eu sou meu corpo

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Argumentos e indicações sobre o eu de Freud, o Self.

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    Eu sou meu corpo: o conceito de eu em Freud e de self em Damsio

    Natureza Humana 12(1): 133-162, jan.-jun. 2010 Natureza Humana 12(1): 133-162, jan.-jun. 2010

    Resumo: Por acreditarmos que a dupla constituio da espcie humana(social e biolgica) no pode mais ser negligenciada pela fetichizao deum de seus aspectos, pretendemos realizar um esforo inicial deaproximao entre as ideias produzidas pela psicanlise e pelasneurocincias. Como objeto de investigao terica, selecionamos osconceitos de Eu em Freud e de Self em Damsio para um estudocomparativo, em funo das ressonncias que apresentam,particularmente no que se refere ao lugar do corpo na sua constituio.Estamos certas de que as ressonncias e as dissonncias encontradaspodem servir de inspirao para o enriquecimento terico de ambos oscampos de pesquisa, guardadas as suas especificidades epistemolgicas.Palavras-chave: ego, self, psicanlise, neurocincia.

    Abstract: Because we believe that dual constitution of the human species(social and biological) can no longer be neglected by the fetishization ofone of its aspects, we plan to achieve an initial effort for rapprochementbetween the ideas produced by psychoanalysis and the neurosciences.As object of theoretical research, we selected the concept of Ego inFreuds work and of Self in Damasios theory for a comparative study,according to the resonances that they have, particularly with regard tothe place of the body in its constitution. We are certain that the echoesand the discrepancies found may serve as inspiration for the enrichmentof both theoretical research fields, saved their specificities epistemological.Key-words: ego, self, Psychoanalysis, neurosciences.

    Eu sou meu corpo:o conceito de eu em Freud e de self em Damsio

    Flvia Sollero-de-CamposDepartamento de Psicologia, PUC-RioE-mail: [email protected]

    Monah WinogradDepartamento de Psicologia, PUC-RioE-mail: [email protected]

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    Em seu artigo sobre o sujeito cerebral, Alain Ehrenberg (2004)adverte sobre a instalao de um novo contexto: hoje, o sofrimento psquicoe a sade mental se tornaram pontos de referncia do individualismo,oferecendo uma linguagem que permite exprimir as tenses sociais queacompanham o regime normativo no qual nos encontramos. Nessecontexto, as neurocincias (NC) se oferecem como o discurso que trazuma abordagem cientfica, tecnolgica e mdica para os males psquicosda subjetividade contempornea. Mas, ainda segundo Ehrenberg (2004), preciso distinguir um programa forte e um programa fraco das NC. Oprograma forte produz uma identificao, do ponto de vista filosfico,entre conhecimento do crebro e conhecimento do psiquismo e,clinicamente, pretende fundir neurologia e psicopatologia, tratando asafeces psquicas exclusivamente do ponto de vista neurolgico. Os malessubjetivos no seriam mais do que males neurolgicos e assim devem serabordados. Em ltima instncia, pretende-se produzir uma biologia doesprito ou uma neurobiologia do indivduo.

    Do outro lado, o programa fraco objetiva avanar no tratamentode doenas neurolgicas (tais como Parkinson, Alzheimer etc.) e descobriros aspectos neuropatolgicos em jogo em doenas mentais como aesquizofrenia ou como as citadas anteriormente, mas sem as pretensesreducionistas do programa forte. Assim, ao mesmo tempo em que aspesquisas realizadas pelo programa fraco das NC no desqualificam osconhecimentos produzidos por reas como a psicologia, a psicanlise, asociologia etc., elas lembram aos psicanalistas que, dentre os diversossaberes necessrios para o entendimento dos males subjetivoscontemporneos, tambm merecem ateno os que se referem aofuncionamento neurobiolgico: se as neurocincias tm a tendncia defetichizar o crebro, as cincias sociais fazem o mesmo com esta entidademgica que o self (ntimo, social, objetivo, farmacolgico, etc.)(Ehrenberg, 2004, p. 133).

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    Neste artigo, no se trata de aprofundar o entendimento dosmales subjetivos atuais. Por acreditarmos que a dupla constituio daespcie humana (social e biolgica) no pode mais ser negligenciada pelafetichizao de um de seus aspectos, pretendemos realizar um esforoinicial de aproximao entre as ideias produzidas pela psicanlise e pelasNC. Como objeto de investigao terica, selecionamos os conceitos deEu em Freud e de Self em Damsio para um estudo comparativo, emfuno das ressonncias que apresentam, particularmente no que se refereao lugar do corpo na sua constituio. Estamos certas de que as ressonnciase as dissonncias encontradas podem servir de inspirao para oenriquecimento terico de ambos os campos de pesquisa, guardadas assuas especificidades epistemolgicas.

    Segundo Gilles Deleuze e Flix Guattari (1992), nenhumconceito simples. Ou seja, todo conceito formado por componentesque o definem e que se tornam inseparveis nele. So distintos, diversos,mas no podem ser separados, pois se recobrem parcialmente em suasbordas como numa pintura impressionista. So essas indistines parciaisnas zonas de vizinhana entre os componentes os pontos de juntura,segundo Deleuze e Guattari que definem a consistncia interna de umconceito, sua endoconsistncia. Mas, um conceito tem tambm umaexoconsistncia, derivada da sua relao com os outros conceitos do mesmoplano: so as pontes que articulam uns aos outros.

    No caso do conceito de Eu em psicanlise, sua endoconsistnciaderiva da relao profunda entre, pelo menos, os seguintes componentes:Eu-real, Eu-prazer, Eu ideal, ideal de Eu e Eu-corporal. J suaexoconsistncia refere-se s pontes entre Eu e Isso, Eu e Supereu, Eu ePr-consciente/Consciente, Eu e Inconsciente, para citar somente as maisevidentes. Tais pontes so o que confere a um conceito seu sentido, pois,tal como na definio saussuriana de signo (Saussure, 1916/1995), parasignificar, um conceito no pode ser nem estar isolado. Assim, abordar oEu em Freud implica necessariamente operar com as pontes que ele supe

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    e, eventualmente, atravess-la. Por outro lado, embora saibamos dainseparabilidade entre os componentes do conceito de Eu, gostaramosde aprofundar particularmente um deles o Eu-corporal , deixando osoutros em suspenso, embora estejam necessariamente ativos.

    J o conceito de Self em Damsio apresenta os seguintescomponentes: self neural ou protosself, self central e self autobiogrfico.Tais elementos encontram nas noes de conscincia central e de conscinciaampliada sua costura, j que so essas noes que permitem a passagemde um elemento ao outro. Dentre eles, destacamos o protosself e o selfcentral como consonantes com o Eu-corporal proposto por Freud.

    1. As origens do conceito de Eu em Freud: breve panorama

    Na medida em que existem, na teoria freudiana, duas teoriastpicas do aparato psquico, corrente admitir-se que a noo de Eus ganha realmente consistncia e estatuto de conceito psicanalticoaps a virada de 1920. Contudo, ainda assim, ela esteve presente desdeo incio, tendo sido constantemente renovada por sucessivascontribuies (a introduo do conceito de narcisismo, o destaque danoo de identificao etc.).

    Nos anos 1890-1900, a experincia clnica das neuroses levouFreud a transformar a concepo tradicional de Eu como unificado,permanente e identificado personalidade e conscincia. Com efeito,nos anos 1880, a psicopatologia j operava o desmantelamento da noode um Eu uno, atravs do estudo das alteraes e desdobramentos dapersonalidade, realizado, por exemplo, por Pierre Janet (1899). Janetafirmava que, na histeria, ocorria a formao de dois grupos de fenmenos:um constitutivo da personalidade comum e, outro, suscetvel de sesubdividir, referente a uma personalidade diferente da primeira e por elaignorado. A interpretao freudiana desse fenmeno consistiu em entend-

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    lo como a expresso de um conflito psquico. O Eu, como massa derepresentaes (Freud, 1893-1895/1994, p. 133), seria ameaado porrepresentaes inconciliveis com ele: o resultado seria uma defesa contratal ameaa.

    No ltimo captulo dos Estudos sobre a histeria (1893-1895/1994), dedicado psicoterapia da histeria, Freud se refere ao eu-conscincia (Ich-Bewusstsein) (Freud, 1893-1895/1994, p. 196),descrevendo-o como um desfiladeiro que s permite a passagem de umarecordao patognica de cada vez, podendo ser bloqueada enquanto otrabalho de elaborao no tiver vencido as resistncias. Nesse momento,Eu e conscincia ainda aparecem intimamente vinculados, embora oprimeiro fosse mais amplo do que a segunda, designando um verdadeirodomnio psquico (rapidamente assimilado ao sistema Pr-consciente/Consciente). Alm disso, as resistncias do paciente so entendidas comoprovenientes do Eu, emanando do ncleo patognico inconsciente quenele se infiltra. Nota-se que, apesar da assimilao entre Eu e conscincia,a fronteira entre o primeiro e o inconsciente frouxa, suscitando umaquesto que Freud tentar resolver posteriormente, tanto apontando parauma resistncia proveniente do Isso, quanto recorrendo noo de umEu inconsciente.

    Seja como for, para explicar metapsicologicamente como o Euopera seu papel de operador das defesas que Freud se lana na tentativade entender sua origem. Trata-se do clebre Projeto para uma psicologiacientfica (1895/1994), no qual a funo do Eu descrita comoessencialmente inibidora, travando a passagem do fluxo de excitaoquando este vier acompanhado de sofrimento. O modelo de aparatopsquico desenhado por Freud nesse momento no psquico, masneurnico, ou seja, composto por trs sistemas de neurnios: , e .No sistema , h um grupo de neurnios constantemente investido queFreud define como Eu (Ich) e que, mesmo caracterizado pela totalidadedos investimentos em , mais do que a soma de tais investimentos.

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    Freud faz referncia a uma organizao em cuja funo inibir a descargade energia na ausncia do objeto e caracterizada por vrios elementos:facilitao dos trilhamentos internos a essa organizao, investimentoconstante por uma energia endgena e distino entre uma partepermanente e outra varivel. A permanncia no Eu de um nvel deinvestimento necessariamente constante (sua parte permanente) permite-lhe inibir os processos primrios, no apenas os que levam alucinao,mas tambm os que provocariam desprazer.

    Para responder pergunta sobre como surge o Eu, Garcia-Roza(1991), em sua introduo metapsicologia freudiana, sugere que, emum primeiro momento de indiferenciao original mtico, por excelncia, teria ocorrido a experincia primria de satisfao acompanhada deprazer. Trata-se do prazer de rgo, e no do Princpio do Prazer, quesomente surgir atravs do processo de ligao (Bindung). A ligao consistena conteno do livre escoamento das excitaes, na passagem do estadode disperso das excitaes para o estado de integrao, atravs dostrilhamentos (Bahnung) e dos investimentos colaterais (Seitenbesetzung).Quando a excitao atinge um neurnio, ela tende a distribuir-se atravsdo que Freud chamou de barreiras de contato (os pontos de ligao entreos neurnios que atualmente designamos por sinapses), que oferecemmenor resistncia, em direo descarga motora. a energia livre. Porm,se ocorre o investimento simultneo em um neurnio vizinho, pelasimultaneidade do investimento e pela proximidade entre os neurnios,cria-se uma espcie de rede neural que altera o curso do investimento. aenergia ligada atravs do investimento colateral. Tais ligaes vo constituirum primeiro esboo de organizao que Freud chamou de Eu.

    Garcia-Roza (1991) se refere a essas primeiras ligaes comosnteses passivas, pois elas apenas impedem ou limitam o livre escoamentodas excitaes. Apenas em um segundo momento, elas se tornam sntesesativas atravs das repeties dos trilhamentos que, embora sejamrepeties, sempre apresentam diferenas relativamente ao percurso que

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    est sendo repetido. Assim, as repeties diferenciais ou as snteses ativasvo ocorrer sobre excitaes que j foram acompanhadas de prazer ou dedor. O Eu, como organizao neural, justamente o responsvel pelarepetio de experincias anteriores de satisfao (prazer) ou pela inibioda descarga (dor).

    Porm, Garcia-Roza (1991) tambm explica que so momentose lugares diferentes do sistema que correspondem ao Eu resultante dassnteses passivas (primeiras ligaes) e ao Eu resultante das snteses ativas(repeties). Freud subdivide o sistema em dois: ncleo e pallium.Inicialmente, o Eu consiste no conjunto dos investimentos dos neurniosno sistema ncleo e que se esfora em descarregar as excitaes atravsde alteraes internas. Ou seja, o caminho em direo ao alvio motorproduz apenas modificaes internas, como o choro do beb, a agitaomotora etc. Como o mundo externo no foi alterado desse modo, oresultado que o alvio da tenso no ocorre realmente, pois a estimulaoendgena persiste, uma vez que no foi oferecido o objeto adequado parafazer cessar o estado de necessidade na fonte corporal.

    Esse Eu originrio corresponde ao que, em 1915 (Freud, 1915/1994), chamar de Eu-real (real-Ich). Somente depois, o Eu se amplia epassa a exercer a funo de inibio, atravs dos signos de qualidadeenviados por outro sistema neurnico, o sistema , que lhe permitirodistinguir a lembrana (imagem do objeto de satisfao) da percepo(presena real do objeto de satisfao). A partir da, esse Eu ampliadopassa a abranger tambm o sistema pallium e a ter uma funo reguladorado sistema como um todo, permitindo os processos secundrios.

    Essa posio de regulao interna e de mediao entre o aparatoe a realidade, distinguindo memria de percepo, so elementos que,apesar do deslizamento da linguagem neurolgica para a psicolgica, Freudmanter como centrais em sua concepo de Eu. Tambm permanecerimportante a ideia de que o Eu se forma como uma organizao queintegra snteses passivas (inscries de sensaes corporais de prazer oude dor) e snteses ativas (repeties diferenciais e inibies).

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    Os anos subsequentes a tais formulaes iniciais (1900-1915),em vez de esclarec-las, foram marcados por hesitaes e reviravoltas.Laplanche & Pontalis (1986) destacam alguns aspectos importantes. Coma elaborao da 1 tpica o famoso esquema pente, formado pelossistemas de memria Inconsciente e Pr-consciente/Consciente , o Euser praticamente absorvido pelo sistema Pr-consciente/Consciente,sobretudo no que se refere percepo e motilidade. Tambm seracentuado seu papel de representante das normas da realidaderelativamente s pulses sexuais: no conflito psquico, o Eu a instnciaque se ope ao desejo (Freud, 1900/1994). Essa oposio assume a formade uma luta entre duas foras: pulses sexuais versus pulses do eu ou deautoconservao (Freud, 1909/1994). Nota-se que, ao lado darepresentao das normas sociais, atribuda explicitamente ao Eu a funode conservao da vida do indivduo atravs da busca da satisfao dasnecessidades corporais bsicas, como a fome.

    Contudo, em 1914, uma nova concepo emerge, dandoprofunda complexidade questo: o Eu tambm objeto de amor (Freud,1914/1994). Tal concepo marcar o momento seguinte da teorizaofreudiana, produzindo uma verdadeira reviravolta pela elaborao de trsnoes interligadas: o narcisismo primrio (estruturante) e secundrio(defesa), a identificao como constitutiva do Eu e a diferenciao decomponentes ideais internamente ao Eu.

    Especificamente no que se refere introduo do conceito denarcisismo em 1914 (Freud, 1914/1994), observa-se a ocorrncia deenriquecimentos profundos da noo de Eu. Agora definido como umaunidade relativamente anarquia e fragmentao das pulses sexuais(caractersticas do autoerotismo), o Eu no est presente desde o incio enem se consolida atravs de uma diferenciao progressiva. Freud se referea (...) uma nova ao psquica (Freud, 1914/1994, p. 74) necessriapara a sua constituio. Essa ao psquica estaria possivelmente ligadaao momento em que o Eu se oferece como objeto de amor para a

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    sexualidade, assim como um objeto exterior. Da Freud ser levado a propora sequncia autoerotismo, narcisismo primrio, escolha de objeto. Datambm a imagem de (...) um investimento libidinal originrio do eu,cedido depois aos objetos (Freud, 1914/1994, p. 73), mas que, no fundo,persiste e para onde os investimentos podem ser novamentereconduzidos. Ou seja, o Eu no apenas um lugar de passagem da libido,mas o lugar de uma estase permanente desta. E mais: o Eu se constituipor uma carga libidinal que deve estar permanentemente investida nelepara que ele seja esta ameba com seus pseudpodos (Freud, 1914/1994,p. 73) que Freud descreve.

    Nesse mesmo perodo, a anlise dos processos em jogo namelancolia tambm participa das mudanas radicais na noo de Eu (Freud,1917/1994). A identificao com o objeto perdido, manifesta nomelanclico, revela uma diviso interna ao Eu e exige que este j no sejapensado como uma unidade no interior do psiquismo. Certas partes podemseparar-se por clivagem, compondo uma instncia crtica ou moral: umaparte do Eu ope-se outra, julgando-a criticamente e tomando-a comoobjeto. Essa diferenciao, j esboada no texto sobre o narcisismo, constituia primeira verso do que se tornaro os ideais com relao aos quais o Euser medido (ideal de Eu, Eu ideal e, posteriormente, Supereu). Com isso,o vnculo estreito entre Eu e Pr-consciente/Consciente inexoravelmentedesfeito.

    Poucos anos depois, em 1920, uma mudana no modelo deaparelho psquico consolida as reorientaes sofridas pelo conceito de Euao longo dos ltimos anos. A 2 tpica faz do Eu uma instncia, entreoutros motivos, pela necessidade de um melhor ajustamento smodalidades do conflito psquico. Se a 1 tpica tinha como refernciaprincipal os diferentes tipos de funcionamento mental processo primrioe processo secundrio , a nova tpica pe em relevo as partesintervenientes no conflito: o Eu como agente da defesa, o Supereu comosistema de interdies, e o Isso como polo pulsional. Os limites e as

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    caractersticas da tpica anterior Inconsciente, Pr-consciente/Consciente so, agora, reagrupados nas novas instncias. Especificamente a instnciado Eu passa a reunir funes e processos que, antes, se repartiam nosdiversos sistemas. A conscincia que no Projeto constitua um sistemaautnomo (o sistema ) e, em 1900, foi ligada ao sistema Pr-consciente , agora, atributo de um Eu que tambm engloba as funes do Pr-consciente. Apesar disso, o Eu passa a ser pensado como majoritariamenteinconsciente, como atestam as resistncias inconscientes encontradas naclnica (Freud, 1923/1994).

    Porm, esse alargamento da noo de Eu trouxe tambm outrasimplicaes, como a atribuio de funes diversas que ressaltam sua noreduo a ser apenas um dos polos envolvidos no conflito psquico. Agora,alm das funes de preterio, racionalizao e defesa compulsiva contraas reivindicaes pulsionais, ao Eu so atribudas funes motoras ecognitivas, tais como controle da motilidade e da percepo, prova derealidade, antecipao, ordenao temporal dos processos mentais,pensamento racional etc. Se reunirmos todas essas funes em gruposantinmicos, veremos a situao destinada ao Eu com relao s outrasinstncias e realidade: ao Eu cabe o papel de mediador que deve levarem conta exigncias contraditrias do mundo e do Isso.

    2. O mais aqum da representao: a base do Eu

    Alm de alargar a noo de Eu, a proposta da 2 tpica e,com ela, a do conceito de Isso, permitiu avanar para alm do inconscientecomposto por representaes e recalcado, que passaria pela linguagem eseria passvel de interpretao. Ao conceituar a instncia do Isso, Freudapresentou a possibilidade (assinalada na clnica) de existirem experinciasque no teriam recebido inscrio representacional e que, portanto,estariam fora de um inconsciente recalcado. Estar-se-ia, aqui, aqum dos

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    processos lingusticos, no domnio do que pode ser chamado de impressespsquicas. No foi toa que, na ltima representao grfica do modelode aparato psquico, Freud o deixou aberto em suas extremidades: a bordaperceptiva se abre para a exterioridade e, na outra borda, o Isso abertopara o corpo. Com efeito, como veremos a seguir, mesmo do corpo queo psiquismo emerge como um de seus modos de expresso. Seconsiderarmos que tal emergncia no se d de uma vez por todas, mas serenova incessantemente a cada instante, ento, a abertura do Isso para ocorpo menos uma abertura e mais um enraizamento.

    Para Freud, o psiquismo comea a se constituir a partir dasprimeiras sensaes corporais associadas a quotas de afeto prazerosas oudesprazerosas que deixaro impresses psquicas. Na famosa Carta 52(1896/1994), o metapsiclogo supe a ocorrncia de trs nveis de inscrio(Niederschrift) bsicos para a organizao do aparelho psquico:1) O primeiro registro o dos signos de percepo (Wahrnehmungzeichen)constitudos pelas impresses psquicas decorrentes da percepo(Wahrnehmungen), associados por simultaneidade e inteiramente inacessveis conscincia.2) O segundo registro o da inconscincia (Unbewusstsein), composto portraos mnmicos organizados, no mais por simultaneidade, mas,possivelmente, tambm por causalidade.3) O terceiro registro a pr-conscincia (Vorbewusstsein), ligado representao-palavra.1 Esse registro corresponderia ao nosso Eu oficial,ou seja, ao que posteriormente compor a instncia euoica.

    1 A representao-palavra relativa linguagem verbal, distinta da representao-coisa como a imagem sonora se distingue da imagem visual. No livro sobre asafasias (Freud, 1891/1996), a representao-coisa descrita como um complexoaberto de imagens, enquanto a representao-palavra aparece como um complexofechado (composto pela imagem da leitura da palavra, imagem da escrita, imagemacstica e imagem motora), que reuniria as associaes de objeto em complexo,constituindo a identidade da coisa.

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    V-se com clareza, ainda que formulado de forma rudimentar, asuposio da inscrio de algo aqum da representao e que a basesobre a qual o Eu se forma pela retranscrio de um registro para o outro.Ora, como o prprio Freud ensinou (1896/1994), no se deve supor que,ao se passar de um registro ao outro, a inscrio anterior desaparea. Aocontrrio, os trs nveis de registro coexistiriam e, do mesmo modo quenem tudo o que est no inconsciente chega necessariamente conscincia,nem tudo o que se encontra em um desses registros passar ao seguinte.

    Em 1900, no captulo VII da Interpretao dos sonhos (Freud,1900/1994), retomando o tema das inscries psquicas, Freud desenvolvea ideia de que as primeiras representaes seriam compostas por traosmnmicos das sensaes de prazer e desprazer associadas s sensaescorporais. A tendncia descarga automtica dessas sensaes corporaisdiminuiria na medida em que aumentassem as representaes disponveis.Ou seja, atravs da possibilidade crescente de associaes por contiguidadee simultaneidade, essas representaes fariam a passagem gradual doprocesso primrio, caracterstico dos processos inconscientes, para oprocesso secundrio, prprio ao Eu. Aqui, possvel uma aproximaocom a Carta 52: do registro dos signos de percepo para o registroseguinte, ainda inconsciente, e da para o terceiro registro das marcas deconscincia. Sabemos que o acesso conscincia, isto , ao plenofuncionamento do processo secundrio, somente possvel quando, aopensamento inconsciente, se associam signos lingusticos. Existiria, assim,um processo secundrio inconsciente que, em 1915, Freud chamou de Euinconsciente.

    O que as pontuaes anteriores fazem ver a constatao daexistncia de um ncleo inconsciente no Eu to importante teoricamentequanto o recalcado ou, em outras palavras, uma gradao (Andrade, 2003)que, de um lado, aponta para sua imerso no Isso e, de outro lado, conduz constituio do Supereu tambm inconsciente e resultante dainternalizao da Lei.

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    3. O Eu-corporal: duas leituras

    Dentre as formulaes sobre o Eu da 2 tpica, encontra-se anoo de Eu-corporal qual Freud dedicou poucas palavras e que recorrentemente citada em estudos sobre a questo do corpo empsicanlise. Tal noo de um Eu-corporal permite, pelo menos, duas leituraspossveis.

    A primeira se refere ao fato de que, da superfcie do corpo,originam-se as sensaes tanto exgenas quanto endgenas. Na 2a seodo O eu e o isso, atribudo conscincia o lugar de superfcie, oumelhor, a conscincia definida como funo de um sistema que,espacialmente e partindo do mundo exterior, o primeiro. Freud especifica:espacialmente no apenas no sentido da funo, mas tambm no sentidodo recorte anatmico (Freud, 1923/1994). Aps essa descrio daconscincia como interface, vem a articulao da casca e do ncleo paradesignar o Eu como o envoltrio psquico. Tal envoltrio no tem somentea funo de continente, mas desempenha o papel ativo de pr o psiquismoem contato com o mundo exterior e de recolher e transmitir informao(Anzieu, 1995). Freud (1923/1994) descreve o Eu como um disco germinalassentado sobre o ovo, envolvendo-o, mas no separado de modo taxativo,j que conflui pra baixo em sua direo.

    A descrio de como o Eu se funde com o Isso, aliada aberturana base do Isso (em direo ao corpo) desenhada em 1932 (Freud, 1932/1994), nos lembram de um dos princpios fundamentais da psicanlise,qual seja, o de que tudo o que psquico est em constante referncia experincia corporal. Assim, ao pretender dar conta do modo como o Euse destaca do Isso, Freud precisa que esse envoltrio psquico emerjaapoiado no envoltrio corporal. A experincia do tocar explicitamentecitada e a referncia superfcie corporal remete pele. Freud nos dizque, paralelamente influncia do sistema percepo-conscincia, o corpoprprio desempenha papel essencial, principalmente, sua superfcie, como

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    um lugar do qual pode partir simultaneamente percepes internas eexternas. visto como um outro objeto, mas proporciona ao tato duasclasses de sensaes, uma das quais pode equivaler a uma percepointerna (Freud, 1923/1994, p. 27). Da a afirmao de que o Eu fundamentalmente uma essncia-corpo; no s uma essncia-superfcie,mas, ele mesmo a projeo mental de uma superfcie (Freud, 1923/1994, p. 27).

    Com base em afirmaes como essas, Anzieu (1995) props oconceito de Eu-pele, correspondendo ao Eu em seu estado original. Paraesse autor, o registro ttil possui uma caracterstica distintiva relativamentea todos os outros registros sensoriais que o situa tanto na origem dopsiquismo como lhe permite fornecer permanentemente para o psquicouma espcie de fundo mental, uma tela de fundo sobre a qual os contedospsquicos se inscrevem como figuras ou, ainda, o envoltrio-continenteque permite ao aparelho psquico abrigar contedos. Anzieu (1995) vaialm e afirma que o desdobramento inerente s sensaes tteis apercepo simultnea que o tato oferece de um externo e de um interno prepara o desdobramento reflexivo do Eu consciente apoiado sobre aexperincia ttil. Segundo a sistematizao realizada pelo autor (Anzieu,1995):1) O Eu apresenta uma estrutura dupla: a camada superficial funcionacomo paraexcitao, filtrando o que chega do mundo externo; a camadaabaixo se dedica recepo sensorial das excitaes exgenas e inscrioinicial de seus traos.2) Internamente, o Eu apresenta uma diferenciao entre a percepo(consciente) como superfcie vigilante e sensvel, mas incapaz de conservarregistros do que nela ocorre, e a memria (pr-consciente) que registra econserva as inscries.3) O Eu investido endogenamente (pulsionalmente) pelo Isso: talinvestimento peridico ilumina e acende a conscincia, fornecendo, porsua descontinuidade, uma representao primria do tempo.

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    Assoun (1993) destaca que tal analogia corporal atua em doisplanos distintos: o corpo intervm na gnese do Eu e o Eu estruturadocomo um corpo, ao mesmo tempo limite e extenso. Desempenhandofundamentalmente um papel relacional, o Eu opera a relao entre o forae o dentro e desse modo que uma autorrepresentao se constitui porum efeito projetivo, mais do que reflexivo. Por isso, Assoun (1993) sublinhaser o Eu, em Freud, menos a aparelhagem mental do corpo do que asubjetivao da superfcie corporal. Trocando em midos, o Eu menosproduto de uma experincia corporal do que o evento da emergncia docorpo como prprio.

    E mais: definido como uma diferenciao no Isso pelo contatocom o mundo externo, o Eu se constitui gradativamente a partir deregistros das sensaes de prazer e desprazer ligadas s sensaes corporais.Vimos que tais registros de sensaes no recebero necessariamente umainscrio como representao, podendo permanecer como signos depercepo. Portanto, a afirmao de que a maior parte do Eu inconscientese refere no somente s representaes inconscientes que o compem,mas tambm a esses signos de percepo aqum do registrorepresentacional. Talvez, por isso, Freud afirme a precedncia dos resduosauditivos e a importncia dos resduos mnmicos visuais (coisas percebidasvisualmente) na construo de um pensar figurativo, mais prximo dosprocessos inconscientes e anterior ao pensar em palavras.

    Quanto segunda leitura possvel do Eu-corporal, ela deriva daideia de que o Eu se diferencia pelo contato do Isso com a exterioridade.Trata-se do entendimento do Eu como uma espcie de amlgama entre oque o indivduo traz vida e o que a vida lhe traz, entre o biolgico e ocultural. Em 1937, Freud apresenta a ideia de que o Eu traria tendnciasinatas em funo de sua indiferenciao original relativamente ao Isso, aserem atualizadas ou no a partir do encontro com o ambiente: (...)mesmo antes de o ego surgir, as linhas de desenvolvimento, tendncias ereaes que posteriormente apresentar j esto estabelecidas para ele

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    (Freud, 1937/1994, p. 275). A relao do Eu com a hereditariedade expressa em ainda outra passagem na qual reconhecido que: [...] aspropriedades do ego com que nos defrontamos sob a forma de resistnciaspodem ser tanto determinadas pela hereditariedade quanto adquiridasem lutas defensivas [...] (Freud, 1937/1994, p. 275).

    Mas, se o Eu se diferencia do Isso pelo contato com o ambiente,em seu interior se forma um precipitado, o Supereu. Este se forma pelainternalizao da figura parental, que passar a representar, para o Eu, alei da qual os pais foram veculo durante a infncia. Assim como astendncias herdadas, a aquisio cultural exerce forte presso sobre o Eu,o qual seria, ento, uma espcie de composto que abarcaria a ao dospolos biolgico e cultural (Andrade, 2003), tornando-os verdadeiramenteindiscernveis.

    Composto a partir de sensaes corporais no necessariamenteinscritas em representaes, constitudo em sua origem como a projeomental da superfcie corporal e tematizado com base em sua dupladeterminao biolgica e cultural, o Eu em Freud est enraizado no corpo,ou melhor, dele emerge gradativamente uma projeo mental em diversosnveis: 1) sensaes provenientes do corpo, 2) organizao dessas sensaescomo a imagem mental da superfcie corporal e, finalmente, 3) conjuntode representaes psquicas mais ou menos estveis, atravs das quais osujeito regula sua relao consigo mesmo e com o mundo. Acreditamosserem esses os pontos principais que permitem, se no uma aproximao,ao menos uma consonncia entre os conceitos de Eu em Freud e de self emDamasio.

    4. O corpo como referncia de base: o protosself ou self neural

    Em seus livros, Antnio Damasio faz referncias constantes, emboradispersas, obra de Freud e a seu pioneirismo (2000, 2004, 2006). Taladmirao explcita abre espao para investigarmos no apenas o uso que ele

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    faz do termo inconsciente, mas, sobretudo, se a definio de self 2 queele prope encontra ressonncia no conceito de Eu freudiano, tal comoexposto anteriormente.

    Damasio (2000) explica que o self que nos mais familiar esobre o qual versam os pesquisadores, psiclogos e filsofos tambm omais sofisticado e mais complexo, apresentando-se como j lingustico ecaracterstico exclusivamente do crebro humano. Trata-se do que Damasiodenomina de self autobiogrfico, entretecido por uma traduo verbalirrefrevel (2000, p. 239) que prpria da natureza do ser humano(2000, p. 239). Essa marca estaria na origem da concepo mais correnteda conscincia como eminentemente lingustica e, portanto, humana.

    Porm, essa concepo considerada pelo autor como o piceda complexidade do tema, sendo preciso iniciar seu estudo pelo que seriamenos complexo, a saber, as bases da produo da conscincia, ou, nostermos de Damasio, a implementao do self neural ou protosself a partirdo mapeamento, a todo instante, dos sinais do corpo. Para um melhorentendimento das propostas desse autor, preciso ento comear por seu

    2 Na primeira pgina do livro de Damasio intitulado O mistrio da conscincia(2000), uma nota do revisor assinala que o prprio autor sugeriu que se mantivesseno texto a palavra self. Nas ltimas pginas do captulo 7 desse mesmo livro,Damasio desenvolve uma reflexo sobre como as lnguas inglesa e alem nomeiamos fenmenos da conscincia diferentemente das lnguas neolatinas, como o francse o portugus. Estas no dispem de palavras para diferenciar, por exemplo,conscincia no sentido de estado mental, de conscincia moral. J na lngua inglesaexistem os termos consciousness e conscience. Tambm as lnguas neolatinas no possuemuma traduo de self que seja mais precisa e mais adequada do que os pronomespessoais eu e mim. A traduo portuguesa do livro manteve o pronome reflexivomim/ si, assim como o subttulo da traduo brasileira (Do corpo e das emoesao conhecimento de si). No entanto, no substituiu, tanto em O erro de Descartes(1995) quanto em O mistrio da conscincia, o termo self. Portanto, a questo datraduo da palavra self permanece em aberto, assim como a sua substituio pelopronome pessoal eu. Nesse contexto, torna-se ainda mais problemtica a meratransposio para os termos eu ou ego, j aqui na acepo de uma das instnciaspsquicas postuladas pela Segunda Tpica psicanaltica. Por outro lado, acreditamosexistirem aproximaes possveis entre self e eu.

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    primeiro livro, O erro de Descartes (1995), no qual ele desenvolve suahiptese do marcador-somtico3 ou, em resumo, a concepo de que asemoes e os sentimentos so, se no a base, pelo menos parte constitutivae fundamental para o funcionamento da razo e para a tomada de decises.Dito de outro modo, o corpo e os sinais corporais relativos s emoes soreferncia bsica para o entendimento do que seria a mente. Para defenderessa ideia, Damasio (1995) utiliza vrios exemplos de indivduos que, porfora de leses sofridas em determinadas regies cerebrais, no s mudamsuas caractersticas de personalidade, como tambm perdem a capacidadede tomar decises, das mais simples s mais complexas. O espantoso que, embora suas capacidades intelectuais tais como ateno, percepo,memria, linguagem estejam preservadas, esses indivduos no conseguemutiliz-las adequadamente. E, mais grave, os prejuzos maquinaria dassuas decises afetam suas capacidades de sociabilidade: tornam-se frios,distantes, sem ressonncia emocional diante de situaes que afetariamprofundamente indivduos sem tais leses.4

    3 O marcador-somtico seriam as sensaes corporais (emoes e sentimentos) que,experimentadas durante as aes, ficam associadas, (...) por via da aprendizagem,a certos tipos de resultados futuros ligados a determinados cenrios (Damasio,1995, p. 186). Assim, o marcador-somtico pode funcionar como uma campainhade alarme, se o resultado futuro for perigoso, ou como um incentivo, se o resultadofuturo parecer agradvel.

    4 Porm, se Damasio (1995) aponta a relao entre certas regies cerebrais e processosde raciocnio e deciso, isso no significa que esteja propondo uma nova frenologia.Pelo contrrio, o autor defende dois temas: 1) o primeiro consiste em demonstrarque cada uma dessas regies , em si mesma, de extrema complexidade e 2) osegundo, crucial para a recusa da frenologia, consiste em defender que impossvelencontrar no crebro uma centralizao de funes localizada numa nica estrutura.Nosso sentimento de termos uma experincia integrada de ns mesmos tema queser desenvolvido em O mistrio da conscincia (1995) decorre do funcionamentosincronizado das vrias estruturas cerebrais. Podem estar anatomicamente separadas,mas se estiverem no que Damasio chama de mesma janela temporal (1995, p.257), teremos a impresso de um todo integrado. E essa caracterstica que nos da sensao de que existiria um lugar ou uma estrutura cerebral responsvel por essaexperincia. A experincia de si, caracterstica da mente humana, decorreria, paraDamasio, dessa sincronizao.

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    O que o autor pretende demonstrar com isso a relao estruturalentre a perda da capacidade de tomada de deciso e uma diminuioaprecivel das emoes e dos sentimentos. A emoo derivada do modocomo o corpo afetado e reage ao ambiente e ao que se passa nele mesmo , na proposta de Damasio, fundamental ao pleno funcionamento daracionalidade. A ideia que rege sua argumentao simples: o corpo referncia fundamental para o entendimento do que so o sentimento e aexperincia de si que Freud chama de eu e que o neurocientista chama deself, guardadas as devidas diferenas entre os dois.

    Para o neurocientista (Damasio, 1995), se a mente resulta dofuncionamento sincronizado das vrias regies cerebrais, ela tambmdepende da interao entre o crebro e o corpo do qual o crebro parte.Inmeros circuitos bioqumicos e neurais os ligam (crebro e resto docorpo), reciprocamente, e os transformam no que seria o organismo: umatotalidade integrada estrutural e funcionalmente em relao constantecom o ambiente. Aqui, Damasio (1995) reafirma sua defesa da concepoevolucionria ao afirmar que no podemos separar organismo e ambiente,pois funcionam de maneira integrada com a finalidade precpua dasobrevivncia do organismo. Mas, se existem referncias biolgicaspredefinidas no decorrer do processo de evoluo da espcie que comandamas regulaes fundamentais sobrevivncia do organismo, existe tambmum grau de plasticidade que confere ao organismo a possibilidade maiorou menor, dependendo do tipo de organismo de adaptar-se s pressesdo ambiente. Cria-se, assim, uma relao dinmica entre as experinciasindividuais e as circunstncias do ambiente, no contexto dosconstrangimentos biolgicos inatos que demarcam os parmetros desobrevivncia do organismo. Tais constrangimentos envolvem a circuitarianeural mais antiga do crebro tronco cerebral e sistema lmbico ,responsvel pela regulao biolgica mantenedora da vida.

    No caso dos seres humanos, a complexidade da relao entreesses fatores cresce exponencialmente, tanto mais no seja pela

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    complexidade da prpria estrutura cerebral constituda no seu processoevolucionrio. Porm, a experincia humana adquirida no contexto desuas predefinies biolgicas, as quais no podem ser desrespeitadas, sobpena do rompimento da homeostasia5 do organismo que pode lev-lo morte.6 O neurocientista considera essa homeostasia a chave para abiologia da conscincia (2000, p. 60). Ela , basicamente, o conjuntodos processos fisiolgicos em geral no conscientes fundamentais paraa manuteno de estados internos estveis dentro do organismo. Anovidade que Damasio inclui as emoes e os sentimentos, compondo oque ele denomina leverage/alavancagem para a sobrevivncia (1995, p.265). Dito de outro modo, a estabilidade relativa do estado interno docorpo , assim, mantida por esse conjunto de estruturas e processoscerebrais no conscientes que funcionam de maneira sincronizada e queso responsveis pela manuteno dos parmetros biolgicos que garantema sustentao da vida.

    Esse conjunto de processos constri o que Damasio (1995) chamade representaes primordiais do corpo em ao, ou seja, representaescontinuamente atualizadas do estado do corpo. Nesses estados sucessivosdo organismo, neuralmente representados a cada momento em mltiplosmapas conectados, estaria ancorado o que os neurocientistas chamam deprotosself ou self neural. O protosself emerge, portanto, do conjunto depadres neurais estveis que mapeia continuamente o estado do corpoem todas as suas dimenses numa espcie de mtrica que serve de base atodas as outras representaes. Damasio (1995 e 2000) enfatiza que oprotosself no inclui a percepo, nem a conscincia, nem a linguagem.

    5 Cabe ressaltar que Damasio prefere o termo homeodinmica, proposto por StevenRose (1999), em vez de homeostase, na medida em que nossos termostatos sofeitos de tecido vivo, e no de metal ou de silcio (p. 184).

    6 Seriam essas as exigncias da vida, propostas por Freud no Projeto (1895/1994)?Embora no seja esse o objeto de nossa investigao, fica aqui a indicao de maisuma possvel convergncia entre os dois autores.

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    O protosself no sabe do organismo: ele estruturalmente no conscienteou, se preferimos, inconsciente.7

    As mudanas no protosself, causadas pela percepo de imagens,derivam continuamente do mapeamento cerebral da relao entre oorganismo e o objeto8 (ou o ambiente). Porm, alm do objeto gerardeterminado padro neural, os organismos mais complexos e aindamais os humanos engendram, concomitantemente ao padro neural doobjeto, padres mentais (imagens) para esse objeto. Eis como Damasio(1995 e 2000) acrescenta sua proposta de que o crebro tambm fariaemergir um sentido do self no ato de conhecer. Isto , alm do protosself,engendrado pelo mapeamento cerebral dos estados internos do organismoe do prprio crebro na relao constante com o ambiente, haveria tambmum sentimento de self inerentemente implicado em cada um dos estadosmentais: h um self ao qual essas imagens pertencem ou, em outraspalavras, h um self presente em cada uma das imagens engendradas.

    que, para o neurocientista, a conscincia no surge j comoracionalidade, mas como sentimento: a relao entre um organismo e umobjeto gera imagens que no somente representam estados corporais emconstante mudana, como tambm compem uma emoo. Se emoesso o conjunto de reaes corporais e orgnicas do organismo num dadomomento, sentimentos so o resultado da percepo aqui e agora dessasmudanas na paisagem corporal, juntamente com a comparao compadres anteriores e a valorao destes para o organismo. Noutros termos,as emoes e os sentimentos dependem de dois processos bsicos: 1) aimagem de um determinado estado do corpo, justaposto ao conjunto de

    7 Damasio (2000) entende o inconsciente psicanaltico como aquele que se refere memria autobiogrfica caracterstica da conscincia ampliada, relacionando-seindiretamente com todos os outros processos que lhe permanecem desconhecidos nesse sentido, inconscientes.

    8 Objeto, aqui, a designao genrica para qualquer padro neural que afete ocrebro; pode ser qualquer circunstncia uma msica, um rosto, uma dor emalgum lugar do corpo.

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    imagens que o desencadearam e lhe atriburam um valor, positivo ounegativo; e 2) um determinado estilo e nvel de eficincia do processocognitivo que acompanha os acontecimentos anteriores, mas que funcionaparalelamente a eles.

    5. O self central e o self autobiogrfico

    Vimos como o precursor biolgico do self o self neural ouprotosself viabilizado por um complexo sistema neural que cria umarepresentao de primeira ordem dos estados corporais na interao como ambiente. Paralelamente, so gerados mapas sensoriais que representamos objetos, sejam esses objetos materiais ou imagens mentais, e cujainterao necessariamente altera o estado atual do organismo. Essaargumentao leva afirmao de Damasio (2000) de que a base para umself consciente o sentimento que surge quando o organismo representaum protosself inconsciente no processo de ser modificado pelos objetos. quando ocorre um mapeamento de segunda ordem, em certas regiescerebrais, de como o protosself foi alterado. Damasio o denomina selfcentral, constitudo por um tipo de conscincia, a conscincia central:

    Ela o conhecimento que se materializa quando algum se v diante de umobjeto, construindo um padro neural para ele e descobrindo automaticamenteque a imagem do objeto agora realada formada de sua perspectiva, que elalhe pertence e que possvel at mesmo atuar sobre ela. Chega-se a esseconhecimento, ou a essa descoberta, como prefiro dizer, instantaneamente: [...]existe a imagem da coisa e, logo em seguida, o senso de que essa imagem lhepertence. (Damasio, 2000, p. 167)

    O self central seria ento o relato de segunda ordem, ainda noverbal, imagtico, das alteraes sofridas pelo corpo na interao com osobjetos, sejam eles encontrados, recordados ou imaginados. Como o mundo

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    continuamente nos apresenta objetos que provocam transformaes(mnimas que sejam) no protosself e que so captadas como sentimentospelo self central, temos a sensao de que ele contnuo no tempo, embora,tal como o protosself, esteja sendo refeito a todo instante. Damasio (1995e 2000) compara essa concepo de conscincia central e de self central descrio da conscincia proposta por William James: transitria,provisria, em constante transformao e, no entanto, nos dando aimpresso de continuidade.

    importante ressaltar que, para Damasio (2000), cada estadocorporal relacionado a um sentimento representado nos centrossomatossensoriais como uma combinao nica e singular das atividadesneuronais. Assim, cada um de ns possui um mapa pessoal dossentimentos (2000). Quando experimentamos um sentimento, umdeterminado padro de modificaes corporais e de seus parmetrosfisiolgicos fica gravado num conjunto de neurnios do crtexsomatossensorial. Essa combinao idiossincrtica e singular memorizadainconscientemente. O registro desse mapa pode ser reativado a partir,por exemplo, de uma lembrana relacionada ao acontecimento que lhedeu origem.

    As estruturas que sustentam o protosself e a construo daconscincia central e do self central (os mapas de segunda ordem) somuito antigas em termos evolutivos e, ao mesmo tempo, fundamentaispara a manuteno das seguintes funes:

    [...] regulao da homeostase e sinalizao da estrutura e do estado corporal,incluindo o processamento de sinais relacionados a dor, prazer e impulsos;participao nos processos de emoo e sentimento; participao nos processosde ateno; participao nos processos de viglia e sono; participao no processode aprendizado. (Damasio, 2000, p. 346)

    Assim, temos integrados os mecanismos da emoo, da atenoe da regulao dos estados corporais. E o self central, constitudo a partir

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    do protosself e viabilizado pela conscincia central, que garante a regulaoda vida, e no [...] aquisies neurais modernas do neocrtex, aquelasque permitem a percepo refinada, a linguagem e o raciocnio superior(2000, p. 349).

    Assim como Freud, Damasio (1995) assinala ainda a importncia,para ele crucial, da representao da pele para o estabelecimento dafronteira do corpo, pois esta tanto est voltada para o meio externo quantopara o meio interno do organismo. Existe um mapa dinmico doorganismo ancorado no esquema do corpo e na delimitao do corpo (p.238), distribudo por vrias reas cerebrais que atuam de maneirasincronizada. Alm disso, os sinais sensoriais vindos do exterior so duplosno seguinte sentido: por exemplo, quando se v algo, sente-se tambmque se est vendo algo com seus prprios olhos. O mapa neural assimformado dinmico porque a paisagem do corpo est em constantemudana, dentro dos padres fisiolgicos da espcie.

    Em termos sistemticos, Damasio (2000) identifica quatrocomponentes da conscincia: a conscincia central, a conscincia ampliada,a memria autobiogrfica (o registro organizado dos principais aspectosde nossa biografia) e as disposies (registros que esto em nossa memriae que so ativados por uma experincia similar ou a ela relacionada). Aconscincia central basicamente nosso senso de ns mesmos e das coisasque acontecem ao nosso redor, mas que no envolve um nvel de conscincia(awareness) propriamente dito. Ela seletiva, contnua no estado de viglia,pessoal e restrita ao aqui e agora, semelhante definio jamesiana deconscincia.

    J a conscincia ampliada, ancorada na conscincia central e,como o nome sugere, mais ampla, nos fornece uma conscincia do fato deque estamos vivos e atuando, de que nos lembramos do passado e de quepodemos projetar um futuro. Ento, o self (pelo qual esse panorama relativoao passado vivido e ao futuro antevisto ou projetado) mais robusto doque os selves neural e central: ele autobiogrfico, pois permite integrar

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    numa narrativa as imagens formadas a todo momento, dando a sensaode continuidade no tempo e no espao. Se, na conscincia central, o sentidodo self surge no sentimento sutil e fugaz de conhecer, construdo de novoa cada pulso, o self autobiogrfico depende da reativao e da exibioconsistentes de conjuntos selecionados de memrias autobiogrficas.

    6. Freud e Damasio: ressonncias

    Em resumo, vimos que o protosself precede o self central (a baseda conscincia central) e o self autobiogrfico (base da conscinciaampliada). Como tal, o protosself no apresenta capacidade de percepo,no conhece e nem sabe que sabe: no seria ainda um sujeito, emboraseja j a expresso da singularidade do corpo e do fato de que o corpofornece a base para a emergncia do self consciente e autobiogrfico. Eisaqui a primeira e mais evidente ressonncia entre as teorias de Freud eDamasio: assim como o neurocientista, tambm o metapsiclogo supunhaser o corpo a base para construo da experincia consciente de si o eu-corporal inicial totalmente inconsciente o fundamento psquico daorganizao egoica autobiogrfica. Cabe observar que, para Damasio, oinconsciente psicanaltico se basearia na memria autobiogrfica naconscincia ampliada, portanto. Nesse sentido, este autor entende oconceito de inconsciente psicanaltico como uma espcie de ponta doiceberg de todos os processos no conscientes que nos constituem.

    No entanto, Damasio afirma que os trs selves, apesar de teremdiferentes bases neurofisiolgicas, atuam em geral de maneira integrada.E d um exemplo interessante dessa integrao numa entrevista dada em2000, ao fazer a pergunta: o que percebe uma pessoa assentada, tomandoch, quando este lhe cai quente sobre o colo? (Concar, 2000). Essa situaoexemplifica como Damasio prope uma integrao inextricvel dos trsregistros da experincia de si: os selves se constroem em continuidade e

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    em complementaridade uns com os outros. O self central ancora-se noprotosself, que d o sentido do organismo e o registra em tempo real,gerando uma autopercepo no aqui e agora. O self autobiogrfico, porsua vez, capta e ressitua essa autopercepo numa continuidade temporal no mais no aqui e agora, mas ligando passado, presente e futuro. Isto, apresenta-se em sua pujana a memria do passado e a possibilidade deconstruir cenrios futuros e de record-los como guia da ao. Temos aquium sujeito com a capacidade lingustica de recordar suas experincias,seus sentimentos e suas concepes a respeito de si e do mundo que ocerca, prximo, embora distinto em alguns aspectos, do sujeito egoicoproposto por Freud.

    O quadro comparativo a seguir pode nos auxiliar a entrever asproximidades entre o conceito de Eu nos dois autores, bem como atentarpara suas diferenas:

    Self autobiogrfico:

    Registro organizado e verbal deexperincias passadas de um indivduo,

    projeo no futuro e guia da ao.

    Freud Damasio

    eu-corporal:

    Projeo mental da superfciecorporal derivada de sensaes

    endgenas e exgenas.

    Protosself:

    Conjunto inconsciente de representaesdas numerosas dimenses do estadocorrente do corpo pelas modificaes

    internas e pelo contato com o exterior.

    Memria (pr-consciente) queregistra e conserva as inscries

    das sensaes.

    Self central:

    Referncia transitria (constantementerefeita), mas consciente ao organismo

    individual em que os eventos estoocorrendo.

    eu:

    Conjunto de representaespsquicas mais ou menos estveis

    atravs do qual o sujeito regula suarelao consigo e com o mundo.

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    V-se facilmente como o eu-corporal freudiano e o protosself/self central em Damasio apresentam ressonncias, j que ambos descrevemum conjunto de representaes, atualizado incessantemente, derivadasdas sensaes provenientes do corpo. interessante notar que, nos doisautores, a pele ocupa um lugar importante. Para Freud, o registro ttil (ea percepo simultaneamente externa e interna que a pele permite)destaca-se dentre todos os outros registros sensoriais, j que fornece umaespcie de contorno inicial, melhor dizendo, um pano de fundo sobre oqual os contedos psquicos sero inscritos. De modo semelhante, Damasiotambm d destaque para a pele que, por estar voltada para o interior doorganismo e para o meio exterior, crucial para a representao da fronteirado corpo, atuando como o que permite a passagem do protosself para oself central.

    J com relao ao eu final freudiano e ao self autobiogrficodamasiano, as semelhanas referem-se ao fato de que ambos supem ouso pleno da linguagem em sua constituio e, consequentemente, aocorrncia de uma memria autobiogrfica representacional. Contudo,se o self central de Damasio inteiramente consciente, o eu final freudiano definido como sendo, em sua maior parte, inconsciente, j que responsvel por operar as defesas.

    Evidentemente, os campos tericos freudiano e damasiano soepistemologicamente distintos, por isso no se trata aqui de propor umacomposio terica. Pretendemos apenas apontar aproximaes eressonncias tericas possveis entre os campos em questo, menos paraengendrar uma hibridao entre eles (o que traria impassesepistemolgicos) e mais para facilitar uma interlocuo, cujo objetivo permitir a formulao de novas questes e, com isso, enriquecer os conceitosem jogo. Acreditamos que os conceitos de eu em Freud e de self emDamasio, pelas ressonncias que apresentam, podem ser um bom comeo.

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    Enviado em 10/01/2009Aprovado em 13/03/2009