eu nÃo gosto de ateus

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1 EU NÃO GOSTO DE ATEUS

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EU NÃO GOSTO DE ATEUS é o primeiro livro de ficção do autor Melik Silva Brün.

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Page 1: EU NÃO GOSTO DE ATEUS

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EU NÃO GOSTO DE ATEUS

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EU NÃO GOSTO DE ATEUS

Brasília, Distrito Federal

2013

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Copyright © Melik Silva Brün, 2013

Capa: Hildebrando Ribeiro da Silva Segundo

Imagem da capa: Mosaico de Friedrich Nietzsche. Por Hildebrando

Ribeiro da Silva Segundo

Revisão e organização final: Giullyane Lemes Bittencourt

2013

Todos os direitos autorais reservados a Hildebrando Ribeiro da Silva

Segundo.

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Para a amorosa Giullyane, pelo eterno incentivo.

Para os pequerruchos amados Mateus e Davi.

Para meus pais, pelos valores inestimáveis.

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AGRADECIMENTOS

Ao Beto Avlis pela elaboração artística extraordinária da capa e

contracapa. Agradeço pela dedicação e paciência.

Aos amigos que acreditaram, mesmo antes de acontecer: Thais,

Mônica, Lúcia, Andréa, Rebecka, Renan, Alexandre, Maria José,

Nilza, Marcos, Grazielle, Diego, Adriana, Jordana, Leonardo,

Bruno, Adilson, Josivaldo, Poliana, Andréia, Ari, Kamyla, Maria

Tereza, Tatiana, Aline, Kelly, Érika, Paula, Izabel, Amanda,

Albanesa, Luiz Henrique, Fátima, Weslei, Marilene, Fernanda,

Alessandra, Ana Luiza, Adão, Francisco, Marilda, Altemar,

Rokmenglhe, Celina, Patrícia, Cau, Nani, Pedro, Ronaldo,

Dagoberto, Marina, Mariane, Lélia, Rita, Salete, Ivana, Marcos

Luís, Ailton, Lourival, Cláudio, Tânia, Luiza, Ana Paula, André,

Daniel, Nara, Nanci, Felipe, Bayron, Cristiano, Iris, Kátia,

Vânia, Sebastião, Harrisandra, Carlelia, Elio, Laila, Deyverson,

Elizabeth, Vera Lúcia, Carina, Angélica, Jairo, Antônio José,

Israel, Cleidison, Jandir, Rodrigo, Antônia, Rejane, Dantas,

Luciana, Simone, Sérgio, Carla, Jória, Leila, Cláudia, Taís,

Josânia, Hyrlando, Rodolpho, Sônia, Ayrton, Angélica, Ailton...

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“E a minha mãe diz:

„- Paulo acorda, pensa no futuro que isso é ilusão,

Os próprio preto não tá nem aí com isso não,

Olha o tanto que eu sofri, que eu sou, o que eu fui,

A inveja mata um, tem muita gente ruim‟.

Pô, mãe, não fala assim que eu nem durmo,

Meu amor pela senhora já não cabe em Saturno.

Dinheiro é bom, quero sim, se essa é a pergunta,

Mas a dona Ana fez de mim um homem e não uma puta!”

Jesus Chorou

Racionais Mc’s

“Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens

em covardes”.

Abraham Lincoln

“Vim pra sabotar seu raciocínio

Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo".

Capítulo 4, Versículo 3

Racionais Mc’s

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...

Page 9: EU NÃO GOSTO DE ATEUS

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OUÇA A CANÇÃO!

Olá, já começou a leitura? Estamos em sintonia? Escutou a

curta nota de guitarra? Pois é, nossa música começou, não nossa

eu e você, não me entenda mal, afinal estamos sendo

apresentados agora. Na realidade, eu quis dizer, eu e ela.

- Quem é ela?

Ops, vejo que você é bem curioso, porém isso não é

problema algum, também sou. A respeito dela, tudo será

revelado no momento apropriado. Agora, apenas ouça as

batidas, secas, marcantes e ritmadas do mais extraordinário

baterista que já pisou na Terra. Ouça! São batidas cadenciadas

como uma cavalaria marchando lentamente, em cortante

inverno, voltando do combate. Esta música marcou o nosso

encontro após aquela louca vibe na Space, em Ibiza. Fomos a pé

até a praia, sentamos na areia, era manhã, o alvorecer extasiante

e pomposo nos deixou relaxados. Então, ela pediu que eu

deitasse na areia, deitou-se ao meu lado e começou a teclar em

seu Iphone. De repente, começou a tocar esta música que

estamos ouvindo agora. Eu já conhecia a canção, mas naquele

cenário e com aquela companhia, tornou-se para sempre

inesquecível. Ouça!

“Working from seven to eleven every night,

It really makes life a drag, I don't think that's right.

I've really been the best, the best of fools, I did what I could,

yeah

Cause I love you, baby, How I love you, darling, How I love you,

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baby,

How I love you, girl, little girl.

But baby, Since I've Been Loving You, yeah I'm about to lose my

worried mind, oh, yeah.”

Então, agora já sabe de quem estou falando? É claro! Vá ao

YouTube e veja ou simplesmente ouça, mas se ainda não sabe, o

nome da música é Since I've Been Loving You, do eterno Led

Zeppelin.

Vamos, entre no clima comigo, afinal contarei uma longa

história e é necessário que você esteja conectado, entendeu?

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MEU NOME? AL PACINO FREITAS ALMEIDA

O que tenho para contar é muito louco e também polêmico.

Vivi isto nos últimos dias e foi surpreendente. Você ficará

certamente boquiaberto sobre algo que, sem nenhum exagero,

qualquer ser humano jamais viveu antes.

Presunçoso você, não acha escritor novato?

Não é presunção! Só para que você tenha ideia, fiquei na

maior dúvida se deveria revelar ao mundo tais acontecimentos,

correndo o risco de ser tachado de louco, ou se deixava apenas

na minha memória. E você, o que faria se passasse por uma

experiência muito surreal? Revelaria ou ocultaria? Desculpe-

me! Como é que você poderia responder se não sabe do que se

trata. Sabe, estou muito ansioso para lhe contar. Ah! Mais uma

coisa antes de começar. Após terminar de ler este meu livro, e eu

espero que você termine, dê uma palavrinha sobre ele para seu

pai, mãe, irmão, sogra ou vizinho, vale até conversar com o

cachorro. Dê esta força, mesmo que para criticar! Sou escritor

independente e estou completamente imerso naquele dito

popular “Falem mal, mas falem de mim!” Todavia, não vou

negar, espero um pequeno elogio. Vamos deixando de lado o

jabá, chega de embromação, vamos começar.

Sou baiano da capital. Por capital leia-se Barra da Estiva.

Acho que contei uma novidade para você, não é mesmo? Vou

esclarecer porque a Barra é a capital do meu pujante e formoso

estado da Bahia. Vou dar um exemplo concreto, que

rapidamente irá lhe convencer que a capital da Bahia é a minha

amada cidade natal e não Salvador como todos conhecem.

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Vamos lá, qual é a capital do Brasil? Certamente, você levantou

a mão como um bom aluno CDF faria diante daquela pergunta

que o professor faz na sala de aula e para a qual ele tem a mais

absoluta e certa resposta, Brasília! Concordo e não concordo.

Primeiro, porque de fato, jurídica e administrativamente Brasília

é a Capital Nacional. Porém, quando o referencial muda e tudo é

relativo, como falou o grande Albert Einstein, Brasília perde seu

posto, quer ver? Qual é o centro cultural e financeiro do Brasil,

da América Latina e que ostenta tal título entre as maiores

cidades do planeta? São Paulo! Respondeu o garotinho lá no

fundo da sala, ops, este garoto é você leitor, nota dez! Com

Barra da Estiva não é diferente. Encravada na bela Chapada

Diamantina, no sudoeste baiano, ela é a primeira cidade nesta

imponente formação geológica brasileira sentido leste oeste, daí

surgindo o codinome “Portal da Chapada”. A Barra, para os

íntimos, é o centro cultural e financeiro da Bahia. De lá saem as

mais brilhantes mentes, incluindo, em uma modesta e sincera

opinião, eu. O PIB per capita a preços correntes da capital

cosmopolita, em 2010, segundo IBGE, era de 5.942,45 reais,

sem falar na grande população que extravasava os 21.187

habitantes residentes. Enfim, a Barra é um monstro sagrado dos

dados estatísticos mundiais. Então, agora concorda ou não que

Barra da Estiva está para a Bahia assim como São Paulo está

para o Brasil e Nova Iorque para os Estados Unidos? Isto porque

eu não quero me gabar da beleza geográfica expressa nos

cartões postais. Ah, fico nostálgico ao lembrar a maravilhosa

imagem das grandes montanhas que distam 7 km da capital, de

onde se tem a mais bela visão panorâmica do Morro do Ouro,

com 1.187 metros de altitude, e do Morro Santa Bárbara, mais

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conhecido como Morro da Torre, de altitude similar, quase o

pico do Everest no Himalaia. Juntos, formam literalmente um

portal por onde passa a rodovia de acesso à cidade e à própria

Chapada, transformando a entrada em um arco geologicamente

imponente.

Ok, sei que estou sendo bairrista, além do mais moro há um

ano em Brasília. Tenho 18 anos, 1,83 metro de altura, cabelos

pretos, lisos e longos, um palmo abaixo dos ombros, estilo metal

e me chamo Al Pacino Freitas Almeida. Por enquanto isto é

suficiente. Pois é, deixe-me adivinhar o que você pensou, achou

meu nome familiar, não é? Na universidade, a galera me chama

de Tony Montana, John Milton, mas o apelido mais comum é

Michael Corleone, alguns dos personagens famosos do Al

Pacino, e as piadinhas sempre começaram desde o primeiro dia

de aula. O nome famoso me foi concedido compulsoriamente

pelo meu pai, como acontece com qualquer bebê, não é mesmo?

Em certa ocasião perguntei sobre o porquê da escolha deste

nome, e ele respondeu, em tom gutural, como se estivesse em

campanha política para Presidente da República: Meu garoto,

seu nome é inspirado no maior e mais competente ator que já

existiu. A atuação dele no filme 'O poderoso chefão' foi

simplesmente apoteótica e mágica, nunca esqueço! O Al Pacino,

meu filho, é o deus da interpretação. Lembro perfeitamente do

discurso dele tentando me convencer de que meu nome era uma

singela homenagem a um cara que eu nunca vi pessoalmente e o

pior, nem ele. Tudo bem, eu terei meus filhos para poder

'homenagear' quem eu gosto. Estou brincando. Mas, não pense

que eu não gosto do meu nome, eu gosto, só não curto aquelas

brincadeiras sem graça quando o professor faz a chamada de

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presença, Al Pacino!, então ouço o coro da galera Al, Al, Al,

como latidos de cachorro, pura e ridícula onomatopeia.

Contudo, vamos deixando de lado as apresentações, se bem que

só eu falei de mim. Aguardo a sua apresentação na net, ok?

Sem mais delongas, vamos lá. Tentarei contar em detalhes o

me ocorreu recentemente, começando pela explicação sobre a

capa e o título do livro, que tem tudo a ver com os tais dias.

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UM ATEU CONVICTO

Até pouco tempo atrás, eu era o mais ateu entre os mortais,

ao menos eu achava isso de mim mesmo. Então imagina o que

vão pensar minha família e amigos ao verem este livro, eles que

sempre me viram militando pela causa ateia, por um mundo

ateu, contra toda e qualquer religião? Eles vão adorar. Pode

apostar, era o que eles e em especial minha mãe, sempre

quiseram, insistindo para eu procurar Deus e parar com todas

as heresias, pois Deus me perdoaria. Enfim, eu era o tipo do

cara que andava com uma camisa que eu mesmo mandei

confeccionar, já toda surrada de tanto uso, com a estampa do

meu ídolo Número Um, Friedrich Nietzsche, com aquele seu

famoso bigode, a mesma imagem que você pode ver na capa

deste livro. Quis colocá-lo já de cara para que as pessoas vejam

o quanto é nocivo e prejudicial ser ateu. Está capa traduz toda

minha repulsa e aversão a tal filosofia de vida.

O que aconteceu para esta sua mudança?

É o que direi agora.

Como havia mencionado, moro em Brasília há um ano e

meio, para ser mais exato na 208 da Asa Norte, numa quitinete

de subsolo em seus infinitos 30 m². É o que meus pais podem

pagar, pois aluguel aqui é muito caro. Embora seja no subsolo, é

um lugar bem ventilado e legal de se morar. Para descrever com

precisão a minha morada é bem simples, com dois cômodos.

Um pequeno banheiro três em um, ou seja, lugar onde é possível

“meditar” no vaso sanitário enquanto escova os dentes na pia,

milimetricamente posicionados lado a lado, e ainda tomando

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banho no chuveiro que está praticamente em cima do vaso, ou

seja, dá para fazer barba, cabelo e bigode, não é demais? O

outro ambiente da mansão incrustada no solo é a maravilhosa

sala flex, ou seja, sala tradicional, quarto e de quebra a cozinha,

tudo em um mesmo ambiente. Loucura total. Países com

espaços restritos como o Japão deveriam enviar seus arquitetos

para visitarem minha quitinete e afirmo com certeza, que ao

invés das mais de 6.800 ilhas nipônicas suportarem os quase 130

milhões de habitantes, depois de adotarem está revolucionária e

otimizada configuração residencial, poderiam duplicar sua

população, sem problema.

Vim para cá porque fui aprovado no vestibular do curso de

Direito da Universidade de Brasília-UnB, inegavelmente um dos

melhores do país. Como não tenho parentes na cidade, a saída

foi alugar esta quitinete que fica bem próxima à faculdade.

Desta maneira economizo na passagem de ônibus, vou e volto a

pé. Adorei passar a primeira noite na casa nova, sozinho, após a

longa despedida da minha mãe, em lágrimas, com as suas

intermináveis recomendações de segurança, alimentação,

estudo, saúde etc etc etc. Aliás, só estou morando aqui, porque

meu pai a convenceu, pois por ela eu só poderia ter passado para

a Universidade Federal de Salvador e ido morar com a Tia

Maria, irmã de minha mãe. Eu até tentei o vestibular lá também,

mas fiz questão de errar umas questões para não haver nem a

remota possibilidade de ser aprovado. Sabe, a Tia Maria é pior

que minha mãe, parece um general de guerra, não iria me

permitir ir nem à padaria sozinho. Tô fora! Em resumo, vir para

esta encantadora e urbanizada cidade foi, sem dúvida, minha

melhor escolha.

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A RAINHA DA INGLATERRA

O despertador tocou, 6 horas em ponto. Estava no chão, ao

lado da cama, apenas estiquei o braço direto em sua direção e o

desliguei. Fitei o teto do meu ap, muito disposto e revitalizado.

Também não era para menos, ontem fui dormir muito cedo, por

volta das 21 horas. Levantei, fui direto para o banheiro para

tirar uma água do joelho, o que me deixou extremamente

aliviado. Nunca perco a mania de beber um copo grande de água

gelada antes de dormir. Assim todas as manhãs é a mesma

história do joelho como minha primeira ação do dia. Após

resolver essa necessidade fisiológica, voltei para o ambiente

daquela minha sala flex. Estava seguindo meu ritual matutino,

então me encaminhei à estante de madeira cor natural, um pouco

desgastada, comprada por Mainha em uma loja de móveis

usados para economizar. Para ser sincero este era o melhor lugar

da casa, literalmente, já que este móvel ocupava o único canto

dos quatro existentes na sala flex. Os outros três já estavam

lotados, não por minha causa, mas por responsabilidade do

arquiteto que colocou a porta de entrada no primeiro canto, o

acesso ao banheiro no segundo e as duas pias, uma para lavar

roupa e outra para louça, com 1m de distância entre elas. A

estante ocupava o melhor lugar, aliás, nela repousavam meus

tesouros, o meu acervo de livros e meu recém chegado micro

system com dock station da Sony, presente de aniversário dos

meus pais. Repousava sobre um tapete em malha de poliéster

cinza, bem felpudo, e havia também duas grandes almofadas de

crochê confeccionadas com barbante cru, especialmente feito

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para mim pela minha querida vozinha Carminha, mãe do

Painho. Ou seja, o lugar perfeito para viajar em um livro ou

ouvindo um clássico do bom e velho rock’n’roll, desfrutando de

uma ótima sensação, pode apostar. Mas, no meu ritual daquele

dia, o momento não pedia um livro, apenas um digno rock para

acordar. O mp3 player já se encontrava fixado no dock station,

simplesmente liguei o Sony, selecionei a pasta Metallica, depois

escolhi o álbum Master of Puppets, haveria sugestão melhor

para começar o dia? É óbvio que não. O Metallica escolheu a

música certa para começar este álbum, Battery, com um trecho

de guitarra acústica, limpo e lento e depois aquela pauleira de

sempre, simplesmente mágico. Fui ao banheiro tomar aquela

ducha, continuando minha rotina. Ao tirar a roupa, sentir os

pelos do meu corpo se eriçarem, minha herança primitiva,

pensei. Porém, desta vez não era porque estava me sentindo

ameaçado com medo de um animal prestes a atacar, e sim pela

sensação de frio transmitida pelas terminações nervosas da pele,

provocando contrações musculares em todo o meu corpo. Em

Brasília fazia um inverno rigoroso para os padrões tropicais e a

previsão do tempo no Jornal Nacional era de dez graus na

madrugada. Abri bem pouquinho a torneira do chuveiro e

esperei a água esquentar. Tomei um bom banho com o som bem

alto, afinal, rock e sonzinho ambiente não combinam. Saí do

banho, me sequei e vesti minhas roupas com a mesma rapidez

do Flecha dos Incríveis. Abri o armário, peguei uma xícara,

enchi de água do filtro e coloquei para esquentar para fazer um

café quentinho. Enquanto isso, abri a geladeira e peguei pão de

forma integral com castanha do Pará e manteiga. Lambuzei

quatro fatias de pão com manteiga, coloquei-as dentro da

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torradeira, e nisto ouvi o alarme do micro-ondas indicando que a

água estava no ponto. Retirei a xícara, acrescentei quatro

colheres repletas de café solúvel extra forte, para acordar

mesmo, pois teria uma aula pedreira hoje, Direito Civil

Processual, barra pesada. O pão estava no ponto, mas quente

demais. Coloquei num prato e sentei na única cadeira existente

no ap. Tomei meu café da manhã. Olhei para o relógio Orient,

ajustado no meu pulso esquerdo, 6h49, tudo dentro da rotina,

pensei. Terminado o café, fui pôr a louça na pia, quando de

repente bateram na porta. Quem será a está hora da manhã?

Fiquei sobressaltado, deve ser o Francisco, o porteiro da noite,

para me dar algum recado, afinal o portão, provavelmente, deve

estar fechado, e meus vizinhos não são lá muito de acordar

cedo, raciocinei. Ao fundo tocava a canção Orion. Fui até a

porta e abri, fiquei alerta, fechei meu punho direito, é verdade

que por medo, mas também precaução. Na minha frente estava

um homem trajando um impecável terno à Giorgio Armani em

tom cinza, com seus quase 1,90 metro de altura (superando a

minha altura), cabelos negros e aparentando uns 40 anos.

Entretanto, e sem dúvida alguma, o que chamou minha atenção

logo de cara foram os olhos do sujeito, em particular a íris, de

cor laranja, vívida e radiante, em uma alusão bem especifica à

seleção de futebol da Holanda e seu uniforme cítrico. Não me

lembro de ter visto ninguém com olhos de tal cor, vai ver ele usa

lentes, pensei.

Prontamente, perguntei:

- Quem é você?

Ele refletiu mostrando em seu semblante um sorriso

tranquilo.

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- Bom dia Al Pacino.

Falou calmamente, com uma voz grossa, mas em tom

amigável. Eu continuei armado, o punho em riste pronto para o

ataque.

- Como você sabe meu nome, cara? Que brincadeira é essa?

Rapidamente, olhei para cima, tentando visualizar o portão

do subsolo pelo pequeno ângulo que me restava, sobre o ombro

esquerdo daquele homem. Notei que estava trancado, com

aquele imenso e pesado cadeado. Subitamente comecei a

disparar perguntas:

- Como você entrou aqui? O portão está trancado. Quem é

você, meu irmão? Qual é a tua?

- Desculpe-me Al, jamais tive a intenção de causar

transtornos. Estou aqui, nesta hora inapropriada, porque preciso

da sua ajuda.

- Minha ajuda? Eu nem te conheço, cara!

- Mas, eu o conheço há muito tempo. Não se preocupe meu

jovem, apenas gostaria de ter a oportunidade de contar meus

anseios para você, e é claro, com o seu consentimento, espero

que me ajude.

Fiquei numa situação confusa, pois apesar daquele coroa ser

um completo estranho para mim, sua fala calma transmitia

honestidade, além do mais fiquei realmente intrigado e curioso

para saber o que aquela pessoa com ar de executivo queria com

o futuro advogado aqui. Enfim, não deu outra, relaxei meu

punho e o convidei para entrar.

Ele entrou e notei sua atenta curiosidade ao ver as paredes

da minha kit. E não poderia ser diferente, é um perfeito painel

de arte. Nelas estão sete grandes pôsteres que preenchem quase

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todo o espaço bem restrito. Logo de cara, na parede da frente,

reluz com onipotência nos olhos de quem entrar no espaço a

melhor banda do mundo na minha opinião. Você já sabe de

quem falo, é óbvio, eles, Pink Floyd, em uma imagem rara e

realmente antológica dos cincos integrantes juntos, Manson,

Barrett, Gilmour, Waters e Wright. Na parede à direita da porta

de entrada fica um pôster do Metallica com a formação do

álbum And Justice for All, o primeiro que conheci deles, e outro

do Pantera em Far Beyond Driven, com um dos meus bateristas

e guitarristas favoritos, respectivamente, os irmãos Vinnie Paul e

Dimebag Darrel, com seu inconfundível cavanhaque vermelho.

Na parede da esquerda ficam meus conterrâneos brasileiros do

Sepultura, na clássica foto do álbum Chaos A.D., e ao lado, o

inesquecível trio parada dura do Nirvana, Cobain, cabelos

vermelhos, Novoselic e Grohl. Para completar e à esquerda, vê-

se o Bob, ou melhor, Bob Marley & the Wailers que,

aparentemente parecem destoar na Catedral do Rock, o

carinhoso nome do meu ap (mais para Capela, dadas as reais

dimensões). Todavia, a turma das madeixas em dreadlocks tem

tudo a ver, não pelo som, mas pela atitude rock‟n‟roll. E por fim

completando o ambiente, na parede atrás de quem entra, fica ele,

o performático e polêmico Marilyn Manson, com sua tradicional

cara maquiada e seus olhos albinos. Mesmo parecendo que a

lotação está esgotada, ainda há espaços para mais pôsteres das

minhas bandas favoritas só faltando o “cacau” para comprá-los.

Não era somente aquele desconhecido que estava

impressionado com as imagens e o ambiente. Meus amigos

também acham o máximo, porra Al, gostaria de morar sozinho

como você, meu velho. Minha mãe não me deixa sequer mudar

Page 22: EU NÃO GOSTO DE ATEUS

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a posição da cama, é um saco! Volta e meia eu ouvia desabafos

deste tipo, pois minha casa era quase sempre a escolhida para

realização de trabalhos em grupo da faculdade, e, por favor, nem

me pergunte o porquê. Estou brincando, liberdade é a resposta

certa.

- Por favor, sente-se!

Mostrei a cadeira para o coroa, filha única. Fiquei de pé na

sua frente e perguntei:

- Então, qual é o caso? Sabe meu nome, sabe onde moro e

sei lá mais o quê, e ainda me vem com este papo super estranho

de que precisa da minha ajuda. Afinal, quem é você?

- Al, vou direto ao assunto! Meu nome é bastante conhecido,

uns me chamam de Diabo, outros de Belzebu, Coisa Ruim,

Capeta, Satã, Cabrunco. Outros ainda preferem Cão Tinhoso,

Chifrudo, Beiçudo, Rei das Trevas, Pé De bode, Tição, Bode

Preto, Cão Danado, Tranca Rua, Zé Pilintra, Excomungado,

Exu, Satanás, Demo, Espírito de Porco e mais uma infinidade de

nomes. Para ser sincero com você, fiquei perplexo ao saber que

todos estes se referem a minha pessoa. Entretanto, meu

verdadeiro nome é Lúcifer, para ser mais exato Luciffer

Grttwanm.

Ele disse isso na maior tranquilidade. Não me contive e dei

uma gargalhada pausada e irônica.

- Ha, ha, ha! Prazer, sou a rainha da Inglaterra. Então, coroa,

você tem a ousadia de bater na minha porta a essa hora da

manhã, dizendo que precisa muito da minha ajuda e agora me

vem contando piada. Meu amigo, eu por acaso tenho cara de

otário? Por favor, saia agora da minha casa!

Fui andando em direção à porta para abri-la, porém ele

Page 23: EU NÃO GOSTO DE ATEUS

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insistiu.

- Al Pacino, não estou mentindo! Contudo, já esperava esta

atitude de você, afinal a minha imagem foi deturpada e é por

isso que estou aqui.

- Amigo, por favor, preciso ir para faculdade, então me

deixe em paz.

Abri a porta, ele se levantou da cadeira, mas continuou a

falar.

- Ok Al, não vamos entrar em conflito. Eu sou um

verdadeiro amante da arquitetura, artes, história e cultura,

portanto, embora neste momento ache que estou tripudiando

com você, lhe farei apenas um pedido. Por favor, me encontre

em frente ao Congresso Nacional que como você sabe é um

conjunto arquitetônico de poder do seu país. Uma vez lá, eu lhe

darei provas de que realmente sou o Luciffer e formalizarei as

razões que me motivaram a vir procurá-lo.

- Cara, você deve tá mesmo brincando! Além de tudo, ainda

quer que eu vá ao Congresso te encontrar? Você não está falando

sério, tá?

- Veja Al, hoje você tem apenas a primeira aula, que será de

Direito Processual Civil.

Fiquei nervoso e falei veementemente.

- Espera aí, você andou tendo contato com algum colega

para me impressionar, não é?

Ele deu um sorriso.

- Não meu caro, jamais tive contato com alguém que você

conhece, entretanto venho lhe acompanhando há algum tempo.

Relaxe meu jovem, eu venho em paz! Veja, marcarei com você

hoje às 11 horas, tempo suficiente para que você assista à sua

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aula e chegue na hora marcada no Congresso Nacional.

Esperarei até as 11h30, se não aparecer saberei que não acredita

em mim e não quis nem me dar uma chance.

Neste momento não resisti e o interrompi bruscamente.

- Pois então, coroa, não perca seu tempo. Não irei a porcaria

de lugar algum para ouvir seus devaneios!

- Al, é um direito que lhe cabe, seu livre arbítrio. Apesar de

ficar extremamente triste, tendo em vista que não tenho outra

pessoa em todo o planeta Terra com o seu perfil para me ajudar.

Mesmo assim, enfatizo, respeitarei e prometo que nunca mais

irá me ver.

- Oh, que beleza! Confesso que viverei bem com isto.

Adeus!

Resmunguei com total impaciência gesticulando com o

braço esquerdo o típico movimento de a porta da rua é a

serventia da casa, enquanto segurava a porta com a mão direita.

O maluco, muito educado não posso negar, mais parecia um

aristocrata de filmes de época. Ao passar por mim na porta me

deu um último sorriso afável, deixando suas palavras finais.

- Bons estudos!

Fechei a porta e voltei para a mesa a fim de terminar meu

café e comer meu pão. Poxa, estão gelados!