundo” (18,36). Na cruz, exclama soberanamente: “Estáconsumado” (19,28.30).O efeito dessa concentração é que o Jesus joanino aparece no palco comoque coroado com uma auréola. Mas não nos enganemos: isso não diminuiem nada sua humanidade: ele é carne. Apenas nos faz meditar mais profun-damente como Deus está presente e age nessa existência humana.Para completar: o Evangelho de João não é, em última análise, cristocêntricoe sim teocêntrico (>Intr. § 5.1:3). “O Pai é maior do que eu” (14,28). Jesusestá a serviço do Pai, não procura sua própria glória (8,50). O cristocentrismonarrativo é um meio para expressar o teocentrismo da visão de João: comCristo no centro da cena olhamos para o Pai, que nele transparece: “Quemme vê, vê o Pai” (14,9).

Quando terminam de comer, Jesus manda recolher o que sobrou: dozecestos cheios de restos dos cinco pães e dois peixinhos (cf. Mc 6,43 par.).Doze é o número das tribos do antigo povo de Israel e também dos apóstolosdo novo povo de Deus, a Igreja: o novo povo de Deus é alimentado nodeserto, sinal do dom messiânico de Deus. A abundância dos restos recolhi-dos (lit.: o que “ultrapassou”) é um típico traço escatológico (cf. Is 25,6; Am9,13 etc.; cf. a abundância de vinho em Caná). João acrescenta mais umtraço simbólico/escatológico à narrativa: Jesus não quer que algo se perca;o sentido deste simbolismo aparece no v. 39 (cf. também 17,12; 18,9).

Se João viu aqui a substituição da Páscoa “dos judeus” (cf. v. 4), vale apena observar as diferenças em comparação com a Páscoa do Êxodo: nadade comer às pressas, pão ázimo etc. Abundância messiânica, isso sim, àmaneira de Is 25,6 (inclusive, no “monte”, cf. Jo 6,3). E no decorrer docapítulo vai ficar claro que é isso que se celebra na Eucaristia cristã (v. 23e 51-58).

O povo ainda não entende o sentido profundo dos sinais (>com. v. 2).“Ao ver o sinal” que Jesus acaba de realizar, o povo conclui — com certarazão — que Jesus é “o profeta que deve vir ao mundo”, o novo Moisés oualguma outra figura messiânica. O povo tira, porém, conseqüências práticas

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equivocadas. Querem segurá-lo para proclamá-lo rei, Messias. Mas que sig-nifica isso? Em que tipo de Messias pensam? Será que só pensam no seudom material, a solução para a fome? Isso seria um erro. Já no Deuteronô-mio, o dom do maná (que constitui o tema do diálogo na segunda parte doepisódio) era visto como um ensinamento de Deus (Dt 8,3, aludindo aoensinamento do repouso sabático por ocasião do dom do maná, Ex 16,22-30). A missão de Jesus não é fazer o que podem fazer os padeiros — desdeque haja justiça social. É outra, mais radical — e que está na base da justiçasocial, como explicaremos na consideração final deste capítulo.

Querem fazê-lo rei, salvador da pátria, para resolver todos os proble-mas… Ora, o reinado de Jesus não é deste mundo (>com. 18,36). Por isso,retira-se na montanha, sozinho, perto de Deus. Deste modo, introduz-se nanarrativa uma ruptura que — como em 2,4; 4,48 — faz o leitor refletir sobreseu sentido profundo e verdadeiro.

Os discípulos aguardam Jesus à beira do lago. Como ele não aparece,entram no barco e iniciam a travessia rumo a Cafarnaum. Já estão envolvidosnas trevas, e “a luz” ainda não veio (v. 17b, cf. 1,5). O lago está sendoagitado pelo vento noturno. Remam até o meio (lit.: “vinte e cinco ou trintaestádios”, uns cinco quilômetros). De repente, enxergam Jesus passeandosobre as ondas. Ficam assustados.

Então Jesus se dá a conhecer: “Não tenham medo, sou eu”. Linguagemda manifestação de Deus, da teofania. É um convite a superar o “medosagrado” que acompanha as manifestações de Deus (cf. Ex 19,16; Dt 18,16).Também o termo “sou eu” evoca a atmosfera da teofania. Mesmo se oprimeiro sentido da expressão é identificar a pessoa de Jesus, é inevitável aassociação com o nome de Deus, YHWH (“Aquele que é”, “Eu Sou”, Ex3,14). Deus revelou-se a Moisés como aquele que não tem nome próprio,como têm os outros deuses, ou melhor, cujo nome é inefável. Identificou-secomo aquele que, com sua presença, acompanha seu povo: “Eu sou/estou(contigo)” (Ex 3,12; >exc. 8,28). Assim é Jesus para seus discípulos deontem e de hoje. Todavia, só os iniciados entendem isso.

Com muita alegria, os discípulos recebem Jesus no barco, que, de modosurpreendente, atinge logo a margem para onde estavam se dirigindo comtanta dificuldade (cf. Sl 107,23-32).

II. O Pão da Vida (6,22-58)

Depois de uma transição (vv. 22-24), começa o diálogo propriamente,em que Jesus aprofunda o sentido do sinal do pão (vv. 25-58). No diálogopodemos distinguir três acentos:

16-21

6,1-71

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1. a busca dos interlocutores para fazer as obras que agradam a Deus(atitude característica do judeu piedoso; vv. 25-30);

2. a missão profético-sapiencial de Jesus, culminando na autoproclamaçãocomo “Pão da Vida” (vv. 31-50);

3. a releitura deste tema à luz da Eucaristia cristã (v. 51-58).

Esses três acentos aparecem progressivamente, interligados por elemen-tos cênicos, diálogos, intervenções, protestos, de modo que as tentativas desubdividir o conjunto não satisfazem. A passagem do segundo para o terceiroacento, por exemplo, se dá entre o v. 50 e o v. 51, sem que alguma cesuraindique isso.

A fim de fazer a transição para o novo cenário (o reencontro com a mul-tidão em Cafarnaum, na outra margem), o narrador volta um passo para trás(vv. 22-23): na tarde do dia anterior, a multidão viu que havia um só barco eque os apóstolos o usaram para atravessar, sem que Jesus estivesse com eles.Ora, ao anoitecer, na hora da pesca, numerosos barquinhos de pescadoreschegaram de Tiberíades. Usando a terminologia da tradição eucarística daIgreja, o autor acrescenta que Tiberíades ficava perto do lugar onde Jesus “deugraças” e eles “comeram o pão” (vv. 23; >com. vv. 11). Supostamente decarona, as pessoas voltaram a Cafarnaum com os barquinhos dos pescadores.

Quando, então, no dia seguinte, encontram Jesus em Cafarnaum, não sa-bendo como ele atravessou e inconscientes de sua manifestação aos discípulosnas ondas do mar, perguntam: “Rabi, quando chegaste aqui?” O termo “rabi”(= “mestre”; cf. 1,38) nos coloca em atmosfera de ensinamento (cf. vv. 59).

Se já é misteriosa a presença de Jesus em Cafarnaum, mais ainda a suaresposta: Jesus denuncia que eles o procuram, não por terem visto “sinais”,mas porque encheram a barriga (>com. vv. 14-15). Perceberam o milagreapenas como meio de matar a fome, e não como sinal de algo mais. Nãoperceberam que era uma manifestação da presença de Deus em Jesus (cf.supra, vv. 16-21; cf. também 2,11). Ora, se procuram apenas alimento ma-terial vão ficar com fome novamente (cf. 4,13). Se é apenas esse o seudesejo, o sinal não significou nada para eles. Queriam segurar Jesus e fazê-lo rei (vv. 15). Para quê? Para fornecer pão? Um rei-padeiro? Claro, é im-portante que o povo tenha pão, e todos se devem empenhar por isso, maspara isso Deus não precisa mandar seu “Filho unigênito” (3,16). Se é parater pão, que lutem pela justiça social!

Jesus vem trazer algo mais fundamental, algo que não forneça apenasalimento e bem-estar, mas que seja o fundamento profundo da solidariedadee da justiça social, das relações entre as pessoas humanas e com o próprio

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25-27

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Deus. Jesus lhes ensina a se esforçarem pelo pão que “permanece para a vidada era eterna” (>com. 6,40) e que o Filho do Homem lhes dará, pois ele levao selo, o atestado de autenticidade e autoridade conferido por Deus (v. 27).O “sinal” do pão é a garantia dessa autoridade que ele recebe do Pai.

Perguntam o que devem fazer para agradar a Deus. Jesus responde que“a obra de Deus” (= o que eles devem fazer para agradar a Deus) é queacreditem naquele que Ele enviou. (Alguns interpretam o v. 29 de mododiferente: a “obra que Deus faz” é que eles acreditem.)

Embora não percebam o alcance de tudo isso, os interlocutores entendemacertadamente que Jesus se refere à sua própria missão. Por isso, pedem aJesus um sinal de sua autoridade para legitimar sua missão (cf. 1Cor 1,22):“Que sinal fazes tu? Os nossos antepassados comeram o maná no deserto,como está escrito na Bíblia: Deu-lhes pão do céu a comer” (Sl 78,24; Ex16,15…). Querem ver (um sinal) para crer (>exc. 6,36). Apesar de terempresenciado, no dia anterior, um sinal que fala por si, pedem uma prova deautoridade! Não entenderam o significado do sinal do pão.

Jesus tenta mostrar a diferença entre o que eles têm em mente e o domque ele oferece:

28-30

31

32-34

“os judeus” Jesus

(por meio de Moisés) não foi Moisés … é meu Pai

nossos pais comeram o maná no quem vos dá o verdadeiro pãodeserto, como está na Escritura: do céu.‘Deu-lhes a comer pão do céu’”.

Moisés não deu (no passado) pão do céu aos seus antepassados; o maná,outrora, foi no máximo uma prefiguração. Agora, no presente, “meu Pai dáo verdadeiro pão do céu”. Não é um alimento qualquer, mas “o” pão do céu.Não é do passado, mas acontece hoje (“dá”). Não é mediado por Moisés,mas vem de Deus mesmo. Este pão é “aquele que desce do céu e dá vida aomundo”. “Ao mundo”, não só a eles, os israelitas.

Duros de compreensão, continuam pensando em pão material e pedemque possam ter sempre esse pão (mal-entendido semelhante ao da samarita-na, a respeito da água, em 4,15; e ao dos discípulos a respeito do alimento,em 4,33).

Na primeira de suas autoproclamações simbólicas/figurativas (>exc. abai-xo), Jesus revela: “O pão da vida sou eu! Quem vem a mim não terá maisfome e quem crê em mim não terá mais sede”. Quem conhece a Bíbliareconhece aqui textos em que pão (e bebida) simbolizam o ensinamento e a

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6,1-71

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sabedoria de Deus, p. ex. Is 55,1-3. A passagem do sentido material (o mal-entendido dos judeus) para o sentido simbólico se confirma pelo fato de aterminologia se ampliar do campo da fome para o da sede. A literaturasapiencial associa comer e beber com a instrução da Sabedoria (Pr 9,5; Sr15,3; 24,21). É nessa pauta sapiencial que se deve interpretar o gesto deJesus e as palavras que agora vão seguir. No v. 45 aparece claramente queo dom que vem do céu em Jesus é o ensinamento de Deus que ele nos dáa conhecer (cf. v. 45). Os vv. 35-50 constituem uma leitura sapiencial dosinal do pão e da missão de Jesus, que é este pão em pessoa.

Jesus se revela em símbolos

O Evangelho de João apresenta uma maneira muito própria de Jesus falar:suas autoproclamações em linguagem simbólica. Nos outros evangelhos,Jesus fala como profeta ou como mestre popular: anuncia e denuncia, exortae ensina em parábolas. Em Jo, sete vezes, ele toma a palavra para seautoproclamar como a realização daquilo que os grandes símbolos do povobíblico e mesmo da humanidade apontam:

• 6,35: Eu sou o pão da vida (cf. 6,41.48.51);• 8,12: Eu sou a luz do mundo (cf. 9,5);• 10,7: Eu sou a porta (cf. 10,9);• 10,10: Eu sou o bom pastor (cf. 10,14);• 11,25: Eu sou a ressurreição e a vida;• 14,6: Eu sou o caminho, a verdade e a vida;• 15,1: Eu sou a videira verdadeira.

Para compreender essa maneira de falar, devemos ter presente que João éo “evangelho pascal” — razão pela qual a liturgia colhe de João as leiturasevangélicas para o tempo pascal. Ora, o Jesus pascal é o Jesus da “memó-ria” cristã. Foi só depois da Páscoa que os discípulos realmente entenderamquem foi Jesus, aliás, quem ele é, sempre (cf. Jo 2,22; 12,16). As seteautoproclamações figurativas (em forma de símbolo) devem ser entendidasà luz da Páscoa, do mistério da morte e vida de Jesus. Assim como Jesusnas suas aparições deu a entender o sentido das Escrituras do AT, assimtambém aparece à luz da Páscoa o significado de suas próprias palavras eatos. Seja lembrado que o discurso do Pão da Vida, por exemplo, é expres-samente situado na proximidade da Páscoa (6,4). As autoproclamações sãocomo se o Cristo ressuscitado estivesse a falar.

As autoproclamações não são tanto atribuições de certo predicado ou qua-lidade a Jesus, mas proclamações de que ele é aquele que se busca apontarpor tal ou tal símbolo. O texto grego destaca bem o pronome pessoal “eu”:“Eu é que sou (a porta etc.)”, ou “(A porta etc.) sou eu!” Por isso, importa

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ver em que contexto aparecem essas autoproclamações: algumas proclamamJesus como aquele que é apontado pelos “sinais” que ele faz. Depois damultiplicação dos pães, revela-se como pão da vida; por ocasião da cura docego, como luz do mundo; ao ressuscitar Lázaro, como ressurreição e vida.As autoproclamações como porta e pastor das ovelhas estão no contexto dapergunta se Jesus é o Messias. As duas últimas, caminho (verdade e vida)e videira verdadeira, ocorrem nas “palavras de despedida de Jesus”, naÚltima Ceia: quando “vai” para junto do Pai, ele se apresenta como cami-nho e quando vai derramar seu sangue, proclama-se a verdadeira videira.

Jesus sabe e acusa que muitos deles não acolhem sua revelação. “Eu vosdisse: vós me vistes (= eu estive presente a vós), mas não credes!” O “eu vosdisse” é genérico, refere-se ao anúncio de Jesus em geral; “me” refere-se àatuação de Jesus, suas palavras, os sinais que ele realiza, sem que surtamefeito de fé nos interlocutores (cf. vv. 22 e 30: é como se nem tivessem vistoo sinal do pão). Não existe laço necessário entre ver e crer. Jo 6,36 inscreve-se na dialética do “ver e crer” segundo o Quarto Evangelho.

Ver e crer — e conhecer

“Ver” e “crer” ocorrem em Jo em diversas combinações:

1. Ver e crer. Natanael (1,50), os discípulos em Caná (2,11), os romeiros emJerusalém (2,23-25; 4,43), o funcionário real (4,48), os galileus (6,2.14),Tomé (20,29) vêem (ou vão ver) sinais que são as credenciais de Jesus.Em sentido mais amplo, cf. também 4,45; 6,30; 9,36-38; 11,45; 12,11;20,8.25. É uma atitude provisória, mas pode ter grande força: o cego denascença (9,37-38), o Discípulo Amado no sepulcro vazio (20,8) vêemum indício material, mas crêem naquilo que não se vê com os olhos. Éo ver das testemunhas privilegiadas (cf. 19,35).

2. Crer e ver a glória de Deus se manifestando: 11,40.

3. Não ver e não crer: 5,37-38: a incredulidade dos que pensam ter visão,mas não a têm. Aproxima-se do sentido seguinte: ficar sem ver (no sen-tido da fé) por não crer: 9,39-41; ou não ver, no sentido de ser incapazde ver os sinais (6,26).

4. Ver fisicamente, mas não crer: 6,36; 12,37(-40); é a atitude dos incrédulos.

5. Não ver (fisicamente) e contudo crer. Os cristãos das gerações ulteriores,que, sustentados pelo testemunho dos apóstolos, devem crer em Jesussem ver os sinais (20,29 e 30-31).

A relação de ver e crer é portanto muito dinâmica. A mesma coisa se devedizer de crer e conhecer (>Voc.). Para nós, “crença” é o contrário deconhecimento, de saber. Para João, a fé é que dá o verdadeiro conheci-mento: quando se crê é que se sabe com certeza (6,69!). Pois o conhecer

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de que João fala é o conhecer por experiência e participação (como noeros), e isso é impossível sem o movimento de confiança e entrega quechamamos de fé.

Apesar da dureza do v. 36, Jesus não fica parado no problema da incre-dulidade. Ele deseja acolher a todos, na fé. “Todo (lit. “tudo”, um aramaísmo)o que o Pai me dá virá a mim, e quem vem a mim não lançarei fora.” Asúltimas palavras mostram o contraste entre a prática de Jesus e a prática dos“judeus” para com os que crêem nele (“lançar fora”, cf. 9,34; cf. 9,22).Acolhendo os que lhe são confiados, Jesus cumpre a missão que o Pai lheconfiou: “Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontadedaquele que me enviou. E a vontade daquele que me enviou é esta: que eunão perca nenhum (lit. “nada”, aramaísmo) daqueles que ele me deu, mas osressuscite no último dia” (cf. v. 12).

No v. 40, então, a vontade do Pai é definida como segue: “que qualquerum que vê o Filho e nele crê tenha [a] vida [da era] eterna”. O “ver” (>exc.6,36) significa aqui: ter genuína experiência de Jesus. Muitas pessoas ouvemfalar de Jesus numa maneira que não as atinge, porque mal impostada. Dessaspessoas não se pode cobrar tal fé. Mas o leitor joanino é o membro dacomunidade. Para ele, o ver (= ter contato mediante o testemunho apostóli-co) se torna um convite a crer (a permanecer firme na fé).

O termo “vida eterna” deveria ser traduzido como “vida do éon”, ou seja,da era vindoura, eterna. Não se trata de um prolongamento eterno, infinito, davida temporal, mas de uma vida que pertence a outro âmbito, ao “século dosséculos”, o “século vindouro” (>exc. 11,27), em oposição a “este sécu-lo/mundo”, que com a vinda do Cristo já começou a ruir (cf. 13,31; 16,33).A repetição insistente “eu o ressuscitarei no último dia”, nos vv. 39.40.44.54,identifica esse dom da vida [da era] eterna com aquilo que na linguagemapocalíptica é representado pela ressurreição no “último dia” (= o dia dojuízo, cf. Dn 12,1-3). Veja também Jo 5,28-29.

Os judeus “murmuram” porque Jesus se chama a si mesmo “o pão quedesceu do céu”. Não é ele o filho de José (cf. Mc 6,2b-3 par.)? Não conhe-cem seu pai e sua mãe? Jesus censura seus murmúrios: para os hebreus nodeserto tal murmurar teve conseqüências trágicas (Ex 16,2.7; Nm 14,2.27...).Não pensem que suas cabeças, se não se livrarem dos preconceitos, sejamcapazes de compreender quem ele é. Só o verdadeiro fiel pode entender quea origem humana de Jesus não contradiz sua origem e missão divinas. Nãoadianta explicar isso a quem não crê.

No v. 44, muda o tom. Jesus esquece a situação (os resmungos) e iniciaum monólogo de revelação. Ninguém pode ir a Jesus (= crer nele, aderir a

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ele) se o Pai não o atrai, ou, positivamente, se alguém crê nele, é porque oPai o atrai (então, no fim, Jesus o ressuscitará; cf. v. 39-40).

Será que só pode ser salvo quem Deus, arbitrariamente, escolhe e atrai aJesus? Vejamos o contexto: João discute com pessoas muito piedosas, quepensam que por sua piedade merecem as graças de Deus. A essa atitude opõe-se como alternativa concreta o crer em Jesus, por gratuita atração de Deus. Osque são atraídos por Deus e aderem a Jesus, esses estão no caminho da sal-vação. Mas não os piedosos “que têm Deus no bolso”. Novamente, João estáfalando para os de dentro, para fortalecê-los na fé em Jesus, que é graçarecebida de Deus.

Quando acontece essa graça — a saber, na comunidade cristã —, realiza-se a palavra da Escritura: “Todos se tornarão discípulos de Deus”. Esta frasecita Is 54,13, texto de teor escatológico, evocando a restauração do povo, deJerusalém e da Aliança (a continuação deste texto, Is 55,1-3, já foi lembrada,há pouco, em Jo 6,36). Na mesma linha da instrução por Deus podemoslembrar Jr 31,33-34 (a nova Aliança da Lei inscrita no coração) e Ez 26,26-27 (o novo “coração” = conhecimento de Deus). Quem escuta Deus e deleaprende vai a Jesus.

Ora, o ser “discípulo de Deus” se realiza por meio do Revelador. Nin-guém (senão ele) viu Deus (cf. 1,18). Só Jesus, que vem de junto do Pai, éque viu o Pai e pode dá-lo a conhecer (cf. 3,14). O conhecimento que seadquire sendo discípulo de Deus, por mediação de Jesus, não é um conhe-cimento teórico, porém, prático. Instrução, ensinamento na Bíblia é normal-mente coisa prática: o caminho da vida. Conhecer o Pai por intermédio deJesus implica seguir os passos de Jesus, seu caminho e procedimento. “Eusou o caminho, a verdade e a vida” (cf. 14,6-9).

Com o solene “amém, amém”, Jesus inicia a conclusão de sua fala. Anun-cia: o que nele crê tem vida [da era] eterna (cf. 3,15.16.36). Neste sentido, eleé o Pão da Vida. E, dando uma resposta cabal ao desafio que os judeusformularam no início da conversa (v. 31), acrescenta: “Os vossos pais come-ram o maná no deserto e, no entanto, morreram”. Pois o que os pais comeramnão foi o verdadeiro “pão da vida”, não lhes garantiu a “vida” — no sentidoem que Jesus a entende. Jesus é o “pão que desce do céu para que não morraquem dele comer”.

Uma consideração final: até aqui foi dito que o Pai dá o pão que descedo céu, e esse pão é Jesus. Jesus é o ensinamento/sabedoria de Deus (cf.1Cor 1,24). Não aquilo que ele transmite por palavras, mas todo o seu viveré ensinamento de Deus para nós. A Torá (= Instrução) é Jesus! (cf. 1,1: APalavra é Jesus).

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O sermão poderia terminar aqui. Mas o tema é tão rico que o evangelistanão resiste a aprofundá-lo mais ainda. O v. 51 reassume o assunto, queparecia encerrado, mediante uma nova autoproclamação de Jesus como pão.Mas há uma diferença. Em vez de se autoproclamar “o pão da vida”, comoem 6,35.48, Jesus diz: “Eu sou o pão vivo que desce do céu”. Ele não apenasdá a vida, ele é o “pão vivo”, ele tem a vida em si mesmo (cf. 1,4; 5,26; ea imagem da “água viva”, 4,10.11; 7,38). Quem comer “deste pão” — Jesusaponta aqui para si mesmo — viverá “para a eternidade”. Este termo pode-se traduzir no sentido fraco: “(viverá) para sempre”; ou no sentido acentua-do, conforme nossas observações acima: “para a era eterna”, a vida do âmbitode Deus (>com. vv. 39-40). Essa “vida da era eterna” não é um prolonga-mento da vida material, resultado da procriação, da alimentação, do nome,da fama; tampouco um “descanso eterno”. É uma vida nova, que se iniciaquando se adere a Jesus e se vive como ele, em doação da própria vida (cf.1Jo 3,16-18).

Jesus não é apenas aquele que encarna o dom sapiencial, o “pão davida”, como ensinamento vital de Deus (6,35-50). Ele mesmo é o pão “aovivo” (6,51a). Ele “vive” o dom de Deus, a doação da vida. E quem aderea ele tem a vida do novo éon (6,51b). Jesus explicita que ele é o pão vivoporque dá sua própria “carne”, termo que não deixa nenhuma dúvida sobreo caráter material e histórico dessa “vida”, que é o dom de Deus e a autodoaçãodo Filho (6,51c). Jesus não transmite meramente uma vida no sentido deensinamento, ele põe em jogo seu existir carnal para ser o dom de Deus:assim, ele nos ensina a vida verdadeira e a dá também. Em 6,51 não se trataapenas do pão da sabedoria que o Pai dá, por meio do ensinamento de Jesus,mas do pão que Jesus dá: sua “carne”, a vida humana da qual ele vaidespojar-se para que o mundo tenha vida. É uma perspectiva mais específicaque a perspectiva “sapiencial” dos vv. 35-50. Antes, o pão do qual Jesusfalava significava sua mensagem a respeito do Pai. Agora é focalizado seuato central, o dom de sua vida (carne e sangue) na cruz. Exatamente nomomento da cruz, Jesus será mais do que nunca mensagem e palavra do Pai.

Esse dom da própria vida é o que se comemora na refeição eucarísticada comunidade; isso é lembrado sobretudo pelos termos “minha carne paraa vida do mundo”. João reproduz aqui com leves diferenças a fórmula eu-carística “meu corpo para vós” (1Cor 11,24; cf. Lc 22,19), baseada no textodo Servo Sofredor Is 53,4-8 e lembrada também nos anúncios da Paixão:“para dar sua vida em resgate para muitos” (Mc 10,45 par.). As diferençassão típicas da teologia do Quarto Evangelho: “corpo” vira “carne”, pois Joãoinsiste em chamar a existência de Jesus “carne” (1,14; cf. 1Jo 4,2); “para

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vós” ou “para muitos” se torna “para a vida do mundo”, pois o contextoanterior já estava falando do dom da vida, e João chama os destinatários dasalvação de “o mundo” (cf. 12,9; 3,16.17.19; 4,42 etc.). Assim, a fórmula soamais universal que em 1Cor 11,17-34.

Estes versículos se distinguem por um caráter fortemente iniciático: sóos iniciados entendem. Comer a carne e beber o sangue são termos altamenteprovocantes para ouvidos judaicos (cf., p.ex., Lv 17,12). O realismo destafala serve para provocar o paradoxo da fé, isto é, para mostrar que a fé emJesus não é compatível com o apego rígido às categorias do judaísmo. Já nãovale o sistema que Jesus chamará “vossa lei” (veja 8,17; 10,34). Mais: acomunidade joanina rompe com a Sinagoga, ambiente em que João situaestas palavras (v. 59). A insistência extrema mostra que tal rompimento foiduro. João parece interpretar o gesto eucarístico de Jesus como ab-rogaçãodos tabus da Lei, sobretudo o tabu do sangue. Em Paulo temos algo seme-lhante: a morte de Jesus põe fim ao tabu dos “pendurados no madeiro” (Gl3,13; cf. Dt 21,23). São símbolos que significam a ab-rogação do regimeantigo. (Aparentemente, a comunidade joanina não se importa com o “decre-to dos Apóstolos” de At 15,20.29, que proíbe o consumo de sangue.)

Os judeus discutem sobre o que Jesus está querendo dizer com “dar suacarne a comer”. Jesus explica (mais para nós do que para eles): “Se não co-merdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis[a] vida em vós”. Se eles não comem (= recebem na fé) a carne (= existênciahumana) e bebem o sangue (= dom da vida) do Filho do Homem, eles nãotêm vida em si, estão mortos. Essa frase (v. 53) é um resumo daquilo quejá foi dito anteriormente. Mas João vai mais longe. No v. 54, ele usa, nolugar de “comer”, um termo muito material, que, por falta de outro melhor,traduzimos por “mastigar”: “Quem mastiga minha carne e bebe meu sanguetem vida (da era) eterna” — e participará da ressurreição do último dia (queo Pai confiou a Jesus).

Por que Jesus usa uma linguagem tão material para expressar uma rea-lidade que supera de longe nosso materialismo? Um membro da sinagogapoderia até aceitar as expressões em que Jesus evoca o alimentar-se delefigurativamente, como se diz a respeito da Sabedoria (Is 55,1-3; Pr 9,5 etc.;>com. 6,35). Mas mastigar! Esta linguagem revela novamente o carátermistagógico do Evangelho de João (destinado para os de dentro; cf. os epi-sódios de Nicodemos e da samaritana). O “bom entendedor” — o cristãoinstruído, ao qual este evangelho se dirige — percebe que se trata do gestoque os fiéis realizam na fração do pão sob ação de graças (eucaristia). Eleentende, porque participa da comunidade reunida para a refeição (= comer

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e beber) de Jesus, que doa sua vida humana (a carne) e derrama sua forçavital (o sangue derramado desde a cruz). A refeição da comunidade fazparticipar do modo de viver de Jesus. Ela significa e provoca este modo deviver. Os que participam eficazmente da comunidade que celebra a eucaristiado corpo e sangue de Jesus têm a vida da era eterna e terão parte na ressur-reição do último dia, anunciada pelos profetas.

“Minha carne é verdadeiro alimento e meu sangue é verdadeira bebida”(v. 55). Devemos entender esse “verdadeiro” como sinônimo de “material”(realismo do rito) ou no sentido teológico que o termo geralmente tem emJo (aquilo que vem de Deus e participa de sua autenticidade; cf. 8,26)?Inclinamo-nos pelo sentido “joanino”, e interpretamos assim: a práxis huma-na de Jesus e seu sangue derramado são alimento e bebida verdadeiros,portadores da “graça e verdade”, do amor fiel de Deus. Isso não impede queo texto realce também a participação material do gesto eucarístico, expressapelo termo “mastigar”, que evoca a participação e o vínculo com a comuni-dade celebrante (os vv. 60-66 aludem ao fenômeno do afastamento da comu-nidade). Quem mastiga esse verdadeiro alimento e bebe essa verdadeirabebida — o fiel que participa do gesto eucarístico e da vida da comunidadecristã — tem comunhão com Cristo: “Ele permanece em mim e eu nele”(v. 56, que parece transpor para a Eucaristia o que 17,23 diz da união na fée na caridade). Jesus tem em si a vida, pelo poder do Pai que o enviou; porisso, o fiel terá essa vida, viverá por meio de Jesus (o tempo futuro podereferir-se aqui tanto à ressurreição como à existência cristã no mundo). Essacomunicação da vida, do Pai para o Filho e do Filho para os seus, é muitosemelhante à comunicação do amor descrita em 15,9-17.

A fala de Jesus termina, no v. 58, num eco dos versículos 48-51: “Esteé o pão que desceu do céu. Não é como aquele que vossos pais comeram —e no entanto morreram. Quem mastiga este pão viverá para a eternidade” (=“para a era de Deus”, cf. acima, vv. 39-40).

A autenticidade do “discurso eucarístico”

Muitos estudiosos dão a Jo 6,51-58 (ou 51c-58) um tratamento à parte.Alegam que o realismo (ou até materialismo) sacramental não combina como resto do Quarto Evangelho. Há notáveis diferenças semânticas em relaçãoao discurso de 6,31-50: o pão é material, o alimentar-se é material (“mas-tigar”), quem dá o pão não é o Pai, mas Jesus. O dom da própria vida comoalimento chega a sugerir o que foi chamado de “canibalismo cafarnaíta”(v. 52). É um pão que dá vida para sempre. Sobretudo este último temasuscita, segundo alguns, a suspeita de que os vv. 51-58 introduzem a idéia

55-58

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do sacramento como “remédio de imortalidade” (o mesmo vale talvez para“e eu o ressuscitarei no último dia”, não só no v. 54 como também nosvv. 39, 40 e 44). O “discurso eucarístico” seria um acréscimo, uma detur-pação da autêntica teologia joanina.

Temos guardado essa questão para o fim de nossa leitura, porque nossaanálise mostrou por si mesma que não há incompatibilidade entre a partesapiencial (vv. 31-50) e a parte eucarística (vv. 51-58). Talvez seja umacomplementação legítima do texto, como aconteceu, por exemplo, nos ca-pítulos 15–16. A releitura nos vv. 51-58 quer situar o sentido de Jesus-Pãoda Vida, que acaba de ser exposto brilhantemente nos vv. 31-50, na reali-dade do rito eucarístico. É como se o evangelista dissesse: “O que Jesuspropõe dizendo que é o Pão da Vida, nós o celebramos quando nos alimen-tamos com o pão eucarístico, ponto de referência de nossa comunidade”.

Não se deve interpretar 6,51-58 separado de 6,31-50: o núcleo central é omesmo, mas o tipo de texto é outro: 6,31-50 é uma meditação sapiencialsobre a palavra e a obra de Jesus como Pão da Vida, e 6,51-58, uma homiliasacramental.

III. Opção pró ou contra Jesus (6,59-71)

O vv. 59 constitui a transição para o desenlace deste episódio dramático.Foi na reunião sinagogal (lit.: “em sinagoga”), em Cafarnaum, que Jesusfalou assim. Essa não é meramente uma nota circunstancial. Pelo contrá-rio, faz surgir no horizonte todo o conflito da comunidade joanina, que, notempo em que o evangelho é escrito e divulgado, se encontra excluída daSinagoga. Nesse momento, a sinagoga dos “judeus” (termo usado nos vv. 41e 52) — a comunidade judaica reorganizada pelos rabinos farisaicos depoisdo fim do Templo — representava para os leitores do Quarto Evangelho a“concorrência”: estava fazendo propaganda entre os fiéis judeo-cristãos dacomunidade de João. É bom ter isso presente ao ler os versículos seguintes.

Muitos “discípulos” que estão aí escutando acham as palavras de Jesusinaceitáveis (lit. “duras”, no sentido de incompreensíveis ou escandalosas).Jesus sabe interiormente que eles estão “murmurando” (cf. vv. 41). “O queeu disse do pão que desce do céu vos causa problema, vos ofende? Queacontecerá então quando virdes o Filho do Homem subir para onde estavano início?” Os que esperavam um profeta e rei que fornecesse pão (6,14-15),um Messias que ficasse com eles para resolver problemas que eles mesmosdeveriam resolver, não podem imaginar um Filho do Homem que se serveda cruz para subir ao céu (>com. 12,33-34). Eles precisam de conversão paraentender a missão de Jesus. Eles são ainda carne, humanidade fechada sobresi (>com. 3,6-8). Compreender Jesus é obra do Espírito de Deus. As palavras

59

60-63

6,1-71

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de Jesus são espírito (= realidade de Deus) e são vida (= dom de Deus). A“carne”, no sentido de auto-suficiência humana, não serve para compreendera palavra de Jesus, nem para a transformação da gente.

Jesus, em tudo isso, sabe bem que nem todos que se dizem discípulosrealmente acreditam; há quem vai entregá-lo (cf. v. 71). Esta anotaçãoparentética, bem no estilo do quarto evangelista (>Intr. § 2.1.5), não pretendetanto denunciar Judas quanto avisar os que não crêem a respeito da gravi-dade de sua atitude. Ora, apontando a traição, será que João não está “cen-surando os ausentes”, como certos pregadores costumam fazer nas nossasigrejas? Não. Com essa observação João quer advertir os participantes dacomunidade para que permaneçam na fé (>com. 8,31-32; 20,30-31). Nestaóptica entende-se que, no v. 71, ele cite Judas, “um dos Doze”, um seguidorda primeira hora, como o exemplo por excelência da desistência!

Os discípulos estão, portanto, diante de uma opção. A palavra de Jesusé uma “espada de dois gumes” (Is 49,2; Ap 19,15), que opera um corteradical entre a fé e a incredulidade. Entre os que se dizem discípulos, muitosvoltam as costas para Jesus. “E vós”, pergunta Jesus aos Doze, os discípulospor excelência, “quereis também ir embora?” Pedro, falando em nome detodos, responde: “Senhor, a quem iríamos. Tu tens palavras de vida eterna”(cf. v. 64). Em seguida, pronuncia um exemplo de confissão de fé: “Nóscremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus!” (no grego,os verbos estão no tempo perfeito, com efeito no presente: “Nós temos féfirme e conhecimento estabelecido”).

Os vv. 67-71 e 20,24 são os únicos textos em Jo que mencionam os“Doze”. Os lugares são significativos. Em 20,24, identifica Tomé como umdaqueles que serão reconhecidos como os garantes do testemunho apostóli-co, e em 6,67-71 os Doze constituem o grupo que pronuncia a decisivaconfissão de fé. A Igreja joanina, embora tendo sua trajetória própria, seinclui na “grande Igreja” dos Doze.

Acolhendo essa profissão de fé, Jesus lembra a precariedade de todocompromisso humano: ele os elegeu para serem os Doze (representantes donovo Israel, cf. 6,13), mas um deles é um diabo (>Voc.)! Os tempos daapostasia são tremendos. Nem mesmo os Doze estão seguros na fé. Bem noseu estilo e completando o que disse em 6,64-65, o evangelista acrescentauma nota (v. 71) para identificar esse “diabo”: de modo dramático, encerrao episódio apontando “Judas, [o filho] de Simão Iscariotes, pois esse iriaentregá-lo, sendo um dos Doze” (cf. 13,2.27). Todavia, só no fim percebe-remos as dimensões reais dessa denúncia (>com. 19,11).

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O cap. 6 enseja uma reflexão sobre a visão do Quarto Evangelho. Acomparação com os sinópticos permite descobrir melhor essa visão,subjacente também ao resto do evangelho. Nos sinópticos, a multipli-cação dos pães é sinal e exemplo prático do reino de Deus. Ensina atécomo fazer: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6,37 par.). EmJoão, o dom do pão é símbolo de Jesus, dom de Deus por excelência(cf. 3,16), até na doação do próprio corpo e sangue, celebrado narefeição eucarística da comunidade.

Acostumamo-nos a ler a multiplicação dos pães em Mc 6,32-44 comoparadigma da organização da comunidade em torno do problemamaterial do pão. Tal leitura seria sustentável no caso do Quarto Evan-gelho? Ou será que João “espiritualiza” a tradição das primeirascomunidades? “O Espírito é que dá vida, a carne de nada serve”(6,63). Mas que significam estes termos? Que é a “carne”, a compreen-são carnal do sinal do pão?

A compreensão “carnal” que João rejeita não é nossa leitura “mate-rial”, mas a interpretação conforme critérios humanos fechados, comoera o messianismo nacionalista do judaísmo dominante. Tal messianis-mo não tem vez em João. Jesus não veio para ser Messias segundo oconceito vigente, um “salvador da pátria”. Ele está no nível do Espí-rito, isto é, no âmbito da atuação de Deus, que consiste antes de tudona transformação das pessoas pela Palavra que é Jesus. Palavra emforma de ação, de vida vivida até a morte por amor fiel. Ser espiritualé deixar-se ensinar por essa Palavra; então é que se vai ao Pai.

Se o texto de João é “espiritual” neste sentido, isso é tudo menosespiritualismo! Não foge daquilo que é material. A espiritualidade doEspírito de Jesus pode ser muito material! Assim como ele mesmo éPalavra que se tornou carne (1,14), do mesmo modo quem escuta essapalavra e se torna discípulo de Deus (6,45) encarna o Espírito nelederramado. Encarna-o na fidelidade, na doação à comunidade —comunidade de fé, de ação e de celebração, como o conjunto destecapítulo deixa entender. E essa doação à comunidade se encarna, porsua vez, em realidades materiais, sociológicas etc.

Assim, o sinal do pão, prefigurado por Moisés e os profetas, é elevadoa seu sentido supremo por Jesus. O evangelista Marcos nos faz verseu sentido de práxis comunitária. João focaliza a própria práxis da

6,1-71

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vida de Jesus, dada pela vida do mundo e centro da celebração eu-carística. Jesus nos dá em alimento sua carne — sua palavra e suapráxis, enfim, sua pessoa, que encarna o ensinamento de Deus. E estealimento torna-se, em nós, eficaz e transformador a longo prazo, nãoconforme os parâmetros da “carne” limitada, mas em virtude doEspírito de vida de Deus, que não conhece limite. Assim torna-se“pão da vida [da era] eterna”, alimento que nos faz viver, hoje esempre, no âmbito de Deus.

A festa das Tendas (7,1–8,59)

I — 7 1Depois disso, Jesus percorria a Galiléia; não queria circular naJudéia, porque os judeus procuravam matá-lo.2Estava próxima a festa dos judeus, a festa das Tendas. 3Os irmãosde Jesus disseram-lhe: “Sai daqui e vai para a Judéia, para quetambém os teus discípulos vejam as obras que fazes. 4Ninguém fazalgo em segredo quando procura ser publicamente conhecido. Jáque fazes essas coisas, manifesta-te ao mundo”. 5Pois nem os seusirmãos acreditavam nele. 6Jesus, então, disse a eles: “Ainda nãochegou o tempo oportuno para mim. Para vós, ao contrário, o tempoé sempre oportuno. 7A vós, o mundo não tem como odiar, mas a mimodeia, porque eu dou testemunho dele mostrando que suas obras sãomás. 8Vós podeis subir para a festa. Eu não subo para esta festa,porque meu tempo oportuno ainda não se completou”. 9Dito isso,permaneceu na Galiléia.10Depois que seus irmãos subiram para a festa, Jesus subiu também,não publicamente, mas em segredo. 11Os judeus, então, o procura-vam na festa e perguntavam: “Onde está ele?” 12Muito se murmu-rava a seu respeito no meio do povo. Uns diziam: “Ele é bom!”,outros: “Não, ele ilude o povo!”13Ninguém, entretanto, falava dele publicamente, por medo dos judeus.

II — 14Lá pelo meio da festa, Jesus subiu ao templo e começou a ensinar.15Os judeus comentavam admirados: “Como esse sujeito é tão letra-do, sem nunca ter recebido instrução?” 16Jesus respondeu: “O meuensinamento não vem de mim mesmo, mas daquele que me enviou.17Se alguém está disposto a fazer a sua vontade, saberá se meuensinamento é de Deus ou se falo por mim mesmo. 18Quem fala por

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si mesmo procura sua própria glória; mas quem procura a glóriadaquele que o enviou é verdadeiro e nele não há falsidade. 19Moisésnão vos deu a Lei? No entanto, nenhum de vós cumpre a Lei. Porque procurais matar-me?” 20A multidão respondeu: “Tu tens umdemônio! Quem é que te quer matar?” 21Jesus replicou: “Fiz umaobra só, e vós todos ficastes admirados. 22Moisés vos deu a circun-cisão (embora ela não venha de Moisés, mas dos patriarcas); porisso, fazeis a circuncisão mesmo no dia de sábado. 23Então, se al-guém pode receber a circuncisão num dia de sábado, para não faltarcom a Lei de Moisés, por que estais indignados comigo por tercurado um homem inteiro em dia de sábado? 24Não julgueis pelasaparências; julgai de acordo com a justiça”.25Alguns de Jerusalém diziam: “Não é este a quem procuram matar?26Olha, ele fala publicamente e ninguém lhe diz nada. Será que oschefes reconheceram que realmente ele é o Cristo? 27Mas este, nóssabemos de onde é; ora, quando vier o Cristo, ninguém saberá deonde é”. 28Enquanto pois ensinava no templo, Jesus exclamou: “Sim,vós me conheceis e sabeis de onde eu sou. Ora, eu não vim por contaprópria; aquele que me enviou é verdadeiro, mas vós não o conheceis.29Eu o conheço, porque venho dele e foi ele quem me enviou!” 30Elesprocuravam, então, prendê-lo, mas ninguém lhe pôs as mãos, porquesua hora ainda não tinha chegado. 31Da multidão, muitos acredita-vam nele. E diziam: “Quando vier o Cristo, acaso fará mais sinaisdo que este?”32Os fariseus perceberam que a multidão murmurava tais coisas a res-peito de Jesus. Os sumos sacerdotes e os fariseus mandaram entãoguardas para prendê-lo. 33Mas Jesus lhes disse: “Por pouco tempoainda estou convosco; depois vou para aquele que me enviou. 34Vós meprocurareis e não me encontrareis. E lá onde eu estarei, vós não podeisir”. 35Os judeus comentavam: “Para onde irá, de modo que não o po-deremos encontrar? Acaso irá à diáspora, entre os gregos? Irá ensinaraos gregos? 36Que significa a palavra que ele falou: ‘Vós me procurareise não me achareis’ e: ‘Lá onde eu estiver, vós não podeis ir’?”

III — 37No último e mais importante dia da festa, Jesus, de pé, exclamou:“Se alguém tem sede, venha a mim, e beba 38quem crê em mim” —conforme diz a Escritura: “Do seu interior correrão rios de águaviva”. 39Ele disse isso falando do Espírito que haviam de receber osque acreditassem nele; pois não havia o Espírito, porque Jesus aindanão tinha sido glorificado.

7,1–8,59

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40Tendo ouvido essas palavras, alguns da multidão afirmavam: 41“Ver-dadeiramente, ele é o profeta!”. Outros diziam: “Ele é o Cristo!”;mas outros discordavam: “O Cristo pode vir da Galiléia? 42Não diza Escritura que o Cristo será da descendência de Davi e virá deBelém, o povoado de Davi?” 43Daí surgiu divisão na multidão porcausa dele.44Alguns queriam prendê-lo, mas ninguém lhe pôs as mãos. 45Osguardas então voltaram aos sumos sacerdotes e aos fariseus, quelhes perguntavam: “Por que não o trouxestes?” 46Responderam: “Nin-guém nunca falou como este homem”. 47Os fariseus disseram-lhes:“Vós também vos deixastes iludir? 48Acaso alguém dos chefes ou dosfariseus acreditou nele? 49Mas essa gente que não conhece a Lei…são uns malditos!” 50Nicodemos, porém, aquele que tinha ido a Jesusanteriormente, observou, embora sendo um dentre eles: 51“Será quea nossa Lei julga alguém antes de ouvir ou saber o que ele fez?”52Eles responderam: “Tu também és da Galiléia? Examina, e verásque da Galiléia não surge profeta”. [7,53–8,11]

IV — 8 12Jesus falou ainda aos judeus: “Eu sou a luz do mundo. Quem mesegue não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida”.13Os fariseus então disseram: “O teu testemunho não vale como ver-dadeiro, porque dás testemunho de ti mesmo”. 14Jesus respondeu:“Embora eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemunho é ver-dadeiro, porque eu sei de onde venho e para onde vou. Mas vós nãosabeis de onde venho, nem para onde eu vou. 15Vós julgais segundoa carne; eu não julgo ninguém, 16e se eu julgo, o meu julgamento éverdadeiro, porque eu não estou só, mas o Pai que me enviou estácomigo. 17Na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas pessoasvale como verdadeiro. 18Ora, eu dou testemunho de mim mesmo, etambém o Pai, que me enviou, dá testemunho de mim”. 19Eles, então,perguntaram: “Onde está o teu Pai?” Jesus respondeu: “Vós nãoconheceis nem a mim, nem a meu Pai. Se me conhecêsseis, conheceríeistambém o meu Pai”. 20Ele falou essas coisas enquanto ensinava notemplo, junto à sala do tesouro. Ninguém o prendeu, porque sua horaainda não tinha chegado.

V — 21Jesus lhes disse ainda: “Eu vou embora, e vós me procurareis; masmorrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis ir”.22Os judeus, então, comentavam: “Acaso ele irá se matar? Pois elediz: ‘Para onde eu vou, vós não podeis ir’”. 23Ele continuou a falar:

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“Vós sois daqui de baixo; eu sou do alto. Vós sois deste mundo; eunão sou deste mundo. 24Eu vos disse que morrereis nos vossos peca-dos. Se não acreditais que ‘eu sou’, morrereis nos vossos pecados”.25Eles lhe perguntaram: “Quem és tu, então?” Jesus respondeu: “Aprincípio, isto mesmo que vos estou falando. 26Tenho muitas coisasa dizer a vosso respeito, e a julgar também. Mas aquele que meenviou é verdadeiro, e o que ouvi dele é o que eu falo ao mundo”.27Eles, porém, não compreenderam que estava lhes falando do Pai.28Por isso, Jesus continuou: “Quando tiverdes elevado o Filho doHomem, então sabereis que ‘eu sou’, e que nada faço por mim mesmo,mas falo apenas aquilo que o Pai me ensinou. 29Aquele que meenviou está comigo. Ele não me deixou sozinho, porque eu semprefaço o que é do seu agrado”.

VI — 30Como falasse estas coisas, muitos passaram a crer nele. 31Jesus,então, disse aos judeus que tinham passado a crer nele: “Se perma-necerdes em minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos;32e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres”. 33Elesresponderam: “Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomosescravos de ninguém. Como podes dizer: ‘Vós vos tornareis livres’?”34Jesus respondeu: “Amém, amém, vos digo: todo aquele que cometeo pecado é escravo do pecado. 35O escravo não permanece para sem-pre na casa. O filho sim, ele permanece na casa para sempre. 36Se,pois, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. 37Bem seique sois descendentes de Abraão. No entanto, procurais matar-me,porque minha palavra não encontra espaço em vós. 38Eu comunico oque eu vi junto do Pai; e vós, o que ouvistes do Pai, fazei-o”.39Eles responderam: “Nosso pai é Abraão”. Jesus, então, lhes disse:“Se sois filhos de Abraão, deveríeis praticar as obras de Abraão!40Agora, no entanto, procurais matar-me, porque vos falei a verdadeque ouvi de Deus. Isto Abraão não fez. 41Vós fazeis as obras do vos-so pai”. Eles disseram então a Jesus: “Nós não nascemos do adul-tério. Só temos um pai: Deus”. 42Jesus respondeu: “Se Deus fossevosso pai, certamente me amaríeis, pois eu saí da parte de Deuspara vir aqui. Eu não vim por conta própria; foi ele quem me enviou.43Por que não entendeis o que eu declaro? É porque não sois capa-zes de escutar a minha palavra. 44O vosso pai é o diabo, e quereiscumprir os desejos do vosso pai. Ele era assassino desde o começoe não se mantinha na verdade, porque nele não há verdade. Quandoele fala mentira, fala o que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai

7,1–8,59

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do mentiroso. 45Em mim, pelo contrário, não acreditais, porque falo averdade. 46Quem de vós pode acusar-me de pecado? Se eu digo averdade, por que não acreditais em mim? 47Quem é de Deus escuta aPalavra de Deus. Vós não escutais, porque não sois de Deus”.48Os judeus responderam: “Não temos razão de dizer que és umsamaritano e que tens um demônio?” 49Jesus respondeu: “Eu nãotenho demônio. Eu honro meu pai, mas vós me desonrais. 50Eunão procuro a minha glória. Existe Aquele que a procura e quetambém julga. 51Amém, amém, vos digo: se alguém observar a mi-nha palavra, nunca verá a morte”. 52Os judeus então disseram:“Agora estamos certos de que tens um demônio. Abraão morreu, eos profetas também, e tu dizes: ‘Se alguém observar a minha pala-vra, jamais provará a morte’. 53Porventura és maior do que nossopai Abraão, que morreu? E também os profetas morreram. Quemtens a pretensão de ser?” 54Jesus respondeu: “Se eu me glorificassea mim mesmo, minha glória não valeria nada. Meu Pai é quem meglorifica, aquele do qual dizeis: ‘É nosso Deus’. 55No entanto, vósnão o conheceis. Mas eu o conheço; e se dissesse que não o conheço,eu seria um mentiroso como vós. Mas eu o conheço e observo a suapalavra. 56Vosso pai Abraão rejubilou-se por ver o meu dia, e ele viue alegrou-se”. 57Os judeus disseram-lhe então: “Ainda não tens cin-qüenta anos, e viste Abraão?!” 58Jesus respondeu: “Amém, amém,vos digo: antes que Abraão viesse a ser, eu sou”. 59Então, pegarampedras para apedrejá-lo; mas Jesus escondeu-se e saiu do templo.

Os caps. 7 e 8 são literariamente bastante complexos. O cap. 7 tem umquadro narrativo mais sólido, estruturado pela subida e os diversos momen-tos da festa das Tendas. Depois da “Páscoa na Galiléia” do cap. 6 (cf. ali asobservações quanto à ordem dos capítulos), Jesus sobe em segredo a Jeru-salém (7,1-13), para a festa das Tendas, onde inesperadamente se põe aensinar, no meio da festa (7,14-36). No fim da festa, faz uma proclamaçãosolene, provocando reação ameaçadora dos “judeus” (7,37-52).

A auto-revelação relatada em 7,37-52 continua em 8,12 (7,53–8,11, aperícope da adúltera, é uma inserção ulterior, que será tratada no final destecomentário). A partir daí, o texto transforma-se numa sucessão de discussõesinterrompida por algumas transições (em 8,20-21 e 8,30). O cap. 8 pareceretomar e aprofundar os temas abordados no cap. 7 (como os caps. 15–16 emrelação a 14). A argumentação polêmica vai crescendo até o fim do cap. 8.Entretanto, as proclamações de 7,39 e 8,12 ocupam um lugar central, em torno

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do qual se situam mais ou menos simetricamente os temas da origem e doafastamento de Jesus, temas que parecem aludir ao Messias escondido oudesconhecido. Esta dimensão é sugerida também pelo motivo da clandestini-dade/ocultamento que domina o início e o fim do conjunto (7,1-13 e 8,58).

argumentação crescente ➝ crise

(A) I. Jesus e seus parentes (A’) VI. Discussão com os judeuse a subida clandestina que acreditaram.a Jerusalém (7,1-13) Jesus se esconde (8,30-59)

(B) II. No meio da festa. (B’) V. Discussão com os judeus.Discussão com os judeus. A “hora”.

A “hora”. Origem e afastamentoOrigem e afastamento de Jesus (8,21-29)

de Jesus (7,14-36).

(C) III. No último dia da festa: (C’) IV. Jesus luz do mundo;autoproclamação: o autotestemunho (8,12-20)

água da salvação (7,37-52)

No lugar central estão, portanto, os dois símbolos da festa das Tendas,água (7,37) e luz (8,12). A festa das Tendas comportava o traslado diárioda água de Siloé (piscina em que desembocava a fonte do Templo, o Gion)e culminava numa procissão solene com luzes e fachos. Esses símbolos serãoexplicados mais detalhadamente no comentário a seguir. Como contrapontoaparecem os temas da origem do Messias e do Messias escondido. A impres-são de conjunto é de que Jesus é de fato o Messias escondido. Numa ironiabem joanina, é mostrado que os que não crêem desconhecem na realidadesua origem. Todavia, os “iniciados” entendem sua origem, que é de outraordem que as especulações rabínicas. O conjunto produz um efeito miste-rioso, um claro-escuro contrastante, luz-trevas, vida-morte, fazendo o leitorentrar na lógica dual da opção de fé (“ou-ou”). A discussão é emolduradapelo “escondimento” de Jesus (7,10; 8,59).

No pano de fundo divisam-se os grandes temas do AT, especialmenteMoisés e a Lei (tema da festa das Tendas, cf. Ne 8–9), os temas messiânico-escatológicos de Zc 9–14 e a figura de Abraão. Se, por um lado, a polêmicacontra “os judeus” em nenhuma parte do Quarto Evangelho é mais forte queaqui, por outro lado, nenhuma parte é mais “judaica” que esta: o QuartoEvangelho reflete, mesmo, uma briga de família! Talvez os “parentes” de7,1-5 exerçam, neste sentido, o mesmo papel que “os judeus que tinhamacreditado” (e voltaram atrás) de 8,31-59.

7,1–8,59

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Quanto ao material da tradição evangélica usado ou suposto por João,observamos no início do cap. 7 alguns elementos que lembram fortementea tradição de Mc 3,20-21.31-35 e 6,1-6 (a incredulidade dos parentes deJesus). A discussão rabínica sobre o sábado, em 7,22-24, lembra as discus-sões semelhantes em Mt 12,5; Mt 12,11 (= Mc 3,4 = Lc 6,9); Lc 13,11; Lc14,3. A alusão ao nascimento do Messias em Belém parece supor que o leitorconheça a tradição reproduzida em Mt 1–2 e Lc 1–2 a esse respeito.

I. Subida clandestina (7,1-13)

Conhecendo a insegurança da Judéia e de Jerusalém, onde “os judeus”querem matá-lo (cf. 5,18), Jesus continua sua atuação na Galiléia. Aproxima-semais uma festa de romaria — uma “subida”, como dizem os judeus. Trata-se dafesta das Tendas (= Tabernáculos), em setembro-outubro, seis meses depoisda Páscoa. Celebrava-se, com muita alegria, o fim da colheita, especialmentea safra do vinho. Por essa ocasião, as pessoas abrigavam-se em cabanas, nosvinhais e pomares. Mais tarde, por uma reinterpretação teológica, essas cabanascampestres foram significando as tendas do tempo do êxodo e da libertação dopovo. (Até hoje, os judeus que vivem na cidade montam tais cabanas nostelhados e terraços das casas.) No tempo de Jesus, cada manhã, durante a festa,uma procissão levava festivamente a água do reservatório de Siloé (>com. 9,7)ao Templo, onde grandes candelabros acesos iluminavam festivamente o segun-do recinto, o “pátio das mulheres”. A festa era encerrada no sétimo (cf. Dt 16,13)ou, mais provavelmente, no oitavo dia (cf. Lv 33,39; Ne 8,18). Nesse dia, aprocissão era especialmente solene: um espetáculo de água e luz.

Os irmãos de Jesus, que permaneceram em Cafarnaum (2,12), estão que-rendo subir a Jerusalém para a festa. Talvez para satisfazer os brios do clã,querem que Jesus vá também, para mostrar seu talento aos discípulos ali. Elesparecem imaginar os discípulos como pessoas que vivem em Jerusalém (cf.2,23-25; 3,1: Nicodemos; 3,22 e 4,1: atividade batismal de Jesus na Judéia).

Os irmãos de Jesus

Os “irmãos de Jesus” são um grupo conhecido no NT (Mc 3,32-35 e par.; 6,3e par.; Jo 7,3.5.10; At 1,14; especialmente Tiago, o irmão do Senhor: Gl 1,19).Segundo Mc 6,3, eles se chamam Tiago, Joses (Mt 13,55 diz José), Judase Simão. Estes textos mostram que, pelo menos inicialmente, os irmãos doSenhor não acreditaram nele. Tanto mais ficamos surpresos ao ver um deles,Tiago, como chefe da comunidade de Jerusalém (At 12,17; Gl 1,19; 2,9.12;21,8; cf. Tg 1,1 e Jd 1). Mc, todavia, na história da paixão e ressurreição(15,40.47; 16,1), menciona três vezes Maria, a mãe desses irmãos de Jesus

7,1-2

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(Tiago e Joses) — sem mencionar Maria, a mãe de Jesus. Segundo as expli-cações da Igreja antiga (e de acordo com o sentido semítico de “irmão”), os“irmãos” seriam primos ou meio-irmãos (filhos de José, não de Maria, a mãede Jesus). Pois se a Maria que é mãe de Tiago e Joses (Mc 15,40.47; 16,1)tivesse sido a mãe de Jesus, Mc teria formulado seu texto de outra maneira.

Os irmãos provocam Jesus porque não acreditam nele. Querem ver faça-nhas (cf. 2,23-24; 4,48); não têm confiança no trabalho silencioso que eleestá fazendo, lá no interior da Galiléia. Jesus os desmascara: “Ainda nãochegou o momento oportuno (kairós) para mim. Para vós, ao contrário, omomento é sempre oportuno”.

Estas palavras de Jesus marcam, como as de 2,4 e 4,48, porém commuito mais agressividade, uma ruptura entre o que o mundo espera dele e oque ele vai fazer. É verdade que, depois, Jesus subirá a Jerusalém, porém,não por pressão do clã e sim por iniciativa própria, evidentemente de acordocom seu Pai celeste (como em todos os gestos de Jesus). A ruptura dos vv.6-8 mostra que sua subida não se inscreve no projeto que seus irmãos lheapresentam (de mostrar suas façanhas ao mundo). Jesus vai “subir” em vir-tude de uma outra lógica (cf. 20,17).

Nos vv. 7-8, Jesus acentua sua diferença em relação ao “mundo”, ao qualpertencem tanto “os judeus” quanto os “irmãos”. Contra estes, o mundo nãotem nada, pois são da mesma esfera; a Jesus, pelo contrário, o mundo orecusa, porque dá testemunho contra seu modo de agir, que é mau. Se elessobem para a festa, é porque, na opinião de Jesus, estão mancomunados com“o mundo”. O fato de serem seus parentes não faz desaparecer o abismoentre a lógica de Jesus e a dos irmãos. Isso é importante para os leitores deJoão, que são parentes dos judeus da Sinagoga, os quais rejeitam Jesus. Ora,entre os semitas, os laços familiares são muito fortes… Os leitores judeo-cristãos do tempo de João reconhecem aqui as tensões nas suas própriasfamílias. Também hoje tais rupturas são às vezes necessárias.

Notamos aqui a quase-sinonímia de “o mundo”, no v. 7, e “os judeus”,para os quais a festa das Tendas é a festa por excelência (cf. v. 2: “a” festados judeus). Eles sobem à festa porque isso cabe nos seus interesses. Jesusnão participa disso. “Meu tempo oportuno (kairós) ainda não se completou”(mesma terminologia de Mc 1,15!). Jesus não segue o ritmo do mundo; seutempo é determinado por Deus.

Dito isso, Jesus permanece na Galiléia.Todavia, depois que seus parentes subiram, e marcando assim sua distân-

cia em relação ao projeto deles (como em 2,4; 4,48 em relação à mãe e aofuncionário real), também Jesus sobe a Jerusalém. A diferença com o projeto

5-6

7-9

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7,1–8,59

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dos parentes é expressa nos termos “não publicamente, mas em segredo”. Osparentes desejavam uma manifestação pública, mas Jesus vai em segredo e,mesmo quando aparece ensinando, o seu ocultamento torna-se tema de comen-tários entre o povo. Será que sua verdadeira “subida” não se dará em outrafesta (ver 20,17), quando se manifestará de verdade, não ao mundo, mas aosseus (cf. 14,22)?

A multidão faz comentários, “murmura” a respeito de Jesus, mas o verbo“murmurar” insinua duas coisas: (1) o segredo, por medo das autoridades(cf. v. 13); (2) a presença de opiniões negativas (cf. 6,41.61). Uns o achambom, outros julgam que ele ilude o povo. Tal divisão encontra-se também em7,40-41 e 10,20-21 e reflete provavelmente as discussões em torno de Jesuse sua comunidade no tempo em que o evangelho foi escrito. Segundo 7,13,o povo em Jerusalém não comenta abertamente, por medo dos chefes dacomunidade judaica (cf. 9,22; 12,42).

II. No meio da festa (7,14-36)

No meio da semana festiva, para surpresa geral, Jesus é encontrado ensi-nando um grupo de discípulos, ao modo dos rabinos, nas galerias do Templo(compare Mc 11,27). Enquanto seus irmãos queriam que causasse admira-ção entre os discípulos por meio de sinais milagrosos (7,3-4), Jesus causaadmiração pelo ensinamento que ele transmite da parte do Pai.

“Os judeus” estranham. Como é que ele ensina? Como conhece as Es-crituras sem ter passado por uma escola, sem ter sido discípulo de algum ra-bino famoso (como Paulo aos pés de Gamaliel, At 22,3)? Não será um falsorabino? Podemos imaginar que tudo isso se comentava a respeito de Jesus.Ora, o Jesus de João é a imagem de sua comunidade. Os fariseus da sinagogacensuravam os cristãos porque seus mestres não recebiam formação nas esco-las rabínicas.

João mostra Jesus ensinando no Templo. Em si, isso nada tem de especial.O Templo, com seus grandiosos pátios e pórticos era mesmo o lugar de ensi-no em Jerusalém. Mas pode haver uma insinuação. No tempo em que o QuartoEvangelho foi escrito, o centro do judaísmo era o ensino rabínico, que ocuparao lugar do Templo, destruído uns anos antes. Ora, aos olhos do evangelista, overdadeiro substituto do Templo é Jesus (cf. 2,21). Seu ensino, não o dosrabinos, é que ocupa o lugar do Templo.

Assim assistimos aqui, na realidade, a uma polêmica não tanto entreJesus e seus contemporâneos, mas entre a comunidade joanina e os mestresjudaicos do fim do século I (cf. 5,44 etc.; os caps. 7 e 8 formam, quanto aostemas, uma unidade com o cap. 5).

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Jesus explica que seu ensinamento não é invenção própria, mas vemdaquele que o enviou. Ele teve o melhor professor que se pode imaginar…Se alguém está disposto a fazer a vontade deste, saberá se Jesus fala por simesmo ou se seu ensinamento vem de Deus. A prática do ensinamento deJesus mostra seu teor divino, sua origem no projeto do Pai. Jesus não édaqueles que falam em nome próprio e procuram a glória própria. Ele pro-cura a glória de quem o enviou. Não há nele injustiça (falta de retidão paracom Deus), ou pior, algo que mereça a morte (pois querem matá-lo). E porfalar em falta de justiça e retidão, Jesus passa a acusar os mestres judaicosde não respeitaram a Lei de Moisés. A prova disso é que eles querem matá-lo, contrariamente ao “não matarás” do Decálogo (Ex 20,13).

Condenando Jesus ao ostracismo, a turma apinhada em torno dele excla-ma: “Tens um demônio”, o que é, no mínimo, uma declaração de loucura (cf.10,20; >Voc. Demônio). Jesus não é digno de conversa. “Quem está queren-do matar-te?” De fato, ainda não houve tentativa aberta de matá-lo, masJesus sabe que eles não lhe perdoam a cura do aleijado em dia de sábado,nem aquilo que lhes falou naquela ocasião (cf. 5,10-18).

Jesus opõe à sua única cura sabática (v. 21; cf. 5,9c-18) o fato de os rabinostransgredirem com freqüência o repouso sabático (cf. semelhantes réplicas deJesus em Mt 12,11; Lc 13,15; 14,14; nenhuma dessas, porém, opõe ao repousosabático outro mandamento da Lei, como acontece aqui). Embora sem formaçãoacadêmica (cf. v. 15), Jesus profere um raciocínio “do menos importante aomais importante”, no melhor estilo rabínico: se se pode fazer coisa menosimportante no sábado, a fortiori será permitido fazer o mais importante. Na suatradição não-escrita, os rabinos julgam que a circuncisão, prescrita para o oitavodia do nascimento, supera a proibição de trabalhar no sábado. Moisés lhes deua circuncisão — que vem dos patriarcas — e eles a aplicam mesmo no dia desábado. Ora, Jesus faz algo muito maior que a circuncisão, pelo menos para oolhar irônico de João, pois a circuncisão só atinge uma parte do corpo, e Jesuscurou um homem inteiro. “Se, pois, alguém pode receber a circuncisão num diade sábado, para não faltar com a Lei de Moisés, por que estais indignadoscomigo por ter curado um homem inteiro em dia de sábado?” Os mestresjudaicos não aprenderam a lição que Deus deu a Samuel: não julgar pela apa-rência, mas segundo a vontade de Deus (1Sm 16,7; cf. Is 11,3).

Ora, se procuram matá-lo, como Jesus pode ensinar em público, noTemplo? Será que os chefes reconheceram que ele é o Messias? Impossível!Eles conhecem a origem de Jesus: Nazaré, de onde não se espera grandecoisa (cf. 1,46; seus discípulos são chamados, pejorativamente, de “nazoreus”).Segundo muitos mestres judaicos, o Messias terá uma origem desconhecida!

16-19

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Mas em 9,29, isto mesmo — o fato de não conhecerem sua origem — torna-se uma razão para não crerem em Jesus! Ora, se dizem saber “de onde” Jesusé, será que o sabem mesmo (>com. 2,9)?

Quando então Jesus exclama (v. 28): “Sim, vós me conheceis e sabeis deonde eu sou!”, isso é uma ironia, pois na realidade não sabem. E continua:“Ora, eu não vim por conta própria; aquele que me enviou é verdadeiro, masvós não o conheceis [outra tradução: aquele que verdadeiramente me envioué que vós não conheceis]. Eu o conheço, porque venho dele e foi ele quemme enviou!” Eles vivem no engano, ao passo que Jesus está na verdade,consciente e irrestritamente a serviço daquele que é “verdadeiro”, daqueleque lhe concede conhecimento entranhado de seu mistério (cf. 1,18 e tam-bém o lógion joanino nos sinópticos, Mt 11,26s par. Lc 10,22s).

Essa provocação é um desacato à autoridade dos mestres. As autoridades(que no tempo de João são os rabis) querem prender Jesus, mas não o fazem.Por que não? João não aponta as razões psicológicas ou estratégicas que osfazem desistir de prender Jesus; ele indica a razão teológica: a “hora” deJesus ainda não chegou (cf. 2,4; 13,1; e acima, vv. 6.8). Também as autori-dades se inserem, sem querer, no jogo de Deus (cf. 11,49-52).

Ora, na multidão há muitos que passam a crer nele. Uma das razões queapresentam para crer é esta: “Quando vier o Messias, fará sinais maiores (ou:mais numerosos) do que este faz?” Todavia, tal crer não é fidedigno, nãomerece crédito (cf. 2,23-24; Nicodemos, 3,2).

Os fariseus ouvem esses comentários e unem-se aos sumos sacerdotes paramandar a polícia do Templo prender Jesus (uma tentativa mais decidida que ado v. 30). Enquanto os guardas tentam fazer isso, ressoa a palavra de Jesus: “Porpouco tempo ainda estou convosco; depois vou para aquele que me enviou. Vósme procurareis e não me encontrareis. E lá onde eu estarei, vós não podeis ir”.João gosta de insistir que Jesus em breve voltará para a glória do Pai; o temaé tratado diversas vezes, com matizes surpreendentes, que explicaremos no seucontexto (8,21; 13,33.36; 17,24; cf. também o “pouco tempo” em 12,35; 13,33;14,19; 16,16). Aparece aqui a raiz sapiencial (que já estava presente no v. 28):

30-31

32-36

Pr 11 Por sobre o tumulto ela grita, junto às portasna cidade, exclama…

28 “…chamar-me-ão, e não responderei, pro-curar-me-ão e não me encontrarão, 29 porqueodiaram o conhecimento e não preferiram otemor do SENHOR”.

Jo 728Enquanto pois ensinava no templo, Jesus ex-clamou: “Sim, vós me conheceis e sabeis deonde eu sou…”33 “Por pouco tempo ainda estou convosco;depois vou para aquele que me enviou. 34Vósme procurareis e não me encontrareis. E lá ondeeu estarei, vós não podeis ir”.

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O povo de Jerusalém não entende a alusão. Pergunta se talvez ele vaipara a diáspora, para as colônias de judeus fora da Palestina. O texto diz,literalmente, “a diáspora dos gregos”. Esses “gregos” podem ser a populaçãodo mundo mediterrâneo em geral, que usava o grego como língua franca; ou,mais especificamente, os judeus espalhados por aí (os judeu-helenistas). NosAtos, Paulo vai às comunidades da diáspora e ali, via de regra, se dirigeprimeiro aos judeu-helenistas e, depois, com maior sucesso, aos gentios dolugar (ver sobretudo At 13,44-48.). Também em Jo 7,35 “ensinar os gregos”pode referir-se aos judeu-helenistas, aos quais Jesus se dirigiria como mestre,porém, sem exclusão dos não-judeus, pois os judeus na diáspora atraíamfacilmente os pagãos que admiravam o monoteísmo e a moral da religiãojudaica. No tempo de João havia bastante proselitismo dos judeus junto aos“gregos”, como confirma o evangelho de Mateus, quase contemporâneo dode João (Mt 23,15). De toda maneira, a pergunta, sinal de incompreensão, ficasem resposta… Os jerosolimitas estão diante de um mistério. Mas o leitorcristão do século I sabe que a pergunta sugere algo que se realizou de fato: oevangelho foi, de fato, pregado na diáspora. E, reconhecendo a ironia dosfatos, esse leitor talvez se lembre de que ele mesmo foi, uma vez, um desses(judeu-)helenistas de Éfeso, de Esmirna, de Laodicéia etc. (cf. Ap 1–3).

A doutrina do judaísmo no mundo grego

Não há nada de estranho na idéia de que um rabino malogrado em Jerusa-lém vá à diáspora no meio dos gregos. Afinal, Saulo-Paulo fez isso também(At 9,26-30). É como os professores que não conseguem contrato nos gran-des centros do Primeiro Mundo, mas encontram boa acolhida no Terceiro.Na diáspora, um rabino malogrado podia dirigir-se aos judeu-helenistas ou,se estes não estivessem interessados, aos “gentios”, os não-judeus. É o quefizeram Paulo e Barnabé (At 13,46-47).O judaísmo tinha aceitação no meio dos gregos e romanos? Sim, porque areligião tradicional estava esgotada, desacreditada, apesar de ser religiãooficial (ou talvez exatamente por causa disso…). Tanto a elite como asclasses populares procuravam outras saídas religiosas. Estas eram ofereci-das pelos comerciantes, pelos soldados e até pelos escravos que vinham doOriente. Do Egito vinha a fé na imortalidade da alma, do Irã, o dualismopersa com seu pessimismo a respeito do mundo inautêntico e enganador noqual vivemos, enquanto o mundo autêntico é o da Inteligência divina e daalma imortal. Do povo de Israel, bem representado nas grandes capitais eespecialmente em Roma, vinha o monoteísmo ético, que muito impressio-nava as pessoas mais conscientes de então, embora alguns filósofos despre-zassem a religião judaica por causa de seus ritos sacrificais. Ora, exatamen-te a ausência de ritos sacrificais ia tornar atraentes os dois novos ramos do

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judaísmo pós-Templo: o cristianismo e o judaísmo rabínico (>Voc. Rabi).É verdade que nas classes populares reinava o sincretismo, que atingia tam-bém as classes altas; p. ex. a religião de Mitra (entre os soldados), o culto àGrande Mãe (em Éfeso; At 19,23-41), os cultos terapêuticos (>com. Jo 5,1-3a) etc. E entre os intelectuais ou os que se consideravam tais era forte aatração da gnose dualista. Mas a autoridade moral do monoteísmo judaico (ecristão) era incontestável, a ponto de se opinar que, se o cristianismo não setivesse separado do judaísmo, o Ocidente se teria tornado judeu.

III. No último dia da festa: autoproclamação (7,37-52)

A festa chega ao auge: o último dia, com a solene procissão de água eluz (>com. 7,2). Não mais sentado como mestre (cf. v. 14), mas em pé, comoprofeta, Jesus exclama (cf. v. 28 e Pr 1,21), na presença do povo: “Se alguémtem sede, venha a mim, e beba aquele que crê em mim”. Pois a Escritura dizque do seu interior (= de Cristo) correrão rios de água viva13.

O texto escriturístico mais próximo é a lembrança das “águas da salva-ção”, Is 2,3, que era o refrão cantado na procissão diária da semana festiva,procissão em que se trazia a água da fonte do Templo, que desembocava napiscina de Siloé, até o Templo.

Muitos outros textos correspondem a essa imagem: a água saindo donovo templo (Ez 47,1-2) ou da nova Jerusalém (Zc 14,8), pois Jesus é o novotemplo (cf. 2,21; também o Apocalipse usa imagens semelhantes: Ap 22,2 =Ex 47,12; Ap 22,3 = Zc 14,11). Podemos ainda pensar na água da rocha dodeserto (Sl 78,15-16; 105,40-41; cf. Is 43,20; 44,3; 48,21; Dt 8,15…; paraPaulo, essa rocha é Cristo: 1Cor 10,4). Atenção especial merecem os textosZc 9–14.

A profecia de Zacarias e a festa das Tendas

Parece que sobretudo os textos de Zc 9–14 (o “Segundo Zacarias”) forne-ciam o imaginário messiânico que animava a celebração da festa das Tendasno tempo de Jesus: a chuva (14,17), a vinda do rei messiânico da paz (9,9),o derramamento do espírito de compaixão (12,10), a abertura de uma fontepara a casa de Davi (13,1: “Brotará naquele dia uma fonte para a casa deDavi e para os habitantes de Jerusalém…), as águas vivificantes saindo de

37-38

13. O copista medieval que pôs números nos versículos (e muitas traduções ainda hoje)interpretam a sintaxe dos vv.37-38 assim: “(37) Se alguém tem sede, venha a mim e beba. (38)Quem crê em mim — como diz a Escritura —, do seu interior correrão rios de água viva”. A fonteda água estaria naquele que crê; cf., p.ex., Pr 18,4; 20,5; Is 58,11. Mas essa interpretação baseia-se numa analogia duvidosa com 4,14 (aí, a água, doada por Jesus, jorra no crente, mas não saidele). Além disso, o v. 39 contradiz tal interpretação, pois relaciona a água com o dom do Espíritopor Jesus.

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Jerusalém (14,8: “Naquele dia, águas vivas sairão de Jerusalém…); a exorta-ção final para vir à festa das Tendas (14,16). Além disso, Zc 14,6-7 contéma imagem da luz durante a noite, cf. adiante, Jo 8,12 (também Ap 21,25).Outros textos do Segundo Zacarias são utilizados em outros contextos: oprofeta traspassado, Zc 12,20, cf. Jo 19,37; a dispersão de ovelhas e pastor,Zc 13,7, cf. Jo 16,32.

O simbolismo da água ganha significado especial porque a água levadaem procissão vem de Siloé, nome que em Jo 9,7 é visto como uma alusãoao Cristo. João aplica a Jesus os grandes símbolos de Israel. Ora, se Joãoevoca, até com carinho, os símbolos do judaísmo, não lhes dá o mesmosentido que lhes dão os judeus. Que significam para ele essas imagens?Embora já saibamos o que significa “água viva” (cf. 4,10), Jo 7,39 explicaque se trata do Espírito que os fiéis vão receber. É uma observação fora danarrativa (>Intr. § 2.1.5), pois no tempo da narrativa, o Espírito ainda nãoestá à disposição, porque Jesus ainda não foi “glorificado”, isto é, elevadona cruz e assunto na glória de Deus (cf. 16,7; 20,22). Interpretar a água vivacomo o dom do Espírito não exclui, mas inclui as conotações simbólicas quejá descobrimos anteriormente: a sabedoria e o conhecimento de Deus, que Je-sus comunica a quem crê nele (cf. Pr 8,2-3; 9,3-5; Is 55,1). O Espíritoatualiza isso no tempo da Igreja (cf. Jo 16,13). (De modo semelhante, a in-terpretação eucarística do pão em Jo 6,51-58 não exclui, mas inclui a inter-pretação sapiencial dos versículos anteriores.)

A observação do v. 39 explica, pois, o que o símbolo da água significano tempo do leitor: o Espírito derramado! Mas o sentido primeiro, semprepressuposto, é que essa água simboliza o dom que Jesus comunica. Aliás,segundo Jo 16,7, Jesus é quem dá o Espírito, e 16,15 explica que o Espíritocomunica aquilo que é de Jesus. Como acontece em 6,51-58, essa “releitura”do símbolo pode ter uma conotação sacramental: a água do rito batismalcristão, que significa o derramamento do Espírito (cf. 3,5). De toda maneira,o Espírito é entregue aos fiéis em virtude da consumação da obra de Jesus,a doação de si até o fim como manifestação do amor do Pai (13,1; 19,30).

Ao ouvir essas palavras, alguns da multidão reconhecem que Jesus éverdadeiramente “o Profeta”, aquele que deve vir no tempo final (cf. 6,14).Talvez pensem em Moisés, que fez sair água da rocha (Ex 17,6 etc.). Outrosconfirmam: “É mesmo o Messias!” Mas outros ainda insistem na questão daorigem de Jesus. Só que agora dizem o contrário de antes: em vez de cismarque o Messias deve ter origem desconhecida (>com. 7,27), afirmam que,segundo Mq 5,2, ele deve vir de Belém, a cidade de Davi, e não de Nazaré.Na realidade, Mq 5,2 não diz que o Messias deve nascer em Belém; só fala

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40-43

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da cidade como origem da dinastia davídica. Além disso, conhecendo aironia joanina, podemos supor que João conhece a tradição subjacente a Mt1–2 e Lc 1–2, a qual combina a origem davídica e o nascimento em Belémcom a infância em Nazaré. Mas os doutores judaicos não sabem disso eficam discutindo. O fundo da questão, porém, é que Jesus não é de nenhumadas origens que eles discutem; pensam saber de onde Jesus é (cf. v. 27-28),mas não o sabem: Jesus é “do alto” (cf. 3,31-36). (Também hoje se discutese Jesus nasceu em Nazaré ou em Belém: isto não tem a mínima importân-cia! >exc. 7,52.)

Outra ironia: as autoridades desejam prender Jesus, mas ninguém o faz.A milícia dos sacerdotes-chefes, encarregada de prendê-lo (cf. v. 32), voltasem fazer nada. Os mandantes ficam furiosos. Mas os guardas respondem:“Ninguém nunca falou como esse homem!” Jesus impressiona não apenaspelo que fala/declara (lalein), mas pelo modo como o faz (hóutôs). Os mestrespodem falar coisas bonitas, mas Jesus fala com autoridade (cf. Mc 1,21-22)— não autoridade autoritária, mas autoritativa, competente, haja vista dequem ele a recebeu.

Furiosos, os fariseus, guardiães da ortodoxia, acusam os guardas de sedeixarem enganar por Jesus. E acrescentam: “Acaso alguém dos chefes oudos fariseus acreditou nele?” E amaldiçoam “essa gente que não conhece aLei!”, o ‘am ha-arets, o povão iletrado (alguns textos rabínicos dizem queos que não conhecem a Lei não se salvam). Neste detalhe transparece oefeito social do orgulho intelectual dos fariseus e de uma religião baseada naobservância de complicados preceitos rituais. O leitor joanino, ao contrário,é convidado a simpatizar com os que pelos fariseus são excluídos da salva-ção, pois sua própria comunidade está sofrendo semelhante exclusão pelorabinismo dominante.

Por ironia, nesse momento, “um dentre eles” (cf. 3,1 e supra, v. 48),Nicodemos, toma a palavra e começa a defender Jesus! Pergunta se a Leipermite condenar alguém sem antes tê-lo ouvido. Os outros fariseus prefe-rem não responder à pergunta, mas apelam para a ignorância: “Tu tambémés da Galiléia? Examina a Escritura e verás que da Galiléia não surge pro-feta!” O leitor, “cristão instruído”, faz aqui suas perguntas: será que osmestres da sinagoga examinaram bem a Escritura? O profeta Jonas era galileu(cf. 2Rs 14,25)! A ironia joanina é gostosa. Há, todavia, uma crítica maisradical a ser feita aos mestres: Será que Deus não pode fazer coisas que nãoestão na Escritura? Podemos ver aí a diferença mais radical entre os judeuse a comunidade joanina quanto à interpretação das Escrituras. Para os fiéisjoaninos, Deus é maior que as Escrituras. Ele as leva a cumprimento, mas

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também as excede. (Em compensação, houve até rabino achando que Deusdevia obedecer ao Talmud!)

A origem do Messias

Para informação, algumas opiniões do judaísmo antigo sobre a origem doMessias (nenhuma delas tem importância para João):

No v. 27, vimos alusões ao Messias de origem desconhecida, o libertadorescondido. Na imaginação apocalíptica contemporânea do NT encontrava-se a idéia de que ele estivesse escondido (“no deserto”, Mt 24,26! cf. Ap12,6.14), para “revelar-se” (= apokal¥ptesthai). Pensava-se também que Eliasdevia revelá-lo ao mundo (cf. Ml 3,1.23-24; Mc 9,11 par.). Para despistaressas imaginações, João Batista declara (no Quarto Evangelho) que ele nãoé Elias (1,21), embora revele Jesus a Israel como Cordeiro e Filho de Deus(1,31). Em 7,45-52, a questão é outra: ele deve ser da estirpe de Davi,portanto nascer em Belém. Há ainda muitas outras coisas que naquele tem-po se imaginavam a respeito do Messias, mas isso não interessa aqui.

O que interessa a João é opor a todas essas especulações o fato bruto doMessias cristão: (1) ele não vive escondido (João usa com insistência oadvérbio “abertamente”, parresíai, a respeito de Jesus, menos no caso dapublicidade que seus irmãos lhe aconselham); (2) nem corresponde à ima-ginação do descendente davídico de Belém, pois ele é o filho de José deNazaré (1,45; 6,42), na Galiléia, duas indicações de origem que não susci-tam entusiasmo (1,46; 7,52).

[7,53–8,11: A perícope da mulher adúltera: O comentário a este trechose encontra no fim deste livro. Embora “canônico”, esse trecho não pertenceao original Evangelho de João e interrompe a coerência entre 7,52 e 8,12.]

IV. A luz do mundo. O autotestemunho (8,12-20)

8,12 é uma autoproclamação (> exc. 6,36) que explora o segundo temada festa dos Tabernáculos, festa de água e luz (7,37-38: a água; 8,12: a luz):“Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não caminhará nas trevas, mas teráa luz da vida” (cf. 1,4). Durante a festa, o pátio do Templo é iluminado comgigantescos candelabros. Como em 7,37-38, transparecem também aqui ostextos escatológicos de Zc 9–14, especialmente Zc 14,7: “haverá luz denoite” (>exc. 7,37-38).

“A luz… sou eu.” A própria pessoa de Jesus é a manifestação daquiloque o símbolo da luz quer dizer. Quais são as conotações desse símbolo?Que evoca o símbolo da luz no coração de um judeo-cristão curtido nalinguagem bíblica? A expressão “luz (da vida)” é muito característica como

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designação da realidade divina (cf. Sl 27,1; 36,9-10), tanto no evangelho (Jo1,3-5) como nas cartas de João (cf. 1Jo 1,5: “Deus é luz”). Isso certamentecorresponde ao vocabulário em voga no ambiente histórico de João: o judeu-helenismo (sobretudo nos círculos mais cultos, p. ex., Sb 7,26 etc.). Tambémos escritos de Qumran, contemporâneos de Sb, falam muito na oposição luz-trevas (“filhos da luz”, cf. Jo 12,36). Mas a imagem da luz tem raízes bemmais antigas no mundo da Bíblia. A luz é a primeira criatura de Deus,conforme Gn 1,3 (cf. Jo 1,3-4). É vida. Na luz de Deus vemos a luz (Sl36,9). Deus é a nossa luz (Sl 118,27). A palavra de Deus na Lei é luz paranossos passos (Sl 119,105). Todas essas significações ressoam na exclama-ção de Jesus: “Eu sou a luz do mundo”. Importa acatar esta luz enquanto estáno meio de nós, para podermos segui-la (8,12) e caminhar na luz (cf. 9,5;12,35-36; 12,46) (>Voc. Luz).

“A luz do mundo… quem me segue…”: Jesus ultrapassa as fronteiras dojudaísmo, reunido na mais festiva de suas festas. “Mundo” tem aqui o sen-tido de destinatário da salvação, numa dimensão de universalidade. As pa-lavras sobre “quem me segue” participam desse sentido universal: significamos que se tornam discípulos de Jesus em todas as nações.

Os fariseus levantam uma objeção, que não diz respeito ao conteúdo,mas à forma da autoproclamação (como luz, 8,12; e indiretamente tambémcomo água viva, 7,37-38): Jesus testemunha a respeito de si mesmo. Issocarece de validade jurídica, pois a Lei exige o testemunho de duas testemu-nhas (Dt 19,15).

A esse formalismo, Jesus responde que eles não conhecem a realidade deseu testemunhar: “Embora eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemu-nho é verdadeiro, porque eu sei de onde venho e para onde vou”. “Verdadeiro”poderia ser traduzido como “válido/fidedigno”, mas preferimos o termo “ver-dadeiro”, para sugerir a ligação com a Verdade fontal, que é Deus. Não se tratada validade do testemunho de Jesus do ponto de vista humano; ele é verda-deiro porque tem sua fonte em Deus (ponto de vista divino). Para os fariseus(ponto de vista humano), o testemunho de Jesus não é válido, pois nãoconhecem a fonte da verdade do testemunho de Jesus. O leitor cristão avi-sado, porém, sabe por que o testemunho de Jesus é divinamente verdadeiroe que nenhum ser humano poderia suprir a exigência legal da segunda tes-temunha: quem poderia dar um testemunho a favor do Enviado que tem orespaldo de Deus, senão ele mesmo e/ou Deus?

Os mestres judeus julgam superficialmente, conforme critérios humanos,“conforme a carne”. Jesus se move em outro nível (os fariseus discutem a

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validade formal, Jesus mostra a verdade real). Jesus se distingue dos mestresjudeus porque não julga ninguém (à maneira deles). Tampouco veio pa-ra julgar (cf. 3,17; 12,47). Ora, mesmo se julga — pois sua presença éjulgamento (3,19; 12,48), e Deus lhe confiou o julgamento (5,22; cf. 9,39)—, seu julgamento é válido, porque não é só ele quem julga, mas o Pai queo enviou está com ele. Assim se unem a favor de Jesus seu próprio testemu-nho e o do Pai. Ora, conforme a Lei, o testemunho de duas pessoas éválido... (cf. v. 13). Assim completa-se aqui a discussão do testemunho le-vantada em 5,31-47 (>Voc. Testemunhar).

Depois que Jesus apontou a ratificação de seu testemunho pelo Pai,perguntam, grosseiramente: “Onde está esse teu Pai?” Soa então a palavra mis-teriosa de Jesus: “Vós não conheceis nem a mim, nem a meu Pai. Se me co-nhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai”. O sentido destas palavras fi-cará claro para os que estão unidos a Jesus, na ceia da despedida (cf. 14,7-9).

Essa discussão se deu no depósito das doações — o “tesouro” —, nopátio do Templo (v. 20; cf. Mc 12,41-44), observa o evangelista, retroativa-mente (como em 1,28; 6,59…). Será ironia? Conhecem o tesouro do Templo,mas não o Pai, nem seu Enviado… (cf. Mt 6,21).

Os chefes tentam novamente prender Jesus, mas não têm êxito, porque,em conformidade com o plano de Deus, “sua hora (= de Jesus) ainda nãochegou” (cf. 7,30).

V. Origem e destino de Jesus (8,21-29)

Jesus diz ainda (ou: outra vez) aos judeus: “Eu vou embora, e vós meprocurareis; mas morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não po-deis ir”. Frase semelhante já foi falada em 7,33-34. Ali, como diz 7,35, osjudeus pensavam que Jesus iria à diáspora; e não estavam totalmente erra-dos, pois é da diáspora que provêm muitos discípulos de Jesus, especialmen-te da comunidade joanina. Agora, em 8,22, imaginam que ele vai se matar!Isso também está em parte certo: Jesus vai morrer, só que eles mesmos omatarão! (ironia joanina).

Ora, 8,21 não repete simplesmente 7,33-34. É bem mais duro. Os judeusnão apenas não poderão chegar lá onde Jesus estiver; eles “morrerão no seupecado” — pecado no singular, o pecado por excelência que é a recusa daluz que vem de Deus, o “pecado do mundo” (cf. 1,29; no v. 24, o termo estáno plural, conforme a maneira mais corriqueira de falar). Não devemosinterpretar essa frase à luz de nossa teologia medieval (“quem morre emestado de pecado vai ao inferno”), mas à luz da consciência religiosa do

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tempo de Jesus e de João. O sistema religioso judaico tinha por foco prin-cipal a reconciliação com Deus. Inclusive, a festa das Tendas, aqui em pauta,se celebrava cinco dias depois do dia da Reconciliação, o Yom Kippur (Nm29,7-11). Dizer aos “judeus” que “morrerão no seu pecado” é declarar inútilseu sistema religioso, e é isso que o Evangelho de João faz em todas as suaspáginas. É uma advertência profética para não confiarem em sua segurançaadquirida (cf. Jr 7,4, a respeito do Templo), mas não é uma declaração decondenação eterna.

Retomando o tema da Palavra-Sabedoria que já não se deixa encontrar(cf. 7,33-34), Jesus explica por que os judeus não podem chegar aonde eleestiver: “Vós sois daqui de baixo; eu sou do alto. Vós sois deste mundo; eunão sou deste mundo”. Jesus e seus adversários pertencem a dois âmbitosopostos (dualismo, >Intr. § 2.1.6). Esse modo de falar tem raiz na apocalíp-tica judaica, que opõe “este mundo” (presente e mau) ao “mundo (ou século)vindouro” (messiânico, santo). Não se trata da localização na esfera de cimaou na de baixo, neste ou noutro mundo, mas de origem e pertença, portanto,de liberdade ou de dependência (cf. v. 31-38). Jesus nada tem a ver com“este mundo”, e os seus tampouco (cf. 17,16), mas o sistema do Templo (eda Sinagoga), sim. Jesus e os que lhe são fiéis pertencem ao mundo novoque Deus destinou para vencer o presente mundo de iniqüidade; enquanto osadversários pertencem (continuam ligados) a “este mundo”.

Como num extremo apelo à conversão, Jesus repete que eles vão morrernos seus pecados (v. 24, cf. v. 21): ficarão sem aquilo que o judeu maisprocura na sua religião: a reconciliação com Deus.

Isso, se não acreditarem quando ele diz: “Eu (o) sou”. Pela forma gra-matical não se sabe se é preciso subentender um predicado nesta frase. Elainicia uma tríplice repetição (vv. 24.28.58), e só no fim vamos perceber commaior clareza o que ela sugere.

Jesus é o que, ou quem, para falar desse jeito? “Isto mesmo que vosestou falando!”, diz Jesus. O modelo desse modo de falar, que chamamos de“autocredenciamento”, é o diálogo da vocação de Moisés, Ex 3,11-14. Quan-do Moisés pergunta quem deve mencionar como seu “mandante” para falaraos filhos de Israel, YHWH não cita nome nem título, mas simplesmenteaponta sua presença: “Eu estou contigo” (v. 12). “Eu sou o que estou […]Falarás: Eu sou me enviou a vós” (em hebr., ser = estar). Não precisa denome. Basta que revele sua presença para Israel, por meio de Moisés, seuenviado. Também Jesus não dá outra explicação a não ser o que ele diz e faz.Não há palavras para expressar o que ou quem Jesus é. Só vendo. É o queé, o que faz, o que diz.

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“Eu sou”/“Eu sou o que sou”

O autocredenciamento de Deus em Ex 3,14a no texto hebraico soa literal-mente “Eu serei/estarei o que serei/estarei”. Em hebraico, “ser” = “estar”,e o tempo do verbo, no caso, o imperfeito, não exprime o momento tem-poral como em nossas línguas, mas o aspecto — no caso, a duração con-tinuada no passado e no futuro. Significaria algo como “Eu estarei (contigo/convosco) como aquele que (sempre) está aí”.

Sob a influência da filosofia helenista, o grego (LXX) traduz: “Eu sou oEnte” (e no v. 14b: “O Ente me enviou a vós”). Assim, estas expressõesforam relacionadas com o “Ser Absoluto” da metafísica. Mas Deus não deveter-se dirigido a Moisés, nem Jesus aos seus discípulos (6,20) ou aos “ju-deus”, como a um metafísico (8,28.58). Não tentemos captar a expressãosemítica em nosso lógica conceptual grega, ocidental. Cada linguagem criaum mundo que não se deixa traduzir para outra linguagem.

O que a expressão semítica “Eu sou (o que sou)” exprime é o autocreden-ciamento divino. O Segundo Isaías aprofundou muito o sentido do nome“Eu sou”. Deus é aquele que é, os deuses são nulidades. Na salvação final,seu povo vai reconhecer “que eu sou aquele que afirma: Eu sou” (Is 52,6).Deus é aquele que é, é o que ele é, o que ele se mostrou e mostrará. Jesusé o que ele é no seu agir existencial e histórico, e nisto é que se deve crer.“Eu sou”, mas também, ”eu o sou”, a saber, tudo o que sua atuação sugeriucomo missão divina, escatológica, dom de Deus.

A estrutura gramatical do v. 25 é difícil, mas o significado é que se deveaceitar o que Jesus diz e faz para saber que, nele, Deus está presente. Essaé a “plataforma” para iniciar a conversa14.

Antes de continuar a conversa, Jesus tenta convencer os interlocutores deque eles estão por fora e não podem entender o que ele anuncia, se nãomudarem de posição. “Tenho muitas coisas a dizer a vosso respeito, e a julgartambém”. Jesus não é apenas revelador, mas também juiz — o Filho do Homem(cf. v. 28). E para tanto, Jesus tem um apoio importante: aquele que o envioué a própria verdade; é dele que Jesus escuta as coisas que fala ao mundo.

Eles não entendem que, no v. 26, Jesus está falando do Pai. Não entendemque o que Jesus fala é a maneira como Deus vê as coisas. E Jesus, pensandonaqueles que graças a seu “enaltecimento” (>Voc.) vão perceber sua origem,acrescenta: “Quando tiverdes elevado/enaltecido o Filho do Homem, entãosabereis que ‘eu (o) sou’” (segundo uso de “eu sou”; cf. vv. 24 e 58). E afirma

14. Possíveis traduções literais para o v. 25: 1) como afirmativa: a) “A princípio/principalmente[eu sou] o que eu estou também falando a vós”; b) “[Eu sou] o que desde o princípio eu estou tambémfalando a vós”; 2) como interrogativa: “Mas, para começar, por que estou falando convosco?”

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mais uma vez seu uníssono com o Pai. Agora, o que eles precisam saber é ditocom clareza: Jesus é o Filho do Homem enviado por Deus, aquele que executao projeto de Deus e realiza a vitória sobre os poderes deste mundo.

Mas no fim do capítulo (8,58) veremos que “eu [o] sou” não deve serentendido apenas como resposta à pergunta pelo Messias ou Filho do Ho-mem. Há muito mais por trás dessa expressão.

VI. Verdade e mentira (8,30-59)

Os vv. 30-31 constituem uma dobradiça no meio do diálogo, que se tornacada vez mais duro. João põe em cena aqueles judeus que aderiram a Jesus(v. 30), mas só até certa altura: na realidade, eles não são mais confiáveis nasua fé que os que acreditavam por causa dos sinais (2,23-24; cf. 7,31).

O Evangelho de João sobrepõe ao tempo da narrativa (o Jesus histórico,ano 30) o tempo da comunidade (ano 90, a discussão entre a comunidadejoanina e “os judeus” da Sinagoga). Essa sobreposição causa alguma dificul-dade. Exatamente esses “judeus que passaram a crer”, mas que se mostramrecalcitrantes quando o Jesus joanino questiona seu apego à identidade judai-ca (descendência de Abraão), ora são parecidos com os crentes indecisos doano 90, ora com os adversários de Jesus, ano 30. Ou será que João dá aentender que, no ano 90, querer voltar à “descendência de Abraão” (enfraque-cendo a comunidade cristã) é aliar-se aos líderes que mataram Jesus no ano30? Ou será que, depois do v. 31, João esquece que os interlocutores sãopessoas que passaram a crer? À medida que se desenvolve, a discussão se di-rige sempre mais contra os que perseguem Jesus ou sua comunidade. Se Joãomira, além desses, os judeo-cristãos que querem voltar à Sinagoga, trata-oscom uma veemência profética que assusta nossa mentalidade moderna.

Não basta ter passado a crer (pepistéukôs, v. 31). O Evangelho de Joãonão é só catequese de iniciação, mas também de perseverança; serve paracontinuar a crer em meio às solicitações contrárias (>com. 20,31). Pelo quesegue, parece que esses “judeus que passaram a crer” não assumiram para sia nova realidade da comunidade cristã, que é outra coisa que a “descendên-cia de Abraão” que eles se gabam de ser. Mas são descendência meramentehumana (em grego: sperma, “sêmen”; cf. tb. v. 37). Não são discípulos deverdade, não “nasceram de novo”, como Jesus exigiu de Nicodemos (cf.3,5); não são “filhos” como os “gerados de Deus” de Jo 1,12-13. Numatentativa de segurá-los dentro da comunidade, o “Jesus eclesial” declara: “Sepermanecerdes em minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos;e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres”. É preciso perma-necer na palavra de Jesus, “morar” nela...

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Que é “conhecer a verdade”? E a palavra de Jesus “torna livre” emrelação a quê?

Podemos imaginar que os “judeus” do v. 31 inicialmente gostaram dasutileza e perspicácia do ensinamento de Jesus (o mais antigo documentosobre Jesus que se consegue reconstituir, o documento Q usado por Mt e Lc,apresenta Jesus como mestre sapiencial-apocalíptico). E na medida em queJoão sobrepõe aos ouvintes históricos de Jesus também os crentes posterio-res, podemos imaginar pessoas impressionadas pelo amor radical de Jesus epor seu martírio — atitude altamente estimada pelos judeus piedosos (cf.2Mc). Mas quando a adesão a Jesus põe em xeque as referências tradicio-nais, ficam com um ou com dois pés atrás. Eles se ofendem porque Jesuspretende libertá-los por sua palavra: “Nós somos descendentes de Abraão enunca fomos escravos de ninguém”. Não precisam de quem os liberte! Es-quecem que foram escravos do Egito, depois, da Babilônia e da Grécia, e notempo de Jesus, de Roma! Ou será que João se refere com ironia à supostaliberdade proporcionada pela “paz romana” no tempo do rei-fantoche cha-mado Herodes? Ou ao tempo da Guerra Judaica, pouco antes da redação doQuarto Evangelho, quando reinou a ideologia zelote da liberdade a ser ad-quirida por uma impossível revolta contra Roma? A julgar pelo termoeléutheroi, os “judeus” parecem exibir o estatuto de “homens livres”, nosentido político e social do Império romano. Como é que Jesus lhes prometeliberdade?

Na realidade, encontram-se numa escravidão bem pior que a imposta pelosfaraós e imperadores. Jesus explica-lhes qual é sua verdadeira escravidão.Quem pratica o mal é escravo do pecado. Aqui, Jesus evoca uma cena dafamília patriarcal, na qual os “filhos da família” e os escravos brincam juntosenquanto crianças. A diferença é que o filho tem sempre o direito de ficar nacasa (família, clã) patriarcal, enquanto o escravo pode, em qualquer momento,ser despachado ou vendido (basta lembrar o caso de Ismael, Gn 16; 24,8-20).Se os “judeus” querem ficar para sempre com Deus, é preciso que sejamsolidários com o Filho por excelência, que é Jesus. Então serão “livres deverdade”. A verdade, que é a palavra de Deus em Jesus, os tornará livres.

A liberdade como Aliança

A liberdade (>Voc.), na Bíblia, não é uma liberdade vazia, como a da liber-tinagem; nem arbitrária, como a do neoliberalismo; nem a “liberdade” dascalças Lee ou dos cigarros Free. A liberdade, na Bíblia, e também aqui emJoão, tem seu modelo na libertação do Egito e na Aliança. Deus livrou Israelda escravidão, mas sobretudo da vassalagem de Faraó, que doravante não

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seria mais para Israel nem rei, nem autoridade divina. Esse “resgate da mãodo Faraó” é expresso na fórmula da Aliança: “Eu serei seu Deus, e eles, meupovo”: o povo passou a ser vassalo de um novo soberano, no lugar deFaraó: YHWH. Liberdade é ser liberto, por Deus, dos senhores deste mun-do, para ter nele o único Senhor (Ex 19,5-6; Dt 6,4…).Não é liberdade vazia, mas liberdade responsável diante do verdadeiro Senhor.É ter e viver um compromisso que realmente realize nossa vocação e nossostatus de eleitos de Deus. É para essa liberdade que Cristo nos libertou (Gl5,1). Paulo chega a ponto de definir essa liberdade como “ser escravo(douléuein) uns dos outros pelo amor fraterno” (Gl 5,13). Tal é a liberdadedos filhos de Deus: sermos tão filhos e, portanto, obedientes ao desejoentranhado do amor paterno, que não haja outro dono no mundo que possamandar em nossa vida. (O termo latino “liberdade” corresponde a liberi,“filhos”, não à ausência de laços ou de limites.)

Aludindo ao exemplo de Isaac, filho legítimo, e Ismael, filho da escrava,Jesus denuncia: “Bem sei que sois descendentes físicos (sperma) de Abraão.No entanto, procurais matar-me, porque minha palavra não encontra espaçoem vós. Eu declaro o que eu vi junto do Pai; vós, pois, o que ouvistes doPai, fazei-o”. Jesus exige que esses crentes recalcitrantes coloquem em prá-tica o que ele viu junto do Pai e lhes comunicou15.

Assim como nos vv. 26b-27, os judeus não entendem que ele lhes falado Pai que é Deus. “Nosso pai é Abraão!”, respondem eles. E Jesus observa:“Se sois filhos de Abraão (e segundo o AT, eles o são!), deveríeis praticar asobras de Abraão”. Nos vv. 33 e 37 eram chamados de sperma, descendênciafísica de Abraão, sem valor salvífico. Aqui lhes é lembrada a filiação verda-deira, salvífica (tekna, “filhos”!, como em 1,12). Se fossem filhos de Abraão,deveriam praticar a justiça que este praticou. Mas eles procuram matar Jesus,homem que lhes comunica o que ouviu de Deus (matar: cf. 5,18; 7,1 etc.;inclua-se aqui a perseguição à comunidade: cf. 15,18). Abraão, conhecidopor sua generosidade, não fazia tal coisa! E Jesus, modificando ironicamenteo v. 38, acrescenta: “Vós fazeis o que ouvistes de vosso pai”. Se não fazemo que Jesus lhes comunicou da parte do Pai que é Deus (v. 38), nem aquiloque o pai Abraão praticava (v. 39), quem será então o tal de “vosso pai” cujodesejo eles executam?

Os judeus da Sinagoga, ainda mais no tempo em que se está recompondoo judaísmo, não agüentam crítica quanto à sua origem. “Não somos filhos da

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15. No v. 38, Jesus fala somente do seu Pai, Deus, exigindo que os ouvintes façam suavontade. Infelizmente, alguns manuscritos e muitas traduções escrevem aqui “(eu…) meu Pai, (…vós…) vosso pai”, antecipando indevidamente a oposição do v. 44: “Eu falo do que vi junto do meuPai, e vós fazeis o que ouvistes do vosso pai”.

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prostituição!” A prostituição, segundo a Bíblia, é a infidelidade a Deus. Acomunidade judaica não nasceu do oportunismo que caracteriza as misturasreligiosas daquele tempo e de hoje. “Só temos um Pai: Deus”16.

Se os “judeus” fossem coerentes, deveriam aderir a Jesus, que vem deDeus. Por que não entendem o que Jesus quer comunicar? Porque não agüen-tam ouvir a palavra de Deus que Jesus lhes fala. Apesar de dizerem ser filhosde Deus (cf. 1Jo 2,29) — da boca para fora —, eles já fizeram a opção con-trária: são filhos do diabo e só pretendem cumprir o que este manda.

Agora fica claro qual é o pai que eles escutam (cf. v. 41a): o diabo(>Voc.). Desde o primeiro momento o diabo é quem mata e destrói. Confor-me o conceito bíblico-sapiencial, ele é responsável pela perda da imortalida-de de Adão e Eva (Gn 3; Sb 2,23-24), e a tradição judaica lhe atribui tambéma inspiração do assassínio de Abel por Caim (Gn 4,8; cf. 1Jo 3,12-15).Quando os judeus da sinagoga querem matar Jesus, mostram-se filhos doarquiassassino, o arquiinimigo da verdade e de Deus. Só fala mentira: ele émentiroso e pai da mentira/do mentiroso (fim do v. 44; as duas interpretaçõessão possíveis).

Os filhos desse outro “pai” não acreditam em Jesus, e isso, não “embora”Jesus fale a verdade, como se esperaria, mas exatamente “porque” fala averdade, pois eles preferem a mentira. Não há o que possam criticar emJesus. “Quem de vós pode acusar-me de pecado? Se eu digo a verdade, porque não acreditais em mim?” O olhar penetrante de João vê aqui novamenteuma oposição inegociável entre dois âmbitos (>Intr. § 2.1.6), o de Deus e odo diabo: “Quem é de Deus escuta a Palavra de Deus. Vós não escutais,porque não sois de Deus” (vv. 46-47).

Provocados, “os judeus” (João esqueceu que no v. 31 eles eram crentes)começam a acusar Jesus. E de quê? Chamam-no de “samaritano”, uma daspiores ofensas para um judeu (>com. 4,9). Dizem que tem um demônio (élouco, portanto excluído de qualquer conversa sensata; >Voc. Demônio).Mas Jesus não é louco de orgulho, não tem demônio algum. Ao contrário,respeita a Deus, enquanto eles desonram a ele e a Deus. Não que Jesus estejaprocurando glória para si; Deus cuida da glória de Jesus... e exerce o juízo.

O duplo “amém” no v. 51 introduz uma declaração solene. Em oposiçãoà anterior ameaça aos que desonram Deus, Jesus anuncia agora a salvação paraquem observa a sua palavra. Tal pessoa é justa diante de Deus e não conheceráa morte (a “segunda morte”, Ap 20,6.14; 21,8): não será rejeitada por Deus.

16. A acusação de ter nascido da prostituição pode ter um outro alvo: segundo os Atos dePilatos 2,3 (livro apócrifo) e Orígenes, Contra Celso, 1,28, os judeus acusam o próprio Jesus deter nascido da prostituição ou coisa semelhante.

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Aos olhos dos “judeus”, que pensam em termos da carne, Jesus deve “terum demônio” (cf. v. 48), está delirando, mesmo — e provavelmente pensama mesma coisa dos seus seguidores. Abraão e os profetas morreram, e Jesuspromete que quem acredita nele não vai morrer. Será acaso maior que Abraãoe os profetas? Quem ele se considera ser?

Jesus não precisa esconder-se em falsa modéstia, pois não está satisfa-zendo a própria vaidade. Quem dá glória a Jesus é seu Pai, aquele que osjudeus dizem ser “nosso Deus” (Jesus cita verbalmente a maneira de rezardos judeus: “nosso Deus”, Sl 20,8; 40,4 etc.; alusão à Aliança do povo deIsrael: Dt 7,6; cf. Sl 33,12 etc.). Todavia, diz Jesus, eles não conhecem Deus,não têm experiência dele. Ele mesmo o conhece. Se dissesse o contrário,seria igual a eles: um mentiroso (cf. v. 44). Mas ele conhece Deus e não podeesconder o que dele sabe. Ele é encarregado da palavra de Deus. Por isso,proclama, com majestosa simplicidade: “Vosso pai Abraão rejubilou-se porver o meu dia; e ele viu e alegrou-se”.

Quando? Como João acha que Isaías na sua visão inicial (pré-)viu Jesus(>com. Jo 12,41), podemos supor que ele atribui semelhante pré-visão deJesus ao patriarca Abraão; a tradição judaica interpretou Gn 15,18 como umapré-visão geral que Abraão teve da história de seus descendentes (Talmud:Gn rabba 44,22). Certo é que os judeus imaginavam Abraão numa espéciede beatitude celestial (cf. Lc 16,22-31), em que ele poderia ver o “dia” deseu descendente, o Messias. Jesus não deve ser contraposto a Abraão; nelese realiza o que Abraão esperava.

Os adversários, invertendo os sujeitos, respondem: “Ainda não tens cin-qüenta anos, e viste Abraão?!” (alguns bons manuscritos lêem: “Abraão teviu?”). Então, Jesus se revela plenamente: “Antes que Abraão viesse a ser,EU SOU” (cf. a oposição entre “ser” e “vir a ser” no Prólogo, Jo 1,1-2 e 1,14).

“Eu sou” (terceiro uso neste contexto, depois de 8,24.28) é a frase comque Deus mesmo se dá a conhecer (Ex 3,14; >exc. 8,25). Jesus pronuncia apresença de Deus em sua pessoa, e esta é a última palavra da discussão.

Se levamos a sério os vv. 30-31, os que ouviram de Jesus as tremendascríticas de 8,31-59 são judeus que tinham abraçado a fé em Jesus. Qual foimesmo o erro deles? Que deram mais importância a seu pai Abraão que aJesus. “Acaso és maior que o nosso pai Abraão?”, perguntam a Jesus. E Jesusdá a entender que ele é, de fato, maior que Abraão. Também a samaritana em4,12 perguntou se Jesus era maior que o patriarca Jacó, e os judeus do cap. 6queriam saber se Jesus era capaz de fazer o que fez Moisés (6,31). Ora, Jesusé simplesmente incomparável. Ele é a Palavra de Deus em pessoa, ele é o queDeus é (cf. 1,1). “Antes que Abraão viesse a ser, EU SOU”. Como Deus.

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O que eles não podiam entender no início da conversa (“eu [o] sou”) ficaagora claro, não apenas como manifestação ou revelação, mas também comojulgamento (cf. v. 26). Os que não aceitam que Jesus é o Messias e Filho doHomem (primeiro sentido de “eu [o] sou”) se defrontam agora com aqueleque sempre, antes de Abraão e antes de todos os tempos, é “o Presente”: “Eusou/estou aí”.

O ensinamento de Jesus, por enquanto, terminou. Para os que crêem ficaclaro o que está em jogo: a adesão firme a Jesus, sem tergiversar. Tambémpara “os judeus”, as coisas ficam claras: Jesus blasfemou! Pegam em pedraspara apedrejá-lo, de acordo com o castigo que a Lei prescreve para quemblasfema (Lv 24,16). Mas Jesus sai do Templo e se esconde, assim como eleveio: “às escondidas” (cf. 7,10).

Estes capítulos 7 e 8 são provavelmente os menos comentados doEvangelho de João. São difíceis, estranhos, agressivos. O melhor co-nhecimento da religião judaica — festa das Tendas, Torá, sabedoria,simbolismo de água e luz… — nos ajuda imensamente, mas não é osuficiente, pois João ultrapassa o sentido judaico. Se, portanto, emnossa “leitura judaica”, é bom deixar-nos envolver pela aplicação aJesus desses ricos simbolismos, é necessário também, num segundomomento, olhar para trás, para avaliar a incredulidade dos “quetinham passado a crer” (v. 31). O problema era que eles queriampertencer ao grupo de Jesus e ao mesmo tempo continuar na Sinago-ga, que o rejeitava. Não queriam assumir a ruptura, não queriam“nascer de novo” (cf. 3,8).

Ora, que eles eram “judeus” é apenas um detalhe acidental. Se tives-sem sido católicos apostólicos romanos, evangélicos ou ortodoxos,teriam tido a mesma dificuldade... O problema destes e daqueles é quenão tiram as conseqüências da opção por Jesus, ficando amarradosà estrutura social, cultural e religiosa em que se criaram. Tambémnós, cristãos de hoje, devemos optar pela palavra de Jesus, palavrade amor até o fim, contra os laços que nos unem a uma sociedadeexploradora ou a uma Igreja que só serve para aparência piedosa ousatisfação sentimental.

Por mais que o ponto de partida da discussão seja a questão históricade Jesus no judaísmo (Jesus e seus irmãos, Jesus e as autoridades deJerusalém) e, mais tarde, a discussão entre os cristãos (de origem

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judaica) e a Sinagoga, o que João evoca nessas falas do Jesus pascale eclesial ultrapassa as situações históricas de Jesus e do QuartoEvangelho (do ano 30 ao ano 90). Estes capítulos são uma amostradeslumbrante da capacidade de João de falar, a partir de uma expe-riência concreta, para a humanidade universal, como convém quandose trata da “luz do mundo”. João opõe radicalmente o apego ao“imaginário” humano da religião (a figura do patriarca, a organiza-ção da Lei e da Sinagoga) à verdadeira liberdade, que consiste emconfiar-se a Deus mediante a fé irrestrita e perseverante em Jesus,não obstante a sedução ou até a violência exercida pelo ambientesócio-religioso de origem.

Observe-se, porém, que não se trata de uma fuga dessa sociedade, nosentido do dualismo gnóstico. Jesus é luz para o caminho, para os pés,não só para a cabeça alumbrada. Suas palavras convocam “os judeusque abraçaram a fé”, não a renegar sua origem no judaísmo (quetambém Jesus não renega: 4,22), mas a permanecer na fé, assim comoela se apresenta concretamente na comunidade eclesial, quando ascircunstâncias históricas exigem distanciamento dos parentes e ami-gos que rejeitam a legitimidade de Jesus e de sua comunidade. Tama-nha é a “liberdade cristã”!

Finalmente, ainda que os termos dessa fala de Jesus sejam criaçãoliterária joanina, a consciência de que em Jesus ressoa o “Eu sou” deDeus, exigindo confiança total desde Moisés até hoje, não é o resultadoda reflexão teológica, é a sua base! Não é por algum refinamento teo-lógico que João chega a atribuir a Jesus a expressão mais forte dapresença divina, mas simplesmente, porque ele a experimentou.

O cego de nascença e o bom pastor (9,1–10,21)

I — 9 1Jesus ia passando, quando viu um cego de nascença. 2Seus dis-cípulos lhe perguntaram: “Rabi, quem pecou para que ele nascessecego, ele ou seus pais?” 3Jesus respondeu: “Nem ele, nem seus paispecaram. Mas deste modo as obras de Deus se manifestarão nele. 4Épreciso que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto édia. Vem a noite, quando ninguém poderá trabalhar. 5Enquanto estouno mundo, sou a luz do mundo”. 6Dito isso, cuspiu no chão, fezbarro com a saliva e untou com o barro os olhos do cego. 7Disse-

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lhe então: “Vai lavar-te na piscina de Siloé” (que quer dizer: Envia-do). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando.

II — 8Os vizinhos e os que sempre viam o cego pedindo esmola diziam:“Não é ele que ficava sentado pedindo esmola?” 9Uns diziam: “Sim,é ele”. Outros afirmavam: “Não é ele, mas alguém parecido comele”. Ele, porém, dizia: “Sou eu mesmo”. 10Então lhe perguntaram:“Como é que se abriram os teus olhos?” 11Ele respondeu: “O homemchamado Jesus fez barro, untou com o barro meus olhos e disse-me:‘Vai a Siloé e lava-te’. Eu fui, lavei-me e comecei a ver”. 12Pergun-taram-lhe ainda: “Onde ele está?” Ele respondeu: “Não sei”.

III — 13Então levaram aquele que tinha sido cego aos fariseus. 14Ora, foinum dia de sábado que Jesus tinha feito barro e aberto os olhos docego. 15Por sua vez, os fariseus perguntaram ao homem como tinharecuperado a vista. Respondeu-lhes: “Ele aplicou barro nos meusolhos, e eu fui lavar-me e agora vejo!” 16Alguns dos fariseus disse-ram então: “Esse homem não vem de Deus, pois não observa osábado”; outros, no entanto, diziam: “Como pode um pecador fazertais sinais?” E havia divisão entre eles. 17Voltaram a interrogar ohomem que antes era cego: “E tu, que dizes daquele que te abriu osolhos?” Ele respondeu: “É um profeta”.

IV — 18Os judeus não acreditaram que ele tivesse sido cego e que tivessecomeçado a ver, até que chamassem os pais dele. 19Perguntaram-lhes: “Este é o vosso filho que dizeis ter nascido cego? Como é queele está enxergando agora? 20Os pais dele responderam: “Sabemosque este é o nosso filho e que nasceu cego. 21Como está enxergando,isso não sabemos. E quem lhe abriu os olhos, também não o sabe-mos. Perguntai a ele; ele é maior de idade e pode falar sobre simesmo”. 22Seus pais disseram isso porque tinham medo dos judeus,pois estes já tinham decretado expulsar da sinagoga quem confessas-se que Jesus era o Cristo. 23Foi por isso que os pais disseram: “Eleé maior de idade, perguntai a ele”.

V — 24Os judeus, outra vez, chamaram o que tinha sido cego e disseram-lhe: “Dá glória a Deus. Nós sabemos que esse homem é um peca-dor”. 25Ele respondeu: “Se é pecador, eu não sei. Só sei que eu eracego e agora vejo”. 26Eles perguntaram: “O que ele te fez? Comoele te abriu os olhos?” 27Ele respondeu: “Eu já vos disse e não meescutastes. Por que quereis ouvir de novo? Acaso quereis tornar-vos

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discípulos dele?” 28Os fariseus, então, começaram a insultá-lo, di-zendo: “Tu, sim, és discípulo dele. Nós somos discípulos de Moisés.29Nós sabemos que Deus falou a Moisés; mas esse, não sabemos deonde é”. 30O homem respondeu-lhes: “Isso é de admirar! Vós nãosabeis de onde ele é? No entanto, ele abriu-me os olhos! 31Sabemosque Deus não ouve os pecadores, mas ouve aquele que é piedoso efaz a sua vontade. 32Jamais se ouviu dizer que alguém tenha abertoos olhos a um cego de nascença. 33Se esse homem não fosse de Deus,não conseguiria fazer nada”. 34Eles responderam-lhe: “Tu nascestetodo no pecado e nos queres dar lição?” E expulsaram-no.

VI — 35Jesus ficou sabendo que o tinham expulsado. Quando o encon-trou, perguntou-lhe: “Crês no Filho do Homem?” 36Ele respondeu:“Quem é, Senhor, para que eu creia nele?” 37Jesus disse: “Tu oestás vendo; é aquele que está falando contigo”. 38Ele exclamou:“Eu creio, Senhor!” E ajoelhou-se diante de Jesus.

VII — 39Então, Jesus disse: “Eu vim a este mundo para um julgamento,a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se tornemcegos”. 40Alguns fariseus que estavam com ele ouviram isso e lhedisseram: “Porventura também nós somos cegos?” 41Jesus respon-deu-lhes: “Se fôsseis cegos não teríeis culpa; mas como dizeis:‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece.

VIII — 10 1 “Amém, amém, vos digo: quem não entra no pátio das ovelhaspela porta, mas sobe por outro lugar, esse é ladrão e bandido.2Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. 3Para este o por-teiro abre, as ovelhas escutam a sua voz, ele chama a cada umapelo nome e as leva para fora. 4E depois de fazer sair todas as quesão suas, ele caminha à sua frente e as ovelhas o seguem, por-que conhecem sua voz. 5A um estranho, porém, não seguem, porquenão conhecem a sua voz”.6Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o queele queria dizer.7Jesus disse então: “Amém, amém, vos digo: eu sou a porta dasovelhas. 8Todos aqueles que vieram antes de mim são ladrões ebandidos, mas as ovelhas não os escutaram. 9Eu sou a porta. Quementrar por mim será salvo; poderá entrar e sair, e encontrará pas-tagem. 10O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vimpara que tenham vida, e a tenham em abundância.

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11 “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.12O assalariado, que não é pastor e a quem as ovelhas não perten-cem, vê o lobo chegar e foge; e o lobo as ataca e as dispersa. 13Porser apenas assalariado, ele não se importa com as ovelhas. 14Eu souo bom pastor. Conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, 15as-sim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vidapelas ovelhas. 16Tenho também outras ovelhas, que não são destepátio; também a essas devo conduzir, e elas escutarão a minha voz,e haverá um só rebanho e um só pastor. 17É por isso que o Pai meama: porque dou a minha vida. E assim, eu a recebo de novo. 18Nin-guém tira a minha vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenhopoder de dá-la, como tenho poder de recebê-la de novo. Tal é oencargo que recebi do meu Pai”.19Essas palavras causaram nova divisão entre os judeus. 20Muitosdeles diziam: “Ele tem um demônio, perdeu o juízo. Por que oescutais?” 21Outros diziam: “Estas palavras não são de alguém quetem um demônio. Acaso um demônio pode abrir os olhos aos cegos?”

Em 9,1, João sugere uma leve mudança de cenário: depois de se terretirado do Templo, Jesus anda pelos arredores. João não indica o tempoexato do acontecimento; só podemos dizer que se situa entre a festa dasTendas (7,2) e a Dedicação do Templo (10,22). Os grandes temas do conflitoem Jerusalém, encetado no cap. 5, continuam presentes (Filho do Homem,Filho de Deus, Messias). No cap. 9 encontram-se os mesmos símbolos dafesta das Tendas (água, 7,37; luz, 8,12). Por outro lado, o tema da messia-nidade, levantado em 10,1-21, será desenvolvido no episódio seguinte, nafesta da Dedicação, 10,22-39. O ritmo dos diversos momentos temporaisparece marcar o gradativo crescimento da oposição contra Jesus durante suaestada decisiva em Jerusalém.

Neste episódio podemos distinguir:

A. (I-VII) a história do cego propriamente (cap. 9):

I. o sinal como tal (Jesus, os discípulos, o cego) (9,1-7);

II. as diversas reações: os vizinhos (9,8-12);

III. 1a inquisição das autoridades (9,13-17);

IV. 2a inquisição das autoridades (9,18-23);

V. 3a inquisição das autoridades (9,24-34);

VI. o reencontro de Jesus com o cego e a profissão de fé (9,35-38);

VII. os cegos que não querem ver: as autoridades (9,39-41).

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Além da composição cênica — a melhor de todo o evangelho — há outros in-dícios de que nesta parte o autor se deixou guiar pelo número 7: sete vezes aexpressão “abrir os olhos” (vv. 10.14.17.21.26.30.32) e sete maneiras de no-mear Jesus, com peso crescente: rabi (v. 2), enviado (v. 7), homem (vv. 11.16),profeta (v. 17), Messias (v. 22), Filho do Homem (v. 35), Senhor (v. 36).

B. (VIII) um epílogo, contendo um monólogo de Jesus (“cenas dopastoreio”, 10,1-18) e o tema da divisão em torno de Jesus (10,19-21; remetendo ao início 9,1-7).

Em 10,1 percebe-se uma aparente ruptura na coerência do texto. Faltaindicação de cenário. Pode ser que o evangelista inseriu 10,1-18 num segun-do momento, arrematando o conjunto com 10,19-21, que retoma em formade inclusão a situação do cap. 9. Apesar dessa “falha”, existe uma coerênciaimplícita entre o fim do cap. 9, apontando a cegueira dos fariseus, e o iníciodo cap. 10, que focaliza os líderes do povo, pois na tradição evangélica ébem conhecido o tema de “cegos que conduzem cegos” (Lc 6,39), aplicadoaos fariseus (Mt 23,16-23).

A narrativa do cap. 9 integra a série de “sinais” de Jesus (cf. 9,16). Joãonão quer apenas mostrar o valor simbólico da vitória da luz sobre as trevas(cf. 9,3-5), mas também contribuir para a iniciação cristã e a mistagogia (acura é assemelhada ao batismo) e para a apologética (um verdadeiro segui-dor de Jesus defende seu Mestre na hora da perseguição).

O AT não conta nenhuma cura de cegos, mas anuncia-a como sinal dotempo messiânico e de seu profeta (Is 35,5 e LXX Is 61,1). Na tradiçãosinóptica encontram-se curas de cegos — mas nunca de cegos natos — emMt 9,27-31; Mc 10,46-52 (= Lc 18,35-43 = Mt 20,29-34); Mt 12,22-23 (cf.Lc 11,14); em Mc 8,22-26 a cura se realiza mediante um gesto simbólico(toque, saliva) comparável ao de Jo 9,6. Mas em João, a narrativa da curaé muito breve e serve apenas para ensejar, mediante um “trabalho” de Jesus,um episódio dramatizado em torno do tema “luz e cegueira” no contexto davida da comunidade cristã.

A história é narrada com um duplo clímax:

1) O cego torna-se sempre mais clarividente, enxerga sempre melhorquem é o “homem chamado Jesus” (v. 11): um profeta (v. 17), umenviado de Deus (v. 33), o Filho do Homem (v. 37).

2) Entretanto, os “judeus” evoluem no sentido contrário, tornam-se sem-pre mais cegos. Primeiro são os vizinhos que duvidam da identidadedo cego (v. 9). Depois, os fariseus procuram desacreditar Jesus (v.16). Não querendo ver o óbvio (v. 18), pressionam os pais para que

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neguem os fatos (v. 19), buscam provocar uma renegação sob jura-mento (v. 24), partem para a ignorância e insultam e expulsam aqueleque foi curado por Jesus (v. 34).

Nos versículos finais do cap. 9, João reúne o cego e “os judeus” comJesus, visualizando o efeito oposto do sinal e da palavra de Jesus, que, qualespada de dois gumes, sanciona o “julgamento” que cada qual provoca porsua atitude de fé ou de incredulidade.

O trecho 10,1-18 (a parábola do pastor) mostra inicialmente alguma afi-nidade com os textos sinópticos (a ovelha perdida, Mt 18,12-13 = Lc 15,3-7)e reparte com esses a atmosfera campestre que está ausente dos outros textosde João. Respira-se o ar da tradição evangélica mais ampla. O próprio textofala, inclusive, de outras comunidades (10,16). Contudo, este trecho, tradi-cionalmente chamado “a parábola do bom pastor”, não é uma parábola comoa maioria das parábolas sinópticas — cenas provocando repentina apreensão(insight), p.ex., do Reino de Deus. Jo 10,1-5 é antes uma cena da vida quedepois é explicada alegoricamente, em diversos sentidos, que se completammutuamente.

I. O sinal (9,1-7)

Na situação de clandestinidade que marca o fim do episódio anterior,Jesus circula fora do Templo. Encontra um homem cego desde o nascimento,mendigando na porta do Templo (cf. v. 8; a tradição judaica relegava oscegos e os coxos para a porta do Templo; não podiam entrar, e para justificarisso citava-se até a palavra irônica de Davi sobre os cegos e coxos, 2Sm 5,8).

Jesus está acompanhado dos “discípulos”. Quais? Os Doze (cap. 6) ou osdiscípulos pouco confiáveis de Jerusalém (cf. 7,3)? Não importa. Os discí-pulos representam aqui o leitor, que deve aprender a lição.

Perguntam se a doença é por culpa do próprio cego ou dos pais. Perguntaestúpida! Como poderia alguém ter culpa antes de nascer? Talvez por causado karma e da reencarnação, como ensinam o hinduísmo, o espiritismo etc.?Ou pela explicação de alguns rabinos antigos que achavam que a criançapoderia pecar no útero. Ou talvez os discípulos tivessem um entendimentoerrado do Sl 51,7 (“eu já era pecador quando minha mãe me concebeu”).Quanto aos pais, existia a idéia de que os pecados se vingam nos filhos (cf.Ex 20,5; mas esse texto apenas opõe o castigo limitado da infidelidade àmisericórdia infinita — mil gerações — do Deus da Aliança). Todavia, já osprofetas recusaram a ligação do sofrimento ao pecado dos pais (cf. Jr 31,29-30 e Ez 18,1-4): não se dirá mais que os filhos têm dentes podres porque os

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pais comeram uvas verdes! Também Jesus rejeita totalmente esse tipo depreconceito. Mais: recusa-se a atribuir doença e sofrimento ao pecado (comofaziam os “amigos” de Jó). A cegueira física do pobre mendigo não é con-seqüência de pecado algum. É um acidente da natureza, que nada tem a vercom pecado (cf. Lc 13,2). Não o porquê, mas o para quê da enfermidadeimporta. Ela vai servir para mostrar Deus em ação: “as obras do Pai”, quese manifestam na atuação de Jesus (v. 3). (Em 9,39.40-41, porém, a cegueiravai ser interpretada — como a doença em 5,14 — num sentido simbólico,aplicado a outro tipo de cego: os que vêem fisicamente, mas não querem verespiritualmente. O pecado não é a causa da doença física, mas a cegueirapode simbolizar o pecado de “cegueira espiritual”.)

“É preciso (expressão do plano divino, >com. 4,3) que façamos as obrasdaquele que me enviou”. O plural “façamos” inclui os discípulos, portanto,os fiéis; quem fala é o “Jesus eclesial”. Por enquanto, é o seu “dia” (= a vidapública). Logo virá a noite da traição e da morte, quando não mais poderárealizar essa obra no mundo (cf. 12,35-36). “Enquanto estou no mundo soua luz do mundo” (cf. 8,12; 1,5.9; 12,46). É isso que ele vai mostrar.

Ele faz com saliva um pouco de lama e, com esta, unta os olhos do cego(cf. Mc 8,23). Depois, manda-o lavar-se no reservatório de Siloé. O cego fazo que Jesus mandou, e volta curado.

Essa breve evocação do sinal nem chega a ser uma descrição, mas estácheia de referências simbólicas. Jesus manda o homem a Siloé, o reservatóriodas águas salvíficas, de onde pouco antes tinha saído a procissão de luz e águada festa das Tendas; >com. 7,2.37). Numa de suas notas características (v. 7b),o autor traduz o nome do reservatório, que recebe por um túnel subterrâneo aágua “enviada” da fonte do Gion, salvadora em tempo de assédio e purifica-dora em tempo de paz: “Siloé, que quer dizer Enviado” (cf. “enviar”, 9,4). Acura da cegueira é um ato de Deus a ser realizado por aquele que “enviou”,o Cristo-Ungido (enviar, ungir e abrir os olhos aos cegos são temas de Is 61,1segundo a LXX; e cf. talvez a “profecia” do Shilô, Gn 49,10).

Ora, para o leitor iniciado, esta cena é uma evocação do batismo (ecrisma): o batismo no nome de Cristo e a vida cristã eram chamados, naIgreja dos primeiros tempos, de fôtismós, “iluminação” (por Cristo; cf. Ef5,8-14). Também o diálogo da profissão de fé nos vv. 35-36 aponta nadireção da liturgia batismal. Neste sentido, pode-se ver um simbolismo nofato de que Jesus não apenas cospe no olho, como em Mc 8,23, mas fazbarro, como Deus na criação de Adão e Eva: o batismo é nova criação. Ecom esse barro, o Cristo-Ungido “ungiu” os olhos do cego (vv. 6 e 11:epékhrisen, da mesma raiz que khristós, “ungido”).

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II. A reação dos vizinhos (9,8-12)

Ao encontrarem o cego curado, os vizinhos se dividem em torno daquestão se ele é mesmo o mendigo cego da porta do Templo. Essa discussãolembra o ambiente dividido em torno da obra de Jesus (p.ex. 7,10-13…) eespelha a divisão que reinava entre os judeus a respeito da comunidadejoanina algumas décadas depois. Os vizinhos perguntam como o cego agoraenxerga. Ele conta, literalmente, o que Jesus lhe mandou fazer. Perguntamonde Jesus está. Ele não sabe, pois ainda não está “seguindo” Jesus. Todavia,diferentemente do aleijado de 5,1-13, ele sabe o nome de Jesus. Da primeiravez, ele o chama: “o homem chamado Jesus” (sobre “o homem”, >com.19,5); no fim, ele dirá: “Eu creio, Senhor” (v. 38): clímax da fé.

III. Primeira inquisição das autoridades (9,13-17)

Surge então o conflito com as autoridades judaicas, chamadas aqui “osfariseus”, mais adiante “os judeus”. A cura fora realizada num dia de sábado,observa o evangelista numa nota cronológica atrasada (cf. 1,39c; 5,9c). Tam-bém em 5,9c, a nota cronológica atrasada introduz o conflito por causa dosábado na metade da narrativa, como uma explicação necessária, pois ascuras de 5,6-9 e 9,6-7, em si, não deveriam provocar conflito com o judaís-mo. Precisava-se de uma razão mais específica: Jesus transgrediu a lei dosábado: no cap. 5, Jesus mandou o aleijado carregar a maca; em 9,6, Jesusfez barro. Na realidade, a discussão se caracteriza por um profundo mal-entendido: quem quebra a lei do sábado pode ser profeta? Pode-se até pro-curar resposta em Dt 13,1-5 (o profeta que manda seguir ídolos) ou 18,15-22 (o profeta que fala o que Deus não ordenou), mas Jesus está bem acimade tudo isso.

Os fariseus interrogam o ex-cego. Ele conta, mais uma vez (cf. v. 11),sua história: “Ele aplicou barro nos meus olhos, e eu fui lavar-me e agoravejo!” Concluem os fariseus que um homem que manda tal coisa não podevir de Deus, pois não guarda o sábado. (Em Dt 13,2-6, Moisés ensina a nãoseguir, e sim matar um profeta que, mesmo fazendo sinais, vai contra a Leide Deus.) Já outros acham que um pecador não seria capaz de fazer taissinais (veja, contudo, Mt 24,24: os falsos cristos fazem prodígios e maravi-lhas; Ex 7,11: os videntes do faraó fazem sinais). Trava-se, então, uma dis-cussão (cf. 7,43). Perguntam a opinião do ex-cego. “É um profeta”, diz ele.Os grandes profetas, Elias, Eliseu e sobretudo Moisés, considerado o protó-tipo dos profetas, ocupavam um grande lugar na religiosidade popular dosjudeus por causa dos sinais que fizeram (cf. tb. v. 31). De toda maneira, oex-cego já se coloca ao lado de Jesus!

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IV. Segunda inquisição das autoridades (9,18-23)

Os “judeus” não querem admitir o milagre. Mais exatamente, não que-rem ver o sinal. Chamam os pais do cego e perguntam se é filho deles e senasceu cego mesmo. Os pais respondem que é seu filho e que nasceu cego,mas que não sabem como agora ele está enxergando. E remetem os fariseusao próprio, já que tem a idade para responder por si mesmo.

Os pais não querem encrenca com os fariseus, porque estes decidiramexpulsar da comunidade judaica — a sinagoga — quem reconhecesse Jesuscomo Messias. Que os judeus decidiram “expulsar da Sinagoga” quem acre-ditasse em Jesus (9,22) é anacrônico quanto ao momento histórico de Jesus,nos anos 30. Os “crentes” de Jesus não eram tão conhecidos no tempo de suavida terrestre. João atualiza o texto para lhe dar mais incidência na vida deseus leitores: a expulsão dos cristãos da sinagoga evoca para o leitor osconflitos que se seguiram à missão de Jesus, sobretudo a atualidade dos anos80-90, quando o judaísmo reconstituído em torno do “sínodo de Jâmnia”decidiu a expulsão dos cristãos (cf. tb. 15,18; 16,2).

Jâmnia e a exclusão dos cristãos

A observação de Jo 9,22 referente à exclusão da sinagoga é de fato muitoatual para os leitores de João. Em 68, quando do assédio de Jerusalém(>Voc. Guerra Judaica), os fariseus, com a anuência do poder romano,saíram da cidade para refugiar-se em Jâmnia/Javné, a uns 50 km a oeste deJerusalém. Depois da destruição do Templo (em 70) e do fim da guerra, osrabinos (mormente fariseus) começaram a recompor a comunidade judaicana base da Sinagoga, sem o Templo. O “sínodo de Jâmnia”, como é chama-do, tomou a decisão de excluir os cristãos da nova comunidade judaica.Incluíram na oração cotidiana do judeu a birkat ha-minim, uma maldiçãodos hereges (minim). As razões disso podem ser diversas. Em primeirolugar, os cristãos proclamavam Jesus como Messias, o que os judeus nacio-nalistas não podiam aceitar, sobretudo depois da destruição do Templo, umasituação nada “messiânica” (no entender deles). Além disso, os cristãosatribuíam a Jesus missão e dignidade divinas, o que os judeus consideravamblasfêmia (cf. Jo 5,18 etc.). Enfim, unindo-se a outros grupos (samaritanos,gregos), os cristãos de origem judaica deixavam de colaborar na construçãode uma comunidade judaica étnica; eram considerados traidores.

Observemos, porém, que nada obriga a situar a exclusão (excomunhão) dasinagoga só depois do sínodo de Jâmnia. A excomunhão era uma prática co-nhecida; por volta de 50 dC, Paulo a aconselhou aos coríntios em relação a umincestuoso (1Cor 5,1-5). Ela pode ter sido praticada contra os cristãos já bemcedo, dependendo da atmosfera local, pois o conflito com o judaísmo surgiusimultaneamente com a comunidade cristã (cf. At 8–9). Paulo que o diga!

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V. Terceira inquisição das autoridades (9,24-34)

Os fariseus chamam novamente o homem que tinha sido cego. Exigem queele jure que Jesus é pecador (“dá glória a Deus” como fórmula de juramento,cf. Js 7,19). Ora, o homem é honesto: só pode jurar o que sabe: que ele eracego e que agora vê. Se Jesus é pecador não é de seu conhecimento! No v. 33seguirá a resposta verdadeira: eles dizem que Jesus deve ser pecador porquedesrespeita o sábado, mas Deus não atende o pedido de pecadores: o fatocontradiz a teoria dos fariseus. Como mestres, deveriam saber!

Quando os fariseus insistem, pela terceira vez, em querer saber detalhescomprometedores, o cego ironiza: “Por que quereis ouvir a história maisuma vez? Acaso quereis tornar-vos discípulos dele?” Podemos supor por trásdessas repetições um reflexo das intermináveis inquisições que os cristãos naépoca de Jâmnia sofriam da parte das autoridades da Sinagoga. E a ironia doex-cego sugere que não adianta discutir com essas instâncias; só teria sentidose quisessem aprender, isto é, tornar-se discípulos.

Querendo discriminar o homem, os fariseus dizem que eles são gente debem, discípulos de Moisés, enquanto ele é discípulo de Jesus, herege. “Deusfalou a Moisés, mas quanto a este, nem sabemos de onde é!” O que está emjogo é a missão de Jesus. Moisés tinha recebido sua missão de Deus, que lhefalara (cf. Ex 33,11; Nm 12,2-8); mas de Jesus nem sabem de onde ele vem.Isto é mais uma ironia joanina: os judeus dizem a verdade, mas não nosentido em que eles mesmos entendem isso. De fato não sabem de ondeJesus é, mas isso não é uma razão para não acreditar nele. Aliás, os própriosjudeus achavam que a origem do Messias seria desconhecida. Em 7,27 nãoqueriam acreditar em Jesus porque diziam saber de onde era! Ou melhor,pensavam saber — pois o “de onde” de Jesus é sempre uma questão miste-riosa (>com. 2,9). Cf. também 7,41.

Agora, depois de se mostrar discípulo e testemunha, o homem que foicego transforma-se em mestre. Dá aos fariseus uma lição de teologia, expres-sando sua admiração porque não conseguem ver de onde Jesus é, enquantoabriu os olhos de um cego! Por duas vezes (9,24.29), os judeus afirmaramacentuadamente “nós sabemos” (que esse homem é pecador, que Deus faloua Moisés...). Agora o cego responde com o mesmo “sabemos”, representan-do a comunidade eclesial (cf. Jesus, em Jo 3,11): “Sabemos que Deus nãoatende os pecadores (cf. Is 1,15…), mas atende o piedoso que faz a suavontade (cf. 1Jo 3,21)”. E acrescenta: “Jamais se ouviu dizer que alguémtenha aberto os olhos a um cego de nascença. Se esse homem não viesse daparte de Deus (cf. Nicodemos em 3,2), não conseguiria fazer nada”. No ATnão é narrada nenhuma cura de cegueira, muito menos de cegueira de nascen-

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ça: isso é uma característica do tempo messiânico (cf. Is 35,5; 42,7; cf. LXXIs 61,1). Implicitamente, o cego dá a entender que Jesus é o Messias.

O resultado é que os líderes judaicos chamam o cego de nascença de“pecador de nascença” (cf. Sl 51,5). Relacionam sua cegueira com o pecado,exatamente aquilo que Jesus tinha negado (cf. 9,2-3). Ora, se não se podeinferir da cegueira física o pecado anterior, o contrário é possível, no nívelsimbólico, espiritual, como mostra a cena VII: o pecado se manifesta nacegueira espiritual.

Os fariseus expulsam o homem da comunidade sinagogal (cf. 9,22).Cego, curado, interrogado, testemunha, mestre... agora ele participa plena-mente da sorte de Jesus (cf. 15,18); excluído, está onde está seu Mestre (cf.12,26). De fato, logo mais ele o encontrará!

VI. A visão do cego (9,35-38)

Jesus sabe que expulsaram o ex-cego da sinagoga e, fazendo o contráriodos fariseus, o encontra (talvez se possa traduzir: “foi à procura/ao encontrodele”; cf. 6,37: “eu não o lançarei fora”!). Pergunta-lhe se acredita no Filhodo Homem (este título já anuncia o tema do julgamento, que aparecerá nov. 39; >com. 1,51-52 e 5,27). “Quem é, para que eu acredite nele”, perguntao homem, que já conhece Jesus como profeta enviado por Deus (cf. vv.17.32.33), mas não como aquele em quem se torna presente o julgamento.Jesus responde: “Tu o estás vendo: é o que está falando contigo” (cf. 4,26).Foi para isso que o cego devia “ver”: para ver o Filho do Homem, o Enviado(9,7). “Creio, Senhor!”, exclama o homem, e cai de joelhos em adoração. (Oex-cego está aqui para qualquer crente17.)

VII. Os cegos que não querem ver (9,39-41)

Jesus comenta: “Eu vim a este mundo para um julgamento, a fim de queos que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos”. Nesta altura, Joãomenciona que alguns fariseus estavam por aí, junto ao homem que foracurado. Eles questionam Jesus: “Será que nós também estamos incluídosentre esses cegos de que estás falando?” Mas Jesus não lhes deixa a desculpade serem cegos: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa. Mas agora que dizeis:‘Vemos’, vosso pecado permanece”, ou seja: o pecado deles não é abolido,

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17. Alguns dos mais antigos manuscritos omitem esta resposta. A expressão “Senhor” é usadacom muita freqüência em João como apóstrofe normal, mas aqui, como resposta a uma pergunta“confessional”, e, visto o gesto de adoração, parece representar o sentido que tem na LXX: repre-sentação do nome sagrado de Deus.

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“tirado” pelo Cordeiro (cf. 1,29). Pelo contrário, é confirmado (>com. 8,21.24).Não é o cego quem nasceu no pecado (dos pais), como eles disseram (v. 34;cf. v. 2); eles é que se tornaram cegos por causa de seu próprio pecado (cf.Jr 31,29-30; Lc 13,3). E como não reconhecem seu pecado, permanecem nopecado, que é serem cegos para a luz do Cristo. Os piores cegos são os quenão querem ver.

O cego vê e crê (>exc. 6,36; >com. 20,8-9). Seu ver é símbolo do crer:vê a luz do mundo, que é o Cristo (cf. 9,5). Os fariseus vêem fisicamente,mas não abrem sua inteligência para ver a luz que é Cristo (cf. Is 6,9; Jo12,40). Por isso, não crêem.

Em que consiste a cegueira dos fariseus, a mancha de pecado que per-manece? Essencialmente na auto-suficiência apegada ao sistema do qual elessão os donos. Vale a pena compará-los com o colega deles, Nicodemos. Aeste, Jesus sugeriu um novo nascimento (3,3), e o simbolismo de água eEspírito (3,5) nos fez entender que se tratava de mudar de adesão, de aderirà comunidade dos excluídos que — naquele tempo — era a comunidadecristã. Seria uma revolução total em sua vida. Os fariseus do cap. 9 fazemexatamente o contrário. Confrontados com alguém que renasce da água (Siloé)e do espírito de unção que repousa sobre o Enviado, o Cristo recriador,fecham os olhos: não querem saber daquilo que questiona seu sistema depoder e de pretenso saber.

VIII. Epílogo: “Cenas do pastoreio” (10,1-21)

Já em 9,34-35, João evocou o contraste entre os fariseus que expulsam osfiéis e Jesus que vai ao encontro de quem confia nele. O contraste chama àmente os líderes de Israel, tradicionalmente chamados “pastores” — quer re-únam, quer destruam o rebanho. Esse tema pastoril e pastoral torna-se assuntode diversas “variações” no cap. 10. Parece que se pode reconhecer em grandeslinhas a seguinte estrutura, baseada em dois desenvolvimentos do tema:

1 — Os salteadores e a porta (“parábola da porta”) (vv. 1-10)

a) fato da vida (vv. 1-5)1) destaque: quem não passa pela porta é bandido (v. 1)2) contraste: o pastor entra pela porta, chama e conduz as ovelhas,

porque lhe conhecem a voz (vv. 2-4)3) conclusão: ao estranho não seguem, porque não conhecem

sua voz (v. 5)

• observação do narrador sobre a incompreensão dos destinatári-os (os fariseus) (v. 6)

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b) explicação1) Eu sou a porta — antes de mim vieram bandidos (vv. 7-8)2) Eu sou a porta (dos pastores e das ovelhas) — quem passa por

mim encontra pastagem ➝ vida em abundância (vv. 9-10)

2 — O pastor exemplar (vv. 11-18)a) Eu sou o pastor exemplar e empenho a vida pelas ovelhas; o as-

salariado foge e deixa o rebanho dispersar-se (vv. 11-13)b) Eu sou o pastor exemplar e empenho a vida pelas ovelhas, e reúno

as ovelhas também de outros lugares (vv. 14-16)c) O sentido profundo de empenhar (dar) a vida (vv. 17-18)

• 10,19-21, ao descrever a divisão entre os judeus, faz a inclusãocom o início do cap. 9.

Como não se menciona novo cenário, devemos imaginar que Jesus con-tinua a falar aos fariseus, mas o tema da cegueira não é mais mencionado.10,1-18 parece uma homilia já cunhada na pregação e inserida aqui pararealçar o contraste entre Jesus e os líderes judaicos, que aflorou no fim docap. 9. Jesus aprofunda a crítica aos fariseus mediante um “fato da vida”,uma cena campestre. A proclamação solene com “amém, amém” mostra queaí, nos vv. 1-2a, está o tema principal de 10,1-10: uma advertência contra oslíderes que não entram pela porta, e uma recomendação dos verdadeirospastores, os que entram pela porta (depois será dito quem é essa porta). Umtema bem eclesial, portanto.

Na Palestina antiga, os rebanhos das diversas famílias passavam a noitenum curral ou pátio comum (cf. a reunião dos ovinos em Mt 25,31-46).Adotamos a tradução “pátio” porque faz pensar em outros pátios: o Templo,o pátio do sumo sacerdote (18,15). De manhã, cada pastor chama o seurebanho e o conduz para a pastagem. Ora, quando alguém entra no pátio dasovelhas, não pelo portão, mas por outro lugar, provavelmente é ladrão. “Ebandido”, acrescenta João. Este termo (bandido, salteador, bandoleiro) é usadopelo historiador contemporâneo do NT, Flávio Josefo, para designar os re-volucionários, e também pelos evangelhos, para descrever Barrabás (Jo 18,40),os que são crucificados com Jesus (Mt 27,38 par.) e até o próprio Jesus nomomento da prisão (Mt 26,55 par.; cf. ainda Mt 21,13 par.). No v. 8 veremosa quem esse termo pode referir-se no presente contexto.

Quanto ao pastor das ovelhas, esse entra pelo portão. O porteiro lhe abreo portão, as ovelhas reconhecem sua voz quando as chama pelo nome (poisas ovelhas têm nome, como se fossem filhos; cf. 2Sm 12,3). Depois, o pastoras conduz para fora e elas o seguem, com plena confiança, pois conhecem

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sua voz. Mas a um estranho não seguem; pelo contrário, fogem dele, porquenão conhecem sua voz... O v. 5 volta assim ao assunto inicial, os mauslíderes (cf. v. 1), destacando sua inconfiabilidade. O detalhe das ovelhas quefogem dos estranhos, por não reconhecerem sua voz, pode aludir ao fato deo cego ter mais confiança em Jesus e sua comunidade do que nos fariseus.

Os ouvintes (= os fariseus, mencionados em 9,40, ou um público indefinido)não entendem o que Jesus está querendo dizer. Agora Jesus vai explicar o queestava visando ao descrever essa cena pastoril. Ora, a julgar pelo conteúdo, etambém em vista do caráter iniciático do Quarto Evangelho, a explicação parecedirigir-se muito antes aos candidatos à fé do que aos chefes dos judeus.

A primeira explicação soa: “Eu sou a porta!”, ou melhor: “A porta soueu”. Numa autoproclamação figurativa (>exc. 6,35), Jesus se apresenta comoa passagem obrigatória (cf. 14,6). Há quem pretenda ir às ovelhas sem passarpela porta que é Jesus: trata-se de falsos pastores, ou seja, “ladrões e ban-didos” (cf. v. 1). As ovelhas não os escutam. Não é estranho Jesus identifi-car-se com “a porta”: no judaísmo a porta já era imagem da congregação dosfiéis, e é provavelmente como imagem pastoril que se deve entender a pa-rábola sinóptica da porta estreita (Lc 13,24 par. Mt 6,6).

Se Jesus é a porta, quem são “os que vieram antes de mim”. os “ladrõese bandidos” a que Jesus se refere? Certamente não os profetas ou João Ba-tista! Talvez sejam os líderes catastróficos de épocas anteriores, especialmenteos reis hasmoneus e herodianos (leia-se a história dos últimos séculos dojudaísmo antigo conforme Flávio Josefo), e também os líderes sacerdotais efarisaicos daqueles anos. Outra possibilidade é que se trate de líderes maispróximos da redação do evangelho no fim do século I — os fanáticos darecém-acabada Guerra Judaica (66-73 dC) ou os líderes do judaísmo restaura-do. Mas estes atuaram depois de Jesus. Por que então a expressão “os quevieram antes de mim”? Talvez porque queriam desviar o rebanho parareconstituir a comunidade judaica com base nas instituições e tradições anti-gas, que a presença e atuação de Jesus abolira. Queriam continuar no nível dojudaísmo sem Jesus, levar o rebanho para coisas do passado, sem vida, por-tanto, para a morte. Ora, visto que João escreve não para os de fora, mas paraos de dentro, podemos entender isso também como advertência contra aquelesque, mesmo dentro da comunidade cristã, pretendem orientá-la sem ter Jesuscomo ponto de referência (cf. 2Jo 7-10; 1Jo 2,18-20). Sejam quais forem “osque vieram antes de mim”, pastores que não passam por Jesus só causam ruínae destruição no rebanho. Apresentando-se com um projeto que não passa porJesus, seguem sua própria ambição e levam o povo à ruína. O importante emtudo isso é que os que uma vez se tornaram crentes compreendam a exclusi-

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vidade da salvação que eles encontram em Jesus. Por isso, a explicação termi-nará, no v. 10, no ponto positivo: “para que tenham vida em abundância”.

O v. 9 retoma a exclamação “Eu sou a porta” (sem repetir o adjunto “dasovelhas”; cf. v. 7). Os pastores que “entram e saem” por ela encontram“pastagem”, para pastorear e alimentar suas ovelhas, proporcionando-lhes odom de Deus. A expressão “entrar e sair” tem um sentido amplo, chegandoa significar simplesmente “freqüentar, conviver”. No AT, o termo é usadoprincipalmente em relação a líderes (Josué, em Nm 27,16-17, com conotaçãopastoril e guerreira; cf. o próprio Jesus, em At 1,21).

Excluindo os ladrões, que só entram para roubar e matar (v. 10a; cf. v.1), Jesus diz que ele veio para que as ovelhas tenham vida, e a tenham emabundância. Com esta idéia (v. 10b), Jesus passa da figura da “porta obriga-tória” para a figura do “pastor exemplar” (v. 11).

“Eu sou o bom pastor”. Esta nova autoproclamação figurativa (cf. v. 7 e>exc. 6,35) parece ser na realidade uma nova parábola: o pastor por excelênciaempenha sua vida para defender as ovelhas, ao contrário do simples assalariado,que foge quando se apresenta um animal de rapina. (Por influência da traduçãolatina, nossas traduções falam no “bom pastor”, certamente em oposição aosmaus pastores mencionados em Ez 34 e outros textos bíblicos; mas o termooriginal grego não significa “bom” ou “bondoso”, e sim, “belo, nobre, valente,adequado, acertado, exemplar, excelente”; cf. o vinho “melhor” de Jo 2,10.)

Tendo falado, anteriormente (vv. 1-10), de outros — bandidos ou pastores—, neste novo desenvolvimento do discurso (v. 11-18), Jesus se apresenta a simesmo como protótipo do pastor. Ele é o pastor exemplar, aquele que empenhasua vida pelas ovelhas. Esta sua qualidade se contrapõe não tanto aos “assaltan-tes” dos vv. 7-10, mas antes a pessoas que parecem pastores e não o são. Jesusnão é como os pastores contratados por salário, que não se importam com asovelhas, porque não lhes pertencem em propriedade. Um assalariado foge quan-do aparece uma fera; ele deixa as ovelhas sem proteção diante daquele que asrouba e “dispersa” (termo tomado de Zc 13,7 — a dispersão das ovelhas depoisda morte do pastor, imagem aplicada a Jesus e os seus em Mc 14,27 par. einterpretada por João em relação à comunidade depois de Jesus). O pastor-proprietário, pelo contrário, nada é sem as suas ovelhas.

O Pastor e o Messias

É impossível ler Jo 10,11 sem lembrar-se das profecias que apresentam oMessias como pastor. A Bíblia nasceu num povo enraizado na vida pastoril.Deus é pastor (Gn 49,24; Sl 23; 78,52-53; 95,7 etc.). Os patriarcas sãopastores. Moisés (Ex 3,1), Davi (1Sm 16), Amós (Am 1,1) são chamados

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por Deus enquanto conduzem os rebanhos. “Pastor” é um título do rei (tam-bém dos reis que abandonam o povo: 1Rs 22,17; Jr 10,21; 23,1-2; Zc 11).Especialmente Ez 34 serve de pano de fundo para Jo 10; o pastor futuro,messiânico. Este texto denuncia o descaso dos pastores malvados (34,5-6) eanuncia que Deus mesmo assumirá o pastoreio de seu povo (34,11-16). Aprópria fórmula da Aliança é traduzida em termos de pastoreio: “Vós soismeu rebanho... Eu sou vosso Deus” (34,31). Ele estabelecerá “Davi” (= onovo Davi, o Messias) como pastor sobre seu rebanho reunido (37,24).

A imagem do pastor aparece com freqüência no NT, aplicada a Cristo (aovelha perdida, Mt 18,12-13 par. = Ez 34,16; o pastor separando as ovelhas,Mt 25,32-33 = Ez 34,20). Na hora de sua paixão, Jesus se compara ao pastorseparado das ovelhas pela morte violenta (Mc 14,27 par. Mt 26,31 = Zc 13,7),mas na ressurreição ele as “precede” novamente (Mc 16,7 par.). No Ap 7,17,o Cordeiro imolado é saudado como pastor que conduz às águas vivificantes(cf. ainda 22,10). A imagem é aplicada também aos pastores depois de Cristo(1Pd 5,2-3; os pastores versus os lobos no rebanho At 20,28-29).

O que chama a atenção na imagem do pastor em Jo é: (1) o conhecimentomútuo de ovelhas e pastor; (2) o pastor dá sua vida pelas ovelhas. Dada aimportância do tema do conhecimento em Jo (>Intr. § 3.2.4:2), não devemosestranhar que ele qualifique por essa terminologia a solicitude do pastor ea confiança das ovelhas, temas encontrados também em Ez 34, Sl 78 eoutros textos. Quanto ao dom da própria vida, já os sinópticos mencionamo ferimento do pastor como imagem da morte de Jesus (Mc 14,27 par., coma reconstituição do rebanho depois da ressurreição, Mc 16,7 par.). Mas Joãovai mais longe neste sentido (cf. infra, vv. 14-15).

Recordando o ponto de partida (“Eu sou o bom pastor”, cf. v. 11), Jesusintroduz um novo tema: “Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem,assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida(lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)”. Esperava-se, para otempo do Fim, o verdadeiro pastor de Israel, imaginado como novo Davi (Ez34,23-34 menciona expressamente o novo Davi como pastor escatológico).Ora, o primeiro Davi jogava sua vida contra urso e leão para cuidar dorebanho, por amor a seu pai Jessé (1Sm 17,34-35). Entre Jesus e os seusexiste uma comunhão que deita suas raízes na comunhão de Jesus com o Pai.Por causa dessa comunhão, ele põe sua vida em jogo por suas ovelhas(vv. 17-18). Essa comunhão é uma comunhão de vida. Por isso, o melhorcomentário a essas palavras encontra-se na segunda parte do evangelho, emoutra grande “parábola” de Jesus: a da videira (Jo 15,1-17).

Jesus realiza a unidade escatológica do rebanho de que fala Ez 34 e 37.“Tenho ainda outras ovelhas que não são deste pátio”. No nível da narrativa,

14-15

16

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Jesus está falando a pessoas que vêm do judaísmo (do “pátio” do Templo).A digressão para “outras ovelhas” pode ser um aceno aos que, mais tarde,surgirão em primeiro lugar dentre os samaritanos (>com. 4,35-36.39-42; areunificação escatológica anunciada por Ezequiel fala expressamente em reunirJudá e Samaria: Ez 37,15-28), mas também dentre os pagãos greco-romanos,os bárbaros etc. Talvez o evangelista tenha percebido na sua própria comu-nidade alguma dificuldade a esse respeito; por isso, deixa Jesus falar assimde antemão, “antes que aconteça” (cf. 14,29). A todos esses, Jesus os deveconduzir e fazer deles “um só rebanho, com um só pastor” (cf. Ez 37,24,texto messiânico). Atualizando para nós hoje: todos os que escutam a voz doúnico verdadeiro pastor constituem o mesmo rebanho, pouco importa quevenham do catolicismo tradicional, dos crentes, do candomblé, do agnos-ticismo..., desde que escutem a voz de Jesus Messias. O pastor-modelo não seocupa somente com os que vêm de perto, os de casa, o grupo estabelecido.Não basta ocupar-se com os que moram em torno da igreja matriz…

Como conclusão final dos dois desenvolvimentos anteriores (vv. 11-13 ev. 14-15), Jesus aprofunda o mistério do amor do pastor bom e fiel. A fontedesse amor é o Pai (cf. v. 15). Este ama Jesus, e Jesus ama os que são doPai, a ponto de empenhar sua vida por eles. (O esquema Pai–Filho–os seusencontra-se também em 6,32.51; 15,9-17; >exc. 15,12.)

Jesus dá a sua vida e por isso pode retomá-la. (A tradução “eu dou a minhavida para que eu a receba de volta” é muito ruim! Dá a impressão de que Jesusfez um bom negócio! “Para que” (hina), no grego de João, deve muitas vezesser traduzido por “de sorte que”.) Jesus pode retomar a vida de que ele dispõe,pois ninguém a tira dele contra sua vontade. Ele empenha sua vida porque quer(>com. 3,16), soberanamente (>exc. 6,11), assim como ele pode retomá-la(pois ele tem poder sobre a vida: cf. 5,26). É o que acontece na ressurreição.Esse é o mandato (lit. “mandamento”), o encargo que recebeu do Pai.

Tal amor nada tem de sentimental. Mas só poderemos desdobrar sua ori-gem e suas dimensões quando chegarmos ao coração do mistério no qual oEvangelho de João nos introduz, na hora da despedida de Jesus (cf. 15,1-17).

Os “judeus” começam novamente a discutir por causa das palavras deJesus. Muitos acham que ele está delirando (“tem um demônio”, cf. 7,20;8,48). Outros, porém, lembram que ele abriu os olhos a um cego de nascen-ça, coisa que faz parte do tempo messiânico (>com. 9,32-33) e que umdemônio certamente não faria.

Com essas palavras, João emoldura a unidade literária de 9,1–10,21 eencerra os dias da festa das Tendas, em que Jesus se apresentou como água

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e luz e realizou o sinal da luz no cego de nascença. Mas não termina oquestionamento em torno de sua missão. Em 10,22-39, João acrescenta umbreve episódio que poderia servir de epílogo para os caps. 7–10: o episódio dafesta da Dedicação, no qual são arrematados os temas dos capítulos anteriores.

Se os caps. 7–8 mostraram antes discussões “teóricas” em torno da pre-tensão messiânica de Jesus, os caps. 9–10 giram em torno da práticade Jesus e a atitude de seus adversários diante disso.

A prática de Jesus é acolher os que não têm vez. Ocupa-se com umcego, já por sua própria doença expulso do Templo e ainda suspeitode carregar o castigo de alguma falta, se não de si mesmo, então dospais. Cura-o por um banho que no seu simbolismo aponta o batismocristão, ou seja, a integração na comunidade cristã. O homem que foicurado torna-se testemunha valente da adesão a Jesus, enfrentando aexclusão da comunidade judaica. O episódio culmina na confissão defé do excluído e no julgamento dos líderes que o expulsaram. Segueuma denúncia dos líderes inconfiáveis e a auto-apresentação do pas-tor exemplar, Jesus. Em torno disso, a população de Jerusalém sedivide, uns acusando Jesus de delírio, outros reconhecendo em seugesto o tempo messiânico.

Nas entrelinhas, percebe-se o jogo de rebaixamento/enaltecimento. Ocego é o excluído dos excluídos, nem pode entrar no Templo, e assimsão também os cristãos, excluídos da sinagoga. Jesus, que se põe aolado deles, é no fim reconhecido Filho do Homem e Senhor, e seautoproclama Porta da salvação e Pastor escatológico.

Semelhantes divisões marcam também nosso tempo. Quando em nos-sas comunidades se assume a causa dos excluídos, levantam-se vozesindignadas fora e dentro da comunidade. “Quando ajudo os pobres,sou um herói; quando pergunto por que são pobres, sou um comunis-ta” (Hélder Câmara). Os grupos de influência facilmente se afastamda comunidade que opta pelos pobres e excluídos — às vezes até sobpretexto de ortodoxia, mas, na realidade, para reforçar os setoresprivilegiados da sociedade.

O cego é qualquer crente, chamado das trevas à luz, iniciado pelobanho no Cristo-Ungido, o recriador — banho que é a Iluminaçãoverdadeira, não a da racionalismo instrumental, mas a da adesão

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àquele que sai ao encontro dos excluídos, o pastor de verdade.Se somos conscientes de que Deus nos chamou das trevas para a luzque é Cristo (cf. Ef 5,8-14), o cego simboliza a todos nós.

Isso vale em relação ao que recebemos, mas também em relação aoque podemos fazer para os outros. Se temos consciência do dom querecebemos, seremos solidários com a práxis de quem no-lo transmitiu.Procuraremos incluir os excluídos, mediante a adesão a Cristo, cons-tituindo a comunidade que ele “formatou” pelo dom da própria vida.Ele, como pastor modelo, enfrenta a ameaça ao rebanho que conduzà vida em abundância, da qual a própria ressurreição constitui agarantia. Portanto, não um simples acolher para fazer número, semexigência nem perfil, mas um integrar em comunidade de amor e dedoação, sem a qual a exclusão nunca terá fim. Aí está o exemplo paranossa “pastoral”.

A festa da Dedicação (10,22-39)

22 Foi quando se celebrou em Jerusalém a festa da Dedicação. Erainverno. 23Jesus andava pelo Templo, no pórtico de Salomão. 24Osjudeus, então, cercaram-no e disseram: “Até quando nos deixarásem suspense? Se tu és o Cristo, dize-nos abertamente!” 25Jesus res-pondeu: “Eu já vos disse, mas vós não acreditais. As obras que eufaço em nome do meu Pai dão testemunho de mim. 26Vós, porém, nãoacreditais, porque não sois das minhas ovelhas. 27As minhas ovelhasescutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. 28Eu lhes doua vida eterna. Por isso, elas nunca se perderão e ninguém há dearrancá-las da minha mão. 29O que meu Pai me deu é mais impor-tante que tudo, e ninguém pode arrancar algo da mão do Pai. 30Eue o Pai somos um”.31De novo, os judeus pegaram pedras para apedrejar Jesus. 32E elelhes disse: “Eu vos mostrei muitas obras boas da parte do Pai. Porqual delas me quereis apedrejar?” 33Os judeus responderam: “Não que-remos te apedrejar por causa de uma obra boa, mas por causa dablasfêmia. Tu, sendo apenas um homem, pretendes ser Deus!” 34Jesusrespondeu: “Acaso não está escrito na vossa Lei: ‘Eu disse: soisdeuses’? 35Ora, ninguém pode anular a Escritura. Se a Lei chamadeuses as pessoas às quais se dirigiu a palavra de Deus, 36por que,

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então, acusais de blasfêmia àquele que o Pai consagrou e enviou aomundo, só porque disse: ‘Eu sou Filho de Deus’? 37Se não faço asobras do meu Pai, não acrediteis em mim. 38Mas, se eu as faço,mesmo que não queirais crer em mim, crede em minhas obras. Assimreconhecereis e sabereis que o Pai está em mim e eu no Pai”.39Mais uma vez, procuravam prendê-lo, mas ele escapou das suas mãos.

Os vv. 22-23 descrevem um novo cenário e marcam o início de um novoepisódio. Depois do período da festa das Tendas, João introduz agora aseguinte grande festa judaica, tendo a mesma temática que Tendas: a Dedi-cação do Templo (dezembro, pleno inverno no hemisfério norte). Esta festanão consta entre as tradicionais festas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes,Tendas), por ser de origem mais recente (comemora a reconquista do Tem-plo, por Judas Macabeu, em 164 aC). Mas precisamente esta origem na lutapela liberdade nacional confere-lhe um teor de messianismo nacionalista,que se coaduna bem com os assuntos abordados pelos adversários de Jesusem Jo 10,22-39.

Este episódio não narra nenhum gesto de Jesus, mas é composto dediscussões. Os temas não são novos; retomam-se os temas messiânicos ecristológicos já abordados nos capítulos anteriores, mormente na primeiraparte do cap. 10. Jesus responde a duas questões:

1) É o Messias? (v. 25-30) — pergunta que volta nos interrogatórios dorelato da Paixão.

2) Torna-se igual a Deus? (v. 34-38) — acusação já levantada em Jo 5,18.

A cada resposta, os judeus reagem com uma tentativa de apedrejar Jesus— castigo prescrito pela Lei em caso de blasfêmia (vv. 31 e 39).

*Celebra-se a festa da Dedicação do Templo — aliás, da “renovação” ou

reconsagração do Templo, profanado pelo rei pagão Antíoco e reconquistadopor Judas Macabeu, em 164 aC (ver 1Mc 4,52-59). É chamada também“Tendas do inverno”, cf. 2Mc 1,9. É uma festa com grande carga naciona-lista revolucionária. Protegendo-se contra o mau tempo do inverno, Jesusanda ensinando na principal galeria do pátio do Templo, o “pórtico deSalomão”.

“Até quando nos deixarás em suspense (lit.: tomarás nosso alento)”,perguntam-lhe os judeus. Já que falou do Messias-pastor (10,11-18), quediga abertamente se é o Messias! Que faça a revolução logo! Pois entreos judeus (da Judéia) reinava muito a expectativa de um Messias guerreiro

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(cf. o apócrifo Salmo de Salomão 17,21-25; também o novo Davi-pastor eraentendido num sentido nacionalista e guerreiro). É bom lembrar que poucodepois do tempo do Quarto Evangelho, os rabinos da Judéia (Jâmnia) pro-clamarão messias a Bar Kokbá (132 dC) (>Voc. Guerra judaica).

“Eu já vos disse, mas vós não acreditais”, responde Jesus (cf. Lc 22,68,no contexto da paixão). Na realidade, nem em João, nem nos sinópticosJesus se declara diretamente “o Messias”, pois o termo seria certamenteentendido no sentido que Jesus não quer. Ora, se querem saber se ele é oenviado do Pai, que vejam o que ele está fazendo: os sinais, a cura do cego...(cf. a observação dos próprios judeus em 10,21). Essas obras, que ele faz emnome de seu Pai, dão testemunho dele. Mas os judeus não acreditam, porquenão são das suas ovelhas, não conhecem sua voz (cf. 10,4). O problema nãoé que Jesus não é o Pastor, mas que eles não são ovelhas (Crisóstomo)!

João parece aqui estar querendo formular a razão do abismo que separaJesus daqueles que se retrancam na Sinagoga, excluindo os próprios irmãos,os seguidores de Jesus.

Num primeiro nível, o divisor das águas é a questão do messianismo deJesus. Podemos imaginar a fala dos promotores da sinagoga no tempo doSínodo de Jâmnia (>exc. 9,18-23) : “Por que vocês não se unem a nós, naSinagoga? Por que vocês querem ser diferentes? Por que criar divisão emnossa nação, que já somos tão dispersos e agora privados de nosso Templo?Deixem para lá esse Jesus, que não fez nada e nada fará”. Ora, do ponto devista cristão, a coisa se apresenta de outra maneira. O fato de serem judeuse de partilharem com os da sinagoga o sangue de Abraão não é razão sufi-ciente para que os cristãos fiquem unidos ao grupo da Sinagoga. É precisoaceitar Jesus como Messias. A nova comunidade deve ser congregada emtorno de Jesus.

Aqui então se revela o nível mais profundo da separação, a questãopropriamente teológica. Por sua opção político-religiosa, “os judeus” seseparam do âmbito da vida “em abundância” que Jesus apresenta (cf. 10,10).Não são do rebanho de Jesus, não acolhem sua missão divina. Pelo contrário,com base numa teologia estreita e formalista, consideram blasfêmia a preten-são de missão divina.

“As minhas ovelhas escutam minha voz; eu as conheço e elas me se-guem, e eu lhes dou vida [da era] eterna.” Ambição desmedida de Jesus? Elelhes dá vida da era eterna, do âmbito de Deus (>exc. 11,27). Elas nunca seperderão, pois Jesus as recebeu do Pai e ninguém pode arrancá-las da suamão. “O que” (= semitismo para “aqueles que”) o Pai lhe “deu” (cf. 17,2.6.9etc.) supera tudo em valor, e ninguém pode arrancar algo que a mão do Pai

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protege (cf. Is 43,13!). Os dois últimos sinais de Jesus, o do cego (cap. 9)e o de Lázaro (cap. 11, e cf. 12,10-11) ilustram isso18.

De modo conclusivo, Jesus declara: “Eu e o Pai somos um”, uma rea-lidade só (o termo grego é um neutro gramatical). O que vale em relação aoPai vale também em relação a Jesus: os dois constituem uma realidade só.Esta frase exprime solidariedade radical, mas não significa nem identidadede pessoa nem igualdade de ordem entre Jesus e o Pai (cf. 14,28). Contudo,na opinião dos “judeus”, o que Jesus diz é uma blasfêmia, porque elesentendem que Jesus se faz igual a Deus (cf. 5,18).

Essa “blasfêmia” provoca nova tentativa de apedrejar Jesus (cf. 8,59).Jesus acaba de dizer que suas obras revelam sua missão da parte do Pai(v. 25). Agora pergunta ironicamente por qual dessas obras o querem apedre-jar. Respondem que não é por causa de alguma obra, mas por causa da blas-fêmia, pois sendo apenas homem se faz Deus. João pode até dizer que Jesusé Deus (1,1.18!), mas não que Jesus pretende ser (lit. “se faz”) Deus. Jesus éo filho obediente (cf. 5,18.19; >exc. 5,30), não Adão seduzido pela serpente(cf. Gn 3,5). Voltaremos a esse tema no momento decisivo, na hora da morte:Jo 19,7-8.

O v. 33 mostra em que consiste, em nível teológico, a razão decisiva porque os judeus rejeitam a fé dos cristãos. É a última palavra do debate públicoentre Jesus e “os judeus”, iniciado em 5,16-18. Não houve nenhum progres-so. A acusação continua a mesma: Jesus torna-se igual a Deus. Ou, lendo emnível da comunidade: aos olhos dos “judeus”, a fé cristã é uma ofensa aomonoteísmo, ao Deus “ciumento” da Aliança (Ex 20,5; 34,14 etc.). Acusamos cristãos de fazerem de Jesus um outro deus igual a YHWH. Ora, nemaqui, nem em 5,18, a união com Deus que Jesus clama é um sistema de doisdeuses. Pelo contrário, existe união entre Jesus e o Pai — e o que issosignifica não se aprende a partir de uma teologia rígida e preconcebida, masolhando para a prática de Jesus. Ninguém jamais viu Deus, mas basta olharpara Jesus para saber como Deus é (1,18; 14,9).

Que significa “deus”? O que está acima de tudo, de todos. A Bíblia chegaa chamar de “deuses” os antigos chefes de Israel, os juízes (Sl 82,6), porqueeles têm plenos poderes de Deus (cf. Dt 1,17; aparecer em juízo é “aparecerperante Deus”: Dt 19,17). O sentido original do Sl 82 pode até ser mitológi-

18. Dependendo de umas pequenas diferenças nos antigos manuscritos, o v.29 pode ser tra-duzido, no mínimo, de duas maneiras: (1) “… meu Pai que me (as) deu é maior que tudo (ou:todos)”; (2) “…meu Pai, o que ele me deu é maior (= mais importante) que tudo”. A segunda leituraé mais provável, pois é mais difícil (em grego) e melhor atestada nos antigos manuscritos; alémdisso, contém a antecipação do sujeito, típica de João.

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co, mas isso não interessa a João; só quer legitimar o uso do predicado“deus” para Jesus, se for o caso (não aqui, mas em Jo 1,1.18!). TambémMoisés é chamado “deus” em Ex 7,1. Então, por que acusar de blasfêmia eapedrejar aquele que Deus “consagrou e enviou ao mundo”, quando ele dizser “Filho de Deus”? A prática, não a discussão sobre palavras, mostra quemJesus é e em que sentido pode ser chamado “Deus” ou “Filho de Deus”. Masé preciso aprofundar o sentido dos termos usados por Jesus.

“Aquele que o Pai consagrou…” Como a consagração se faz pela unção,esta expressão significa em primeiro lugar o “ungido”, o Messias ou Cristo.Colateralmente, esta terminologia pode aludir à festa da Dedicação (= recon-sagração) do Templo. Na primeira Páscoa, Jesus suplantou o Templo (2,13-21); na segunda, ele substituiu a celebração em Jerusalém pelo dom do pão,símbolo de sua própria pessoa, lá na Galiléia (6,4-13). Na festa das Tendas,ele assumiu para si os símbolos da festa: água (7,37) e luz (8,12). Na mesmalinha, ele se põe agora no lugar do Templo consagrado (já não se precisa deuma nova guerrilha de macabeus ou zelotes para salvar a referência centraldo judaísmo).

“Aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo.” A construção lembraIs 61,1: Jesus consagrado com o Espírito de Deus para trazer a verdadeiralibertação (>com. 9,7). Mas não é um office-boy. Na Antiguidade orientale no judaísmo, muitas vezes, o enviado era equivalente àquele que o en-viava; o tratamento dado ao enviado valia como tratamento dado a quemo enviou. Conhecemos isso ainda hoje no caso dos embaixadores: uminsulto a um embaixador é um insulto à nação que o enviou. Neste sentido,Jesus e o Pai são um.

Não seria blasfêmia dizer que Jesus é “deus” (cf. Jo 1,1.18). Pois quandodizemos que Jesus é Deus, não atribuímos a Jesus um predicado cujo con-teúdo seria conhecido de antemão (ninguém viu Deus, Jo 1,18), mas damosum rosto a Deus. Não dizemos que Jesus tem as atribuições de Deus, quenem sequer conhecemos; dizemos que Deus é como Jesus e se dá a conhecerno modo de agir de Jesus. Ora, seria blasfêmia dizer que Jesus se faz Deus,como acusam os adversários (5,18; 10,33). Pois Jesus não se faz Deus, masé Filho obediente que recebe sua missão e a cumpre.

É neste sentido que Jesus e o Pai são um (cf. v. 30). Jesus faz as obrasdo Pai. Ele é Deus agindo no meio de nós. Se não fosse assim, suas obrasnão mostrariam a presença de Deus e os ouvintes não deveriam acreditarnele. Ora, se não querem acreditar na sua afirmação de ser o Filho de Deus,que acreditem nas suas obras, pois ele faz as obras de Deus! Então vão“conhecer e saber” (João repete o mesmo verbo no tempo pontual e no

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tempo da continuidade) que o Pai está realizando a sua obra em Jesus (cf.14,11-12). Esta frase foi usada num sentido apologético: os milagres deJesus provariam sua divindade. Mas não é isso que João quer dizer. Tudo oque Jesus faz é manifestação de Deus, no seu enviado; o enviado é “um”com quem o envia. Não se trata apenas de citar os milagres de Jesus comoargumento para sua divindade — aliás, o Jesus de João não confiaria muitoem tal apologética (cf. 2,23-24!). Trata-se de ver Deus em Jesus (cf. 14,9).

A cena termina numa nova tentativa de apedrejar Jesus (cf. v. 31; 8,59),castigo segundo a Lei para casos de idolatria, blasfêmia e assemelhados(Dt 17,5-7). Ao mesmo tempo prepara o episódio seguinte, que se inicia comum auto-exílio de Jesus.

Resumindo: Entre os dois temas das discussões de 10,22-39 (a messiani-dade de Jesus e sua “igualdade” a Deus) existe uma relação de reciprocidade:

1) Jesus é Messias, não à maneira de um novo Davi, mas à maneira dealguém que executa a vontade do Pai em perfeita unidade com este(“vontade do Pai” é sinônimo de “reinado de Deus”, como mostra oparalelismo no Pai-nosso, Mt 6,10). Se a teologia atual diz que Jesusé a autobasiléia, ou seja, o reinado de Deus em pessoa, João, queevita o termo “reinado de Deus” (cf. 3,3.5), pode dizer que Jesus é avontade do Pai em pessoa: “Eu e o Pai somos um”.

2) Jesus é um com o Pai, não no sentido de uma identidade de pessoa,nem no sentido de uma igualdade de ordem, mas no sentido de repre-sentá-lo de modo equivalente em relação a nós, por ser seu Enviadoe, deste modo, seu Consagrado (= Ungido, Cristo, Messias).

A discussão cristológica chegou ao fim. A comunidade cristã não temsentido sem confessar Jesus como aquele que pertence totalmente aDeus e em quem Deus se torna acessível: o Cristo, Filho de Deus —mesmo se o pensamento dominante não aceita essa expressão.

Hoje a situação pode até ser mais complexa do que no tempo doQuarto Evangelho. Não apenas porque os de fora acham que chamar-mos Jesus Filho de Deus é mera mitologia. Também porque muitos dedentro não sabem distinguir entre Deus e Jesus, cometendo o mesmoerro que os adversários de Jesus em Jo 10,22-29 (e 5,18): pensam queele se torna igual a Deus. Concebem então um Jesus que não é ver-dadeiramente humano, o que lhe tira todo valor, pois já não vive a

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nossa vida. E há ainda os que lhe negam qualquer transcendência,reduzindo sua obra ao que qualquer humano pode (e deve) realizar.

Importa acreditar e confessar que o homem Jesus foi a presença deDeus vivida em existência humana, e a partir daí ele tem valor paratoda existência humana — isso ficará mais claro nas palavras acercade sua ausência, nos caps. 13–17.

O episódio de Lázaro (10,40–11,54)

I — 40Jesus se retirou de novo para o outro lado do Jordão, para o lugaronde, antes, João esteve batizando. Ele permaneceu lá, 41e muitosforam a ele. Diziam: “João não fez nenhum sinal, mas tudo o que elefalou a respeito deste homem é verdade”. 42E muitos, ali, passarama crer nele.

II — 11 1Ora, havia alguém que estava doente: Lázaro, de Betânia, dopovoado de Marta e de Maria, sua irmã. 2(Maria é aquela que ungiuo Senhor com perfume e enxugou seus pés com os cabelos. Lázaro,seu irmão, é quem estava doente.) 3As irmãs mandaram avisar Je-sus: “Senhor, aquele que amas está doente”.4Ouvindo isso, disse Jesus: “Essa doença não leva à morte, masserve para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glori-ficado por ela”. 5Jesus tinha muito amor a Marta, à sua irmã, Maria,e a Lázaro. 6Depois que ele soube que este estava doente, permane-ceu ainda dois dias no lugar onde estava. 7Depois, falou aos discí-pulos: “Vamos, de novo, à Judéia”. 8Os discípulos disseram-lhe:“Rabi, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vaisoutra vez para lá?” 9Jesus respondeu: “O dia não tem doze horas?Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mun-do. 10Mas, se alguém caminha de noite, tropeça, porque lhe falta aluz”. 11E acrescentou ainda: “Nosso amigo Lázaro dorme. Mas, euvou despertá-lo”. 12Os discípulos disseram: “Senhor, se ele dorme,vai ficar curado”. 13Jesus falava da morte de Lázaro, mas os discí-pulos interpretaram que ele estivesse falando do sono mesmo. 14Je-sus então falou abertamente: “Lázaro morreu! 15E, por causa de vós,eu me alegro por não ter estado lá, pois assim podereis crer. Masvamos até ele”. 16Tomé (cujo nome significa Gêmeo) disse aos com-panheiros: “Vamos nós também, para morrermos com ele!”

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III — 17Quando Jesus chegou, encontrou Lázaro já sepultado, havia quatrodias. 18Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém. 19Muitosdentre os judeus tinham ido consolar Marta e Maria pela morte doirmão. 20Logo que Marta soube que Jesus tinha chegado, foi aoencontro dele. Maria ficou sentada, em casa. 21Marta, então, dissea Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teriamorrido. 22Mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele teconcederá”. 23Jesus respondeu: “Teu irmão ressuscitará”. 24Martadisse: “Eu sei que ele ressuscitará, na ressurreição do último dia”.25Jesus disse então: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê emmim, ainda que tenha morrido, viverá. 26E todo aquele que vive e crêem mim, não morrerá jamais. Crês nisto?” 27Ela respondeu: “Sim,Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus,aquele que deve vir ao mundo”.

IV — 28Tendo dito isso, ela foi chamar Maria, sua irmã, falando em vozbaixa: “O Mestre está aí e te chama”. 29Quando Maria ouviu isso,levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus. 30Jesus ainda estavafora do povoado, no mesmo lugar onde Marta o tinha encontrado.31Os judeus que estavam com Maria na casa consolando-a, viramque ela se levantou depressa e saiu; e foram atrás dela, pensando quefosse ao túmulo para chorar. 32Maria foi para o lugar onde estavaJesus. Quando o viu, caiu de joelhos diante dele e disse-lhe: “Se-nhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido”. 33Quan-do Jesus a viu chorar, e os que estavam com ela, ficou interiormentecomovido e perturbou-se. 34Ele perguntou: “Onde o pusestes?” Res-ponderam: “Vem ver, Senhor!” 35Jesus verteu lágrimas. 36Os judeusentão disseram: “Vede como ele o amava!” 37Alguns deles, porém,diziam: “Este, que abriu os olhos ao cego, não podia também terfeito com que Lázaro não morresse?”

V — 38De novo, Jesus ficou interiormente comovido. Chegou ao túmulo.Era uma gruta fechada com uma pedra. 39Jesus disse: “Tirai a pe-dra!” Marta, a irmã do morto, disse-lhe: “Senhor, já cheira mal. Eleestá morto há quatro dias”. 40Jesus respondeu: “Não te disse que, secreres, verás a glória de Deus?” 41Tiraram então a pedra. E Jesus,levantando os olhos para o alto, disse: “Pai, eu te dou graças por-que me ouviste! 42Eu sei que sempre me ouves, mas digo isto porcausa da multidão em torno de mim, para que creia que tu meenviaste”. 43Tendo dito isso, exclamou com voz forte: “Lázaro, vem

10,40–11,54

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para fora!” 44O morto saiu. Ele tinha as mãos e os pés amarradoscom faixas e um lenço em volta do rosto. Jesus, então, disse-lhes:“Desamarrai-o e deixai-o ir!”

VI — 45Muitos judeus que tinham ido à casa de Maria e viram o que Jesusfez, creram nele. 46Alguns, porém, foram contar aos fariseus o queJesus tinha feito. 47Os sumos sacerdotes e os fariseus, então, reuni-ram o sinédrio e discutiam: “Que vamos fazer? Este homem realizamuitos sinais. 48Se deixarmos que ele continue assim, todos vãoacreditar nele; os romanos virão e destruirão o nosso Lugar Santoe a nossa nação”. 49Um deles, chamado Caifás, sumo sacerdotenaquele ano, disse: “Vós não entendeis nada! 50Não percebeis queé melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira?”51Caifás não falou isso por si mesmo. Sendo sumo sacerdote naqueleano, profetizou que Jesus iria morrer pela nação; 52e não só pelanação, mas também para reunir os filhos de Deus dispersos. 53Apartir deste dia, decidiram matar Jesus.54Por isso, Jesus não andava mais em público no meio dos judeus.Ele foi para uma região perto do deserto, para uma cidade chamadaEfraim. Lá ele permaneceu com os seus discípulos.

Como provam as alusões em 12,9-11 e 12,17-18, o episódio de Lázaro(10,40–11,54) constitui juntamente com a unção em Betânia, a entrada emJerusalém e os diálogos subseqüentes (11,55-12,36) uma unidade maior. É oponto culminante da revelação de Jesus em sinais. A tensão entre a fé e aincredulidade, entre a revelação da glória de Jesus em sinais (cf. 12,37) e arejeição mortal da parte das autoridades judaicas está no auge. O tempo dos“sinais” está chegando ao fim. Logo mais veremos o epílogo do “Livro dosSinais”, 12,37-50.

Apesar da unidade entre o episódio de Lázaro (cap. 11) e os últimos diasda atividade pública (a seqüência de unção, entrada e diálogos; cap. 12),preferimos tratá-los separadamente, por causa da mudança de cenário em11,54-55 e por causa da variedade de temas.

Quanto à ressurreição de Lázaro propriamente, as dificuldades da análisecomeçam logo no início. Onde se inicia este episódio? Muitos comentadoresvêem em 10,40-42 a conclusão do conjunto 1,19–10,42, por causa da voltaao lugar do primeiro episódio, Betânia além do Jordão (cf. 1,28): uma inclu-são literária. Prefiro, porém, ver nesses versículos o início do episódio deLázaro, que, senão, ficaria sem quadro geográfico. De fato, a nova mudançageográfica e cronológica em 10,40-42 permite situar no tempo e no espaço

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o último “sinal” da vida pública de Jesus (11,3.6: onde está Jesus quandorecebe a notícia, onde demora mais dois dias etc.).

Na ressurreição de Lázaro distinguimos seis cenas, ligadas entre si pormúltiplas referências e constituindo certa simetria (os diálogos com Marta eMaria constituem o centro):

(A) I. Fugindo de Jerusalém,Jesus se retira no outro lado

do Jordão (10,40-42)

(B) II. Volta à Judéia. Lázaromorre antes de Jesus chegar

(11,1-16).

(C) III. Jesus se encontra comMarta na entrada de Betânia

(11,17-27)

(A’) VI. Complô contra Jesus(11,45-53) e retirada para

o deserto (11,54)

(B’) V. A ressurreiçãode Lázaro(11,38-44)

(C’) IV. Jesus fala com Mariae a segue para visitar o túmulo

(11,28-37)

Como dissemos, este episódio está firmemente ligado ao seguinte. Defato, no arranjo de João, a ressurreição de Lázaro é o ensejo imediato daação decisiva das autoridades contra Jesus (11,45-53; cf. 12,17-19). Nossinópticos, o estopim era a purificação do Templo, que João deslocou parao início do evangelho.

Muitos comentadores se dão ao trabalho de distinguir vários estágios nacomposição deste texto. Uns acham que o diálogo com Marta sobrecarregaa narrativa, outros acham que a intervenção de Maria e o maciço milagre daressurreição constituem um anticlímax depois da profissão de fé pronunciadapor Marta (cf. as “observações retrospectivas” nos vv. 40 e 42). Ora, alémde ser difícil, consideramos supérfluo o esforço de procurar estágios mais“puros” da narrativa, porque a leitura do texto como está revela um sentidocoerente, ainda que por vezes misterioso — o que é normal no Evangelhode João.

Discute-se muito a historicidade material da ressurreição de Lázaro. Nosevangelhos sinópticos não é narrado nenhum fato dessa natureza. A reanima-ção da filha de Jairo (Mc 5,21-43 par.) ou do filho da viúva de Naim (Lc7,11-17) é pouca coisa em comparação com a ressurreição de alguém que jáestá em estado de decomposição (11,39: “cheira mal …quatro dias”). Se, porum lado, ressuscitar mortos fazia parte das obras do Messias (Mt 11,5 par.Lc 7,22 = Is 26,19 etc.), por outro lado devemos ver que a narrativa joaninaestá cheia de simbolismos e, afinal, é um “sinal”, que exige que descubramoso seu sentido profundo para a fé e não fiquemos presos na pergunta sobreaquilo que ocorreu materialmente.

10,40–11,54

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Talvez o nome de Lázaro tenha sido trazido da parábola de Lc 16,19-31,que representa Lázaro no seio de Abraão, aguardando a ressurreição doúltimo dia. João então faria uma espécie de meditação para aprofundar osentido da ressurreição na perspectiva de sua compreensão específica, queexplicamos no comentário do v. 25.

I. Jesus no outro lado do Jordão (10,40-42)

Os vv. 40-42 constituem uma típica transição. É difícil julgar se pertenceao que precede ou ao que segue. Jesus vai para o outro lado do Jordão, àregião onde João estava batizando no início do evangelho (cf. 1,28), nãomuito longe de Jerusalém, e “permanece” com o povo “ali”. A atitude po-sitiva do povo “ali” (v. 42) constitui um significativo contraste com a expul-são de Jesus do Templo (v. 39). O povo se lembra de João e julga suaatuação com os critérios do Deuteronômio: “João não fez nenhum sinal; ora,tudo o que ele falou a respeito deste homem [Jesus] é verdade” (cf. 1,29-34).Embora o Batista não tenha feito sinais proféticos (cf. Dt 18,19), o testemu-nho que, como enviado de Deus, proferiu a respeito de Jesus era verdadeiro.Sua palavra se realizou (cf. Dt 18,22): Jesus é o Messias anunciado por João.Muitos ali passam a acreditar em Jesus.

Aqui termina o testemunho de João Batista. Em 1,35-36 vimos que al-guns seguidores de João Batista se puseram a seguir Jesus. A presente notavem completar as notas anteriores referentes ao testemunho do Batista: 1,6-8.15.19-36; 3,25-30; 5,34; 10,41 — referências cada vez mais esparsas, comoa lua que desaparece quando cresce o sol (cf. 3,30). Poderíamos chamar10,40-42 “o testemunho póstumo do Batista”!

II. Jesus sobe à Judéia (11,1-16)

Por aquele tempo um amigo de Jesus cai enfermo. É Lázaro de Betânia,“do povoado de Maria e Marta”. Mas quem são estes personagens? As iden-tificações nos vv. 1b-2 explicam o desconhecido pelo desconhecido, a não serque o autor suponha Maria e Marta conhecidas pelo Evangelho de Lucas (Lc10,38-39), acrescentando o nome do domicílio, que em Lc faz falta: Betânia.E quando descreve Maria como aquela que ungiu Jesus com mirra e enxugouseus pés com os cabelos, o autor parece misturar Mc 14,3 com Lc 7,38 e/ouo próprio relato de Jo 12,1-8 (cf. ali). Mais uma vez, o autor parece supor certoconhecimento global do anúncio cristão da parte dos leitores (como em 3,24).A intenção dessas descrições é naturalmente evocar a minicomunidade deBetânia e, em vista de 12,1-8, o amor que Maria dedicava a Jesus.

11,1-2

40-42

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Como no cap. 9, um diálogo de Jesus com os discípulos vai fornecer achave de leitura para o que segue. Os temas são semelhantes aos do iníciodo cap. 9: luz, obras… As irmãs mandam avisar Jesus que seu amigo estádoente “Esta enfermidade não terminará na morte”, responde Jesus, “elaservirá para a glória de Deus; o Filho de Deus vai manifestar sua glória porocasião desta enfermidade!” Exatamente como a doença do cego se transfor-mou em manifestação da obra de Deus (9,3-5).

Para que o leitor não ache “fria” a reação de Jesus, o autor adverte, noparêntese do v. 5: Jesus amava mesmo Lázaro e suas irmãs (o verbo “amar”indica em João, entre outras coisas, a relação fraterna — afetiva e efetiva —na comunidade; >exc. 13,23).

Os que Jesus ama

O Quarto Evangelho fala diversas vezes de pessoas a quem Jesus ama demodo especial: Lázaro, Marta e Maria, o Discípulo Amado. Nosso ambientecultural dá ao verbo “amar” um sentido passional, se não erótico. Tal sen-tido não é o de João. Para o amor passional, o grego tem um termo próprio(erân, erôs), que João nunca usa. João usa quase sempre o verbo agapân,raro no grego comum e preferido pela Bíblia para traduzir o hebraico ahêb,que poderíamos definir como: “preferir, aderir a, ser solidário com, optarpor”. É o amor da Aliança (Dt 6,5; 7,7-8). O amor de Jesus pela família deBetânia e pelo “Discípulo Amado” (>exc. 13,23) é o da Aliança e da soli-dariedade cristã. Esses personagens são “prediletos” como o povo eleito daantiga Aliança e têm uma dimensão comunitária. Representam o novo povode Deus eleito em Cristo. Representam, na realidade, a verdadeira comuni-dade cristã. No v. 3, as irmãs apelavam para o amor de amizade que Jesustinha por Lázaro (filein; >Voc. Amar). O amor efetivo, de Aliança (v. 5,agapân), não exclui, mas eleva o amor afetivo.

O v. 6 reassume o nexo com o v. 4: tendo dito que a doença servirá paraa manifestação da glória de Deus, Jesus demora-se ainda dois dias na regiãoalém do Jordão. Como sempre em João, quem decide o momento de agir éJesus (cf. 2,4; 7,10; >exc. 6,11); depois dos dois dias, ele decide: “Vamosatravessar novamente (ou: de volta) para a Judéia”.

Os discípulos lembram que há pouco os judeus queriam apedrejá-lo.“Não são doze as horas do dia?”, responde Jesus. “Quem caminha duranteo dia não tropeça, pois vê a luz deste mundo.” Jesus é a luz do mundo (8,12;9,5) e, enquanto é “dia”, enquanto é possível trabalhar, ele se empenha nasobras do Pai (cf. 9,3). Quer completar as doze horas, levar o trabalho atermo. A noite de sua “hora” (cf. 13,30) — quando levará a obra a termo

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5

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(19,30) — ainda não chegou (cf. 7,30; 8,20), mas está próxima. Entretanto,ainda que para Jesus essa hora seja gloriosa (13,31), “quem caminha de noitetropeça, porque não tem a luz”. Sem Jesus, o caminho não é seguro.

Jesus acrescenta: “Nosso amigo Lázaro dorme, mas eu vou despertá-lo”.“Se dorme”, opinam os discípulos, “não há problema, ele vai ficar bom.”Eles não entenderam que Jesus falou do sono da morte (cf. Dn 12,2). Então,Jesus declara abertamente: “Lázaro morreu, e eu me alegro por não terestado lá, pois assim podereis crer!” E acrescenta: “Mas vamos até ele”.

O sono da morte e a ressurreição do batismo

Na Bíblia, “dormir” e “sono” são freqüentemente usados para falar da morte:Gn 47,30; Dt 31,16; 1Rs 11,43; Is 14,8; 43,17; Jr 51,39.57; Sl 13,4; 76,6 etc.;e veja especialmente Dn 12,2! No NT, “adormecer” significa morrer, p.ex.,em Jo 11,11; At 7,60; 13,36; 1Cor 7,39; 11,30; 15,6.18.51; 2Pd 3,4; “os quedormem” são os falecidos: 2Mc 12,45; 1Ts 4,13; 1Cor 15,20; cf. Mt 27,52 etc.

Em conformidade com este uso, “levantar-se” significa voltar à vida, ressus-citar (anístanai: p.ex. Ef 5,14; 1Ts 4,16; egéiresthai: Mt 17,9; Jo 2,22; 21,14…).Em Ef 5,14 os verbos “dormir” (kathéudein) e “reerguer” (egéirein) são apli-cados ao batismo como ressurreição da “vida morta”. Como a assimilação dobatismo à ressurreição de Cristo parece fazer parte da mais antiga teologiacristã (cf. Rm 6,4-5), e visto o caráter iniciático e mistagógico do QuartoEvangelho, é bastante provável que também aqui, como no cap. 9, João estejaproporcionando uma reflexão sobre o batismo e a vida nova “despertada” porCristo. Só que aqui, em conformidade com a imagem do sono, João não usao verbo “reerguer” e sim “despertar/acordar” (exypnízein).

Tomé percebe o perigo que Jesus corre (cf. v. 8) e, consciente comosempre, diz: “Vamos também nós, para morrer com ele”. Tomé volta aoassunto dos vv. 8-9: convém ficar com Jesus, estar onde ele está (cf. 12,26),pois aí a morte não tem a última palavra. Na linguagem cristã, “morrer comCristo” já é terminologia batismal conhecida (Rm 6,8; 2Cor 5,14).

Se “morrer com ele” se refere a Jesus19, o paradoxo desta perícope ficaacentuado: no momento em que vai revelar o dom da vida, Jesus se enca-minha para a morte. Isso merece uma meditação. A vida que Jesus comunicanão é da mesma ordem que a vida física. Esta pode morrer — Jesus deixaaté passar uns dias para que a vida física morra, e então ressurja a vida nova.

11-15

16

19. “Com ele” poderia também referir-se a Lázaro; neste caso, ser amigo de Jesus, comoLázaro, significa ser despertado da morte, por Jesus, como sabem os iniciados cristãos; cf. Ef 5,14.Tomé estaria expressando a solidariedade eclesial no mistério que se realiza em Lázaro, significan-do o batismo.

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Assim, a própria morte de Jesus está prefigurada na morte de Lázaro, queantecipadamente é despertado para a nova vida, com ele. Pois Lázaro é“amigo”, solidário com Jesus. Por outro lado, a ressurreição de Lázaro é aressurreição da qual o cristão participa pelo batismo, entrando assim na vidaescatológica, co-ressuscitado com Cristo. Entre Jesus, Lázaro e os demaisdiscípulos existe uma solidariedade de morte e vida.

III. Jesus e Marta (11,17-27)

Quando Jesus chega a Betânia, encontra Lázaro há quatro dias no sepulcro.(Quatro dias significa, na concepção judaica: seguramente morto!) Na casa dasirmãs encontram-se muitos dentre os judeus, vindos de Jerusalém e arredorespara apresentar pêsames e chorar o falecido (cf. v. 31; Betânia fica pertinho deJerusalém, uns três quilômetros, v. 18). Assim como 11,2 já anunciava a pro-ximidade da Paixão, também a nota geográfica do evangelista em 11,18 noscoloca na atmosfera da semana da Paixão: Jerusalém está perto.

Ao saber que Jesus chegou, Marta vai a seu encontro, enquanto Mariafica em casa. (O diálogo com Marta exerce função de suspense, como 2,4 e4,48; >com. 11,38-40.) Marta fala a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui,meu irmão não teria morrido. Mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus,ele te concederá”. Quando Jesus responde: “Teu irmão ressuscitará”, Martaconfirma que, como judia piedosa (de tradição farisaica), ela acredita naressurreição do “último dia” (>exc. v. 27).

Marta acredita, pois, na “ressurreição no último dia”. Mas ela não conhe-ce o novo que acontece em Jesus. Sem contradizer a ressurreição no últimodia (cf. 5,28; 6,39…), Jesus explica que essa ressurreição está presente emsua própria pessoa. Em sua pessoa torna-se presente o dom da ressurreição,interpretada como a vida verdadeira que vem de Deus, vida que é de umaordem diversa de nossa ordem biológica: “A ressurreição e a vida sou eu”20.

A expressão “eu sou” não significa uma definição ontológica, mas, comoem outros lugares (>exc. 6,35), o dom que Jesus em sua pessoa apresenta aosfiéis, ou seja, sua missão salvífica: dar vida. Na pessoa de Jesus está presentenão só a ressurreição, mas a ressurreição e a vida, a ressurreição que propor-ciona vida (segundo Dn 12,2 existe também uma ressurreição para a igno-mínia, a “segunda morte”).

Jesus explica: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá”. Quem crêem Jesus, mesmo se morre fisicamente (a “primeira morte”), viverá (no

17-19

20-24

25-27

20. Em uns poucos manuscritos falta “e a vida”, mas isso não justifica que se excluam estaspalavras do texto como faz a Bíblia de Jerusalém.

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sentido da reinterpretação joanina da ressurreição, cf. infra). “E quem vivee crê em mim não morrerá jamais (lit. em eternidade)”, não conhecerá a“segunda morte” (cf. Ap 2,11; 20,6.14; 21,8)21.

Dito isso, Jesus provoca a opção de fé: “Crês nisto?” Marta responde:“Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aqueleque deve vir ao mundo”. Uma profissão de fé bem completa (cf. 20,31).

Ressurreição “no último dia” ou vida eterna já?

A primeira expressão clara da fé na ressurreição, no AT, é encontrada em Dn12,2, escrita por volta de 165 aC. Outras expressões encontramos nos Livrosdos Macabeus, pouco posteriores a Dn (2Mc 7,9; 11,22; 14,46). Tal fé eraadotada pelos fariseus (>Voc.) que, no meio dos “piedosos” (hasidim,“assideus”), participaram da guerra dos Macabeus. No tempo de Jesus e doNT, essa fé os distinguia dos saduceus (>Voc.), que não queriam saber detal “inovação” (cf. Mc 12,18 par.; At 23,8). No século I dC, o judaísmofarisaico inclui a fé na ressurreição nas “Dezoito Bênçãos”, oração cotidianado judeu piedoso. Não se sabe até que ponto as outras tendências do judaís-mo (p.ex., os essênios e os qumranitas) também assumiram essa fé; osescritos descobertos em Qumran não fornecem indícios.

A ressurreição era vista em função do julgamento. Alguns textos falamnuma ressurreição só dos justos, para receber a recompensa que não conhe-ceram durante sua vida. Outros, como Dn 12,2, falam de uma dupla ressur-reição: “estes (= os justos), para a vida eterna; aqueles (= os ímpios) parao opróbrio, o horror eterno”.

Discute-se se textos mais antigos, como Sl 94,16; 73,24; Jó 19,26 etc. aludemà fé na ressurreição. É possível, pois ela certamente não surgiu da noite parao dia no judaísmo. O Livro da Sabedoria, menos de um século antes deJesus, adota a idéia grega da imortalidade da alma (p.ex., Sb 5,15). At 2,26-27 cita a tradução grega (LXX) de Sl 16,8-11 nesse sentido. Para o NT, afé na ressurreição é evidentemente indispensável (cf. sobretudo 1Cor 15).

O quarto evangelista é um intérprete. Movido pelo “espírito da interpreta-ção” (cf. 16,13), João explica o que as grandes palavras e os símbolos dafé significam na nova atualidade. Com a manifestação de Deus em Jesus, otermo ressurreição toma um novo sentido. Em 5,24-29, ele justapõe à idéiadaniélica da ressurreição para recompensa ou castigo a idéia de que aqueleque crê em Jesus não vai a juízo, mas já passou da morte para a vida. A

21. “Quem vive e crê em mim” pode ter dois sentidos: (1) Quem durante sua vida (física) crêem mim (= quem crê em mim enquanto vive biologicamente) não morrerá no nível da “eternidade”(= no sentido “espiritual” de morrer = ser separado de Deus e de Jesus). (2) Quem vive (espiritu-almente) e crê em mim (= porque crê em mim) não morrerá jamais (espiritualmente). O primeirosentido é mais paradoxal e é provavelmente o que João tem em vista (cf. também 5,24).

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ressurreição não é apenas uma volta à vida para receber recompensa ou cas-tigo no dia do Juízo, mas a participação desde já na vida em união com Deus,que Jesus inaugura e proporciona e que se torna realidade pela adesão à suapessoa e prática. Por isso, não devemos deixar-nos enganar pela expressão“vida eterna”, imaginando a eternidade como um mero além, uma pós-vida(muitas vezes pensada como continuação infinita da vida atual). “Vida eterna”significa um salto qualitativo, participação em uma vida de outra qualidade,e, para quem crê em Jesus (e age em conformidade com esse crer), essaparticipação começa já. É a vida da nova criação, do éon eterno, do “séculodos séculos” — um superlativo semítico que significa a era por excelência,que deve suplantar a atual era iníqua. É a vida do âmbito de Deus, vivida nafé, desde já (>com. 6,39-40). É “o definitivo de Deus” em nossa vida.

IV. Jesus e Maria (11,28-37)

Tendo recebido essa instrução da fé, Marta acha bom que também Mariaaproveite a oportunidade e lhe diz no ouvido: “O Mestre está aqui e querfalar contigo”. A comunicação entre as irmãs e a terminologia usada evocama instrução da comunidade. Como Jesus não tinha chegado propriamente atéa casa das irmãs, mas ficara na entrada do pequeno povoado, no lugar ondeMarta fora a seu encontro, Maria levanta-se rapidamente e vai ter com Jesusali. Vendo-a sair de casa, rumo à encruzilhada, os judeus pensam que ela querir chorar no túmulo e a acompanham (>exc. 19,40, costumes funerários).

“Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”, diz Mariaao encontrar Jesus, com as mesmas palavras de Marta. As perguntas daspessoas podem ser as mesmas, as respostas de Deus são diversas: Mariarecebe uma resposta bem diferente da que foi dada a Marta. Ao ver todomundo pranteando, Jesus (lit.) “agitou-se no espírito e perturbou-se”. “Agi-tar-se no espírito”, i.é, interiormente (a mesma expressão ocorre no v. 38),provavelmente não significa o descontentamento com os que estão prantean-do (como em cf. Mc 5,38-39), mas a emoção profética de Jesus diante dosofrimento ou diante da morte como manifestação do poder das trevas. “Per-turbar-se” é o verbo que João usa para a reação de Jesus diante de sua “hora”(12,27) e da traição (13,21); e para os apóstolos, diante da ausência de Jesuse da ameaça das trevas (14,1.27). Em Lázaro, Jesus encara a morte e as trevas.

Neste estado de tensão comparável ao de sua “hora”, Jesus perguntaonde puseram Lázaro. “Vem ver, Senhor”, dizem. Jesus “verteu lágrimas”.João usa aqui, no v. 35, um termo diferente daquele que indica o pranto ritual(cf. v. 28): as lágrimas de Jesus não são mero rito fúnebre. “Vede como eleo amava”, dizem os visitantes. Prefigura o que se dirá dos primeiros cristãos:“Vede como eles se amam” (Luciano de Samosata).

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Mas alguns observam: “Este, que abriu os olhos ao cego, não podia tam-bém ter feito com que Lázaro não morresse?” No nível da narrativa, os cora-ções se dividem em torno da atuação de Jesus, como sempre (p.ex., 10,19-21).Entretanto, no nível do leitor, a aproximação que João assim opera entre a curado cego (Jo 9) e o que acontece a Lázaro (Jo 11) tem um efeito muito suges-tivo, como bem entendeu a liturgia cristã, que desde cedo usou estes doistextos, juntamente com o da “água viva” (Jo 4), para a preparação do batismo.(atualmente: 3o, 4o e 5o domingos da Quaresma do ano A)

V. A ressurreição de Lázaro (11,38-44)

Diante disso, Jesus novamente “agita-se no espírito”, ou seja, é tomadopor uma forte emoção interior (como no vv. 33). Vai ao túmulo — uma grutacom uma grande pedra na frente — e manda afastar a pedra. Marta objetaque o corpo já cheira mal, pois está morto há quatro dias. Então Jesus apelapara a fé de Marta (e de todos os que crêem): “Se creres, verás a glória deDeus (manifestar-se)” (cf. 11,4).

Uma observação retrospectiva. A narrativa do cap. 11 parece malconstruída. A Marta do v. 40 não parece a mesma do v. 27: enquanto estaproclama uma fé sem defeito, a do v. 40 recebe uma advertência de Jesus!A narrativa ficaria bem mais simples e retilínea sem o primeiro diálogo comMarta (v. 20-27): Jesus chegaria a Betânia, falaria logo com Maria, iria aotúmulo, e Marta poderia intervir para observar que Lázaro já cheira mal,depois do que Jesus exigiria a fé (de Marta) para ver a manifestação daglória de Deus. Mas o evangelista parece ter inserido o primeiro diálogo comMarta para antepor ao milagre mais uma chave de leitura (além daquela dodiálogo com os discípulos, vv. 3-16). Essa segunda chave (o diálogo comMarta) ensina o seguinte: o que Jesus vai fazer é antes de tudo um sinal deque ele é a ressurreição e a vida (v. 25). Semelhante procedimento encontra-mos, em forma mais simples, nos “suspenses” de 2,4 e 4,48. Graças ao“suspense” de 11,20-27, a advertência feita a Marta no v. 40 deve ser enten-dida no seguinte sentido: “Alguém que crê, como você (cf. v. 27), não deveraciocinar no nível físico (“já cheira mal”), mas no nível da manifestação daglória de Deus” (cf. 11,4; 2,11). Assim, do ponto de vista literário, os diá-logos e intervenções têm o efeito de aumentar o suspense do sinal, e aomesmo tempo o colocam em relação com o simbolismo do dom da ressur-reição e da vida.

Retiram a pedra. Jesus levanta os olhos em oração (cf. Jo 17,1; Lc 18,13)e reza: “Pai, eu te dou graças porque me ouviste! Eu sei que sempre meouves, mas digo isto por causa da multidão em torno de mim, para que creia

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que tu me enviaste”. Jesus sabe que Deus o atende, mas reza assim em vozalta para que o povo saiba que ele age como enviado do Pai. Será issoverdadeira oração, ou antes, teatro? As palavras “Eu sei que sempre meouves…” são na realidade um comentário do evangelista, formulado comoproclamação de revelação na boca de Jesus. Exprimem a peculiaridade daoração de Jesus. Sua oração ocorre numa unidade tão íntima com o Pai quenão há distância entre o que ele pede e o que Deus concede. Aliás, nem éum pedido, é uma ação de graças por esta união que se manifesta na obraque lhe é dado realizar (cf. Mt 11,25-27 par.). Esta maneira de apresentar aoração de Jesus faz o leitor se lembrar do v. 4: Jesus realiza sua obra paraa glória do Pai.

Então, Jesus grita com voz forte: “Lázaro, vem para fora!” O leitor selembra de 5,28-29: “Vem a hora em que todos os que estão nos túmulosouvirão sua voz”. Em João existe uma relação dialética entre a escatologia“espiritual”, presente na fé em Jesus, e a escatologia “material”, a da ressur-reição final, no último dia (>exc. v. 27). A escatologia final é o símbolo, aescatologia presente é a realidade. Mas o símbolo (>Voc.) não pode serdispensado. Por isso mesmo, Jesus o faz acontecer antecipadamente, paraque saibamos que o que ele significa já está presente.

O grito de Jesus lembra ainda outros textos: 10,3: “As ovelhas escutamsua voz, ele chama a cada uma pelo nome e as leva para fora”; 10,10: “Euvim para que tenham vida em abundância”; 10,27: “As ovelhas escutamminha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Esses textos ressoam na mentedo leitor como expressões da vida que Jesus proporciona àqueles que eleama e que o escutam, seus fiéis.

Ao grito de Jesus, Lázaro sai, sem demora, com os membros e o rostoainda envolvidos nas faixas mortuárias. Jesus ordena: “Livrai-o dessas faixase deixai-o ir”. Ressuscitado, vivendo por Cristo, Lázaro precisa enxergar,caminhar, continuar o caminho da fé e do amor, ajudado pela comunidade.Pensamos aqui também na ressurreição de Jesus; quando ele ressuscitar, nãohaverá mais nenhum “laço da morte” envolvendo-o (cf. 20,6-7).

Outra observação retrospectiva. Se, em vez de contar esse “milagre” tãomaterial, João tivesse terminado a história de Lázaro no v. 27, com a belaprofissão de fé de Marta, teríamos menos problemas científicos … Não querJesus ensinar que a ressurreição e a vida é ele (v. 25)? A narrativa da res-surreição material de Lázaro não era necessária. Não ensina Jesus a descon-fiar de sinais milagrosos (2,23-25; 4,48)? Mas ele não os dispensa! Nãodeixa de alimentar materialmente a multidão para se revelar como pão davida. Não deixa de restituir a vida corporal a Lázaro para confirmar a visão

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da fé de que ele é “a ressurreição e a vida”. Jesus amava Lázaro (v. 5).Amava-o vivo; sua morte encheu seus olhos de lágrimas (v. 36). O pãomaterial e a vida corporal têm muito valor, e exatamente por isso podem sersímbolos do valor supremo que é Jesus. Não são sinais no sentido de sím-bolos algébricos, abstratos e sem conteúdo próprio. Pelo contrário, os sinaisde Jesus são antecipações do grande dom da vida de Jesus. Decerto, sãodons provisórios e incompletos; por isso, podem enganar quem se satisfazcom eles; mas para quem se deixa levar pelo dinamismo da fé, são as pri-meiras realizações do dom definitivo (>com. 2,11).

VI. Complô contra Jesus (11,45-53)

Jesus se revela como Deus da vida. Mas certas pessoas optam pela morte.Enquanto muitos abraçam a fé em Jesus por causa da ressurreição de Lázaro,alguns vão comentar, maliciosamente, o fato com os fariseus.

Os chefes dos sacerdotes (= saduceus) juntamente com os fariseus rea-lizam uma reunião do Sinédrio (o Alto Conselho) para deliberar sobre o quefazer com Jesus. (No tempo de Jesus havia muitos fariseus no Sinédrio,principalmente escribas, e eles são mencionados expressamente, porque notempo de João eles se tornaram os líderes do novo judaísmo.) João antecipaaqui praticamente a sessão do Sinédrio presidida por Caifás (Mc 14,53-65par.), que ele não descreve na narrativa da Paixão propriamente dita (veja,porém, 18,24). Na cena sinóptica do Sinédrio, Caifás condena Jesus porcausa de sua pretensão messiânica e sua identificação com o Filho do Ho-mem. Em Jo, profetiza, sem querer, que Jesus será o Messias anunciado emEz 34–36 (já descrito no cap. 10).

As autoridades judaicas temem que o sucesso de Jesus cause problemascom a força de ocupação militar romana, conhecida por sua implacávelrepressão em matéria de movimento popular: “Esse homem realiza muitossinais. Se deixarmos que continue assim, todos vão acreditar nele; os roma-nos virão e destruirão o nosso Lugar Santo (= o Templo) e a nossa nação”.Topamos aqui com uma primeira — e não a última — ironia nesta cena: nomomento em que o Evangelho de João foi escrito, os romanos acabaram de“vir e de destruir o Lugar santo”…

Caifás observa astuciosamente: “Vós não entendeis nada! Não percebeisque é melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira?” (cf.2Sm 20,16 e, sobretudo, Is 53). Caifás era sumo sacerdote em função naque-le ano fatídico (ele o foi de 18 a 36 dC), e sua palavra tinha valor deprofecia. Ironia joanina: sem o querer, Caifás fala a verdade; afinal, comosumo sacerdote, ele profetiza! Caifás sugere que Jesus deve morrer para o

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bem (hyper) de sua gente. Ora, Jesus morreu de fato em prol (hyper) da“nação”, porém, não só dela, mas “para reunir todos os filhos de Deusdispersos”. Contra sua intenção, Caifás profetiza que Jesus é o Salvadoruniversal. Contraste significativo: enquanto no v. 47 os adversários “se re-únem” em conselho para livrar-se de Jesus, em 11,52, este vai “reunir” osfilhos de Deus desde sua dispersão. Na expressão “reunir todos os filhos deDeus dispersos”, João interpreta a visão do pastor escatológico, de Ez 34–36, num sentido mais amplo que o messianismo judaico. As ovelhas disper-sas não são apenas as de Israel (como em Mt 10,6!). O termo “dispersos”evoca a diáspora, mas para João isso já não é um assunto meramente judaico(também Tg 1,1; 1Pd 1,1 se dirigem aos cristãos como “diáspora”; >com. Jo7,35). Os “filhos de Deus” são os que não nasceram da “carne”, os que“crêem no seu nome”, i.é, em Jesus (Jo 1,12-13: não se é filho de Deus nabase de critérios da carne, p. ex., por pertencer a alguma nação; cf. ainda 1Jo3,1.2.10). No comentário a 10,16 explicitamos quem são essas outras ove-lhas que Jesus “reúne”.

Para não cairmos no globalismo pós-moderno, convém observar que“reunir os filhos de Deus dispersos” não é o mesmo que arrebanhar a huma-nidade. A universalidade da fé cristã é condicionada pela adesão a Cristoe a seu Pai. At 10,35 anuncia que “em todos os povos os que fazem avontade de Deus serão salvos”. Ora, para João, a vontade do Pai é que secreia naquele que ele enviou (6,29).

Naquele dia, as autoridades “decidem” (ou “planejam”) matar Jesus.Nisso consiste o “progresso” realizado desde 8,59; 10,31.39, quando “que-riam”, mas não “decidiram” (cf. ainda 5,18; e 7,30; 8,20: “sua hora aindanão tinha chegado”). Aguardando a “hora” (cf. 12,23), Jesus se retira, comos discípulos, para a cidadezinha chamada Efraim, numa região deserta aonorte de Jerusalém (talvez Efraim = Ofra de Js 19,49-50, o que poderia ligarJesus a Josué). Assim, voltamos à situação de antes do episódio de Betânia(10,40-42), mas a tensão dramática ficou muito mais forte.

O episódio de Lázaro é um drama de vida e morte. Jesus dá a vidaa quem crê, os que não crêem tramam a morte para Jesus. Com issoé levado ao auge o propósito do Quarto Evangelho: a opção de vidaou morte.

Na sociedade em que vivemos, o cristão é chamado a optar entre avida e a morte. A vida está do lado de Jesus, de sua prática e de suacomunidade, se ela for uma comunidade fiel (não necessariamente o

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grupo formalmente cristão que se diz Igreja). A morte está do ladodaqueles que fecham os olhos aos sinais de Deus e só pensam nasanção do “Império” (de ontem ou de hoje). A conformidade comaquilo que domina o mundo obceca os olhos diante da oferta de vidaem Jesus.

Na ressurreição de Lázaro, Jesus dá um sinal da ressurreição e davida eterna, que estão presentes nele. Mas para que esse sinal sejaverdadeiro, encarna-o em materialidade, assim como ele mesmo assu-miu a carne humana, a existência histórica. A prática de Jesus nãoconsiste em belas palavras espirituais, mas em possibilitar históricae materialmente uma vida que seja sinal do definitivo de Deus emnosso viver.

Os últimos dias da atividade pública (11,55–12,36)

I — 55A Páscoa dos judeus estava próxima. Muita gente da região tinhasubido a Jerusalém para se purificar antes da Páscoa. 56Eles procu-ravam Jesus e, reunidos no templo, comentavam: “Que vos parece?Será que ele não vem para a festa?” 57Entretanto, os sumos sacer-dotes e os fariseus tinham dado a seguinte ordem: se alguém soubes-se onde Jesus estava, devia comunicá-lo, para que o prendessem.

II — 12 1Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde moravaLázaro, que ele tinha ressuscitado dos mortos. 2Lá, ofereceram-lheum jantar. Marta servia, e Lázaro era um dos que estavam à mesacom ele. 3Maria, então, tomando meio litro de perfume de nardopuro e muito caro, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com oscabelos. A casa inteira ficou cheia do aroma do perfume. 4JudasIscariotes, um dos discípulos, aquele que entregaria Jesus, falouassim: 5“Por que esse perfume não foi vendido por trezentos denáriospara dar aos pobres?” 6Falou assim não porque se preocupasse comos pobres, mas porque era ladrão: ele tinha a bolsa e roubava o quenela se depositava. 7Jesus, porém, disse: “Deixai-a, que o guarde emvista do dia da minha sepultura. 8Os pobres, sempre os tendes con-vosco. A mim, no entanto, nem sempre tereis”.9Muitos judeus souberam que ele estava em Betânia e foram para lá,não só por causa dele, mas também porque queriam ver Lázaro, queJesus tinha ressuscitado dos mortos. 10Os sumos sacerdotes, então,

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decidiram matar também Lázaro, 11pois por causa dele muitos seafastavam dos judeus e começavam a crer em Jesus.

III — 12No dia seguinte, a grande multidão que tinha subido para a festaouviu dizer que Jesus estava chegando a Jerusalém. 13Apanharam osramos de palmeira e saíram ao seu encontro, gritando:

“Hosana!Bendito aquele que vem em nome do Senhor,o Rei de Israel!”

14Jesus encontrou um jumentinho e montou nele, como está escrito:15“Não temas, filha de Sião!Eis que o teu rei vemmontado num jumentinho!”

16No primeiro momento, os discípulos não perceberam o sentido disso.Mas depois que Jesus foi glorificado, eles se recordaram que issoestava escrito a seu respeito e que assim lhe tinham feito. 17O grupoque estava com ele quando chamou Lázaro do sepulcro, ressuscitan-do-o dos mortos, dava testemunho. 18Foi por este motivo que amultidão foi a seu encontro, porque ouviu dizer que ele tinha reali-zado tal sinal. 19Os fariseus, então, comentavam entre si: “Estaisvendo que nada conseguis? O mundo se foi atrás dele”.

IV — 20Havia alguns gregos entre os que subiram a Jerusalém para ado-rar durante a festa. 21Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaidada Galiléia, e disseram: “Senhor, queremos ver Jesus”. 22Filipe con-versou com André, e os dois foram falar com Jesus. 23Jesus respon-deu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glori-ficado. 24Amém, amém, vos digo: se o grão de trigo que cai na terranão morre, ele fica só. Mas, se morre, produz muito fruto. 25Quem seapega à sua vida, perde-a; mas quem não faz conta de sua vida nestemundo, há de guardá-la para a vida eterna. 26Se alguém quer meservir, siga-me, e onde eu estiver, estará também aquele que me serve.Se alguém me serve, meu Pai o honrará. 27Agora, minha alma estáconturbada. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora’? Mas foi precisa-mente para esta hora que eu vim. 28Pai, glorifica o teu nome!” Veio,então, uma voz do céu: “Eu já o glorifiquei, e o glorificarei de novo”.29A multidão que ali estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão.Outros afirmavam: “Foi um anjo que falou com ele”. 30Jesus res-pondeu: “Esta voz que ouvistes não foi por causa de mim, mas por

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vossa causa. 31É agora o julgamento deste mundo. Agora o chefedeste mundo vai ser lançado fora, 32e quando eu for enaltecido daterra, atrairei todos a mim”. 33Ele falava assim para indicar de quemorte iria morrer. 34A multidão disse-lhe: “Nós ouvimos na leiturada Lei que o Cristo permanecerá para sempre. Como podes dizerque é necessário que o Filho do Homem seja enaltecido? Quem éesse Filho do Homem? 35Jesus então respondeu: “Por pouco tempoa luz está no meio de vós. Caminhai enquanto tendes luz, para quenão vos detenham as trevas. Quem caminha nas trevas não sabepara onde vai. 36Enquanto tendes a luz, crede na luz, para que vostorneis filhos da luz”. Depois de lhes ter falado assim, Jesus saiu eescondeu-se deles.

Uma nova indicação de tempo abre a narrativa dos últimos dias da ati-vidade pública:

I. a situação em Jerusalém (11,55-57);II. a unção por Maria de Betânia (12,1-11);

III. a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (12,12-19);IV. diálogo com os gregos que querem ver Jesus (12,20-36).

Apesar da progressão temporal e do anúncio de uma nova festa (11,55),este episódio continua bastante ligado ao anterior, como mostram a transiçãoem 11,54 e as referências à ressurreição de Lázaro em 12,1.9-11.17-18 (cf.introdução ao episódio anterior).

Na unção e na entrada triunfal, mas também no tema da agonia que éfrisado no diálogo com os gregos (12,20-36), reconhecemos sem dificuldadematérias sinópticas, ligadas ou não à história da Paixão de Jesus:

• a unção de Jesus, cf. Mc 14,3-9 par. Mt 26,6-13, e a história da pecadoraem Lc 7,36-50, que é uma transformação lucana da narrativa da unção;

• a entrada em Jerusalém, cf. Mc 11,1-10 par. Mt 21,1-9 e Lc 19,28-40.Os sinópticos ligam à entrada em Jerusalém a purificação do Templo,que já foi narrada por João no início do evangelho, 2,13-22;

• as palavras sobre o seguimento em Jo 12,25-26, cf. Mc 8,34-35 par.;10,45 par.; Mt 10,39 par.; Lc 17,33;

• a agonia, Jo 12,27: cf. Mc 14,34-36 par. Mt 26,38-39 e Lc 22,41-42;• a voz do céu, Jo 12,28-30: cf. Mc 9,7 par. Mt 17,5 e Lc 9,35; Mc 1,11

par. Mt 3,17 e Lc 3,22b.

A comparação com estes e outros textos sinópticos nos permitirá subli-nhar as peculiaridades da interpretação joanina.

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I. A situação em Jerusalém (11,55-57)

Depois que Jesus se retirou a Efraim, na beira do deserto, para não seexpor inutilmente em Jerusalém (cf. 4,1-3; 7,1; 10,40), aproxima-se a tercei-ra Páscoa segundo João (cf. 2,13; 6,4). As pessoas do interior sobem aJerusalém para a romaria da Páscoa, se não a mais alegre — que é a festadas Tendas (>com. 7,2) —, de toda maneira a mais significativa das festasjudaicas. Comemorando a libertação do Egito, a festa da Páscoa tem fortecarga messiânica. Nenhum momento é mais apto para a chegada do Messias.Além disso, ela significa a unidade do povo judaico, como está gravado nos“Profetas Anteriores” (2Rs 23, a Páscoa de Josias).

Muita gente (uns 80 mil?) sobe assim a Jerusalém para “santificar”-se,i.é, participar dos ritos purificatórios e da festa subseqüente. (Quanto à preo-cupação da pureza ritual, cf. 2Cr 30,17-18; e Jo 18,28!) Os romeiros e osjerosolomitas estão ansiosos para encontrar Jesus na festa (cf. 7,11.13). Osfariseus e os sumos sacerdotes, entretanto, já haviam dado ordem para queJesus fosse denunciado por qualquer um que soubesse algo a respeito de seuparadeiro ou movimentos.

II. A unção em Betânia (12,1-11)

Ao narrar a unção de Jesus, João transforma a tradição (Mc 14,3-9 par.Mt 26,6-13; e cf. Lc 7,36-50) em diversos pontos: (1) data com exatidão acena no sexto dia antes da Páscoa (Mc 14,3 não tem data); (2) faz da mulheranônima ninguém menos que Maria de Betânia e a deixa ungir os pés, nãoa cabeça; (3) a casa se enche de perfume; (4) quem a critica não são “alguns”como em Mc, nem “os discípulos” como em Mt, nem o fariseu como em Lc,mas o próprio Judas, caracterizado como traidor e como ladrão interessadona caixinha dos pobres; (5) no fim, coloca todo o acento em “a mim nemsempre tereis”. Demos especial atenção a esses detalhes.

Lembremos também que, em 11,1-,2, João apresentou a minicomunidadede Betânia. A refeição em que Jesus é ungido é a refeição da comunidade.As atitudes das pessoas em relação ao Mestre são paradigmas de fé e amor…ou de incredulidade.

Seis dias antes da Páscoa, Jesus volta a Betânia. Inicia-se a semana final,que será coroada pela morte de Jesus na véspera do sábado (o qual, confor-me a cronologia de João, é a festa da Páscoa; cf. introd. a Jo 13–17). Nafamília de Lázaro e suas irmãs lhe é oferecido um jantar. Marta serve à mesa.Lázaro está com Jesus à mesa. (O v. 1b é um tanto supérfluo e pode serprovocado pela intenção redatorial de ligar a história de Lázaro aos aconte-cimentos do cap. 12.)

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O LIVRO DOS SINAIS

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Então, Maria de Betânia toma um frasco com perfume precioso, feito denardo autêntico, uma planta que cresce no norte da Índia. Hoje diríamos:perfume importado de Paris! Ela unge os pés de Jesus e os enxuga com seucabelo. Em Mc 14,3, uma mulher anônima unge a cabeça de Jesus; em Lc7,38-39, uma pecadora, igualmente anônima, lava os pés de Jesus com suaslágrimas, enxuga-os com os cabelos e depois os perfuma. João parece con-fundir um pouco a seqüência: em sua narrativa Maria perfuma os pés deJesus e, depois, enxuga-os com seus cabelos, o que resulta em passar operfume para seu cabelo! Mas João pode ter pensado no simbolismo do amorexpresso no Cântico dos Cânticos, o dicionário do amor no livro da vida queera a Bíblia para os judeus. O perfume de nardo que se espalha lembra Ct1,3.12, os cabelos, Ct 7,6. A casa fica toda perfumada: João acrescenta essedetalhe provavelmente conforme seu gosto de acentuar tudo o que aumentao valor de Jesus (cf. os aromas em 19,39).

Maria de Betânia, Maria Madalena e as três Marias

1) Para a religiosidade popular, quem ungiu Jesus foi Maria Madalena. Seela ungiu a cabeça ou os pés, não importa. Importa que ela enxugou ospés com sua grande cabeleira de “profissional”, em sinal de carinho porJesus (e de um pouco de arrependimento). “Muito amou”… Foi elatambém que se dirigiu ao sepulcro (cf. Jo 20,1) e ficou aí chorando(20,11). Tudo isso é muito bonito e está religiosamente certo. Mas quan-do o povo vai estudar o texto da Bíblia é bom explicar, para evitarconfusão, que Maria de Betânia não é nenhuma das “três Marias” e que,por outro lado, a religiosidade popular fez confluir em Maria Madalenatrês figuras femininas: a própria Madalena (Lc 8,2), a pecadora de Lc7,36-50 e Maria de Betânia (Jo 12,3; 11,2).

2) Maria de Mágdala era a pecadora de Lc 7,36-50? Logo depois dahistória da pecadora, Lucas conta que diversas mulheres seguiram Jesusdesde a Galiléia, ajudando-o com seus bens (Lc 8,1-3). Seguiram-no atéperto da cruz (Lc 23,49). Entre elas: Maria de Mágdala, curada de setedemônios. Lucas não a identifica com a pecadora do trecho anterior.Mas não se precisa de muita imaginação para operar essa identificação!

3) Maria de Betânia e a pecadora de Lc 7,36-50. Para João, a anônima queem Mc 14,3 ungiu Jesus é Maria de Betânia, irmã de Marta e de Lázaro.Será ela também a pecadora de Lc 7,36-50? Cientificamente falando, ahistória de Lc 7,36-50 é uma adaptação. Para ilustrar sua “teologia damisericórdia”, Lucas pegou a história da unção de Betânia (na Judéia, nofim da trajetória de Jesus) e a transpôs para a Galiléia, no início datrajetória. Fez da mulher anônima uma pecadora, que em vez de ungir

3

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a cabeça de Jesus com óleo regou seus pés com suas lágrimas, os enxu-gou com os cabelos e, depois, os perfumou. O fariseu que a censura é,inesperadamente, chamado de Simão (Lc 7,40), como o dono da casa deBetânia conforme Mc 14,3, Simão o Leproso. João não apresenta umapecadora, mas, ao identificar a an,ônima como Maria de Betânia, criaconfusão: deixa Maria ungir os pés de Jesus com perfume e enxugá-loscom os cabelos, passando o perfume para estes… Não devemos, pois,condenar a religiosidade popular por ter confundido a Maria de Betânia,de João, com a pecadora de Lucas.

4) As três Marias são as três Marias que seguiram Jesus e se tornaram aconstelação das Três Marias… Uma delas é mencionada em Lc 8,1-3,Maria de Mágdala. Nos relatos da cruz conseguimos encontrar maisduas: Maria, a mãe de Tiago (ao lado da Madalena: cf. Mt 27,56 = Mc15,40) e Maria de Cleofas (Jo 19,25).

Conclusão: historicamente, Maria de Betânia não é Maria Madalena, nema pecadora, nem pertence às três Marias, mas não faz mal uni-las numaúnica contemplação…

Chegamos agora a outro personagem central: Judas Iscariotes — aqueleque vai entregar Jesus. Ele observa: “Por que esse perfume não foi vendidopor trezentos denários para dar aos pobres?” Nos sinópticos, quem criticasão “alguns” (Mc), ou “os discípulos” (Mt). João costuma identificar figurasque nos sinópticos ficam anônimas e gosta de engrossar os traços de Judas.A caracterização de Judas está de acordo com Jo 13,29: cuidar da economiado grupo e também dos pobres. Judas parece opor o carinho por Jesus e asolicitude pelos pobres. Na realidade, porém, devemos escolher, não entreJesus e os pobres, mas entre Judas, de um lado, e Jesus com os pobres, dooutro (>exc. v. 8). Pois o interesse de Judas não é pelos pobres, mas pelacaixinha dos pobres. Judas privatizava para si o que se destinava aos pobres(cf. 13,29). Em contrapartida, o carinho para com Jesus não nos afasta, masnos aproxima dos pobres; ele mesmo os traz à memória (v. 8).

Ora, “trezentos denários” (= Mc 14,5) são de fato muito dinheiro, maisou menos o que um lavrador ganha num ano. Mas João gosta de grandescoisas para valorizar Jesus: abundância de vinho (2,6) e de pão (6,12-13),uma casa cheia de perfume (12,3)… É bem oriental, como toda a Bíblia. Osorientais — como os brasileiros! — gostam de revestir o carinho com certoluxo, até hoje. Criticar isso, aos olhos de João, é prova de má-fé. Aliás,sabemos muito bem que, também entre nós, o que falta para os pobres nãoé aquilo que se “gasta” em verdadeira e sincera piedade!

A resposta de Jesus em Jo 12,7 levanta problemas. Levando em conta aconstrução semitizante da frase e a crítica textual, o v. 7 pode ser traduzido:

7-8

11,55–12,36

4-6

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(1) “Deixai-a, que ela o guarde para o dia de minha sepultura”; (2) “Deixai-a; ela o guardou para o dia de minha sepultura”. E guardar significa “con-servar” (o bálsamo; cf. 2,10, o vinho) ou “cumprir” (o embalsamento; cf.“guardar a palavra/os mandamentos”, 8,51.52.55 etc.). João quer dizer queMaria deve guardar o bálsamo para o sepultamento futuro? Ou que elaguardou o bálsamo (ou cumpriu o embalsamento) como que antecipando orito de sepultura? A primeira hipótese parece improvável: nada dá a impressãode que Maria deixou sobrar algo para uso ulterior; aliás, em João, não são asmulheres que vão embalsamar Jesus, como nos sinópticos (Mc 16,1 par.),mas José de Arimatéia (Jo 19,38-42). O segundo sentido (próximo do sentidotradicional, Mc 14,8) é bem mais provável. De qualquer modo, a despesa élegitimada pela sepultura de Jesus.

Jesus continua: “Os pobres, sempre os tendes convosco. A mim, noentanto, nem sempre tereis”. Contrariamente ao que alguns entendem, Jesusnão rejeita a preocupação com os pobres; pelo contrário, ele lembra a palavrade Dt 15,7.11, que ordena preocupar-se com os pobres sempre. Eles estão noâmbito da comunidade (“convosco”), como estavam no âmbito do povo deIsrael (“teu pobre, na tua terra”, Dt 15,11). Jesus não diz, como alguns dentrenós, que já se fez bastante para os pobres… Entretanto, mudando a ordemdos elementos em relação à tradição sinóptica, ele põe o acento final nomomento único que se vai realizar em breve: sua morte e seu sepultamento.

Honrar Jesus, sem esquecer os pobres (segundo Marcos e João)

“Jesus ou os pobres?” Em torno da frase “Os pobres, sempre os tendesconvosco”, houve muito mal-entendidos, às vezes intencionais, no sentidode preferir enfeitar o oratório a promover os pobres. Aqui, a comparação dotexto de João com o de Mc permite esclarecer melhor a intenção do autor.Em Mc, Jesus responde à observação abusiva de “alguns que lá estavam”(Mc 14,4) o seguinte:

1) Mc 14,6: O que a mulher fez não é esbanjamento, e sim uma “boa obra”(como a Lei prescreve, p. ex., a sepultura).

2) Mc 14,7ab: “Os pobres sempre tendes perto de vós para ajudá-los quandoquiserdes”, como o prescreve o texto fundamental de Dt 15,1-11. — Otexto de Dt 15, sobre a anistia aos pobres, raciocina assim: 1º, Deus nãodeu a terra para que fique cheia de pobres (15,4); 2º, portanto, se houverum pobre na “tua terra” (= de Israel), “entre teus irmãos”, “não fechespara ele o coração, mas abre para ele a mão” (v. 7-8); 3º, como semprehaverá pobres, sempre terás o que fazer… (v. 11; note-se a insistênciano pronome “teu” neste versículo, inculcando a responsabilidade per-

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manente do israelita por seus irmãos pobres). Se Jesus cita este texto, ésinal de que ele não despreza a obrigação social, para priorizar o culto!

3) Mc 14,7c: “A mim nem sempre tereis”; é uma situação única.

4) Mc 14,8: Sem querer, essa mulher (que quis realizar uma unção messiâ-nica), na realidade, “antecipou meu embalsamamento para a sepultura”.

5) Mc 14,9: Por isso, juntamente com o Evangelho será proclamado tam-bém o gesto dela, “para que se conserve sua memória”.

Em comparação com Mc 14,6-8 par., Jo 12,7-8 adapta a resposta de Jesus,de modo que o acento cai em “a mim nem sempre tereis”, ou seja, nomomento da ausência de Jesus que se aproxima. E a frase final de Mc(14,9), que focaliza a mulher anônima, é omitida em João: assim, o acentoestá exclusivamente na memória de Jesus.

Mc 14,6-9

deixai-a… ela fez uma boa obra…(cf. abaixo)

os pobres sempre tendes… e semprepodeis ajudá-los…

a mim nem sempre tereis

ela antecipou meu embalsamentopara a sepultura

onde for anunciada a Boa Nova...para que se conserve sua memória

Jo 12,7-8

deixai-a que o guarda para…minha sepultura

os pobres sempre tendes

a mim nem sempre tereis

(cf. acima)

(omite)

João conserva, portanto, a lembrança do dever de solidariedade com ospobres, mas reforça a iminência da despedida de Jesus, tema dos cincocapítulos que logo mais vão seguir (Jo 13–17).

A perspectiva da narrativa de Jo 12,1-8 é a ausência de Jesus. Veremos,nos capítulos 13–17, que a vida da comunidade na ausência de Jesus deter-mina profundamente o enfoque do Quarto Evangelho e talvez seja, de modoescondido, seu tema central.

A família de Betânia estava recebendo muitas visitas de gente dos arre-dores e de Jerusalém (“judeus” no sentido geográfico). Queriam ver Lázarodepois de sua ressurreição dos mortos. Os sumos sacerdotes, dando prova deseu endurecimento e estupidez, resolveram matar também Lázaro. Pois porcausa dele, muitos estavam abandonando o grupo dos “judeus” e aderindo aJesus. Não é dito o que aconteceu com Lázaro, e também não importa, pois,como verdadeiro fiel, ele já passara da morte à vida. Mas o membro da co-munidade lembra-se de que os adversários primeiro decidiram matar Jesus

9-11

11,55–12,36

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(11,53) e agora decidem matar o discípulo que vive a existência pascal,protótipo do fiel (12,9). Se a ressurreição de Lázaro prefigura o tempo dacomunidade — o tempo em que “não mais terão” Jesus (12,8) —, a ameaçaà sua vida tem grande atualidade para o leitor.

III. A entrada messiânica em Jerusalém (12,12-19)

No dia seguinte, muitos dos romeiros presentes em Jerusalém (“a grandemultidão”) ficam sabendo que Jesus está para chegar. Saem ao encontro delecom os festivos ramos de palmeira. Segundo os sinópticos, o povo cortousimplesmente ramos das árvores na beira do caminho. Os ramos de palmeirade que fala João, trazidos do vale de Jericó, são guardados no Templo eusados para as grandes solenidades; deviam servir para saudar o Messias.

O povo “grita” o refrão do salmo da romaria “Hosana! Bendito o quevem em nome do Senhor” (Sl 118,25-26). No AT, “hosana!” (= “salva-nos”)é uma exclamação pedindo a Deus que atenda as preces dos romeiros; e oresto da exclamação, “bendito no nome do Senhor aquele que vem”, era umabênção proclamada sobre o romeiro que chegava para a festa (cf. ainda 2Sm6,8; 1Rs 8,14.55). Mas João segue a reinterpretação cristã do salmo, jápresente nos sinópticos (Mc 11,9 par.), que liga “no nome do Senhor” a“aquele que vem” e faz do Messias entrando na cidade o Bendito de Deus.

Jesus tinha encontrado um jumentinho, no qual montara: assim virourealidade a profecia de Zacarias sobre o Messias pacífico: “Não temas, Filhade Sião (= Jerusalém), eis que teu rei vem montado num filhote de jumenta”(Jo 12,15 = Zc 9,9 + Sf 3,16-17). Só Mt 21,5 e Jo 12,15 explicitam a citação,que fica implícita na narrativa de Mc. A expressão “Filha de Sião” provémda mística escatológica, o simbolismo messiânico régio-nupcial: o Esposo-Messias-Rei vem encontrar sua noiva, o povo, no fim da longa espera naopressão. O jumento, além de sugerir a mansidão do Messias pacífico, é oanimal do shalom, da felicidade social de Israel (agricultura e comércio). Osimperadores deste mundo usam cavalo de guerra para suas entradas triunfais.Só João acrescenta: “o rei de Israel”, i.é, o Messias (cf. 1,49; 19,19). Assim,o grito do povo lembra 6,14-15: “aquele que deve vir ao mundo… queriamlevá-lo para proclamá-lo rei”. Para João, o “vir” do Messias é muito impor-tante; só que ele não vem nos moldes em que o povo o espera; ele veio comoluz para o mundo (cf. 12,46 etc.).

No v. 16, João comenta: os discípulos não se dão conta, naquele momen-to, da chegada do Messias. Entenderão essas Escrituras como referindo-se aJesus somente depois que Jesus for glorificado pela morte e ressurreição (cf.2,17.22; 20,9).

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Se nem os discípulos, nem a multidão entendem o que estão fazendo,qual é então a causa do sucesso de Jesus? A fé suscitada pelos sinais, nãomuito confiável (cf. 2,23-24), mas significativa (cf. 3,2). João atribui o su-cesso ao sinal da ressurreição de Lázaro (em 12,1 e 12,9 ele caracterizouLázaro como aquele que Jesus tinha ressuscitado dentre os mortos). Os queassistiram à ressurreição de Lázaro fizeram publicidade por Jesus. Por causadisso, o povo saiu-lhe ao encontro. Diante desse sucesso, os fariseus comen-tam, falando uns aos outros: “Estais vendo que nada conseguis? O mundo sefoi atrás dele”. E, sem querer, falam a verdade, como aparece nos vv. 20-21.João pensa também nos fiéis de sua comunidade, que “se foram” do juda-ísmo para “ir atrás” de Jesus (= ser discípulos).

IV. Jesus anuncia sua hora (12,20-36)

As últimas palavras do v. 19, “mundo…”, não são um exagero literário, poisde fato a festa é presenciada por romeiros do mundo inteiro, judeus, mas tam-bém prosélitos (cf. At 2,11) e simpatizantes (“tementes a Deus”, cf. At 10,2;13,43.50 etc.), que queriam conhecer a Cidade Santa e a mais significativa desuas festas (>exc. 2,20). Esse tema dos estrangeiros da diáspora já tinha sidofrisado em 7,35; 10,16 e 11,51-52. Foi entre eles que cresceu a comunidadejoanina (>exc. 7,36). Alguns romeiros de língua grega — judeus ou gentiossimpatizantes, pouco importa — dirigem-se a Filipe para solicitar uma entrevis-ta com Jesus. Filipe se une a André para pedir a Jesus. (Filipe e André, ambosde Betsaida, conforme 1,44, são os únicos dentre os apóstolos que têm nomegrego. E parecem muito importantes no Evangelho de João! >com. 1,40.43.)

Jesus declara: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorifica-do!” Os romeiros vindos do mundo grego, talvez ricos comerciantes, acham queestão tendo sorte. Chegaram na hora certa: o Filho do Homem vai aparecer naterra com a glória que recebe de Deus (cf. 1,51). Jesus, todavia, joga água nafervura. Acrescenta uma explicação ao mesmo tempo solene e estranha — umapalavra para nunca mais esquecer: “Amém, amém, vos digo: se o grão de tri-go que cai na terra não morre, ele fica só. Mas, se morre, produz muito fruto”. Issoparece uma releitura joanina das parábolas sinópticas sobre a semente, p. ex.Mc 4,26-29: em vez de referir-se ao Reino, refere-se ao próprio Jesus, conformea concentração cristológica típica de João (>exc. 6,11). A manifestação da glóriado Filho do Homem não vai ser um “supershow”, mas um mistério de morte evida, de vida na morte. Vida que brota do grão de trigo: do dom da própria vidaneste mundo brota o fruto que Deus espera, o fruto do amor fraterno (cf. 15,8).

A “lei do grão de trigo” vale em primeiro lugar para Jesus, mas tambémpara seus seguidores: eles estarão onde ele estiver, na morte como na glória

17-19

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(cf. 14,3). Nesse sentido, João cita primeiro a palavra de Jesus sobre “salvarsua vida”, que lembra fortemente os textos sinópticos (Jo 12,25, cf. Mc 8,35par. Mt 16,25 par. Lc 9,23; e cf. Mt 10,39 par. Lc 9,24; 17,33). Traduzidoliteralmente, o texto de Jo 12,25 diz: “Quem ama sua alma perde-a, e quemodeia sua alma neste mundo guarda-a para a vida eterna”. Acostumados aouvir que devemos “salvar nossa alma”, estranhamos aqui a palavra ordenando“odiar nossa alma” neste mundo. É que “alma” significa a vida física e psi-cológica, biológica e material. E “odiar” (>Voc.) é uma expressão bem semí-tica para dizer o contrário de preferir (cf. Rm 9,13!). A frase significa, portan-to: quem se apega à sua vida perde-a; mas quem não faz conta de sua vidaneste mundo, há de guardá-la para a vida [da era] eterna. De toda maneira,façamos um exame de consciência para ver se nosso “salvar a alma” não temo sentido de “safar-se sozinho”... o que seria muito contrário a Jo 12,24-25!

A seguir, João cita a palavra de Jesus sobre o seguimento (cf. Mc 8,34par. Mt 16,24), transformada porém pelo tema da “diaconia” (cf. Mc 10,45 par.Mt 20,28). A transformação merece atenção. Nas palavras sinópticas, trata-se de seguir Jesus, o Filho do Homem, que não veio para ser servido, e sim,para servir e dar sua vida por muitos. Já em João trata-se de servir a Jesus:“Se alguém quer me servir, siga-me, e onde eu estiver, estará também aqueleque me serve. Se alguém me serve, meu Pai o honrará”. Contradição? Não.O Jesus joanino é o Jesus eclesial; ele entende “servir” (diakonein) segundoo uso lingüístico da comunidade; sobretudo o termo diákonos em 12,26(como em 2,5.9) aponta nesse sentido. Jesus não fala do serviço a ele comoindivíduo privado, mas do serviço eclesial na comunidade que ele reuniu.(Também Marta em 12,2 exerce a diaconia.) O sentido de Jo 12,26 deve sersituado no contexto da Igreja no fim do século I, quando o serviço do amorfraterno já começa a esmorecer.

A diaconia eclesial

A diaconia eclesial tem, no NT, um sentido muito amplo, e não, em primeirolugar, litúrgico, como hoje. É em primeiro lugar a diaconia do apostolado,da palavra, do anúncio (veja, p.ex., At 1,17; 6,4; Rm 11,13); pode significara diversidade dos serviços na Igreja (1Cor 12,5 etc.); especialmente, o ser-viço caritativo (At 6,1) e também da mesa (At 6,2). Paulo considera diaconiaorganizar a coleta pelos pobres da comunidade de Jerusalém (Rm 15,25.31etc.), mas também seu empenho pela pregação do evangelho da Nova Alian-ça e do Espírito (p. ex., 2Cor 3,7-9).Nos evangelhos sinópticos, a terminologia da diaconia é bastante freqüente,sobretudo em Lucas. Mc menciona, no início e no fim, a diaconia prestadaa Jesus (1,13.31; 15,41) e no meio a diaconia de Jesus e dos discípulos

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(9,9.35; 10,43.45). Quanto a Jo 12,26, não se exclui uma influência dostextos de Mc 9 e 10, em que Jesus ensina o serviço com vistas à comuni-dade dos discípulos. Nos outros textos, João reserva a terminologia diaconalpara o serviço da mesa (Jo 2,5.9; 12,2), emblemático de todo tipo de serviçocaritativo. É notável que o termo não aparece no lava-pés, Jo 13,1-20. Aí,João prefere doulos, “escravo”!

Quem for fiel à diaconia de Jesus na sua comunidade se encontrará aíonde está Jesus (e o que isso significa será explicado em profundidade nasegunda metade do evangelho, 13,36; 14,1-5). Então o Pai o honrará (cf.5,23; 8,49).

Jesus está interior e profundamente (“minha alma”) perturbado diante daperspectiva da morte (>com. 11,33). Ele sente com toda a força a proximi-dade da morte (cf. Hb 5,7). Pede para ser salvo “desta hora”. A “hora” deJesus é, num primeiro momento, a hora da morte e das trevas; a narrativasinóptica da agonia de Jesus insiste nisso (Mc 14,35.41 par.). João não negaque Jesus é “carne” (cf. 1,14), humanidade frágil, igual a nós em tudo menosno pecado (cf. Hb 4,15; 5,7-9). Quem de nós não teria medo da hora daagonia? Quem não rezaria para escapar da morte? Por isso Jesus rezou: “Abbá,Pai…” (v. 27). Em Mc 14,36.39 e sobretudo no texto paralelo de Mt 26,39.42,a oração de Jesus é praticamente a primeira parte do Pai-nosso: “Seja feita atua vontade”: Jesus assume a vontade do Pai. Em João, a consciência daunidade com o Pai é mais explícita ainda (cf. 10,30). O que os sinópticoschamam “tua vontade” é equivalente àquilo que João chama “a hora”. Joãoacentua que Jesus está ciente de ser o Enviado e Filho querido de Deus, emtodas as circunstâncias: “Foi para isso (para morrer qual grão de trigo) que euvim a esta hora! Pai, glorifica o teu nome (= mostra a tua glória)!”

E o Pai responde: “Já glorifiquei meu nome (em toda a história salvíficae sobretudo nas obras que Jesus fez) e o glorificarei de novo (no enaltecimentode Jesus)”. O melhor comentário desta frase é Jo 13,31-32. Entretanto, osversículos seguintes já explicam em que consiste essa glorificação (cf. espe-cialmente o v. 33).

O povo percebe algo especial. Trovejou? Um anjo falou com Jesus? Acena lembra Moisés interpretando para o povo a voz estrondosa de Deus, nomonte Sinai (Ex 19,7; cf. Dt 18,16). Como sempre, surge uma controvérsiaentre os que presenciam a cena. Os mais materialistas pensam ter ouvido umtrovão (o que também pode ser uma manifestação do Altíssimo, cf., p.ex.,1Sm 12,18). Já outros pensam que um anjo lhe falou (cf. Gn 21,17; 22,1etc.). Mas o ruído de Deus que ouviram, explica Jesus, não se destinava àsua pessoa, mas ao povo, e interpreta: “É agora o julgamento deste mundo”.

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O julgamento deste mundo era o que se esperava do Filho do Homem vindocom a glória de Deus (cf. Mc 14,62; também o Livro de Henoc e ademais aliteratura apócrifa). “Agora o chefe deste mundo vai ser lançado fora”. Satanás,o poder do mal, está vencido em princípio (cf. Lc 10,18). Seu ódio nada podecontra o amor de Jesus, que se afirmará na morte da qual Satanás é o instigador!Ao querer matar o amor, o ódio confirma a vitória do amor e se condena a simesmo. Da flor sem defesa brota a vitória da verdade e do amor.

“Quando eu for enaltecido da terra vou atrair todos a mim”: espontanea-mente pensamos numa elevação gloriosa — um campeão olímpico subindoao pódio, o carro de fogo de Elias subindo ao céu (2Rs 2,11), o arrebatamen-to de Henoc (Gn 5,24). Mas João explica que Jesus fala da maneira comovai morrer: elevado na cruz. A multidão pensa que Jesus anuncia a elevaçãodo Filho do Homem como um arrebatamento ao céu, à maneira de Henoc,Moisés, Elias. Estranha aquilo que Jesus fala. Segundo Jesus, o Messias, oumelhor, o Filho do Homem — os títulos são confundidos aqui —, não vempara permanecer na terra e fazer o povo de Israel reinar sobre o mundo (cf.Dn 7,13-24; >com. Jo 6,62-63; cf. também o reino do Messias pacífico, Zc9,10). O Filho do Homem de que Jesus fala (e que é ele mesmo) não cor-responde a esse tipo de expectativa, não vai fundar aqui um regime de “milanos” (Ap 20,1-7) para se encarregar de problemas que o próprio povo deveresolver pela ação política, social etc. (>com. 6,14-15). É verdade que suapalavra e atuação são julgamento — e julgamento decisivo — sobre o valorde nossa vida. Mas isso não põe fim à nossa atuação e responsabilidade; éantes um incentivo para assumirmos nossa responsabilidade na construçãoda História conforme seu mandamento.

O “en-altecimento”do Filho do Homem, a luz e a vida eterna

Uma chave de leitura importante do Quarto Evangelho é a ambigüidade dotermo “enaltecimento” (exaltação/elevação/erguimento). Em hebrai-co-aramaico como em grego, o mesmo verbo pode significar tanto a eleva-ção honrosa quanto a execução na cruz ou na forca (cf. os sonhos dosfuncionários egípcios em Gn 40,13.19!). O termo ocorre juntamente com“rebaixar/humilhar” no texto sobre o Servo Sofredor em Is 52,13. Nosanúncios da Paixão, nos evangelhos sinópticos (Mc 8,31 par.; 9,31 par.;10,33-34.45 par.), aparece a identificação do Servo Sofredor com o Filho doHomem. João potencializa mais ainda essa idéia de que o Servo Sofredor,humilhado e enaltecido (Is 52,13; > com. 12,38), é o Filho do Homem,enviado celestial para fazer reinar na terra o julgamento de Deus, e aplicaa essa identificação o verbo ambíguo “enaltecer” (elevar/exaltar), indicandoao mesmo tempo a elevação à cruz e a exaltação na glória.

32-34

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Todavia, não se trata de um mero jogo de palavras. A coincidência dos doissentidos é real. A glória que o Pai dá a Jesus não é algo que vem depois dacruz; ela está na cruz como revelação do amor de Deus em seu Filho,revelação de seu ser que é amor (cf. 1Jo 4,8.16). (Em Jo 3,14 o ambíguo“enaltecer/elevar” é usado para o símbolo da serpente de bronze que assi-nala a salvação pelo dom da vida de Jesus.)

Existe notável proximidade entre o tema do Filho do Homem enaltecido eo da luz. No diálogo com Nicodemos, depois de ter evocado o enaltecimentodo Filho do Homem (3,14-15), o discurso de Jesus alude à sua função dejulgamento mediante a imagem da luz da qual a pessoa se aproxima ou seafasta (3,19-21). No cap. 9, o tema da luz (o cego) culmina no ver o Filhodo Homem (9,35-37). No fim do cap. 12, depois de pronunciar oenaltecimento do Filho do Homem, Jesus exorta para caminhar na luz (12,34-36). E isso, no quadro do julgamento do príncipe deste mundo (12,31). Nosvv. 37-43 segue então o retrospecto sobre os sinais e a incredulidade, arti-culado por duas citações significativas de Isaías, o início do texto do ServoSofredor (Jo 12,38, cf. Is 53,1) e o texto sobre a incredulidade a ser enfren-tada pelo profeta que “viu a gloria dele” (= de Cristo; Jo 12,40-41, cf. Is6,9-10). Logo depois volta o tema da missão como luz e palavra diante dasquais a pessoa realiza seu autojulgamento (12,44-50). A função de Filho doHomem-Juiz é exercida por Jesus à maneira da luz: ele não julga, mas à sualuz a pessoa se julga a si mesma.

Na segunda parte do Evangelho de João só haverá mais uma menção doFilho do Homem, exatamente quando Judas aciona a traição e João sintetizaesse trágico momento em três monossílabos: ên de nyx: “Era noite” (13,30).Nesse mesmo instante Jesus concluirá: “Agora o Filho do Homem é glori-ficado…” (13,31). Observaremos, adiante, que essa glorificação se dá nasegunda parte do Evangelho de João, quando os temas abertos na primeiraparte recebem seu sentido completo: o Filho do Homem torna-se luz decisivana hora de sua realização, da consumação: é por sua práxis de autodoação atéo fim (13,1) que ele se torna a luz na qual realizamos o sentido de nossa vida.

Essa luz do gesto supremo de Jesus nos faz ver o que somos para Deus. Épresença da vida eterna para quem crê. Se Jesus é o Filho do Homem naterra, o juízo está presente nele. A “escatologia presente” (ou melhor, “inau-gurada”; >exc. 11,27) é inseparável do tema do Filho do Homem enaltecido,luz do mundo.

A vinda de Jesus na história nos confronta decisivamente com a serieda-de da missão histórica que assumimos em seu nome e à sua luz. É um julga-mento sobre a nossa opção hoje, não apenas no fim dos tempos. É um momen-to que não devemos perder: “Por pouco tempo a luz está no meio de vós.Caminhai enquanto tendes luz, para que não vos dominem as trevas (cf. 1,5).

35-36

11,55–12,36

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O LIVRO DOS SINAIS

244

Quem caminha nas trevas não sabe para onde vai (cf. 1Jo 2,11). Enquantotendes a luz, crede na luz, para que vos torneis filhos da luz”, i.é, pessoasque “são da luz”, que andam na luz que a Palavra de Deus projeta sobrenosso caminho, nossa prática de vida (cf. 1Jo 1,5-6; >Voc. Luz). E, com estaspalavras, Jesus se esconde (cf. 8,59)... A luz se foi.

A atuação que se iniciou nas margens do Jordão, na beira do desertode Judá, e depois se desenvolveu “entre vaias e aplausos” nos maisdiversos cenários da Galiléia, da Samaria e da Judéia, culmina agorana ambígua tensão entre, por um lado, o gesto afetuoso de Maria, aaclamação da “Filha de Sião” a seu Rei-esposo, o entusiasmo dosromeiros “todo mundo” e, por outro, a ameaça mortal das autoridades.A hora amadureceu. O grão de trigo deve morrer para produzir seufruto. Surge no horizonte a cruz erguida em trono de glória do amor.

Hoje, nos mais diversos cenários, entre vaias e aplausos, é dado otestemunho do amor de Deus, em lares e comunidades, creches ehospitais, trabalho profissional e mutirões, ou no silencioso sofrimen-to de quem tem poder apenas para… ser. Para ser amor. “Onde euestiver, estará aquele que me serve.” A diaconia de Jesus nos leva aomundo dos crucificados, hoje.

“Os pobres sempre tereis”. Nunca esqueceremos essa palavra aoprestar nossa homenagem ao amado Mestre, sem contudo recusar-lhea homenagem, que talvez não seja um perfume no valor de trezentasdiárias, nem um megashow em Jerusalém, mas a oferta de todo nossoser, toda nossa atuação visando a torná-lo reconhecido no mundo.

Jesus é o espelho de sua comunidade, no ano 90 dC e também hoje.O despertar de esperanças e a morte do grão de trigo escondido naterra vão de mãos dadas. O grão de trigo deve morrer. Também hoje.

BALANÇO DOS “SINAIS” (12,37-50)

I — 37Apesar de ter feito, à vista deles, tantos sinais, não creram nele,38de modo que se cumpriu a palavra do profeta Isaías, que diz:

“Senhor, quem acreditou na nossa mensagem?E o braço forte do Senhor, a quem se revelou?”

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39Eles não podiam crer, conforme diz outra vez Isaías:40“Cegou-lhes os olhose endureceu-lhes o coração,Assim, não vêem com seus olhos,nem compreendem com seu coração,nem se convertempara que eu os cure”.

41Isaías disse isso porque viu a glória de Cristo e profetizou a seurespeito.42No entanto, mesmo entre os chefes, muitos passaram a crer nele.Mas não o confessavam, por causa dos fariseus, para não seremexpulsos da sinagoga. 43Preferiram a glória da parte dos homens àglória de Deus.

II — 44Quanto a Jesus, ele exclamou: “Quem crê em mim, não é em mimque crê, mas naquele que me enviou. 45Quem me vê, vê aquele que meenviou. 46Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele quecrê em mim não permaneça nas trevas. 47Se alguém ouve as minhaspalavras e não as observa, não sou eu que o julgo, porque vimnão para julgar o mundo, mas para salvá-lo. 48Quem me rejeita e nãoacolhe as minhas palavras já tem o seu juiz: a palavra que eu falei ojulgará no último dia. 49Porque eu não falei por conta própria, maso Pai que me enviou, ele é quem me ordenou o que devo dizer e falar.50E eu sei: o que ele ordena é vida eterna. Portanto, o que eu falo, euo falo de acordo com o que o Pai me mandou dizer”.

Jo 12,37-50 constitui um comentário do evangelista, que se coloca forada narrativa para comentá-la (em off: cf. 3,16-21.31-36; >Intr. § 2.1.5). Seo Livro dos Sinais termina assim numa conclusão negativa (12,37: “Apesarde tantos sinais não creram ”), o Livro da Glória terminará numa nota deintenção positiva: “…estes sinais foram escritos para que creiais e crendotenhais vida em seu nome” (20,30-31).

Em 12,37-50 distinguimos duas partes:

I) A primeira parte diz respeito ao fenômeno da incredulidade dos “ju-deus” diante dos sinais que Jesus, na sua atividade pública, realizou“diante/à vista deles” (vv. 37-43). Esta parte contém essencialmenteduas citações altamente significativas do AT, fonte tradicional da ar-gumentação teológica dos primeiros cristãos: o início do 4º cântico doServo Sofredor (Is 53,1) e a vocação de Isaías (Is 6,9-10).

12,37-50

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O LIVRO DOS SINAIS

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II) A segunda parte (vv. 44-50) é uma longa citação que resume as pró-prias palavras de Jesus. Prolongando o tema do v. 42 (cegueira), Jesusproclama sua missão como luz do mundo e o significado decisivo desua palavra; os temas (vir, luz, palavra) remetem-nos ao Prólogo econstituem com este uma inclusão da primeira parte do Evangelho deJoão, o “Livro dos Sinais”. Nos vv. 44-50 encontramos, pois, diversasreferências a palavras anteriores de Jesus, sobretudo aos temas da luz,da missão e do julgamento (cf. 3,17-21; 5,36; 8,12; 9,5 e semelhantes).

É característico de João citar palavras de Jesus ao lado dos argumentosescriturísticos do AT (cf. 2,22; 18,9). Para João não só as antigas Escrituras,mas a própria palavra de Jesus têm valor profético-autoritativo. Para a sina-goga judaica, a referência vital era a Torá viva, a Escritura interpretada natradição oral (>Intr. § 2.2.1). Para João, Jesus mesmo é a Palavra viva. Jesusé aquele que testemunha de si mesmo (8,18), além de receber o testemunhoda Escritura (5,46). Ele é “autocredenciado” (>com. 8,25). Se, antes doQuarto Evangelho, a cristologia se baseava na Escritura antiga para provarque Jesus tinha autoridade, João representa uma fase ulterior: o próprio Jesusé autoridade, ao lado da Escritura, que encontra nele sua chave.

Jo 12,37-50 funciona, pois, como uma dobradiça entre o Livro dos Sinais(1–12) e o Livro da Glória (13–20). Contém referências tanto à primeiracomo à segunda parte do Evangelho de João.

olhando para trás

incredulidade:caps. 1–12

“Quem acreditou?”

endurecimento

por medo dos judeus: 9,22

dobradiça central12,37-43 ➝

v. 37: balanço dossinais

v. 38: citação deIs 53,1

v. 40: citação de Is 6,9-10

v. 41: viu a glória de Jesus

v. 42: não confessam Jesus

anunciando o quesegue

sinais e fé: 20,30

caps. 13 e 18–19:Servo Sofredor

ver Deus em Jesus: 14,9glória de Jesus: 13,31; 17;

I. A incredulidade diante dos sinais (12,37-43)

O evangelista faz o balanço da atuação pública de Jesus, caracterizando-a pelo termo “sinais”. Assim como Moisés, em Dt 29,2-4, avalia a incredu-lidade do povo diante dos sinais que Deus fez, o evangelista avalia a incre-dulidade diante do número e do tamanho dos sinais que Jesus fez (cf. 9,32).

37-41

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Ora, essa incredulidade não deve causar espanto. Cabe no plano de Deus. Oprofeta Isaías já sabia disso, quando no quarto cântico do Servo Sofredordenunciou a incredulidade do povo (Is 53,1), ou quando, na hora da vocaçãoprofética, teve de encarar a incompreensão do povo (Is 6,10). Segundo João,com efeito, Isaías tinha Jesus diante dos olhos ao falar assim. Com nossacabeça moderna, perguntamos: “Será isso mesmo que Isaías quis dizer?” Osantigos eram mais generosos na sua hermenêutica (interpretação das Escri-turas) do que nós. Não se importavam muito com aquilo que Isaías original-mente quis dizer, e sim com a validade da aplicação do texto. E, de fato, asduas citações de Isaías são plenamente válidas.

Sobretudo a primeira citação (v. 38 = Is 53,1, na forma da LXX) mereceatenção, porque é própria de João (cf. ainda Rm 10,16), à diferença dasegunda, citada com freqüência no NT (cf. infra). É a frase inicial (depoisdo proêmio 52,13-15) do quarto cântico do Servo, texto profético por exce-lência para o anúncio cristão. Fala daquilo que ouvimos (a mensagem) evimos (o “braço forte”); cf. 1Jo 1,1-3. Podemos pensar que João não cita estetexto apenas por causa da alusão à incredulidade; e Paulo, não apenas porcausa da alusão ao “ouvir”. Para João e para Paulo, esse texto representavao núcleo do anúncio cristão, o grande fato que Deus operou no seu filhoJesus, glorificando-o apesar de sua rejeição pela humanidade. É exatamenteisso que se deve ouvir e contemplar na fé.

O segundo texto, Is 6,9-10, é tradicional na polêmica cristã contra aincredulidade (Mc 4,12 = Mt 13,13 = Lc 8,10; Mc 8,17b-18 = Mt 13,14; At28,26-27; cf. Rm 11,8 = Is 29,10). A novidade de João consiste em dizer queIsaías estava contemplando Jesus na visão que ele teve quando essas pala-vras lhe foram dirigidas (Is 6,1.5). Do seu ponto de vista, João pode dizerisso porque Deus age em Jesus. Assim como, para o fiel, ver Jesus é ver oPai (14,9), para Isaías ver a glória do Pai é ver Jesus. (O texto de Is 6,1.5diz que o profeta viu não apenas a glória, mas Deus mesmo; isso, porém, nãoexiste para João; cf. 1,18; 6,46; se o profeta diz que viu Deus, para João issose refere à visão da glória de Jesus!)

Para nós hoje, o difícil no texto de Is 6,9-10 é a idéia de que Deuspredestine certas pessoas à incredulidade. Na estrutura mental e lingüísticados antigos semitas não há muita diferença entre “para que” e “de modoque”, entre finalidade e conseqüência, fazer acontecer e permitir que acon-teça. Quando João (como Dt 29,3-4) diz que Deus lhes cegou os olhos eendureceu o coração (= mente), quer dizer que Deus permite isso respeitandoa liberdade humana. Deus fez seu plano de tal modo que isso possa acon-tecer sem que o plano se desmanche; aliás, isso colabora para o plano de

38

39-41

12,37-50

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O LIVRO DOS SINAIS

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Deus, que é maior que as elucubrações humanas. Os opositores de Jesus sãoatores no drama que Deus escreveu.

Contudo, alguns judeus notáveis, autoridades, chegaram a acreditar.Exemplos positivos são Nicodemos (3,1; 7,50-51; 19,39) e José de Arimatéia(19,38). Mas outros temem confessar Jesus como Messias por medo darepressão exercida pelo judaísmo dominante. Temem ser expulsos da comu-nidade sinagogal, o que para um chefe seria extremamente doloroso (>com.3,8). Como 9,22, esta observação pode visar o confronto da comunidadejoanina com o judaísmo, até nos anos 80-90 (>exc. 9,23). De toda maneira,a avaliação por João é dura: no fundo, dão mais valor ao seu prestígioperante os homens que à glória que Deus destina a quem acredita em Jesus(ou a glória de Deus manifestando-se em Jesus).

II. O autojulgamento diante da palavra de Jesus (12,44-50)

Depois de sua reflexão sobre a incredulidade e a ambigüidade, o evan-gelista recorda uma exclamação de Jesus: “Aquele que crê em mim, não éem mim que crê, mas naquele que me enviou; e quem me vê, vê aquele queme enviou” (cf. 14,9). Pelo paralelismo da frase, “ver” aqui significa omesmo que “crer”: trata-se da visão profunda, visão da fé (>exc. 6,36). A fépercebe que diante de Jesus estamos na presença de Deus mesmo.

Esta é a luz nova que Jesus veio jogar sobre nossa vida. “Eu vim ao mundocomo luz, para que não fique na escuridão quem crê em mim.” A luz, em João(>Voc.), não é “pra fazer bonito”, mas para iluminar o caminho, i.é, o proce-dimento ético (>exc. 12,34). Por isso, Jesus observa: “Se alguém escuta asminhas palavras e não as observa, eu não o condeno”. Isso parece estar “cor-rigindo” a severa frase do Sermão da Montanha sobre o “escutar e não fazer”,Mt 7,26 (e cf. Tg 1,22); todavia, corrigindo só em termos, pois mesmo se Jesusnão veio para condenar e sim para salvar, a condenação existe (veja v. 48).

“Eu não vim ao mundo para condenar, mas para salvar o mundo.” Jesusnão veio pronunciar o juízo, mas mostrar quanto Deus nos ama (cf. 3,16-17).

Ora, o juízo de Deus existe, mas não é arbitrário nem imprevisível, não éuma loteria a ser tirada no dia da vinda do Filho do Homem. É a própria atitudeda pessoa. “Aquele que me rejeita e não acolhe as minhas palavras já tem quemo condena: a palavra que eu falei, esta o condenará no dia final”. A palavra deJo 12,48 vai mais longe que os paralelos (Lc 10,16 e Mt 10,40) acerca doacolhimento dos enviados (cf. também Jo 13,20). A aceitação ou não da palavrade Jesus é o critério do julgamento, e essa palavra ressoa agora, e não apenasno último dia! O juízo já acontece agora, na aceitação ou rejeição daquilo queJesus nos comunica por sua palavra e por sua vida (cf. 5,24 etc.; >com. 11,25).

46-47

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A palavra de Jesus (a Palavra que é Jesus) é decisiva, é “espada de doisgumes” (cf. Ap 19,15), porque não é algo que ele mesmo inventa, masrevelação do Pai, que quer manifestar a nós seu grande amor. A missão queJesus recebe dele é vida eterna, vida de Deus mesmo (>exc. 11,27). Jesusfala exatamente a palavra de Deus: o que ele declara, Deus é quem o declara.

No cap. 12 termina a missão pública de Jesus, sua palavra dirigidaao “mundo” e os “sinais” que o dão a conhecer como profeta envi-ado por Deus, como aquele com quem Deus está (3,2).

Depois do anúncio inicial e dos primeiros sinais (1,19–4,54), vimos acrescente oposição (5,1–12,50): os sinais provocam em alguns a fé,em outros, oposição cada vez mais feroz. Pois Jesus provoca opção(6,59-71). Devemos optar entre a morte e a vida, entre as trevas e aluz (capítulos 7–12).

A primeira parte do evangelho prepara a “hora” de Jesus. Em 2,4,Jesus adverte que ainda não chegou sua hora, para que o primeiro“sinal” não seja confundido com sua obra principal, que só serárealizada na “hora”. São narradas diversas atividades de Jesus, demodo especial seus sinais, pelos quais ele se dá a conhecer comoEnviado do Pai. São suas credenciais. São importantes: mostram “deonde” Jesus vem (cf. 2,9). Põem a gente diante de uma decisão, umaopção pró ou contra Jesus. São também símbolos, apontam para odom que Jesus é: alegria das núpcias messiânicas, vida, força paraandar, pão, luz dos olhos, ressurreição.

Em 7,30; 8,20, foi dito que os judeus não prenderam Jesus, porquesua “hora” ainda não tinha chegado. Assim também em 7,45; 8,59;10,31.39 ainda não é o momento. Mas em 11,8 desponta a duodécimahora. Ela chegou (12,23.27.28). Inicia-se a “hora” (13,1; 17,1). E nofim, 19,30, Jesus poderá exclamar: “Tudo está consumado”.

Na “hora”, Jesus já não mostrará suas credenciais, os sinais, mas opróprio rosto de Deus, que é Amor. Dará sua vida por amor. PoisDeus é assim como se manifesta quando Jesus leva até o fim (13,1),consuma (19,30) a obra que é sua e do Pai. Será a hora da manifes-tação da glória, pois a glória é a manifestação de Deus. É a glóriade Deus e de Jesus mesmo, já que os dois são um só (10,30).

49-50

12,37-50

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O LIVRO DA GLÓRIA(13,1–20,31)

A segunda parte do Evangelho de João, os capítulos 13–20, descreve oanteriormente anunciado “enaltecimento” (exaltação/elevação) de Jesus nacruz e na glória do Pai (cf. 8,28; 12,32). Os estudiosos costumam chamaresta segunda parte “o Livro da Glória”, por causa do tema da manifestaçãoda glória do Pai em Jesus. Esse tema é desenvolvido sobretudo no cap. 17,que constitui o centro da segunda parte. A abertura solene de toda esta parteé 13,1 (>com.). Pode-se dizer que o Livro dos Sinais (1–12) descreveu avinda do enviado de Deus ao mundo, enquanto os caps. 13–20 refletemsobre sua volta ao Pai. É a “hora” de Jesus, anunciada desde 2,4; 7,30; 8,20;12,23… É a grande Páscoa, que inaugura também nossa “hora sem fim” —hora da existência pascal que se inicia no mundo.

Podemos distinguir no conjunto 13–20 duas seções: (1) Jesus com osseus na sala da ceia (“cenáculo”), celebrando sua despedida, seu “adeus”(capítulos 13–17); (2) relato da paixão e ressurreição de Jesus, nos conheci-dos cenários jerosolomitanos da já tradicional narrativa da Paixão (capítulos18–20, com a conclusão do evangelho em 20,30-31). O cap. 21, um epílogoredatorial, será tratado à parte.

Nota: Cronologia dos últimos dias de Jesus

Se tomamos como ponto de referência a data da Páscoa judaica, dia 15do mês judaico de nisan, constatamos que os sinópticos e João situam osfatos no mesmo dia da semana, mas diferem um dia no calendário (obs.: nocalendário judaico, o dia começa com o pôr do sol).

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A diferença entre a cronologia joanina e a sinóptica causou muita discus-são. Para fazer coincidir os fatos em João e nos sinópticos, tentou-se mostrar,sem sucesso, que João estaria seguindo outro calendário. É mais provável quenem João, nem os sinópticos reconstituam uma cronologia histórica exata.

Ora, o relato sinóptico da paixão de Jesus tem nítidos traços de organiza-ção litúrgica. Mc segue as horas da oração pública; neste espírito, concebeu aceia como uma ceia pascal. Quanto a João, não se pode excluir que ele estejacorrigindo a cronologia da tradição geral ou sinóptica, diante daimprobabilidade de se terem realizado o processo e a execução no dia festivoda Páscoa, dia 15 de nisan. João pode até estar conservando informaçãohistórica mais exata que Mc, mas ele tinha também razões teológicas para nãoapresentar a ceia de Jesus como a ceia pascal judaica, celebrada na noite queiniciava o dia 15 de nisan. Em Jo, Jesus sempre se distancia das festas “dosjudeus” (cf. 7,1-13). Aqui, com mais razão ainda que nos outros casos, já queo relato da ceia e da paixão tem fins litúrgicos, João evita identificar a ceia

Sinópticos

dois dias antes de Ázimos (4ª-f.?):unção em Betânia (Mc 14,1.3 par. Mt)

5a feira: manhã e tarde = 14 nisan1o dia de Ázimos (Mc 14,12 par.), imolaçãodo cordeiro e preparação da ceia

5a feira: noite = 15 nisan = Páscoa judaicaceia pascal de Jesus (Mc 14,17 par.), com ainstituição da Eucaristiaprisão; interrogatório perante o Sinédriopresidido por Caifás

6a feira: manhã: entrega a Pilatos (Mc 15,1 par.)[só Lc 23,6: perante Herodes]hora 3a: crucificação (Mc 15,24 par.)hora 6a: trevas (Mc 15,33 par.)

hora 9a: morte (Mc 15,34 par.)entardecer: sepultamento (por causa dapreparação do sábado, Mc 15,42 par.)

6a feira: noite = 16 nisaninício do sábado (cf. Mc 15,42 par.)

sábado à noite/domingo = 17 nisan1o dia da semana — ressurreição

João

seis dias antes da Páscoa (dom.?):unção em Betânia (12,1)

5a feira: noite = 14 nisanceia (não pascal) de Jesus

prisão e interrogatório perante Anás (e Caifás)

6a feira: manhã: perante Pilatos (18,28)

hora 6a: condenação à morte (19,14-16, horade imolar o cordeiro),menção à preparação do sábado (cf. 18,28;19.31.42)

morte (19,30)entardecer: sepultamento

6a feira: noite = 15 nisan = Páscoa judaicainício do “sábado solene” = dia da Páscoa(Jo 19,31)

sábado à noite/domingo = 16 nisan1o dia da semana — ressurreição

13,1–20,31

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O LIVRO DA GLÓRIA

252

de Jesus com a festa judaica. A páscoa judaica “já era”. Não obstante, algunstraços do relato joanino fazem pensar numa ceia pascal, p. ex., o bocado depão passado no molho (13,26), detalhe tão incrustado na tradição, que virouindispensável para contar a história. João apresenta Jesus como o cordeiropascal imolado; daí sua apresentação que faz a morte de Jesus coincidir coma matança dos cordeiros, antes da ceia pascal, na tarde do dia 14 de nisan.

Em suma, é difícil resolver a questão histórica, mas é certo que tanto acronologia sinóptica quanto a joanina sofreram influências da liturgia. Por razõeslitúrgicas, a tradição de Mc pode ter identificado a ceia com a Páscoa judaica,sugerindo o tema da Aliança etc.; e, por razões litúrgicas de outro tipo, Joãopode ter dissociado a ceia de Jesus da Páscoa judaica (para marcar a diferença)e associado a morte de Jesus, na tarde seguinte, ao sacrifício do cordeiro pascal.E, se as igrejas de tradição sinóptica e paulina acentuam a Última Ceia comoparadigma da Eucaristia (Mc 14,18-25 par.; 1Cor 11,23-26), a comunidade joani-na parece acentuar mais a multiplicação dos pães neste sentido (Jo 6,51-58).

O ADEUS DE JESUS (13,1–17,26)

Os capítulos 13–17 constituem o “adeus” de Jesus. Podemos distinguir doismomentos. (1) A abertura do relato da despedida (13,1) é seguida pelo gestoprofético do lava-pés, culminando no anúncio da traição (13,2-30). (2) Seguem-se, sem novo cenário, os diálogos da despedida de Jesus (13,31–14,31; 15,1–16,31) e a oração de Jesus ao Pai (17,1-26). Reconhece-se neste conjunto umesquema litúrgico, narrando um fato seguido de um discurso que exerce o papelde homilia. (É o esquema básico dos episódios do Livro dos Sinais.) Talvez tenhaorigem numa liturgia da despedida do Senhor celebrada antes da Páscoa daRessurreição; isso explicaria por que não se faz alusão à ceia pascal (cf. supra).

O adeus de Jesus, em João, é muito diferente dos sinópticos. Em João, arefeição não é a ceia pascal (cf. acima, intr. a 13–20), nem se menciona ainstituição da Eucaristia; nos sinópticos, faltam o lava-pés e os discursos dedespedida. Todavia, há traços comuns a João e aos sinópticos: a advertênciaa respeito da traição (Jo 13,18-19.21-30; cf. Mc 14,17-21 = Mt 26,20-25 e cf.Lc 22,22-23); a predição da negação de Pedro (Jo 13,38; Lc 22,31-34; em Mc14,29-31 = Mt 26,33, a predição ocorre depois da ceia); a referência ao frutoda vinha (Jo 15,1-6; cf. Mc 14,25 par.); o tema da Aliança (Mc 14,24 par.),implícito em Jo 13,34s; 15,12.17 (o novo mandamento); a predição da disper-são dos discípulos (Jo 14,32, cf. Mc 14,27). Merecem atenção os traços co-muns a João e Lc: o ensinamento da humildade (Jo 13,12-17, cf. Lc 22,24-27);a referência à acolhida dos discípulos na casa do Pai (Jo 14,2-3 cf. Lc 22,30).

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Estritamente peculiares de João são a explicitação da despedida e omandamento do amor, em 13,31-35 (cf. quadro abaixo). Como no caso dapurificação do Templo e no episódio dos pães, João representa uma evoluçãoe interpretação dos temas sinópticos, especialmente de Mc 14,12-31 par.João segue a tendência de Lc de integrar na própria ceia o tema da traição,que em Mc/Mt é um prelúdio da ceia. Lc e Jo introduzem no contexto daúltima ceia o tema do serviço de Jesus, que em Mc/Mt apareceu sobretudona terceira predição da Paixão. Este tema é aprofundado na redação final deJoão, ao tratar do novo mandamento.

Mt Mc Lc Jo

26,17-20 14,12-17 22,7-14 preparação da ceia

26,21-25 14,18-21 predição da traição cf. abaixo(Mt/Mc) (e 13,2.11s.18s.)

26,21-25 14,22-25 22,15-20 refeição/eucaristia 13,2-3 (6,51-58)

22,21-23 predição da traição (Lc)

(20,28) (10-45) 22,34-40 serviço/lava-pés 13,4-20

cf. acima predição da traição (Jo) 13,21-30

despedida/mandamento 13,31-35

26,30-35 14,26-31 22,31-34 predição da negação de Pedro 13,36-38

Quanto à estrutura, apesar das incoerências, o conjunto 13–17 apresenta-semuito harmonioso e surte um efeito envolvente. Parece uma ostra de pérola. Oinvólucro constituído pelo tema da despedida envolve o que poderíamos chamaro legado de Jesus: o mandamento do amor fraterno vivido em conformidadecom seu exemplo e dom da vida, tendo sua fonte no Pai que é Amor.

13,1-30: o gesto simbólico/profético do lava-pés e o anúncio da traição13,31-38: diálogo introdutório (“pouco tempo”) e comunicação do

“legado” de Jesus (o mandamento do amor fraterno)14,1-14: despedida e promessa de reencontro14,15-31: o dom do Paráclito e da paz

15,1-17: a alegoria da vinha: explicitação do legado de Jesus:o amor fraterno, sua fonte e seu dinamismo

15,18–16,4a: a inimizade do mundo15,4b-15: a missão do Paráclito perante o mundo e na comunidade16,16-33: diálogo de conclusão: o significado do “pouco tempo” e a

alegria do reencontro e da paz17,1-26: oração de quem se despede pelos que permanecem “no mundo”.

13,1–17,26

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O LIVRO DA GLÓRIA

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A despedida de Jesus não é o tema, é o cenário e a atmosfera… O temaé nossa existência em união de amor com ele — fisicamente ausente, maspresente na glória —, com o Pai e com os irmãos; isso, vivendo a “memóriade Cristo” garantida pelo Espírito-Paráclito. A ulterior teologia da Trindadeencontrou aqui riquíssima inspiração.

O lava-pés e o anúncio da traição (13,1-30)

I — 13 1Antes da festa da Páscoa, sabendo que tinha chegado a hora depassar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavamno mundo, Jesus amou-os até o fim.

II — 2E, durante a ceia, quando o diabo já tinha seduzido Judas Iscariotespara entregar Jesus, 3este, sabendo que o Pai tinha posto tudo emsuas mãos e que de junto de Deus saíra e para Deus voltava, 4levan-tou-se da ceia, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a àcintura. 5Então derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pésdos discípulos e a enxugá-los com a toalha que trazia à cintura.6Chegou assim a Simão Pedro. Este disse: “Senhor, tu me lavas ospés? 7Jesus respondeu: “Agora não entendes o que estou fazendo;mais tarde compreenderás”. 8Pedro disse: “Tu não me lavarás ospés nunca!” Mas Jesus respondeu: “Se eu não te lavar, não terásparte comigo”. 9Simão Pedro disse: “Senhor, então lava-me não sóos pés, mas também as mãos e a cabeça”. 10Jesus respondeu: “Quemtomou banho não precisa lavar senão os pés, pois está inteiramentelimpo. Vós também estais limpos, mas não todos”. 11Ele já sabiaquem o iria entregar. Por isso disse: “Não estais todos limpos”.

III — 12Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto evoltou a seu lugar. Disse aos discípulos: “Entendeis o que eu vos fiz?13Vós me chamais de Mestre e Senhor; e dizeis bem, porque sou. 14Seeu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar ospés uns aos outros. 15Dei-vos um exemplo, para que façais assimcomo eu fiz para vós. 16Amém, amém, eu vos digo: o servo não émaior do que seu senhor, e o enviado não é maior do que aquele queo enviou. 17Já que sabeis disso, sereis felizes se o puserdes em prá-tica. 18Eu não falo de todos vós. Eu conheço aqueles que escolhi.Mas é preciso que se cumpra o que está na Escritura: ‘Aquele quecome do meu pão levantou contra mim o calcanhar’. 19Desde já,antes que aconteça, eu vo-lo digo, para que, quando acontecer,

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acrediteis que eu sou. 20Amém, amém, eu vos digo: quem recebeaquele que eu envio, a mim recebe; e quem me recebe recebe aqueleque me enviou”.

IV — 21Dito isso, Jesus ficou interiormente perturbado e testemunhou:“Amém, amém, eu vos digo: um de vós me entregará”. 22Desconcer-tados, os discípulos olhavam uns para os outros, pois não sabiam dequem estava falando. 23Sobre o peito de Jesus estava reclinado umdos seus discípulos, aquele que Jesus mais amava. 24Simão Pedroacenou para que perguntasse de quem ele estava falando. 25O discí-pulo, então, recostando-se sobre o peito de Jesus, perguntou: “Se-nhor, quem é?” 26Jesus respondeu: “É aquele a quem eu vou dar umbocado passado no molho”. Então, Jesus molhou um bocado e deua Judas, filho de Simão Iscariotes. 27Depois do bocado, Satanásentrou em Judas. Jesus, então, lhe disse: “O que tens a fazer, fazelogo”. 28Mas nenhum dos presentes entendeu por que ele falou isso.29Como Judas guardasse a bolsa, alguns pensavam que Jesus estavadizendo: “Compra o que precisamos para a festa”, ou que dessealguma coisa para os pobres. 30Então, depois de receber o bocado,Judas saiu imediatamente. Era noite.

Em termos de cenário, esta parte é delimitada pelas menções da hora dajanta (13,2) e da “noite” (13,30). Termina pela saída de Judas, fato essencialpara poderem iniciar-se os diálogos seguintes (13,31–16,33). O primeiroversículo é a abertura solene de toda a segunda parte do evangelho. Distin-guimos assim:

I. a abertura geral da segunda parte de Jo (13,1);II. Jesus se levanta para lavar os pés dos discípulos, provocando pro-

testo de Pedro (13,2-11);III. Jesus volta a sentar-se e explica o sentido de seu gesto (13,12-20);IV. Jesus anuncia a traição (13,21-30).

Em II (o lava-pés propriamente), o acento cai naquilo que Jesus faz e osdiscípulos devem aceitar; em III (a explicação do lava-pés), o acento está naqui-lo que os discípulos devem fazer, em imitação de Jesus. Distinguimos, portanto,um “indicativo” (II: o que é dado) e um “imperativo” (III: o que é para se fazer).

II (vv.2-11): indicativo: o dom de Jesus

compreensão cristo-soteriológica: aceitaçãodo gesto salvífico, único e insubstituível, deJesus

III (vv.12-20): imperativo: exortação e missão

aplicação parenética, exortativa: “imitação deCristo” no serviço humilde e na missão do dis-cipulado

13,1-30

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O LIVRO DA GLÓRIA

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Quanto à montagem dramática, pode-se observar um delicado movimen-to dos atores:

1a cena (o lava-pés): no primeiro plano estão Jesus e Pedro, enquantoJudas é mencionado três vezes no segundo plano, já sendo “inspira-do” por Satanás. Este é o verdadeiro “coadjuvante” do drama, men-cionado no início (v. 2) e no fim (v. 27).

2a cena (o traidor): ao lado de Pedro junta-se o Discípulo Amado, e opersonagem de Judas, “possuído” pelo Satanás, torna-se o centrodramático do momento final.

Veremos, depois, que a cena seguinte (13,31ss.) não está totalmente iso-lada do lava-pés e do anúncio da traição (13,2-30): Satanás, agora chamado“o chefe deste mundo”, é declarado vencido; Pedro continua como interlocutorde Jesus.

I. Abertura (13,1)

Depois do grande parêntese 12,37-50, voltamos à narrativa. O evangelis-ta retoma a linha do tempo: se, em 11,55, foi mencionada a proximidade daPáscoa, agora estamos imediatamente antes da Páscoa. Conforme a maneirajudaica de contar os dias, a noite da quinta-feira já é o início da sexta-feira,o “dia de preparação” (do sábado: cf. 19,14.31.42), portanto, 14 de nisan.Conforme Jo 19,31, neste ano, o sábado coincide com a festa da Páscoa (15de nisan), que começará na sexta-feira à noite. Portanto, a ceia de que falaJoão 13,2 não é a ceia pascal dos judeus, que será celebrada um dia maistarde, depois da morte de Jesus (cf. 18,28). Os outros evangelhos contam queJesus celebrou com os discípulos a ceia pascal (ver Mc 14,12 par.). ParaJoão, não se trata da ceia pascal, mas da ceia de despedida de Jesus.

A frase de 13,1 é muito solene. É a abertura do conjunto 13–20, anun-ciando a chegada da “hora” que vinha sendo preparada, passo a passo, naparte anterior (2,4; 7,6; 7,30; 8,20; 9,3-5; 12,23), e que agora se realiza (cf.17,1). Este início aponta, no horizonte, o fim da missão de Jesus, que émanifestar o amor do Pai (“amou-os até o fim”, cf. sobretudo 19,28-30, como repetido uso do tema “fim”) aos “seus que estavam no mundo” (cf. 17,9.11).É a hora de “passar deste mundo para o Pai” (cf. 13,3; 16,4-5.28; 17,4-5; etambém “subir para junto do Pai”, 20,17).

Jesus amou-os até o fim (13,1), assim soa a solene abertura da “hora”de Jesus, seu “enaltecimento” na glória do Pai, mediante a manifestação deseu amor até o fim, quando ele é elevado ao alto da cruz. A manifestaçãode seu amor aos “seus”, que o Pai lhe deu (10,29; 17,9), chega ao ponto

13,1

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culminante. A expressão “até o fim”, que pode significar “até o último mo-mento” ou “até a plenitude”, prepara a exclamação de Jesus na cruz: “Estáconsumado” (lit. “finalizado”; 19,30; cf. 19,28).

“Chegou a hora”

A primeira parte do Evangelho de João preparou a “hora” de Jesus, narran-do diversas atividades e de modo especial os “sinais”, ou seja, os milagrespelos quais Jesus se deu a conhecer como o Enviado de Deus, suas creden-ciais. Os sinais são importantes, pois mostram “de onde” Jesus é, e que“Deus está com ele” (>com. 2,9; 3,2). Colocam a gente diante da opção próou contra Jesus (cf. 6,59-71). Mas são provisórios: ainda não são sua obraprincipal. Em 2,4, Jesus avisou que “ainda não chegou sua hora”, para queo início dos sinais (2,11) não fosse confundido com sua obra principal,que será realizada apenas na “hora”, isto é, agora, a partir do cap. 13.

Podemos dizer assim: na primeira parte do evangelho, Jesus mostra, nossinais realizados perante o grande público, as suas credenciais proféticas.Quando, porém, na segunda parte, “chega a hora”, ele não mostra mais ascredenciais, mas o próprio rosto de Deus, que é amor. Dá sua vida por amor.Assim como Jesus age, amando até o fim, assim é Deus... Por isso, a “hora”é o momento da glória, da manifestação de Deus, glória de Deus e de Jesusmesmo (cf. 1,14), pois os dois atuam como “um só” (>com. 10,30). Em 7,30e 8,20 foi dito que não prenderam Jesus porque sua “hora” ainda não tinhachegado (cf. 7,45; 8,59; 10,31.39). Agora, sim, a hora chegou, a hora delevar tudo “até o fim”, como Jesus confirmará no momento da morte: “Tudoestá ‘finalizado’” (19,30).

II. O gesto de Jesus e seu sentido soteriológico (13,2-11)

Depois da abertura do “Livro da Glória” (13,1), os vv. 2-4 constituem aabertura para a ceia e o lava-pés propriamente. Gramaticalmente, constituemum único período, muito solene, que tem a frase principal no v. 4: “…levan-tou-se… tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura”. Os vv.2-3 se compõem de significativos complementos da frase principal.

Inicia-se “um jantar” (sem o artigo definido). Não se trata do banquetepascal (cf. supra). Todavia, não é uma refeição qualquer, mas um jantar decaráter comunitário. Os discípulos estão reclinados em almofadas, apoiadosno braço esquerdo.

Naquela altura, observa João num dos seus característicos comentários(>Intr. § 2.1.5), o diabo (>Voc.) já tinha seduzido Judas para entregar Jesus(v. 2b; lit.: “tinha posto no coração que Judas... o entregasse”; cf. Lc 22,3).A essa consciência diabólica de Judas contrapõe-se a consciência de Jesus —consciência de que o Pai colocou “tudo” (= semitismo para “todos”) em suas

2-4

13,1-30

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mãos e de que ele está no caminho de volta para o Pai, assim como ele saiude junto do Pai (v. 3, cf. 1,1.18; cf. 16,28; >exc. 17,26). O mensageiro deDeus está a caminho para prestar contas de sua missão.

Com essa consciência intensa, Jesus se levanta da mesa. Ele “depõe” seumanto e, com este, sua imagem de mestre, que ele reassumirá, com a devidaexplicação, nos vv. 12-13. (Há quem relacione o verbo “depor” no v. 4 com“depor a alma/vida” em 10,11.15.17, e cf. 13,37.30; 15,13.) Jesus “cinge”uma toalha à cintura (cf. o sentido simbólico de “cingir-se” em 21,18; cf. odono da casa que se cinge para servir seus servos fiéis, em Lc 12,37!). Estessimbolismos são importantes para compreender o sentido soteriológico/sal-vífico visado pelo gesto de Jesus (cf. acima, introdução a 13,1-30). Numa“transfiguração às avessas”, Jesus depõe a imagem de senhor e assume a“forma de servo” (cf. Fl 2,7; Jo 13,16).

Jesus derrama água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos(nos vv. 5-14 ocorre 8 vezes o verbo niptein, “lavar”, num total de 13 vezesno NT; cf. ainda Jo 9,7.11.15). João não diz que os discípulos sejam os Doze,mas 13,18-30 o supõe. (João supõe conhecida a tradição geral da ceia doSenhor, ainda que a conte de maneira diferente.) O gesto de Jesus vem forade hora: deveria ter acontecido antes de ir à mesa. Isso ressalta seu valorexpressivo: é um gesto profético.

Lavar os pés dos hóspedes que chegavam de viagem pelas estradaspoeirentas fazia parte da hospitalidade. Quem prestava esse serviço podiamser, com uma conotação de carinho, os filhos ou a esposa, ou, como mani-festação de dedicação, o próprio anfitrião (cf. Lc 7,44), mas normalmente eraconfiado a algum escravo. O gesto tinha uma conotação de humilhação tãoforte que certos rabinos proibiam que escravos judeus fossem obrigados aprestar esse serviço a seus patrões.

Consciente disso, Pedro reclama: “Senhor (!), tu me lavas os pés?” Umparalelo interessante encontra-se no romance José e Asenat (20,1-5), muitopopular naquele tempo: José protesta quando a noiva Asenat lhe quer pres-tar esse serviço, mas ela responde: “Teus pés são meus pés… nenhumoutro vai lavar teus pés”. Pedro viu no gesto a humilhação; Jesus, porém,a dedicação da própria vida. Pedro exprime que o gesto de Jesus é incom-preensível, pelo menos para quem ainda não conhece suficientemente omistério do Filho de Deus. Jesus responde que ele não é capaz de compre-ender agora; mais tarde, porém, compreenderá (ainda não é a hora decompreender, mas logo ela chegará, cf. 16,29; cf. também 13,36-38). Aincompreensão dos discípulos provém de que Jesus só pode ser compreen-dido à luz do “enaltecimento” e do dom do Espírito (cf. 2,22; 7,39; 12,6).

6-7

5

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Pedro não reconhece sua incompreensão. Pensa que o gesto de Jesus éum mero gesto de humilhação, tão inaceitável para ele como a predição desofrimento e morte em Mc 8,31-32. De fato, para quem pensa em termosde hierarquia, o mundo acaba quando o superior se torna inferior. Ele insiste:“Tu não me lavarás os pés nunca!” Jesus retruca: “Se eu não te lavar, nãoterás parte comigo”. “Ter parte” é a terminologia bíblica para falar da heran-ça, que é, no Antigo Testamento, a Terra Prometida e, daí, a salvação — emtermos joaninos, a vida. Não é possível comungar da vida do Filho semaceitar sua lógica do serviço radical.

No fim do cap. 13 aparecerá outra incompreensão de Pedro: pensa sercapaz de seguir Jesus, mas Jesus diz “não agora, porém mais tarde” (comono lava-pés, v. 7). A partir dessa nova incompreensão de Pedro (não sabeaonde Jesus vai), Jesus desenvolverá, no cap. 14, uma homilia, explicandoque ele vai introduzir os seus na nova Terra Prometida, onde estarão com ele(cf. 14,3; 17,24). A ameaça “não terás parte comigo” pode ser relacionada aisso. Se Pedro (ou qualquer discípulo) recusar o gesto de Jesus, não partici-pará do efeito da obra messiânica de Jesus, que imaginava bem diferente,não como um serviço de escravo.

Pedro se rende e, exagerado como sempre, pede a Jesus que lhe lavetambém as mãos e a cabeça. Ainda não pensa em termos de serviço, mas depurificação. Mas Jesus responde: “Quem tomou banho não precisa lavarsenão os pés” (alguns manuscritos omitem as palavras “senão os pés”, pro-vavelmente por simplificação). A frase tem uma ressonância muito signifi-cativa quando situada no contexto da iniciação cristã: o lava-pés não é umbanho como o batismo — do qual os Doze nem necessitam, pois já estãopurificados pela palavra de Jesus que acolheram (cf. 15,3), com exceção dotraidor (13,10c-11)... Mas o que todos precisam é acolher o gesto do lava-pés, que não significa a purificação batismal como tal, e sim, a prática doServo, em amor até o fim.

III. O sentido exemplar: a exortação dos discípulos (13,12-20)

Jesus volta à mesa e pergunta se entenderam o sentido de seu gesto.Explica-o. Os discípulos chamam-no de Mestre e Senhor (rabbi e mari, títulosdados aos escribas e rabinos pelos seus discípulos). Com razão, pois ele o é.Ora, se o Mestre e Senhor lhes lava os pés, certamente eles devem lavar os pésuns dos outros: tornar-se escravos uns dos outros pela caridade (cf. Gl 15,13b).E até uma imitação literal não estaria fora da perspectiva: na Igreja primitiva,as viúvas lavavam os pés dos “santos” (cf. 1Tm 5,10). Em João não são asviúvas que devem fazer isso, mas os Doze, os chefes da comunidade!

8

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Ora, entenda-se bem essa “imitação de Jesus”. Como dissemos na intro-dução desta passagem, o “imperativo” está baseado num “indicativo”; o quedevemos fazer está fundado sobre algo que nos foi dado, algo que é anteriorà nossa obrigação. Antes da obrigação moral vem o dom de Deus em Jesus.Assim como o “Servo” (cf. Fl 2,6-11; Is 53), Jesus torna-se escravo ao dara própria vida. É necessário primeiro aceitar isso de Jesus (cf. v. 8). Por outrolado, não basta que, passivamente, deixemos Jesus percorrer seu caminho deServo Sofredor. É no fato de segui-lo, ativamente, que mostramos em nossavida a aceitação de Jesus-Servo, que dá a própria vida (cf. Is 53; Jo 12,38).Importa “deixar lavar os pés” (= ser salvo) por Jesus, mas devemos também“lavar os pés uns dos outros” (= serviço fraterno).

Por causa de nosso tradicional moralismo, é bom insistir no “indicativo”,aceitar que Jesus seja o escravo, o “ninguém”, que faz de nós, “ninguéns”,o centro da atuação de Deus. Em Jesus acontece o “esvaziamento” de Deuspara nós. Só quando tivermos assimilado esse fato seremos capazes de “lavaros pés” uns aos outros sem nos julgarmos importantes ou impormos nossa“caridade” ou “filantropia” como mérito nosso. Imitar Jesus é imitar Deusque se esvazia por nós.

O lava-pés é um símbolo: significa mais do que o mero gesto material.“Interpretar na prática” o dom de Jesus significa não considerar Jesus como um“herói”, cujas façanhas vamos copiar, mas deixar aparecer o esvaziamento deDeus em nosso agir. O ato de amor de Jesus — o lava-pés e a doação da própriavida — é único e incomparável, um ato de Deus (os atos de Jesus são a obrado Pai). Torna-nos livres para viver em conformidade com este amor e, em totalliberdade, tornar-nos escravos na caridade. Assim, a morte de Jesus é dom emissão, “graça e verdade (fidelidade)” que nos liberta (cf. 1,17; 13,1) e missãopara realizarmos em nossa vida. Em 13,34-35 e 15,12, Jesus repetirá quase asmesmas palavras de 13,14, substituindo, porém, “lavar os pés” por “amar”:“Como eu vos amei, amai-vos uns aos outros” (“como-e-porque”: >exc. 15,12).

Jesus amou primeiro (cf. 1Jo 4,10.19), mas a partir daí é a nossa vez…Para insistir na imitação prática de seu exemplo, Jesus declara solenemente:“O servo não é maior do que seu senhor e o enviado não é maior do queaquele que o enviou” (v. 16; cf. Mt 10,24-25; Lc 6,40; e cf. infra, Jo 13,20).

Se os discípulos tiverem consciência disso e agirem de acordo com essaconsciência, serão “felizes”. Não no sentido de mera satisfação psicológica,mas no sentido profundo de uma “bem-aventurança”, declaração de salvaçãoda parte de Deus (v. 17). A participação com Cristo, ponto de partida de todaessa cena exemplar (v. 8), plenifica-se na imitação de seu exemplo, inspiradano reconhecimento de sua autodoação.

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Todavia, Jesus não felicita aquele que vai entregá-lo. Anuncia o escân-dalo (= pedra de tropeço) que é a traição (v. 18-19). Ora, este escândalo nãoabala Jesus, que conhece aqueles que escolheu. A eleição não lhes tira aliberdade de se opor a ele; o mesmo já disse Deus a respeito do povo eleito(Dt 9,6…). O “escândalo” de Judas — primeiro passo do “escândalo dacruz” (>com. 6,62) — não contradiz a lógica de Deus. Está na Escritura:“Aquele que come do meu pão (= aquele que recebe meu benefício ousustento) levantou contra mim o calcanhar” (Sl 41,9; cf. Mc 14,18 par.; osrabinos lembram aqui Davi e Aquitofel, 2Sm 15,12). Ainda hoje há os que“comem o pão” da mesa do Senhor, traindo-o nos seus irmãos. Mas a lógicado serviço é mais forte.

O cumprimento das Escrituras e da palavra de Jesus, em João

O evangelho de Mt é que mais insiste no cumprimento das Escrituras, e issono evangelho todo (12 vezes). Também João apresenta diversas “fórmulas decumprimento”, referentes ao cumprimento das Escrituras (= Antigo Testamen-to) ou das próprias palavras de Jesus. Todas elas se encontram no contexto dapaixão e morte. Isso mostra que João vê o cumprimento do projeto de Deussobretudo no dom da vida de Jesus.

• 12,38 (no epílogo da 1ª parte): a incredulidade de Israel (Is 6,9-10);• 13,18: a traição pelo amigo (Sl 41,10);• 15,25: o ódio injustificado do mundo (Sl 69,5; 35,19);• 17,12: “nenhum deles se perdeu a não ser o filho da perdição” (referência

incerta); cf. 13,18;• 18,9: referência a 17,12 como palavra do próprio Jesus;• 18,32: cumprimento da palavra de Jesus sobre a “exaltação”, cf. 12,32-33;• 19,24: a partilha das vestes (Sl 22,19);• 19,36: não quebrarão seus ossos (Sl 34,21; Ex 12,10.46).

Em 18,9 encontramos a justaposição da Escritura e das próprias palavras deJesus; isso se nota ainda em outros lugares, p.ex. em 2,22 e na passagem12,37-50. As palavras de Jesus têm o mesmo peso que as Escrituras (doAntigo Testamento), que tanto para os rabinos como para os primeiros cris-tãos eram referência decisiva para reconhecer a missão divina de Jesus.Segundo João, além de ter o testemunho da Escritura, do Pai e do Espírito(cf. 15,26), Jesus pode dar testemunho de si mesmo (8,18).

Jesus diz isso “desde agora”, para que eles, “quando acontecer (a horada traição)”, possam continuar acreditando firmemente que “eu [o] sou”.Como interpretar esta observação? Há quem interprete que a realização dapredição da traição provará o conhecimento e ser divino de Jesus (“Eu sou”).

18-19

19-20

13,1-30

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O LIVRO DA GLÓRIA

262

Isso é pouco. Jesus anuncia sua vitória na hora da traição. Aponta para a horade seu “enaltecimento”, manifestação de sua missão de Filho do Homem eda presença, nele, de Deus mesmo (“eu o sou”, no sentido de 8,28 etc.).Logo mais, quando Judas acionar o mecanismo da traição, Jesus proclamaráa glorificação do Filho do Homem (13,31).

O sentido é todavia mais amplo ainda. “Quando acontecer” não evocaapenas a hora da cruz de Jesus, mas também a hora da aflição dos fiéis nomundo, depois de Jesus (cf. 16,4), até hoje. Por isso, pensando no futurocheio de conflitos anunciado por Jesus, João recorda a palavra sobre a so-lidariedade entre o Mestre e os discípulos que ele vai enviar. Com o soleneduplo “amém”, Jesus proclama: “Quem recebe aquele que eu envio, a mimrecebe; e quem me recebe recebe aquele que me enviou” (v. 20; cf. Mt10,40; Lc 10,16). No contexto da Paixão de Jesus, João cita diversas vezespalavras semelhantes ao Discurso Missionário de Mt 10 (12,26, cf. Mt 10,39;12,25, cf. Mt 10,38; 12,44, cf. Mt 10,40; 13,16, cf. Mt 10,24-25; 13,20, cf.Mt 10,40; 15,18–16, cf. Mt 10,17-25). Sem discutir se João usou Mt, pode-mos dizer que ele inseriu o mesmo tema na parte do texto que mais subli-nhava a união com Jesus no sofrimento. O caráter artificial dessas inserçõesaparece claramente em 13,16.20, que não têm ligação direta com os temasque precedem e seguem. Mas isso não lhes tira o valor: servem para atua-lizar, no contexto da missão da Igreja, o que acontece a Jesus.

IV. Acionamento da traição (13,21-30)

Depois de ter anunciado a traição (v. 18), Jesus experimenta a perturba-ção que todo ser humano experimenta na presença da morte (cf. 11,33;12,27; Sl 42,6), ainda mais por ser um dos seus o instrumento dessa morte,que é símbolo do poder das trevas. “Um de vós vai me entregar”: perplexos,os discípulos olham um para o outro. Quem será? (Em Mc e Mt, eles duvi-dam de si mesmos; em Lc, perguntam por um colega específico. Em João,as duas perguntas parecem estar presentes.)

Um dos discípulos, lit. “aquele que Jesus amava”, seu homem de confian-ça, está recostado bem pertinho dele (lit. “no regaço”), no lugar de honra.Pedro dá-lhe sinal para que pergunte quem é o traidor. Assim, num contrastedramático, no momento em que a apostasia se encarna em Judas, aparece emcena, pela primeira vez, o “Discípulo Amado”. É o sinal de que estamos agorano momento decisivo da iniciação dos discípulos no mistério de Cristo, confor-me o evangelho de João (>Intr. § 3.3.2). Está aí o discípulo perfeitamente ini-ciado. Ele pode saber tudo, ele é capaz de compreender tudo. E para os outros,é o momento de decidir: um decidirá contra, outros tentarão seguir Jesus…

21-22

23-24

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O Discípulo Amado

Cinco passagens do Quarto Evangelho mencionam o “Discípulo Amado”,sempre com o verbo agapân, menos em 20,2, onde é usado filein (sobre ouso desses verbos, >com. 15,12):• 13,23: “o d. que Jesus amava” — recostado a seu lado;• 19,26: “o d. que ele amava” estando ao pé da cruz;• 20,2: “o outro d., o qual Jesus amava”, indo para o túmulo;• 21,7: “aquele d. que Jesus amava” reconhece Jesus ressuscitado;• 21,20: Pedro vê atrás de si “o d. que Jesus amava”.

Esta lista deve ser completada pelos casos seguintes:• Jo 21,24 confirma que esse discípulo é a testemunha do evangelho;• em 18,15-16 é mencionado um “outro discípulo”, conhecido do sumo

sacerdote; este tem boas chances de ser o mesmo “Discípulo Amado”;• em 19,35 é mencionado “aquele que viu” como testemunha por excelên-

cia: será o “Discípulo Amado” ao pé da cruz, cf. 19,26?

Menos claro é o texto de Jo 1,37-42. Aí, dos dois discípulos que seguemJesus, só um é depois identificado (André); geralmente procura-se identifi-car o outro, anônimo, com o Discípulo Amado, mas não há argumentos paratanto. É preferível ver nele Filipe (>com. 1,35.43). Todos os outros lugaresonde aparece o Discípulo Amado se encontram na segunda parte de João eo apresentam como aquele que conhece o mistério de Jesus. Ele é a teste-munha por excelência. Por isso, embora reconhecendo a primazia de Pedro,não precisa receber deste a sua autoridade. Ele pode ser considerado comoo apóstolo por trás do Evangelho de João.Houve muitas tentativas de identificar o misterioso discípulo. A identifica-ção com Lázaro é improvável. Não basta dizer que Jesus “amava” Lázaro,pois o mesmo é dito a respeito de suas irmãs. Além disso, por que ficariaenvolto em mistério, a partir do cap. 13, alguém que foi nominalmenteapresentado no cap. 11? Tentou-se, também, identificar o discípulo comJoão Marcos, que era habitante de Jerusalém e ao qual se atribui o Evan-gelho de Marcos, mas não há indicações da tradição antiga neste sentido.A tradição identifica o Discípulo Amado com o apóstolo João, filho deZebedeu, amplamente mencionado como personagem importante nos outrosevangelhos e nos Atos, mas curiosamente passado sob silêncio no QuartoEvangelho. Todavia, além de complexa, essa questão é pouco importante(>Intr. § 2.3.2 e >com. cap. 21).A opinião mais razoável é reconhecer no Discípulo Amado a testemunhapor excelência. Ele sabe que Jesus não se abalou com a traição de Judas(13,25-26), ele é a testemunha da cruz (19,35), ele pode com plena autori-dade anunciar e interpretar a mensagem a respeito de Jesus (neste sentidoele é também o símbolo de todo iniciado perfeito).

13,1-30

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O LIVRO DA GLÓRIA

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O discípulo pergunta a Jesus, ao pé do ouvido, quem será o traidor. Jesusresponde: “É aquele a quem vou dar um pedaço de pão passado no molho”.Com um gesto de anfitrião (cf. Rt 2,14), Jesus passa um bocado de pão commolho a Judas e, “depois do bocado, Satanás entrou em Judas”! A “sedução”de Judas por Satanás, apontada no v. 2, agora virou quase identificação (cf.6,70). O sentido disso é deixar claro que quem age na traição de Judas é opróprio “chefe deste mundo”.

Jesus manda Judas executar logo o que pretende fazer. Como nos “si-nais”, Jesus guarda a soberania também no dom de sua vida (cf. 10,18). Masos discípulos (ainda não perfeitamente iniciados, com exceção talvez doDiscípulo Amado) entendem que Jesus fala em comprar comida ou dar algoaos pobres, pois Judas tomava conta da caixa. Ora, quem se lembra daobservação de 12,6 percebe a ironia dessa frase. Judas não é movido pelodesejo de dar esmolas, mas pela cobiça, característica do chefe deste mundoe dos que se identificam com o mundo (cf. 1Jo 2,15-16). Apesar da confi-dência feita ao Discípulo Amado, João mantém a representação sinóptica deque os discípulos não sabem quem é o traidor (cf. Mc 14,20-21 par.; mas Mt26,25 acrescenta que o próprio Judas o sabe).

Tendo tomado (lit. “recebido/acolhido”) o pedaço de pão (cf. v. 27a),Judas sai ligeiro. É noite... A concisa menção à noite não apenas tem umefeito dramático inegável, mas evoca também todo o simbolismo da noitecomo hora das trevas (cf. 9,4b; Lc 22;53). Judas é aquele que age de noite,e tropeça (cf. Jo 3,19; 11,10; 12,35). Neste sentido, não só o DiscípuloAmado, mas também Judas tem valor simbólico. Um e outro representam,respectivamente, os filhos da luz e os das trevas (cf. 1Jo 1,6-7).

A perícope do lava-pés revela um sentido muito profundo para asnossas comunidades. Com o amor de Jesus até o fim diante dos olhos(13,1), aprendemos a necessidade de, na entrega da fé, aceitar seugesto único e insubstituível de doação da vida por nós (13,2-11), paraque nós também demos a vida pelos irmãos (cf. 1Jo 3,16), tornando-nos escravos uns dos outros (cf. Gl 5,13).

A humildade de Jesus não é apenas uma amostra de virtude. É umarevolução. Acaba com o desnível entre senhor e servo. “Em Cristonão há escravo nem livre…” (Gl 3,28). Seu gesto também não é umsímbolo extrínseco do “esvaziamento” na cruz, mas faz parte intrín-seca do modo em que a Palavra de Deus é “carne”. Não é símbolo,mas prelúdio da cruz.

25-27a

27b-30

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A ideologia dominante do mundo acha isso ridículo e, assim como seopôs a Cristo, tentará reprimir o projeto da fraternidade cristã. Haveráaté traidor no meio. Mas Cristo foi até o fim e anunciou tudo isso, paraque nunca duvidemos de que ele é quem nos revela o agir de Deusmesmo, ao qual nós podemos unir-nos na solidariedade com ele. OSenhor e Mestre se torna escravo. Os que participam de sua mesa —não só as viúvas (1Tm 5,10) — devem lavar os pés dos irmãos, não sónuma liturgia bem higiênica na Quinta-feira Santa, mas na realidade dodia-a-dia. A comunidade cristã não pode ser determinada pelas classese divisões que a sociedade estabelece — coisas “deste mundo”.

Ora, o lava-pés de Jesus não é um benfazejo banho no fim da cami-nhada, e sim, o início da uma nova caminhada, para dentro da noiteque se revelou presente pela traição. Esse também é o caminho dascomunidades.

O “ADEUS” (13,31–14,31)

I — 31Depois que Judas saiu, Jesus disse: “Agora foi glorificado o Filhodo Homem, e Deus foi glorificado nele. 32Se Deus foi glorificadonele, Deus também o glorificará em si mesmo, e o glorificará logo.33Filhinhos, por pouco tempo eu ainda estou convosco. Vós meprocurareis, e agora vos digo, como disse também aos judeus: ‘Paraonde eu vou, vós não podeis ir’. 34Eu vos dou um novo mandamento:amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vósdeveis amar-vos uns aos outros. 35Nisto todos conhecerão que soisos meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”.36Simão Pedro perguntou: “Senhor, para onde vais?” Jesus respon-deu-lhe: “Para onde eu vou, não podes seguir-me agora; mais tardeme seguirás”. 37Pedro disse: “Senhor, por que não posso seguir-teagora? Eu darei minha vida por ti!” 38Jesus respondeu: “Darás tuavida por mim? Amém, amém, eu te digo: não cantará um galo antesque me tenhas negado três vezes.

II — 14 1 “Não se perturbe o vosso coração! Credes em Deus, credetambém em mim. 2Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se nãofosse assim, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós. 3Edepois que eu tiver ido e preparado um lugar para vós, voltarei e vos

13,31–14,31

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O LIVRO DA GLÓRIA

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levarei para junto de mim, a fim de que, onde eu estiver, estejais vóstambém. 4E para onde eu vou, conheceis o caminho”.5Tomé disse: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemosconhecer o caminho?” 6Jesus respondeu: “Eu sou o caminho, averdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. 7Se meconhecestes, conhecereis também o meu Pai. Desde já o conheceise vistes”.8Filipe disse: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta”. 9Jesusrespondeu: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conhe-ces? Quem me viu, viu o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos oPai’? 10Não acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?As palavras que eu vos digo, não as digo por minha conta; é o Paique, permanecendo em mim, realiza as suas obras. 11Crede em mim:eu estou no Pai e o Pai está em mim. Crede, ao menos, por causadestas obras.12“Amém, amém, eu vos digo: quem crê em mim fará as obras queeu faço, e fará ainda maiores do que estas. Pois eu vou para o Pai,13e o que pedirdes em meu nome, eu o farei, a fim de que o Pai sejaglorificado no Filho. 14Se pedirdes algo em meu nome, eu o farei.

III — 15“Se me amais, observareis os meus mandamentos, 16e eu pedirei aoPai, e ele vos dará um outro Defensor, que ficará para sempre con-vosco: 17o Espírito da Verdade, que o mundo não é capaz de receber,porque não o vê, nem o conhece. Vós o conheceis, porque ele per-manece junto de vós e está em vós. 18Não vos deixarei órfãos: euvoltarei a vós. 19Ainda um pouco de tempo e o mundo não mais meverá; mas vós me vereis, porque eu vivo, e vós vivereis. 20Naqueledia sabereis que eu estou no meu Pai, e vós em mim, e eu em vós.21Quem acolhe e observa os meus mandamentos, esse me ama. Ora,quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me mani-festarei a ele.22Judas (não o Iscariote) perguntou-lhe: “Senhor, como se explicaque tu te manifestarás a nós e não ao mundo?” 23Jesus respondeu-lhe: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai oamará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. 24Quem nãome ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra que ouvisnão é minha, mas do Pai que me enviou.25“Eu vos tenho dito estas coisas enquanto estou convosco. 26Mas oDefensor, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vos

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ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito. 27Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não é à maneira do mundo que eua dou. Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração. 28Ouvisteso que eu vos disse: ‘Eu vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis,ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu.29“Disse-vos isso agora, antes que aconteça, para que, quando acon-tecer, creiais. 30Já não falarei mais convosco, pois vem o chefe destemundo. Ele não pode nada contra mim. 31Mas é preciso que o mundosaiba que eu amo o Pai e faço como o Pai mandou. Levantai-vos!Vamos embora daqui!”

Concluídos o gesto que prefigura a morte salvífica (o lava-pés) e o “acio-namento” da traição, a narrativa joanina abre uma pausa para um amplodiálogo sobre a existência dos discípulos no mundo depois da morte do seuMestre. Só depois reaparecerá o traidor, quando a narrativa continuar com orelato da morte (caps. 18–20).

Os elementos constitutivos do diálogo são tradicionalmente agrupados emdois “discursos” e uma prece conclusiva: 13,31–14,31 (o diálogo básico, cha-mado “primeiro discurso de despedida”); 15,1–16,33 (o chamado “segundodiscurso”, sem nova introdução); 17,1-26 (a “oração sacerdotal”). O diálogobásico termina, em 14,31, com um convite a ir embora (semelhante ao de Mc14,41-42). Ora, como a partida só se efetiva em 18,1, levanta-se a hipótese deque os caps. 15–17 foram inseridos mais tarde (quando da redação final).

Nota: O gênero literário dos discursos de despedida

Na composição do adeus de Jesus, João segue o esquema de algumasnarrativas do AT, que entre o relato dos dias finais e a morte do heróiintroduzem um capítulo de despedidas e bênçãos: Gn 47,29–49,33 (Jacó), Js22–24 (Josué), 1Cr 28–29 (Davi; cf., em proporção menor, 2Rs 2,1-10); etodo o livro do Deuteronômio é um grande discurso de despedida de Moisés,com o cântico e as bênçãos em Dt 32–33. Por isso, há quem chame Jo 13–17 “o Deuteronômio do Novo Testamento”.

Nos livros deuterocanônicos, o discurso de Tobias (Tb 14,3-11) ofereceum paralelo interessante. Na literatura intertestamentária, contemporânea doNovo Testamento, os discursos de despedida se multiplicam: Henoc 91ss.;2Esdras 14,28–36; 2Baruc 77ss.; Noé em Jubileus 10. Veja também Moisésem Flávio Josefo, Antiguidades IV, 8, 45-47 (§ 309-326).

No NT , a analogia mais interessante é a despedida de Paulo em Mileto,At 20,17-38 (embora, neste caso, a morte não siga imediatamente). Também

13,31–14,31

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O LIVRO DA GLÓRIA

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as cartas pastorais de Paulo podem ser consideradas como discursos dedespedida em forma de carta: “testamento literário”.

Em alguns casos, a “despedida” ocorre no quadro de uma refeição, p. ex.em Jubileus 35,27 (Rebeca), 36,17 (Isaac) e no Testamento de Neftali 1,2.Temas comuns são, além da despedida/partida, a dor da separação, instru-ções de vida, os mandamentos de Deus, o amor entre os filhos, a unidade,o futuro profeticamente apontado (Henoc 91,1: “O Espírito é derramadosobre mim para que eu vos mostre tudo o que vai acontecer a vós”; cf. Jo16,13!). Também a paz e a proximidade de Deus, a continuação do “nome”e a indicação de continuadores da obra (Dt 31,23: Josué). Uma bênção ouoração final (como em Jo 17) encontra-se em Dt 32 (Moisés) e Jubileus22,28-30 (Abraão), sem esquecer as bênçãos de Jacó em Gn 49.

*

A saída de Judas (13,31) introduz um novo momento temporal e modi-fica profundamente o cenário. Inicia-se um diálogo articulado por interven-ções dos discípulos: Simão Pedro (13,36); Tomé (14,5), Filipe, (14,8), Judas“não o Iscariote” (14,22). Assim fica claro que Jesus fala para “os seus”, osiniciados, que recebem agora a última instrução. Que este diálogo é separadodo gesto simbólico (o lava-pés) pela saída de Judas Iscariote é significativo:Judas optou pela traição, não pela participação no mistério de Jesus. Osprimeiros versículos, 13,31-32, oferecem a chave de leitura: a glorificação jáé efetiva. Jesus fala agora, abertamente, à luz da glorificação. Este é omistério que só os fiéis, embora fracos (13,38!), podem receber.

Não convém introduzir uma separação entre 13,31-38 e 14,1-31, como muitoscomentários fazem. O tema da partida e do caminho de Jesus (13,33.36-38) servede base para o início do cap. 14. Além disso, 13,31-33 e 14,30-31 emoldurammuito bem o conjunto. Por outro lado, notam-se algumas costuras no atual texto,que parece ter sido completado na redação final (p. ex., a inserção de 13,34-35).

Difícil de subdividir, o discurso é polarizado pelo tema da fragilidadedos discípulos, por um lado, e do “adeus” e da ausência do Senhor, poroutro. Para o diálogo inicial, João parece ter combinado a idéia da partidade Jesus (13,33) com o conhecido tema da tradição da última ceia, a prediçãoda negação de Pedro (13,36-38, cf. Mc 14,26-31 e Jo 16,32). Depois começao quase-monólogo de Jesus, desenvolvido a partir de temas do Êxodo quefazem parte da atmosfera pascal. Jesus prepara um lugar para os seus (cf. Dt1,33), exorta-os a não ter medo (Dt 1,29 etc.). A Terra Prometida seria aprefiguração dos bens escatológicos que, com a partida de Jesus, se tornampróximos, a ponto de estarem presentes! A atmosfera do Êxodo se faz sentir

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também por certas semelhanças na estrutura dramática, por exemplo, Jesusno papel de guia e mediador, como Moisés.

Percebemos neste capítulo fortemente a tensão entre a “escatologia futu-ra” e a “escatologia presente” (ou “inaugurada”), que permeia o evangelhocomo um todo. Os diálogos no início do cap. 14, baseados na técnica lite-rária do mal-entendido e duplo sentido (>Intr. § 2.1.7), servem para conduziro leitor a uma compreensão mais profunda da realidade escatológica que de-ve ser vivida já. Neste quadro compreendem-se os demais temas: a unidadede Jesus e do Pai, a oração, o Espírito-Paráclito, os mandamentos, a paz…

I. Diálogo introdutório (13,31-38)

A saída de Judas simboliza a hora das trevas (“era noite”, v. 30b; cf. Mc14,41; Lc 22,53), mas para Jesus, é a hora da luz, da glória (vv. 31-32). Como mesmo interruptor com o qual Judas, ao acionar o complô mortal, apagoua luz (v. 30), Jesus a acende (v. 31)! Aos “fiéis” que “permaneceram” comele — fiéis, embora fracos (cf. v. 38) —, Jesus explica o que significa estemomento: o afastamento da terra para ser elevado na cruz e na glória. “Ago-ra foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”. O uso davoz passiva indica que Deus é o agente (“passivo teológico”). O termo“glorificar” pode ser entendido no sentido de “manifestação da glória”, re-velação da presença divina. A saída de Judas desencadeou a ação decisiva,a morte de Jesus, que é a manifestação de Deus-Amor em Jesus, portanto,a glorificação tanto de Jesus como do próprio Pai.

O v. 32 anuncia a glorificação para o futuro próximo: Deus manifestaráe glória do Filho do Homem “em si mesmo” e, isso, “logo” (cf. o tema dopouco tempo desenvolvido a seguir). “Em si mesmo” pode significar: “nasua presença”. O v. 31 fala da glorificação já iniciada pela presente entregada vida de Jesus; o v. 32 relaciona isso com a iminente entronização gloriosado Filho do Homem na presença do Pai: seu “enaltecimento”. No v. 31, aglória do Pai está em Jesus, na consumação de sua obra terrestre; no v. 32,a glória de Jesus está no Pai, na realidade celestial22.

Jesus se despede. A cena lembra a despedida do patriarca Jacó (Gn 49).“Filhinhos”... Até agora nunca os chamou assim (cf. também Mc 10,24). Éa linguagem do Mestre para os discípulos. Mas “filhinhos” é também otermo que 1Jo 2,1.12.28 etc. usa para se dirigir aos fiéis. Jesus fala agora aosfiéis como se já constituíssem a comunidade eclesial.

31

33

22. As primeiras palavras do v. 32, que reassumem o fim do v. anterior (“se Deus foi glori-ficado nele”), faltam nos melhores manuscritos. Com ou sem elas, o sentido é o mesmo.

13,31–14,31

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O LIVRO DA GLÓRIA

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“Por pouco tempo (cf. o “logo” do v. 32) eu ainda estou convosco. Vósme procurareis, e agora vos digo, como eu disse também aos judeus: ‘Paraonde eu vou, vós não podeis ir’”. Jesus disse aos “judeus” (a comunidadeadversária) que não podem chegar aonde ele vai (7,33-34; cf. também 8,21).Agora ele diz a mesma coisa à sua comunidade. É uma provocação retórica,pois veremos que, logo mais, ele vai dizer-lhes aonde vai e aonde eles opoderão seguir (14,1-6), mas não agora... (os vv. 36-38 aprofundam essedetalhe; cf. infra). Mais tarde os fiéis estarão onde está Jesus (14,3), à dife-rença dos incrédulos, que nunca chegarão aí (8,21).

Entretanto, Jesus lhes deixa, para o tempo que deverão passar sem suapresença física, uma “orientação” — pois é este o sentido do hebraico torá,geralmente traduzido como “mandamento”: “Eu vos dou um novo manda-mento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vósdeveis amar-vos uns aos outros”. Este tema é aprofundado em 15,9-17 (vejaali). Aqui basta observar o termo “novo”. O mandamento do amor nãoé novo, pois é antigo (Lv 19,18.35), contudo novo em Cristo e em nós(1Jo 2,7-8): “novo” significa aqui o contexto novo, escatológico, do manda-mento, agora que Jesus mostra “até o fim” o que é amar (Jo 13,1) e nosconvida a seguir seu exemplo, na presença da salvação que nele tem seufundamento.

O tema do v. 33 continua no v. 36. Pedro fica intrigado. Quer saberaonde Jesus irá, que ele não possa segui-lo. Como no lava-pés, Jesus respon-de: “mais tarde” (cf. 13,7). E como no lava-pés, Pedro se faz de valente. Eleporá em jogo sua vida (lit. “pôr/dar a alma”, cf. 10,11.15.18) por Jesus!“Darás tua vida por mim?”, responde Jesus. “Amém, amém, eu te digo: nãocantará um galo antes que me tenhas negado três vezes”.

II. “Eu vou…” (14,1-14)

Depois de abalar a ingênua autoconfiança de Pedro, Jesus pronunciapalavras reconfortadoras para explicar o sentido de sua despedida. No diá-logo introdutório, como alhures, Pedro foi o porta-voz dos Doze. As palavrasda resposta de Jesus dirigem-se, portanto, ao grupo dos Doze (no plural) e,por intermédio deles, à comunidade dos fiéis.

“Não se perturbe o vosso coração!” O próprio Jesus ficou “perturbado nocoração” na presença da morte (12,27; 13,21); agora reconhece o mesmosentimento nos seus. “Credes em Deus, crede também em mim!” Depois queMoisés conduziu o povo de Israel através do mar dos Juncos, “o povo tevefé em YHWH Deus e em Moisés também” (Ex 14,31). Este texto era lidona Páscoa. Todos o conheciam. Estarão passando por um novo êxodo?

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O conjunto de 14,1-3 lembra, de fato, a despedida de Moisés, que animao povo a entrar na Terra Prometida (Dt 1,29; 31,6.7.23; cf. Js 1,6.7.9); amorte de Jesus é, em certo sentido, a preparação para entrar na Terra Pro-metida. Na “subida” rumo a essa terra, Deus andava à frente para prepararum lugar para o povo (Dt 1,33). É o que Jesus vai fazer. “Na casa (= família,lar) de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, eu vos teria dito. Voupreparar um lugar para vós” (ou: “Se não fosse assim, será que eu vos teriadito que vou preparar-vos um lugar?”). O termo “morada” é da mesma raizque “permanecer” (>Voc.), termo preferencial do Quarto Evangelho, e podeevocar o permanecer unido a Jesus e ao Pai, tema que voltará com freqüên-cia nas palavras do “adeus” (>exc. 15,4). É também a resposta final aodesejo de permanecer lá onde permanece o Mestre (1,38). Jesus apresenta-se aqui como o Filho que tem plenos direitos na casa do Pai e dispõe das“moradas” para aqueles aos quais propiciar a liberdade de filhos, a cidadania(cf. 8,35-36; 17,23-24).

Na linguagem simbólica de João, a nova realidade supera a prefiguraçãoque foi o êxodo do Egito. Jesus não só vai preparar, em nome de Deus, umlugar. Fará muito mais do que isso: “Depois que eu tiver ido e preparadoum lugar para vós, voltarei e vos levarei para junto de mim, a fim de que, ondeeu estiver, estejais vós também” (v. 3). Assim se realizará o que, por ora, é im-possível para os discípulos: estar onde Jesus está, seguir Jesus aonde ele vai(cf. 12,26; 13,33.36-38 — para os que não crêem, é definitivamente impossí-vel: 7,34; 8,21). Provavelmente os discípulos entenderam essas palavras nosentido de que Jesus na sua parusia os levasse consigo para seu domínio — algocomo o reino de mil anos (cf. Ap 20,1-7) —, mas o sentido pode ser outro…

Para provocar a compreensão, Jesus acrescenta: “Para onde eu vou,conheceis o caminho” (v. 4). No nível do leitor, isto é, para a comunidadedos iniciados, está sendo explicado o sentido da trajetória e obra de Jesus;no nível da narrativa, entretanto, os interlocutores (os Onze) ainda não co-nhecem seu “enaltecimento”. Estão no ponto de vista pré-pascal, não podementender (cf. 2,22; 12,16). São ainda aprendizes. Ora, mesmo iniciados, tam-bém os membros da comunidade serão eternos aprendizes. Por isso podemosver em Tomé, o realista, o representante típico do fiel comum da comunidadejoanina (cf. 20,25). Ele observa que nem sequer sabe aonde Jesus vai, emuito menos o caminho!

“O caminho, a verdade e a vida sou eu”, responde Jesus. Para conhecero caminho e divisar sua trajetória, que conduz à vida, basta olhar para Jesuse seu caminho. O que se vê em Jesus é o caminho. Jesus é nosso caminhoa trilhar. Tendo sido conduzido por Deus através do deserto, o povo de Israel

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podia enfrentar com fé a entrada na Terra Prometida, apesar das lutas que oesperavam (Dt 7,17-21; Js 1,6-9). Essas exortações de Moisés não visavamtanto ao caminho geográfico, mas à prática da palavra de Deus. Tendo acom-panhado Jesus, conhecemos sua prática: essa é que nos leva ao Pai, tanto poraquilo que ele faz como por nossa participação e seguimento. Aos Onze, o ca-minho já percorrido com Jesus mostrava o caminho a percorrer; a nós omostra a memória de Jesus, transmitida pelas testemunhas (em primeirolugar, o evangelista).

Caminho, verdade, vida

“Caminho”, na Bíblia, significa muitas vezes o modo de proceder, a práticade vida (cf. Sl 1; também a doutrina evangélica dos dois caminhos, Mt 7,13-14). Ainda hoje, na doutrina judaica, a “moral” se chama halaká, ou seja,“o caminhar”. No Dt, o caminho geográfico para a Terra Prometida é umaalegoria da prática da vida, sobretudo a fidelidade ao Deus verdadeiro comtudo o que isso implica (Dt 8,6; 9,2 etc.). Cedo a imagem de “preparar umcaminho para o Senhor no deserto” (para a volta dos exilados), de Is 40,3,foi interpretada num sentido moral, especialmente na Regra da Comunidadede Qumran (1QS 8,12-16) e nos evangelhos (Mc 1,3 par.).

Em relação à “verdade”, devemos apontar textos como Sl 86,11, que põe osdois conceitos em paralelo. Em Sl 119,30; Tb 1,3; Sb 5,6 fala-se do “caminhoda verdade”. Os escritos de Qumran opõem de maneira dualista o caminho doespírito da verdade ao do espírito da iniqüidade (1QS 4,15-16). 2Pd 2,2.15opõe o caminho da verdade ao caminho de Balaão, o sedutor do povo.

Quanto ao caminho da “vida”, observe-se a conotação escatológica em Pr15,24. Lembrando Dt 30,15.19, Jr 21,8 contrapõe os caminhos da vida e damorte. Sl 16,11 fala da revelação do caminho da vida ao homem.

Na tradição sapiencial, as imagens se combinam. Pr 5,6 apresenta a Sabe-doria oferecendo aos homens o caminho da vida (cf. Pr 6,23; 10,17). Con-vém mencionar aqui o conhecido texto da versão latina de Sr 24,25 (cf.Bíblia de Jerusalém, nota): “Em mim se encontra toda a graça do caminhoe da verdade, em mim toda esperança de vida e de força”, glosa talvezinspirada por Jo 14,6 e, possivelmente, testemunha antiga da ligação entrea Sabedoria e essa palavra do discurso de Jesus.

Com certeza João conhecia o uso do termo “o caminho” para indicar omodo de viver e a comunidade cristã, sinônimo de salvação, como apareceem At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14.22. Também a comunidade de Qumranintitulava-se “o caminho” (1QS 9,17-18; CD 1,3 etc.). Significado seme-lhante, sugerido pela tradição bíblica, pode estar conotado no uso joaninoda imagem do “caminho”. Se o Cristo joanino é “eclesial”, com mais razão

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ainda pode ser chamado “o caminho”. Então Jo 14,6 deve ser lido numadimensão comunitária: Jesus é o caminho da verdade e da vida, não tantopor causa de uma adesão mística individual a ele, mas antes por causa dafidelidade a ele em sua comunidade — finalidade principal da mensagem doQuarto Evangelho.

Não façamos de Jesus um desses gurus que “vendem” caminhos de auto-ajuda, sabedoria transcendental ou seja lá o que for. Jesus é o Caminho. Oque nos conduz à Vida, o dom de Deus por excelência, não é a teoria queele ensina, mas a prática que ele realiza em sua pessoa. E ele é também aVerdade: Deus que se manifesta e que é fiel. Pautar nossa vida na prática deJesus, fazer dele o caminho, é a única maneira garantida de chegar à Vidaplena: “Ninguém vai ao Pai senão por mim”, i.é, por Jesus atualizado em suacomunidade. Ele é a Vida: quem o acolhe recebe a Vida (cf. 6,35 etc.).

Isto pode parecer muito exclusivista para nossa mentalidade atual. Porisso, é preciso ler o Quarto Evangelho no seu contexto histórico e social. Apreocupação de João não era abrir o diálogo com o mundo pós-moderno epós-cristão, mundo da internet e da comunicação ilimitada. Seus leitores/ouvintes são os membros da comunidade. Queria mostrar àqueles que, dire-tamente ou por meio da comunidade (cf. 20,29), chegaram a conhecer Jesusde Nazaré, que para eles a salvação não estava na volta à Sinagoga, nem emqualquer outro caminho que não passasse pelo Cristo que eles conheciam(cf. 10,7.9). Ora, até certo ponto, essa preocupação continua atual. Decerto,um jovem que de Cristo só conhece caricaturas pode proveitosamente fazeralguns passos no caminho de Buda ou de Lao-Tsé; um afro-brasileiro con-vivendo com cristãos de conveniência pode encontrar resposta religiosa melhornos seus orixás. Mas quem uma vez entendeu o sentido vital de Jesus deNazaré não pode, por mera curiosidade ou consumismo religioso, ficar pu-lando de uma crença para outra. Crer em Jesus não é surfar na internet oupassear entre as prateleiras de um hipermercado… É optar por um caminho,o de Jesus (que não se identifica necessariamente com todas as regras epráticas das instituições chamadas cristãs).

Conhecer Deus é o grande desejo do piedoso. Este desejo se realiza: “Seme conhecestes, conhecereis também o meu Pai; desde já o conheceis e otendes visto” (tradução literal conforme os melhores manuscritos). Abrevia-do: “Se me conhecestes… vistes o Pai”. Aos incrédulos ele falou que, se oconhecessem, conheceriam o Pai — mas não conheceram nem Jesus, nem oPai… (8,19). Agora, para os que Jesus chama de “filhinhos” (13,33) e depoisde “amigos” (15,15), o caso é diferente. Eles conheceram, de fato, o Pai,porque conheceram Jesus.

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Lembrando Moisés, que na crise da idolatria do povo quis ver a presen-ça, o rosto de Deus (Ex 33,18-23), Filipe diz: “Mostra-nos o Pai, isso basta”.Ele ainda não entendeu o que Jesus quis dizer. Jesus declara então aberta-mente: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quemme viu, viu o Pai”. Para saber se Deus está presente e como Deus é, bastaolhar para Jesus, especialmente na hora em que vai provar seu amor até ofim (13,1), pois Deus é amor e se dá a conhecer em Jesus, quando este dásua vida por nós (o melhor comentário a estes versículos é 1Jo 4,7-11.16).

Ver Deus… em Jesus

Ver Deus é o grande desejo do piedoso, mas é um mistério fascinante etremendo:

• Moisés quer ver a face de Deus, mas Deus só se deixará ver pelas costas(Ex 33,18-23).

• Os setenta anciãos viram Deus e não morreram (Ex 24,11).

• No meio do sofrimento, Jó se dá por satisfeito depois que viu Deus, emvez de apenas ouvir falar dele (Jó 42,5-6).

• O israelita piedoso, nos salmos, procura a “face” de Deus (Sl 11,7; 17,15;24,6; 27,9; 42,3; 44,25; 143,7), o que pode significar a presença de Deus,ou: que Deus vê a pessoa (e não que a pessoa esteja vendo Deus).

• O Novo Testamento menciona a visão de Deus como recompensa dospuros de coração em Mt 5,8.

• O Evangelho de João nega a possibilidade de ver Deus (Jo 1,18; 6,46; cf.1Jo 4,20), a não ser no caso de Jesus (Jo 6,46) e no caso dos que veêmDeus em Jesus (14,9).

Por esta lista parece que “ver Deus” pode ter diversos sentidos. Em Ex 24,significa provavelmente um ato religioso festivo na presença de Deus,comparável ao penetrar no “Santo dos Santos” do santuário. Nos salmos eem Jó, talvez signifique experimentar a presença de Deus. Em Mt 5,8,parece apontar a visão de Deus na ressurreição dos justos. No sentido pró-prio, parece impossível ver Deus aqui na terra, mas em Jesus temos toda avisão de Deus que podemos desejar: esta é a mensagem de João.

Aprofundando a idéia da presença do Pai em Jesus, 14,10 emprega ummodo de falar típico do momento do adeus: Jesus está no Pai, e o Pai, nele.Chama-se isso a mútua imanência do Pai e do Filho (>exc. 15,4). Trata-seda unidade de Jesus e de Deus na obra que eles realizam (5,19-23; 10,30).Mas o presente texto exprime algo mais: não se trata de uma unidadeoperacional passageira, mas de uma unidade que faz parte daquilo que Deus

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e Jesus são. O Pai permanece, “mora” em Jesus e, nesta morada, realiza assuas obras (14,10b). Jesus é a shekiná (>Voc.) de Deus, a inabitação salvadorajunto ao povo (cf. 1,14). Deus está — automaticamente, por assim dizer —naquilo que Jesus faz, porque Jesus está sempre nele (cf. 1,1). Eles nãoapenas agem em associação, eles são a mesma empresa... (cf. 10,30).

A julgar pelas perguntas, os discípulos ainda não crêem que Jesus estáem Deus, e Deus nele. O que Jesus diz vem do Pai; e o que ele faz, Deusmesmo é que o faz, por meio dele. Podemos acreditar que Jesus está no Paie que o Pai está nele; se não acreditamos porque Jesus o diz, então acredi-temos pelo menos por causa daquilo que ele faz (cf. 10,38).

Com o solene duplo “amém”, Jesus inculca um novo pensamento, deri-vado do anterior: “Quem crê em mim fará as obras que eu faço, e farámaiores do que essas”. Os que acreditam que a prática de Jesus é atuação deDeus mesmo participarão nesse agir e até farão obras que, ao menos emextensão e quantidade, superarão as que Jesus, na sua limitação histórica,pôde realizar. Pois Jesus não pôde fazer tudo; ele se fez “carne”, sua atuaçãoterrena tem termo: “Eu parto para junto do Pai” (12c).

A expressão “para junto do Pai” mostra o outro lado da moeda. A despe-dida é também entronização na glória de Deus. O que pedirmos “no nome deJesus” (= a título de fiéis seus), ele o fará para nós, para que a glória (do amor)do Pai se manifeste no Filho por meio daqueles que representam o seu nome.“O que pedirdes em meu nome, eu o farei” (cf. Mt 18,19-20). Nesta expressão,Jesus é quem age (14,13a.14). Isso é de certo modo inesperado, pois Jesussempre insiste que o Pai é quem age (cf. também 1Rs 8,32; 2Cr 6,23; Sl109,21; Dn 9,19 etc.). Na hora da iniciação completa, podemos compreenderque a unidade na ação de Jesus e do Pai é tão forte que Jesus se torna “aqueleque age”. Jesus declarou que o Pai lhe confiou o julgamento, atribuição bemespecífica de Deus (5,22). O que, no contexto do conflito com o mundo, valepara o julgamento vale também, no contexto da fé, para os pedidos dos fiéis.

Pedir no nome de Jesus

A oração de petição é muitas vezes questionada e considerada uma es-pécie de egoísmo religioso. Na realidade, porém, é uma expressão daconsciência de que Deus é maior do que nós. O eventual egoísmo não estáno pedir, mas na intenção e na maneira em que se pede.

No Evangelho de João temos alguns casos de pedido implícito ou explícitodirigido a Jesus: Maria em 2,3; o funcionário de Cafarnaum em 4,47; Martae Maria em 11,21.32. Cada vez percebemos que Jesus não atende diretamente

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o pedido. O retardamento da ação de Jesus acentua sua autonomia soberanae dirige a atenção para o sentido profundo daquilo que ele vai realizar no“sinal”: o dom de Deus, que, no fundo, ele mesmo é (>exc. 6,11).

A oração de petição no nome de Jesus pode-se compreender em sentidosemelhante ao dos sinais acima mencionados: pede-se um sinal do amor deDeus que se manifesta em Jesus.

III. “Não vos deixarei órfãos…” (14,15-31)

O amor dos fiéis se manifesta na fidelidade ao mandamento do amor queJesus nos lega. Com vistas a isso, Jesus vai pedir ao Pai alguém que, na suaausência, nos ajude: um “outro Paráclito”. O termo tem uma ampla escala designificados (>Voc.), que não devemos restringir indevidamente. O signifi-cado básico é “auxílio, apoio”. O Pai enviará um continuador do primeiro“auxílio”, que foi Jesus mesmo, na sua missão terrestre (portanto, não comoem 1Jo 2,1). É o Espírito da Verdade, que vem de Deus para conservar-nosna verdade, que Jesus nos dá a conhecer em sua própria pessoa. O mundonão é capaz de conhecê-lo, mas os fiéis o conhecem, o experimentam, por-que permanece neles. Jesus pede esse Espírito ao Pai, porque é o mesmoEspírito que permanecia sobre ele na sua vida terrestre. O mestre transmiteseu espírito aos discípulos: Eliseu pede que, na hora da despedida de Elias,Deus lhe conceda o dobro de seu espírito (2Rs 2,9-15).

Espírito Santo — Paráclito

Sentido geral no Quarto Evangelho. Em João, o Espírito Santo possui, alémdas características comumente denotadas na Bíblia (sopro, dinamismo deDeus que inspira os profetas, fonte de poderes milagrosos etc.), algumasfeições específicas. Ele “permanece” em Jesus (1,33) e nos fiéis (14,17).Não é uma inspiração passageira, mas uma realidade permanente. Ele échamado “paráclito”, que significa auxílio, apoio, confortador, ou, no cam-po judicial, fiador, defensor, advogado… Jesus mesmo é chamado assim natradição joanina. Em 14,16, ele dá a entender que ele mesmo foi o “apoio”dos seus na vida terrestre e agora se faz substituir. Para 1Jo 2,1, Jesus éaquele com quem podemos contar junto do Pai. Entretanto, o “outro Paráclito”é nosso defensor no processo contra o “mundo” (14,16-17; 14,26; 15,16;16,7-14), o Espírito da Verdade (14,17; 15,26; 16,13), no sentido de se oporà força da mentira ou das trevas que tenta dominar o mundo, e também nosentido de nos fazer ver a verdade da nossa existência, num sentido dinâ-mico, que se plenifica, dia após dia, à medida de nossa caminhada histórica.Por isso, ele nos conduz em toda a verdade, inclusive quanto às coisas porvir (16,13). Com sua ajuda descobrimos a verdade de cada dia, o proceder

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adequado e coerente com nossa opção cristã. Neste sentido, o Espírito-Paráclito é o “intérprete” de Deus na história da comunidade cristã, com-pletando por assim dizer a missão dos profetas do Antigo Testamento. É oespírito profético no seio da comunidade (daí a necessidade de “discernir osespíritos”, 1Jo 4,1-2).

Textos. A primeira passagem sobre o Espírito no evangelho de João é otestemunho de João Batista (Jo 1,19-34). O quarto evangelista não trazo relato do batismo de Jesus, mas sim o testemunho que o Batista depoisapresenta: “Eu vi o Espírito descer do céu como pomba. Pois eu não oconhecia, mas aquele que me enviou disse: ‘Aquele sobre quem vireso Espírito descer e permanecer, é ele que batiza com o Espírito Santo’”(Jo 1,32-33). O Espírito “permanece” sobre Jesus. Por isso, pode comuni-cá-lo a quem crê.

O Espírito ocupa um lugar importante nas conversas de Jesus com os “can-didatos à fé”. Jesus explica a Nicodemos que ele deve nascer do alto, “daágua e do Espírito” (Jo 3,3-5). O dom de Jesus por excelência é represen-tado pela água do batismo. O novo nascimento pelo batismo (acompanhadoda crisma), sinal sagrado da fé em Jesus, é obra do Espírito e mexe profun-damente com a gente. Se Nicodemos o aceitar, deverá deixar de ser umchefe dos judeus (3,1); colocando-se ao lado dos cristãos, correrá o risco deser perseguido e marginalizado (cf. Jo 12,42-43). Este é o sentido concretode “nascer do alto”: tornar-se outra pessoa, mesmo quanto à posição sociale econômica… “O vento (= sopro, espírito) sopra onde quer, e ouves a suavoz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim se dá tambémcom todo o que nasceu do Espírito” (Jo 3,8). Vento perigoso!

Falando com a samaritana, Jesus aponta para o dom da “água viva”, que setorna naquele que crê uma fonte jorrando para a vida eterna (4,10-14). Asamaritana, evidentemente, não entende. Deve ainda aprender a conhecer omistério de Jesus. Mais tarde, dirigindo-se à multidão em Jerusalém, Jesusexclama: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim”.O evangelista cita as águas salvíficas que sairão do lado do novo templo queé Jesus (Jo 7,37-38; cf. Ez 47,1). E acrescenta: “Ele disse isso falando doEspírito que haviam de receber os que acreditassem nele; pois não havia oEspírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado” (7,39). Ora, paraJoão, a glorificação de Jesus, seu “enaltecimento”, acontece na cruz, poisesta é a manifestação de seu amor divino. Do lado aberto de Jesus saem osangue do dom da vida e a água do dom do Espírito (19,34). Decerto, Jesusenvia aos seus o Espírito “do alto” (cf. Lc 24,49). Do alto da cruz!

É o Espírito da vida nova, do perdão dos pecados. No início do evangelho,João Batista apresenta Jesus como “o Cordeiro de Deus que tira o pecadodo mundo” (1,29.36). No fim, depois de seu “enaltecimento”, Jesus ressus-citado comunica o Espírito aos discípulos, para que eles perdoem os peca-

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dos àqueles que entrarem em consideração para isso (20,22-23). Na força doEspírito, eles continuam a missão do “Cordeiro de Deus” enquanto ele estáfisicamente ausente.

As cinco sentenças sobre o Paráclito. A ausência física de Jesus leva Joãoa uma reflexão bem original sobre o Espírito:1. Na hora de sua despedida, Jesus esclarece a situação dos discípulos no

tempo de sua ausência. “Eu pedirei ao Pai, e ele vos dará um outro‘paráclito’, que ficará para sempre convosco: o Espírito da verdade …ele permanece junto de vós e está em vós” (14,16-17). No confrontocom o mundo, o Espírito da Verdade fala a verdade de Deus (como oespírito profético) e também nos leva a falar a verdade e a dar o teste-munho certo (cf. Mc 13,11).

2. “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vosensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito” (14,26). Eleé a memória viva de Cristo.

3. O Paráclito não somente vem do Pai a pedido de Jesus, Jesus mesmo oenvia. Tendo evocado o processo que o mundo move contra os fiéis,Jesus anuncia: “Quando, porém, vier o Paráclito que eu vos enviarei daparte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará teste-munho de mim. E vós também dareis testemunho, porque estais comigodesde o início” (15,26-27).

4. “É bom para vós que eu vá. Se eu não for, o Paráclito não virá a vós.Mas se eu for, eu o enviarei a vós. Quando ele vier, mostrará ao mundoem que consiste o pecado, a justiça e o julgamento” (16,7-11). Elemostrará que Jesus tem razão e que os que o rejeitam se condenam a simesmos. O chefe deste mundo já está condenado.

5. Sempre neste sentido de atualizar o papel de Jesus na sua ausência,ressoa o quinto anúncio do Paráclito: “Quando ele vier, o Espírito daVerdade, vos conduzirá em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo,mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará até as coisas futuras.Ele me glorificará, porque receberá do que é meu para vos anunciar.Tudo o que o Pai tem é meu…” (16,12-15). A verdade plena na qual elenos guiará é a verdade de Jesus no tempo depois dele. O Espírito nos fazconhecer Jesus hoje, aqui e agora. Se Jesus estivesse aqui, ele diria amesma coisa que o Espírito nos diz.

Na comunidade de João, comunidade profética, o Espírito expressa aquiloque Jesus significa hoje. Os profetas julgam o momento com o olhar deCristo, ausente, mas presente pelo Espírito que ele envia de junto do Pai.Por isso é necessário o “discernimento dos espíritos”, cujo primeiro critérioé a profissao da fé em Jesus Cristo (1Jo 4,1; cf. 1Cor 12,1-3).Mais: se a obra de Jesus é limitada, quantitativamente, por ser “carne”, aobra dos seus fiéis é “espírito”, na medida em que transcende essa limitação

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(o Espírito não vem “com medida”, Jo 3,34). “Espírito” significa o quechamamos a transcendência de Deus; cf. a imagem de Sb 1,7: “O Espíritodo Senhor repleta o universo”. Não está ligado a lugar ou circunstância,cultura ou religião (Jo 4,22-24). Por isso, a atuação dos discípulos de Jesuspode ser considerada quantitativamente maior (mais abrangente) que a deJesus (Jo 14,12).

“Não vos deixarei órfãos”: o vocabulário combina bem com o termo“filhinhos” de 13,33 (relação discípulo-mestre: Eliseu chamava Elias de “pai”na hora do arrebatamento, 2Rs 2,12)! “Eu venho (ou virei) a vós”. Em 14,3estava “venho/virei novamente e vos levarei comigo”; será que aqui se repetea mesma idéia ou se exprime um sentido novo? E a frase “Ainda um poucode tempo e o mundo não mais me verá; mas vós me vereis, porque eu vivo,e vós vivereis” se refere ao reencontro na parusia? O pouco tempo em queo mundo não mais verá Jesus, pelo contexto do “adeus”, deve ser o momentoda morte, do afastamento de Jesus deste mundo. Onde e quando é que osseus o verão? “Eu vivo e vós vivereis.” Jesus é ressuscitado, entra na vidagloriosa de Deus, e quem acredita nele participa da mesma vida. A vida daressurreição é vida na presença de Jesus, mesmo na ausência. Mas quando?Quem nele crê já passou da morte para a vida (cf. 5,24). Quando diz que noslevará consigo, Jesus está falando da vida no além (no “céu”), no aconteci-mento da morte individual, na parusia…? “Naquele dia sabereis que eu estouno meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”: este é o lugar que Jesus nosprepara (cf. 14,3). Para conhecê-lo, não precisamos esperar o fim dos tem-pos. Estamos com Jesus desde a sua ressurreição — quer dizer, desde já, setemos fé nele. João reinterpreta o tradicional termo escatológico “naqueledia” (cf. Mc 13,32) no sentido da escatologia presente, a vida da comunidadejá repleta de alegria pela presença, na fé e no amor, de Jesus e do Pai (cf.ainda Jo 16,23.26). Para quem vive na fé, “aquele dia” é hoje! (>exc. 16,23a).Para os Onze, antes do enaltecimento, Jesus fala no tempo futuro, mas paraos leitores, o que ele anuncia se dá no tempo presente.

Isso, se tivermos fé… e amor. “Aquele que acolhe os meus mandamentose os guarda é que me ama, e o que me ama será amado por meu Pai, e eutambém hei de amá-lo e me mostrarei a ele.” O reencontro com o Cristoglorioso acontece em virtude da prática do amor fraterno que ele nos ensina.

Judas — Tadeu, “não o Iscariote” — pergunta como é possível que osdiscípulos hão de ver Jesus, mas o mundo não. Ele responde que a diferençaentre os fiéis e o “mundo” (no sentido de quem rejeita a oferta de Jesus) estáno fato de “guardar” (>Voc.) ou não a palavra de Jesus. Subentenda-se: fielmesmo é só quem guarda a palavra. A respeito deste, Jesus declara: “Se

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alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremose faremos nele a nossa morada”. Manifesta-se aqui um sentido novo damorada que Jesus ia preparar: em 14,3, parecia ir preparar para os fiéisuma morada no céu, agora fica claro que a inabitação de Jesus e do Pai nomeio de nós começa aqui e agora, na medida em que observamos o manda-mento de Jesus — mandamento do amor fraterno. A “morada” está em nósmesmos/entre nós, se estamos unidos a Jesus e ao Pai na fidelidade e naprática do mandamento. É o cumprimento das profecias que anunciam amorada de Deus no meio de seu povo (cf. Zc 2,14[10]) — porém, numsentido novo (cf. 2,21; 4,21-24).

Mas isso não vale para todos. Quem não adere a Jesus não observa a suapalavra, que vem do Pai e o manifesta. Quem não a acolhe não é capaz deconhecer a manifestação de Jesus e do Pai, que querem morar no interiordaqueles que guardam (= põem em prática) a palavra, o mandamento.

Se tal é o sentido daquilo que Jesus disse antes de deixar o mundo, osdiscípulos só poderão entendê-lo depois de seu enaltecimento na cruz e naglória, graças ao Espírito de Deus: “O Paráclito (= Defensor), o EspíritoSanto (= de Deus), que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudoe vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. Jesus enuncia aqui o sentidonovo do Espírito Santo conforme a experiência da comunidade joanina (>com.14,15-17).

Então ressoa uma palavra com gosto de plenitude: shalom, “paz” (>Voc.).Não é uma mera saudação final. Com muita insistência, Jesus proclama:“Deixo-vos a paz. Dou-vos a minha paz”. A despedida de Jesus abre o sinalpara caminhar rumo à terra da promessa. Jesus entrega aos seus o que osantigos israelitas esperavam encontrar na Terra Prometida: a paz. É o que seesperava do Messias (p. ex., na interpretação messiânica do Emanuel, Is9,6.7; também: Lc 2,14; 19,38). Mas a paz que os fiéis encontram na “terraprometida” da mútua imanência deles com Jesus e com o Pai, no EspíritoSanto (>exc. 15,4), é incomparavelmente superior. É superior ao que corri-queiramente se imaginava como paz messiânica, pensada em termos de bem-estar para Israel. É superior, sobretudo, à paz que “o mundo” está oferecen-do, o mundo do Império Romano, “pacificador” que sufoca os povos paramantê-los submissos à “paz romana”. Jesus dá a paz “não à maneira domundo” (v. 27).

“Ouvistes o que eu vos disse: ‘Eu vou, e voltarei a vós’ (vv. 2-3). Se meamásseis (no sentido mais verdadeiro), ficaríeis alegres porque vou para oPai, pois o Pai é maior do que eu” (maior = superior, mais importante).A frase poderia ser dirigida aos fiéis que, anos depois da morte de Jesus,

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lamentam sua ausência e a esta atribuem os conflitos pelos quais estão pas-sando. Ora, já no v. 12 Jesus havia anunciado que, na sua ausência, quemnele acreditasse faria “obras maiores” que ele. Agora aparece o sentido maisprofundo dessa avaliação positiva do tempo da ausência: pela volta de Jesusao Pai (seu “enaltecimento”), os fiéis têm acesso a quem é maior do que ele!Isto não apenas expressa a condição “submissa” de Jesus a Deus, como Filhoe Enviado. Expressa também o que Deus significa para nós. É uma dessasfrases em que o Quarto Evangelho se mostra verdadeiramente “teo-lógico”(>Intr. § 3.3.5). O centro do Quarto Evangelho não é Jesus. É Deus! Jesusé o mediador. Quando ele consuma sua obra, seu discípulo se encontra maispróximo de Deus mesmo. No aprofundamento do “segundo discurso” issoficará mais claro (cf. 16,27). Ora, esse sentido positivo da ausência de Jesusseria inconcebível se Jesus não o tivesse de alguma maneira anunciado.“Disse-vos isso agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais.”Quando acontecer o quê? Sua ausência? Sim, mas essa ausência tem causa:acontece por causa da morte que lhe é infligida, seu fim, que aos olhos domundo e dos próprios discípulos parecerá um escândalo (cf. 6,62). Então éque deverão crer. Mas a ausência de Jesus e a aflição diante dos interessesdo mundo acompanham a comunidade através dos tempos: o paradoxo da fécontinua. Basta-nos a sua palavra: “Eu vo-lo disse”.

Se 14,30-31 constitui, como pensam os estudiosos, o final original do“adeus”, o evangelista concebeu, originalmente, estas frases como as últimaspalavras de Jesus neste mundo. O dominador deste mundo está chegando (cf.Mc 14,41-42; Lc 22,53; para João, quem age em Judas é Satanás). Assimcomo a entrada de Israel na Terra Prometida, a caminhada da comunidade deJesus exige que se enfrentem obstáculos e opressão. O dominador destemundo está aí, as forças que querem destruir a comunhão e fraternidade queJesus implantou estão aí. Todavia, ele já está vencido (cf. 12,31), ele nadapode contra Jesus. “Mas é preciso que o mundo saiba que eu amo o Pai efaço como o Pai mandou. Levantai-vos! Vamos embora daqui!” É verdadeque as forças do mundo não têm poder sobre Jesus, mas o enfrentamentodeve acontecer; e revelará que Jesus ama o Pai, cumprindo a sua missão. Aesta luz é que devemos entender o enfrentamento, ainda atual, da comuni-dade com o “mundo”. Não há para o “mundo” perspectiva de vitória nesteconfronto, mas isso não quer dizer que ele seja insignificante. Deve serassumido por nós, para mostrar de que lado estamos. Neste enfrentamento,Jesus toma a dianteira: “Vamos!”23.

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23. A continuação normal de 14,31 seria 18,1, mas num rearranjo do texto foram acrescenta-dos os capítulos 15–17, que aprofundam e atualizam o cap. 14.

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“Jesus é o caminho.” Parece letreiro em pára-choque de caminhão.Mas não desprezemos a mensagem. Vivemos num mundo que propõemuitos caminhos. Tantos, que a tendência é não seguir nenhum comconvicção. O homem de Nazaré não está aqui, apresentando-se emalgum evento ou na internet, mas ele não nos abandonou. Ele conti-nua sendo o caminho para os que receberam (ou receberem) o teste-munho de sua comunidade. Talvez precise ser redescoberto. Talvezprecisemos de nova confiança nele e em Deus. Para isso, ele pede aoPai que nos dê o Espírito que permanecia sobre ele.

Em Jesus vemos Deus — em Jesus, na véspera da cruz. Pois a glória,a “realização” de Deus é amar. Jesus ama até o fim. É o rosto de Deus.

Jesus foi preparar moradas para estarmos com ele. Não sabemosexatamente como os leitores de João imaginavam isso. E nós, comoimaginamos o céu? Imaginamos que depois da morte, Jesus vem bus-car-nos, que vamos ficar com ele, contemplá-lo em sua glória junto doPai? João não contradiz isso, mas leva a conversa no sentido demostrar que o reencontro com Jesus, e inclusive com o Pai, se dá ondesua palavra é posta em prática, onde é vivido seu ensinamento deamor fraterno. “Onde reinam a caridade e o amor, Deus aí está!”

O céu começa na fraternidade aqui na terra. O céu no céu será afraternidade consumada. Preparemo-nos: vamos ter de enfrentar umafraternidade eterna — fraternidade em Cristo, é claro. Se não apren-dermos a vivê-la agora, ai de nós! Às vezes penso que o purgatóriovai consistir em pedir perdão, ao entrar no céu, a todos aqueles quetivermos tratado sem fraternidade!

E que seria o inferno? Não importa, não é preciso preparar-separa esse…

A vinha verdadeira e seus frutos (15,1-17)

15 1“Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. 2Todoramo que não dá fruto em mim, ele o corta; e todo ramo que dáfruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda. 3Vós já estaislimpos por causa da palavra que vos falei. 4Permanecei em mim, eeu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por simesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis

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dar fruto se não permanecerdes em mim. 5Eu sou a videira e vós, osramos. Aquele que permanece em mim, e eu nele, dá muito fruto;pois sem mim, nada podeis fazer. 6Quem não permanecer em mimserá jogado fora como um ramo e secará. Tais ramos são apanha-dos, jogados ao fogo e queimados. 7Se permanecerdes em mim, eminhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos se-rá dado. 8Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vostorneis meus discípulos.9“Como meu Pai me ama, assim também eu vos amo. Permanecei nomeu amor. 10Se observardes os meus mandamentos, permanecereisno meu amor, assim como eu observei o que mandou meu Pai epermaneço no seu amor. 11Eu vos disse isso, para que a minha ale-gria esteja em vós, e a vossa alegria seja plena.12“Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim comoeu vos amei. 13Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vidapor seus amigos. 14Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vosmando. 15Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que fazo seu Senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tu-do o que ouvi de meu Pai. 16Não fostes vós que me escolhestes; fui euque vos escolhi e vos destinei, para dardes fruto e para que o vossofruto permaneça. Assim, tudo o que pedirdes ao Pai, em meu nome, elevos dará. 17O que eu vos mando é que vos ameis uns aos outros”.

15,1-17 constitui uma meditação sobre o amor cristão. O ponto de par-tida é a alegoria da videira (vv. 1-8); depois, a meditação continuaaprofundando o mistério do amor de Deus em Jesus Cristo e nossa missãode frutificar no amor fraterno (vv. 9-17).

15,1 é a última das autoproclamações simbólicas de Jesus (>exc. 6,35):“A verdadeira videira sou eu”. Como aconteceu com a imagem do pastor(10,1-18), é antes uma alegoria bem elaborada do que uma simples parábolano estilo das parábolas sinópticas. A alegoria é explicada pelo próprio Jesus:ele é o tronco, os ramos são os fiéis, o Pai é o agricultor que espera frutosda vinha.

O termo “verdadeira” sugere contraposição a outra, que não é verdadeira.Por si mesma, a imagem evoca vida, seiva, fruto. Nesse sentido, a videira foitomada pelos profetas como imagem do povo, de Israel. Ora, o primeirodiscípulo a dar uma completa profissão de fé, em João, foi o “verdadeiroisraelita” Natanael (1,46-49). Quem sabe será a “verdadeira videira” o ver-dadeiro Israel, incorporado na pessoa de Jesus — o Jesus pascal, eclesial,

15,1

15,1-17

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presente em sua comunidade? Já no profeta Isaías, o povo de Israel é com-parado a uma videira que não produz o esperado fruto de amor e justiça (Is5,1-7). Jesus critica os chefes do judaísmo por quererem guardar para si ofruto e a vinha (Mc 12,1-9). Agora ele apresenta a si mesmo e aos fiéisunidos a ele como a verdadeira videira, aquela que produz fruto em todos osramos que estão unidos a ela. E este fruto é: o amor fraterno (Jo 15,1-12).E o exemplo deste amor é ele mesmo, dando sua vida por aqueles aos quaisele dá seu amor (15,13). A videira verdadeira é a comunidade unida emCristo e fecunda, nele, no amor e na comunhão fraterna.

A vinha de Israel e a videira Jesus

Para qualquer judeu da Palestina — como eram os apóstolos e os cristãos daprimeira comunidade —, a videira lembra a melhor parte de sua economia,é sinônimo de paz e felicidade. Mas é, sobretudo, símbolo da comunidade.

Depois que Oséias chamou Israel de “vinha viçosa”, porém de coração infiel(Os 10,1), Isaías fez um canto sobre Israel, vinha ingrata (Is 5,1-7; e cf. 5,8).Jeremias se queixa da degeneração da vinha de qualidade (Jr 2,21; a LXXtraduz: “videira verdadeira produzindo frutos”); Jr 5,10 e 12,10-11 vêem avinha castigada, devastada pelos “pastores”, Ez 19,10-12 a vê desarraigada(no exílio)… Sl 80,9 fala da videira retirada do Egito (Israel). No Sl 90,9-17,a vinha devastada (pelo exílio) é recomendada à misericórdia de Deus. Umdiscípulo de Isaías reescreve o canto de Is 5: a vinha será generosa no dia davinda do Senhor (Is 27,2-6). (Pode-se comparar a essas imagens a alegoria docedro, em Ez 17, que significa a comunidade de Israel, mas também o reidavídico.) Por outro lado, a imagem da vinha/videira tem significado sapien-cial em Sr 24,17-21 (relacionado com Jo 4,13; 6,35).

Em Mc 12,1-11 par., Jesus alude claramente à vinha de Israel, e os arren-datários, os líderes religiosos, não pagam a sua parte do fruto. Provavelmen-te a imagem da vinha Israel está também por trás de Mt 20,1-16 (os ope-rários da vinha) e Lc 13,6-9 (a vinha infértil).

Jo 15,1-8 tem seu ponto de partida nesta imagem bíblica (assim como 10,1parte da imagem do pastor), mas a terminologia é levemente modificada.Não fala mais em “vinha” (plantação de uvas), mas em “videira”, ou seja,pé de uva — para visualizar a união de tronco e ramos. A videira verdadeira(que Israel não é mais, cf. Jr 2,21) é Jesus. Em plena conformidade com oresto de sua teologia, João aplica, mais uma vez, um grande símbolo deIsrael ao próprio Jesus. Podemos até dizer que Jesus é a personalidadecorporativa que resume em si o novo povo que substitui a “vinha Israel”(cf. também a realidade do Templo doravante suplantada pela pessoa deJesus, Jo 2,21).

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O Pai-agricultor não é apenas o dono da vinha, como no AT. Ele mesmotrabalha (cf. 5,17), cuida da vinha, para que produza os frutos que ele espera.Ele poda a vinha: corta fora os ramos secos e limpa os sadios para queproduzam mais. A nota explicativa do v. 3 sugere que a limpeza é feita pelapalavra que Jesus pronuncia (>com. 13,10). Quem a acata fica mais puro,mais unido a Jesus e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera (noAT, “puro” pode ser sinônimo de “santo”, dedicado a Deus; cf. 11,55).

Jesus é o tronco. Os ramos devem permanecer unidos ao tronco para queproduzam frutos. É necessário “permanecer (>Voc.) em Jesus”, para produziro fruto que Deus espera. (Jesus fala aqui como se ele e a comunidade fossemuma coisa só: o Jesus eclesial). A exortação do v. 4 visa fortalecer a comu-nidade que, no fim do primeiro século cristão, sob a pressão da concorrênciae das perseguições, periga cair na apostasia e desistir da fé. Há gente nacomunidade que gostaria de abandonar a profissão de fé em Jesus (cf. 1Jo2,19-24; 4,1-3; 2Jo 7). Esses não têm mais ligação com o tronco; devem sercortados fora.

“Permanecer”: inabitação/imanência mútua

Na parábola da vinha, 15,1-8 (mais exatamente, nos vv. 4-8), João usa7 vezes o verbo “permanecer” (ménein) para exprimir a união entre o tronco eos ramos, ou seja, entre Jesus e os fiéis. Mais 4 vezes na explicação, vv. 9-17.João usa essa representação não apenas em relação a Jesus, como aqui, mastambém em relação ao Pai (14,10; e 17,23, sem usar o verbo) e ao Espírito(14,117; cf. 14,20). O sentido é o da imanência, a mútua inabitação de Deus(ou Jesus, ou o Paráclito) nos seus e deles em Deus. Não se trata de umamera “união moral” entre os fiéis e Jesus/Deus. Da parte de Deus (em Jesus)trata-se de presença salvífica, como a Morada (shekiná) de Deus no meiodo povo (a Tenda no deserto, o Templo em Jerusalém…); e, na medida emque abrimos espaço para sua presença no meio de nós e em nós, tambémnós “permanecemos” no âmbito dele. Da parte dos fiéis, esse permanecersignificava concretamente o continuar na profissão de fé em Jesus e nacomunhão do amor fraterno. A liturgia antiga traduziu isso maravilhosamen-te no refrão: “Ubi caritas et amor, Deus ibi est” (“Onde reinam a caridadee o amor, Deus aí está”).

Se Jesus é o tronco, os fiéis são os ramos. Ramos cortados do tronco nãoproduzem nada. São jogados fora e queimados (com termos semelhantes, atradição sinóptica exortava a produzir bons frutos: Mc 9,43 par.; Mt 25,41;e especialmente Mt 3,10 par.). Quem são esses ramos mortos? Aqueles quenão crêem verdadeiramente em Jesus, nem amam seus irmãos. Segundo 1Jo4,2, a profissão de fé em Jesus encarnado é o critério do discernimento dos

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espíritos: isso mostra que havia na comunidade pessoas que não estavamligados a Cristo pela fé e pela caridade, que é a expressão prática da fé (cf.1Jo 3,23). Quem pertence aparentemente ao grupo cristão, mas não mantémligação com Jesus é um membro morto. Só atrapalha.

Pode-se perguntar como podia haver, naquelas primeiras comunidades,supostamente fervorosas, pessoas que não estivessem em comunhão comCristo e seus irmãos (as cartas de João, sobretudo 3Jo, revelam claramentetal situação; cf. também Mt 24,12). Por que tais pessoas continuavam nacomunidade, atrapalhando-lhe a vida, como os ramos secos na videira? Pro-vavelmente porque a comunidade era, ao mesmo tempo, uma proteção socialou até um campo de influência e de poder, exatamente como em nossacristandade tradicional24.

Ora, se permanecermos em comunhão com Jesus e “suas palavras per-manecerem em nós”, receberemos tudo o que em seu nome convém pedir.João usa de modo surpreendente o termo “permanecer” — equivalente a“morar” — para expressar a presença das palavras de Jesus em nossa vida(>exc. 15,4). Isso, porque suas palavras são equivalentes à sua pessoa. Sequeremos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras desem-penham um papel efetivo (e afetivo) em nossa vida. Daqueles que não crêemé dito que a palavra de Jesus “não cabe neles” (8,37), que eles não têm “apalavra de Deus permanecendo (morando) neles” (5,38)…

Num belo simbolismo, Dt 11,18 mandava atar a Palavra de Deus à mãoe sobre a testa, entre os olhos. Era uma maneira de ter a Palavra presente.Mas em nós a Palavra deve permanecer, morar, de modo muito mais intensoainda. Então receberemos tudo o que for preciso para viver conforme aPalavra. Pois Deus gosta de nos ver produzir muito fruto, pelo que mostra-mos ser verdadeiros discípulos de Jesus. Trata-se dos frutos do amor fraterno(cf. vv. 16-17), em virtude do qual somos reconhecidos como discípulos deJesus (cf. 13,15.35).

A partir do v. 9 começa a interpretação da “produtividade” que a ima-gem da videira e dos ramos evoca. A linguagem deixa a alegoria no segundoplano e acentua o compromisso prático, fundamentado no amor (afetivo eefetivo) e expresso pelo tema do mandamento. Esta é de fato a linguagem daAliança, comparável à do Deuteronômio. Como, provavelmente, Jo 13–17

24. Como as conversões implicavam a “casa” inteira, a família com todos os parentes afins,empregados e escravos (cf. Jo 4,53; At 11,14; 16,14-15.31), a comunidade se tornava um conjuntosociológico amplo, que exercia muitas funções, não só religiosas. As comunidades cristãs, como assinagogas judaicas, eram atentas às necessidades materiais, sociais e administrativas de seus mem-bros. Isso era bom, mas havia pessoas para quem o importante era só isso, e não aquilo que Jesusensinou por palavra e exemplo.

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recebeu influência da celebração eucarística da comunidade, podemos procu-rar nas entrelinhas o tema da Nova Aliança, mais explícito no relato sinóptico.O núcleo da antiga religião de Israel era a renovação da Aliança, com o com-promisso de observar a Lei. Um gostinho disso transparece em Jo 15,9-17.

A combinação de amor e mandamento parece estranha à nossa mentali-dade, mas em João, amor e mandamento significam bem outra coisa do quepara nós (>Voc. Torá). Para compreender isso, vamos acompanhar o “man-damento” do amor desde a fonte.

A fonte do dinamismo do amor aqui descrito é o Pai. Ele é amor (cf. 1Jo4,8.16). Na frase: “Como o Pai me ama, também eu vos amei”, o termo“como” significa ao mesmo tempo “como e por que” (>exc. 15,12). O Pai amao Filho, e este fluxo de amor do Pai para o Filho continua, através dele, aténós, envolve-nos e carrega-nos. Jesus pede aos discípulos/os fiéis que “perma-neçam” (cf. v. 4) no seu amor. Seu amor não é mero sentimento; é um âmbito,uma relação criada pelo dom de sua vida, relação fecunda, que se alastra noamor fraterno. “Permanecemos” nesse âmbito e nessa relação quando somosfiéis àquilo que Jesus nos ensina a fazer, pois também ele corresponde ao amordo Pai fazendo o que este ordena. (O Deuteronômio chamaria isso de fideli-dade à Aliança, mas Jo não usa esse termo; >Intr. § 3.3.8).

Jesus nos comunica o mistério do amor do Pai que se revela por meiodele, para que a alegria que ele encontra em nós alcance sua plenitude, eassim também a nossa alegria se complete. Isso, desde que ponhamos emprática o que Jesus ordena.

Aquilo que Jesus ordena cabe em uma só frase: “Amai-vos uns aosoutros, assim como eu vos tenho amado”. Jesus está falando da prova e doexemplo de amor que ele deu, dando sua vida por nós. Ora, esse amor nãoé apenas prova e exemplo, mas é sobretudo o caminho pelo qual nos chegao amor que tem sua fonte no Pai. Enviado da fonte de amor que é o Pai,Jesus cumpre junto de nós sua missão de amar-nos com o mesmo amor, pa-ra que sua palavra/mandamento de amor produza entre nós o amor fraterno,que é o fruto que o Pai espera e que constitui a alegria nossa e de Cristo.

A fonte e o destino do amor segundo João

“Como o Pai me amou” (v. 9), “como eu vos amei (v. 12)”: nestas frases,“como” exprime ao mesmo tempo o modelo e o fundamento: “como eporque...”. Deus é a fonte do amor, do qual Jesus, o filho “unigênito” eincomparavelmente amado (cf. 3,16), se sabe o portador. Esse amor doPai impele o Filho a manifestá-lo, dando até sua vida pelos que são chama-dos a se tornarem filhos de Deus (1,12-13). Ora, esse amor do Pai em Jesus

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é também o modelo que deve inspirar o relacionamento dos discípulos deJesus. Assim, o amor do Pai, que Jesus acolhe e traduz em amor por nós,é a fonte e o modelo de nosso amor pelos irmãos.Este dinamismo já transpareceu na ordem de seguir o exemplo do lava-pés(13,15). Em 14,34-35, aparece no mandamento do amor fraterno, baseadono amor que une Jesus ao Pai: como e por que o Pai amou Jesus, e esteamou a nós, nós também devemos amar-nos uns aos outros.

como-e-porque FONTE

o Pai me amou

MISSÃO

como-e-porque

eu vos amei

MANDAMENTO

amai-vos uns aos outros

FRUTO

ALEGRIA

Jesus não manda amar a Deus. Embora João certamente suponha que quei-ramos amar a Deus (cf. 1Jo 4,20 etc.), não encontramos no Quarto Evan-gelho uma injunção que, explicitamente, mande amar a Deus; o Evangelhode João menciona só o mandamento de amar os irmãos. De fato, o amor éum presente. Ora, um presente não se devolve, mas reparte-se com os ou-tros. É amando os irmãos que mostramos nossa gratidão pelo amor do Paique se manifesta a nós em Jesus. E assim levamos esse amor ao seu destino.Tornamo-nos “aliados” de Deus e de Jesus, na expansão de seu amor.A mesma “lógica” realiza-se na missão: como o Pai enviou o Filho, ele nosenvia, confiando-nos o Espírito. O Espírito permanecia sobre Jesus, o Cor-deiro que tira o pecado do mundo, e a partir da ressurreição Jesus noscomunica esse Espírito, para que nós tiremos o pecado do mundo (20,19-23). Em 6,57 é dito que, como o Pai dá a vida, aquele que se alimenta deCristo viverá. Não será lógico, então, que ele comunique essa vida? Lendoa Primeira Carta de João, parece que sim. 1Jo 3,16-18 sintetiza esse dina-mismo do amor do Pai e do Filho atuante em nós. O Deus-Amor se mani-festa no dom que Jesus faz de sua vida pelos irmãos, e por isso os irmãosdevem repartir os dons da vida uns com os outros, não da boca para fora,mas em atos e em verdade. Na mesma linha nos fala 1Jo 4,7-12: só pondoem prática o amor conhecemos verdadeiramente o Deus-amor, que enviouseu filho único ao mundo, para que por ele tenhamos a vida. O amor semanifesta, portanto, no fato de Deus ter-nos amado primeiro, enviando seu

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Filho como substituto dos sacrifícios expiatórios, doravante supérfluos. Combase nisso e de modo semelhante (“como e por que”…) devemos amar nossosirmãos. Deus é invisível, mas amando nossos irmãos temos o amor delemorando dentro de nós e no meio de nós.

Quanto ao exemplo e prova de amor que Jesus nos dá, “ninguém temamor maior do que aquele que dá (depõe/se despoja de) a vida por seusamigos”. Tal é o amor com que Cristo nos amou (cf. 10,17-18). Parece difícilamar segundo o exemplo de Cristo. É, contudo, o que nos propõe 1Jo 3,16:se Jesus deu sua vida por nós, devemos nós também dar a vida pelos irmãos.Certamente não se trata de copiar materialmente o comportamento de Jesus,mas de viver um amor fraterno que procure ter a qualidade e a intensidadedo amor que levou Jesus a dar sua vida. Há muitas maneiras de dar a vidapelos irmãos: morrendo por eles ou vivendo por eles (cf. Fl 1,21). Lembre-mos aqui a relação de indicativo e imperativo reconhecida em 13,2-11/12-17(cf. a introdução a 13,1-30; >com. 13,12-17): é preciso acolher primeiro ogesto de amor de Cristo para poder encarná-lo na vida de maneira originale própria.

Aos que ele ama até a morte, Jesus chama de “amigos” — com a condi-ção de que observem a prática que ele propõe, pois a amizade, união decoração de duas pessoas, tem suas condições. Os amigos de Jesus não sãomeros objetos de sua afeição; são sujeitos e parceiros, que livremente mantêmum pacto, uma aliança com ele. Não chama seus amigos — que representama comunidade de então e de hoje — de servos ou empregados, que executamum trabalho sem saber o que o dono está projetando. Jesus nos coloca nacondição de parceiros, comunicando-nos seu próprio projeto: aquilo que o Pailhe disse. Seu exemplo põe em xeque nossa prática e nossa estrutura eclesial:promove a participação fraterna ou apenas o comando de cima para baixo?

Em 12,26 estava: “Se alguém quiser servir-me…”. Aqui: “Já não voschamo servos…”. Há uma diferença nos termos. Em 12,26 trata-se dediakonein, pôr-se a serviço; em 15,15, o termo é dóuloi, escravos. Jesus nãoé de se deixar servir (15,15; cf. Mc 10,45), mas seus seguidores desejamestar a seu serviço e da comunidade que ele incorpora (12,26). Decerto,Jesus veio para servir (Mc 10,45), mas nós, de nosso ponto de vista, somoschamados a “servir Jesus” (>com. 12,26), enquanto do ponto de vista doamor de Deus em Jesus não somos escravos, mas amigos (15,15).

O que Jesus fala aos “amigos“ que estão reclinados à mesa da ceiaconcerne também a nós? Os amigos de Jesus somos nós, ou apenas osapóstolos e seus sucessores, os bispos, a hierarquia? Na atmosfera do QuartoEvangelho não é possível separar os fiéis e os apóstolos (termo que João

13-15

15,1-17

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nem usa: só conhece discípulos). O que é dito nos discursos de despedidadestina-se aos discípulos como comunidade e a todo seguidor e servidor deJesus. Isso vale também para o tema seguinte, a eleição.

Em termos que lembram a Aliança e a eleição de Israel, Jesus declara:“Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que vos escolhi e vos designeipara irdes a caminho e produzirdes fruto”. Estas palavras lembram, por umlado, a constituição dos Doze e sua missão (cf. Mc 3,13-19; 6,7-13; em Mt10,1-10 eleição e missão se encontram juntas; Jo 6,70 e 13,18 fala da eleiçãodos Doze, inclusive o traidor). Por outro lado, lembram também a eleição dopovo de Deus no deserto. O NT aplica com freqüência esse conceito a todosos cristãos (Rm 8,33; Cl 3,12; 1Pd 2,4). Aqui, os participantes da ceia dedespedida são pensados como as testemunhas e os responsáveis por excelên-cia daquilo que é dito para todos; e no meio desses companheiros de mesapodemos imaginar o Discípulo Amado como o mais consciente.

Os eleitos devem “partir” (hypágein) para produzir fruto. As primeirascomunidades eram missionárias, como se percebe também pelos outros evan-gelhos e pelas cartas de Paulo. Na primeira geração, sua missão consistia emanunciar que Jesus era o Cristo e em preparar quem se convertesse para aparusia, esperada para breve. No tempo do Quarto Evangelho, a missão serefere mais à vida da comunidade: o discípulo “parte” para produzir o frutodo amor fraterno no contexto das comunidades.

“Para que vosso fruto permaneça”: para que o fruto dos “amigos”, istoé, de todos os discípulos permaneça, eles têm de estar unidos a Cristo,“permanecer nele” (cf. v. 7-8). Então, não produzirão coisas efêmeras, comoproduzem aqueles que aderem à comunidade só enquanto não se apresentamproblemas. Produzirão fruto que permaneça, que se difunda e se propague —em primeiro lugar, a firmeza e permanência da própria comunidade no amor,em meio às ameaças do mundo, que logo mais virão à tona.

Nosso “estatuto” de eleitos da Aliança (v. 16a) tem também por conse-qüência que o que pedirmos ao Pai em nome de Jesus, ele no-lo dará. Ditoisso, Jesus conclui a reflexão sobre o mandamento com uma inclusão queremete ao v. 12: “O que eu vos mando é que vos ameis uns aos outros”.

Amor afetivo e amor efetivo

Na “meditação da videira”, como poderíamos chamar Jo 15,1-17, dois ter-mos gregos se revezam para expressar o amor (>exc. 11,5). O primeiro émais cotidiano e indica as diversas formas de afetividade e amizade (filein,“amar, gostar de” e os substantivos filos, “amigo”, e filia, “amizade”). Ooutro é raro na língua comum, porém usado sistematicamente na tradução

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grega do AT (a LXX) e no NT (pois os autores do NT, judeus de lín-gua grega, estavam familiarizados com a LXX). Este segundo termo (agapân“amar”, agape, “amor”, agapétos, “amado, querido”) geralmente tem aconotação de compromisso, pacto, como também seu equivalente hebraicoahêb (“aderir, apegar-se, ligar-se, comprometer-se”; cf. Dt 7,7.9.13).

Simplificando, e sem exagerar a distinção entre os dois termos, poderíamosdizer que seu uso combinado expressa o amor afetivo e efetivo, os sentimen-tos de união e os compromissos práticos inerentes a uma aliança, ou pacto.O amor cristão não é só amor de sentimentos. É antes de tudo agape, amorcomprometido, amor de aliança. Mas o fato de que João livremente alternaeste sentido com a terminologia da amizade, filein, mostra que o compro-misso da aliança não deve ser uma coisa meramente obrigatória, voluntaristae moralista, e sim algo que brota do âmago de nossa pessoa, como e por queo Pai tem sentimento de amor (filein) pelo Filho (5,20) e por nós (16,27).

A meditação da videira (Jo 15,1-17) constitui o centro das palavrasde despedida de Jesus, seu testamento espiritual. É a expressão maisclara da dinâmica da vida cristã, da vida de comunhão com Cristo ecom os irmãos, comunhão que tem sua fonte e paradigma em Deusmesmo. Amando-nos como e porque o Pai nos ama, Jesus se transfor-ma em fonte e exemplo de nosso amor fraterno. Isso deve refletir-seem nossas comunidades, nas relações entre nós e na estrutura dacomunidade de fé, pois a estrutura condiciona nosso modo de agir. Senão tivermos uma estrutura que promova a participação de todos,sempre voltaremos ao individualismo e ao autoritarismo.

Um desafio à Igreja neste início do novo milênio é criar comunidadesque sejam “comunhão” — uma Igreja toda feita de comunidades emcomunhão. O que Jesus nos apresenta como manifestação do Pai nãoé um sistema de dogmas e deveres, mas uma comunhão de vida, seivacorrendo por todos os canais que nos alimentam, frutificando emnossos atos, que são frutos esperados por um Pai que nos ama aponto de dar seu Filho querido para nos mostrar o caminho da vida.As mediações dessa comunhão devem ter o mesmo caráter afetivo,efetivo e comunicativo.

Ora, o amor fraterno — não da boca para fora, mas em atos e emverdade — é mais que mediação: é encarnação do mesmo mistério quelevou Jesus a morar no meio de nós como dom da graça do Pai.

15,1-17

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A inimizade do mundo e a vitória de Jesus (15,18–16,33)

I — 18“Se o mundo vos odeia, sabei que me odiou primeiro, antes de vós.19Se fôsseis do mundo, o mundo gostaria daquilo que é seu; masporque não sois do mundo, e porque eu vos escolhi do meio domundo, por isso o mundo vos odeia. 20Recordai-vos daquilo que euvos disse: ‘O servo não é maior do que seu senhor’. Se me persegui-ram, perseguirão a vós também. E se guardaram a minha palavra,guardarão também a vossa. 21Eles farão tudo isso por causa do meunome, porque não conhecem aquele que me enviou. 22Se eu nãotivesse vindo e não lhes tivesse falado, eles não teriam pecado. Agora,porém, não têm desculpa para o seu pecado. 23Quem me odeia, odeiatambém a meu Pai. 24Se eu não tivesse feito entre eles as obras quenenhum outro fez, não teriam pecado. Agora, porém, eles viram; eodiaram a mim e a meu Pai. 25Mas isso é para que se cumpra apalavra que está escrita na Lei deles: ‘Odiaram-me sem motivo’.26 “Quando, porém, vier o Defensor que eu vos enviarei da parte doPai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunhode mim.27 “E vós, também, dareis testemunho, porque estais comigo desde ocomeço.

16 1“Eis o que vos digo, para que vossa fé não fique abalada. 2Sereisexpulsos das sinagogas, e virá a hora em que todo aquele que vosmatar julgará estar prestando culto a Deus. 3Agirão assim por nãoterem conhecido nem o Pai, nem a mim. 4Eu vos digo isto para que,quando chegar a hora, vos recordeis do que eu disse.

II — “Eu não vos disse isso desde o começo, porque eu estava convosco.5Agora, eu vou para aquele que me enviou, e nenhum de vós mepergunta: ‘Para onde vais?’ 6Mas, porque vos disse isto, os vossoscorações se encheram de tristeza. 7No entanto, eu vos digo a verda-de: é bom para vós que eu vá. Se eu não for, o Defensor não viráa vós. Mas, se eu for, eu o enviarei a vós. 8Quando ele vier, seráo acusador do mundo: mostrará onde está o pecado, a justiça e ojulgamento. 9O pecado: eles não acreditaram em mim. 10A justiça:eu vou para o Pai, de modo que não mais me vereis. 11E o julgamen-to: o chefe deste mundo já está condenado.12“Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes decompreender agora. 13Mas quando ele vier, o Espírito da Verdade,

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vos conduzirá em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo, masdirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que está por vir. 14Eleme glorificará, porque receberá do que é meu para vo-lo anunciar.15Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso, eu vos disse que ele receberádo que é meu para vo-lo anunciar.

III — 16 “Um pouco de tempo, e não mais me vereis; e mais um pouco, eme vereis de novo”. 17Alguns dos seus discípulos comentavam : “Quesignifica isto que ele está dizendo: ‘Um pouco de tempo e não maisme vereis; e mais um pouco e me vereis de novo’ e ‘Eu vou parajunto do Pai’?” 18Diziam ainda: “O que é esse ‘pouco’? Não enten-demos o que ele quer dizer”. 19Jesus entendeu que eles queriamfazer perguntas; então falou: “Estais discutindo porque eu disse:‘Um pouco de tempo, e não me vereis; mais um pouco, e me vereisde novo’? 20Amém, amém, eu vos digo: chorareis e lamentareis, maso mundo se alegrará. Ficareis tristes, mas a vossa tristeza se trans-formará em alegria. 21A mulher, quando vai dar à luz, fica angustia-da, porque chegou a sua hora. Mas depois que a criança nasceu, jánão se lembra mais das dores, na alegria de alguém ter vindo aomundo. 22Também vós agora sentis tristeza. Mas eu vos verei nova-mente, e o vosso coração se alegrará, e ninguém poderá tirar avossa alegria. 23Naquele dia, não me perguntareis mais nada.

“Amém, amém, eu vos digo: se pedirdes ao Pai alguma coisa emmeu nome, ele vos dará. 24Até agora, não pedistes nada em meunome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa.25 “Eu falei estas coisas por meio de figuras. Vem a hora em que nãomais vos falarei em figuras, mas vos falarei claramente do Pai. 26Na-quele dia pedireis em meu nome. Eu não pedirei mais ao Pai por vós.27O próprio Pai vos ama, porque vós me amastes e acreditastes quesaí de junto de Deus. 28Eu saí do Pai e vim ao mundo. De novo,deixo o mundo e vou para o Pai”. 29Os seus discípulos disseram:“Agora, sim, falas claramente, e não em figuras. 30Agora vemos queconheces tudo e não precisas que ninguém te faça perguntas. Porisso acreditamos que saíste de junto de Deus!” 31Jesus respondeu:“Credes agora? 32Eis que vem a hora, e já chegou, em que vosdispersareis, cada um para seu lado, e me deixareis só. Mas eu nãoestou só. O Pai está sempre comigo. 33Isto é o que vos digo, paraque, em mim, tenhais a paz. No mundo tereis aflições. Mas tendecoragem! Eu venci o mundo”.

15,18–16,33

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15,18–16,33 consiste em continuações e/ou reinterpretações das palavrasdo “adeus” (13,31–14,31). Nestas continuações é repetido, como num refrão,que Jesus não falou essas coisas abertamente, durante sua vida pública, masagora podem ser ditas, pois à luz de sua ressurreição (glorificação, vitória)e à luz da atualidade iluminada pelo Espírito-Paráclito, seu sentido se tornapatente. Assim, “palavras enigmáticas” (16,25.29) de Jesus são retomadas“abertamente”, numa nova luz. Temos aqui uma típica releitura atualizantedo primeiro diálogo do adeus e de toda a obra de Jesus. O Espírito de Jesuse do Pai é também o espírito da releitura...

I. A inimizade do mundo (15,18–16,4a)

O tema principal de 15,18–16,4a é a perseguição que a comunidade deJesus sofre da parte do mundo — no caso particular, da parte da Sinagoga.Como o contexto do Quarto Evangelho tem muito em comum com o de Mt,não é estranho encontrar aqui as mesmas palavras de Mt 10,17-25 e 24,9-10(cf. também Mc 13,9-13 e Lc 21,12-17). Jo tem em comum com Mt a trans-ferência deste tema do contexto estritamente escatológico (Mc 13 par. Lc 21)para o contexto da missão dos discípulos (Mt 10), anunciada em 15,16.

Os contrários se provocam. Amor faz pensar em ódio, “rejeição” (que éprovavelmente a melhor tradução aqui; cf. 7,7; >Voc. Odiar). O “mundo”(>com. 8,23), o ambiente incrédulo que rodeia a comunidade, rejeita-a, comorejeitou Jesus primeiro (cf. 1,10). Nada de surpreendente. Se os fiéis fossem“do mundo” e pertencessem a seu âmbito, se se deixassem dominar pelasociedade na qual vivem, então o mundo os assimilaria com muito gosto,“gostaria daquilo que é seu”. Vemos isso hoje: as forças dominantes gostamda Igreja enquanto ela se curva a seus interesses, as serve e as legitima comsuas ceremônias religiosas, com a cultura que ela propaga, com seus colégiosde elite e até com suas obras caritativas... pois enquanto a Igreja organiza acaridade, a sociedade pode fugir de sua responsabilidade social! Mas quandoa Igreja segue efetivamente a norma do Evangelho, esse “mundo” não quermais saber dela; quando toma partido e se coloca ao lado dos oprimidos, érechaçada.

Jesus escolheu os fiéis como YHWH escolheu o povo eleito para ser opovo “próprio” dele (Ex 19,5; veja Jo 1,11). Como YHWH quis um povoque fosse diferente dos outros, adorando só a ele e instruído por sua Lei deliberdade, assim Jesus tornou-os discípulos diferentes do mundo que nãoquer viver segundo o novo mandamento do amor fraterno. E assim como opovo eleito do Antigo Testamento devia mostrar ao mundo (e para o bem domundo) quanto Deus o ama (Dt 7,7-10), assim Jesus quer uma comunidade-

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testemunha que seja diferente do mundo, para mostrar ao mundo qual é ocaminho da vida e como é o rosto de Deus-Amor (>Intr. § 3.4). Tal comu-nidade não se curva às regras — escritas ou não — de uma sociedade regidapelo proveito e pela exploração. E tal sociedade, por sua vez, só pode sentirrejeição a uma comunidade verdadeiramente cristã. Seria um mau sinal segostasse dos cristãos. Quando a comunidade cristã vive em plena harmoniacom a sociedade, ou a sociedade virou santa ou a comunidade degenerou!

Jesus era ponto de referência do “mandamento do amor” (>com. 15,9.12).Ele é ponto de referência também da rejeição. Ruminando o primeiro discur-so (13,16), João repete: “O servo não é maior que seu senhor”, o empregadonão tem mais importância que seu patrão (cf. Mt 10,24; Lc 6,40). Em 13,16,isso se referia ao lado positivo: servir como Jesus; aqui refere-se ao ladonegativo: ser rejeitado como ele. Se perseguiram Jesus, perseguirão tambémos que são seus. Se guardaram sua palavra, guardarão também a dos seusdiscípulos. Sempre de novo acontecerá aos discípulos o que aconteceu aJesus. Serão aceitos ou rejeitados por causa daquilo que Jesus representa:“por causa de meu nome”. A rejeição se explica porque os adversários nãoconhecem, nem querem conhecer aquele que enviou Jesus (cf. 8,19).

Se os perseguidores não reconhecem o Pai que enviou Jesus, não é porfatalidade ou impossibilidade, mas por uma questão de opção: “Se eu nãotivesse vindo e falado, eles não teriam culpa. Mas agora não têm desculpa.Quem me rejeita, rejeita também o meu Pai. Se eu não tivesse realizado nomeio deles as obras que nenhum outro fez (cf. 14,10), eles não teriam pecado(= culpa). Agora, porém, eles viram, e rejeitaram (odiaram) a mim e a meuPai” (cf. também a cegueira voluntária, 9,41; e a culpa que permanece, 8,24).Essas palavras não querem antes de tudo condenar os adversários (disso,Deus se ocupa), mas lembrar que não há como negociar com o lado oposto— como seríamos tentados a fazer, por se tratar de parentes, amigos…

Ora, tudo isso não escapa da lógica do amor de Deus. Pois o amor obri-ga a tomar posição, provoca ódio, rejeição (cf. 6,60-71; 12,48). A Escritura(lit.: “a Lei deles”!), que é a ilustração do plano de Deus, já o exprimiu:“Odiaram-me sem motivo” (Sl 35,19; 69,4). Sem motivo, no sentido judicial(>com. 18,38b)

Em 14,16, Jesus prometeu um “outro auxílio” (Paráclito). Agora, Joãoretoma e atualiza esse tema, inicialmente em termos nitidamente judiciais. Acomunidade está em processo com o mundo, está sendo levada ao tribunal,acusada, torturada pelo “mundo”. Jesus prometeu que o Pai enviaria o Pa-ráclito, o Espírito da Verdade (14,17). Aqui Jesus diz que ele mesmo o

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enviará (para João, o Pai e o Filho “trabalham em sociedade”), e, então, eledará testemunho, se pronunciará a favor de Jesus diante do tribunal do mundo.E os próprios discípulos darão testemunho (cf. Lc 24,48; At 1,8), pois elesestão com Jesus desde o início (= condição para o testemunho apostólicoconforme At 1,21-22; cf. a vocação dos Doze no início, Mc 3,14; também1Jo 1,1-4 recorda esse embasamento do testemunho no “início”).

Ora, lendo o texto de João com os olhos do ano 90, a terminologia dotestemunho tem uma conotação especial. Em grego, “testemunhar” = martyreine “testemunha” = martys. No tempo de João, o testemunho de sangue já nãoé novidade para os cristãos e, pelo menos em alguns casos, está sendoinfligido pelo próprios irmãos de sangue, os membros da comunidade judai-ca. Segundo os evangelhos sinópticos, Jesus apontou o açoitamento nas si-nagogas como ocasião para dar testemunho (Mt 10,18 par.). Mas houve maisque açoitamento, como aparece na atuação de Saulo de Tarso (cf. Gl 1,13-14; At 26,9 etc.); segundo Flávio Josefo (Antiguidades XX, 9,1 § 200), oinstigador da morte de Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém, em 62 dC, foio sumo sacerdote Ananos II (>com. 9,22, e infra, 16,2.)

Jesus anuncia isso para que os fiéis não fiquem abalados, nem desistam(literalmente: “se escandalizem”), quando acontecer (como de fato está acon-tecendo no momento em que João escreve). Eles vão ser expulsos da Sina-goga, i. é, do grupo social judaico ao qual pertencem (ver 9,22). Vão sermarginalizados. E os perseguidores agirão assim pensando cumprir um deverreligioso — o que é sempre muito perigoso! Eles não conhecem o Pai, nemJesus; eles não têm consideração pela manifestação do Pai em Jesus.

15,18 anunciava o ódio do mundo. 16,1a esclareceu que Jesus tocounesse assunto para fortalecer a fé dos discípulos. 16,4a arremata: Jesus falouassim para que eles se recordem de suas palavras ao chegar a hora em quese realizarem (hôra... autôn). Com este final, Jesus anuncia um novo tema:o da sua ausência e da ajuda necessária nessa situação.

II. A missão do Paráclito (16,4b-15)

A cesura entre o desenvolvimento anterior e o seguinte não é muito forte.Completando paradoxalmente os vv. 1 e 4a, o novo desenvolvimento repeteque Jesus não falou isso antes, “desde o início” (cf. 15,27), porque estavacom eles para explicar, para dar-lhes luz e segurança. Agora, aborda o temaprincipal, o Espírito-Paráclito, já anunciado, ainda que de modo extrínseco,em 15,26-27.

Jesus acaba de referir-se às dificuldades da comunidade. Não anunciou essascoisas desde o início de sua atividade, antes que se cumprissem. Enquanto

16,1-4a

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andava com eles pelos caminhos da Galiléia e da Judéia, aquilo que ele apontaagora ainda não se havia concretizado. As coisas que não foram ditas desde ocomeço estão se tornando reais na existência da comunidade depois de Cristoe recebem uma chave de leitura a partir do “enaltecimento” de Jesus. No texto,Jesus entrega essa chave na despedida; na realidade, ela nos vem com oEspírito da Verdade que Jesus envia desde seu enaltecimento. A partir da horada elevação na cruz e na glória, que é também a da rejeição pelo mundo,compreende-se o significado daquilo que ele não falou desde o começo.

A frase tem ainda um outro sentido: enquanto Jesus estava na terra, ele eraporta-voz dos seus. Na sua ausência, eles é que têm de testemunhar, embora nãosejam só eles, mas o Espírito de Jesus que fala por intermédio deles (cf. Mt10,19-20 par; Jo 14,16). Por isso, Jesus vai explicar, a seguir, o papel do Paráclito.

Entretanto, na hora da despedida, os discípulos ainda não estão conscien-tes da importância do afastamento de Jesus. Nem perguntam: “Para ondevais?” (João prescinde da pergunta de Pedro em 13,36). Estão apenas imen-samente tristes.

Ora, é bom que Jesus vá (v. 7; cf. 14,28). Se ele não saísse do mundo,o Espírito não poderia ensinar-lhes o sentido de sua obra, levada a termo namorte por amor. A partir de sua glória, endossada pelo Pai, Jesus poderáenviar o Paráclito-defensor (cf. 7,39: >com. 14,16), mas é exatamente essa“glória do amar”, sua morte por amor, que o afasta deste mundo. Jesus e o“outro Paráclito” não podem estar presentes ao mesmo tempo; o Paráclitoé a presença de Jesus ausente (>exc. 14,17).

Observamos aqui uma mudança de linguagem. Enquanto em 14,26 o Paié quem envia o Paráclito, agora é Jesus mesmo que o envia. A fé da Igrejapercebeu essa “dupla proveniência” do Paráclito; por isso, o Credo niceno-constantinopolitano reza: “que provém do Pai e do Filho”. Falando em ter-mos teológicos gerais, podemos de fato dizer: o Pai e o Filho têm tudo emcomum (cf. v. 15).

Tentemos penetrar o significado desta mudança terminológica de modoconcreto. Quando se olha para Jesus como pessoa humana, “carne”, reconhe-ce-se nele o Espírito de Deus que o impulsiona, assim como anteriormenteimpelia os profetas. Ora, o Espírito de Deus não desaparece com Jesus, maso Pai continua a enviá-lo para que permaneça com os fiéis (cf. 14,26).Quando, porém, se pensa a partir do senhorio de Jesus, manifestado pelo“enaltecimento”, é mais fácil atribuir a Jesus mesmo o envio do Espírito (quevem do Pai). Então, esse Espírito não é visto apenas como o Espírito deDeus conhecido no AT, mas como o Espírito que continua especificamente

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7

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a obra de Jesus-Senhor. Por isso, João insiste que este Espírito recebe e ouveo que pertence à obra de Jesus. Assim como Jesus recebeu sua mensagem doPai e transmitiu a nós, assim o Paráclito recebe de Jesus aquilo que esteiniciou, para transmiti-lo a nós (cf. vv. 13-14).

Quando vier este Espírito, ele se transformará de defensor dos fiéis emacusador do mundo. Mostrará de que lado se situam o pecado, a justiça e ojulgamento (no caso, a condenação):

• mostrará em que consiste o pecado (= quem é culpado): os represen-tantes do “mundo” não acreditaram em Jesus;

• mostrará em que consiste a justiça (= quem é justo): pelo próprio gestoinimigo do mundo (a crucificação), Jesus vai ao Pai para ser glorifica-do, de modo que ele está fora do alcance dos olhos físicos, vivendo naglória invisível do Pai (cf. 17,5). Mas isso não desfaz o que foi dito em14,21-23 (sua inabitação nos fiéis);

• mostrará em que sentido acontece o julgamento, ou seja, quem é ocondenado neste processo: o chefe deste mundo já está condenado(cf. 12,31).

O processo com o mundo e com seu chefe

Embora o processo com o mundo permeie todo o evangelho, especialmentea partir do cap. 5, é neste trecho que percebemos melhor o que João tem emvista: a situação da comunidade meio século depois da morte e ressurreiçãode Jesus. A trajetória de Jesus foi descrita, nos capítulos anteriores, emforma de processo, com acusações e testemunhos de defesa e tudo, paraexemplificar o que está acontecendo à comunidade.

João parece reunir aqui os textos de sua tradição que falam neste sentido:

• “ódio” do mundo: Jo 15,18-19, cf. Mt 10,22; 24,9;

• o servo não é maior que seu mestre: Jo 15,20, cf. Mt 10,24;

• anúncio das perseguições; Jo 15,20b, cf. Lc 21,12; Mt 10,23;

• perseguições por causa (do nome) de Jesus: Jo 15,21, cf. Mt 10,22; 24,9b;

• advertência contra o “escândalo” (desistência): Jo 16,1, cf. Mt 24,10;

• maus-tratos na sinagoga: Jo 15,26; 16,2, cf. Mt 10,17;

• o Espírito inspirará a defesa: Jo 16,8-11 (cf. Mt 10,19-20; Mc 13,11; Lc21,14-15).

Sobretudo Mt 10,19-20 (o Espírito!) está próximo da representação de Joãoque mostra o Paráclito tomando a defesa dos fiéis, que são testemunhas afavor de Jesus (Jo 15,25-27; 16,7-11). A terminologia de João é toda judi-cial: acusar/denunciar, defensor, testemunhas, pecado/culpa, justiça, julga-

8-11

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mento, condenação. Essa “dramatização” de João tem modelos no AT(Zc 3,1-7: o anjo do Senhor contra Satanás) e sobretudo na literatura judaicacontemporânea de Jesus (Qumran, intertestamento; no judaísmo rabínico odefensor celeste chega a ser chamado de paraklit). A intervenção do defen-sor celeste (Paráclito/Espírito da Verdade) ressalta o caráter “transcendente”do conflito. O conflito não é, em última análise, com “os judeus” do tempode Jesus ou do tempo da comunidade, mas com o “chefe deste mundo”, queé vencido e condenado (16,11). Por isso, não devemos pensar nos judeusquando lemos estes textos, mas no poder do chefe deste mundo hoje, pois,embora já vencido e condenado pela cruz e exaltação de Cristo, tem aindasuas convulsões enquanto se prolonga a História.

“Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de compre-ender agora.” Não dá para explicar tudo de uma vez para sempre (cf. v. 4b).É impossível entender o sentido das coisas antes que aconteçam. “Quandoele vier, o Espírito da Verdade (cf. 14,17; 15,26), ele vos conduzirá em todaa verdade”25.

A verdade na qual o Espírito da Verdade nos conduz não é algo estático,coisa feita e acabada, mas a compreensão certa de cada novo momento.Jesus viveu em um determinado momento, mas o Espírito que ele envia épara todos os momentos e nos conduz pelo caminho da verdade plena — ocaminho de Deus (Sl 25,4-5; cf. Sl 86,11; 143,10 LXX) —, não por contaprópria, mas porque ele é um com Jesus e o Pai: “Ele comunicará o que eletiver ouvido e vos anunciará o que está por vir”, inclusive as perseguições.

O Espírito fará compreender, sobretudo, que Jesus é vencedor: “Ele meglorificará”, isto é, “manifestará a minha glória”. E ele recebe isso da mesmafonte de onde provêm as palavras faladas por Jesus mesmo: “Ele receberá doque é meu para vo-lo anunciar. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso, eu vosdisse que ele receberá do que é meu para vo-lo anunciar”. Algumas tradu-ções escrevem: “para vo-lo revelar”, mas o verbo que João usa é “anunciar”;anunciar é o que faz o Messias esperado segundo Jo 4,25-26 e o que faz acomunidade depois de Jesus. O Paráclito participa ativamente do “anúncio”que está sendo levado pela comunidade (cf. 1Jo 2,3.5; 3,11).

O ensinamento do Espírito-Paráclito para o dia presente, na ausência deJesus, tem a mesma natureza, qualidade e importância que o ensinamento de Je-sus durante sua vida terrestre. Daí a fé na missão de Jesus Cristo ser o critériodo “discernimento dos espíritos” (1Jo 4,1-2).

12-13

14-15

25. Os melhores manuscritos trazem: “(vos conduzirá) em toda a verdade”; a leitura costumei-ra, “…à verdade toda (plena)”, procura facilitar a compreensão.

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III. Pouco tempo — a perspectiva da glória (16,16-33)

No diálogo básico (cap. 14) foi tocado o tema do “pouco tempo”: poucotempo para não mais ver Jesus (14,19; cf. 7,33; 12,35; 13,33) e pouco tempopara revê-lo (14,19). Todos esses textos parecem referir-se à iminente des-pedida (morte/ressurreição), a ser seguida em breve pela parusia (>Voc.).Mas, pelos anos 90, quando provavelmente foram introduzidas as amplia-ções que constituem os caps. 15–16, este tema precisou de novo aprofunda-mento. Com o tempo, o “pouco tempo” se tornou muito. A resposta, porém,continua essencialmente a mesma do diálogo básico (cap. 14): no tempo daausência de Cristo, tempo do Paráclito, os discípulos devem ficar firmes atégozarem a alegria final.

Nos tempos de perseguição vividos pela comunidade, havia quem disses-se: “Se Jesus estivesse conosco!” Na ótica de seu “enaltecimento”, Jesus diz:“Um pouco de tempo, e não mais me vereis; e mais um pouco, e me vereisde novo”. Essa frase enigmática, incompreensível antes da elevação à glória,é repetida diversas vezes na discussão dos discípulos que segue, e que pro-vavelmente reflete discussão semelhante entre os fiéis no fim do século I. Eo que significa essa outra frase: “Eu vou para junto do Pai”? Qual é o sentidodisso no momento da comunidade? Se bem que tenha anunciado, em 16,13,o Paráclito como aquele que atualiza o sentido das suas palavras, aqui nocenário da ceia é Jesus mesmo quem dá a explicação.

Em Is 26,20, falando em estilo apocalíptico, o profeta aconselha ao povoaguardar “um pouco” até a cólera de Deus passar. Em Is 26,17, as angústiasescatológicas são descritas como dores de parto. Esta imagem é retomada emJo 16,21: “Chorareis e lamentareis, mas o mundo se alegrará. Ficareis tristes,mas a vossa tristeza se transformará em alegria. A mulher, quando vai dar àluz, fica angustiada, porque chegou a sua hora. Mas depois que a criançanasceu, já não se lembra mais da aflição (das dores), na alegria de alguémter vindo ao mundo”. Também nos outros evangelhos, a “aflição” (v. 21b) éimagem da perseguição e rejeição escatológica, da luta final que os discípu-los devem enfrentar (Mt 24,9.21.29 par.; cf. 13,21 par.).

“Também vós agora sentis tristeza. Mas eu vos verei novamente, e o vossocoração se alegrará, e ninguém poderá tirar a vossa alegria”. Este é, para acomunidade perseguida, o sentido do “pouco tempo” em que não pode verJesus. A atual aflição é o prelúdio da alegria definitiva que agora é antecipada!

Alegria

Segundo a imagem dos vv. 21-22, para quem na fé e no amor adere aJesus, esse dia será um dia de alegria. A alegria, futura e antecipada no

16-19

20-22

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presente, é um conceito escatológico, pertence ao tempo definitivo que seinaugura em Jesus Cristo (para quem acredita que ele é o Messias e Filhodo Homem).

João é, depois de Lc, o evangelista que mais insiste na alegria:

• 3,29: a alegria de João Batista (o amigo do esposo) por ver Jesus;

• 4,36: a alegria do ceifador juntamente com o semeador;

• 8,56: a alegria de Abraão por ver Jesus;

• 11,15: a alegria de Jesus porque os discípulos podem crer;

• 14,28: a alegria dos discípulos porque Jesus volta ao Pai;

• 15,11: a alegria plena de Jesus e dos seus pela comunicação do mistériodo amor de Deus;

• 16,20-22: a alegria provisória do mundo versus a alegria definitiva dosdiscípulos, depois da aflição;

• 16,24: a alegria definitiva e a segurança no pedir;

• 17,13: a alegria plena na volta de Jesus para o Pai;

• 20,20: a alegria por causa do reencontro com o Ressuscitado.

O elenco dos textos nos obriga a examinar o que entendemos por “alegria”.A alegria é o fruto do amor (cf. 15,11). Quem não se doa no amor nãoconhece a alegria de que Jesus fala.

O v. 23a anuncia: “Naquele dia não me perguntareis mais nada”. Será otempo da transparência, da abertura completa. Jesus comunica aos seus a alegriado entendimento e da “palavra aberta” na presença de Deus (a parresia, vv.25.29). A incerteza está chegando ao fim. Isso, quanto ao futuro, o reencontro.

“Aquele dia...” — hoje!

A Bíblia geralmente exprime aquilo que é decisivo por meio da imagem dofim dos tempos, as “últimas coisas”, a escatologia. Para João, o decisivoacontece quando se manifesta a plenitude do amor de Deus. Em certo sen-tido, é o dia em que Jesus dá sua vida por amor e, assim, vence “o príncipedeste mundo” (cf. 12,31). E também quando o fiel opta por seguir estamesma prática de Jesus. “Aquele dia”, o dia do fim, será a plena manifes-tação do amor vitorioso de Deus. Mas o que veremos “naquele dia” já estásendo decidido na nossa atitude de adesão a Jesus, hoje. Assim, João esten-de o teor escatológico à existência em comunhão com Cristo, hoje. O “diaescatológico” irrompe na história, na comunidade.

Num mundo em que a alegria parece um produto de consumo imediato, aalegria joanina parece, no mínimo, “não deste mundo” (cf. 17,14). A alegriado mundo é a que causa aflição nos discípulos (v. 22a). Também em nóshoje? Sentimo-nos aflitos porque a proposta do mundo não corresponde ao

23a

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que Cristo nos ensinou? Melhor assim, pois se nos sentíssemos satisfeitoscom a oferta do “mundo”, seria preciso fazer um exame de consciência.

A alegria cristã é para o “hoje” que não é do mundo! E é participação daplena alegria.

Passando do perguntar ao pedir e da transparência vindoura para opresente tempo da separação, Jesus declara, com o solene duplo “amém”:“Se pedirdes ao Pai alguma coisa em meu nome, ele vos dará”. Até a mortede Jesus, os discípulos não pediam em seu nome. Agora é diferente: “Pedie recebereis, para que a vossa alegria seja completa”.

Na sua atividade terrestre, Jesus falou tudo isso em figuras. Sua des-pedida anuncia a hora em que essas imagens se tornarão supérfluas. É ahora da “palavra aberta” (parresia: cf. 11,14), da transparência. “Naqueledia” (cf. v. 23), conhecendo a glória de Jesus, pedirão ao Pai em seu nome.Naquele dia, Jesus nem mais precisará rogar por eles ao Pai, pois nestatransparência “o próprio Pai vos ama, porque vós me amastes e acreditastesque saí de junto de Deus”. (Em 14,16, Jesus rogou pelos seus, e tambémem 17,9.15.20 ainda rogará; aqui, em 16,26, o evangelista contempla estemistério sob outro ângulo: Jesus nem precisa pedir…)

Retomando as últimas palavras, Jesus explica: “Eu saí de junto do Paipara vir ao mundo. De novo deixo o mundo e vou para o Pai”. Essa élinguagem clara, sem figuras (em oposição ao enigma do “pouco tempo”).Os discípulos reconhecem isso (v. 29: “Agora falas abertamente…”, enparresíai), como também reconhecem que ele sabe tudo e que não é pre-ciso fazer-lhe perguntas. Uma razão a mais para crer que ele veio de Deus.

Para terminar, João retoma os temas que enquadravam o discurso bá-sico, 13,36-38; 14,27-31. A afirmação dos discípulos, no v. 30, foi preci-pitada, como a de Pedro em 13,37-38. Sua fé ainda não é digna de confian-ça. Como fez a Pedro, Jesus os confronta com a realidade. “Credes agora?Eis que vem a hora, e já chegou, em que vos dispersareis, cada um paraseu lado, e me deixareis sozinho. Mas eu não estou só (cf. 8,16.29): o Paiestá sempre comigo”. Com esta referência ao relato sinóptico e ao AT (adispersão: Mc 14,27 par., cf. Zc 13,7), Jesus indica que a fé é ainda frágil.Mas a glória de Jesus junto do Pai não depende disso. Retomando os temasfinais do “adeus” (14,27-31) em tom maior, Jesus conforta os discípuloscom a certeza de que sua vitória é maior que a inconstância deles: “Isto éo que vos digo, para que, em mim, tenhais a paz (cf. 14,27a). No mundoconhecereis a aflição (cf. 16,21). Mas tende coragem (cf. 14,27c)! Eu vencio mundo” (cf. 14,30b).

23b-24

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Nos “aprofundamentos” de 15,19–16,33, João atualizou os temas do“adeus” proferidos no cap. 14. Agora é nossa vez de atualizá-los parao contexto de hoje.

1. O Paráclito torna o conflito de Jesus supratemporal,e também sua “justiça”

Acreditar em Jesus não é apenas acreditar que ele foi um homem bom,um profeta, o Filho de Deus, lá no seu tempo. É ser testemunha, emqualquer tempo e diante de qualquer tribunal do mundo, de que eleestá certo e é justo (Jo 16,10). Justo ainda hoje. O que ele deixoucomo legado e missão são as causas certas e justas de hoje — o amore a fidelidade aos nossos irmãos, concretizado na partilha dos bensdeste mundo (1Jo 3,17), na organização de um mundo mais justo, nouso responsável dos recursos que devem servir ainda para as gera-ções que vêm. Tudo isso é a “justiça” de Cristo, que o Paráclito, aolado das testemunhas que somos nós, demonstra perante um mundocuja injustiça é mostrada à plena luz. Ele é o Espírito da Verdade emtodo e qualquer momento. Ele torna a verdade plena em qualquercircunstância. Acolhendo o Espírito que Jesus envia desde seuenaltecimento, a consumação de sua obra de amor na cruz, conhece-mos o conteúdo concreto da vontade de Deus hoje e sabemos quepodemos contar com uma defesa que vem do alto.

2. Esperança e alegria cristãs

A despedida de Jesus é o primeiro despontar “daquele dia” (16,23-24), em que tudo fica claro e transparente. A vida da comunidadecristã, ameaçada pela perseguição e por sua própria fragilidade, deveser vista à luz do sol que já está surgindo no alvorecer. A escuridãojá está vencida. O sol já brilha por trás do horizonte, embora nossosolhos ainda não o vejam.

Os discípulos apreendem a clareza que brilha por trás das figuras.Mas ainda não vêem o sol. Importa ver, pela fé, o invisível sol por trásdo horizonte. O mistério de Deus continua mistério. A madrugada daalegria completa já dura dois milênios, conforme nosso tempo, maspara Deus, mil anos são como uma hora da noite (Sl 90,4). Ainda nãose desenha no céu o círculo do sol, mas seu clarão se espalha. Impor-

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ta saber que vivemos no clarão difuso do sol da madrugada de Deus(veja 20,1) e não no crepúsculo de uma noite sem fim (cf. 13,30).

Tal reflexão pode parecer perigosa, dar a impressão de que o lusco-fusco é para sempre e o sol nunca vai brilhar com todo o seu brilho.Para quem pensa que o sol é da mesma ordem que o crepúsculo esimplesmente deve ocupar o lugar deste, a coisa se apresenta assim.Mas o sol é de outra ordem. Em nosso âmbito só conhecemos oprovisório, mas este é, na sua precariedade, a garantia do definitivo,que já está decidido pelo gesto de Cristo, ao qual convém nos unirmospela prática de seu mandamento: o amor fraterno. Pouco tempo oumuito tempo, não importa. Do ponto de vista da “carne”, o poucotempo que se imaginava tornou-se muito, mas do ponto de vista doEspírito, o decisivo já está acontecendo em nossa história. Esta é arazão da alegria cristã.

3. A vitória

Jesus venceu o mundo. Mas assim como a paz que ele dá é diferenteda que o mundo proporciona, também sua vitória sobre o mundo édiferente, não à maneira do “mundo”, não à maneira das cruzadas ouda conquista da América pelos cristãos da Espanha e de Portugal,com bênçãos papais. É a vitória do “enaltecido” na cruz, a vitória doamor que se confirma quando é esmagado, da flor sem defesa.

A oração do Senhor glorioso (17,1-26)

I — 17 1Depois de falar estas coisas, Jesus elevou os olhos ao céu e disse:“Pai, chegou a hora. Glorifica teu filho, para que teu filho te glo-rifique, 2assim como deste a ele poder sobre todos, a fim de que dêvida eterna a todos os que lhe deste. 3(Esta é a vida eterna: queconheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e a Jesus Cristo, aqueleque enviaste.)4”Eu te glorifiquei na terra, realizando a obra que me deste parafazer. 5E agora, Pai, glorifica-me junto de ti mesmo, com a glóriaque eu tinha, junto de ti, antes que o mundo existisse.6“Manifestei o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eleseram teus e tu os deste a mim; e eles guardaram a tua palavra. 7Agora,eles sabem que tudo quanto me deste vem de ti, 8porque eu lhes dei as

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palavras que tu me deste, e eles as acolheram; e reconheceram verda-deiramente que eu saí de junto de ti e creram que tu me enviaste.

II — 9“Eu rogo por eles. Não te rogo pelo mundo, mas por aqueles queme deste, porque são teus. 10Tudo o que é meu é teu, e tudo o que éteu é meu. E eu sou glorificado neles. 11Eu já não estou no mundo;mas eles estão no mundo, enquanto eu vou para junto de ti.“Pai Santo, guarda-os em teu nome, o nome que me deste, para queeles sejam um, como nós somos um. 12Quando estava com eles, euos guardava em teu nome, o nome que me deste. Eu os guardei, enenhum deles se perdeu, a não ser o filho da perdição, para secumprir o que estava na Escritura. 13Agora, porém, eu vou parajunto de ti, e digo estas coisas estando ainda no mundo, para quetenham em si a plenitude de minha alegria. 14Eu lhes dei a tuapalavra, mas o mundo os odiou, porque eles não são do mundo,como eu não sou do mundo.15 “Eu não rogo que os tires do mundo, mas que os resguardes domaligno. 16Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. 17Con-sagra-os na verdade: a tua palavra é verdade. 18Assim como tu meenviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. 19Eu me consagropor eles, a fim de que também eles sejam consagrados na verdade.

III — 20 “Eu não rogo somente por eles, mas também por aqueles quecrêem em mim pela palavra deles. 21Que todos sejam um, como tu,Pai, estás em mim, e eu em ti. Que eles estejam em nós, a fim de queo mundo creia que tu me enviaste. 22Eu lhes dei a glória que tu medeste, para que eles sejam um, como nós somos um: 23eu neles, e tuem mim, para que sejam perfeitamente unidos, e o mundo conheçaque tu me enviaste e os amaste como amaste a mim.24 “Pai, quero que estejam comigo aqueles que me deste, para quecontemplem a minha glória, glória que tu me deste, porque me amasteantes da fundação do mundo.25 “Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci, e estesconheceram que tu me enviaste. 26Eu lhes fiz conhecer o teu nome,e o farei conhecer ainda, para que o amor com que me amaste estejaneles, e eu mesmo esteja neles”.

Nos grandes textos de despedida na Bíblia (especialmente Dt 32–33; cf.supra, introdução a 13–17), o herói termina seu discurso por uma prece, hinoou bênção. O Quarto Evangelho segue esse modelo, de maneira monumen-tal. Neste sentido, Jo 17 pode ser considerado o ponto alto do livro.

17,1-26

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Em 16,26, Jesus disse que não precisará pedir a Deus por nós, porqueDeus nos ama. Mas em 14,16 vimos uma outra maneira de imaginar oSenhor glorioso, intercedendo pelos seus, que permanecem no mundo. Édeste Jesus “orante” que João nos apresenta agora uma imagem, um íconeenvolvido de mistério. João parece ver Jesus por dentro, e nesta visão de féele apresenta aquilo que, invisível aos nossos olhos, se realiza quando Jesusentra na glória: o diálogo entre Jesus e o Pai.

O âmbito do mistério é expresso pelo paradoxo: “no mundo, mas não destemundo”. Jesus ora ainda no mundo, mas numa ótica que já não é a deste mundo,e sim a da glória de Deus. Jesus ora para que esta glória seja também a situaçãodos seus, que eles também sejam envolvidos neste mistério. Pois este Jesusorante está intimamente unido aos fiéis. Percebe-se que ele reza ao seu Pai comosendo nosso Pai, como explicitará no dia da Ressurreição (20,17). Não é pornada que este capítulo foi chamado o “Pai-nosso” do Quarto Evangelho!

Como em 11,41-42 e 12,27-28, também aqui a oração de Jesus revela aum determinado público sua comunhão com o Pai. Aqui, porém, o públicoestá preparado para participar dessa comunhão, enquanto nos dois casosanteriores a revelação na prece servia para provocar a fé. Aqui, a união deJesus com os seus chega a um ponto que só poderá ser aperfeiçoado — nosdiscípulos — quando reconhecerem a glória de Jesus no dia da Páscoa.

Pela terminologia e relativa independência em relação ao que precede(compare, p. ex., 16,26 com 17,9), como também pela estrutura poética sólidae acabada, podemos supor que esta prece, antes de ser incluída no evangelho,se cristalizou na liturgia da comunidade joanina (cf. Intr. a 13–17).

I. A hora da glória e a obra levada a termo (17,1-8)

“Pai, chegou a hora! Glorifica (= manifesta a glória do) teu filho, paraque ele te glorifique (= manifeste a tua glória)”. A manifestação da glória éa chave de leitura para a oração de Jo 17. A oração expressa a realidadeprofunda da comunhão entre Jesus e o Pai: a obra que Jesus leva a termo nasua “hora” é a manifestação da glória de Deus. Aquele que se consuma emsua morte, coroada pela ressurreição, mostra a glória, a realidade divina doamor do Pai. E nisso consiste a própria glória de Jesus, que não depende delemesmo, mas do Pai que a manifesta. É essa a glória que contemplamos naPalavra feita carne, conforme o Prólogo (1,14).

Jesus manifesta a glória de Deus: no Antigo Testamento, a glória não étanto o brilho quanto o peso, a substância, a consistência, a dignidade (“umapessoa de peso”). Pois bem, é exatamente isso que Jesus revela a respeito deDeus: sua “consistência”. Diz 1Jo 4,8 que Deus é amor. O gesto de doação

17,1-2

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extrema de Jesus, levado ao fim, é a manifestação disso. O amor de Deusmanifesta sua fecundidade no dom da vida de Jesus: é a glória de ambos.Aqui, na oração de Jo 17, trata-se especialmente da manifestação do poderde Deus que age em Jesus e lhe confere a vitória. Neste sentido, apesar deser um texto autônomo, Jo 17 vem completar de modo muito adequado ofinal do cap. 16. O cap. 17, todavia, vai mais longe que o anterior: se na“exaltação” de Jesus se manifesta a glória de Deus, essa glória é também ade Jesus, desde sempre e para sempre (>Voc. Glória).

Na unidade “operacional” do Pai e do Filho (cf. 10,30), Deus deu a Jesus“poder sobre toda a carne” (cf. Sr 17,1-4), para dar vida eterna aos que lheconfiou (cf. 6,39…). Agora, em face da morte, fica mais claro o sentido dessamissão: por sua vida fiel até a morte, Jesus dá “vida de eternidade” aos que Deuslhe deu (o verbo “dar” é central: o Pai, vv. 2.4.6-7.8.24; o Filho, v. 2.8.14.22;o dom por excelência é quando Deus dá ao Filho os homens em comunhão:v. 6). Jesus dá aos que lhe são dados vida que tem a qualidade de Deus mesmo(cf. 6,57). Por sua morte por amor, Jesus abre, para os que o quiserem seguir,uma vida que não perece quando passam as coisas deste mundo.

O v. 3 é uma explicação, um parêntese na boca do próprio Jesus (noestilo de 3,19). Lembra uma confissão de fé. A “vida eterna” — termo quena segunda parte de João ocorre só em 17,2-3 — consiste em conhecer o Pai,o “único Deus verdadeiro” e “Jesus Cristo”, o Messias, seu Enviado. (“Úni-co Deus verdadeiro” é uma definição bem israelita de Deus, cf. Dt 6,4; Êx34,6; Is 37,20; Jo 5,44; Ap 6,10.) Será que esse conhecer se realiza somentena vida do além, depois da morte? O verbo de 17,3 está no tempo presente.Segundo a lógica de João, quem tem a fé já tem a vida eterna; na fé se“conhece” (no sentido semítico de reconhecer e ter experiência) Jesus e seuPai e vive-se a “vida da eternidade”.

Na sua vida aqui na terra, Jesus mostrou a glória do Pai, levando a termoa obra que este lhe tinha dado (cf. 12,28: “eu o glorifiquei”), e agora — nãopara cobrar compensação, mas para selar a comunhão — Jesus pede ao Paique mostre a glória que é a de Jesus desde o princípio (cf. 1,1.14). Ingenu-amente podemos pensar que Jesus não precisava pedir isso. De fato, nãoprecisava (cf. 11,41). Ele pede isso como orante, como liturgo na frentedaqueles que, à luz da Páscoa (cf. 20,17), são seus irmãos. (A liturgia cristãcantava desde há muito que Deus reconheceu a obra do Servo dando-lhe, nahora da exaltação, a glória e o nome supremo; Fl 2,9-11.)

“E agora…” é uma expressão comum nas orações e nas profecias paraanunciar a intervenção de Deus. Jesus pede a Deus que entre em ação “agora”,na “hora” (cf. 12,28: “eu o glorificarei ainda”). A glória que Jesus-Palavra

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possuía junto de Deus antes da criação do mundo (cf. 1,14; Pr 8,23; Sb 7,25etc.) é manifestada definitivamente na “hora” do amor até o fim. O projetoda Palavra, do “relato vivo” de Deus, chega à sua realização. Sua trajetória“na carne” se fecha. O lugar de Jesus é na glória de Deus (cf. 1,1-2.18).Jesus mostrou o amor — que é a glória — de Deus na prática de sua vidae morte. Agora Deus vai mostrar que sua glória — a glória do amor até ofim — é a glória de Jesus, desde sempre e para sempre.

Jesus manifestou “o nome” de Deus. O nome significa a pessoa, seu ser,sua presença, seu agir. Talvez haja aqui uma alusão a 8,24.28.58 (“Eu sou”),se é que estes textos aludem ao nome de YHWH. Em Is 52,6, a manifestaçãodo nome de Deus e o reconhecimento (cf. Jo 17,7) do “Eu sou/estou” éplenitude escatológica (>exc. 8,25). Jesus manifestou a presença de Deus àspessoas que este lhe deu, pois em Jesus puderam ver Deus (cf. 1,18; 14,9).Pertenciam a Deus, e Deus as deu a Jesus, e elas guardaram a palavra deDeus. “Agora”, quando Jesus alcança o termo de sua missão, reconhecem aorigem divina dessa missão.

O v. 8 explica: Jesus é o porta-voz de Deus, o novo Moisés (cf. Dt 18,18:Deus colocou suas palavras na sua boca). Jesus deu aos seus as palavrasque Deus lhe confiou e eles as acolheram e reconheceram que Jesus veiorealmente de Deus, ou seja, que “Deus o enviou” (Jesus mesmo parece estarpronunciando aqui a confissão de fé da Igreja!).

II. Consumada a obra, a oração pelos que permanecem (17,9-19)

Os que Deus lhe deu e aos quais ele fez ver que Deus “é”, Jesus ora por eles,mas não pelo “mundo” (cf. 8,23; 14,22). Isso escandaliza o homem pluralista dehoje, mas cabe perfeitamente na lógica do evangelho joanino: Jesus reza poraqueles que Deus lhe deu, pois pertencem a Deus, assim como tudo o que é deJesus é de Deus, e vice-versa. Quanto ao mundo, esse tem de parar de ser“mundo” (no sentido de oposto a Deus; cf. 1Jo 2,17). Dedicando sua vidaàqueles que pertencem ao Pai, Jesus encontra sua glória, ou seja, sua participa-ção naquilo que é mais próprio do Pai: “Eu sou glorificado neles” (v. 10).

Os fiéis continuam no mundo, enquanto Jesus o deixa. Por isso, Jesuspede: “Guarda-os em teu nome, o nome que me deste”. Deus os conservetambém, “depois de Cristo”, com seu poder e com a autoridade que estápresente em Jesus de Nazaré. Assim, a mesma unidade que uniu Jesus comDeus na sua missão na terra, envolve agora os fiéis: “que eles sejam umcomo nós somos um” (cf. 10,30).

A ausência física de Jesus não impede nossa união com ele. Que ele estána glória significa exatamente que ele não depende das restrições da “carne”,

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da existência histórica limitada. O que impede a união é sua “ausência sócio-cultural”. Jesus sumiu do mundo como presença religiosa e cultural e, assim,da cabeça e do coração das pessoas. Por isso não nos podemos identificarcom esse mundo. Mas será mesmo que Jesus sumiu do mundo? Não virou,pelo contrário, sucesso comercial, show e web-site? Ora, se estamos falandode Jesus de Nazaré e do Gólgota, aquele que lavou os pés dos discípulos,creio que sumiu mesmo do mundo…

Enquanto Jesus estava fisicamente presente junto aos seus (ele fala comose já tivesse passado para junto de Deus!), ele os guardou no nome (= poder,autoridade) que Deus lhe deu (cf. supra, v. 6). Assim, nenhum deles seperdeu, a não ser o “filho da perdição” (= aquele que vai à perdição; cf. Is57,4; Pr 24,22a LXX) — pois também nisso a Escritura se cumpre: o cami-nho da perdição que Judas livremente escolheu não invalida a obra de Jesus;pelo contrário, confirma o plano de Deus que se reflete na Escritura (Jo13,18 relacionou a traição de Judas com Sl 41,10; At 1,16-20 cita Sl 69,26;109,8; e Mt 27,3-10 supõe Dt 23,19 e cita livremente Zc 11,12-13).

“Agora”, Jesus está voltando para o Pai e, ainda no mundo, revela suavisão acerca da obra dele e do Pai, para que os fiéis participem de sua ale-gria. A plenitude da alegria cristã é participar da alegria do Cristo que entrana glória do Pai. Essa alegria não nega a cruz, pois é pela cruz que se realizaa glorificação de Cristo. Por isso, tal alegria se encontra geralmente nos quemais participam da luta e do sofrimento de Cristo, no empenho por seusirmãos que sofrem.

Jesus confiou aos homens a mensagem a respeito de Jesus e mostrou-lhes, paradoxalmente, o rosto do Deus invisível (cf. 1,18). A sociedade,porém, assim como rejeitou Jesus, vomitou aqueles que acolheram sua pa-lavra, porque não pertencem ao domínio do “mundo” (no sentido negativo),ao qual Jesus tampouco pertence. Diante disso, porém, Jesus não pede ao Paique os afaste do mundo (visto aqui como destinatário da salvação); pois seulugar de atuação e de testemunho é aí mesmo! Só roga que o Pai os guardedo Maligno que domina o mundo. O problema não é o mundo, mas aqueleque o domina. Também hoje. Não atribuamos ao mundo a culpa que é dequem o domina (>com. 18,11).

No mundo, não do mundo

Como Jesus, segundo 8,21, também os discípulos, segundo 17,14, não sãodo mundo; mas Jesus não pede que sejam tirados do mundo, mas que nomundo sejam protegidos contra o Maligno. Por trás de suas palavras está aidéia da “eleição” do meio do mundo (>com. 15,16). Por tudo o que já

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lemos fica claro que João não aconselha a fuga do mundo aos seus leitores.Mundo (>Voc.) tem diversos sentidos, principalmente: (1) âmbito destina-tário da salvação; (2) âmbito que recusa a salvação oferecida. No primeirosentido, o lugar de Jesus e dos seus é naturalmente no mundo, ao qual elesdevem apresentar a salvação, “tirando o pecado do mundo” (1,29; 20,19-23). No segundo sentido, eles não podem pertencer ao mundo, não podemestar em seu poder, ser-lhe submissos.

Será que essa visão tem sentido concreto hoje? Sim. O cristão tem de tornarpresente a salvação que reconhece em Jesus, e que consiste em crer nele eguardar sua palavra, essencialmente: o amor fraterno, com tudo o que issoimplica em termos de justiça, de criação de estruturas sociais justas, deresponsabilidade social, profissional, ecológica etc. Esta é sua missão nasociedade. A sociedade não é um mal; é uma chance para o evangelho.

Mas o cristão não deve pertencer ao mundo ou ao poder que o domina. Sema orientação para o Pai que se manifesta em Jesus, o mundo torna-se egoís-ta, cruel, pecaminoso. Quem tem uma missão da parte de Deus e de Cristonão se pode deixar dirigir por um mundo que vai na direção oposta. Parao bem do mundo, tem de ser contrário a tal “mundo”. Ora, isso não serealiza fugindo do mundo, mas vivendo a “diferença cristã”, o contrastecom “o mundo”, enquanto se está presente no mundo (>Intr. § 3.2; 3.4).

Os discípulos não pertencem ao mundo, assim como Jesus não pertenceao mundo. Sua pertinência é outra: Jesus pede ao Pai que os “consagre(santifique) na verdade”.

“Consagrar (santificar)” é fazer pertencer a Deus — o Sacro, o Santo.Implica certa separação, ser reservado para o Santo. Jesus fala assim de simesmo em 10,36: o Pai o reservou para ser seu Santo (cf. 6,69) e o enviouao mundo. O povo eleito, Israel, era assim dedicado à santidade de Deus(“Sede santos porque Eu sou santo”, Lv 19,1). É o que hoje chamamos umarealidade “sacramental”: significa a graça de Deus e a torna presente. AIgreja é o sacramento de Deus no mundo, o espaço no qual se manifesta asantidade de Deus, transformando-o.

“Consagra-os na verdade”: “a verdade” é a manifestação de Deus, de seuamor e fidelidade, em sua palavra, que vem por meio de Jesus. Jesus pedesejam eles consagrados em virtude dessa verdade, ou seja, da missão assumidapor ele e continuada pelos seus: “Como tu me enviaste ao mundo, eu tambémos enviei ao mundo” — o mundo destinatário da salvação. Cf. 15,9: amor.

“E por eles eu me consagro (= dedico-me ao Santo, fazendo a consagraçãode minha vida) para que sejam consagrados (santificados) na verdade” (lit. “emverdade”, o grego dispensa aqui o artigo definido; hebr. be’emet). Nesta frase,que mereceu para o cap. 17 o título de “oração sacerdotal”, a expressão

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“por eles” (hyper) lembra outras expressões do dom da vida em prol dos outros:6,51 (“pela vida do mundo”), 10,11 (“pelas ovelhas”), 11,51 (“pela nação”),15,13 (“pelos amigos”). Compare-se também Rm 8,32 e, sobretudo, as palavraseucarísticas de Mc 14,24 par.; 1Cor 11,24. Para que os fiéis pertençam à ver-dade, que é Deus manifestando-se no amor, Jesus se torna oblação dedicada àverdade e à fidelidade de Deus. Dedicando-se à santidade de Deus, Jesus envol-ve os seus nesta mesma santidade. Ora, eles têm de viver essa consagração nomundo, pelo testemunho de sua palavra e prática.

Santidade ou amor? Tendemos a entender a santidade de Deus como distante — o ser “total-mente outro” — e seu amor como próximo, até familiar e aconchegante.João, assíduo ouvinte da Torá, conhecia “a Lei da Santidade” de Lv 17–26,que combina inseparavelmente a santidade de Deus (Lv 19,1) com o amorfraterno (p.ex. Lv 19,18) e as demais práticas de “justiça” (pois, biblicamen-te, o amor fraterno é uma forma de “justiça”).A santidade de Deus significa sua alteridade, sua qualidade de ser supremoe único, superior a nosso poder e nossa manipulação. “Só Deus é grande”era o lema do profeta de Canudos, Antônio Conselheiro. Ora, em muitasformas de religião, a santidade parece contaminada pela magia: como setem medo dos poderes misteriosos, procura-se manipulá-los. Não assim natradição judaica e cristã. Nesta, Deus é separado porque seu amor está forado alcance de qualquer manipulação ou corrupção. Ele é “totalmente outro”por seu amor incomparável e soberano. Sua santidade identifica-se com seuamor, que se torna um convite constante ao nosso amor, o qual encontra seudestinatário em nossos irmãos (cf. 1Jo 4,21).

III. Unidade e amor (17,20-26)

Jesus recomenda a Deus não apenas seus discípulos imediatos, mas tam-bém os que chegam à fé pela palavra deles (cf. Rm 10,14): os cristãos dasegunda e terceira gerações, os leitores do evangelho de João, nós...

Os vv. 21-23 merecem ser vistos no seu paralelismo poético:

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21-23

21(Para)n que todos sejam um,como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti.

(Para) que eles estejam em nós,a fim de que o mundo creia que tu meenviaste.

22Eu lhes dei a glória que tu me deste,para que eles sejam um,como nós somos um: 23eu neles, e tuem mim,para que sejam perfeitamente unidos,para que o mundo conheça que tu meenviastee os amaste como amaste a mim.

n “que” = “para que”

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Que todos eles constituam na sua vida e atuação uma só realidade (o gregousa o neutro hen), segundo o modelo da realidade única constituída por Jesuse o Pai (cf. 10,30; o “como” dos vv. 21b e 23c significa “como e porque”,como em 15,9.12). Jesus deseja também que o mundo acredite que ele é oEnviado do Pai. Pois agora ele já não está no mundo para fazer sinais emilagres que levem à fé. Agora o sinal por excelência indicando a origemdivina da mensagem de Jesus consiste no amor, que se torna visível na uniãofraterna dos cristãos. Jesus confiou aos fiéis a glória, a participação no amorque Deus lhe tinha confiado, para que vivessem em unidade, como ele e o Pai:“Eu neles, e tu em mim, para que sejam perfeitamente unidos (por Deus), eo mundo conheça (= tenha experiência de) que tu me enviaste e os amastecomo amaste a mim” (cf. 14,23: o Pai amará quem guarda a palavra de Jesus).

Esse reconhecimento pelo mundo não está em contradição com o v. 9?No presente trecho, “mundo” é visto como destinatário da salvação, comoem 3,16 e 17,18. Diante da manifestação de Deus em Jesus, o mundo devedecidir que mundo ele quer ser.

Nos vv. 22-23 percebe-se uma mudança notável: o vv. 22 começa como tema da glória e termina com o do amor. Essa articulação vale para aoração inteira: a partir do vv. 23 aparece 3 vezes o termo “amar”, que antesnão apareceu. A oração do cap. 17, que começou como um pedido de glória,termina no vv. 26b pedindo o amor. A glória está no amor.

Unidade: para dentro ou para fora?

Quando reza pela unidade dos que crêem pela palavra dos seus enviados,os discípulos da primeira hora, Jesus está falando de quê? Da unidade dentrode sua(s) comunidade(s), ou da unidade entre diversas comunidades, de diver-sas origens apostólicas (pois a Igreja nasceu plural). Em 10,16 e 11,51-52,desponta com clareza esta última idéia, que faz parte da esperança messiâ-nica conforme a imagem do pastor escatológico segundo Ez 34,23-24. EmJoão, essa visão é ainda mais ampla, pois não pensa apenas em Israel, mastambém nos samaritanos e nos gentios.

A expressão “os que crêem em mim pela palavra deles” se referiria, então, àsdiversas igrejas surgidas da pregação daqueles que presenciam a ceia (osDoze) ou de seus equivalentes (Paulo, Barnabé…). É neste sentido que estetexto inspira a oração pela unidade das Igrejas cristãs hoje. Não se entenda,porém, tal unidade como “ecumenismo a qualquer preço”, mas como unidaderegida pela fé e pela caridade (João é severo neste ponto: veja 2Jo 10!).

Ora, a presença, em Jo 17,23, do tema do amor — que deve ser aprofundadopela leitura da 1Jo — nos faz pensar que a oração pela unidade visa tambémà unidade interna da comunidade ou das comunidades joaninas. A expres-

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são “um”, no neutro, poderia traduzir o hebraico yahad, neste sentido (cf.Sl 133,1). Então se verificaria o que mais tarde a teologia captou em frasesfamosas, como “Vede como eles se amam” (Luciano de Samosata) ou“Onde reinam a caridade e o amor, Deus aí está” (antífona gregoriana daQuinta-feira Santa).

Certo é que as comunidades, tanto para dentro como para fora, devem serimagens da unidade de Jesus e o Pai e do amor que a partir deles chega aténós. É por isso que Jesus reza (17,23).

Nos últimos versículos, Jesus exprime seu grande desejo de estar unido aoPai e aos seus. Introduzido pelo verbo “eu quero”, o v. 24 poderia ser chamado“a última vontade de Jesus: “Pai, quero que aqueles que me deste estejamonde eu estou (cf. 14,2), para que possam contemplar minha glória, que é teudom, porque me amaste (= me amas desde) antes da fundação do mundo”.

A glória de Deus consiste no amar (“Deus é amor”, 1Jo 4,8.16). Antesda fundação do mundo, ou seja, no tempo eterno de Deus, essa realidadeexistia entre o Pai e o Filho. Com a vinda do Filho ao mundo, ela se tornoumanifesta para o mundo e, nesta manifestação do amor, Deus mesmo se deua conhecer (cf. 14,9; 1,18).

Jesus reza para que estejam com ele os que o Pai lhe deu. O estar comJesus já foi mencionado em 12,26 e 14,3. Jo 14,23 sugeriu que o estar comJesus se realiza quando ele e o Pai fazem sua morada naquele que com elescomunga pelo amor, observando o mandamento de Jesus. Aqui, o tema re-cebe toda sua amplidão: essa inabitação tem por meta última o estar comJesus na sua glória, mas começa no serviço da caridade em fidelidade a eledentro da história. Este dinamismo, que a partir daquilo que já somos crescepara a plenitude de nossa vocação, se exprime muito bem em 1Jo 3,2.

“Pai justo (= que fazes tudo bom e justo), o mundo não te reconheceu,mas eu te reconheci e estes reconheceram que tu me enviaste. Eu lhes deia conhecer o teu nome…”. A obra de Jesus manifestou a presença e a “iden-tidade” de Deus, seu modo de ser. “E o darei a conhecer ainda.” A obrade Jesus continua, inclusive pela presença do Paráclito. Assim (“para que”= de modo que), “o amor com o qual me amaste estará neles, e eu mesmoestarei neles”: Jesus não apenas mostrou o amor de Deus; ele o implantounos seus, para que permanecesse presente e ativo no mundo.

Se comparamos estas palavras com o início da oração, vemos que alinguagem de Jesus passou por uma modificação sutil, mas significativa.Os v. 1-5 evocavam sua união com o Pai e com os seus na glória; nosvv. 24-26, passa-se da unidade na glória para a unidade no amor. A glóriade Deus é a manifestação do amor. Hoje, essa manifestação se realiza na

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prática da comunidade. Com vista a esta prática, Jesus recomenda a comu-nidade ao Pai, no momento de entrar na plenitude de sua glória. Assim, orosto amoroso do Pai brilhará na prática da comunidade.

Em lugar nenhum fica mais claro que a unidade de Jesus com o Pai nãoé apenas funcional, em função da “obra” (>com. 10,30). Ela tem raízesmais profundas. É um mistério indescritível, que o termo “amor” evocaapenas de longe.

Era Jesus astronauta?

Muita gente imagina Jesus como um astronauta, um extraterráqueo, quevem do alto, de Deus, cumpre aqui sua missão e volta para sua base espacialacima das nuvens… Ao ler Jo 17 (e 1,1-2) tem-se a impressão de que aPalavra de Deus desceu da glória celestial, revestiu-se com o corpo deJesus, cumpriu aqui a missão de revelar a glória de Deus e voltou para o céusem tocar propriamente no chão. Parece flutuar por cima do palco da His-tória. Ora, imaginar Jesus assim é uma heresia bem antiga, o docetismo:Jesus parece humano, mas não é (>Intr. § 4.2). A trajetória da Palavra deDeus parece então uma linha parabólica que não toca o chão da históriahumana (fig. A). Pelo contrário, devemos imaginar a trajetória da Palavracomo na fig. B, enterrando-se na história humana, como o grão de trigo quemorre na terra para produzir fruto (cf. 12,26). Se Jesus não assumiu nossahumanidade, também não a redimiu (cf. Ireneu de Lião).

TRAJETÓRIA DA PALAVRA: “De ti saí… vou para junto de ti” (17,8.11)

glória glória

glória do amar

história (carne)

história (carne) grão de trigo

fig. A (modelo docetista): a Palavranão atinge o chão da história

fig. B: a Palavra se encarna na história, morrequal grão de trigo na terra e produz fruto que

permaneça

Só podemos conceber bem a obra de Jesus-Palavra, a manifestação da glóriade Deus, se temos claro que a glória de Deus é seu amor. Este não se revestede aparência carnal, mas torna-se carne, agir histórico humano, assumindoa morte por amor fiel. No Prólogo (1,14), as duas frases, “a Palavra se fezcarne” e “vimos a sua glória”, são inseparáveis.

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Jesus entrega sua obra às mãos do Pai e, com sua obra, aqueles queacolheram sua manifestação do Pai na glória do amar. Confia-lhe,inclusive, os fiéis dos tempos vindouros (17,20; cf. 20,29).

A união com Deus, com Jesus e entre nós, em que estamos envolvidos,supera o tempo. Por isso mesmo, ela se configura em cada tempo demaneira nova. Quem ama sabe como deve continuamente adequar aexpressão, a obra do amor a novas circunstâncias. O amor coroadopela glória é o motor da incansável novidade da comunidade. No diaem que se contentar em ser mera guardiã de formas e práticas tradi-cionais, a comunidade estará morta.

E a unidade entre nós? Que seja como entre Jesus e o Pai. Unidadede amor, pela livre doação de cada um. Não uniformidade imposta. Àdireita, direito canônico igual para todos, à esquerda, ideologia igualpara todos: não é isso que Jesus quer dizer quando reza: “Que sejamum como nós somos um”. O vínculo da unidade não é o vínculo dauniformidade, mas da dedicação de cada um a seu irmão, levando emconsideração a coerência do corpo todo.

O ENALTECIMENTO DE JESUS (18–20)

Tratamos os caps. 18–19 e o cap. 20 em conjunto porque, para João,morte e ressurreição constituem as duas dimensões inseparáveis doenaltecimento de Jesus. Todavia, por causa do conteúdo e da composiçãoliterária, convém distinguir, sem separá-las, as duas partes, o relato da Paixãoe as aparições do Ressuscitado.

A. Paixão e morte (18,1–19,42)

A narrativa da Paixão (caps. 18–19) está enquadrada entre o “jardim” (=sítio) do outro lado do Cedron (nos sinópticos: Getsêmani, “Jardim das Oli-veiras”) e o jardim na proximidade do Gólgota, onde Jesus é colocado numtúmulo novo; este segundo “jardim” constitui também o quadro das apari-ções pascais de 20,1-18. Entre os dois “jardins”, a narrativa segue um trajetoclaramente descrito: do jardim ao palácio dos sumos sacerdotes, daí ao pre-tório de Pilatos, ao Gólgota e, finalmente, ao jardim do sepulcro. Ainda queeste enquadramento topográfico e o estilo preponderantemente narrativo (emcontraste com o estilo dialogal dos capítulos anteriores) demarquem no con-

18,1–19,42

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junto do evangelho um espaço próprio, não podemos negligenciar a ligaçãocom os capítulos anteriores. Não há nova indicação de tempo, a não ser ovago “Dito isso” (18,1). O início do episódio alude ao tema do início da ceia:o seguimento de Jesus (cf. 13,31-38).

Os caps. 18–19 constituem um conjunto narrativo fortemente unido, comuma contínua articulação entre as sucessivas cenas. Podemos, para fins declareza e baseando-nos nas mudanças de assunto, cenário e cronologia, di-vidir o relato da Paixão em três seqüências:

I. de noite, Jesus preso no Getsêmani e levado às autoridades judaicas(18,1-27);

II. na madrugada, Jesus perante Pilatos no pretório (18,28-19,16a);III. a partir da hora sexta (meio-dia), no Gólgota, crucifixão, morte e

sepultura (19,16b-42).

Veremos, nas introduções a cada seqüência, que todas elas podem serdivididas em sete cenas, de modo que a narrativa da Paixão seria uma com-posição de 3x7 cenas.

Quanto aos conteúdos, João reproduz essencialmente a mesma tradiçãoque os evangelhos sinópticos, mas, guiado por sua própria perspectiva,reinterpreta tudo de modo original. A comparação com a tradição sinópticaserve para perceber melhor o interesse teológico de João.

Não entramos no debate em torno da responsabilidade do povo judeu,pois essa questão é anacrônica e não pertence à intenção do texto. Aquelesque João chama de “os judeus” nada têm a ver com o povo judeu de hoje,nem Pôncio Pilatos com os romanos de hoje. Nada mais são que expoentescasuais do poder dominante naquela época e naquele lugar. Interessa-nos,sim, o que João diz sobre o poder como tal — que é o mesmo, sempre e emtodo lugar.

Mais ainda que os capítulos anteriores, o relato da Paixão é marcado pelaambigüidade joanina em torno da messianidade e missão divina de Jesus.Instruídos pelos diálogos da despedida, somos agora capazes de divisar asverdadeiras dimensões do drama. Jesus foi condenado pelos chefes judaicosporque, “julgando prestar culto a Deus” (cf. 16,3), lhe atribuíam pretensõesincompatíveis com seu conceito de Deus; e por Pilatos, em virtude da razãode Estado, por ser considerado “rei dos judeus”... Mas o adversário de Jesusnesta história não é nem o Sinédrio nem Pilatos, mas um personagem bemmais importante: o “chefe deste mundo”.

Em tudo isso, Jesus levou a termo a obra do Pai, delineada desde muitonas Escrituras. Essa obra do Pai deve ser o objeto de nossa busca.

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Jesus preso e interrogado pelas autoridades judaicas (18,1-27)

I — 18 1Dito isso, Jesus saiu com seus discípulos para o outro lado datorrente do Cedron. Lá havia um jardim, no qual ele entrou com osseus discípulos. 2Também Judas, o traidor, conhecia o lugar, porqueJesus muitas vezes ali se reunia com seus discípulos. 3Judas, pois,levou o batalhão e os guardas dos sumos sacerdotes e dos fariseus,com lanternas, tochas e armas, e chegou ali.4Jesus, então, sabendo tudo o que ia acontecer com ele, saiu e disse:“Quem procurais?” 5– “Jesus de Nazaré!”, responderam. Ele dis-se: “Sou eu”. Judas, o traidor, estava com eles. 6Quando Jesus disse“Sou eu”, eles recuaram e caíram por terra. 7De novo perguntou-lhes: “Quem procurais?” Responderam: “Jesus de Nazaré”. 8Jesusretomou: “Eu já vos disse que sou eu. Se é a mim que procurais,deixai que estes aqui se retirem”. 9Assim se cumpria a palavra queele tinha dito: “Não perdi nenhum daqueles que me confiaste”.10Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou-a e feriu o servo dosumo sacerdote, cortando-lhe o lóbulo da orelha direita. O nome doservo era Malco. 11Jesus disse a Pedro: “Guarda a tua espada nabainha. Será que não vou beber o cálice que o Pai me deu?”

II — 12O batalhão, o comandante e os guardas dos judeus tomaram Jesusconsigo e o amarraram. 13Primeiro, o conduziram a Anás, sogro deCaifás, o sumo sacerdote daquele ano. 14Caifás era quem tinha acon-selhado aos judeus: “É conveniente um só homem morrer pelo povo”.15Simão Pedro e um outro discípulo seguiam Jesus. Este discípuloera conhecido do sumo sacerdote. Ele entrou com Jesus no pátio dosumo sacerdote. 16Pedro ficou do lado de fora, perto da porta. Ooutro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote, saiu, conver-sou com a atendente da porta e levou Pedro para dentro. 17A meninana porta disse a Pedro: “Não pertences tu também aos discípulosdesse homem?” Ele respondeu: “Não”. 18Os servos e os guardastinham feito um fogo, pois fazia frio; estavam se aquecendo, e Pedroestava com eles para se aquecer.19O sumo sacerdote interrogou Jesus a respeito dos seus discípulos e deseu ensinamento. 20Jesus respondeu: “Eu falei abertamente ao mundo.Eu sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde os judeus se reú-nem. Nada falei às escondidas. 21Por que me interrogas? Pergunta aosque ouviram o que eu falei; eles sabem o que eu disse”. 22Quando assim

18,1-27

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falou, um dos guardas que ali estavam deu uma bofetada em Jesus,dizendo: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” 23Jesus respon-deu-lhe: “Se falei mal, mostra em que falei mal; e se falei corretamente,por que me bates?” 24Anás, então, mandou-o, amarrado, a Caifás.25Simão Pedro continuava lá, aquecendo-se. Disseram-lhe: “Não éstu, também, um dos discípulos dele?” Pedro negou: “Não”. 26Entãoum dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedrotinha cortado a orelha, disse: “Será que não te vi no jardim comele?” 27Pedro negou de novo, e na mesma hora um galo cantou.

A narrativa da prisão e do comparecimento diante das autoridades judai-cas é construída em duas seqüências, num total de sete cenas, que têm Jesuscomo protagonista, enquanto se revezam como coadjuvantes os discípulos(disc.) e os “judeus” (jud.).

I. Prisão de Jesus no Jardim das Oliveirase reação de Pedro

(18,1-11)

II. Interrogatório de Jesus no palácio dosumo sacerdote, intercalado com a

negação de Pedro (18,12-27)

(disc.) Jesus e os discípulosvão ao horto (vv. 1-2);

(jud.) Judas e o batalhãochegam aí e Jesus os enfrenta

(vv. 3-9);

(disc.) Pedro fere o servo dosumo sacerdote (vv. 10-11).

(jud.) (transição)Os guardas aprisionam

Jesus e o levam a Anás(vv. 12-14).

(disc.) A negação de Pedro(vv. 15-18);

(jud.) Interrogatório de Anás(vv. 19-24);

(disc.) Segunda negação dePedro (vv. 25-27).

A ação se desenvolve numa atmosfera de ambigüidade e escuridão, naqual brilham a “epifania” e a palavra franca (parresia) de Jesus. No conceitooriginal do evangelho (sem os capítulos 15–17), estas cenas seguiam logodepois de 14,30-31, quando Jesus anunciou que o chefe deste mundo nadapode contra ele. É o que se constata aqui.

Embora siga o mesmo esquema geral, João demonstra em relação àtradição sinóptica algumas diferenças maiores, que revelam seu olhar pró-prio. João não relata a agonia de Jesus no Getsêmani, porque já antecipoua decisão suprema de Jesus de fazer a vontade do Pai, antes das palavras dadespedida, no cap. 12 (12,23-33). Nem relata o interrogatório perante Caifás(embora o mencione, 18,24), provavelmente para não dar a impressão de queJesus foi condenado em processo formal presidido por Caifás, sacerdote emfunção (cf. 11,51). Na realidade, diversos tópicos do interrogatório se encon-

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tram alhures em João: — 11,47-53: sessão do Sinédrio em que Caifás acon-selha matar Jesus; — 2,19: a palavra de Jesus sobre a destruição do Templo,cf. Mc 14,58 par.; — 10,24-25.33.36: perguntas e respostas semelhantes àsdo interrogatório no Sinédrio (cf. especialmente Lc 22,67.70); — 1,51: amanifestação do Filho do Homem, cf. Mc 14,62 par.

Quanto à prisão de Jesus, o interrogatório do sumo sacerdote, a negação dePedro, João segue a ordem de Mc/Mt, enquanto Lc antecipa a negação de Pedro.

Mt Mc Lc Jo

26,47-56 14,43-52 22,47-53 prisão de Jesus 18,1-12

26,57-58 14,53-54 22,54-55 Jesus levado ao Sumo 18,13-17 (levado aAnás + discípulos

seguindo)

26,59-66 14,55-64 acusação de blasfêmia 18,18-21 (diálogo com Anás)

26,67-68 14,65 espancamento (Mc/Mt) 18,22-23 bofetada)

26,69-75 14,66-72 18,24: transferênciapara Caifás

22,56-62 a negação de Pedro 18,25-27(Mc/Mt)

22,63-65 espancamento (Lc)

22,66-71 acusação deblasfêmia (Lc)

I. Prisão de Jesus no Jardim das Oliveiras (18,1-11)

Continua aqui a ação anunciada em 14,31 e interrompida pela inserção doscapítulos 15–17. Depois da oração, Jesus vai com os discípulos para o outrolado da torrente do Cedron, ainda cheia das chuvas de inverno (novembro-março), para a margem oposta, plantada com olivais. A travessia do Cedron(18,1) não é mencionada pelos sinópticos, mas lembra alguns textos bemconhecidos do AT: a saída de Davi diante de Absalão (2Sm 15,23; compare2Sm 15,14 com Jo 14,31); e a advertência de Salomão a Simei (1Rs 2,37).

Os sinópticos chamam o lugar aonde Jesus vai o “monte das Oliveiras”(Mc 14,26 par.) ou Getsêmani, “lagar das olivas” (Mc 14,32 par.), nome queJoão traduz como “jardim das oliveiras”, demonstrando sua preferência por“jardim, pomar” (cf. 18,26; 19,41). Pode-se imaginar que Jesus ia lá pernoi-

1-2

18,1-27

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tar, pois na cidade não havia lugar por causa da multidão dos peregrinos.Judas, que está tramando a traição, conhece o lugar, porque Jesus costuma-va encontrar-se ali com seus discípulos. Segundo Mc 11,12.19, Jesus pernoi-tava naqueles dias fora da cidade, em Betânia, atrás do monte das Oliveiras;segundo Lc 21,37, no próprio monte das Oliveiras.

Ao dirigir-se ao jardim das oliveiras, Judas leva consigo a “coorte”, umbatalhão do exército romano! Será esse batalhão um exagero “majestático”(Judas representa o “chefe deste mundo” cf. 13,27; 19,11), ou talvez umamaneira de sugerir a luta da luz contra as trevas? Além disso, leva guardas(lit. “súditos”) dos sumos sacerdotes e dos fariseus — estes, apresentadosaqui como autoridades, o que não corresponde ao tempo de Jesus, e sim aoda comunidade joanina (cf. 1,19.24).

A presença do batalhão do exército romano — que inclusive vai levarJesus a um obscuro sumo sacerdote aposentado e não ao governador roma-no (18,13) — é própria da narrativa joanina e anuncia a “confusão” entreo poder judaico e o romano que se manifesta ao longo da narrativa toda(cf., p.ex., 19,16!). Para João, é tudo a mesma coisa: são fantoches nasmãos do “chefe deste mundo”. Com tanto soldado, a cena do Quarto Evan-gelho pode levar a imaginar-se a prisão de Jesus como uma maciça caçaa um Jesus “zelote” acompanhado de revolucionários subversivos. Mas aencenação joanina é teológica, não histórica (a descrição sinóptica nãosugere nada disso).

Jesus, “sabendo tudo o que vai acontecer” (expressão de sua união coma vontade do Pai, cf. 13,1-3), sai ao encontro deles e pergunta a quem estãoprocurando. Respondem: “A Jesus, o nazareno” (a tradução “Jesus de Naza-ré” esconde o teor depreciativo do termo “nazareno”, que indicava tambémos cristãos; cf. 1,45-46; >exc. 9,23). Jesus (e o cristão perseguido como ele?)responde: “Sou eu”. Nesta altura, João realça ironicamente a presença deJudas (v. 5c), o traidor, que fica sobrando: a declaração de Jesus não lhe dáchance para entregá-lo traiçoeiramente (cf. 10,17-18). João nem fala do beijoda traição. Não são Judas e seu inspirador, o “chefe deste mundo”, quedecidem o jogo. Jesus mesmo tem as rédeas na mão (>exc. 6,11). O “eu (o)sou” (>exc. 8,25) de Jesus ressoa com tanta majestade que os soldadosrecuam e caem no chão. Pois essas palavras são as da manifestação de Deus(Ex 3,14; >com. Jo 6,18; 8,58). Os soldados caem por terra (cf. Sl 27,2;35,4): não apenas “o chefe deste mundo” nada pode contra Jesus (cf. 14,30);sem querer, os próprios soldados atestam a majestade soberana de Jesus.

Jesus lhes pergunta outra vez a quem estão procurando, e novamente res-pondem: “Jesus, o nazareno”. “Já lhes disse que sou eu”, responde Jesus (cf.

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8,24!); e acenando para os discípulos, continua: “Se é a mim que procurais,deixai que estes aqui se retirem”. O bom pastor defende as ovelhas (cf. 10,11-13). Ninguém as tira de sua mão, que é a do Pai (10,28). Na sua oração, Jesustinha dito: “Não perdi nenhum daqueles que me deste” (17,12; cf. 6,39). Agora,na hora de sua paixão e glorificação, Jesus comprova por sua atitude a verdadedessa palavra, que é citada como se fosse uma palavra da Escritura (João dáigual valor à palavra de Jesus que à da Escritura; cf. 2,22; >com. 12,37-50,intr.). Em Mc 14,27 par., este é o momento em que pastor e ovelhas sãodispersos; aqui, a palavra de Jesus deixa claro que não foi por culpa do pastor!

Pedro, impulsivo e cioso de sua fidelidade (cf. 13,8.37-38), não permiteque seu mestre seja preso. Como um zelote qualquer, puxa da espada e cortao lóbulo da orelha direita do guarda pessoal do sumo sacerdote, de nomeMalco, que significa “rei” — mandante…26

Mas a luta de Jesus não é com este poder. Jesus manda Pedro guardara espada e diz: “Não beberei o cálice que o Pai me tem dado?” (“beber ocálice” significa conhecer a morte; cf. Mc 14,36 par.). Pedro ainda nãocompreendera a palavra que lhe foi dirigida na última ceia (13,36-38), nema parábola do grão de trigo (12,24).

II. Jesus perante os sumos sacerdotes; negação de Pedro (18,12-27)

Jesus, que dominava a cena anterior, é preso, algemado e levado pelobatalhão com o comandante e pelos “súditos dos judeus”. Lembramos: Jesussó pode ser algemado porque quer: ele “depõe a sua vida” (10,17-18).

Conduzem-no ao sumo sacerdote Anás, também conhecido como Ananias(hebr. Hananiá), ou Ânanos (hebr. Hanan) e mencionado em Lc 3,2 e At 4,6.Se, no século II aC, os reis macabeus (hasmoneus) tinham arrogado para sia função de sumo sacerdote, no século I aC, sob o Império Romano, ossumos sacerdotes eram sorteados entre os membros da aristocracia sacerdo-tal, que, assim como Herodes, rivalizava com o poder romano ao mesmotempo que dele dependia.

Anás era o sogro de Caifás, que estava exercendo o sumo sacerdócionaquele ano e que, profetizando sem querer, aconselhou aos judeus queentregassem à morte uma única pessoa, para salvar o povo (cf. 11,49-51).Foi sumo sacerdote de 6 a 15 dC, quando foi deposto pelos romanos.Mesmo assim continuou interferindo, como eminência parda, no governo

26. Os sinópticos falam em “orelha”, Lc 22,50 em “orelha direita”, mas não em “lóbulo daorelha”. O sumo sacerdote era ungido com sangue “no lóbulo da orelha direita” (Ex 29,20; Lv8,23). Será que no servo ficou ferido e desqualificado o seu amo, o sumo sacerdote?

18,1-27

. .

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da comunidade judaica. Mais uma vez, João se mostra a par dos assuntossacerdotais (>Intr. § 3.2.3:1).

Enquanto Mc 14,53 fala de um interrogatório formal diante do sumosacerdote, sem especificar o nome (assim também Lc), Mt 26,57 precisa queCaifás preside o ato, mas João descreve um diálogo bastante informal coma eminência parda Anás. Por outro lado, em 18,24 menciona que Jesus éconduzido a Caifás, mas não descreve o interrogatório ali. Isso é uma técnicahomilética: para expressar livremente sua interpretação dos fatos, sem estarligado ao já tradicional roteiro, João cria uma cena extra, em detrimento daconhecida cena da condenação pelo sumo sacerdote (Caifás), da qual eleguarda apenas a relação com a negação de Pedro (cf. vv. 19-23). É possíveltambém que ele tenha evitado a cena da condenação para sugerir que asautoridades judaicas não conseguiram declarar Jesus culpado (cf. v. 23),como também não Pilatos (cf. 18,38; 19.4.6).

O confronto entre Jesus e as autoridades judaicas é emoldurado pela ne-gação de Pedro (vv. 15-18 e 25-27). Simão Pedro acompanha Jesus (conformeos sinópticos, “de longe”, Mc 14,54 par.). João menciona, além de Pedro, umoutro discípulo — provavelmente o Discípulo Amado (>exc. 13,23) —, conhe-cido do sumo sacerdote. Tomando a dianteira (como em 20,4 e 21,7), ele entra,com Jesus e os guardas, no pátio do sumo sacerdote. Pedro fica fora. Será quea oposição dentro-fora tem sentido simbólico? Pois o entrar do “outro discípu-lo” realiza a frase: “Onde eu estiver, estará aquele que me serve” (12,26). Eleestará também ao pé da cruz. Agora, o “outro discípulo”, fazendo-se de inter-mediário (como em 13,23s), fala com a atendente da porta (he th¥roros) e fazPedro entrar. Os dois serão testemunhas daquilo que vai seguir (cf. vv. 21).

Reaparece a “menina da porta” (he paidiske he th¥roros) — os termossugerem ironia! A menina diz a Pedro: “Não pertences tu também aos discí-pulos desse homem?” O “também” significa que Jesus já é conhecido comolíder de um grupo de galileus. “Não”, responde Pedro. Segunda negação.

Estão lá também os servos (dóuloi) e os guardas (hyperétai, “súditos”),aquecendo-se em torno de uma fogueira (é fim de inverno). Pedro junta-sediscretamente a eles, aparentemente para se aquecer, na realidade, porém,para desaparecer num grupo que nada tem a ver com Jesus.

O sumo sacerdote Anás faz perguntas a Jesus a respeito de seus discípulose de sua doutrina. Jesus responde: “Eu sempre falei abertamente (= com parresia)ao mundo (= em público, cf. 7,26), ensinei na sinagoga (cf. 6,59) e no Templo(cf. 10,22-23), onde todos os judeus se reúnem” (cf. o encontro com os judeusno Templo, em 10,22-23, quando os judeus provocaram Jesus para dizer aber-tamente, com parresia, se ele era o Messias). Portanto, as palavras de Jesus

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não significam apenas que ele não organizou reuniões clandestinas. Ele falouexplicitamente ao povo de Israel. Ao mesmo tempo, essas palavras lembrama proclamação de Deus em Is 45,19: “Eu não falei em segredo”.

“Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que eu falei”. Jesusremete aos discípulos-testemunhas, pois dois dentre eles estão aí presentes,embora um deles, Pedro, certamente não esteja em boas condições… “Elessabem o que eu disse” (ao contrário das autoridades judaicas, que não que-rem nem podem ouvir: 8,43).

Por causa dessas palavras francas, um funcionário do sumo sacerdote lhedá uma bofetada: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” Jesus retruca:“Se falei algo errado, mostra em que falei mal. Mas se falei corretamente,por que me bates?” O evangelista não relata como a discussão continua; oimportante está dito: não há o que incriminar a Jesus, nem no tempo de Jesuse de Anás, nem no tempo da discussão entre o judaísmo e a comunidadecristã, nem hoje. O desafio “Mostra em que eu falei mal” continua aberto.

Anás manda então Jesus algemado ao sumo sacerdote Caifás, que émencionado apenas em João (11,49; 18,13.14.24.28), no relato da Paixão deMt (Mt 26,3.57), e em Lc 3,2 e At 4,6. A menção de Caifás tem peso,porque, sumo sacerdote em função, ele encaminhará Jesus ao poder romano(18,28). Neste versículo, João volta ao roteiro sinóptico, que situa diante deCaifás (Mt 26,57) o interrogatório no qual se enquadra, segundo a tradição,a negação de Pedro.

A câmera se volta novamente para os discípulos, focalizando Pedro quecontinua se aquecendo (cf. v. 18). Está aí como que plantado. Perguntam-lhenovamente se ele também não é um dos discípulos do Nazareno. Ele nega.Mas um servo do sumo sacerdote, parente daquele que teve a orelha feridapor Pedro, observa: “Não te vi no jardim com ele?” Pedro nega de novo, e logoum galo canta, conforme a palavra de 13,38. Em toda esta seqüência (vv. 15-27),João mostra como Pedro deu razão ao que Jesus lhe falou em 13,36-38: nãofoi capaz de segui-lo “agora”; pelo contrário, negou conhecê-lo.

O primeiro círculo do “mundo”: Jesus é confrontado com os que eram“os seus” (cf. 1,11), o próprio povo de Judá, liderado por aquele quetraz o nome patriarcal, Judas, os donos do poder mancomunados comesse teleguiado do diabo que privatizou a caixa da comunidade paraseus negócios escusos…

Enquanto Jesus mostra a soberania de quem reina pelo amor, Pedro,ainda incapaz de compreender, reage pela violência. O sumo sacerdo-

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te, aposentado e caduco, faz a inquisição acerca da doutrina de Jesuse de seus discípulos: a comunidade é que está em julgamento. Tam-bém hoje. Tenha ela confiança naquele que, perseguido, fala commajestade soberana: “Eu sou”.

Quem é a comunidade solidária com Jesus e perseguida pelo própriopovo? Hoje, os que se empenham radicalmente pelo evangelho sãoperseguidos pelos que levantam a bandeira da sociedade cristã. Osexemplos estão perto de nós. Não foi em nome da civilização cristãque mataram Dom Oscar Romero, os mártires salvadorenhos, pasto-res e líderes cristãos desde a Guatemala até a Argentina, tantos mártiresde comunidades cristãs em toda a América Latina e no mundo? Emuitos Pedros devem ter dito que não os conheciam…

Jesus perante a autoridade romana (18,28–19,16a)

I — 28 De Caifás, levaram Jesus ao palácio do governador. Era de ma-drugada. Eles mesmos não entraram no palácio, para não se conta-minarem, mas poderem comer a páscoa.29Pilatos saiu ao encontro deles e disse: “Que acusação apresentaiscontra este homem?” 30Eles responderam: “Se não fosse um malfei-tor, não o teríamos entregado a ti!” 31Pilatos disse: “Tomai-o vósmesmos e julgai-o segundo vossa lei”. Os judeus responderam: “Nãonos é permitido matar ninguém”. 32Assim se realizava o que Jesustinha dito, indicando de que morte havia de morrer.33Pilatos entrou, de volta, no palácio, chamou Jesus e perguntou-lhe:“Tu és o rei dos judeus?” 34Jesus respondeu: “Estás dizendo isto porti mesmo, ou outros te disseram isso a respeito de mim?” 35Pilatosrespondeu: “Acaso sou eu judeu? Teu povo e os sumos sacerdotes teentregaram a mim. Que fizeste?” 36Jesus respondeu: “Minha realezanão é deste mundo. Se minha realeza fosse deste mundo, os meusguardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Masminha realeza não é daqui”. 37Pilatos disse: “Então, tu és rei?”Jesus respondeu: “Tu dizes que eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundopara isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é daverdade escuta a minha voz”. 38Pilatos lhe disse: “A verdade, que é?”Dito isso, saiu ao encontro dos judeus e declarou: “Eu não encontronele nenhuma culpa. 39Ora, existe entre vós um costume de que, por

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ocasião da Páscoa, eu solte um preso. Quereis que eu vos solte o reidos judeus?” 40Eles, então, se puseram a gritar: “Este não, masBarrabás!” Barrabás era um bandido.

19 1Pilatos, então, levou Jesus e mandou açoitá-lo. 2Os soldadostrançaram uma coroa de espinhos, puseram-na na cabeça de Jesuse o vestiram com um manto de púrpura. 3Aproximavam-se dele ediziam: “Viva o rei dos judeus!”, enchendo-o de bofetadas.

II — 4Pilatos saiu outra vez e disse aos judeus: “Olhai! Eu o trago aquifora, diante de vós, para que saibais que eu não encontro nele ne-nhuma culpa. 5Então, Jesus veio para fora, trazendo a coroa deespinhos e o manto de púrpura. Pilatos disse-lhes: “Eis o homem”!6Quando o viram, os sumos sacerdotes e os seus guardas começarama gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Pilatos respondeu: “Levai-o,vós mesmos, para crucificá-lo, porque eu não encontro nele nenhu-ma culpa”. 7Os judeus responderam-lhe: “Nós temos uma Lei, esegundo esta Lei ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”.8Quando Pilatos ouviu isso, ficou com mais medo ainda. 9Entrou nopalácio outra vez e perguntou a Jesus: “De onde és tu?” Jesus ficoucalado. 10Então Pilatos disse-lhe: “Não me respondes? Não sabesque tenho poder para te soltar e poder para te crucificar?” 11Jesusrespondeu: “Tu não terias poder algum sobre mim, se não te fossedado do alto. Por isso, quem me entregou a ti tem maior pecado”.12Por causa disso, Pilatos procurava soltar Jesus. Mas os judeusgritavam: “Se soltas este homem, não és amigo de César. Todo aqueleque se faz rei, se declara contra César”.13Ouvindo estas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-seno tribunal, no lugar conhecido como Pavimento (em hebraico:Gábata). 14Era o dia da preparação da páscoa, por volta do meio-dia.Pilatos disse aos judeus: “Eis o vosso rei”. 15Eles, porém, gritavam:“Fora! Fora! Crucifica-o!” Pilatos disse: “Vou crucificar o vossorei?” Os sumos sacerdotes responderam: “Não temos rei senão César”.16Pilatos, então, entregou-lhes Jesus para ser crucificado.

O interrogatório pelo representante do poder romano contém duassubseqüências de três cenas, delimitadas pela alternância do cenário: dentroe fora do pretório. A razão desses dois cenários separados é explicada logono início: como ao anoitecer do mesmo dia se iniciará a celebração daPáscoa (com a refeição pascal), os judeus não podem entrar na casa de umpagão (o governador), para não ficarem impuros (19,28; cf. a introdução a

18,28–19,16A

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13–20). Para cada negociação com os judeus, que não podem entrar, Pilatostem de sair do pretório. Daí o contínuo vaivém.

Os diálogos entre Pilatos e Jesus giram sucessivamente em torno dostítulos atribuídos a Jesus: (1) Jesus é “rei dos judeus”, ou seja, Messias; (2)Jesus é Filho de Deus. Estes são os dois títulos que o Quarto Evangelho desejaesclarecer (20,30-31; cf. também Mc 1,1). O “desenlace” articula a proclama-ção dos judeus dizendo que César é o rei deles com a crucificação de Jesuscomo “rei dos judeus”. Outro eixo significativo é constituído pelo verbo “en-tregar” (5 vezes): no início, os judeus entregam Jesus; no fim, Pilatos entregaJesus; no meio há uma palavra de Jesus sobre “aquele que entregou” (19,11).

I. “Rei dos judeus” (18,28–19,3) II. “Filho de Deus”, condenado como rei dosjudeus (19,4-16a)

(fora) os judeus “conduzem”Jesus a Pilatos e o entregam

como malfeitor (18,28-32)

(dentro): Pilatos interrogaJesus a respeito de “rei dos

judeus” (18,33-38a)

(fora) os judeus pedem asoltura de Barabás (18,38b-

40)

(dobradiça) Pilatos mandatorturar Jesus, vestido como

rei de escárnio (19,1-3)

(fora) os judeus alegam apretensão divina de Jesus,

“Filho de Deus” (19,4-7)

(dentro) diálogo de Pilatoscom Jesus sobre sua origem

e poder (19,8-12)

(fora) os judeus proclamamCésar seu rei; Pilatos entrega

Jesus para ser crucificado(19,13-16a)

A interpretação dessa estrutura é discutida. Será 19,1-3, a zombaria como “rei dos judeus”, uma mera dobradiça entre duas seqüências de três cenasou o centro de uma construção simétrica de sete cenas? Ou serão talvez18,28–19,3 e 19,4-22 (incluindo a cena do letreiro, vv. 16b-22) duas sériesparalelas de quatro cenas? Parece que não: por causa da mudança de cenárioem 19,16b é preferível ligar 16b-22 ao momento seguinte.

A comparação com o relato sinóptico joga alguma luz sobre esta composição:

• A primeira seqüência do interrogatório de Pilatos segundo João (18,28-40) corresponde a Mc 15,2-15 par. Mt 27,11-26 e Lc 23,2-5.17-25 (Lcinsere o encontro com Herodes em 23,6-16). Nos sinópticos, o episó-dio é mais curto, não menciona o título “Filho de Deus”, mas apenas“rei dos judeus”, e termina com a escolha de Barrabás para ser anis-tiado (cf. Jo 18,40).

• A cena do escárnio (19,1-3) acompanha a ordem sinóptica (Jo 19,1-3= Mc 15,16-20 par.).

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• O fim desta cena, a saída de Pilatos para mostrar Jesus, dá ensejo àsegunda seqüência (Jo 19,4-16a), marcada pelo título “Filho de Deus”(cf. o Sinédrio segundo Lc 22,70), sem dúvida em função da cristolo-gia. A partir de 19,16b, João retoma a seqüência sinóptica.

Os vv. 19,16b-22.23-24 retomam o eixo narrativo principal, a “via sa-cra”: de Pilatos, Jesus é levado para o Gólgota, onde é crucificado e ossoldados repartem sua roupa.

Mc 15,1 = Mt 27,1-2 (cf. Lc 23,1) = Jo 18,28-32entrega a Pilatos

Mt 27,3-10mulher de Pilatos

Mc 15,2-5 = Mt 27,11-14 = Lc 23,2-5 = Jo 18,33-38aperante Pilatos

Lc 23,6-16Herodes

Mc 15,6-15 = Mt 27,15-26 = Lc 23,17-25 = Jo 18,38b-40Jesus/Barrabás (+ 19,14-16a)sentença

Mc 15,16-20a = Mt 27,27-31 (cf. 27,11) = Jo 19.1-3escárnio

(cf. Mc 15,15b) (cf. Mt 27,26b) (cf. Lc 23,25b) Jo 19,4-16a2º interrogatóriode Pilatos, sentença

Mc 15,20b… = Mt 27,32… = Lc 3,26… = Jo 19,16b…via-sacra

I. Acusação do “rei dos judeus” (18,28–19,3)

De manhã cedo, os “judeus” levam Jesus de Caifás ao pretório (= quar-tel-palácio) do governador romano, Pilatos. Não entram no pretório, casa depagão, para não se tornarem “impuros”, pois naquela mesma noite devemcomer a Páscoa (>introdução aos caps. 13–20). Não podem contaminar-secom o ar da casa de um pagão, mas manchar suas mãos com o sangue deum inocente não os incomoda…

O governador, pois, tem de sair ao encontro deles. Pergunta: “Que acu-sação apresentais contra este homem?” Sem apresentar acusação alguma,respondem: “Se não fosse malfeitor, não o entregaríamos!” É a primeira dascinco vezes que o termo “entregar” aparece no episódio de Pilatos.

28

29-32

18,28–19,16A

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O LIVRO DA GLÓRIA

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Pilatos quer tirar o corpo fora: “Tomai-o vós mesmos e julgai-o segundoa vossa lei”. Os chefes alegam que não lhes é permitido matar alguém. Men-tira! Eles podiam aplicar a pena de morte, por apedrejamento, em caso de“desacato religioso”, blasfêmia, e de fato tentaram (cf. 8,59; 10,31ss.; 11,8).Mas agora desejam uma morte mais infame, para desmoralizar Jesus aos olhosdo povo; quem morre pendurado no madeiro é um maldito (Dt 21,23). Nasobreposição do ano 30 ao ano 90, isso tem por resultado que Jesus morrerácomo condenado pelo Império Romano, o qual confere legitimidade à Sina-goga, mas já não aos cristãos que são expulsos dela… No nível da narrativa,os chefes judaicos colaboram, por sua maquinação, para que Jesus morra domodo como ele mesmo tinha profetizado: uma morte que seja “en-altecimento”(12,32-33; cf. 3,14). Realiza-se a “profecia” do próprio Jesus (>com. 18,9): oque os chefes judaicos maquinaram é na realidade a execução do plano de Deus.

A pena capital

Para informação do leitor, convém dizer que não se sabe com certeza quecompetência tinham as autoridades judaicas para aplicar a pena de morte(por apedrejamento). Naquele tempo, as normas romanas mudavam segun-do as circunstâncias. É provável que tinham o direito de executar alguémpor razões religiosas. Ou, pelo menos, linchamentos religiosos (apedreja-mento) eram tolerados pelas autoridades romanas. Os evangelhos sinópticosnão deixam claro por que Jesus foi entregue aos romanos depois que oSinédrio pronunciou a pena de morte. João cita uma razão: os judeus nãotinham jurisdição capital (um texto rabínico menciona que por aquela épocatal jurisdição lhes tinha sido tirada pelos romanos). Mas João mesmo nãodá muita importância a essa explicação; o que lhe interessa é que Jesusmorreu “enaltecido”, pela crucificação, que só podia ser autorizada pelopoder romano.

Historicamente, Jesus foi morto, crucificado, com base na jurisdição roma-na, por “razão de Estado” (subversão). A implicação das autoridades judai-cas provavelmente teve pouco peso, mas foi incrementada pela tradiçãocristã, que também “teologizou” a maneira cruel, porém rotineira, da exe-cução romana. Por um lado, a leitura cristã dos fatos estava inclinada a verna morte de Jesus a “rejeição da pedra angular pelos construtores”, a rejei-ção do profeta por seu próprio povo (cf. Mc 12,1-12 par.). Por outro lado,o fato da crucificação devia ter um sentido teológico, corresponder ao planode Deus. Assim, para Paulo, a crucificação, equiparada ao “pendurar nomadeiro” de Dt 21,23, significa o fim do regime da Lei (Gl 3,13). Para João,realiza o “enaltecimento” do Filho do Homem (cf. 12,32-33 etc.). Nestaótica cristã, o poder romano intervém como instrumento, está aí “comoPilatos no Credo” (cf. infra, 19,11).

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Pilatos entra novamente no pretório. Chama Jesus e pergunta, com umaexpressão que cabe bem na boca de um pagão (cf. infra): “Tu és o rei dosjudeus?” A pergunta não é inócua: em At 17,7, os cristãos são acusadosdiante dos romanos por pretenderem que “há outro rei, Jesus”. Jesus respon-de perguntando se Pilatos diz isso por si mesmo ou se outros lhe falaram aseu respeito. Pois ele sabe que Pilatos é apenas um fantoche.

O título “rei dos judeus” soa estereofônico. Por um lado, é equivalentede “rei de Israel”, profissão de fé messiânica na boca do “verdadeiro israelita”Natanael (1,49; 12,13; cf. 6,14; >exc. 19,15). Por outro lado, “rei dos judeus”é o título com o qual a suprema autoridade de Israel/Judá se apresenta noforo internacional (entre as “nações”) desde os reis hasmoneus (>Voc.),no século II aC. É, pois, um título para uso pagão. Na boca de Pilatos, reveladesprezo e desconfiança para com o povo judeu que espera o Messias. Opagão Pilatos não chama o Messias de “rei de Israel”, mas “rei dos judeus”(cf. 19,19-22).

Jesus não responde se ele é rei ou não. Não entra no jogo de Pilatos, queentende por “rei” uma figura política, nem no dos seus inspiradores judeus,que evocaram uma figura político-escatológica. Jesus vai falar de outra coi-sa: a origem de sua realeza e de sua missão.

Pilatos revela quem foi seu inspirador: “Acaso sou judeu?” E, chamandoos judeus de “nação” (como eles chamavam as nações pagãs) e não de“povo” (>com. 11,49-51), continua: “Tua nação e os sumos sacerdotes teentregaram a mim! Que fizeste?” Jesus retruca: “Minha realeza (>Voc. Rei-no) não é deste mundo. Se minha realeza fosse deste mundo, os meus súditos(mesmo termo que indica os guardas dos “judeus”, 7,32.45s; 18,3.12.22;19,2) lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus”. Nesta altura dorelato transparece a tendência de João a piorar a imagem das liderançasjudaicas — sem desculpar Pilatos. Que Messias é esse que tem medo de cairnas mãos de sua própria “nação”? Ou que “nação” é essa? E Jesus continua:“Ora, minha realeza não é daqui”. Evoca a distinção inelutável dos doispoderes opostos, o de cá de baixo e o de lá de cima (cf. 8,23).

A realeza de Jesus “não é deste mundo”. Não pertence a este âmbito, quedeve desaparecer diante do “éon vindouro”, a realidade escatológica. Jesussitua seu reino no âmbito escatológico. A própria expressão “meu reino” jásugere isso, pois pressupõe o “enaltecimento” de Jesus, sua glorificação.Compreende-se agora melhor por que, em Jo, Jesus não se dedica ao anúnciodo “reino de Deus”, que o povo identificava com as próprias aspiraçõesnacionais. Sua realeza está do outro lado do divisor das águas. Jesus declara,pois, que sua realeza não depende do poder deste mundo, mas de Deus.

33-34

35-36

18,28–19,16A

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O LIVRO DA GLÓRIA

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38b-40

A autoridade que ele exerce pertence a Deus, e o que ele faz é execução davontade do Pai.

Pilatos, porém, não entende os harmônicos transcendentes da resposta deJesus. Só pensa na política do Império. “Então, tu és rei?”, pergunta. “Tudizes que eu sou rei”, responde Jesus. Sem desmentir a formulação de Pilatos(pois contém parte de verdade), Jesus lhe contrapõe a própria definição desua missão: “Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aqueleque é da verdade escuta minha voz”.

A verdade e o testemunho de Jesus

“Verdade” deve ser entendida a partir do fundo bíblico (cf. 1,14; 14,6): leal-dade, fidelidade, coerência e firmeza no pacto, na amizade, no amor. O queJesus vem atestar é o reinado da veracidade do Deus fiel, que se manifesta naprática e na palavra de Jesus (ver 1,14). É o contrário da mentira, que eledesmascarou no cap. 8, e que se manifesta nas intenções homicidas (cf. 5,18etc.; 8,37.40; 18,31) e na prática do “entregar”, que permeia o presente trecho18,28–19,16. O reino da verdade é também a prática do mandamento queJesus legou como marca de pertença: o amor (cf. esp. 15,9-17; 13,35).Ao mesmo tempo, o termo deve ser entendido no quadro do simbolismojoanino, em contraste com a mentira. A mentira é a incredulidade, a recusa aJesus, a pretensão de ter Deus sem passar pelo caminho que é Jesus, uma vezque ele se dá a conhecer. No Evangelho de João, a mentira parece encarnar-se na liderança dos “judeus” e no diabo a quem eles obedecem (cf. cap. 8,sobretudo 8,44); aqui, confiam sua guarda a Judas, que está em poder do dia-bo. Mas sabemos que João pensa também naqueles que, em seu tempo, noseio da comunidade cristã, voltam as costas a Jesus (cf. sobretudo 1Jo 2,22).

As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, nãosugerem fuga do mundo, nem justificam a alienação política (>exc. 17,15).Pelo contrário, convocam o cristão a uma lucidez política superior. Aderir aoreino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavrade Deus e que liberta de toda escravidão. No âmbito político, Deus está dolado da liberdade verdadeira, que fomenta a verdadeira dedicação mútua daspessoas na solidariedade e na responsabilidade (>Voc. Amor).

Pilatos, sim, é “deste mundo”. Não deseja abrir-se à verdade. Pensandotalvez que Jesus sonha com um reino dos filósofos (como o imaginado porPlatão), responde: “A verdade, que é?” — observação cética de um represen-tante do mundo que não sabe o que quer. Já se pode adivinhar quanta ver-dade (= autenticidade) haverá em sua decisão judicial…

Pilatos sai novamente ao encontro dos judeus: “Não encontro nele ne-nhuma culpa (= motivo de condenação)”. Apela então para o costume da

37-38a

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anistia por ocasião das festas. Propõe soltar aquele que é chamado de “reidos judeus”. Proposta cínica: pretende satisfazer o pedido de anistia soltandoaquele que os interessados acabam de entregar! Evidentemente não aceitama proposta. Gritam: “Não este, mas Barrabás”.

João encerra o episódio com uma observação lacônica, que diz tudo:“Barrabás era um bandido”. Trocaram o “rei dos judeus” por um “bandido”.Segundo Mc 15,7 e Lc 23,19, Barrabás era um subversivo que cometeuhomicídio. Talvez fosse o que os sociólogos chamam um líder do “banditismosocial”, um cangaceiro. João o chama de lêistes, termo usado tanto paradesignar bandidos como para guerrilheiros (cf. o historiador judeu FlávioJosefo). Os outros lugares onde João usa o termo são 10,1.8, indicando osque ameaçam o rebanho. Será que associa Barrabás aos líderes que, no seutempo, ameaçam a comunidade em nome do nacionalismo judaico?

Pilatos leva Jesus para mandar torturá-lo. Método primitivo de investi-gação policial? Antes, primeiro passo para a pena capital (nos sinópticos, atortura precede imediatamente a crucificação; cf. Mc 15,16-20). Pilatos jáoptou, o resto é conversa fiada.

João une, numa única cena, a flagelação (Mc 15,15 par.) e o escárnio (Mc15,17-20a). Os soldados trançam uma coroa de espinhos, que colocam nacabeça de Jesus; além de instrumento de tortura, é uma paródia do diademareal. Vestem-lhe um manto de púrpura como usam os magistrados (ou ummanto de soldado, de cor escarlate). Aproximam-se dele e dizem: “Salve, reidos judeus” (cf. com. 18,33), reminiscência da preterida interrogação no Sinédrio(cf. Mc 14,65 par.). E batem nele. Sem o querer, porém, os soldados dizem averdade (cf. 19,19-22): mais uma profecia involuntária (cf. 11,49-51).

Esta cena, narrada secamente, sem diálogo, mostra o cinismo do gover-nador. Não é aquele funcionário escrupuloso como são certos magistradosromanos descritos por Lucas (At 18,12-16). Não convém interpretar estacena (e as seguintes) como prova do humanismo de Pilatos, como se quises-se salvar Jesus da condenação. No máximo, está querendo livrar-se de umcaso melindroso a qualquer preço.

Com Jesus tão maltratado assim, seria lógico ir diretamente à crucifica-ção, mas João cria um suspense, para aprofundar mais o conflito entre amissão de Jesus e o que “o mundo” (Pilatos) tem na cabeça.

II. O “Filho de Deus” e a negação do Messias (19,4-16a)

Pilatos sai de novo e, pela segunda vez, diz aos judeus: “Eis! (cf. v. 5)Eu o trago aqui fora, diante de vós, para que saibais que eu não encontro nelenenhuma culpa (motivo de condenação)”. Com perceptível solenidade, João

19,1-3

4-5

18,28–19,16A

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O LIVRO DA GLÓRIA

332

descreve: “Então, Jesus veio para fora, trazendo a coroa de espinhos e omanto de púrpura”. Majestoso em sua humilhação. “Eis o homem” (= “Aquiestá ele, aquele que vocês me entregaram”), diz Pilatos cinicamente, apre-sentando o torturado à multidão, talvez para comprovar que ele realmente oinvestigou... Muitos procuram ver por trás da expressão “eis o homem” —ecce homo — algum significado simbólico ou filosófico. Não é provável queJoão tenha pensado nisso. Talvez haja uma alusão ao “homem das dores”, Is53,3. Devemos antes prestar atenção à gradação: “Eis o homem” (v. 5)... “Eiso vosso rei” (v. 14).

Vendo-o, os sumos sacerdotes e seus capangas gritam: “Crucifica-o, cru-cifica-o!” Para livrar-se, Pilatos declara, pela terceira vez (cf. 18,38; 19,4):“Levai-o, vós mesmos, para crucificá-lo, pois eu não encontro nele nenhumaculpa!” Relega o caso ao nível de linchamento popular, não implicando suaautoridade. Ironicamente, convida os judeus a aplicar a crucificação, o quelegalmente não podem. Além disso, para eles a crucificação é uma abomi-nação, embora o último “rei dos judeus”, Hircano, a tenha praticado.

Os judeus precisam de Pilatos para executar a crucificação. Insistem:“Nós temos uma lei, e conforme a Lei ele tem de morrer, pois ele se pro-clamou ‘filho de Deus’”. Embora “filho de Deus” possa significar simples-mente “piedoso”, eles citam isso no sentido de blasfêmia (>com. 5,18). Ora,para Pilatos significa a possível presença de um poder concorrente com o deCésar, considerado divino (cf. v. 8). Proclamar-se “filho de Deus” poderiapassar por lesa-majestade.

Aqui percebemos a ironia do ecce homo (v. 5): ao olhar profano de Pilatos,Jesus é um homem inócuo; ao olhar dos “teólogos”, ele tem pretensão divinae por isso deve morrer (>com. 5,18; 10,30). Não querem saber de seu apelodivino (sobre “Filho de Deus”: >exc. 1,50-51). Temos assim o contraste irônico:

• Pilatos > Jesus = pessoa humana fisicamente destruída > declaração deinocência;

• judeus > Jesus = Filho de Deus > querem sua morte (na base da Lei).

Quando os judeus acusam Jesus de pretensões divinas, Pilatos fica commuito medo. Qual será a preocupação de Pilatos? O conflito dos poderes, aorigem celestial de Jesus? Talvez um “rei da verdade” (18,37), uma espéciede filósofo, não lhe parecesse tão perigoso, politicamente falando, quantoalguém com pretensões divinas, que poderia suscitar o fanatismo do povo.De toda maneira, o autor forja um ensejo para que Pilatos possa fazer apergunta: “De onde és tu?” Jesus nem responde. Não adianta explicar “deonde” a quem não procura crer (>com. 2,9: sentido teológico de “de onde?”).

8-10

6-7

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Pilatos admira: “Não me respondes?” E em vez de reconhecer seu próprionão-saber, acusa o “não-saber” de Jesus: “Não sabes que tenho poder parate soltar e poder para te crucificar?”

Retruca Jesus: “Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dadodo alto”. O termo “poder” é o mesmo que Jesus usa para dizer que ele tempoder de entregar e de retomar sua vida (exousia: Jo 10,17). É com Jesus queestá o verdadeiro poder sobre a vida e a morte (cf. 5,27). O poder de Jesusserve para dar (a sua) vida, o pretenso poder de Pilatos está a serviço damorte. “Em vista disso”, continua Jesus, “quem me entregou a ti tem maiorpecado”. Pilatos não vale nada, é “ladrão de galinha” em comparação comaquele que entrega Jesus, é apenas um fantoche manipulado. Nem é capazde ser verdadeiramente culpado. No início do episódio, os chefes religiososdisseram estar entregando Jesus a Pilatos (18,30). Eles são mais culpados.Mas cavando mais fundo, vemos que foi Judas quem primeiro procurou“entregar” Jesus, e isso, inspirado por Satanás (13,2). Será Satanás aqueleque “tem maior pecado”? Se esta interpretação estiver certa, João estarálevando aqui a reflexão ao plano meta-histórico, desmascarando o “culpado”primordial, aquele que governa os governantes “deste mundo”.

Pilatos quer se ver livre de Jesus e faz uma última tentativa de soltá-lo.Os judeus, entretanto, gritam lá de fora: “Se o soltas, não és amigo de César!Pois quem se declara rei é contra César”. No sistema do apadrinhamento/clientelismo do Império Romano, ser “amigo de César” significava vanta-gem e proteção. Pilatos não quer perder essa vantagem. Titubeia diante dosgritos dos manipuladores.

Dando ouvido à chantagem (“ninguém é de ferro”…), Pilatos mandaJesus sair. Senta-se no pódio ou tribunal, no Litóstroto (= “pavimento”) ou,segundo o hebraico, Gábata (= “elevação”), para pronunciar o veredicto27.

No v. 14 (como em 1,42; 5,9; 9,14), João completa a cronologia paramarcar a importância do momento: é a “hora sexta” (= meio-dia) da prepa-ração da Páscoa, ou seja, algumas horas antes da refeição pascal. A partir domeio-dia são imolados, no Templo, os cordeiros que serão consumidos naceia, logo à noite. A “hora sexta” é a hora da matança do “Cordeiro” (cf.1,29). Se em João está sempre presente a suplantação dos símbolos do ju-daísmo pela obra de Jesus (>com. 2,21), provavelmente esteja sugerindo,aqui, que esta obra, a ponto de ser levada a termo, toma o lugar do sacrifíciodo cordeiro pascal (>com. 1,29).

11

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27. Alguns comentadores traduzem como se Pilatos mandasse Jesus ocupar o pódio, como seJesus fosse o juiz de verdade; mas tal tradução não se impõe.

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O LIVRO DA GLÓRIA

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Pilatos diz aos judeus: “Eis o vosso rei” (cf. v. 4: “eis”; v. 5: “eis o ho-mem”). Respondem: “Fora! Leva-o para ser crucificado!” — “Vou crucificarvosso rei?”, pergunta Pilatos. “Não temos outro rei senão César!”, respon-dem os chefes do povo eleito de Deus (cf. 1,11). As autoridades judaicasnegam a Aliança e as esperanças do povo que aguarda o Messias, o “rei deIsrael” (como o “israelita verdadeiro”, Natanael da Galiléia, intitulou Jesus,1,49). As autoridades abandonam o cerne da esperança de Israel, desistem doMessias. Mas esta esperança abandonada é, na realidade, preenchida poraquele que é o verdadeiro “rei de Israel” (cf. infra, vv. 19-22, e 1,49).

O Rei de Israel

Há três sentidos em que um judeu piedoso pode falar do “rei de Israel”:1. YHWH, o SENHOR. Este sentido é freqüente nos Salmos, sobretudo os

salmos da realeza de YHWH (Sl 47; 93; 96–99; cf. Jz 8,23). A históriabíblica que mais inculca essa noção na cabeça do israelita é a de Samuel,quando lhe pedem um rei. “O Senhor disse a Samuel: ‘Escuta a voz dopovo… Não é a ti que rejeitam, mas a mim; não querem mais que eu sejarei sobre eles’” (1Sm 8,7).

2. Os reis do povo eleito, que, apesar do episódio de 1Sm 8, são eleitos porDeus (Dt 17,15) e por ele abençoados (cf. 1Sm 9,15–10,1; 1Sm 16,1-13).Na realidade, o judaísmo (especialmente Crônicas) considera como taissó os reis de Israel e Judá unidos (Saul, Davi, Salomão) ou, depois, osreis de Judá só, sobretudo Josias. 2Sm 7,11-16 narra como Deus estabe-leceu o reinado davídico como instituição permanente em Judá. O reidavídico é considerado por Deus como seu filho (Sl 2,7).

3. Com base na promessa de um reinado permanente, o judaísmo pós-exílicoespera um novo rei davídico para, no tempo final, no Dia do Senhor, esta-belecer o “reinado de Deus” (“para Israel”, como dizem os discípulos emAt 1,6). Trata-se do Messias. É neste sentido que Pilatos, ironicamente,atribui a Jesus o título de “rei dos judeus”. Como no sentido anterior, tam-bém neste sentido “rei de Israel” podia ser equivalente de “filho de Deus”.

Com esta retomada do tema do “rei” (cf. 18,33), o drama vai para odesenlace. Apesar de toda a discussão, Pilatos “condenará” Jesus sem moti-vo, simplesmente porque não pode permitir que alguém se arrogue o títulode “rei” e porque ele não quer perder a amizade de César. A discussão nãosignificou nada em vista dos interesses práticos… Sem que João o cite,pensamos no Sl 69,5: “os que me odeiam sem motivo, são poderosos, essesdestruidores, que me querem mal por mentira” (>exc. 19,24).

Pilatos “lhes” entrega Jesus para ser crucificado, o que é uma forma deoficializar a condenação (Jo 19,16b, cf. Mc 15,15 par.). Entrega, mas a

15

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335

quem? Pelo que parece, às autoridades judaicas. Mas Pilatos fornece tambémos soldados para a execução. Portanto, não abdicou de sua jurisdição, comoalguns pensam. Pilatos é quem manda. Aparentemente, pelo menos…

O segundo círculo do “mundo”: o Império Romano. Jesus é confron-tado com um poder que só busca firmar sua “pax romana”, a qual-quer custo, sem compromisso real com a verdade ou com a justiça(que exigiria a libertação do inocente). Mas Jesus dá testemunho daverdade. Essa é sua missão, e nisso consiste seu reinado.

Um bandido recebe a preferência nacional, enquanto o “rei dos ju-deus” é rejeitado e os líderes desistem de sua esperança messiânica. Osque deveriam ser o povo de Deus proclamam César seu único rei, e orepresentante de César se dobra diante de sua chantagem. Quem usaquem? Ou será que o dono do jogo é aquele que inspirou a traição, odiábolos? Pela dimensão que a perfídia toma, parece que sim.

O poder que condena Jesus não é uma pessoa ou um grupo de pes-soas, mas uma constelação de interesses escusos. Também hoje, otestemunho da verdade contra tal constelação custará a vida aos queseguem Jesus.

Morte e sepultura (19,16b-42)

I — Tomaram, pois, Jesus consigo, 17e ele, carregando a sua cruz, saiu pa-ra o lugar chamado Caveira (em hebraico: Gólgota). 18Lá, eles o cruci–ficaram com outros dois, um de cada lado, ficando Jesus no meio.19Ora, Pilatos tinha mandado escrever e afixar na cruz um letreiro;estava escrito assim: “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus”. 20Muitosjudeus leram o letreiro, porque o lugar onde Jesus foi crucificadoera perto da cidade; e estava escrito em hebraico, em latim e emgrego. 21Os sumos sacerdotes dos judeus disseram então a Pilatos:“Não escrevas: ‘O Rei dos Judeus’, e sim: ‘Ele disse: Eu sou o Reidos Judeus’. 22Pilatos respondeu: “O que escrevi, escrevi”.

II — 23Depois que crucificaram Jesus, os soldados pegaram suas vestes edividiram em quatro partes, uma para cada soldado. A túnica erafeita sem costura, uma peça só de cima em baixo. 24Eles combina-ram: “Não vamos rasgar a túnica, mas tirar a sorte para ver dequem será”. Assim cumpriu-se a Escritura:

19,16B-42

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O LIVRO DA GLÓRIA

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“Dividiram entre si minha roupae tiraram a sorte sobre minha túnica”.

Foi isso que os soldados fizeram.25Ora, junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de suamãe, Maria de Cléofas, e Maria de Mágdala. 26Jesus, ao ver suamãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mu-lher, eis o teu filho!” 27Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!”A partir daquela hora, o discípulo a acolheu consigo.

III — 28Depois disso, sabendo Jesus que tudo estava consumado, e paraque se cumprisse a Escritura até o fim, disse: “Tenho sede”! 29Haviaali uma jarra cheia de vinagre. Amarraram num ramo de hissopouma esponja embebida de vinagre e a levaram à sua boca. 30Eletomou o vinagre e disse: “Está consumado”. E, inclinando a cabeça,entregou o espírito.31Era o dia de preparação do sábado, e este seria solene. Para queos corpos não ficassem na cruz no sábado, os judeus pediram aPilatos que mandasse quebrar as pernas dos crucificados e os tiras-se da cruz. 32Os soldados foram e quebraram as pernas, primeiro aum dos crucificados com ele e depois ao outro. 33Chegando a Jesusviram que já estava morto. Por isso, não lhe quebraram as pernas,34mas um soldado golpeou-lhe o lado com uma lança, e imediata-mente saiu sangue e água. (35Aquele que viu dá testemunho, e o seutestemunho é verdadeiro. Ele sabe que fala a verdade, para que vós,também, creiais.) 36Isto aconteceu para que se cumprisse a Escrituraque diz: “Não quebrarão nenhum dos seus ossos”. 37E um outro textoda Escritura diz: “Olharão para aquele que traspassaram”.

IV — 38Depois disso, José de Arimatéia pediu a Pilatos para retirar ocorpo de Jesus; ele era discípulo de Jesus, mas às escondidas, pormedo dos judeus. Pilatos o permitiu. José veio e retirou o corpo.39Veio também Nicodemos, aquele que anteriormente tinha ido aJesus de noite; ele trouxe uns trinta quilos de perfume feito de mirrae de aloés. 40Eles pegaram o corpo de Jesus e o envolveram, com osperfumes, em faixas de linho, do modo como os judeus costumamsepultar. 41No lugar onde Jesus foi crucificado havia um jardim e, nojardim, um túmulo novo, onde ninguém tinha sido ainda sepultado.42Por ser dia de preparação para os judeus, e como o túmulo estavaperto, foi lá que eles colocaram Jesus.

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Com base nas indicações de tempo e lugar podemos distinguir sete ce-nas, agrupadas em 3x2 mais 1:

I. “Levaram então Jesus…” (v. 16b):16b-17: a “via crucis”18-22: o letreiro da cruz

II. “Depois que crucificaram Jesus…” (v. 23):23-24: os soldados e o sorteio das vestes;25-27: Maria e o Discípulo Amado ao pé da cruz.

III. “Depois disso…” (v. 28):28-30: Jesus morre e entrega o espírito;31-37: Jesus é traspassado; testemunhos.

IV. “Depois disso…” (v. 38):38-42: A sepultura.

Enquanto Pilatos e os chefes dos judeus desaparecem para o segundoplano, João mostra, num díptico, os personagens ao pé da cruz. Por um lado,os soldados dividem a roupa de Jesus — cumprindo o plano de Deus expres-so nas Escrituras. Do outro lado, Jesus executa soberanamente seu testamen-to: do alto da cruz, constitui sua comunidade (o lugar próprio da comunidadeé ao pé da cruz; cf. 12,26).

Na cena da morte, Jesus declara consumada sua obra e “entrega o espí-rito”. Completa-a a cena do lado traspassado. A pedido dos chefes judaicos,Pilatos autoriza que se quebrem as pernas dos crucificados, para que possamser retirados da cruz antes do grande sábado. Mas como Jesus já está morto,não lhe quebram as pernas, e sim abrem-lhe o lado, cumprindo-se assimduplamente as Escrituras.

A última cena é a sepultura. Os discípulos José e Nicodemos levam Jesuse o põem na sepultura nova, o que se tornará um tema estruturante no cap.20. O corpo de Jesus passa do aparente poder dos judeus para a comunidadedos fiéis.

I. “Via crucis” e “titulus” (19,16b-22)

A partir do v. 16b, João retoma o fio da narrativa sinóptica, que forainterrompido pelo tema “Filho de Deus” em 19,4-16a. Quanto ao conteúdo, otrecho de 16b-22 introduz um tema novo, a “via-sacra”, mas na notícia retros-pectiva (flashback) a respeito do letreiro na cruz (vv. 19-22), Pilatos confirmapor escrito (v. 22) o pretenso motivo da condenação: “rei dos judeus”.

Quando Pilatos entrega Jesus para ser crucificado, tomam-no consigo(lit.: “receberam-no”). A expressão é estranha. O sujeito da frase não é expres-

16b-18

19,16B-42

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O LIVRO DA GLÓRIA

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so. Pode significar que (os soldados) o levam embora. Mas como em 18,28os que “conduzem” Jesus a Pilatos parecem ser principalmente “os judeus”(não podem entrar em casa de pagão!), também aqui o sujeito pode ser omesmo. E em vez de usar o verbo “conduzir” (usado pelos sinópticos, Mc15,20 par.), João usa o mesmo verbo que em 1,11, no sentido de “os seus nãoo receberam”. Aqui “recebem”-no, porém não no sentido da fé, mas numsentido bem contrário! Ironia joanina?

Jesus carrega a trave da cruz, literalmente, “para si” ou “por si”: mesmoneste instante ele continua soberano (>exc. 6,11). Normalmente os condena-dos estavam tão enfraquecidos que precisavam de ajuda (cf. Mc 15,21, Si-mão de Cirene). O Jesus joanino, porém, é aquele que entrega livremente asua vida (cf. 10,17-18; >exc. 6,11).

Jesus sobe para o lugar de execução, um pequeno morro, fora dos murosda cidade, conhecido como Caveira, em hebraico/aramaico Gólgota (e naslínguas latinas: Calvário). Lá é pregado na cruz, entre dois outros condena-dos, de acordo com a tradição sinóptica, sem que João lhes dedique interessepeculiar (cf. Mc 15,20.27 par.).

João agora focaliza aquilo que acontece no segundo plano da narrativa,mas ocupa o primeiro plano na teologia. Numa nota retrospectiva (flashback),conta que Pilatos mandara escrever um titulus, ou seja, um letreiro com arazão da execução: “Jesus, o nazoreu, Rei dos Judeus”. Foi também comesse título, “rei dos judeus”, que os soldados caçoaram de Jesus (cf. 19,3),a partir de então revestido com o manto purpúreo e coroado com espinhos.Ironia: em Mc 15,26 o letreiro é chamado “inscrição da culpa” (= motivo decondenação). Ora, João mostrou tanto no interrogatório judaico como no dePilatos que motivo de condenação não houve. Em vez de motivo de conde-nação, chama o letreiro de titlos (do latim titulus), protocolo de publicaçãopara o mundo! E (só João, à diferença dos sinópticos) completa: o letreiropodia ser lido por muita gente — pois o Gólgota ficava pertinho do muro dacidade — e estava escrito em três línguas: hebraico/aramaico (língua dosjudeus); grego (língua mundial dos soldados e dos negociantes) e latim (lín-gua administrativa do Império Romano). Isso significa que todo mundo podialer o título: a messianidade de Jesus é proclamada em todas as línguasnecessárias… A teologia cristã bem cedo transformará neste sentido o Sl96,10: “O Senhor reina do madeiro” (Justino, Tertuliano, tradição latina).

Não tendo jurisdição própria nesta crucificação (cf. supra, v. 16a), ossumos sacerdotes “dos judeus” (ironia com o título que eles vão criticar)protestam junto a Pilatos: “Não escrevas: ‘O Rei dos Judeus’, e sim ‘Eledisse: Eu sou o Rei dos Judeus’!” — “O que escrevi, escrevi” (= “eu deixo

19-22

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escrito, definitivamente”), responde Pilatos. Depois de renegar a Aliança e oMessias anunciado pela Escritura Sagrada, eles têm de aceitar a “escritura”de Pilatos... E, mais uma vez, Pilatos torna-se testemunha involuntária deque Jesus é o Messias.

II. Ao pé da cruz (19,23-27)

João gosta de criar novas cenas com personagens colhidos da cena an-terior (p.ex. Nicodemos, 3,1, em relação a 2,23-25). Os soldados, depois decrucificar Jesus, pegam suas roupas e as dividem em quatro partes, uma paracada soldado. (A expressão lembra também as quatro partes do mundo.) Masnão querem rasgar a túnica tecida de uma peça, sem costura, de alto a baixo(tal túnica era usada pelo sumo sacerdote). Decidem sortear para ver dequem será. Sem querer, colaboram para que se cumpra a Escritura: “Dividi-ram entre si minhas vestes / tiraram a sorte sobre minha túnica” (Sl 22,19).Enquanto Mc 15,24 interpreta estas duas frases paralelas como tratando domesmo assunto (as roupas em geral), João as entende como descrevendoduas ações distintas: a partilha das roupas e o sorteio da túnica.

As Escrituras acerca do justo perseguido

Para descrever o que aconteceu com Jesus, os evangelistas procurarampalavras no AT, que, segundo sua teologia, revelava o modo de agir deDeus. Os Sl 22, 40, 41 e 69 falam do justo perseguido. João cita explici-tamente Sl 69,10 em 2,17 e Sl 41,9 em 1,18. Jo 19,23-24 é por assim dizera encenação de Sl 22,19. Em 19,36, o tema do cordeiro pascal é aplica-do a Jesus mediante o Sl 34,20-21, que antes o aplicou ao justo.

O justo perseguido é também tema dos textos proféticos e sapienciais. EmJo 16,32 está presente Zc 13,7, em 19,37, Zc 12,10. Além disso, Jo 5,18lembra fortemente o justo perseguido de Sb 2,16. E o texto central, Jo12,38, inspira-se no 4º Canto do Servo Sofredor, Is 52,1–53,12 (especial-mente 53,1).

Há muitos outros lugares em João inspirados por esses textos (>com. 19,16).Por isso é bom ler esses textos no AT e imbuir-se de suas expressões, parasintonizar melhor o espírito do escrito joanino.

Pelos termos “por um lado… por outro…”, João opõe aos soldados umoutro grupo que se encontra ao pé da cruz, o grupo das mulheres: “sua mãe,a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas(,) e Maria Madalena”: três ou quatro,conforme se interpreta “Maria de Cléofas” como aposto a “a irmã de suamãe” ou como outra personagem.

23-24

25

19,16B-42

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As mulheres junto à cruz

Mt 27,55-56

55Grande número demulheres estava ali,olhando de longe. Elashaviam acompanhadoJesus desde a Galiléia,prestando-lhe serviços.56Entre elas estavamMaria Madalena, Maria,mãe de Tiago e deJosé, e a mãe dos fi-lhos de Zebedeu.

Mc 15,40-41

40Estavam ali tambémalgumas mulheres olhan-do de longe; entre elasMaria Madalena, Maria,mãe de Tiago Menor ede Joses, e Salomé.41Quando ele estava naGaliléia, estas o seguiame lhe prestavam serviços.Estavam ali tambémmuitas outras mulheresque com ele subiram aJerusalém.

Lc 23,49

49Todos os conhecidosde Jesus, bem como asmulheres que o acom-panhavam desde a Ga-liléia*, ficaram à distân-cia, olhando essas coi-sas.

(*Maria Madalena, Joa-na, Suzana e outras [cf.Lc 8,3]. Cf. Lc 24,10: Ma-ria Madalena, Mariamãe de Tiago e Joana.)

Jo 19,25-26a

25Junto à cruz de Je-sus estavam de pé suamãe e a irmã de suamãe, Maria de Cléo-fas(,) e Maria Mada-lena. 26Jesus, ao versua mãe e, ao ladodela, o discípulo queele amava, disse …

Entre Mt e Mc existe concordância fundamental. Lc é diferente demais, nãopode ser comparado com Mc e Mt. Jo é pouco claro. Dependendo de se lerou não uma vírgula depois de Maria de Cléofas, as mulheres são três ouquatro. (Nos antigos manuscritos não se usavam vírgulas.) Enquanto ossinópticos não mencionam a mãe de Jesus, João a menciona. Inicialmente,João não menciona o Discípulo Amado, mas logo depois Jesus dirige-lhe apalavra. Isso mostra que João se lembrou inicialmente da tradição das mu-lheres testemunhas — provavelmente três, como em Mc e Mt. Enquantoreescreve livremente os textos tradicionais, João situa as testemunhas deJesus ao pé da cruz, e não apenas observando de longe. Isso é importantepara o diálogo que vai seguir.

Jesus enxerga as duas pessoas que na vida lhe foram mais próximas, amãe e o Discípulo Amado (que não foi mencionado no v. 25). Diz à mãe:“Mulher (tratamento neutro; cf. 2,4), eis o teu filho”, e ao discípulo: “Eisa tua mãe”. O sentido do gesto depende do sentido que se dá a “eis” (gr.ide): simplesmente indicativo (“este/esta é…”) ou indutivo (“recebe…”).No sentido indicativo, Jesus indicaria que seu lugar no mundo agora éocupado pelo Discípulo Amado (e pela comunidade que ele representa). Odiscípulo está junto à mãe; e esta encontra seu filho na comunidade.A comunidade é como se fosse Jesus continuando a atuar na terra. Enten-dendo-se “eis” no sentido indutivo, Jesus estaria fazendo um gestotestamental: estaria confiando o Discípulo à mãe e vice-versa. É muito co-mum moribundos expressarem disposições sobre a sepultura (cf. Gn 49,28-31),

26-27

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confiarem um ente querido a outra pessoa para cuidar dele ou dela, e outrasdisposições análogas28.

Neste sentido, pode-se dizer que 19,25-27 é uma cena de revelação.Jesus revela quem é agora o portador do plano do Pai: o Discípulo Amado,que é posto em referência à “mãe”: “A partir daquela hora” (a hora deJesus?), o discípulo toma a mãe de Jesus consigo (lit.: “para o que é seu”,talvez a comunidade, cf. At 1,14; 12,12: a mãe de Jesus na comunidade deJerusalém; cf. “o que era seu” em 1,11).

Assim, a mãe de Jesus está no início (2,1-5) e na conclusão (19,25-27)da obra de Jesus. Devemos ver isso na perspectiva ampla do evangelho todo.O papel histórico-salvífico da “mãe” é introduzir Jesus no mundo, inseri-lona humanidade. Agora seu lugar não fica vazio, mas é ocupado pelo Discí-pulo, representante dos discípulos que devem realizar obras maiores do queas realizadas por ele na sua limitação histórica (cf. 14,12). Na hora da“finalização” da obra de Jesus (v. 30) e da entrega da obra, não só ao Pai, mastambém aos seus, o ponto de referência é novamente, e mais do que nunca, a“mãe”, aquela que marcou o primeiro sinal da glória de Jesus (2,1-5)29.

III. A morte (19,28-37)

Jesus sabe agora que “tudo está consumado” (lit.: levado a fim)” (cf.13,1). No v. 28, João evoca dramaticamente a referência ao justo sofredor daEscritura: “Tenho sede” (Sl 22,16; >exc. 19,24). Encontra-se aí uma jarracom vinho azedo. Atam numa vara (de hissopo, a planta usada para asaspersões litúrgicas) uma esponja embebida com essa bebida e levam-na àsua boca. A palavra “tenho sede” e a oferta de vinho acre realiza a Escriturade Sl 69,22 (v. 29; cf. Mc 15,36 par.). Mais uma contribuição involuntáriados soldados para o cumprimento da Escritura.

28. Conforme Ex 20,12, os filhos devem cuidar dos pais: Jesus estabeleceria, pois, o DiscípuloAmado como seu representante/procurador — só varões podem agir com força legal.

29. Em torno desta cena surgiram muitas interpretações simbólicas. Retenhamos duas: (1)Maria, Mãe da Igreja; (2) Maria, novo Povo de Deus. — Quanto a (1): se o discípulo representaa comunidade, o fato de ele ser confiado como filho à mãe pode conotar que Maria exerce juntoà comunidade um papel semelhante ao que exerceu junto a Jesus. Para nós, esse papel parececonsistir em ela ter dado Jesus ao mundo. Ela deu ao mundo não somente Jesus, mas também acomunidade de seus discípulos e irmãos (como serão chamados a partir da glorificação, cf. 20,17),da qual ela faz parte (cf. At 1,14). Mas importa observar que o texto é antes de mais nadacristológico: fala em primeiro lugar de Jesus e da continuação de sua missão. — Quanto a (2): osentido de “novo Povo de Deus” ou “nova Sião” é sugerido pela apóstrofe “mulher”, aqui e em 2,4.Segundo este simbolismo, em 2,4, a “mulher” representando Israel provoca o primeiro sinal mes-siânico; e aqui, na hora da glória, transparece a imagem da Jerusalém gloriosa, a Esposa dos textosescatológicos. O fato de este simbolismo se encontrar em Ap 12–14 fala em seu favor, embora aía referência à mãe de Jesus não seja explícita; a Mulher é o povo que dá à luz o Messias.

28-29

19,16B-42

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Depois de tomar o vinho acre, Jesus exclama: “Tudo está consumado”(mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Muitoscomentadores querem ver nestas palavras, diferentes das expressões equiva-lentes usadas pelos sinópticos, uma alusão ao dom do Espírito Santo (cf.7,39), o que combinaria bem com a idéia de que a comunidade deve conti-nuar, na força do Espírito, a obra que Jesus levou a termo por sua parte (cf.também v. 34 e 20,19-23).

Nestes versos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar aofim” (vv. 28 e 30); e ainda teleióo, indicando o cumprimento das Escrituras(v. 29). Tudo isso lembra a expressão eis to telos em 13,1: “… sabendo…Jesus… amou-os até o fim”. O cumprimento da missão até o fim é idênticoao testemunho do amor até o fim e ao cumprimento das Escrituras: nestastrês realidades devemos ver o Pai que, permanecendo em Jesus, realiza assuas obras (14,10).

Conforme João (>com. 13,1; 18,28; 19,14), a sexta-feira em que Jesusmorre é dia de preparação do sábado e da Páscoa, que naquele ano casual-mente cai no sábado (o qual, portanto, é festivo). Logo depois do pôr do sol,quando, segundo a contagem judaica, começa o sábado, os judeus comerãoa páscoa (o cordeiro pascal). Para isso, têm de estar puros (cf. 18,28). Ora,deixar corpos de condenados expostos depois do fim do dia tornaria a cidadeimpura (Dt 21,22-23). Por isso, pedem a Pilatos que mande quebrar as per-nas dos condenados, para que morram por asfixia e possam ser tirados dacruz. Os soldados fazem isso com os dois outros crucificados, mas, chegan-do a Jesus, vêem que ele já está morto. Por isso, não lhe quebram as pernas,mas um dos soldados perfura (lit. “golpeou”; a tradução latina diz: “abriu”)o seu lado, e daí saem sangue e água. Embora “sangue e água” tenha umsentido natural global — os líquidos vitais —, podemos também ver nosangue o símbolo da morte violenta, da vida doada (6,51c), e na água, osímbolo do Espírito (7,37-39) e do batismo cristão (>com. 3,5), pelo qual seassume o gesto de Cristo como referência da fé (cf. ainda 1Jo 5,6-8). Assim,a expressão “sangue e água” simboliza a salvação pela morte de Jesus e suapresença na comunidade que ele reuniu, “enaltecido”, do alto da da cruz.

A testemunha por excelência (o Discípulo Amado, o primeiro crente,evangelizador da comunidade joanina) atesta o relato, para que a comunida-de também creia. Seu testemunho é verídico: a testemunha tem consciênciade falar a verdade e deseja que os leitores, já longe dos fatos, sejam firmesna fé (cf. 20,30-31). Jesus levou a termo sua missão: “amou até o fim”(13,1); morreu verdadeiramente, e sua morte é fonte de salvação. O ladoaberto será o sinal de identificação do Ressuscitado (veja 20,20).

31-34

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Evidentemente, não devemos entender este testemunho ocular no sentidode um laudo médico a respeito dos líquidos que saíram do lado de Jesus. Otestemunho refere-se à morte como tal, descrita em termos altamente simbó-licos: a morte salvífica de Jesus, fonte do dom do Espírito. Esse testemunhosoma-se ao das Escrituras, citado a seguir.

Os detalhes de sua morte são confirmações do plano de Deus que sereflete nas Escrituras. “Não lhe quebrarão os ossos”, diz Ex 12,46 (Nm 9,12)a respeito do cordeiro pascal, que é matado na mesma hora que Jesus (>com.19,14; cf. Jesus-cordeiro, 1,29; já em Sl 34,21 [LXX Sl 35,21] este tema éinterpretado no sentido da proteção de Deus). E a Escritura diz também, arespeito do Messias rejeitado: “Olharão para aquele que traspassaram” (Zc12,10; citado também em Ap 1,7). O leitor/ouvinte lembra-se do olhar sal-vífico dirigido ao Filho do Homem “enaltecido”, simbolizado na serpenteque Moisés alteou no deserto (Jo 3,14-15). Enaltecido, o Filho do Homematrai todos para si (12,32-33).

IV. A sepultura (19,38-42)

A tradição narrava que, ao cair da noite, um homem piedoso e rico, Joséde Arimatéia, membro do Sinédrio, tendo acolhido o Reino de Deus (Mc15,43 par.), com a permissão de Pilatos, desceu o corpo de Jesus da cruz e,envolvendo-o em linho recém-comprado, o sepultou, sem o embalsamar, noseu próprio túmulo novo (Mc 15,42-47 par.). Depois do sábado, as mulheresforam então ao túmulo para realizar o embalsamamento (Mc 16,1-2).

Na narração de Jo, a cena é levemente transformada. José de Arimatéiaé apresentado como “discípulo às escondidas” (v. 38), à maneira dos proe-minentes discípulos clandestinos da comunidade joanina perseguida pelosjudeus, mencionados em 12,42 de modo negativo, mas a atuação pública deJosé em prol de Jesus mostra que, ao contrário dos outros, ele deixou de serum “cripto”, um clandestino. Além disso, José recebe a companhia deNicodemos, chefe dos fariseus, cuja entrevista noturna com Jesus aparente-mente teve o mesmo motivo que a clandestinidade de José: o medo dosjudeus (v. 39). Também este parece ter superado o medo e encontrado aquiloque Jesus lhe tinha sugerido no diálogo noturno: a fonte de seu novo nas-cimento da água e do Espírito (cf. 3,5).

Nicodemos traz uma quantia de ervas e produtos aromáticos suficien-te para embalsamar um rei. Se foi irônica a proclamação do crucificadocomo “o Rei dos Judeus”, essa ironia esconde uma verdade: ele é aquele queo verdadeiro israelita saúda como “rei de Israel” (1,49). Diferentemente doque narram os sinópticos, Jesus é embalsamado antes de ser envolvido em

36-37

38-40

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O LIVRO DA GLÓRIA

344

panos de linho (ver adiante, 20,1). Além da quantidade principesca dos aro-mas, chama a atenção o fato de não se tratar propriamente de bálsamo paramortos, e sim de perfumes para vivos, para o “filho do rei”, como mostram,por exemplo, Ct 3,6 e Sl 45,9. O enterro acontece segundo o costume dosjudeus (v. 40b). João transforma o sepultamento com as cores do simbolismomessiânico-nupcial (cf. 2,1-11; 12,1-8). Jesus é aquele que vive…

Os costumes funerários do judaísmo no tempo de Jesus

Os judeus sepultavam seus mortos sem esquife. O corpo era lavado, besun-tado com perfumes e aromas, envolvido em panos de linho (mortalhas) ecolocado num nicho escavado nas rochas ou nas grutas, que na Palestinanunca faltam. Quanto às mortalhas, não é claro se há grande diferença entreo que os sinópticos chamam de sindôn, “lençol”, e João de othónia, “panos”(Jo 19,40; 20,5.6.7; cf. Lc 14,12) ou de keiríai, “faixas” (Jo 11,44). Acabeça era coberta por um soudárion, “lenço”.

O acesso ao sepulcro era fechado por uma pedra, quer deitada horizontal-mente, se a entrada era por cima, quer rolada verticalmente, se a entrada eralateral, como é o caso de muitas sepulturas nas colinas perto de Jerusalém.

Os corpos não eram, como se fazia entre os egípcios, desviscerados emumificados, para serem conservados o mais possível. No enterro judaiconão se sustava o processo de decomposição, que seguia seu ritmo normal.(Assim, Lázaro já cheirava mal no quarto dia; Jo 11,39.) O embalsamamentonão visava à conservação, mas à homenagem póstuma. Os judeus tinhamconsciência de que a ressurreição independe da conservação do corpo físi-co. Por isso, apesar da importância dada ao sepultar os mortos (cf. Tb 1,18!),os judeus piedosos não ficavam desesperados quando alguém morria naschamas (1Cor 13,3!) ou não podia ser sepultado por alguma razão de forçamaior. Assim, Paulo explica em 1Cor 15,44: “Ressuscita um corpo espiritual”.

Jesus é posto no “jardim”, na proximidade do lugar da crucificação, numsepulcro novo, em que ninguém até então tinha sido depositado. Estes deta-lhes, que lembram tanto Mt 27,60 como sobretudo Lc 23,53, reforçam osimbolismo régio e aludem ao “novo”. Coisa nova há de acontecer. De fato,o sepultamento prepara a manifestação de algo novo, como se percebe tam-bém pelo modo como é descrita a ação. João sugere que o túmulo foi esco-lhido, não por pertencer a José (como em Mt 27,60 par.), mas sim, por ficarperto do lugar da crucificação e porque era dia de preparação, ou seja: porcausa da pressa. Transparece o caráter provisório. As breves palavras “Alipuseram Jesus” (v. 42) evocam uma ação improvisada. A suspeita de MariaMadalena, de que o guarda do horto tivesse levado o corpo embora (20,13-15),

41-42

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pode basear-se no caráter informal desse enterro, descrito com traços bastan-te contraditórios (improvisação versus aromas régios). Enquanto segundoMc 15,47 as mulheres que seguiram Jesus são testemunhas do sepultamento(“observaram onde o puseram”), João não menciona isso. A frase de Maria:“não sei onde o puseram” vai tornar-se o refrão da história que culminará namanifestação do Ressuscitado.

Voltando o olhar para trás, vemos que 19,40-42 (“tomaram... jardim…puseram Jesus”) marca o ponto final de um trajeto iniciado na primeiraseqüência (18,1: “saiu... para um jardim”; 18,12: “tomaram consigo Jesus...conduziram...”), lembrando ainda o início da terceira seqüência (19,16b:“tomaram consigo Jesus”). O texto de 19,41-42 (“jardim... ali puseram Je-sus”) parece assim indicar o ponto de chegada da movimentação da qualJesus, aparentemente, foi o objeto. É seu repouso, seu sábado… No capítuloseguinte, porém, esse lugar de repouso se transformará em cenário de novamanifestação de vida.

Na hora de consumar-se a obra de Jesus, os representantes do “mun-do” desaparecem para o segundo plano, enquanto deixam o letreiroescrito como testemunho involuntário proclamando Jesus Messias. Nãose menciona mais o medo (Pedro), e sim a fidelidade assumida (asmulheres, a mãe, o Discípulo Amado), a coragem e o reconhecimentotardios (José de Arimatéia, Nicodemos). Ao lado do discípulo porexcelência, testemunha da comunidade, também as Escrituras dãotestemunho de que a obra de Deus se realizou como fonte de salvação,fonte de onde brota a água do Espírito. O enterro é unção régia. Eo emaranhado de símbolos incoadunáveis é abertura para aquilo quenão se pode imaginar.

É assim que a comunidade está diante da cruz, diante da morte queé “enaltecimento”, até o dia de hoje. Cruz envolta de glória misterio-sa. Não que a morte não seja verdadeira. Ela é verdadeira precisa-mente nisto: é revelação da Vida, dom do Espírito vivificador. O con-fronto com a morte não é desesperador, quando se trata da morte dequem revela, morrendo, o amor que vence a morte (a “segunda mor-te”, a morte que é recusa da Vida). A morte que é Vida vence a vidaque é morte.

A mãe, que simboliza o espaço da vida de Jesus, e o discípulo-teste-munha, que transmitirá sua narrativa à comunidade, estão em pé: são

19,16B-42

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ícones da comunidade, que não fica abalada, pois nela veio ao mundoe por ela será proclamado no mundo aquele que amou até o fim,dando um rosto a Deus, que ninguém jamais viu. Esta é a realidadeprofunda da perseguição e da exclusão hoje. Quem está ao pé da cruz,não pertence ao “mundo”, e, está nele, é como testemunha da vidanova, que vence o mundo.

B. A Ressurreição (20,1-29)

Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas doisaspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus. A bre-víssima transição temporal em 20,1 reforça a impressão de unidade narrati-va. João não apenas conserva a unidade que o relato da Paixão e Ressurrei-ção já possuía na tradição (cf. os sinópticos), mas a reforça mediante a duplanarrativa de Jesus mostrando suas chagas (20,19-29): o ressuscitado é exa-tamente aquele que foi morto.

Os relatos pascais de João se dividem em dois dípticos, cada qual com-posto de duas cenas.

• 20,1-18: comporta as narrativas entrelaçadas da visita ao sepulcro vazioe a aparição a Maria Madalena, que é a personagem de ligação dasduas cenas.

• 20,19-29: comporta as duas aparições, em dois domingos sucessivos,aos Onze sem e com Tomé.

Nos dois dípticos, a segunda cena focaliza de modo especial um perso-nagem implicado na primeira. O primeiro díptico tem como quadro o “jar-dim” onde Jesus foi sepultado, o segundo, o local de reunião da comunidade,lembrando o lugar da ceia. Assim, o cap. 20 retoma de forma cruzada osgrandes cenários dos capítulos 18–19 e 13–17, respectivamente.

A tradição assumida por João. Nos diversos relatos reconhecem-semotivos da tradição sinóptica, ao lado de elaborações próprias do quartoevangelista:

• no início (20,1), Maria Madalena é descrita como uma das mulheres dorelato de Mc 16,1-2, e fala inclusive na 1ª pessoa do plural (v. 2), masdepois, a reelaboração joanina faz com que as outras mulheres nãosejam mencionadas;

• Maria correndo aos apóstolos (20,2) lembra o “correr” das mulheresem Mt 28,8;

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• a aparição a Maria Madalena (20,11ss,) pode conter reflexos da apari-ção às mulheres segundo Mt 28,9-10;

• a ida de Pedro ao túmulo é relatada também em Lc 24,12;• na aparição aos discípulos reunidos (20,19-23), reconhecemos os mes-

mos motivos de Lc 24,36-43, mas abreviados, para dar lugar à “redu-plicação” desta aparição na presença de Tomé (vv. 24-29).

(Mc 16,9-20, chamado o “final canônico” de Mc, é um acréscimoconcebido no século II, que não joga luz sobre as raízes do evangelhojoanino, pois é posterior e depende dele.)

No jardim, junto do sepulcro (20,1-18)

I — 20 1No primeiro dia da semana, bem de madrugada, quando aindaestava escuro, Maria de Mágdala foi ao túmulo e viu que a pedratinha sido retirada do túmulo. 2Ela saiu correndo e foi se encontrarcom Simão Pedro e com o outro discípulo, aquele que Jesus maisamava. Disse-lhes: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemosonde o colocaram”.3Pedro e o outro discípulo saíram e foram ao túmulo. 4Os dois cor-riam juntos, e o outro discípulo correu mais depressa, chegandoprimeiro ao túmulo. 5Inclinando-se, viu ali as faixas de linho, masnão entrou. 6Simão Pedro, que vinha seguindo, chegou também eentrou no túmulo. Ele observou as faixas de linho aí, 7como tambémo lenço da cabeça, que não estava com as faixas, mas enrolado numlugar à parte. 8O outro discípulo, que tinha chegado primeiro aotúmulo, entrou também, viu e creu. 9De fato, ainda não tinham com-preendido a Escritura segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos.10Os discípulos, então, voltaram para casa.

II — 1Maria tinha ficado perto do túmulo, do lado de fora, chorando.Enquanto chorava, inclinou-se para olhar dentro do túmulo. 12Elaenxergou dois anjos, vestidos de branco, sentados onde tinha sidoposto o corpo de Jesus, um na cabeceira e outro nos pés. 13Os anjosperguntaram: “Mulher, por que choras?” Ela respondeu: “Tiraramo meu Senhor e não sei onde o colocaram”. 14Dizendo isto, Mariavirou-se para trás e enxergou Jesus, de pé. Ela não sabia que eraJesus. 15Jesus perguntou-lhe: “Mulher, por que choras? Quem pro-curas?” Pensando que fosse o jardineiro, ela disse: “Senhor, se fostetu que o levaste, dize-me onde o colocaste, e eu irei buscá-lo”. 16En-

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tão, Jesus falou: “Mariame!” Ela voltou-se e exclamou, em hebraico:“Rabûni!” (que quer dizer: Mestre). 17Jesus disse: “Não me segures,pois ainda não subi para junto do Pai. Mas vai dizer aos meusirmãos: estou subindo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deuse vosso Deus”. 18Então, Mariame de Mágdala foi anunciar aos dis-cípulos: “Eu vi o Senhor”, e contou o que ele lhe tinha dito.

Na primeira parte do cap. 20, situada junto do túmulo, João concentra,num quadro único, três temas principais, que são encontrados nos outrosevangelhos de modo separado (esse procedimento de conflação dramatizanteencontra-se também em Jo 2,13-21; 5,1-15 etc.): (a) as mulheres visitandoo sepulcro no primeiro dia da semana (Jo 20,1-2.11-13; cf. Mc 16,1-8 par.);(b) Pedro visitando o túmulo (Jo 20,3-7; cf. Lc 14,12); (c) Jesus aparecendoàs mulheres (Jo 20,16-18; cf. Mt 28,9-10, desdobramento mateano do relatodo túmulo vazio).

A composição joanina consiste em duas cenas: (I) o sepulcro vazio (vv.1-10); (II) a aparição a Maria Madalena (vv. 11-18). Além dos temas prin-cipais (o sepulcro vazio, as mulheres, os discípulos), são retomados detalhesda tradição, como o dobrar-se para ver dentro, o lugar do corpo e a cabeceiraseparados. João parece insistir no seguinte: Pedro viu os vestígios, importan-tes para o testemunho, e Maria viu os mensageiros de que falava a históriatradicional (sobretudo conforme Lc 24,4). Mas, para João, o mensageiroprincipal é o próprio Jesus.

I. O túmulo vazio (20,1-10)

No primeiro dia da semana (= o domingo; cf. 20,19), enquanto ainda estáescuro, Maria Madalena (cf. 19,25) vai ao túmulo e nota que a pedra que ofechava está removida. As trevas (à diferença do despontar do sol mencio-nado em Mc 16,2) sugerem que os personagens ainda não têm a luz plena(>com. 20,16). Maria corre até Simão Pedro e o outro discípulo, a testemu-nha por excelência de Jesus (o Discípulo Amado, >exc. 13,24), e lhes diz:“Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram”; o plural “nãosabemos…” é provavelmente um resquício da maneira original de contaresta história, que mencionava várias mulheres (cf. Mc 16,1-8 par.).

Em João, diferentemente dos sinópticos, Maria não vai ao sepulcro paraaplicar ervas aromáticas no corpo de Jesus, pois Nicodemos e José deArimatéia já fizeram isso (19,39; segundo Mc 16,1 par., as mulheres foramcomprar aromas logo no início, ou seja, na noite do primeiro dia da semana,e de madrugada se dirigiram ao sepulcro para embalsamar Jesus). Madalena

20,1-2

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quer apenas chorar, derramar suas lágrimas no sepulcro do Mestre amado: éassim que a encontraremos no v. 11. Por enquanto, tendo transmitido suaconstatação aos discípulos, ela fica no segundo plano.

Pedro e o outro discípulo correm ao sepulcro. Este último corre maisrápido e chega primeiro, olha para dentro do túmulo e enxerga aí os panosmortuários, mas não entra. Embora seja a testemunha por excelência, deixaa precedência a Pedro. Então chega Pedro. Ele entra e observa os panos aídeitados, e também o lenço que cobriu a cabeça, enrolado num lugar à parte(cf. Lc 24,12, Pedro viu “só os panos”, o que João parece interpretar como“os panos só, e o lenço à parte”). O que Pedro vê não pode ser obra deladrões, que teriam deixado tudo em desordem; nem de alguém que tirou ocorpo, pois não teria dispensado os panos e o lenço... Por outro lado, o leitorlembra-se de que Lázaro se levantou do túmulo amarrado nas faixasmortuárias, das quais os circunstantes deviam desatá-lo para que pudessecaminhar (cf. 11,44). No caso de Jesus, a situação encontrada no túmulodeixa transparecer a plena soberania daquele que “tem poder de retomar avida” (Jo 10,17-18).

Lc 24,12 narra em termos praticamente iguais a constatação do estado dosepulcro e completa-a dizendo que Pedro saiu admirando o que poderia teracontecido. João completa a constatação de Pedro pela do Discípulo Amado.Depois de Pedro entra também “o outro discípulo, aquele que tinha chegadoprimeiro ao túmulo”. Agora as testemunhas são duas, como prescreve a Lei(Nm 35,30; Dt 17,6; 19,15). O outro discípulo, porém, não apenas constata,mas “vê e crê” (cf. 9,41; >exc. 6,36). A Simão Pedro a precedência, aoDiscípulo Amado, a fé…

Nasce a fé na ressurreição. Pois até então não tinham compreendido asEscrituras que anunciam a ressurreição de Jesus dentre os mortos. Masagora, o discípulo que mais compartilhou o amor de Jesus acredita. A res-surreição faz brotar a compreensão das Escrituras (ver 2,21; 7,39; 12,16; cf.Lc 24,44-47). Então, os discípulos voltam para casa, encerrando a saída quese iniciou no v. 3. A narrativa pode voltar novamente a Maria Madalena.

As Escrituras anunciando a ressurreição

A fé na ressurreição dos mortos surgiu tardiamente em Israel e são poucosos textos que a atestam, mas, para os primeiros cristãos, muitas palavras,sobretudo dos Salmos, por causa de sua linguagem poética, soavam comose já falassem dela (cf. Sl 30,4 “do reino da morte fizeste subir...”; 9,14;56,13-14). Em textos como Sl 49,16; 73,24b talvez haja um prenúncio daidéia da ressurreição. É discutido se também Is 26,19 e Ez 37 se referem à

3-7

8

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ressurreição. Os primeiros textos claros são da época dos macabeus: Dn12,23.13; 2Mc 7,9.11.14.22…29; 12,43-45; 14,46. Mas não se deve pensarque a partir da época dos macabeus a fé na ressurreição se tenha generali-zado de repente. Os saduceus não adotaram a fé na ressurreição (Mc 12,18-27 par.; At 23,8).

Todavia, para a discussão dos primeiros cristãos com o judaísmo era fun-damental uma releitura das Escrituras que revelasse no desígnio de Deus umlugar para a morte infame de Jesus e o reconhecimento de sua “justiça”, ouseja, de que Jesus cumpriu a vontade de Deus. Toda a argumentaçãoescriturística cristã tem aí seu ponto central, desde os anúncios da Paixãonos sinópticos até o discurso de Pentecostes nos Atos. Para mostrar que aressurreição de Jesus é cumprimento das Escrituras citam-se, em primeirolugar, os textos sobre o Servo Sofredor e, especialmente, o “prelúdio” do 4ºcântico do Servo, Is 52,13, com o tema da “exaltação”, que permeia todoo Quarto Evangelho (cf. At 8,32-35). Citam-se ainda Sl 16,8-11 (= At 2,25-28); Sl 110,1 (= At 2,34); Os 6,2 (cf. Lc 13,32); Jn 2,1-12 (cf. Mt 12,40)e outros. Nos Atos encontramos muitas releituras e combinações de textosque não falam diretamente da ressurreição, mas da glorificação de Cristo(p. ex. At 3,13 = Ex 3,6.15; Is 52,13).

É provável que, desde cedo, a pregação cristã tenha criado coleções de taisreferências, que Jo 20,9 supõe conhecidas, sem citar nenhum texto emparticular.

II. A aparição a Maria Madalena (20,11-18)

Maria tinha ficado no segundo plano, nos arredores do túmulo, chorandoJesus, sem saber o que os discípulos viram e concluíram. Agora volta parao primeiro plano. Em determinado momento, inclina-se para olhar dentro dotúmulo e vê dois mensageiros celestes, com roupas brancas, demarcando olugar onde havia sido posto o corpo de Jesus, sentados um na cabeceira e ooutro, no lugar dos pés. “Mulher, por que choras?”, perguntam. “Levaram omeu Senhor (!) e não sei onde o puseram”, responde ela.

Depois de ter dito isso, ela se vira, enxerga Jesus que está aí, mas nãoo reconhece. Ocorre uma reviravolta na narrativa. Os mensageiros celestesficam esquecidos. Está aí um homem desconhecido, que pergunta: “Mulher,por que choras? Quem procuras?” O “procurar Jesus” — em diversos sen-tidos — que começou em 1,38, passando por 7,34; 8,21; 13,33, 18,4.7.8, estáprestes a ser concluído; o leitor/ouvinte, já instruído, lembra-se da respostapascal: “Ressuscitou, não está aqui” (Mc 16,6 par.). Mas Maria, no nível danarrativa, deve ainda aprender a novidade. Pensa que aquele homem é oguarda do jardim que, insatisfeito com o improvisado enterro de Jesus no

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túmulo novo, tirou o corpo: “Se foste tu que o levaste, dize-me onde ocolocaste, e eu irei buscá-lo” (para garantir-lhe sepultura digna). Não reco-nhece o Senhor, que não depende de manipulações humanas, mas se deslocalivremente para ir ao encontro daqueles que ama. Embora cheia de amor,está ainda na fase do mal-entendido. A mera ocorrência da ressurreição nãobasta para o conhecimento do mistério que está acontecendo. Jesus ainda nãosubiu para dar o Espírito da Verdade.

Então, Jesus toma a iniciativa (>exc. 6,11) para romper o círculo da não-compreensão. Esta ruptura manifesta a irrupção do tempo pascal, o tempo daalegria que se contrapõe ao chorar (cf. 16,20.22). Jesus já não chama Mariaanonimamente de “mulher”, mas pronuncia seu nome, na língua de ambos:“Mariame” (João conserva o aramaico no texto grego!): “O pastor chama asovelhas pelo nome e elas lhe reconhecem a voz...” (Jo 10,3.27). Inversão dacena de Lázaro: aí Jesus, ainda com vida “terrena”, chama pelo nome aqueleque morreu; aqui, ao entrar na glória, aquele que morreu chama pelo nomeaquela que ainda não conhece o mistério do Senhor ressuscitado.

Agora, Maria exclama, na mesma língua: “Rabbûni” (“meu grandeMestre”, “meu Mestre querido”). Em João, os discípulos chamam Jesus derabbi, “meu Mestre”. Em Jo 1,38 os discípulos seguem Jesus, que lhespergunta: “Que procurais?”, e eles respondem “Mestre (rabbi)…”. Temos,assim, uma inclusão entre o início do evangelho e o fim pascal; a busca deJesus chega ao desenlace (>com. v. 14b).

O v. 17 pode ser comparado com a cena de Mt 28,9-10 (que provavelmen-te serviu de modelo). Mt 28,9-10 transforma a estranha notícia final de Mc16,8, que encerra a narrativa dizendo que as mulheres fugiram do túmulo semfalar nada para ninguém (16,9-20 é acréscimo ulterior), Narra uma aparição deJesus às mulheres em que Jesus pessoalmente repete a ordem, dada pelo anjono sepulcro, de fazer os discípulos voltarem à Galiléia (cf. Mt 28,7). Jo 20,17conta que Maria, em respeitosa afeição, se joga aos pés de Jesus, abraçando-os, como as mulheres em Mt 28,9-10. Mas as palavras em que Jesus exprimea mensagem a transmitir aos discípulos são diferentes: “Não me segures, poisainda não voltei para o Pai. Vai antes dizer aos meus irmãos que estou subindoao meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (vv. 17-18). Maria percebea aparição ainda na ótica de antes da morte e ressurreição de Jesus: venera-ocomo dantes, como o “grande Mestre” presente junto dela na terra. Jesusrecusa esse “segurar”, mediante o simbolismo “cima/baixo”, costumeiro noQuarto Evangelho. O ressuscitado se manifesta no âmbito aqui “de baixo”,porém não para inscrever-se novamente neste âmbito, mas para mostrar que éplenamente “de cima”. Por isso, não pode ser segurado.

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As aparições são sinais (veja 20,30) destinados para aqui embaixo; são,portanto, passíveis de mal-entendido, como a primeira reação de Maria defato demonstra. Como os demais “sinais”, as aparições pascais pertencem àesfera das manifestações de Jesus-Palavra feita carne, à história terrena,fundamental e fundante, porém passageira. Aquele que aparece não perma-nece para sempre, como também não foi permanente sua “vinda em carne”.E para a comunidade futura, as aparições, como a vida terrena, deixam deser objeto de constatação direta (20,29). Transformam-se em tradição da fé(20,31). O “aparecente” desaparece: não está, sem mais, na mesma condiçãodo Senhor glorioso. “É bom para vós que eu vá embora, porque, se não for,o Paráclito não virá a vós” (Jo 16,7). Jesus deve percorrer seu trajeto até ofim, até sua acolhida na glória que ele tinha junto ao Pai antes da criação domundo (cf. Jo 17,5). Só então seu “enaltecimento” ficará completo. Objeti-vamente, Jesus já foi “enaltecido” na cruz (12,32-33!), mas subjetivamentedeve-se realizar para os discípulos também o outro lado da moeda: a exaltaçãona glória. A partir daí é que o Espírito de Jesus e do Pai pode tomar o lugardo Jesus terrestre, o Paráclito pode vir sobre os fiéis para comunicar-lhes osdons de Deus. É o que João vai contar logo mais (Jo 20,19-23). Talvez estejasugerindo que Maria entendeu mal o “pouco tempo” (cf. 14,18-19) em quenão mais se verá Jesus antes de vê-lo de novo, como se a aparição já fossea presença definitiva, enquanto, na realidade, Jesus ainda não subiu!

A aparição do Ressuscitado não é idêntica à sua glorificação; é o sinaldesta. O diálogo de Jesus com Madalena é uma cena didática, que mostra adistinção entre ressurreição e “enaltecimento”. A fonte do dom escatológicodo Espírito é o enaltecimento (7,39), não a aparição do Ressuscitado. Al-guém pode se apegar ao Jesus da ressurreição e esquecer o Jesus doenaltecimento! Maria não deve “segurá-lo”. A ressurreição não é uma manei-ra para Jesus continuar entre nós como dantes. Se fosse só isso, não preci-sava ter morrido. A ressurreição é “sinal” de que Jesus, em virtude de suairrevogável morte por amor fiel, é agora o Senhor que vive: participa daglória de Deus e derrama sobre nós os dons de Deus: a paz, o Espírito, aremissão do pecado (cf. 20,19-23). Querer segurar o Ressuscitado seria comoficar olhando o sinal verde só porque é bonito, em vez de avançar; seriaolhar para o dedo e não para aquilo que ele aponta.

Em vez de segurar Jesus, Maria deve anunciar à comunidade que Jesus“sobe” à glória do Pai. O verbo “subir” faz pensar não só na trajetória deJesus (descida-subida, cf. 3,13; >exc. 17,26), mas também na entronização(subir ao trono). Pela primeira vez no Evangelho de João, Jesus chama acomunidade de “meus irmãos” e ao Pai ele chama “meu Pai e vosso Pai, meu

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Deus e vosso Deus” — expressão de radical solidariedade (cf. Rt 1,16), alémde lembrança da Aliança (“eu serei Deus para eles”: cf. Ex 29,45; Lv 26,12;Jr 31,33; Ez 36,28 etc.)30.

A Ressurreição é o sinal da plena comunhão dos irmãos com Jesus e comDeus, Pai de Jesus e nosso Pai, porque Jesus recobrou a posse da “glória queele possuía antes da criação do mundo” (17,5). No v. 18 receberá plenosentido o surpreendente termo k¥rios, “Senhor”, que Maria antecipadamenteusou para falar do corpo de Jesus (vv. 2 e 13) e para dirigir-se a um simplesoperário, que ela não sabia ser “o Senhor” (v. 15, ironia joanina).

Depois de ter chamado Jesus, enfaticamente, de “meu grande mestre”(rabbûni), Maria é enviada a transmitir a mensagem aos discípulos, quecostumavam chamar Jesus de rabbi, “mestre”. João usa o verbo angéllein,associando Maria aos mensageiros, ángeloi, do v. 12; a mensagem que seesperava deles é proclamada por Maria, primeira mensageira da nova comu-nidade. Largando o “aparecente”, Maria anuncia agora que viu o k¥rios,dando ao termo a mesma força do nome de Deus no AT: aquele que está aí,o “Presente”! A mensagem que Maria entrega aos “irmãos” é a resposta àgrande pergunta que domina os discípulos depois da morte de Jesus: o sen-tido de sua ausência (cf. 12,8; 16,6).

A ressurreição não é um milagre bonito de se olhar. Significa que, noprocesso com o mundo, Jesus teve razão e agora é “Senhor”, juntocom o Deus Vivo e Presente. Na sua ausência, ele está presente comoSenhor, nos mesmos termos que Deus, seu Pai, que podemos agorachamar de “Pai nosso”. A ressurreição de Jesus transforma a nossavida, situa-nos no seu amor, na sua comunhão com o Pai (cf. Jo 17).Em 20,18 Jesus não chama mais os discípulos de servos e nem mesmode amigos (cf. 15,15), mas de “irmãos”. Se aderimos a Jesus pela fée a prática do amor fraterno, somos agora, verdadeiramente, irmãosde Jesus e filhos do mesmo Pai!

Como vivemos isso em nossas comunidades? Entregando-nos aos me-canismos deste mundo, engolindo a cultura comercial, dobrando-nosdiante das leis do mercado, proclamadas “científicas”, porém puxa-das por cada qual para seus interesses? Ou guiamos nosso existirpela vitória do amor fiel que se manifesta em Jesus, que encontra suamensageira em quem o amou, mesmo sem compreender?

30. Pode-se ver aqui uma oposição irônica aos “irmãos” carnais de Jesus em 7,3.5.10, aosquais Jesus diz que, naquele momento, ele não “sobe”.

18

20,1-18

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O LIVRO DA GLÓRIA

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No cenáculo (20,19-29)

I — 19Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, os discípulos esta-vam reunidos, com as portas fechadas por medo dos judeus. Jesusentrou e pôs-se no meio deles. Disse: “A paz esteja convosco”. 20Ditoisso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos, então, se alegra-ram por verem o Senhor. 21Jesus disse, de novo: “A paz esteja convos-co. Como o Pai me enviou também eu vos envio”. 22Então, soprousobre eles e falou: “Recebei o Espírito Santo. 23Se perdoardes ospecados de alguns, serão perdoados; se os retiverdes, ficarão retidos”.

II — 24Tomé, chamado Gêmeo (Dídimo), que era um dos Doze, não estavacom eles quando Jesus veio. 25Os outros díscipulos contaram-lhe:“Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse: “Se eu não vir a marca dospregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos,se eu não puser a mão no seu lado, não acreditarei”.26Oito dias depois, os discípulos encontravam-se reunidos na casa, eTomé estava com eles. Estando as portas fechadas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”. 27Depois disse aTomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tuamão e coloca-a no meu lado. Não sejas incrédulo, mas crê!” 28Tomérespondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” 29Jesus lhe disse: “Cresteporque me viste? Bem-aventurados os que creram sem ter visto!”

O diálogo com Madalena preparou o terreno para a manifestação abertada glória do Ressuscitado. No novo díptico, vv. 19-29, Jesus não se mani-festa por um sinal, quer negativo (vv. 3-10), quer positivo, porém encober-to (v. 11-17). Manifesta-se abertamente como k¥rios escatológico, superandoo “medo” (representado pelas portas trancadas, v. 19; cf. 14,1.27) e trazen-do o dom escatológico anunciado nos discursos de despedida: a paz e oEspírito (cf. 14,27; 15,26; 16,7 etc.).

Em Lc 24,36-43, encontramos os traços essenciais da aparição narradaem Jo 20,19-23. Como o do sepulcro vazio, também este episódio é desdo-brado em duas cenas, uma envolvendo o grupo dos Onze (sem Tomé), outraTomé. As duas cenas são complementares: os traços essenciais da primeiracena se repetem na segunda, e o que é dito a Tomé vale para todos.

I. Aparição aos Onze (20,19-23)

O lugar do novo episódio já não é o sepulcro, como em 20,1-18, mas oespaço da comunidade. Quanto ao tempo, há continuidade: é a tarde daquele

19-20

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mesmo primeiro dia da semana. (Também Lc 24,36 parece situar a apariçãoao grupo dos discípulos na tardinha do dia da ressurreição. A menção da tardesugere que os cristãos já estavam dedicando todo o “primeiro dia” à memóriado Senhor, distanciando-se assim completamente do sábado judaico; cf. 5,9).

O conteúdo da aparição é muito semelhante a Lc 24,36-49. Explicitandoa apresentação de Lc, Jo acentua as portas trancadas, referência ao medo dosdiscípulos (cf. 7,13; 9,22; 12,42s; 19,38), que é incompatível com o desen-lace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). Ora, esse tema do “medo” evoca asituação da comunidade joanina em relação à sinagoga (9,22!). A aparição de20,19-23 é uma mensagem de reconforto para a comunidade do fim doséculo I (e de todos os tempos).

Na tarde daquele mesmo primeiro dia da semana (cf. 20,1; a repetiçãoda expressão lembra que se trata do domingo, dia do “Senhor” da comuni-dade cristã), os apóstolos estão reunidos, com as portas trancadas por medodos judeus. De repente, Jesus entra e se coloca no meio deles. Diz: “A pazesteja convosco”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do am-biente bíblico. Mas a repetição insistente no vv. 21 (e 26) faz suspeitar queo sentido seja mais intenso. Como “o primeiro dia da semana”, a fórmulaparece litúrgica. Tem conotações de manifestação da realidade divina. Em Jz6,23, por exemplo (Gedeão), significa uma revelação de Deus. Aqui, pareceimplicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora dadespedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24;cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastamcom o medo mencionado no início. Realiza-se a promessa: “Tende coragem,eu venci o mundo” (16,31; cf. 16,11).

Jesus se identifica como aquele que passou pela morte na cruz: mostraas mãos e o lado perfurados (cf. 19,35). Como em Lc, também em JoãoJesus mostra suas chagas, mas não com a mesma intenção. Em Lc, este gestoserve para se verificar que Jesus não é um fantasma; em Jo, para mostrar aidentidade entre o crucificado e o glorificado e recordar o sentido salvíficoda cruz. Também a verificação por Tomé, no próximo domingo, tem signi-ficado muito diferente do de Lc; e o “teste da comida” (Lc 24,41-43) nemmesmo é mencionado por João (mas, sim, pelo “editor” em Jo 21,5.12s).

Os discípulos “se alegram” (cf. 16,21) ao ver o Senhor. Enquanto em Lc24,41 a alegria parece mera reação psicológica, João lhe dá o mesmo sentidoda “paz”: alegria por causa da vitória do “Senhor” e do reencontro com ele,anunciada nos discursos de despedida (cf. supra).

Realizam-se as promessas da despedida: é nessa perspectiva que se deveinterpretar a missão que Jesus confia aos discípulos (v. 21; cf. Lc 24,49 e

21-23

20,19-29

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Mt 28,19). Jesus prometeu aos discípulos que fariam obras até maiores doque ele (14,12). Mandou-os “ir e produzir fruto” (15,16). E no seu “testa-mento”, confiou-lhes a missão ao mundo que o Pai lhe tinha confiado (17,18).A missão de Jesus estava fundamentada na incumbência do Pai; a deles, naincumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. A missão éportanto a mesma (v. 21).

Na despedida, Jesus tinha falado da missão dos discípulos (cf. 15,16).Agora chegou o momento: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”.Com um gesto que lembra a ação de Deus na criação, Jesus sopra (lit.:“insufla”) sobre eles (cf. Gn 2,7), comunicando-lhes “espírito” (sem o artigo)da parte de Deus: “Recebei (o) Espírito Santo!” Não é um simples carismaque recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino, vidanova que recebem, como sugere a proximidade da imagem do “soprar/insu-flar” com Gn 2,7 (cf. Sb 15,11) e Ez 37,3-5. É uma nova criação (cf. Sl104,30). Sua vida tem outra força que antes.

“Se perdoardes os pecados de alguns, serão perdoados; se os retiverdes,ficarão retidos”: o Espírito é dado à comunidade para que ela continue fa-zendo o que João Batista anunciou como missão de Jesus, sobre o qual oEspírito permanece e que o derrama (batiza com o Espírito: 1,31-33). Essamissão é: tirar o pecado do mundo (20,23, formando inclusão literária com1,29.36). A primeira qualificação de Jesus em João era: o “Cordeiro que tirao pecado do mundo” (1,29). Agora, ele dá seu Espírito aos discípulos paraque, ocupando seu lugar no mundo, participem dessa missão. E isso, comgarantia divina. “[os pecados] … serão perdoados [ou]… serão mantidos” (ouso da voz passiva é “teológico”: significa que o agente é Deus). Pelo con-texto, João parece pensar na prática intra-eclesial do perdão (cf. Mt 18,18;> exc. embaixo), mas nada impede que ampliemos a perspectiva dessa mis-são — tirar o pecado do mundo. Assim como as obras realizadas por Jesuseram a obra do seu Pai (14,10), assim também a obra dos discípulos. Quandotiram o pecado do mundo, Deus endossa a obra deles. E o Mediador dissoé o Espírito.

Para essa missão é necessária a assistência do Espírito. A promessa doEspírito se realiza já, pois faz parte da comunhão entre o Senhor glorioso eos seus que estão no mundo. É agora o tempo do conhecimento “plenificado”da verdade (16,13, e cf. 7,39) — plenificado no tempo da Igreja e comrelação à sua situação. Inaugura-se a presença do “Espírito da Verdade”(14,17), que ensina tudo (14,26) e dá testemunho de Jesus (15,26), o Espíritoque expõe o mundo à luz verdadeira (16,7-11). O que Jesus, ao comentar ainimizade do mundo, prometeu na véspera da cruz realiza-se agora.

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Perdoar os pecados

Entenda-se bem o “poder” conferido no v. 23. Não significa que a comunidadepode decidir arbitrariamente se um pecado será “demitido” ou “segurado”.Trata-se de uma obra de Deus que a comunidade realiza, assim como Jesusrealizou a obra de seu Pai (cf. supra). Deus respalda a obra da comunidade.O pecado que a comunidade, guiada pelo Espírito, perdoa, Deus o perdoa;e o pecado cuja permanência ela deve denunciar, Deus o continua acusando.Ou seja, a obra santificadora da comunidade se identifica com a do seu Senhor,que está na glória de Deus. O dom do Espírito é visto como continuação daobra de Cristo pelos seus (cf. 16,15). Será que João pensou aqui somente nacomunidade em geral ou também num ministério específico do perdão dospecados? A resposta a esta pergunta exige um exame mais amplo das institui-ções eclesiais no Quarto Evangelho (>Intr. § 5.1:7). De toda maneira, compre-endemos hoje melhor que a atuação ministerial na Igreja — se é essa que Joãovisa — é a atuação da Igreja como comunidade, por meio de seus ministros.

A comparação com Mt 16,19 (“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudoo que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra serádesligado nos céus”) e 18,9 (“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes naterra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado nocéu”) nos leva a uma imagem usada também no Apocalipse de João: aschaves (cf. Ap 3,7-8: “Assim fala o Santo, o Verdadeiro, que tem a chave deDavi, aquele que abre e ninguém fecha, e que fecha e ninguém abre: ‘Conhe-ço a tua conduta. Vê, eu abri à tua frente uma porta e ninguém a poderáfechar’”). Esta imagem é geralmente entendida como apontando o poder dejurisdição na Igreja, mas isso é uma interpretação estreita demais, ligada àteologia altamente jurídica da Idade Média. Na realidade, refere-se à comu-nidade salvífica que é a nova Jerusalém do Apocalipse. O poder das chavesda cidade de Davi significa a administração da casa de Davi (cf. Is 22,22). Ocontraste entre duas ações opostas (abrir/fechar) é uma maneira semítica parasignificar a totalidade de sua atuação. A prática da comunidade que, na forçado Espírito vivificador, reconcilia seus membros com Deus (ou eventualmenteos coloca diante da permanência de sua culpa) é endossada por Deus. Melhor;é a prática do Reinado de Deus (para falar numa terminologia à qual estamosacostumados, mas que João não usa). Em 1Jo 1,7-9; 2,12 o perdão do pecadopor (causa de) Cristo aparece como um ponto central na vida eclesial. Jo20,22-23 coloca a base para isso. E talvez haja no v. 23 uma alusão aospecados que não levam à morte e aos que levam à morte, cf. 1Jo 5,16-17.

O que o Ressuscitado comunica à comunidade é a capacidade de incluirefetivamente os que se entregam à obra do amor que a Ressurreição “endos-sa” (o “enaltecimento”), como também o discernimento daqueles que nãocomungam com essa obra.

20,19-29

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A comunicação do Espírito está, em João, intimamente relacionada coma morte de Jesus, entendida como “enaltecimento”. Nos capítulos anteriores,João sugeriu esta ligação por duas imagens: (1) Jesus vai embora para deixarvir seu substituto, o “Paráclito” (cf. 16,5-11; 15,26s.); (2) o Espírito é comoa água que sai da fonte da vida, presente no Jesus enaltecido na cruz e naglória (19,7,37-39; 19,34). Entendemos assim que a demonstração do ladoaberto, em Jo 20,20, não tem apenas o sentido de constatação da identidadedo ressuscitado, mas é uma alusão à fonte da vida de onde jorra o Espíritoque agora é comunicado. Por isso, João não fala apenas de “mãos e pés”,como Lc 24,39s., mas de “mãos e lado”, fazendo-nos lembrar que só elenarra a cena da abertura do lado de Jesus (19,34; cf. 7,37-39).

II. Aparição a Tomé (20,24-29)

Os vv. 24-25 formam a transição para a segunda cena do díptico. Um dosDoze, Tomé, apelidado o Gêmeo (Dídimo), não estava com os outros quandoJesus apareceu. Os outros lhe contam: “Vimos o Senhor”. Ele responde: “Se eunão verificar a marca dos pregos nas suas mãos, se eu não puser meu dedo nasmarcas dos pregos, se eu não puser a mão no seu lado, não acreditarei”.

O dado tradicional (cf. Lc 24,36-43) destacava o nascimento da fé pascala partir da identificação física de Jesus ressuscitado. Mais uma vez, Joãodesdobrou o dado tradicional. Nos vv. 19-23, desenvolveu os temas (tradi-cionais) da saudação e das chagas no sentido que acima explicamos, relaci-onando-os com a plenificação da missão de Jesus, o dom do Espírito e amissão dos discípulos. Agora abre uma nova cena para tratar, à parte, o temado “apalpar” e da incredulidade (cf. Lc 24,39.41!).

Tomé (cf. 11,6), “um dos Doze”, não estava com eles quando Jesusapareceu. A inesperada menção dos “Doze” chama a atenção: nas cenasanteriores, João não sentiu nenhuma necessidade de mencioná-los e, alémdisso, no resto do evangelho só uma pessoa é designada como pertencendoaos Doze: Judas — igualmente em relação com o crer (6,70s., cf. 6,64s.).A nova cena aprofunda, pois, o sentido da fé daqueles que são chamados osDoze, as testemunhas da primeira hora (cf. v. 29).

Os outros discípulos contam a Tomé sua visão do Ressuscitado. Toménão crê, mas exige, de modo redundante, ver e tocar as marcas nas mãos eno lado para que passe a crer. Isso não é algo abominável: em 1Jo 1,1, o“apalpar” em relação à “Palavra da Vida” é citado como título de credibili-dade. No fim de nossa análise, o sentido disso ficará mais claro.

O v. 26a lembra o ritmo semanal, “oito dias depois” do primeiro dia dasemana (v. 19). Isso confirma que, para a comunidade joanina esse dia já é

26

24-25

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uma instituição. A cena se dá no mesmo lugar e perante o mesmo público,enriquecido agora com a presença de Tomé. Como no v. 19, Jesus entraapesar das portas trancadas e posta-se no meio dos discípulos. Jesus diznovamente: “A paz esteja convosco” — um verdadeiro replay dos vv. 19-21.

Jesus convida Tomé para fazer a constatação que ele exigiu, usandopraticamente os mesmos termos (v. 27). Mas acrescenta: “e não sejas incré-dulo, mas acredita”; o termo “incrédulo” (ápistos), como também “crente”(pistós), ocorre somente aqui em Jo, mas é fornecido pela tradição (apistein,Lc 24,41). Geralmente entende-se que Jesus mostra suas chagas para queTomé acredite, mas, na cena tradicional narrada por Lc, nem mesmo vendoe apalpando os apóstolos creram (precisaram de uma prova complementar,a da comida, Lc 24,41-42). Isso confere ao “teste” de Tomé uma conotaçãode inutilidade; aliás, não o executa. Nas narrações joaninas é comum queuma ordem de Jesus seja seguida de sua execução literal (1,39; 2,7 etc.). Issonão é o caso aqui. Tomé não apalpa as chagas de Jesus, como este mandou.Mas dá ouvidos à última parte da injunção de Jesus, que se pode traduzirassim: “Opta pela fé, não pela incredulidade”. Tomé expressa sua fé com amais plena profissão de fé que o Quarto Evangelho contém: “Meu Senhor emeu Deus” (expressão baseada no AT, p. ex. Sl 35,23; cf. também Ap 4,11). Éa sétima e última vez que aparece o termo “Senhor” neste capítulo pascal!E o termo “deus” aplicado a Jesus parece constituir uma inclusão com aprimeira frase do Prólogo (1,1; cf. 1,18).

Quanto ao conteúdo, esta confissão de fé não deixa nada a desejar. Ora,o caminho (o ”ver”) que levou a ela é relativo; está subordinado a algo maisimportante. Não é o único caminho possível, nem — na atual circunstânciado Quarto Evangelho — o mais importante. “Porque me viste, creste (?)(frase assertiva ou interrogativa); felizes os que não viram, e contudo cre-ram”. Ver para crer tem valor apenas relativo e provisório (>exc. 6,36).Decerto, também o Discípulo Amado viu e creu (cf. v. 9). O “crer e ver” éalgo concedido às primeiras testemunhas (>exc. 6,36). Objeto de bem-aven-turança, ao invés, é a fé sem ter visto. João usa aqui o termo makários(“feliz, bem-aventurado”), que não lhe é costumeiro; sugere o olhar favorá-vel de Deus sobre alguém (ver 13,17). O “crer sem ver” recebe, por assimdizer, nota dez. É o crer que é possível para os fiéis das gerações ulteriores,depois das testemunhas da primeira hora. Não são fiéis de categoria inferior;também a eles pertence a plenitude do dom escatológico, a bem-aventurança.

Agora entendemos melhor o valor do testemunho ocular, que é relativoa um momento determinado: o Discípulo Amado viu e creu, Madalena quissegurar Jesus, Tomé é um dos Doze, o autor de 1Jo se respalda no ter visto

27

29

20,19-29

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e apalpado (1Jo 1,1-3). Tudo isso se refere ao privilégio recebido pelas teste-munhas da primeira hora, pertencendo ou não ao círculo dos Doze — privi-légio para este momento fundador, mas não para os missionários dos temposposteriores. Este “ver” é ad hoc, não ad aeternitatem. Serve para sua missãode anunciar a ressurreição e de formular a fé pascal, como Tomé faz de modoexemplar. Mas a bem-aventurança é para os que crerão sem este privilégio!

A fineza literária de João se mostra, mais uma vez, num detalhe quepoucos perceberam: não diz que Tomé de fato chegou a apalpar Jesus, emboraconvidado para tal. Isso combina perfeitamente com a lógica do “não segu-rar” (cf. v. 17). A visão do ressuscitado é mero sinal. Basta ver o sinalenquanto sinal — e é a isto que Jesus atribui a fé de Tomé. Apalpar seriaapegar-se ao sinal. Antes que censurar, o v. 29a aprova quem crê pelo sinalque vê, mas essa aprovação pertence ao tempo do Jesus terreno e já foianunciada no início do evangelho, no caso de Natanael. Quando crê por tervisto, Tomé não difere essencialmente de Natanael (1,50)! Agora, porém,começa o tempo dos que não viram e contudo creram. Isto, sim, pertence aotempo do dom escatológico, é bem-aventurança.

A fé não é dada somente às testemunhas oculares da pregação, morte eressurreição de Jesus — especialmente o Discípulo Amado. “Ver e crer” (cf.20,9) não é privilégio, mas missão. As gerações seguintes deverão acreditarpela palavra dos que foram testemunhas desde o início (cf. 17,20; 15,27). Eé por isso que o evangelista escreveu seu evangelho (20,30-31). Em vez deexigir um contato palpável para crer, Tomé deveria ter acreditado na palavrados transmissores autorizados, as testemunhas oculares da primeira aparição:os outros discípulos. A cena dos vv. 24-29 descreve a sucessão das gerações:começa com a geração das testemunhas oculares, que precisam de sinais pal-páveis para transmiti-los às gerações que devem crer sem ter visto (v. 29b).

Para consolo dos que devem crer sem ter visto, citamos um texto rabínicoa respeito dos prosélitos (= convertidos do paganismo ao judaísmo): “Oprosélito vale mais para Deus do que todos os israelitas que estavam presen-tes no Sinai. Pois estes, se não tivessem testemunhado trovão, chamas, luz,tremor da montanha e som da trombeta, não teriam aceitado as normas deDeus. Mas o prosélito, que viu nada disso, vem, entrega-se a Deus e aceitaas normas de Deus. Há alguém que seja mais valioso que tal homem?” (RabiSimeão ben Lakish). E o texto de 1Pd 1,8-9: “Sem terdes visto o Senhor, vóso amais. Sem o verdes ainda, credes nele. Isto será para vós fonte de alegriainefável e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação”.(A Epístola apócrifa de Tiago, 3,13ss., encontrada em Nag-Hammadi, vaimais longe: “Ai dos que (só) viram o Filho do Homem. Bem-aventurados

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serão os que não o viram, não falaram com ele, não ouviram nada dele”; issojá é teologia gnóstica, dispensando até o testemunho sobre a obra terrena deJesus… Não é este extremo que João propõe, como veremos em 20,30-31!)

Percorremos o capítulo pascal de João. É uma seqüência de sinais ede reações de fé, exatamente como a obra pré-pascal de Jesus. Comesta diferença: todos os personagens, de alguma maneira, crêem. Aexperiência pascal é a experiência específica das testemunhas quederam origem às comunidades cristãs: Pedro, o Discípulo Amado,Madalena, os Onze, Tomé... Nenhuma delas, porém, pode apropriar-se a título exclusivo da bem-aventurança destinada a todos os quecrêem, não importa em que momento recebam o testemunho. E asexpressões de fé manifestadas pelas testemunhas marcam o cresci-mento até a plena fé cristã, ao proclamarem Jesus como Senhor eDeus. Encerram assim a trajetória da fé cuja plena confissão é anun-ciada na primeira frase do Prólogo: “ela era Deus, a Palavra”.

A comunidade recebe do Ressuscitado a capacidade de tirar o peca-do, recebe as chaves da Cidade Nova, para abri-la a quem vivia nomedo e na opressão, mas confiantemente dirige o olhar a Jesus, dequem ela transmite o testemunho.

Acreditamos naquilo que os Apóstolos acreditaram. Damos créditoàquilo em que os e as que acompanharam de Jesus investiram seucrédito.

Não temos provas “científicas” de que Jesus ressuscitou, de que eleé Deus (como também não as temos da existência de Deus). Temos,da parte dos que conviveram com ele, o testemunho de que ele vivee de que nele podemos “acreditar” — depositar em crédito — aquiloque corresponde a Deus. Nossa fé nasce, por um lado, da fé da pri-meira geração, guardada pela comunidade, e, por outro, da experiên-cia do Cristo vivo feita hoje, quando participamos da vida “em Cristoe no Espírito” que se vive nessa comunidade.

Nos versículos seguintes, que encerram o que é propriamente o Evan-gelho de João, encontraremos uma articulação clara e para sempreatual dos temas do testemunho e da fé.

20,19-29

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CONCLUSÃO DO EVANGELISTA (20,30-31)

30 Jesus realizou, decerto, ainda muitos outros sinais, diante dosdiscípulos que não estão escritos neste livro. 31 Mas estes estãoescritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, epara que, crendo, tenhais vida, em seu nome.

O atual Evangelho de João tem duas conclusões: 20,30-31 e 21,25, masesta segunda pertence ao apêndice que é constituído pelo cap. 21, comoveremos. A presença de um acréscimo (cap. 21) depois da conclusão(20,30-31) não é um fato isolado; também 1Jo 5,13 é uma conclusão se-guida por um acréscimo que em certos pontos revela um pensamento diferente(1Jo 5,14-21).

A primeira conclusão (20,30-31) faz parte da composição original doevangelho e recebe desta o seu sentido. Ora, como já percebemos outrasvezes, o Evangelho de João não se deixa dividir em partes estanques. Éparecido com ondas que se sobrepõem. Assim, estes dois versículos conclu-sivos, embora conclusão do livro inteiro, não podem ser separados daquiloque os precede imediatamente e que lhes fornece, por assim dizer, o elã.

Jo 20,30-31 se distingue do resto pelo ponto de vista (ou de fala), quejá não é narrativo (na terceira pessoa), mas retórico, dirigindo-se diretamenteao leitor, na segunda pessoa. (A primeira pessoa — quem fala — fica dis-cretamente escondida por trás da forma passiva “estão escritos”...)

Embora brevíssima, a conclusão é bem estruturada e equilibrada. Oequilíbrio é marcado por um procedimento do grego clássico: a primeirafrase é introduzida por “decerto” (men), a segunda por “mas” (de). Põem-sena balança duas coisas: o não-escrito e o escrito (neste livro) de tudo aquiloque Jesus fez...

As duas frases conclusivas resumem e reassumem o livro todo. A primei-ra resume toda a atividade de Jesus sob o termo “sinais”, a segunda nos fazvoltar às primeiras páginas do evangelho, apresentando Jesus à nossa fécomo Messias e Filho de Deus (cf. esp. 1,19-34), para que acreditando emseu nome (cf. 1,12) tenhamos vida (cf. 1,5).

A conclusão do evangelista (diferente da conclusão do epílogo, 21,24-25)se enquadra exatamente na missão de transmitir o testemunho daqueles queviram, para que aqueles que não viram possam crer e continuar firmes na fé(cf. 20,29). O evangelista dá conta da incumbência sugerida pelas palavrasfinais de Jesus a Tomé (transmitir o testemunho da fé aos que não viram).Jesus realizou muitos outros sinais que o autor não recolheu no seu livro, masos que estão escritos servem para que as gerações futuras possam crer, sem

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363

terem visto. Eis a nova Escritura de nossa fé. E, reatando com o prólogo deseu evangelho, João conclui: aqueles que por esta nova Escritura acreditam emseu nome (= de Jesus) recebem a vida que nasce de Deus (cf. 1,12-13).

*

Jo 20,30-31 fala de “sinais”, termo que não ocorre desde o epílogo do“livro dos sinais”, 12,37-43. Serão somente os da vida pública, do “livro dossinais” (Jo 1–12); ou será que a ressurreição deve ser considerada como osinal por excelência (em 2,18-21, o pedido de um sinal é respondido comuma referência à ressurreição)? Pouco importa, todos eles são apenas rela-tivos (cf. 20,29). Por isso basta uma seleção representativa31.

O termo “sinal” não indica aqui em primeiro lugar alguns gestos deJesus, mas sim o modo como é vista a obra de Jesus. O evangelista recon-sidera toda a obra de Jesus, inclusive as aparições pascais, no seu aspectode sinais. Explica qual é o sentido verdadeiro da obra, da vida, morte eressurreição de Jesus vistas como sinais: levar à fé em Jesus Messias e Filhode Deus. Vimos, nos doze primeiros capítulos, que a visão dos sinais nãolevava a isso, mas, pelo contrário, a percepções deformadas (p. ex., 6,14-16)ou, no máximo, provisórias. Agora, depois do “enaltecimento”, a compreen-são da obra de Jesus em termos de “sinais” pode ser corrigida.

A expressão “muitos outros sinais” engancha naquilo que acaba de sernarrado: o episódio de Tomé e as aparições pascais. Implicitamente, tambémestas são interpretados como “sinais”, com a costumeira ambivalência queJoão coloca neste termo. Os sinais servem para credenciar a palavra de Jesuscomo quem fala em nome de Deus. Neste sentido, os sinais têm valor pro-visório; são livres e não podem ser urgidos como condição para crer. Maseles são também símbolos do dom de Deus que Jesus é. Neste sentido, amanifestação de Jesus como Senhor que vive pode ser vista como sinal. Emque sentido a memória escrita dos sinais de Jesus, ou seja, de sua obra vistacomo manifestação de sua missão e valor divinos, será alimento de fé (20,31)para os leitores, que acabam de ser felicitados por crerem sem ver (20,29)?No sentido de serem símbolos daquilo que Jesus é e sempre será para os que,na fé, se entregaram a ele. Tanto a vida histórica de Jesus como a ressurrei-ção não causam mecanicamente a fé (12,37!), mas lhe oferecem o inesgotá-vel conteúdo da manifestação de vida divina. Os sinais, toda a vida de Jesus

30-31

31. Houve quem visse em 20,30-31 a continuação original de 12,37-43. Seria o encerramentode um documento anterior ao evangelho, narrando somente os sinais de Jesus, sem a história daPaixão: a “fonte (ou documento) dos sinais (semeia)”. Mas o estilo de 20,30-31 é o mesmo do autorque se reconhece no evangelho todo e refere-se ao escrito todo.

20,30-31

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O LIVRO DA GLÓRIA

364

vista como sinal, são em última análise as manifestações da “glória” de Deus(cf. 2,11). É Deus que se dá a ver e a conhecer, e esta é a história de JesusCristo (1,18).

Passar a crer ou continuar na fé?

Jo 20,31 esconde um problema, que vem à tona na divergência entre osmanuscritos. Em vez de “creiais...” (tempo presente/continuidade: “continueisna fé”), a maioria dos manuscritos, mas não os melhores, escreve, com umaletra a mais: “para que chegueis a crer” (tempo pontual: “abraceis a fé”).Ora, isto parece uma concessão ao pensamento espontâneo, porém poucojoanino, de que os sinais serviriam para produzir a fé... E negligencia o fatode o Quarto Evangelho ser um livro de aprofundamento para os que jácrêem, não de propaganda.

A forma “creiais”, em grego (conforme os melhores manuscritos), faz pen-sar numa atitude contínua. João teria escrito, então, antes de tudo, parasustentar a fé dos que crêem, para que eles não se tornem ex-crentes comoos de 8,31-50! Mas isso não exclui que ele pense também nos novos cren-tes. Os primeiros capítulos, com seu caráter de catequese de iniciação, ser-viriam bem para isso. Mas, a partir do cap. 5 as discussões na hora doconflito fornecem alimento para os cristãos que devem permanecer firmesna sua fé em Jesus, Messias e Filho de Deus.

O que João colocou por escrito — a narrativa de Jesus — serve para quecontinuemos na fé de que Jesus é o Messias enviado por Deus e o Filho dele,no sentido intenso e exclusivo deste termo que o evangelho veio iluminar.Não se trata da fé intelectual num dogma teórico, mas de uma atitude deadesão vital. A vida e história de Jesus mostra Deus que se manifesta.

À luz do evangelho todo, crer que Jesus é o Messias e o Filho de Deussignifica fixar o olhar em Jesus de Nazaré para ver como Deus é e o que eleespera de nós. E então importa lembrar o que vimos em Jesus: a alegria dafesta nupcial com a abundância do melhor vinho, as curas de diversos tipos,a partilha do pão, a ressurreição do amado... sinais de vida, manifestação daglória do Deus vivo.

“Para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” “Crendo” pode sertraduzido também por “nesta fé”, sugerindo a fidelidade permanente (cf.“creiais”, em v. 31a). O abraçar a fé é renascer, receber vida (cf. Nicode-mos, ou 1,12-13). O permanecer nela é ter vida! “Em seu nome”, i.é, emvirtude de sua pessoa, à qual estamos unidos formalmente pela profissãode fé e pelo batismo em seu nome, mas sobretudo, de fato, pela vida dignade seu nome.

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365

Chegamos ao fim do evangelho propriamente dito (cap. 21 é um epí-logo sobre o Discípulo Amado). Percebemos que na segunda parte(capítulos 13–20) se esclarece a primeira parte (1–12). A segundaparte oferece a chave para a primeira. À luz da glorificação de Jesus,quer dizer, sua elevação na cruz e na glória da ressurreição, podemosentender as frases misteriosas que ele falou durante sua pregaçãopública: que a sua hora ainda não tinha chegado, que os judeus nãopodiam chegar aonde ele estava etc. Entendemos também o sentidodos sinais e das imagens que Jesus usou: que ele oferece o vinhonovo, que ele é o Pão da vida, a Luz do mundo, o Pastor que dá avida pelos ovelhas, a Ressurreição em pessoa…

O que Jesus disse e fez na sua vida pública se entende à luz do“enaltecimento” — a morte, ressurreição e glorificação de Jesus. Namorte de Jesus manifesta-se que Jesus é a “graça-e-fidelidade” deDeus tornada carne, a palavra de amor que Deus nos quis falar desdeque ele é Deus... (cf. Prólogo, 1,1-18).

20,30-31

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EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA(21)

Narrativa: A aparição junto ao lago (21,1-23)

I — 21 1Depois disso, Jesus apareceu de novo aos discípulos, à beira domar de Tiberíades. A aparição foi assim: 2Estavam juntos SimãoPedro, Tomé, chamado Gêmeo, Natanael, de Caná da Galiléia, osfilhos de Zebedeu e outros dois discípulos dele. 3Simão Pedro dissea eles: “Estou indo pescar”. Eles disseram: “Nós vamos contigo”.Saíram, entraram no barco, mas não pescaram nada naquela noite.4Já de manhã, Jesus estava aí na praia, mas os discípulos não sa-biam que era Jesus. 5Ele perguntou: “Filhos, tendes alguma coisapara comer?” Responderam: “Não”. 6Ele lhes disse: “Lançai a redeà direita do barco e achareis”. Eles lançaram a rede e não conse-guiam puxá-la para fora, por causa da quantidade de peixes. 7Então,o discípulo que Jesus mais amava disse a Pedro: “É o Senhor!”Simão Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu sua roupa —pois estava nu — e atirou-se ao mar. 8Os outros discípulos vieramcom o barco, arrastando a rede com os peixes. Na realidade, nãoestavam longe da terra, mas somente uns cem metros.9Quando chegaram à terra, viram umas brasas preparadas, compeixe em cima e pão. 10Jesus disse-lhes: “Trazei alguns dos peixesque apanhastes”. 11Então, Simão Pedro subiu e arrastou a rede paraterra. Estava cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes; eapesar de tantos peixes, a rede não se rasgou. 12Jesus disse-lhes:“Vinde comer”. Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar quemera ele, pois sabiam que era o Senhor.

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13Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu a eles. E fez a mesma coisacom o peixe. 14Esta foi a terceira vez que Jesus, ressuscitado dosmortos, apareceu aos discípulos.

II — 15Depois de comerem, Jesus perguntou a Simão Pedro: “Simão, filhode João, tu me amas mais do que estes?” Pedro respondeu: “Sim,Senhor, tu sabes que sou teu amigo”. Jesus lhe disse: “Cuida dosmeus cordeiros”. 16E disse-lhe, pela segunda vez: “Simão, filho deJoão, tu me amas?”. Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes quesou teu amigo”. Jesus lhe disse: “Apascenta as minhas ovelhas”.17Pela terceira vez, perguntou a Pedro: “Simão, filho de João, tu ésmeu amigo?” Pedro ficou triste, porque lhe perguntou pela terceiravez se era seu amigo. E respondeu: “Senhor, tu sabes tudo; tu sabesque eu sou teu amigo”. Jesus disse-lhe: “Cuida das minhas ovelhas.18Amém, amém, eu te digo: quando eras jovem, tu mesmo amarravasteu cinto e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho,estenderás as mãos, e outro te porá o cinto e te levará para onde nãoqueres ir”. (19Disse isso para dar a entender com que morte Pedroiria glorificar a Deus.) E acrescentou: “Segue-me”.

III — 20Voltando-se, Pedro viu que também o seguia o discípulo que Jesusmais amava, aquele que na ceia se tinha inclinado sobre seu peitoe perguntado: “Senhor, quem é o traidor?” 21Quando Pedro viuaquele discípulo, perguntou a Jesus: “E este, Senhor?” 22Jesus res-pondeu: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que teimporta? Tu, segue-me”. 23Por isso, divulgou-se entre os irmãos queaquele discípulo não morreria. Ora, Jesus não tinha dito que ele nãomorreria, mas: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha,que te importa?”

O cap. 21 acrescenta-se ao evangelho já encerrado (cf. 20,30-31) e de-monstra diferenças estilísticas e até imitação desajeitada dos capítulos ante-riores. É, portanto, um apêndice, ou melhor, um epílogo do editor, pois oQuarto Evangelho nunca foi publicado sem ele, como mostram os manuscri-tos do século II. Este epílogo focaliza Pedro e o Discípulo Amado (que é afigura principal). Seu intuito é provavelmente eclesial: trata da relação dacomunidade do Discípulo Amado, autor do evangelho, com a Igreja no con-junto, liderada por Pedro (há quem chame este capítulo de “os Atos dosApóstolos segundo João”). Mas também a questão da morte do DiscípuloAmado e da parusia é importante.

21,1-23

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EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA

368

Três quadros sugestivos levam o leitor a sentir a questão das relaçõeseclesiais à luz do Cristo ressuscitado:

I. a pesca milagrosa (vv. 1-14);

II. a vocação de Pedro para o pastoreio supremo e o martírio (vv. 15-19);

III. o destino do Discípulo Amado (vv. 20-22).

Quanto à origem da matéria, observe-se que a primeira cena não é homo-gênea. Os analistas literários descobrem nela traços de duas narrativas: a pescamilagrosa (cf. Lc 5,1-11) e a refeição de Jesus com os seus (compare Jo 21,5com Lc 24,41!). Daí algumas leves inconsistências e trocas de vocabulário nodecorrer da narrativa. Também o fato de Pedro não reconhecer Jesus (apesardas aparições anteriores às quais o versículo redatorial 21,14 alude) podeexplicar-se pelo fato de que esta história contava, originariamente, a tal (pri-meira ou única) aparição do Ressuscitado a Pedro na Galiléia, à qual aludeMc 16,7 (e 1Cor 15,5), desconhecendo as aparições de Jo 20,19-29.

O diálogo de Jesus com Pedro sobre o pastoreio (vv. 15-19) lembra umpouco Lc 5,8 (Pedro pecador), Mt 16,16b-19 (o primado de Pedro) e Mt14,28-33 (Pedro pede a Jesus que possa andar sobre as águas), mas não sepode dizer que estes textos tenham servido para forjar Jo 21,15-19. Pedroaparece também como pastor em 1Pd 5,1-4.

I. Aparição e pesca milagrosa (21,1-14)

Algum tempo depois, Jesus aparece (lit.: “mostrou-se”, “manifestou-se’)à beira do Lago de Tiberíades (= de Genesaré). Encontram-se aí juntosSimão Pedro, Tomé-Dídimo, Natanael (de Caná da Galiléia), os filhos deZebedeu (Tiago e João) e ainda dois outros discípulos de Jesus: sete no total.O número sete surpreende. Se tiver sentido simbólico, pode indicar o con-junto da Igreja, sem insistir no número doze (os apóstolos). Os “dois outrosdiscípulos” poderiam ser os que, além dos já mencionados, ainda são nomi-nalmente citados nos capítulos 1–20: André e Filipe32.

Pedro toma a iniciativa: “Vou pescar”. Os outros o acompanham. Saemcom a barca, mas naquela noite nada pegam. De madrugada, enxergam Jesusna praia, sem saber que é ele. “Moços, tendes algo para comer?”, pergunta

32. O número de sete discípulos pode também ser uma reminiscência histórica. Vimos que Jo1–20 raramente se refere aos Doze: só na multiplicação dos pães e na história da Paixão, textosfortemente marcados pela tradição principal da Igreja primeva. Mas a configuração da liderança naIgreja primeva pode ter conhecido outros momentos, em que talvez houve um grupo de sete — emparte os mesmos dos que, na tradição dominante, são conhecidos como os Doze. Será que Jo 21conserva um traço de tal tradição?

21,1-2

3-6

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Jesus. “Não”, respondem eles. Então Jesus diz: “Lançai a rede pelo ladodireito da barca, e encontrareis peixe”. Assim fazem, mas não conseguemretirar a rede por causa do grande número de peixes (segundo Lc 5,7, elestêm de chamar um segundo barco).

Pescadores de homens?

Lc 5,1-11 interpreta a pesca milagrosa como um sinal ilustrativo da palavrade Jesus que convidava os primeiros discípulos a serem pescadores de homens(Mc 1,19 = Mt 4,19 = Lc 5,10). Será que Jo 21 desconhece esse sentido,ou o supõe tão conhecido que não acha necessário explicitá-lo? Pensamosque este é o caso. Sendo assim, a pesca milagrosa é um símbolo da multidãodos fiéis, indicada como “rebanho” nos vv. 15-17. A situação pós-pascal domilagre em João é então especialmente significativa, porque a missão cristãcomeçou de fato depois da Páscoa.

A história se presta a um rico simbolismo. No primeiro momento, a noite,o Senhor está ausente e a pesca não rende. Com (e como) a luz do dia, elese torna presente e a labuta dos pescadores tem rendimento abundante: apesca escatológica.

A pesca pós-pascal é a chave para compreender o cap. 21: descreve concre-tamente como se realiza no tempo da Igreja o que Jesus, na sua Hora,instaurou. Lembram-se os principais nomes, a presença do Senhor no meioda comunidade, a “atração” de novos discípulos, a celebração da refeição doSenhor, os carismas de liderança e de testemunho…

Então o discípulo predileto de Jesus diz a Pedro: “É o Senhor!” Ao ouvirisso, Pedro veste sua roupa — pois estava despido para a pescaria — e joga-se no mar (dirigindo-se à praia, a nado ou vadeando). Gesto ao mesmo tempoimpulsivo e altamente significativo: não se aparece despido diante do “Se-nhor”. Os outros discípulos chegam logo com a barca, pois não estavam longeda terra, uns cem metros apenas. Começam a içar a rede com os peixes.

Quando desembarcam em terra, vêem uma fogueira com peixe e pãosobre ela. Poderiam pensar que Jesus os enganara. Por que tinha pedido algopara comer, se ele mesmo preparou comida? Ou será apenas uma inconsis-tência narrativa provinda do fato de o narrador misturar a história da pescacom a da refeição oferecida por Jesus? Seja como for, Jesus diz: “Trazei-medos peixes que pescastes”. Quer unir a pescaria (a pastoral) dos apóstolos aoalimento que ele mesmo oferece.

Simão Pedro sobe à barca e puxa a rede para a terra. Está cheia de peixesbem grandes: cento e cinqüenta e três. O número talvez tenha valor simbó-lico: a universalidade das igrejas? Não o sabemos. João observa que apesar

7-8

9-11

21,1-23

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EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA

370

do grande número dos peixes a rede não se rompe (na pesca milagrosa deLc 5,6, antes da ressurreição, as redes quase romperam). Quererá dizer quena presença do ressuscitado o grande número não faz “rachar” a comunida-de? (Poderá rachar por outras razões.)

Jesus os convida para a refeição (lit. “desjejum”). Ninguém tem a cora-gem de perguntar quem ele é. Sabem que é o Senhor. Não precisam verificar.Jesus se aproxima, toma o pão e lhes dá, e o peixe igualmente. Celebra comeles “a refeição do Senhor”. A ausência do vinho não importa. Há indíciosde que a refeição do Senhor, nos primeiros tempos, era celebrada em algunsambientes com peixe. Devemos aproximar esta refeição à multiplicação dospães, igualmente com pão e peixe, interpretada, por João, à luz da Eucaristia.

Esta é a terceira vez que Jesus se manifesta aos discípulos depois daressurreição dos mortos (aparentemente são consideradas somente as apari-ções de 20,19 e 20,26, não a aparição a Maria Madalena). Pode ser que elesó pensa no grupo dos apóstolos. Ou então, que ele considera as apariçõesde maneira jurídica, como testemunhos da ressurreição, e neste caso o tes-temunho de uma mulher não tem valor perante a Lei. O termo “Jesus ma-nifestou-se”, usado em 21,1.14, pode sugerir esta conotação jurídica.

II. O pastoreio de Pedro (21,15-19)

Depois da refeição, portanto, no quadro anteriormente evocado da comu-nidade reunida, Jesus diz a Simão Pedro: “Simão, filho de João, amas-memais do que estes?” “Mais do que estes” pode ser entendido (1) como “maisdo que estes me amam”, (2) como “mais do que a estes” (= os outrosdiscípulos), ou (3) como “mais do que a estas coisas” (= a empresa depescaria). Os três sentidos são problemáticos. Talvez seja uma maneirade reforçar o sentido do verbo amar: “Amas-me acima de tudo?” Pedroresponde: “Sim, Senhor. Tu sabes que sou teu amigo”. Jesus pergunta sePedro “ama” (agapân, amor de adesão), Pedro diz que é amigo (filein, amorde amizade)33.

Depois da primeira pergunta e resposta, Jesus convida Pedro para opastoreio: “Cuida das minhas ovelhas”. Pergunta-lhe então pela segunda vez:‘Simão, filho de João, amas-me?” Pedro diz: “Sim, Senhor, tu sabes que souteu amigo”. — “Apascenta minhas ovelhas”, diz Jesus, pela segunda vez.

12-13

15-19

33. A maioria das traduções e dos comentadores não distingue entre os dois verbos aqui usados.Suspeitamos, contudo, que o redator de Jo 21 observa uma diferença. No v. 17, Jesus usa o termo“ser amigo” (filein) para confiar definitivamente a Pedro o pastoreio de seu rebanho. Já para oDiscípulo Amado (v. 20) usa agapân: é um outro caso. A base para o pastoreio confiado a Pedro éa fidelidade do amigo; isso não interfere na posição especial ocupada pelo Discípulo Amado, aTestemunha por excelência.

14

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Pela terceira vez, Jesus pergunta: “Simão, filho de João, és meu amigo?”Pedro fica triste. Talvez se lembre de sua tripla negação. Responde: “Senhor,tu sabes tudo. Sabes que sou teu amigo!” Então, Jesus diz: “Cuida dasminhas ovelhas”. E com o solene duplo “amém” acrescenta: “Quando erasainda novo, tu mesmo amarravas teu cinto e andavas onde querias. Masquando fores idoso, estenderás as mãos, e outro te porá o cinto e te levarápara onde não queres ir”. Diz isso para significar com que espécie de mortePedro vai glorificar a Deus (assim como, em 12,32, Jesus anunciou o modode sua morte, que seria a glorificação de Deus, cf. 13,31). Pedro será segui-dor até na glorificação de Deus pela morte (“estender as mãos” e “amarrar”podem até sugerir a morte na cruz, conforme a tradição sobre o martírio dePedro). Por isso, Jesus pode agora dizer definitivamente: “Segue-me”. Se as trêsafirmações de amizade contrabalançam a tripla negação de Pedro, esta respostade Jesus vem completar a predição “mais tarde me seguirás” (13,36-38).

Pastoreio ou primado?

Na realidade, olhando a partir do v. 19, a vocação de Pedro parece ser maispara o seguimento (pastoreio, apostolado) do que para o primado. A imagemdo pastor em vv. 15-17 pode ser aplicada a qualquer apóstolo. A única razãopara atribuir a estas frases o sentido de primado, precedência, é a pergunta“mais do que estes (me amam)” no vv. 15. Ora, além da dificuldade gramaticalapontada acima, devemos admitir que, de toda maneira, Pedro não ama maisdo que o Discípulo Amado. É possível que estes versículos nem sequer tratemda primazia universal de Pedro, mas apenas de sua vocação ao apostolado.

Todavia, o acento posto em Pedro no resto do Quarto Evangelho e naliteratura do NT em geral faz pensar que esta “reabilitação” de Pedro noapostolado implique sua posição de destaque. Sobretudo quando se sabe queo cap. 21 de João deve ter sido concebido por volta de 90-100 dC.

III. O Discípulo Amado (21,20-23)

Pedro se vira e vê atrás de si o discípulo predileto de Jesus — aquele querecostou no lado de Jesus durante a ceia para perguntar quem ia entregá-lo.Ao vê-lo, Pedro pergunta: “E este, Senhor?” Jesus responde: “Se quero queele fique até que eu volte, isso te importa? Tu, segue-me”. Cada um é cadaum para Jesus. Nossa felicidade é segui-lo, sem comparar.

O narrador observa que, por causa desta palavra, espalhou-se entre osdiscípulos o boato de que ele não morreria. Mas não foi isso que Jesus falou.Disse apenas: “Se quero que ele fique até que eu volte...” O bom entendedorpercebe que o Discípulo Amado morreu.

20-21

23

21,1-23

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EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA

372

Olhando agora para trás percebemos que a história talvez não fale tantoda “concorrência” entre Pedro e o Discípulo Amado (e suas respectivasjurisdições). O foco central da narrativa parece, antes, ser a morte do Dis-cípulo Amado. Ainda que João tenha acentuado, no evangelho, a “escatologiajá inaugurada”, relativizando a perspectiva temporal, temos razões para su-por que a comunidade durante bom tempo se esticou na espera de umaparusia em curto prazo (cf. as discussões sobre o “pouco de tempo” em16,16-19). Assim como Paulo pensou que viveria até a volta do Senhor (1Ts4,15), também a respeito do Discípulo Amado acreditou-se que ele ficaria atéa volta do Senhor. A presente narração relativiza a importância dessa crençae reforça, pela ordem dada a Pedro no v. 23, a importância de seguir Jesus.Ora, tanto Pedro quanto o Discípulo Amado morreram, desapareceram destaterra. O rebanho continua.

A história continua. Jesus era carne, limitada, situada no tempo e no

espaço estreitos de sua existência histórica. Foi grão de trigo, o fruto

brotou depois. Jo 21 mostra por assim dizer a primeira colheita. O

grupo se reconstituiu na Galiléia, mas foi preciso a presença pascal

de Jesus para reunir a comunidade e celebrar a refeição do Senhor.

Iniciou-se então o pastoreio, sob a responsabilidade de Pedro, no

seguimento de Jesus, sem suprimir o papel único daquele que foi a

testemunha peculiar da comunidade joanina, o Discípulo Amado.

A história continua. Aquele de quem se dizia que “permaneceria” até

a volta do Senhor glorioso, morreu. Quem “permanece” é a comuni-

dade. E, como no início, o Senhor glorioso está com ela, mesmo sem

ter acontecido a parusia. Os primeiros passos dados na ausência de

Jesus, que é presença diferente, constituem uma garantia para todas

as gerações que vêm depois.

Hoje, o testemunhar e o “permanecer” estão sendo questionados.

Para que se apegar à tradição cristã, se o mundo tem tanta coisa a

oferecer? Ora, o que está em jogo não são produtos intelectuais ou

estéticos, mercadorias da comunicação… Trata-se do amor e fidelida-

de até o fim à comunidade fraterna que tem sua referência no homem

de Nazaré. O que tornaria esse amor fiel, se não “permanecêssemos”

unidos a ele enquanto estamos “neste mundo”?

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373

Final do editor (21,24-25)

24Este é o discípulo que dá testemunho destes acontecimentos e ospôs por escrito. Nós sabemos que seu testemunho é verdadeiro. 25Ora,Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se todas elas fossem escritasuma por uma, creio que nem o mundo inteiro poderia conter oslivros que seria preciso escrever.

As últimas palavras do cap. 21 dizem respeito não só ao cap. 21, mas aolivro todo (cf. v. 25) e pretendem dar um atestado de autenticidade ao textocomo tendo sido escrito pelo Discípulo Amado.

Primeiro, o editor identifica o “autor” do livro: o discípulo de quemestava falando, ou seja, o Discípulo Amado. Mesmo que “escrever” nãosignifique que ele escreveu de próprio punho (cf. o caso de Pilatos em19,22), o editor garante que ele nos legou um testemunho autêntico e verda-deiro, proveniente de uma testemunha ocular, como deviam ser os apóstolosconforme At 1,21-22. A Primeira Carta de João alude também ao testemunhoocular (1Jo 1,1-4). Isto tem conseqüências práticas para a comunidade: elaé “apostolicamente autônoma”, ela tem seu próprio apóstolo-evangelista.

Imitando 20,30-31, mas num estilo muito mais influenciado pela retóricahelenista, o editor acrescenta que Jesus fez “muitas outras coisas” ainda. “Sefosse para escrevê-las uma por uma, nem sei se o mundo inteiro poderiaconter todos os volumes que seria necessário escrever” (cf. 1Mc 9,22; Ecl12,9-12).

A pregação e catequese mistagógica contida no Quarto Evangelhotem, para usar um anacronismo, prerrogativa de canonicidade. Alémde apostólica, é “verdadeira”, no sentido de verdade que vem deDeus. É constitutiva, intransferível, por ser testemunho fundante, masprecisa ser transmitida de geração em geração.

Ora, o “cânon”, a regra da tradição se torna irrelevante se a tradiçãonão é vivida. Se não for vivida, não se saberá mais o que significa noconcreto. Transmitir a vida da tradição, nos gestos de cada dia e nosembates históricos, é responsabilidade de todos os que crêem.

24-25

21,24-25

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A PERÍCOPE DA MULHER ADÚLTERA(7,53–8,11)

7 53E cada um voltou para sua casa.

8 1Jesus foi para o Monte das Oliveiras. 2De madrugada, voltou aoTemplo, e todo o povo se reuniu ao redor dele. Sentando-se, começoua ensiná-los. 3Os escribas e os fariseus trouxeram uma mulher apa-nhada em adultério. Colocando-a no meio, disseram a Jesus: 4”Mes-tre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. 5Moisés, na Lei,nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, que dizes?” 6Eles pergun-tavam isso para experimentá-lo e ter motivo para acusá-lo. MasJesus, inclinando-se, começou a escrever no chão, com o dedo. 7Comoinsistissem em perguntar, Jesus ergueu-se e disse: “Quem dentre vósnão tiver pecado, atire a primeira pedra!” 8Inclinando-se de novo,continuou a escrever no chão. 9Ouvindo isso, foram saindo um a um,a começar pelos mais velhos. Jesus ficou sozinho com a mulher queestava no meio, em pé. 10Ele levantou-se e disse: “Mulher, ondeestão eles? Ninguém te condenou?” 11Ela respondeu: “Ninguém,Senhor!” Jesus, então, lhe disse: “Eu também não te condeno. Vai,e de agora em diante não peques mais”.

A perícope da mulher adúltera é um episódio evangélico inicialmente trans-mitido fora do evangelho de João e mais tarde integrado nele. Falta nas cópiasmanuscritas dos Evangelhos feitas antes do século IV dC, e, nas cópias feitasdepois desta data, encontra-se inserido em lugares diversos: (1) depois de Jo7,52; (2) depois de Lc 21,38 — certamente o lugar mais adequado —; (3)depois de Jo 7,36; (4) depois de Jo 21,25; (5) depois de Lc 14,53.

Pela origem dos manuscritos que contêm o episódio, pode-se pensar quefoi a cristandade ocidental (Roma, África do Norte) que promoveu a inclu-

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são deste trecho avulso da tradição apostólica no cânon das Escrituras. Tal-vez as circunstâncias históricas expliquem esse desejo: a Igreja acabava desair das catacumbas e começou a abrir-se amplamente, acolhendo inclusivede volta pecadores e apóstatas. Contra isso surgiu a reação do montanismo(Tertuliano), exigindo maior rigorismo. O trecho da mulher adúltera poderiaservir de resposta a essa atitude rigorista, ainda mais porque o adultério é aimagem bíblica da infidelidade religiosa.

Este trecho é um minievangelho. Contém o cerne do evangelho. É umaamostra de pregação que nos coloca no coração da mensagem cristã. A“intuição evangélica” é aqui articulada a partir de um ponto peculiar da Leijudaica, a pena de morte para o adultério (que, na realidade, nem sempre eraaplicada). A atitude de Jesus, que mostra a vontade de Deus, está acima daletra da Lei. Neste sentido, lembra os escritos paulinos. Aliás, não é por nadaque há quem pense que o autor talvez tenha sido Lucas, o “evangelista dePaulo”, o que pode ser defendido a partir de indicações estilísticas.

A presença deste trecho no cânon ajuda-nos a compreender que os “Evan-gelhos” canônicos são compostos de unidades narrativas nascidas na prega-ção, as quais, quanto ao espírito, contêm em si o Evangelho todo. (Foi nestesentido que chamamos também Jo 6 de minievangelho.)

Como certas histórias e parábolas sinópticas, o trecho parece ensinardiversas lições, entre as quais destacamos duas: (1) a incompetência doshumanos, pecadores, para condenar alguém à morte (v. 9); (2) a missão deJesus não é condenar, mas salvar (v. 11).

Jesus é apresentado como rabino convidado a dirimir um “caso”. Comorabino, está sentado para ensinar. Como escriba, escreve, mas escreve naareia, coisa que não permanece fixada. Como juiz — ou será como profeta?— levanta-se para o veredicto. Este, porém, não diz respeito à mulher, e sima todos: “Quem for sem pecado lance a primeira pedra”. Conscientiza osouvintes a respeito da universalidade do pecado. Aí termina sua função dejuiz. Volta a sentar-se, a escrever na areia e encaminha a mulher, liberta daletra da Lei, para uma existência nova, livre do pecado e baseada na graça(cf. Rm 7,7 etc., a Lei serviu para denunciar, não para salvar).

*

Depois do ensinamento de Jesus no Templo, todos vão embora para casa.Jesus vai para o Monte das Oliveiras, onde ele costuma passar a noite (cf.Lc 21.37; 22,39). De madrugada, Jesus volta ao Templo, e todo o povo sereúne ao redor dele. Sentando-se, em atitude de mestre, começa a ensiná-los.Os escribas e os fariseus trazem uma mulher apanhada em adultério. Co-

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A PERÍCOPE DA MULHER ADÚLTERA

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locando-a no meio, dizem a Jesus: “Mestre, esta mulher foi flagrada come-tendo adultério. Moisés, na Lei, manda apedrejar tais mulheres. Que dizestu?” O acento cai no contraste entre Jesus e a Lei de Moisés. No nível danarrativa, pensa-se na Lei segundo a interpretação dos escribas. Mas notempo em que o trecho foi escrito, a “Lei” pode ter um colorido “eclesial”:a tendência de certos cristãos de voltarem à Lei.

Eles perguntam isso para experimentar Jesus e ter motivo para acusá-lo.Mas Jesus, inclinando-se, começa a rabiscar no chão, com o dedo. O sentidodeste gesto nos escapa, mas parece sugerir algo que se escreve na poeira, naareia, portanto, de modo passageiro.

Como insistem em perguntar, Jesus ergue-se — atitude de juiz ou antes,de profeta — e diz: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeirapedra!” Inclinando-se de novo, Jesus senta-se e continua a escrever no chão.Eles, depois do que ouviram, saem um a um, a começar pelos mais velhos,que na imaginação popular possuem a maior autoridade. A menção dos maisvelhos lembra Dn 13,61 (os anciãos que tentam seduzir Suzana ao adultério).

Jesus fica sozinho com a mulher que se encontrava no meio deles. Elese levanta e diz: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Elaresponde: “Ninguém, Senhor!” Jesus, então, lhe diz: “Eu também não tecondeno. Vai, e de agora em diante não peques mais” (cf. Jo 5,14). Isto élinguagem de profeta: “Será que Deus deseja a morte do ímpio? Não alcan-çará ele a vida, se se converter de seus maus caminhos?” (Ez 18,23; 33,11).O não mais pecar é sinal de vida nova. Jesus não veio para condenar, maspara salvar (cf. Jo 3,17).

A lição serve para duas frentes. Aos rigoristas, Jesus mostra que o ho-mem pecador não tem autoridade para arrogar-se o juízo, certamente não seeste puser em jogo a vida do outro. Aos laxistas, ensina que o pecado nãodeve ser tolerado, mas curado, pela pedagogia da misericórdia — deixandoo juízo a Deus (cf. Sl 50,6 etc.), mas orientando o pecador.

Este trecho tem grande popularidade no nosso meio. Corrige a imagemsisuda da Igreja, ou mesmo de Deus (castigador!), mostrando a bondadehumana, a misericórdia de Cristo. E quantas “adúlteras” há entre nós, con-forme o Direito Canônico! É evidente que essas pessoas são destinatárias doamor misericordioso de Deus. Mas há uma diferença. Essas “adúlteras” denossas periferias geralmente nem são pecadoras: é “ajuntada”, é moça que“foi casada” com um beberrão e brigão que a abandonou deixando só filhose dívidas, é prostituta induzida à profissão desde criança ou sem outro meiode sobreviver. A “irregularidade” de tais mulheres em nosso meio não énecessariamente culpa — ao menos não culpa delas — e, portanto, não é

7-9a

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pecado delas (mas conseqüência do pecado social). Ora, nada mostra que aadúltera do evangelho seja mera vítima de pecado social. Pode até ter sido,mas o narrador não olha para isso; ele pensa numa pessoa culpada, umapecadora de verdade, e é dela o pecado que Jesus perdoa, embora os outrostenham o seu também.

Constatado que se trata de pecado pessoal mesmo, vemos que Jesus nãoa condena. Deixa de lado todo moralismo. Constata o pecado, sim, mas àmaneira de um médico, para poder tratá-lo. Pois pecado não é coisa muitoboa, é coisa de que a gente precisa ser curado. “Vai, e de agora em diantenão peques mais”… Não arrumes mais essa infelicidade que te deprime e tetorna uma excluída. Jesus não abona o pecado, mas cura a pecadora. Oadultério ou qualquer falta contra a lealdade — pois o adultério de verdadeé isso — continua um mal, e o empenho de nossa comunidade deve serno sentido de libertar as pessoas daquilo que lhes faz mal, no físico ou nomoral. O perdão implica que todos os irmãos e irmãs se empenhem paramudar o que leva as pessoas à deriva, não só a infidelidade pessoal, comotambém os abusos sociais, a hipocrisia institucional, a dupla moral, a sem-vergonhice comercializada.

Enfim, Jesus conscientiza os que se arvoram em juízes de que eles tam-bém têm seu pecado. Ninguém tem coragem para atirar a primeira pedra.Talvez seja esta a lição principal. Todos nós temos nosso pecado e precisa-mos do profeta enviado por Deus para nos perdoar e nos reconciliar, a fimde seguirmos o rumo que ele mostra.

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EPÍLOGO DO COMENTADOR

Duas perguntas presidiram a este comentário: que quis João dizer aosseus destinatários e que sentido tem isso para nós, hoje?

1. A mensagem de ontem

“Estes sinais estão escritos para que creiais...” (Jo 20,31)

No fim do percurso, pensamos que João quis consolidar os leitores/ou-vintes — a “comunidade joanina” — na certeza de sua fé, que confessa Jesuscomo sendo o Messias, o enviado escatológico de Deus, o Filho do Homem,plenipotenciário humano de Deus com poder de julgar e vivificar, comoreferente de nossa opção de fé. E como sendo o Filho de Deus, no qual o Paideposita todo o seu bem-querer, porque, na livre doação da própria vida, oFilho realiza a vontade e o projeto do Pai, revelando-o como Deus de amor efidelidade. Ele é, assim, Deus levado à fala, Palavra de Deus que nos interpelae nos garante a vida do éon vindouro, vida vivida desde já e jamais aniquiladano vazio da morte (a “segunda morte” de que fala Ap 20,14; 21,8).

Tal mensagem é dirigida a judeus-cristãos que, no fim do primeiro sécu-lo, se encontram diante da escolha entre a sinagoga do nascente judaísmoformativo-rabínico, que deles cobra a adesão à sua tradição judaica, e acomunidade cristã, que encontra, no amor com o qual Cristo os une entreeles e ao Pai, tudo o que a judaísmo tinha a oferecer e muito mais.

Costuma-se chamar este evangelho de cristocêntrico. Este adjetivo, po-rém, não é totalmente exato. Melhor seria dizer que o Quarto Evangelho écristo-teocêntrico. Se ele concentra de modo quase monótono a atenção emJesus, o alvo último dessa atenção, porém, não é Jesus, mas o Pai, que semanifesta nele quando dá livremente sua vida por amor até o fim. Assimcomo, para os antigos israelitas, Moisés, a Lei e o Templo foram mediações

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EPÍLOGO DO COMENTADOR

da aproximação a Deus-Adonai, assim Jesus é o mediador da presença doPai; nele repousa a shekiná, a glória do Pai no meio de nós.

Nas entrelinhas do texto, percebe-se a violência do conflito com a reali-dade que o evangelista, significativamente, chama “o mundo”, dando assim aentender que não se trata apenas de uma diferença com a sinagoga, mas deuma diferença radical com tudo e todos que não reconhecem o apelo do Paiem Cristo. Tal conflito se espelha não só nas alusões à perseguição e à exclu-são por parte da sinagoga, mas também na dureza do discurso polêmico queo evangelista põe na boca de Jesus, o “Jesus eclesial”, que fala por sua comu-nidade, a qual encontra no Espírito de Jesus e de Deus seu Advogado e De-fensor, que a conduz dia após dia em toda a verdade e fidelidade (Jo 16,13).

Apesar desse fundo de conflito e controvérsia, o tom dominante deste“livro da vida” da comunidade joanina, com suas pérolas de catequese emistagogia, é o mistério do amor, que brota do Pai e é comunicado peloFilho, para ser partilhado entre os seus amigos/amados, que, ressuscitado, elechamará de irmãos e irmãs (Jo 20,17).

A comunidade joanina, tanto no Evangelho como nas Cartas, não evocauma imagem hierárquica. O autor das Cartas se chama simplesmente“presbítero”, e no Evangelho, a questão do “carisma” de Pedro e do DiscípuloAmado é evocada, nas entrelinhas, somente no cap. 21, o epílogo. Parecetratar-se de uma comunidade de tipo “pneumático”, deixando-se conduzir maisdiretamente pela força do Espírito do que por diretivas organizatórias. Nãoacentua a liderança hierárquica, mas a presença do Espírito, que é comunicadopelo Senhor ressuscitado (Jo 20,22). A dimensão “pneumática”, porém, quetransparece sobretudo na segunda metade do evangelho, não deixa de causarproblemas, sobretudo em decorrência de divisões e doutrinas inaceitáveis, quepretendem legitimar-se pelo Espírito. Depois dos conflitos com a sinagogaque transparecem no Evangelho, a Primeira Carta de João, testemunha direta davida da comunidade, enfrentará, pelo “discernimento dos espíritos”, os novosconflitos provindos de doutrinas esotéricas e gnosticizantes (1Jo 3,24–4,1).Mas isso deverá ser explicado no comentário à Carta.

2. A mensagem para nós, hoje

“Ele vos guiará em toda a verdade, pois não falará de si,mas falará quanto tiver ouvido

e vos anunciará até o que há de vir” (Jo 16,13)

Cabe aqui uma consideração final acerca da segundo pergunta: que sig-nifica a mensagem do Quarto Evangelho para nós, hoje?

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade

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Evidentemente, a resposta a esta pergunta será diferente para cada um denós, e seria não apenas temerário, mas também pouco fraterno e “pneumá-tico” querer prescrever ao leitor de hoje o sentido-para-nós, pois o Espíritosopra onde quer. Ouvimos seu soprar, mas não sabemos de onde vem nempara onde vai (cf. Jo 3,8). O próprio Evangelho de João, adotando umalinguagem ora antropológica, ora cósmica, dá a entender que seu sentido nãose esgota no conflito entre Jesus e os líderes judaicos, nem no conflito entresua comunidade e a sinagoga. O que acontece no âmbito da comunidadejoanina é o conflito entre luz e trevas em sua dimensão mais universal. Commuito mais razão, para nós hoje, o sentido desse escrito não se esgotará numpensamento único. A cada um, o sopro do Espírito, no Quarto Evangelho,fala em sua própria língua.

Contudo, podemos sugerir algumas pistas, para que o leitor do QuartoEvangelho hoje vá criando o costume de ouvir esse soprar e de adivinhar-lhe um sentido.

Para os cristãos na América Latina de hoje, o contexto em que percebemo sopro do Espírito no Evangelho de João é o da opção entre o “mundo” daexploração global, articulado por poderes econômicos desligados da respon-sabilidade social e mediado pela cultura — se assim se pode chamar — dosmeios de comunicação de massa, e a autenticidade do amor fraterno radical,a exemplo de Jesus e no Espírito que vem do dom de sua vida — amorvivido na comunidade de irmãos, como testemunho para o mundo, “para quetodos conheçam que sois meus discípulos” (Jo 13,35). Do mesmo modo queno tempo de João, também hoje a opção por essa fraternidade/irmandadecrística e pneumática pode implicar o conflito com o grupo sociológico aoqual se pertence, o abandono de valores piedosamente estabelecidos e aperseguição por parte dos que “julgam estar prestando culto a Deus” (Jo16,2) — por exemplo, os que promovem uma religiosidade alienada e co-mercial como ambiente propício para seus negócios.

Chamamos tal fraternidade de “crística e pneumática”, porque nela estápresente a realidade (não só a doutrina) de Cristo e do seu Espírito. É afraternidade do amor a exemplo de Cristo. Ela exigirá em primeiro lugara partilha dos bens materiais, econômicos e culturais que são vitais paratodos. Ora, o Evangelho de João, destinado a comunidades de origem judai-ca, com certa tradição de solidariedade material (cf. nosso comentário a Jo12,7-8), parece dar isso por pressuposto; mas, se João escrevesse para nóshoje, certamente deveria insistir mais nesse ponto!

Em vista do seu tempo e circunstância, João insiste mais especificamentena solidariedade afetiva e na coragem de romper com sua classe social e

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EPÍLOGO DO COMENTADOR

religiosa, como condição para assumir a heróica solidariedade na comunida-de dos que crêem em Cristo. O novo nascimento de Nicodemos (Jo 3) nãoconsiste somente em ser batizado pela água e pelo Espírito, mas significatambém passar por um novo nascimento sociológico, deixar de ser varãofariseu e chefe dos judeus, para se tornar igual à candidata à fé que é apre-sentada no episódio seguinte, uma mulher herética, samaritana e de vidaduvidosa (Jo 4). Também nisso encontramos uma inspiração muito relevantepara nossa atualidade latino-americana hoje. As diferenças culturais, sexistase religiosas em nossa população, trazidas de todos os continentes, continuamenormes e, muitas vezes, não são apenas diferenças, mas discriminações. Oamor fraternal e sororal nos deve levar a transformar as diferenças culturais,raciais e sexuais de fator de discriminação em fator de mútuo enriquecimen-to. O bilingüismo do Quarto Evangelho, com sua semântica preponderante-mente semítica, porém aculturada ao mundo helenista, bem como sua nítidavalorização da mulher (a samaritana, Maria e Marta de Betânia, Maria Madalena,a mãe de Jesus), nos orientam nessa direção. Estamos aí bem próximos de Gl3,26-28: na vida da comunidade de Cristo, as diferenças de cultura, religião esexo não podem ter peso; existem, mas não podem causar superioridade ouinferioridade. Quanto à questão racial, João não fala diretamente dela nostermos em que se apresenta hoje, mas ele critica de modo radical a confiançana descendência abrâmica (que é a sua!), à luz da adesão a Cristo (Jo 8,31-58).Isso nos faz refletir bastante sobre a quase “natural” supervalorização da raizocidental-cristã de muitos dentre nós, inclusive entre os membros da liderançainstitucional das confissões cristãs. Assim, João nos convida a dar um novosentido, verdadeiramente cristão, à diversidade racial: o sentido do encontrocom o outro, na igualdade fundamental.

João convida, ainda, a uma crítica da religiosidade (como imaginário ecomo ritual) e da religião (como grandeza institucional). Embora judeu pie-doso, não se apega aos ritos e tradições de sua origem. Ao narrar a atuaçãode Jesus, que serve como referência e ponto de perspectiva sobre o próprioDeus, João expõe a relatividade dos símbolos religiosos de seu povo. Assim,convida-nos a operar semelhante relativização dos nossos símbolos religio-sos, que nem todos são lá muito “crísticos” (marcados pela presença deCristo) ou “cristofóricos” (geradores dessa presença). Pensemos no brilhode nossas catedrais e do Vaticano, que na pós-cristandade se tornam antesum patrimônio artístico, que carregamos conosco para a memória cultural dahumanidade, do que um testemunho cristão, pelo menos para o nosso tem-po... Mas pensemos também em tantas devoções que não são outra coisasenão negociação comercial com os santos, tratados como atravessadores no

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade

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tráfico de influência junto ao Deus provedor. Tudo isso pouco tem de cristão.Vamos jogar fora tudo isso? Melhor, transformar e ressignificar, pois nãoseria muito cristão afastar ou discriminar as pessoas que foram “catequi-zadas”(?) assim.

O que o Quarto Evangelho nos convida a fazer é conscientizar a todosos batizados acerca da opção por Jesus. Cada um que se chama cristão devese perguntar se ele optou realmente por Jesus de Nazaré, que foi fiel à suapalavra e aos seus ouvintes até dar a vida por eles. Quem responde com umhonesto “sim” a essa pergunta, ainda que talvez confunda São Jorge comalgum orixá, pode ser discípulo desse Jesus.

O que nos deve inspirar hoje, ao ler o Quarto Evangelho, é a simplici-dade da primazia do amor. Nada de hierarquias, práticas rituais, sacrifíciosde expiação, dízimos, devoções, esmiuçados preceitos morais. Estes não sãonegados, mas não ocupam o primeiro plano. O Templo, morada de Deus, ésubstituído por Cristo; a Torá, Palavra de Deus, é ele mesmo. A verdadeiravinha, rica em frutos de caridade que fazem a alegria do Pai, é a irmandadeem torno de Jesus. Propondo-nos a revelação de Deus no amor do Crucifi-cado — que nesse amor mesmo é glorificado —, João nos ensina a voltarsempre a esta questão fundamental: como amo melhor o meu irmão, a minhairmã? E a fazê-lo, “não só com palavras e de boca, mas com ações e deverdade” (1Jo 3,18).

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VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO

Alegoria >Metáfora

AlmaPara o povo bíblico, a alma era o princípio vital do ser humano, imagi-

nada como localizada dentro do corpo, insuflada por Deus — daí chamar-senèfesh (= garganta) ou neshamâ (= respiração). É a vida como obra de Deusna criatura humana. Não é vista como uma parte ao lado do corpo, mas comoa pessoa na sua vida biopsicológica (“minh’alma” = eu), especialmenteconsciência, vontade, memória, intelecto etc. Por isso, a ressurreição é pen-sada como ressurreição de corpo e alma (alma separada do corpo é coisa dafilosofia grega). >Corpo; Carne; Espírito.

AmarNosso ambiente cultural dá ao verbo “amar” um sentido de preferência

sentimental, se não erótico. Tal sentido não é o de João. Para o amor sen-timental e passional, o grego tem um termo próprio (erân, erôs), que Joãonunca usa. João usa quase sempre o verbo agapân, raro no grego comum epreferido pela Bíblia para traduzir o hebraico ahêb, que poderíamos definircomo: “preferir, aderir a, ser solidário com, optar por”. É o amor da Aliança(Dt 6,5; 7,7-8) e da solidariedade cristã (cf. o amor de Jesus pela família deBetânia, 11,5 etc., e pelo “Discípulo Amado”, >exc. 13,23). João usa algu-mas vezes o termo filein (amor de amizade; filos = “amigo”), quiçá paravariar com agapân (>exc. 15,17).

CarneTem em Jo, como na Bíblia em geral, normalmente, o sentido de exis-

tência humana histórica, limitada, precária e dependente, para bem ou paramal, quer a serviço de Deus (>1,14), quer oposta a ele. Geralmente não

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade

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significa sexo. (A expressão “os sangues, a vontade da carne, a vontade dovarão” em 1,13 pode ser traduzida como “iniciativa da procriação humana”,imaginada como mistura de sangues por ocasião da “implantação” da “se-mente” masculina, pensada como minipessoa, no útero feminino). Em Paulo,o termo indica muitas vezes a auto-suficiência humana.

CésarNome próprio do primeiro autocrata romano, Júlio César (100-44 aC).

Depois, o nome virou título dado aos imperadores ulteriores, de onde passoupara os soberanos dos impérios do Ocidente germânico (Kaiser) e da Rússia(czar). No tempo de Jesus, o imperador era Tibério. O 666 do Apocalipseseria o nome de César Nero traduzido em números.

Conhecer (saber)Em João, o sentido está próximo ao do AT: conhecer por experiência, por

convivência, por intimidade (p. ex. relação sexual). Conhecer Deus significater experiência (da presença) de Deus. Implica muitas vezes um laço moral(reconhecer, respeitar). “Não conhecer” pode significar “não querer conhe-cer” (má fé). — Além disso, João pode insistir no conhecer em resposta àmentalidade helenista, muito amiga de conhecimento elitista, quer intelec-tualista, quer esotérico. O verdadeiro conhecimento é conhecer o amor deDeus em Jesus (7,17) e praticar sua palavra, especialmente quanto ao amorfraterno. Cf. 17,2.

CoraçãoO coração representa as faculdades mentais e sensitivas do ser humano:

intelecto, vontade, sensibilidade etc., mais ou menos o que nós queremosdizer com “mente”. Assim, quando Jo 13,2 diz que o diabo “pôs no coração”(de Judas?) trair Jesus, trata-se antes de tudo de uma questão mental: con-ceber o plano. Também o medo do “coração” em 14,1 refere-se não tanto aosentimento, mas ao pensamento, ou seja, à percepção da realidade dos dis-cípulos e da comunidade na ausência de Jesus (cf. 14,27; 16,6.22).

CorpoPara o pensamento bíblico, o corpo é antes de tudo o ser humano todo. Às

vezes é sinônimo de carne, no sentido de existência humana. >Alma; Carne.

Demônio(s)/Diabo“Acaso um demônio pode abrir os olhos aos cegos?” (Jo 10,21). Na

cosmovisão do século I, a grande maioria das pessoas acreditava na atividade

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VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO

de seres “espirituais” chamados demônios, o que não quer dizer que fossemnecessariamente agentes do inferno. Pelo contrário, no mundo grego, o dáimôné o autor das boas inspirações (Sócrates e Platão falam nesse sentido). Oneutro to damónion refere-se antes a algo incontrolável do que a algo ruim.É neste sentido que em Jo 10,20-21 aparecem justapostas as duas expressões:“Ele tem um demônio, perdeu o juízo” (máinetai, lit. “está delirando”).

O Evangelho de João não narra expulsões de demônios. (1) Elas não sãosinais claros da missão de Jesus (em Mc 3,22 par., os escribas atribuem taisexpulsões ao chefe dos demônios); mesmo quanto a outros “milagres”, Joãoé desconfiado (2,23-25). (2) Para João a verdadeira luta de Jesus é contra ogrande antagonista de Deus, o Satanás (13,27) ou diábolos, “diabo” (6,70;8,44; 13,2), o “príncipe (chefe) deste mundo” (12,31; 14:30; 16,11).

“Tens um demônio” (Jo 7,20) é uma acusação grave, não tanto porrazões teológicas (a palavra “demônio” ainda não tinha todo o peso que ateologia medieval lhe atribuiria), mas por razões sociais: o endemoninhado(doente mental, epiléptico…) era excluído da convivência, não tinha lugar nasociedade. Nesse sentido, “és um samaritano” (veja 8,48) é quase sinônimode “tens um demônio”. Tratado como endemoninhado Jesus sofre as conse-qüências da “ideologia demonista”: é excluído.

O diabo. Os “demônios” cuja expulsão é narrada nos evangelhos não sãoesse protagonista pessoal do mal que João chama “o diabo” (do grego diábolos,“perturbador”) ou “Satanás” (do verbo hebraico satan, “impedir, acusar, sedu-zir”). Mas existe certa ligação. Em Mc 3,22 par. supõe-se que o Satanás/Beelzebu“governa” os demônios, e em Jo 8,48.52 a acusação de que Jesus tem umdemônio é uma resposta à crítica de Jesus dizendo que eles têm o diabo por pai(8,44). Os “demônios” não são o Satanás, mas podem simbolizá-lo.

Que o diabo/Satanás atua em Judas (13,2.27) não é uma maneira decondenar Judas, mas de mostrar que o verdadeiro antagonista de Jesus nãoé nem Judas, nem os judeus, nem ser humano algum, mas o “chefe destemundo”.

Diabo >Demônio

Enaltecer/Enaltecimento (exaltação/elevação)João (3,14; 8,28; 13,21.34) usa com intencional ambigüidade o verbo grego

hypsóô (“levantar/colocar no alto”), para expressar o mistério da cruz: a ele-vação física de Jesus na cruz é ao mesmo tempo seu en-altecimento na glóriade Deus (“enaltecer” aparece diversas vezes em conexão com “glória/glorifi-car”). Isso se dá ao mesmo tempo, e não sucessivamente, pois a glória de Deus

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é seu amor, e este se manifesta de maneira decisiva quando Jesus, amando osseus até o fim (cf. Jo 13,1), realiza a obra do amor e da fidelidade de Deus(a “graça e verdade” do Prólogo, 1,14; cf. Ex 34,5 etc.), a tal ponto que, aoentregar o espírito, pode dizer “(a obra) está consumada” (19,28-30; cf. 1Jo3,16; 4,9-10). A origem desse uso bivalente de “enaltecer” é o texto do ServoSofredor em Is 53,12 (“será enaltecido, será glorificado”). >Glória/Glorificar.

ÉonPeríodo do mundo, conforme os conceitos antigos; era. O universo era

concebido como comportando diversos éons. João recorre à imaginação dojudaísmo apocalíptico, que opõe “este mundo/éon”, dominado pelos podereshumanos, corruptos e sangüinários, ao “mundo vindouro/novo éon”, no qualtudo será conforme ao projeto de Deus. É neste sentido que João fala em“vida do éon”, que geralmente traduzimos por “vida eterna”, mas o acentoestá na pertença à vontade de Deus mais do que no aspecto matemático; a“vida do éon” (de Deus) é questão de qualidade transcendente mais do quede quantidade (prolongamento infinito).

EscatologiaPensamento acerca da realidade última (grego éschaton), o tempo do

Fim. João acentua que o tempo do Fim — a vida que tem validade definitiva— já começou desde que Jesus, na realidade pascal, nos fez a oferta da fé:diante de Jesus morto e ressuscitado decidimos se vamos viver a “escatologia-já” (>Intr. § 3.3.8). Por isso ele é a “ressurreição e a vida” (>exc. 11,27).

Espírito1) Sentido geral na Bíblia. Espírito significa sopro ou vento. Não é um

“princípio imaterial” como na filosofia grega, a não ser no Livro da Sabe-doria (século I aC).

2) Espírito de Deus. Para a imaginação bíblica, o Espírito é antes de tudoo “sopro de Deus”, ou seja, a força misteriosa com que Deus realiza suasobras (o vento, a criação, a infusão da alma no ser vivo etc.). Dizer que Deusé Espírito (Jo 4,24) é dizer que ele está acima das limitações humanas, a>carne. Em João, o Espírito de Deus enquanto dom aos fiéis para continuara obra de Jesus neles é chamado “o Paráclito” (= auxílio, apoio, defensor,advogado, assistente judicial no “processo” com o [chefe deste] mundo)(>com. Jo 14,15-17; >exc. 15,17).

3) Espírito humano. Como resultado da ação de Deus, o ser humano temem si o espírito de Deus, seja como seu princípio vital em geral, sinônimode alma, seja como inspiração especial, como no caso da inspiração profé-

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tica. “Meu espírito” signifca, como “minha alma” ou “meu corpo”, a pessoainteira. >Alma.

Essênios >Qumran

Exaltação >Enaltecer

FariseusGrupo de judeus piedosos (leigos) conhecidos por terem participado da

guerra de libertação dos macabeus (c. 165 aC) e, depois, se terem separadodos sucessores destes, os reis hasmoneus — que usurparam o sacerdócio.Reunindo sobretudo os escribas e dirigentes das sinagogas, tinham grandeprestígio junto ao povo comum, especialmente na Galiléia. Mas o centro deestudos deles era em Jerusalém.

Filho (de Deus/do Homem)O qualificativo que melhor caracteriza Jesus no Quarto Evangelho é

“Filho”, que significa Filho de Deus. Com esse qualificativo João evoca arelação incomparável que existe entre Jesus e Deus, sobretudo no sentido daunião da obra de Jesus e da vontade/desejo de Deus. Essa relação é única.Mesmo depois da ressurreição, embora chamando os discípulos de “meusirmãos”, Jesus distingue entre sua própria filiação divina e a deles: “Meu Paie vosso Pai” (>com. 20,17).

Jesus é filho porque realiza cem por cento a vontade do Pai. Isso aparecesobretudo em Jo 5,19-30. Ora, neste texto, João faz um jogo de palavras: de“Filho de Deus” passa para “Filho do Homem” (também em 1,49.51). OFilho do Homem evoca a figura do enviado celeste de Deus que recebe plenaautoridade para dominar os poderes deste mundo (Dn 7,13-14), portantotambém o poder de julgar (é neste sentido que o livro de Henoc, contempo-râneo do NT, apresenta o Filho do Homem). Assim, quando João quer acen-tuar a união de Jesus com Deus, fala em “Filho (de Deus)”, quando acentuasua missão, em “Filho do Homem” (>exc. 1,51).

A isso está ligada a representação do Filho do Homem como “enaltecido”,assim como o foi o Servo de Deus segundo Is 52,13. Por ser enaltecido, podeexercer a missão “do alto”. A manifestação de que o âmbito desse Filho doHomem é “no alto”, junto de Deus, segundo João, é a elevação de Jesus nacruz, suprema manifestação da glória de Deus (>Enaltecer; >com. 3,14-15;>exc. 12,34).

Flávio JosefoHistoriador judeu (37-100 dC), de família sacerdotal, conhecedor das

diversas tendências do judaísmo, comandante da Galiléia no início da >Guerra

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Judaica, preso pelos romanos (ano 67), dos quais se tornou homem de con-fiança e a partir daí diplomata em favor do judaísmo, que ele descreveuapologeticamente nos livros Antiguidades Judaicas e Guerra Judaica.

Glória/Glorificar“Glória” inclui um aspecto de poder (o termo hebr. kabod significa “peso,

substância”) e um aspecto de manifestação (a tradução grega, doxa = “bri-lho”, acentua sobretudo este aspecto; na filosofia de Platão e Aristóteles,doxa tem uma conotação negativa, “falso brilho, aparência”, que pode estarpresente em algumas frases irônicas de João: 5,44; 12,43). Diversas vezesJoão usa o termo no sentido de honra, fama etc., atribuída pelos homens(p.ex. 5,41).

No sentido teológico (a glória de Deus e de Jesus), devemos mencionarem primeiro lugar 1,14 e o cap. 17. Significa a realidade divina. Segundo1,14, contemplamos na existência histórica de Jesus (“carne”) a glória queele reparte com Deus como filho Unigênito, a glória do Deus de “graça efidelidade” (= amor fiel). Isso se compreende melhor no cap. 17, quandoessa comunhão da glória é posta à luz do arremate da obra de Jesus, amanifestação do amor de Deus pelo dom da vida até o fim. Na oração de Jo17, trata-se especialmente da manifestação do poder de Deus que age emJesus e lhe confere a vitória (cf. também 12,23.28; 13,31.32). Neste sentido,“glorificação” é termo fixo em João para falar do >enaltecimento de Jesus.

Guardar1) Conservar: o vinho, 2,11; o perfume, 12,7; os discípulos: 17,11.12.15.2) (Lembrar e) pôr em prática: a(s) palavra(s) de Jesus, de Deus:

8,51.52.55; 14,23.24; 15,20; 16,7; o(s) mandamento(s): 14,15.21; 15,10.10;o sábado: 9,16; talvez o rito do embalsamamento 12,7.

Guerra judaicaEm 66 dC a população de Jerusalém se revoltou contra os abusos do

procurador romano Géssio Floro. O sacerdote Eleazar (saduceu, que logomais seria morto) e os zelotes ocuparam o Templo, provocando o assédio dacidade pelos tropas romanas, comandadas por Vespasiano. Entretanto seufilho, o general Tito, combatia os zelotes de João de Giscala na Galiléia.Como Vespasiano se tornara imperador em Roma, foi Tito quem em 70 dCvenceu Jerusalém e destruiu o Templo. Em 73, os últimos zelotes morreramnum suicídio coletivo, na fortaleza de Massada, a 50 km de Jerusalém. Antesdo assédio, a comunidade cristã tinha deixado a cidade e se refugiara emPela, na Transjordânia. No início do assédio, os fariseus (Yohanan ben Zakkai)

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conseguiram dos romanos a permissão de se instalarem em Jâmnia (Javne),50 km a oeste de Jerusalém, onde constituíram o centro da renovação dojudaísmo, que mais tarde se tornaria o judaísmo >rabínico (centrado na Lei/Torá e não mais no Templo, já destruído). No início da guerra desapareceutambém a comunidade dos essênios, conhecida principalmente pela comuni-dade de >Qumran.

Uma segunda guerra judaica explodiu em 132 dC, com a atuação de BarKokba e rabi Aquiba, provocando a destruição total de Jerusalém em 135(por Adriano). Não é impossível que a atmosfera de nacionalismo crescentea partir dos anos 80 se reflita em algumas ironias do Quarto Evangelho, quecertamente não simpatizava com tudo isso.

HasmoneusEm 164, Judas Macabeu conseguiu retomar Jerusalém e o Templo do rei

siro-helenista Antíoco IV (Epífanes). Depois de sua morte em 160, foi suce-dido por seus irmãos Jônatas e Simão, pelo filho deste, João Hircano, e osfilhos deste. Esta sucessão chama-se dinastia dos hasmoneus, conforme onome do avô.

InclusãoProcedimento literário que consiste em encerrar um conjunto (maior ou

menor), seja poético, retórico ou narrativo, com temas que lembram o início(>Quiasmo).

Iniciação/IniciáticoO que diz respeito à iniciação (no caso, a iniciação cristã): a instrução

que conduz o candidato (catecúmeno, eleito) à participação da Eucaristia,passando pelo batismo e pela crisma (>Mistagogia).

IntertestamentoA vasta literatura religiosa judaica produzida no tempo entre o AT e o NT

não assumida na Bíblia (literatura apócrifa, pseudepigráfica…). Geralmentesão extrapolações sobre temas/personagens bíblicos. Exemplos: os Livros deHenoc, os Testamentos dos XII Patriarcas, o Livro dos Jubileus, os OráculosSibilinos, a Epístola de Aristéias. Podem incluir-se também os escritos não-bíblicos encontrados em >Qumran.

Jâmnia/JavneCidade onde se reconstituiu, por volta de 80 d.C., a liderança judaica

(farisaica) depois da queda do Templo. Os líderes de Jâmnia parecem terexcluído os cristãos.

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Judeus1) Habitantes da Judéia (raro: talvez 11,19…45; 11,54; 19,20).2) O povo de etnia e religião judaica em geral (2.6.13; 5,1; 6,4; 7,1 etc.);

este sentido é geralmente neutro, objetivo, mas em 4,22 Jesus até se identi-fica com os judeus como portadores da salvação.

3) A parte dominante/a liderança do judaísmo que se opõe a Jesus e à suacomunidade (5,16.18; 9,22; 19,38 etc.). É o sentido que mais cai na vista,mas não o único! Em algumas expressões, João parece falar das realidadesjudaicas como se fossem assunto desses “judeus” e não de Jesus (“vossaLei”, 8,17; 10,34 etc.). João usa “o rei dos judeus“ num sentido irônico(>com. 19,21), “o rei de Israel”, porém, como título aceitável para Jesus(1,49). Talvez João pense na liderança judaica do fim do séc. I (>Jâmnia).

Lei >Torá

Liberdade/Libertar/LivreJoão usa esses termos exclusivamente no trecho 8,31-37, em sentido ale-

górico (a eleutheria ou cidadania como descendentes de Abraão em oposiçãoà escravidão do pecado). De acordo com a cultura de seu tempo, João ligaliberdade a integração familiar. (Em latim, liberi significa “filhos” ou “livres”.A liberdade não era pensada como soltar todas as raízes, mas como estarenraizado com pleno direito na estrutura familiar e social, como cidadania.Quem não tinha raízes ou foi desenraizado estava exposto a se tornar escravo.)

A verdadeira liberdade é a que se compromete, no caso, na solidariedadecom Jesus, na pertença a Deus, na fidelidade à Aliança (>exc. 8,36) e nadedicação aos irmãos (Gl 5,13). (O conceito de libertação histórica não seencontra em João, mas pode ser aprofundado à sua luz, no sentido de liber-dade responsável.)

Luz“A luz do mundo sou eu” (Jo 8,12; 9,3). Embora a Bíblia ofereça muito

material para descrever o sentido simbólico da luz, devemos, em últimaanálise, depreender o significado deste simbolismo de Jesus mesmo, da suaprática de vida. Este sentido cristológico da luz acompanha o sentido bíblicogeral, da luz que ilumina o caminho (= o procedimento ético) do ser humano.A Lei é luz que guia nossos passos (Sl 119,105; Sb 18,14; Sr 45,17). Osrabinos interpretavam a “luz” da bênção de Nm 6,25 como a Lei. Conhecen-do esse sentido, entendemos que Jo 1,3 diz que a luz que vem mediante aPalavra era a vida dos homens: a Lei é o caso paradigmático disso, para umjudeu. Em termos bíblicos, a luz não serve para escapar deste mundo (para

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a “esfera da luz”, na gnose helenista), mas para neste mundo andar conformea palavra do Senhor e não tropeçar.

Devemos, portanto, descartar o sentido gnóstico (helenístico) da luz,como âmbito etéreo, subtraído à opaca materialidade, onde os gnósticos,libertos da matéria pelo conhecimento (gnose), encontram seu destino final.

Isso é importante para nosso contexto pastoral. As religiões espiritualistasno Brasil e em outros países latino-americanos, como também certos gruposesotéricos ou misticistas, cultivam o simbolismo da luz em sentido gnóstico.O Evangelho de João não se presta para tal uso. É genuinamente bíbli-co: “Caminhai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos detenham”(12,35). Trata-se da luz diante de nossos pés, não da luz acima de nossacabeça. A expressão “filhos da luz” (Jo 12,36) deve ser entendida no sentidobíblico; “filho” significa “quem pertence a…”. Filhos da luz são pessoas queseguem a luz que Deus, em Jesus, projeta para seus passos.

(>com. 1,3; 8,12).

Mandamento >Torá

Metáfora (alegoria, parábola)João não usa o termo grego parabolé, mas paroimia, que corresponde

praticamente ao nosso termo genérico “metáfora”, modo de falar figurativo.Evoca-se uma coisa fácil de imaginar, para provocar a percepção de outracoisa, mais difícil de perceber ou compreender. Nos evangelhos sinópticos, hámuitas “parábolas”, algumas bem breves: o Reino dos Céus é como umasemente que brota sem a pessoa perceber como, e de repente o trigo estápronto para a colheita (Mc 4,26-29) — lição para quem quer ver o Reino deDeus acontecer com estardalhaço. Se entendemos por parábola, no sentido dossinópticos, uma “comparação narrativa”, constatamos que em João esse gêneroé raro. O texto que mais se aproxima disso é a cena do redil das ovelhas (Jo10,1-5). Também em 5,19-20; 16,21 etc., pode-se descobrir algo deste gênero.Já em 15,1-8, o elemento narrativo é mínimo: a linguagem figurativa tornou-se alegoria: aos diversos componentes da imagem correspondem diversoselementos daquilo que se quer evocar: a alegoria do corpo (comunidade =corpo, nós = membros) em 1Cor 12,12-27. Assim também em Jo 15,1-8 (Pai= agricultor, Jesus = tronco, fiéis = ramos, caridade fraterna = frutos).

A linguagem metafórica é ambígua: além de sobrepor dois sentidos, pro-duz também dois efeitos opostos. Ela quer sugerir o que não é possível dizerem termos diretos, “de acordo com a capacidade de entender” (Mc 4,33, fimdo sermão das parábolas), mas acontece também que “olhando quanto podem,não vêem, escutando quanto podem, não entendem… (Mc 4,12). Na primeira

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parte de João há os que não entendem (todos) e os que não querem entender(os adversários de Jesus). Na segunda parte, os que crêem reconhecem queagora Jesus fala abertamente e não mais em metáforas (16,25.26).

MistagogiaInstrução dos mystói, ou seja, os já iniciados (às vezes chamados os

“perfeitos”) na comunidade cristã, geralmente por meio da homilia (>Ini-ciação; Parênese; Mistério).

MistérioEmbora João não use o termo, o conceito está presente no pano de fundo,

em duas aceitações:1) os cultos mistéricos da sociedade helenista, que iniciavam os candi-

datos em conhecimentos esotéricos, os iniciados sendo chamados de mystói;o acento caía no “progresso” realizado pelo iniciando;

2) o mistério cristão, que é o paradoxo da morte e glorificação de Cristono “enaltecimento”, celebrado no culto da comunidade cristã; o acento estána fé e na prática do mandamento do amor e do seguimento de Jesus.

MundoSegundo o contexto, pode significar1) a criação, obra de Deus e de sua Palavra;2) a humanidade, destinatária da salvação em Cristo (Jo 3,16);3) a parcela incrédula da humanidade, oposta a Jesus e seus discípulos.

Neste último sentido, há duas nuances: (a) “o mundo” como oposto a Jesus eaos seus, como entidade dominadora que usurpa o domínio que pertence aDeus; o mundo do “chefe deste mundo”; (b) (linguagem apocalíptica:) “estemundo” passageiro oposto ao “mundo novo” (novo >éon), que trará presenteo domínio de Deus; evidentemente, essas duas nuanças se misturam.

Em vista dos dois primeiros sentidos exclui-se que João seja consideradocomo um dualista que rejeita o mundo. O termo mundo evoca universalida-de, tanto para o bem (sentidos 1 e 2) como para o mal (sentido 3). Já porisso não se pode identificar simplesmente “os judeus”, um caso particular,com “o mundo”, que é universal.

Obra >exc. 5,36.

OdiarNão significa, geralmente, nosso “ter ódio”, mas antes “rejeitar, passar

para trás”, o contrário de >amar; é uma expressão bem semítica para dizer

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o contrário de preferir/priorizar (cf. Rm 9,13!). Daí “odiar sua alma” (Jo12,25) = não preferir/apegar-se à própria vida ou ao próprio interesse (>Alma).De frases como 15,18 etc. não se pode concluir que os judeus sinagogais“tinham ódio” dos cristãos, mas apenas que combatiam a comunidade cristã.

Parábola >Metáfora

Paráclito >Espírito

ParêneseInstrução moral dos cristãos, muitas vezes como parte final da homilia,

a “prática”. >Mistagogia.

ParusiaA volta de Jesus em sua glória no tempo do Fim. O termo significava

originalmente a entrada festiva de um novo rei ou imperador nas cidades deseu reinado, depois de sua posse. (A ascensão de Jesus ao céu era imaginadacomo sua ida ao Pai para tomar posse do Reino.)

Paz“Paz” (hebr. shalom, de shalam, “satisfazer”), na Bíblia, não significa

a interrupção da guerra, mas a felicidade completa, individual (quase sinô-nimo de saúde) e comunitária (quando todos podem viver de maneira fe-liz). É a realização do desejo que Deus inspira aos seres humanos; e porqueDeus o inspira, só ele pode realizá-lo satisfatoriamente, em primeiro lugar,mediante o seu Messias. Esta é a paz que Jesus promete na hora de suadespedida. Viver conforme o rumo que ele mostrou conduz à paz que Deussonhou para todos nós. A paz de Cristo é o dom que vem do seu“enaltecimento” (>com. 20,19.21).

PecadoComo João só menciona um único mandamento, o do amor fraterno,

não se encontra no seu evangelho nenhuma lista de pecados. Só fala depecado em geral (ora no singular, ora no plural). Vê o pecado na suadimensão meta-histórica, o “pecado do mundo” (= universal; 1,29), provo-cado pelo “chefe deste mundo”. Esse pecado se manifesta de muitas ma-neiras, em primeiro lugar na incredulidade do judaísmo dominante, com oqual a comunidade se confronta diariamente (quase todos os usos do termo“pecado” ocorrem nos textos dirigidos contra o judaísmo dominante: 8,21-46; 9,41; 15,22–16,9). O verbo “pecar” só ocorre 3 vezes, em relação comsinais de cura (>com. 5,14 e 9,3).

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A primeira caraterização da missão de Jesus e dos discípulos é “tirar opecado (do mundo)” (1,29; 20,19-23). Portanto, a realidade do pecado éimportante para João, só que focaliza o pecado não no descomportamento“moral”, mas lá onde não estamos acostumados a situá-lo: na convicção denão ter pecado, no orgulho religioso dos que se consideram justos e acusamos outros por qualquer infração (sábado) ou palavra surpreendente (as decla-rações de Jesus, chamar Deus de Pai etc.).

Num mundo que parece ter excluído o pecado, João talvez nos ajude aressituá-lo, ao revelar suas raízes profundas: o fechamento sobre si, que produza insensibilidade para com os irmãos, chegando a um cinismo inumano. Nãose trata de inventar pecados e assim tornar as pessoas dependentes do sistemareligioso da expiação (como foi o caso do judaísmo, mas também do cristia-nismo tradicional), e sim de libertá-las do “chefe deste mundo”, pela conscien-tização e pela inserção numa comunidade que tenha outra pertença. Na soci-edade judaica, dominada pela hierocracia do Templo e depois pelos mestres daLei, o pecado do mundo se incrustava na estrutura religiosa. Na nossa socie-dade, incrusta-se em outros setores (socioeconômicos, culturais), embora aestrutura religiosa ainda se disponha, por vezes, a dar-lhe algum apoio.

Permanecer

João sozinho usa mais vezes o verbo “permanecer” que os outros evange-lhos e os Atos juntos, e isso em diversos sentidos, que por vezes se sobrepõem:

1) continuar, ficar: 1,32-33 (o Espírito de Deus em Jesus); 1,39b (osdiscípulos); 2,12 (a família de Jesus); 3,36 (a ira); 4,40 (Jesus); 5,38 (apalavra); 6,27 (o alimento); 7,9 (Jesus); 8,35 (o escravo, o filho); 9,41 (opecado); 10,40 (Jesus); 11,6 (Jesus); 12,24 (o grão de trigo); 34 (o Filho doHomem); 46 (o crente); 15,9-10 (os discípulos, no amor); 15,16 (o fruto);19,31 (os corpos, na cruz); 21,22-23 (o Discípulo Amado);

2) morar, residir: 1,38.39a (Jesus); 14,25 (Jesus no mundo);

3) imanência, inabitação, união (uma realidade está presente na outra):1,32-33 (? cf. a); 5,38 (? cf. a); 6,56 (o crente e Jesus); 8,31 (a palavra);14,10 (o Pai em Jesus); 17 (o Paráclito nos crentes); e sobretudo 15,4.5.6.7.9-10, a parábola da vinha, onde o permanecer dos sarmentos no tronco = aunião dos fiéis com Jesus e deste com o Pai (>exc. 15,4). A imanência deDeus/Jesus/Paráclito em ou entre os fiéis aponta para a presença, inabitaçãoou morada de Deus/da Santidade junto ao povo, que, para João, se dá tam-bém em Jesus (cf. 1,14). O sentido da imanência mútua pode estar presentetambém sem o verbo “permanecer” (p. ex., 14,20; 17,23).

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VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO

Profeta/O ProfetaOs profetas (hebr. nabî, gr. profétes) são pessoas com um carisma reli-

gioso especial. Representam para o povo a voz da divindade, em oráculos,bênçãos, adivinhações etc. Deviam reconhecer a presença de Deus, p. ex.dizer quem era o abençoado de Deus, em que campo do combate Deusestaria… No tempo dos juízes e dos reis existiam em Israel confrarias cha-madas “os filhos dos profetas”, comparáveis a certas formas de vida religio-sa na Idade Média e às irmandades de beatos no Brasil (caso de AntônioConselheiro). Para a teologia do Israel clássico, os profetas são os porta-vozes e guardiães da Aliança com YHWH. Os principais profetas clássicos(Elias, Eliseu, Oséias, Amós, Miquéias, Isaías, Jeremias, Ezequiel) atuamjunto ao povo e seus chefes, reivindicando a Aliança exclusiva com YHWHe combatendo a “prostituição” aos deuses de Canaã ou dos impérios vizinhos(os baalim), como também as injustiças no seio do povo, que resultam doabandono do caminho de YHWH. Retrospectivamente, Moisés foi conside-rado o Profeta por excelência, porque ele mediou a Israel o ensinamento deDeus (hebr. torah). As “pragas” que ele provocou sobre o Egito chamam-sena Bíblia “sinais” — sinais proféticos da presença atuante de Deus (cf. os“sinais” de Jesus em João). O texto de Dt 18,15.18, que anunciava literal-mente a continuidade dos profetas em Israel, para suplantar o sistema dosadivinhos cananeus (às vezes chamados “profetas de Baal”), foi mais tardeinterpretado no sentido da volta de um Moisés redivivo (“um profeta comoeu”), como um dos personagens >escatológicos, ao lado do Messias/Cristoou até identificado com ele (sobretudo na Samaria, cf. Jo 4,19.29). Algunstextos em João (1,21.25; 4,19; 6,14; 7,40) falam de “o Profeta” neste sentido.

QuiasmoEstrutura literária em forma de X (grego khi), o primeiro elemento

correspondendo ao último, e os intermediários correspondendo entre si: A B(C) B’ A’. Chamada também de simetria. >Inclusão.

QumranLugar onde foram encontradas as ruínas de um mosteiro de monges que

viviam no deserto de Judá (c. 50 km de Jerusalém, na beira do Mar Morto).Nas grutas em redor foi encontrada a biblioteca desses monges, escondidapor causa da >Guerra Judaica, que pôs fim à comunidade (c. de 65 dC). Osmanuscritos encontrados nos mostram como eram os escritos bíblicos eextrabíblicos no tempo de Jesus. Comumente se pensa que os monges per-tenciam ao grupo dos essênios, sacerdotes que por volta de 150 aC se sepa-

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raram dos >hasmoneus (sucessores dos macabeus — usurparam o sacerdó-cio) e dos sacerdotes do Templo, os >saduceus, que ficaram fiéis aoshasmoneus.

Rabi/RabínicoRabi significa “grande”, mas corresponde ao nosso termo “mestre”. No

texto grego de João, Jesus é chamado rabbî (em aramaico) 8 vezes (no resto doNT: 4 vezes em Mt e 3 vezes em Mc). Além disso, João usa ainda 8 vezes otermo grego didáskalos, usado com semelhante freqüência também pelos outrosevangelistas.

Podemos dizer que João acentua o termo rabbî, talvez por ser contem-porâneo do incipiente “judaísmo rabínico”, o judaísmo dirigido pelos “mes-tres”, depois do fim do judaísmo do Segundo Templo (70 dC), dirigido pelossumos sacerdotes. Esse judaísmo rabínico incipiente tem seu ponto de par-tida no grupo de mestres farisaicos (Yohanan ben Zakkai) que saíram deJerusalém, com os rolos da Escritura, no início da >Guerra Judaica (66-73dC), para constituir a escola de Jâmnia (>exc. 9,22), que orientou areconstituição do judaísmo por volta dos anos 80. Este “judaísmo formativo”não era o judaísmo dirigido pelos rabis como o conhecemos hoje, mas, detoda maneira, deitou-lhe as raízes.

Reino/Reinado/RealezaEm Jo, o termo basiléia pode significar reino, reinado ou realeza. “Rei-

no” indica mais o âmbito geográfico, “reinado” o exercício concreto dopoder em determinado lapso de tempo, “realeza” o poder real como tal. Em18,36, João não contrapõe um “reino” na terra a outro “reino” no céu, masdiz que a autoridade régia de Jesus não vem de instâncias deste mundo e simde Deus, simbolicamente evocado pelo termo “do alto” (cf. 19,11). — Foradisso, João usa 2 vezes “reino de Deus” para resumir a esperança suscitadaem Nicodemos pela atuação de Jesus (3,3.5), esperança que é negada pelasautoridades judaicas diante de Pilatos (19,15; >exc.). Pilatos manda crucifi-car Jesus como “rei dos judeus” (19,19-22). Ao contrário, desde o inícioNatanael confessa Jesus como “rei de Israel” (1,49).

Saber >Conhecer

Sacerdote(s)Desde a reforma do rei Josias (c. 620 aC), que concentrou o culto em

Jerusalém, os sacerdotes só podiam ministrar no Templo de Jerusalém. Fo-ram eles que reconstruíram o Templo depois do exílio babilônico e consti-

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tuíram as Escrituras (Lei e Profetas). Mas quando, depois da guerra dosmacabeus (c. 165 aC), os reis >hasmoneus (sucessores dos macabeus) usur-param o sacerdócio, e os >essênios e os >fariseus se separaram deles, ossacerdotes mais importantes constituíram o grupo chamado de saduceus (cf.o sacerdote de Salomão, Sadoc). No tempo de Jesus, os sumos sacerdotes(Anás e Caifás) são saduceus; pertencendo à aristocracia sacerdotal, reveza-vam-se no poder. Mas havia também os sacerdotes pobres, como o pai deJoão Batista, Zacarias (Lc 1,5).

Saduceus >Sacerdotes

Satanás >Demônio

Semeia >Sinais

Semita/Semitismo/SemitizanteOs semitas são um grupo de povos aparentados que no tempo da Bíblia

(e ainda hoje) moravam nas regiões de Israel/Palestina, Fenícia (= Líbano),Arâm, Amon, Moab (= Síria, Jordânia), Babilônia (= Iraque), Arábia.Semitismo é uma maneira de falar ou de escrever em grego (idioma do NT)influenciada pela origem semítica do autor (influência sobretudo da línguaaramaica, a língua comum entre os semitas no tempo de Jesus). O grego doEvangelho de João é um grego comum aceitável, mas bastante semitizante(p.ex. o uso do mesmo termo, hiná, significando “que”, “de modo que” e“para que”; “homem” em vez de “alguém” etc.).

ServoIndica qualquer pessoa que está a serviço de outra, desde um rei subal-

terno (vassalo) em relação ao soberano, até um operário em relação aoempresário ou um escravo em relação ao amo. O contexto mostra de quecategoria de servo se trata. Muitas vezes, o servo, sobretudo de categoriasuperior, representa seu senhor. Neste sentido, Moisés, o rei de Israel, emesmo Ciro, o rei persa que liberta os judeus, são servos do Senhor. Nahistória da Paixão (Jo 18–19), os “servos” do sumo sacerdote são os guardasdo Templo, podendo exercer função elevada.

ShekináLit. “morada”. Termo muito usado no judaísmo para falar da presença

atuante e salvadora de Deus. Onde é que Deus está e realiza sua atuação? Notempo do Êxodo, este lugar da Presença era a Tenda, ou a nuvem que desciasobre ela. Depois era o Templo. Mas podia também ser a presença numapessoa, no profeta, na comunidade. O termo chegou a designar o próprio

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Deus. Para João, a morada de Deus por excelência é Jesus (>com. 1,14), mastambém sua comunidade (14,23).

Símbolo/Simbolismo

“Símbolo” era a metade de um contrato (às vezes simplesmente um vasoou uma cerâmica partida em dois), para ser completada na hora da verifica-ção pelo ajuntamento da outra metade (em grego symbállein), como nossotalão e canhoto. Daí: algo que significa uma outra realidade, que não se vê,mas que de certa maneira faz parte (pela semelhança, lembrança ou seja láo que for). Símbolo não é, portanto, o contrário de realidade, mas antes, aparte perceptível de uma realidade imperceptível. O Quarto Evangelho estácheio de simbolismo. Os milagres ou sinais de Jesus simbolizam a realidadeque ele mesmo é (o dom de Deus). O Discípulo Amado simboliza o fiel“perfeito”, plenamente integrado no mistério de Cristo (o que não exclui queele seja também uma pessoa real).

Sinal/Sinais

Em João, as ações notórias ou admiráveis de Jesus (os milagres, pelosoutros evangelistas chamados “forças, poderes”) são designadas pelo termo“sinais” (gr. semeia). Este termo sugere que Jesus é um profeta, pois aautoridade dos profetas era credenciada por Deus mediante os ”sinais” queoperavam. Assim, as “pragas” do Egito, no caso de Moisés, chamam-se“sinais” — sinais de que Deus está ao lado dele (em Jo 3,2 Nicodemos falaassim a respeito de Jesus).

Em João, contudo, o termo tem um sentido mais profundo. Os seis ousete sinais (conforme se contam, em 6,1-21, um ou dois) descritos por Joãonão apenas mostram que Deus está com ele, mas visualizam também simbo-licamente o que Jesus significa: vinho das núpcias messiânicas, cura e vida,alimento da vida divina, luz do mundo, ressurreição e vida… Não apenascomprovam que Deus está por trás de Jesus; mostram Deus em Jesus. Porisso, João caracteriza seu evangelho como uma seleção de “sinais” de Jesus,representativos da manifestação de Deus nele (12,37; 20,30). (Quanto à teo-ria de que João teria baseado seu evangelho numa suposta coleção de sinaisde Jesus, a tal “fonte dos Semeia”, além de não poder ser comprovada,também não tem importância.)

Soteriologia

Doutrina da salvação (gr. soteria), no caso, em Cristo — daí ser insepa-rável da cristologia. Em Jo 4,44 Jesus é chamado “salvador (soter) do mundo”.

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Testemunhar/TestemunhoTermo preferencial de João, sobretudo no sentido de dar testemunho a

favor de Jesus. Evoca a trajetória de Jesus e também da comunidade depoisdele como um conflito judicial, um processo com o mundo. Testemunham afavor dele Deus, suas obras, a Escritura, João Batista, Jesus mesmo, seusdiscípulos (>com. 15,26-27). Em grego martyrein. Nem sempre se trata do“martírio” de sangue, mas este está muitas vezes conotado.

ToráTermo hebraico geralmente traduzido como “Lei”, mas na realidade sig-

nificando “instrução” ou “mandamento”. Para o judaísmo, não tinha nada denegativo ou de antipático, como para nós. Era sabedoria, caminho da vida (Sl19; Sl 119). Significativamente, João fala às vezes com distância de “vossaLei”, “a Lei deles” (nomos, 8,17; 10,34; 15,25; 18,31), mas quando fala emsentido valorativo assume como próprios os termos “escritura(s)” (grafé,grafai) (= a Lei e os Profetas) ou, em se tratando de um preceito singular,“mandamento” (entolé, com a conotação de instrução para a vida, geralmen-te sinônimo de “palavra” de Deus ou de Jesus).

Verdade >exc. 18,37

VidaSignifica ora a vida biopsicológica, ora a vida “eterna”. Entre as duas

existe relação de simbolismo (cf. sobretudo 4,46-54 e 11,1-44). A vida hu-mana é valiosa aos olhos de Deus e de Jesus e, exatamente por isso, apontapara um sentido transcendente, a “vida eterna”, ou melhor, “vida do éon”, da“era vindoura”, como é chamado o âmbito de Deus. Ora, para João, o âmbitode Deus está presente desde que se acolha na fé e se ponha em prática apalavra de Jesus. Neste sentido, a vida eterna é uma presença já em nossavida de fiéis. A “vida em abundância” de Jo 10,10 abrange essa complexi-dade: a prática de Jesus atende às exigências da vida humana digna e, pormeio disso, à maneira de um “sacramento”, traz presente uma participaçãona vida divina.

ZeloteOriginalmente designação de judeus tomados pelo zelo do Templo, a

ponto de entrar na resistência armada (tempo do macabeus). No tempo da>Guerra Judaica (66-73 dC) constituíam um movimento político-militar maisou menos organizado (com os chefes João de Giscala e Simão bar Giora).

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ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Entre as inúmeros obras sobre o Quarto Evangelho, aqui algumas quepodem ajudar para o estudo na linha do presente comentário.

Em português/espanhol

BLANK, J. O Evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1989, 4 v. (Col. NT Comen-tário e Mensagem, 4/1a, 1b, 2, 3). — Tb. espan. — Interpretação moderna existen-cial em linguagem de divulgação, com sólida base exegética.

BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João: o caminho da vida. São Paulo:Paulinas, 1994. 207 p. (Como ler a Biblia). — Introdução pastoral para nossascomunidades.

BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 1989.97 p. (Nova Coleção Bíblica, 17). — Tb. espan. — Evolução da comunidade doevangelista João desde os dias de Jesus até a redação do Evangelho e das Cartas.

–––––––, Evangelho de João e Epístolas. São Paulo: Paulinas, 1975. 209 p. (Deus FalaHoje, 4). — Breve comentário em linguagem simples. Ver grande comentário domesmo autor.

–––––––, Evangelio según San Juan. Madrid: Cristandad. 2 v. — Juntamente comSchnackenburg o principal comentário católico do último meio-século.

–––––––, As Igrejas dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1986. 193 p. (Temas bíblicos).— Sobre as diversas comunidades e tipos eclesiais no tempo apostólico e sub-apostólico.

BRUCE, F. F. João. São Paulo: Vida Nova, 1987. 355 p. (Cultura Bíblica; Novo Testa-mento, 4). — Comentário moderno na perspectiva da teologia evangélica.

CALLE, F. de la. A teologia do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1978. 166 p.(Teologia dos Evangelhos de Jesus, 4). — Tb. espan. — Faz parte de uma teologiados quatro evangelistas.

COMBLIN, J. O enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1975. — Breve, mas vai ao essencial.

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COMBY, Jean; LEMONON, Jean-Pierre. Roma em face a Jerusalém: visão de autoresgregos e latinos. São Paulo: Paulinas, 1987. 97 p. (Documentos do Mundo da Bí-blia, 4). — Útil para o estudo do ambiente do Quarto Evangelho.

COTHENET, E. et alii. Os escritos de S. João e a Epístola aos Hebreus. São Paulo:Paulinas, 1988. 360 p. (Biblioteca de Ciências Bíblicas). — Introdução.

DODD, C.H. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977. 628 p.(Nova Coleção Bíblica, 4). — Tb. espan. — Obra que marcou época; destaca osimbolismo bíblico no Evangelho de João.

ERNST, Josef. Juan, retrato teológico. Barcelona: Herder, 1992. — Breve e bem acer-tado perfil do Quarto Evangelho.

FEUILLET, A.. O Prólogo do Quarto Evangelho: estudo de teologia joânica. São Paulo:Paulinas, 1971. 291 p. (Bíblica, 12). — Estudo exaustivo de Jo 1,1-18, com grandeatenção às raízes veterotestamentárias.

FITZMEYER, Joseph. Catecismo cristológico: respostas do Novo Testamento. São Pau-lo: Loyola, 1997. 159 p. — Para a cristologia de João no quadro da cristologianeotestamentária.

GUILLET, Jacques. Jesus Cristo no Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1985. 71 p.(Cadernos Bíblicos, 31). — Figura e obra de Cristo em João.

JAUBERT, Annie. Leitura do Evangelho segundo João. 2a ed. São Paulo, Paulinas,1985. 101 p. (Cadernos Bíblicos, 18). — Obra introdutória.

KAESEMANN, E. El testamento de Jesús. Salamanca: Sigueme, 1983. — Sobre Jo 17,o Prólogo 1,1-18 e o “docetismo ingênuo”.

KONINGS, Johan. A memória de Jesus e a manifestação do Pai no Quarto Evangelho.Perspectiva Teológica (Belo Horizonte), v. 20, n. 51, 1988, pp. 177-200.

–––––––, Literatura sobre o Evangelho de João em edição brasileira. Estudos Bíblicos(Petrópolis), n. 33, 1992, pp. 61-80.

–––––––, Encontro com o quarto Evangelho. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1975. 92 p. —Introdução e leitura dos principais capítulos.

LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola. 1995-1998. 4 vols. (Bíblica Loyola) — Comentário com grande sensibilidade pelo fundoveterotestamentário-judaico de João.

–––––––, O partir do pão eucarístico segundo o Novo Testamento. São Paulo: Loyola,1984. 360 p. — Sobre Jo 6.

MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de João. In: FABRIS, R. - MAGGIONI, B., Osevangelhos. São Paulo: Loyola, 1992. Vol. II, pp. 249-538. — Comentário muitoequilibrado, dialogando com a interpretação existencial de R. Bultmann.

MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O evangelho de São João: análise lingüística e co-mentário exegético. São Paulo: Paulinas, 1989. 923 p. (Grande Comentário Bíblico).— Trad. do espan. — Muito valioso por causa da semântica bíblica (fundo vete-rotestementário-judaico).

–––––––. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo: Paulinas, 1989.295 p. — Está também em anexo na obra anterior.

NICCACCI, A.; BATTAGLIA, O. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis:Vozes, 1981.

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EPÍLOGO DO COMENTADOR

OLIVEIRA, Carlos Josaphat Pinto de. Evangelho da unidade e do amor: texto e doutrinado Evangelho de São João. São Paulo: Duas Cidades, 1966. 360 p. (A Palavra deDeus, 2). — Estudo notável e original brasileiro.

SCHNACKENBURG, R. El Evangelio de Juan. Barcelona: Herder, 4 vols. — Comen-tário católico exaustivo e da maior autoridade.

SILVA, Bento Santos. Teologia do Evangelho de São João. Aparecida: Santuário, 1994.SPICQ, Ceslas. O amor de Deus revelado aos homens nos escritos de São João. São

Paulo, Paulinas, 1981. 176 p. (Comentários Bíblicos, 2). — Estudo teológico-bíblicosobre o tema do amor em João.

TUÑI VANCELLS, Josep O. Jesús y el evangelio en la comunidad juánica. Salamanca:Sigueme, 1987. — Sobre a comunidade joanina.

–––––––, La vida de Jesús en el evangelho de Juan. Revista Latinoamericana. deTeología, v. 3, n.7, 1986, pp. 3-43. — O Ev. de João no quadro latino-americano daatenção pela vida de Jesus.

–––––––, O testemunho do evangelho de João: introdução ao estudo do Quarto Evan-gelho. Petrópolis: Vozes, 1989. 183 p. Trad. do espan. — Chaves literário-teológicaspara a exegese de João.

VITORIO, Jaldemir. Vou preparar-vos um lugar: leitura e interpretação de Jo 14 naperspectiva da tradição do êxodo. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católicado Rio de Janeiro, 1995. 264 p. 2 v. — Tese de doutorado.

WEILER, Lúcia. Fonte e dinâmica do mandamento do amor mútuo: uma releitura tri-nitária a partir da exegese e hermenêutica de Jo 15,9. Rio de Janeiro: PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro, 1992. — Tese de doutorado.

WENGST, Klaus. Interpretación del evangelio de Juan. Salamanca: Sigueme, 1988. —Excelente estudo sócio-histórico.

–––––––, Pax Romana: pretensão e realidade, experiências e percepções da paz emJesus no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 1991. 224 p. (Biblia e socio-logia, 7). — Importante para o ambiente sociopolítico de João e sua comunidade.

Em outro idioma

BEUTLER, J. et alii. La communauté johannique et son histoire. Genebra: Labor etFides, s.d. — Estudos sobre a comunidade joanina.

BULTMANN, R. Das Evangelium nach Johannes. Gotinga, 1941. — Talvez o comen-tário mais marcante (e controvertido) do século XX, fundamental para a interpreta-ção existencial do Quarto Evangelho.

BUSSCHE, J. van den. Jean. Bruges, 1967. — Comentário simples e com grande sen-sibilidade pelo caráter bíblico-simbólico do Quarto Evangelho.

FEUILLET, A. Le mystère de l’amour divin dans la théologie johannique. Paris: Gabalda,1972. — Estudo bíblico-teológico.

LAGRANGE, M.-J. Evangile selon Saint Jean. 5a ed. Paris: Gabalda, 1936. — Exemploda exegese católica minuciosa e crítica da primeira metade do século XX.

LINDARS, B. Saint John’s Gospel. repr. Londres, 1977 (New Century Bible). — Inter-pretação muito atual, na linha de Dodd e Bussche.

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MANNS, F. L’Evangile de Jean à la lumière du judaísme. Jerusalém: Franciscan PrintingPr., 1991. — Leitura à luz do judaísmo do ambiente de Jesus.

PANIMOLLE, S. Lettura pastorale del vangelo di s. Giovanni. Bolonha: Dehoniane,1985-1988, 3 vols. — Comentário bem arejado, muito prático para grupos de estudoe pregação.

SCHILLEBEECKX, E. Cristo y los cristianos. Madrid: Cristiandad, 1982. Seção II, cap.5. — Tentativa de abordagem teológica sistemática.

SERVOTTE, H. According to John. Londres: Darton, 1994. — Análise singela de João“como literatura”.

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