eu não gosto de correr

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eu não gosto de correr...

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eu não gosto de correr mas terminei uma

pedrojaimemmxiv

maratona

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eu não gosto de correr mas terminei uma maratona

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eu não gosto de correr mas terminei uma maratona

pedrojaime

mmxiv

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para a sofia freire e a ana isabelporque tinham a mania que eu era capaz de escrever um livro

para a minha morena e o meu jacaréporque ficaram sem a minha companhia em muitos finais de tarde,

enquanto eu treinava por aí, junto ao mar

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prefácio

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isto não é um livro. eu prometi que não escrevia livros e por isso, repito, isto não é um livro. isto é, digamos, um conjunto de ideias que me foram surgindo, quando tive a parola ideia (estou a brincar) de fazer uma maratona.

não vão encontrar aqui ideias ou considerações técnicas sobre corrida ou sobre o que quer que seja que gravite em redor do tema das corridas. vou, meramente, debitar pequenas impressões que fui coleccionando, desde que meti ou meteram na minha cabeça (e nas pernas, é verdade) que eu iria fazer uma maratona.

assim, sempre que desatar a arrotar postas de pescada sobre este ou aquele assunto, esta ou aquela particularidade de treino, acreditem, não é mais do que a minha tola mas sentida opinião e carece, até prova em contrário (não tentem provar, sério!), de uma garantia e conhecimento científico que obviamente não possuo.

é um livro de emoções. de alegrias, de tristezas, de frustrações, de preguiça… de emoções. no limite, gostaria que quem não gostasse nada de corrida encontrasse, aqui, algo que os tocasse, vá!

alguns destes textos foram escritos quer para o meu blog, quer para o facebook. decidi aproveitá-los adaptando-os. no fundo, recuperá--los, porque encontrei neles as emoções à flor da pele, captadas ali, no momento. se os escrevesse de novo perderia todos os pormenores vivos que uma reescrita, por mais que eu tente, não consegue transmitir.

quem espera ler nestes textos dicas, métodos de treino ou truques que lhes permitam conseguir alcançar o tempo xis ou ípsilon, lamento, também não é nesta loja que isso está à venda. o meu espírito foi, acima de tudo, terminar, terminar bem, terminar a correr. foi o que se tentou desde o início.

treinar, prepararmo-nos, corrermos e conseguir fazer aquele esforço

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extra que nos permitisse alcançar aquela marca com que tanto sonhámos, pois, isso, confesso, nunca foi a preocupação inicial.

nem final.

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1pré-história

abril de 2011

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moscovo, mil novecentos e oitenta, a coisa tem de começar sempre aqui. estes jogos olímpicos foram os primeiros que seguimos, eu e o zé, muitas das vezes sentados ao balcão da cervejaria do príncipe, defronte de uns caracóis patrocinados pelo inolvidável manuel dos melões.

enquanto debicávamos e esvaziávamos o pires de caracóis do amigo manuel, olhávamos atentos para a tv, localizada lá no canto junto da entrada, transmitindo aquelas eliminatórias e finais de atletismo com aqueles nomes que também acompanhávamos pela caderneta de cromos que coleccionávamos.

pietro mennea e kondratyeva na velocidade; ovett e coe no meio fundo; yifter no fundo; cierpinski na maratona.

mas, anos antes, o viren, o juantorena… anos depois, o rob de castella, o alberto salazar e, claro, lopes. sempre o eterno lopes.

na rua, também organizávamos as nossas olimpíadas com provas à volta da praceta. desde os cem metros até aos “esgotantes” três mil metros, passando pelas provas técnicas (estou a rir-me, enquanto teclo “técnicas”) como o salto em comprimento e o triplo salto, tudo ali era efectuado, cronometrado e medido com auxílio dum citizen que a minha mãe tinha e que, muito importante, registava os décimos de segundo, bem como uma fita métrica de dez metros que era do meu pai.

bom, os anos passaram e eu ainda entrei nalgumas provas populares nos anos seguintes. a maluquice fez-me tentar a meia maratona, feito que consegui aos dezasseis anos (caramba, era tão levezinho…). na altura, confesso, orgulhei-me.

os anos continuaram a passar e eu nunca mais fiz da corrida modo de vida. aliás, sinto até que deixei de ter gosto em correr.

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o zé, entretanto, de há uns anos para cá - uns quatro ou cinco -, voltou a correr. como nas coisas em que se mete, é para se meter a sério, não descansou enquanto não se meteu em maratonas. e pronto, um dia, em berlim, decidiu ver como é que era.

e fez bem.

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pipáterra

abril de 2011

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e eu continuo a achar que, mesmo sabendo que não gostavas muito do gajo, quando fores à terceira deverias ir com um bigode à de castella

eu recuo, vá, trinta anos

credo, trinta anos!!!

e recordo as palavras que a cristina do oito e a paula do dois disseram aos meus pais, junto à porta da sua loja:- a gente até gosta deles, mas os gajos passam o dia a fazer corridas à volta da praceta...

é, se calhar, eu diria que a génese desta coisa aconteceu por essa altura. com ajuda daquela fita métrica do meu pai - a grande, a que tinha dez metros -

que o manel dente d’ouro fez o favor de atropelar quando registávamos a marca dum valoroso triplo salto do paulinho maria do rio, mutilando-a em três pedaços desiguais

e, também a passo,

já que ali na curva junto do mário barbeiro, não dava muito jeito usar a fita

medimos o perímetro da praceta e passámos a fazer dela uma espécie de centro de alto rendimento do bairro.

quero acreditar que o que te aconteceu em paris teve origem nessa altura. mas já lá vamos.

da mesma forma que, para algumas pessoas, qualquer gajo que vá ao staples office centre comprar papel de facturas já é um “gajo que trabalha em computadores”, também qualquer maluco que seja visto de ticharte, calção e ténis, a correr feito louco por aí é também referido

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por terceiros como “o gajo anda lá pelas maratonas”, mesmo que as tais “maratonas” não sejam mais do que, na melhor das hipóteses, uma meia organizada pelo avante ou, na pior, uma qualquer “légua da outurela”.

eu tinha um amigo que tinha feito uma maratona. ora, fazer uma maratona, mesmo que possa parecer um feito avulso e único, nunca pode ser visto, digamos, como um tal “feito avulso e único”. só quem lá anda a fornicar os calcanhares e os gémeos, na esperança que aqui e ali nos cruzemos com alguma gaja boa que nos alivie a alma,

nunca cruzamos, porra!

é que percebe que, por vezes, qualquer meia hora pode parecer um dia a correr. quanto mais quatro horas e tal a dar à sola...

eu não sabia se iria dar muita importância a esta tua cena de colocares no teu palmarés a palavra “maratona” no plural, até dar por mim, no domingo, a visitar por várias vezes o cabrão do sáite da maratona de paris, para ver se eles publicavam de uma vez por todas os resultados, tentando assim perceber se tinhas conseguido mostrar àqueles ranhosos dos avecs quem é que realmente manda nesta gaita das corridas.

hoje li o teu post e percebi que tinhas feito história.

recordei-me, então,

desculpa a comparação

da minha segunda meia, quando baixei uns dez minutos ao tempo que tinha conseguido naquela primeira, a que terminou nos restauradores, e lembrei-me do quanto tinha ficado contente. caramba, mano, não é só o facto de teres feito um tempo daqueles, é mesmo teres dominado a coisa com uma catigoria que é já teu

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apanágio!

há pouco, novamente in your honour, fui fazer um treinozeco de doze cápa émes para me inspirar para esta minha chapelada que agora escrevo. fui ao solinho, junto ao mar. um treino bonito, como sabes, mas um treino de betinho, nada que se compare com aqueles treinos que, leio, fazes lá pela amadora ou que fazemos juntos, a fingir que ainda temos catorze anos, na eritreia do vale do jamor. ali sim, ali é que é a doer. agora, na marginal… é bonitinho, repito, mas é um treino para betos. fico sempre com aquela sensação parva que algum daqueles putos, com quem me cruzo ali pela zona onde os pescadores de carcavelos estão sentados no murete, junto das suas canas e daqueles baldes da fassa bortolo carregados de isco, me vai fazer com os dedos um vê de “força aí!” juntamente com um “ó tio, ganda pernil!”, topas?

bom , fiz o treino e, como deves imaginar, não era nada disto que eu queria escrever. eu sou chato e desato a pensar nestas coisas e tal... sabes, eu só queria mesmo que soubesses que quando te li fiquei, caramba, inchado de orgulho. por isso e por outras coisas, quando te revir, dar-te-ei um abraço por seres meu irmão; darei outro porque te roubaram aquele relógio timex lá no estádio universitário, durante um dos nossos velhos treinos; darei um terceiro pela cumplicidade de termos aldrabado os dados para que o piquet figurasse na placa de inauguração do circuito turbo que construímos em cartolina

em vez do pironi do brux ou do prost do bibita (ou dum qualquer rosberg, só deus sabe de quem)

e darei um abraço final mais apertado porque, foda-se!, ter um irmão que corre maratonas é realmente diferente de ter um que “sim, uma vez ele fez uma maratona...”, esta última dita com aquela importância rasca que se usa quando se diz “sim, lá em casa já consigo apanhar o segundo canal, se a antena estiver virada para o emissor de palmela e não para o da graça”.

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orgulho, foda-se!

post escrito no meu blog, em abril de dois mil e onze, quando o zé terminou a sua segunda maratona.

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3algures em junho de 2013

parafuso

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o parafuso faz um post no face: uma foto com o recibo da inscrição para a maratona e eu fico a pensar coisas… coisas, sabem?

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4o zé a convencer-me para a maratona

algures em junho de 2013

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telefono ao zé e conto-lhe que vi no face que o parafuso tinha postado uma foto com o recibo de inscrição para a maratona.

antes mesmo de lhe conseguir dizer que achava aquilo uma ganda ventarola, já ele estava a dizer que me ia mandar uns programas e umas dicas… uns planos de treino e tal…

- mas… ó zé, eu não sei se consigo… ainda não sei se me vou meter numa coisa destas…- nito, eu não só sei que consegues como te posso garantir que não é um palpite, mas sim uma opinião formada.

caraguicho, que raio! como é que esta malta, só por já ter corrido, já ter feito estas provas, desata a afiançar que nós também somos capazes de fazer o mesmo?

como?

como???

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515 de junho de 2013

marginal à noite

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dia da marginal à noite. prova muito, muito gira. grande espírito. muita gente a ver e a bater palminhas, muita gente também a correr.

parto com o grupo do costume. beijinhos e abraços para todos e tal, mas hoje sigo sozinho. há uns que querem ir à frente e há, depois, outros que querem ir mais atrás. tudo bem, hoje eu... hoje vou mesmo sozinho.

ali no quilómetro seis, seis e tal... ali, algures na escola náutica, o joão matos passa por mim de camisola à sportein envergada e obriga-me a ir atrás dele:- jaime, ‘mbora!

oh foda-se! e agora?

o joão tem menos vinte anos que eu e não só é mais leve como também tem um motor vê oito. fiz o que pude. lá fui. fui até onde houve gasolina. uns novecentos metros antes da meta gritei-lhe (como pude) para ele ir embora que eu já não aguentava mais.

ele foi.

ainda assim acabei à puto charila, a correr desaustinadamente aquela descida do saisa até à meta.

foi giro (estou a escrever isto a rir), olhei para as ambulâncias e pareciam estar a chamar pelo meu nome.

o gang da ginja brindou ao nascimento do diniz.

foi um dia feliz.

(enquanto o grupo foi curtir a náite para o bbeach, eu sentei-me no computador, transferi o treque do gêpêésse para o pc… depois, cliquei

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no sáite da maratona de lisboa e pus-me a ver planos de treino: para quatro horas e trinta… para quatro horas… para cinco horas…)

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616 de junho de 2013

alongamentos

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não consigo sobreviver sem dores a corridas ou treinos rápidos. não me sinto confortável neles porque são sempre uma incógnita. correr ou tentar correr depressa, a dar o máximo ou a gerir a coisa - mas sabendo que vou em quinta a fundo - é, para mim, como ir para fora de pé: nós sabemos que sabemos nadar, mas saberemos nadar durante quanto tempo?

no fim da prova de ontem, a marginal à noite, uma corrida que se fez rapidamente demais, o ambiente era o mesmo de sempre: abraços, beijinhos, “boa, grande tempo!”, abraços outra vez, histórias… a última coisa que nos lembramos de fazer são os alongamentos. como dizia um amigo qu’eu’cá’sei “olha lá, já viste cavalos de corrida a fazer alongamentos? então…”.

hoje de manhã o corpo zangava-se por tê-lo tratado tão mal em tão pouco tempo, sem que tivesse cuidado dele no fim.

olho para o relógio, nove e picos… humm, espera lá, é isso!

minutos depois estava à porta do estúdio um do ginásio, de senha de body balance na mão, preparado para a entregar à carol, a nossa professora mais serena. é uma aula de que não gosto por aí além mas que, digamos, uso por motivos “medicinais”. são as minhas termas.

saí esticadinho.

a tarde já foi de praia. para dormir mas já sem dores.

alongar, alongar, alongar. alongar também é “treino para a maratona”.

digo eu, pronto.

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717 de junho de 2013

planos de treino

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para que eu não perdesse a embalagem nem sequer pensasse em… corrijo, para que eu nem sequer pensasse e ponto final, o zé manda--me um email repleto de documentos sobre correr a maratona, dicas sobre a maratona, considerações sobre a primeira maratona,

às tantas, estou por lá a ler sobre o que se deve e não deve fazer após os momentos finais da maratona e só penso “foda-se, então depois daquilo acabar continua a haver regras? então o recreio começa quando?”

testemunhos de maratonistas, páginas da net… e planos. lá no mail vinham dois ou três planos retirados de outras duas ou três maratonas ou sáites de maratonas, ou lá o que é.

olho para aquilo e leio siglas, hieróglifos, palavras que parecem retiradas de testes nucleares ou dos livros de notas do howard carter: accumulation mesocycle, trote, rest, gentle jog, starting 40’’ above marathon rhythm, rampas, transformation mesocycle, 4 acelerações de 100 metros, 2h (últimos 30 minutos a 75% de ritmo de competição…

mau!… mas não é só correr e ganhar calo?

parece que não.

uma visita por páginas de maratonas permite-me verificar que afinal os planos de treinos não são coisas, digamos, secretas. há treinos a dar com um pau. mas… fico a pensar, caramba, por que são os planos tão diferentes - à partida, claro - uns dos outros?

e que plano devo eu seguir?

e se os planos se caracterizam por se adequarem ao tempo com que desejamos terminar a prova, então, qual é o nosso tempo? como é que sabemos que conseguimos terminar entre as três horas e trinta e as quatro horas? é só treinar para isso e o nosso corpo no dia da

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prova faz o resto?

e por que é que há planos com treinos três vezes por semana e há planos com treinos cinco e até seis vezes por semana?

temos mesmo de treinar, pelo menos, cem quilómetros por semana se quisermos ter pernas e pulmão para terminar a coisa?

cem???? a sério?oh, foda-se!

bom, e que tal seguir, precisamente, o plano que está na página da maratona de lisboa? e porque não? três dias por semana, as palavras que lá estão são mais ou menos compreensíveis para um leigo… ok, vamos lá.

mas, espera, então e que plano escolho? para três horas e trinta? para três horas, certamente que não. será que só consigo terminar em cinco horas? bom, eu sei que tinha feito os vinte quilómetros de cascais em cerca de duas horas. como a maratona é para cima do dobro, mais o desgaste, despesas de fraccionamento, o spread, juros de mora e tal… pois, vai na volta, cinco horas é que é. espera, vou consultar os tempos que o zé tem feito. humm… acho que não consigo menos que quatro horas e trinta.

olha, já sei, vou escolher ao calhas mas submetendo a coisa a uma intervenção técnica. ora, tendo em consideração que o lopes, em oitenta e cinco, em roterdão, bateu o record do mundo com duas horas sete minutos e picos, porque não tentar fazer o dobro? pronto, fica a bitola nas quatro horas e catorze.

se acho que consigo? claro que não faço puto de ideia. mas já que tenho de escolher um plano (e uma velocidade de corrida), vamos inventar que este tempo é um objectivo razoável e, principalmente, exequível.

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ok, então é isto: plano da maratona de lisboa para quem quer fazer entre as quatro horas e as quatro horas e trinta minutos. siga!

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8primeira semana, primeiro treino

18 de junho de 2013

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terça-feira, hora de almoço.

troco a aula de rpm pela corrida. vamos lá para fora, então.

ligo o gêpêésse, tento não olhar para o céu e fazer aquele ar de parolo, como quem olha para os satélites e tenta apontar na direcção deles ou, não os vendo, não percebe porque raio o aparelho não capta sinal…, ok, já está.

primeiro quilómetro bem devagar, ali na ordem dos sete por quilómetro. vou pelo parque palmela, subidas íngremes, o aquecimento feito devagarinho. depois, já a descer, com calma, entro no paredão para atingir a velocidade cruzeiro.

ok, tudo bem, então e qual é a velocidade de cruzeiro? pois, não sei. mas como sabia que o treino era de uma hora, tentei imaginar a que velocidade teria de correr para aguentar uma hora de esforço. o resultado da minha imaginação rondou os cinco trinta e pouco por quilómetro. seja!

o primeiro treino está feito. terá mesmo de ser assim, um de cada vez.

é? é mesmo um de cada vez?

oh, tangas! um gajo não consegue deixar de olhar para o plano todo e pensar que é foda, é mesmo foda todas aquelas semanas seguidas, só a treinar para aquilo. casei com a tropa mais de vinte anos depois de a abandonar.

no dia seguinte percebo que tenho dores nos ombros de que não estava à espera. os gémeos também me doem…

será falta de alongamentos? terei alongado pouco?

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a verdade é que os alongamentos acabam por ser o parente pobre dos meus treinos. acabo a coisa, olho para o relógio “ui, tenho de me despachar para estar na loja a horas.”

ficam as dúvidas sobre as estranhas dores.

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924 de junho de 2013

auscultadores

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raramente usei música para correr. não só por não ter auscultadores de jeito - para correr - como também quer em treinos, quer em corridas, nunca precisei uma vez que os treinos duravam pouco tempo. além disso, na maior parte das corridas, vamos todos em grupo e com auscultadores não ouço o raio das anedotas, nem consigo manter aquela interessante conversa com o bruno mesquita sobre os pratos culinários que “mais vinham a calhar” naquele preciso momento. a unanimidade recai normalmente sobre o leitão e a feijoada de búzios.

mas a coisa agora é diferente, olho para o plano de treinos e vejo que alguns duram quatro horas.

quatro horas!

ora, ou levo aquele dvd portátil da minha filha com o era uma vez na américa do leone ou então tenho de sacar podcasts com o grande piquenicão do diário rural do costa macedo. pelo sim, pelo não, deixo a pergunta no ar no facebook: earphones de jeito - e com som porreiro - para correr, alguém quer sugerir?

acabei por acolher a sugestão do ricardo dias. comprei, via ebay, uns mx685. pena que só tenham chegado cerca de quinze dias antes da prova. o zito - e também o ricardo - ainda me sugeriram uns com aquele aro que encaixa na nuca, mas logo pus a ideia de parte, pois pretendia um modelo que me permitisse correr apenas com um auricular numa orelha, libertando o outro para ficar no paleio ou escutar os sons que me rodeiam.

chegaram tarde mas chegaram em grande.

durante toda a minha preparação usava uns shure, bestiais sim, mas para serem usados em casa, sentado num sofá. em corrida eram um sofrimento, muito bom som, é certo, mas sempre, sempre a cair. tomem nota, boa dica: mx685 da sennheiser.

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1028 de junho de 2013

trail nocturno

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no plano, hoje era dia de descanso (sexta-feira), mas o treino longo da semana, que deveria ser feito no sábado ou no domingo, seria de cerca de duas horas. decidi trocá-lo pelo trail que o bruno mesquita e o ricardo santos organizaram com o pessoal do live fit.

partida de murches, seguir em direcção à serra de sintra. cerca de doze a catorze quilómetros (o gêpêésse entretanto ficou sem bateria) bem durinhos ou pelo menos diferentes do que habitualmente tenho feito. bom grupo, bom ambiente, uma coisa diferente. a repetir sempre que possa, se possível em trilhos não tão acidentados, já que não tenho olhos para conseguir andar de lanterna - por mais potente que seja - em punho ou na testa, a seguir por aqueles caminhos.

subidas, subidas, subidas.

este trail ficou marcado pelo desvio que o bruno decidiu fazer pelo malfadado “trilho da caruma”. caramba, muita asneirinha foi dita, muita invectiva o bruno recebeu de todos, repito, de todos nós.

custa, custa muito, mas são estes treinos que melhor caboucam as nossas forças para o dia da maratona.

entretanto, as dores nas costas e no joelho direito desapareceram, de vez, ao fim de duas semanas mais… eu não diria mais intensas. diria antes, mais assíduas.

as dores que tinha nas costas, junto dos ombros, era típico de falta de treino. o que sentia no joelho… bom, não sei, mas dá ideia que passei a correr duma forma mais “defensiva”. ou seja, sentia que mandava a perna para a frente duma forma muito solta sem que usasse os músculos das pernas - à volta do joelho, inclusivamente - para as sustentarem. não estou a conseguir explicar muito bem, mas sinto que passei a correr com usando mais músculos, em vez de apenas usar o “lançamento” da perna para a frente.

a verdade é que a dor passou.

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111 de julho de 2013

crise

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sim, há sempre alguma salvação para isto, para as nossas crises. as nossas mesmo, não as do mundo. e mesmo que não seja uma salvação eterna pode muito bem ser uma de hora e meia.

nada mau!

peguem no vosso uólquemen, peguem nas músicas de que mais gostam.

não peguem naquelas de que “gostam mais ou menos mas que ‘eh pá, se esta tocar até é capaz de ser fixe’.” não, essas não ponham. ponham só mesmo as favoritas.

se neste momento só gostarem de seis, tudo bem, usem apenas essas seis canções. eu coloquei cento e vinte e fiz-me à estrada.

não conseguem correr? também não faz mal, caminhem. se não têm uma hora e meia para isso também não faz mal, caminhem durante dezassete minutos. mas usem o uólquemen, escondam-se de toda a gente, escudem-se na música e deixem-se ir. mas deixem mesmo.

já repararam que com o uólquemen ninguém sabe o que vão a ouvir? já viram que quem tem guilti pléjâres pode curti-los sem que ninguém saiba disso? sério, é óptimo. eu não tenho disso dos guilti pléjâres, mas dou alguns dos meus exemplos os quais, acredito, vos servirão como receitas da peituda da náigela: o shadowplay dos division a seguir ao disco band dos scotch; o lunatic do gazebo a seguir ao trash dos suede; o holiday rap a seguir ao nothing really ends; o crazy rhythm do bennett a seguir ao nobody’s diary dos yazoo e por aí fora. toparam a coisa? vocês também podem fazer igual, também podem colocar um slow dos dez cê cê com o short dick man se isso vos fizer sair da crise.

mas, vão!

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façam assim, em blocos. blocos de dez minutos, de meia hora, de hora e meia.

hoje fui até para lá da praia da torre. a curtir o solinho, a ver se me aguentava. a sentir aquele calor transmontano, sabem? quem é que daqui já teve verões transmontanos? sabem o que dizem dos calores do alentejo? ah ah ah, não têm nada a ver. lá em cima é que está o forno. o forno, por vezes, entremeado com aquele quase fresquinho que chegava (chega) da vargem e dos choupos da ponte da pedra.

hoje atenuei a minha crise assim. parece simples mas não é. é custoso. é custoso porque a gente acha que não é possível, que é tanga de monges tibetanos.

mas funciona. por isso, se viram alguém a gritar o bad bad thing ou o across the one hundred and tenth street com ar alucinado, algures entre as avencas e a parede, sim, era a eu a sair da crise.

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126 de julho de 2013

treinos nas férias

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e vou então de férias. é isso, maratonas no outono têm destas coisas, apanhamos com a preparação delas em pleno verão, não há como escapar.

como disse, fui de férias. férias com amigos: com bebida, com muita comida, com tabaco, com… vocês sabem…

decidi que não ia abrandar os treinos. assim, se lá no papelinho dizia que o treino de hoje seria de duas horas, pronto, duas horas teriam de ser. acordar cedo e fazê-lo pela manhã atrapalharia o acordar… o ir para a praia… os grelhados... decidi efectuá-lo à tarde, depois do poker.

auscultadores, ténis, calção… vamos lá!

estava em vilamoura, tinha visto pelo mapa um trajecto que apanhasse aquela avenida principal, pois assim teria os bebedouros para me abastecer. o problema é que estavam cerca de trinta graus e só apanhei os bebedouros para lá dos doze ou treze quilómetros. foooooda-se, quando lá cheguei estava desidratadíssimo.

foi uma gaita: sol, calor, velocidade controlada (ao menos isso), mas descurei completamente a auguinha. ainda por cima, como disse, estava de férias. sabem, quase que sentia o álcool a evaporar-se, a sair pela minha pele.

saí da zona dos bebedouros e o calor não abrandava. ainda tinha uns quarenta e cinco minutos pela frente, flecti para uma zona de vivendas e… e aquele calor de derreter catedrais, como diria o rodrigues...

às tantas vejo que há um laguinho com um sistema de rega e que leva a água, através dumas cascatinhas, para outro lago, este maior. olho para aquela água, olho para a relva, penso em pesticidas, penso na monsanto… penso, mas logo afasto os pensamentos. que se lixe,

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ponho a mão em conchinha e cá vai. pelo menos meio litro devo ter bebido.

ahhhhhh, c’a fresquinho (ahhhhh, c’a estúpido que és, pedro miguel!).

entretanto, vou controlando as coisas pelo gêpêésse e vejo que a passada vai quebrando. com uma hora e quarenta e tal minutos de treino estou a correr num ritmo cerca de vinte segundos mais lento do que quando comecei. estou-me marimbando, o importante é não parar.

quando chego à recta do aquashow percebo que estou perto de casa mas ainda me faltam uns dois ou três quilómetros. agora, confesso, não quero saber de tempos para nada. quero é chegar a casa, tirar os ténis, largar os auscultadores e deixar-me cair na piscina até sentir a vida voltar ao meu corpo.

porra, água! quero água e o raio da meta nunca mais chega.

ei, espera lá, há água na bomba da bp! fogo, aquilo deu-me logo um ânimo extra. água, água, água…

quando termino de me saciar nem tenho mais vontade de correr. eh pá, não aguento, vou a caminhar, vou a alongar… nah, se é para fazer, faz-se a correr. mesmo que muito devagarinho, tenho de ir de forma que me faria ser desclassificado pelos juízes, caso isto fosse uma prova de marcha: têm que ser os dois pés no ar ao mesmo tempo.

quando passo o portão da casa, estou exaurido. olho para o gêpêésse quando o desligo e sorrio. pela primeira vez, em cerca de vinte ou vinte e cinco anos, voltei a completar uma meia-maratona. está provado, consigo já correr vinte e um quilómetros seguidos.

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é uma sensação gira.nota mental: comprar, de vez, um daqueles cintos para carregar garrafas. são novos hábitos, tem mesmo de ser: nunca mais fazer igual.

nunca mais!

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13treinos nas férias,parte ii

10 de julho de 2013

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ok, tudo bem, foi um acto de coragem ir fazer um treino durante as férias. reforço o assunto: não estamos propriamente a falar de um treino durante a minha estada numas termas. quero frisar que foi um treino durante uma semana com muito calor, em que se vai à praia de manhã - já com um pequeno almoço daqueles no bucho -, em que se almoça à fartazana, em que se passa a tarde a jogar poker, em que se fuma… por isso, quando decido fazer os trabalhos de casa cumprindo o treino estabelecido, não estou só a decidir não só pôr de parte todas essas coisas boas durante um par de horas, como também fazer o treino com o corpo carregado de pecados.

(mas sem sentimento de culpa algum.)

bom, mas lá fui.

final da tarde, apanhei-me distraído e lá fui invadir aquelas ruas repletas de vivendas de vilamoura.

com quinze minutos de treino ainda estou à espera do tal clique que me faz acalmar e curtir o treino de vez. aos trinta minutos queria morrer com o calor. no papelinho dizia que eu teria de fazer, nesta semana, um treino com trinta minutos de aquecimento (aquecimento com trinta e cinco graus?), seguido de vinte minutos a cinco trinta; mais quinze minutos a cinco e, por fim, mais dez minutos lento. o outro treino previsto era de uma hora e quinze num ritmo normal

que raio é isto de ritmo lento e normal? que raio é isso de ritmo de maratona, se eu nunca fiz uma maratona? vou ter resposta para isto um dia? eu gosto é quando o papelinho me manda correr a cinco coiso ou seis coiso. aí sim, aí sei a quanto devo correr. se depois consigo seguir a coisa à risca já é outra louça. mas gosto que haja uma bitola definida para cada treino e não essa coisa do lento, trote, maratona…

seguido de seis acelerações de cem metros. que bonito, seis acelerações de cem metros. a ideia seria um treino na terça e outro na quinta.

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mas, bolas, ainda não recuperei a sério daquela travessia desértica que fiz no sábado, aquelas duas horas de… ok, esqueçam.

estamos na quarta-feira, temos de arranjar uma solução.

tudo bem, tentemos fazer uma fusão entre um treino e outro. estamos de férias, haja compreensão!

bom, ia nos trinta minutos, não era? então é suposto eu agora começar a correr durante vinte minutos a cinco trinta, com a barriga ainda cheia das sandes de courato do lanche (nem comentem!) e com este caloooooor? pronto, vamos lá!

claro que não cumpri os valores à risca. claro que me senti desidratadíssimo. claro, que me senti burro, estúpido, sem forças, totó e outras coisas que mais.

tentei correr mais próximo de bebedouros mas mesmo assim não foram suficientes para me satisfazer.

odeio, odeio andar a treinar carregado. só o facto de andar com gêpêésse no pulso é suficiente para me sentir pesado. imaginar- -me com um cinto ou uma mochila… credo, nem quero pensar no assunto. mas tem de ser, tem mesmo de ser!

algo em mim me diz que no meio de tantos erros estou a treinar uma coisa boa: a cabecinha. é que no meio de todas estas tolices que cometo, a cabeça começa a habituar-se ao desconforto, à dor, à vontade de desistir. ou melhor, a resistir à vontade de desistir. neste treino, recordo-me, não fui até ao fim, parei de correr uns oitocentos metros antes do final previsto. estava derrotado, é certo, mas bastava ter seguido a correr, de-va-ga-ri-nho, ali, em passinhos de bebé para depois, mais tarde, não me ter sentido mal por ter “desistido” à beira da praia.

claro que não foi uma desistência, claro que não foi uma desilusão. mas…

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vocês sabem, né?

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14puto, a meia é uma cena que não me assiste

13 de julho de 2013

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as férias já ficaram para trás e os hábitos alimentares voltam à (minha) normalidade.

hoje, treino de duas horas, sendo os últimos trinta minutos a setenta e cinco porcento do ritmo de competição.

que raio é isso de setenta e cinco porcento do ritmo? e que raio é isso do ritmo de competição? eu, confesso, ainda não consigo saber o que é competir e treinar. aliás, eu até acho que é nos treinos que sou mais rápido e consistente. nas provas… bom, nas provas estou com os amigos. nas provas é para nos divertirmos.

é ou não é?

não?

bom, façamos então um treino de duas horas.

eh pá, mas duas horas… é ir até ao muchaxo, regressar e depois, quando voltar aqui à zona do ginásio onde começo o treino, “farei piscinas” até chegar às duas horas.

hidratar.

hidratar, hidratar, hidratar.

hoje levo um cámel beque cheio de água. acabou-se a mariquice de não suportar o “pesozinho” no corpinho do menino. não me interessa, treinos deficientes por falta de água é que não.

à saída do ginásio, cruzo-me com o nuno e a irene. iam fazer padel. abracinho do costume, felicidade por me reencontrar com os amigos das corridas, saudades atenuadas.

foi um treino bom: fui hidratando; depois do cabo raso muito, muito

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vento, muita resistência; a cadência a ressentir-se... não há azar, é continuar, é seguir… seguir, mesmo que mais devagar.

os minutos a passar, os quilómetros a acumular. a minha cabeça a pensar que poucos meses antes, ali, naquela mesma estrada, estava a tentar perceber se conseguia, se o meu corpo já era capaz de voltar a fazer os “vinte quilómetros de cascais”. e agora, em pleno treino, estou a passar essas metas, para mim ainda míticas, dos vinte/vinte e um quilómetros.

acaba por ser um cabo bojador - um bojadorzinho, pronto! - mas é uma conquista muito grande. numa semana, no espaço de oito dias, dois treinos superiores à meia-maratona.

sorri, confesso.

terminei o treino muito cansado, as pernas ainda não habituadas à coisa… mas estava contente, estava mesmo muito contente. parecia um corredor, sabem? parecia aqueles treinos que o zé me conta que fazia, lá para as tais maratonas em que participa.

isto, claro, ainda distante dos tais treinos de vinte e oito e trinta quilómetros que ele diz ter feito, sob o solinho de agosto, e que eu também terei de fazer.

enfim…

o cámel beque é muito giro, muito bom mas só se corrermos com camisolinha.

para meninos parvos, esquisitinhos e encalorados como eu, lixa-me as costas todas. e quando usei aqui o verbo lixar, não o fiz com o significado de “fornicar”, assim como quem diz “fornicou-me as costas todas”. fi-lo sim, no sentido literal da palavra. o raio da mochila a andar de um lado para outro, lixou-me completamente a pele, aqui, assim, estão a ver, ao lado dos

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rins. um miminhos.

depois dos alongamentos (e conseguir alongar depois destes treinos? vai lá vai. nada dobra, estão a ver?), quando me fui colocar sob o duche, estava assim um fresquinho inusitado aqui nos costados.

daaaaaaasse!

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15e se escrevesse sobrea maratona?

18 de julho de 2013

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eu:gostava de escrever sobre esta minha façanha de me meter na maratona. mas ainda não acardito (à jesus), sabes? vou na quinta semana, mas ainda tenho dúvidas. pronto, gostava de escrever sobre estes meus medos. sim, nem que fosse sobre os meus medos. medo de me estar a meter nesta empresa e depois não conseguir. se calhar, acabo por fazê-la, por chegar à meta, quero escrever e depois já não me lembro.

(enfim, um totó em potência)

ele:é mesmo isso: escreve agora senão, depois, não te lembras. os medos, temores, receios e outros sinónimos perdem toda importância depois de atingido o objectivo. mesmo que não partilhes, escreve.

assim, num estilo de “querido diário”, para te rires mais tarde.

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1618 de julho de 2013

e encontro o bili

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vou na quinta semana de treinos. hoje o menu tem uma coisa que parece simples mas não é: cinquenta minutos de ritmo lento, seguidos de quinze minutos a cinco por quilómetro; depois, mais dez minutos a quatro quarenta e cinco por quilómetro e, finalmente, cinco minutos a quatro trinta por quilómetro.

quando vou ali, sei lá, já com dez minutos de treino a cinco por quilómetro, percebo que isto é uma loucura… como raio vou eu conseguir, no fim, fazer quase mais um quilómetro a quatro e trinta por quilómetro, como?

fez-se o que se pôde: saí de casa e apanhei a marginal em são pedro. segui até ao tamariz, regressei pelo mesmo caminho e percebi, pelo tempo e quilómetros percorridos, que tinha de ir gastar chão até à parede se não quisesse fazer piscinas de duzentos metros à porta de casa, até completar o treino programado.

vinha daquele pedaço de caminho de terra batida que existe na marginal, perto do choupana, estava já a chegar à ponta do sal, quando vejo um gajo montado numa bicla, parado, apoiado com um pé no passeio, barba, capacete, óculos escuros, equipado à triatletista, mas envergando na face não só uma densa barba, como também um sorriso “daqueles”.

carai, mas que rifa é esta que agora me saiu?

eu a olhar para ele - vinha a morrer, topam? - ele sem desligar o rosto de mim… estamos ali durante aqueles segundos que parecem uma cena de filme e ouve-se, então, da sua boca “pêdjaime, pá!”

esta voz, este tom, esta entoação… foda-se, mas é o bili!

o bili é aquele tipo de amigos que não sabe que existe o facebook. ou melhor - ou pior -, ele até sabe, não sabe é muito bem como é que há-de lidar com aquilo. assim, tem uma publicação de vinte e três em vinte e três dias,

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normalmente partilhas de actividades do garmin. ora, estamos habituados a partilhas dessas, pois vêmo-las diariamente. o bili faz questão - questão?… ele nem sabe como é que aquilo vai parar lá ao seu mural! - de ir mais além. é daqueles amigos que não entendemos muito bem por que raio ainda correm como se tivessem vinte e três anos, apesar de já estarem perto dos quarenta: treinos de natação de carcavelos até à torre, pedaladas de cento e tal quilómetros - se não for bem assim, não me desmintas, tonho! - e séries de mil metros, percorridas naquela velocidade com que habitualmente fazemos os quatrocentos metros. (cabrão!)

- pêeeeeedjaaaaaaime, como é que é? maratona, certo?- meu querido…

nestes mais de vinte anos que conheço o bili, posso afiançar… ora bem, digamos que o bili possui o mais ternurento gesto de mimo que é possível realizar entre homens. esqueçam o bacalhau em modo “passou bem”; esqueçam aquele bacalhau, mais erguido, tipo cumprimentos entre seguranças do “calor da noite”; esqueçam o beijinho; esqueçam o abracinho com beijo, modo “substituição a três minutos do fim, quando já estamos a ganhar três a zero, sendo que dois dos golos foram marcados pelo substituído”; nada disso. o bili encosta a palma da mão na cabeça, aqui, de lado, encostando o polegar na testa, percorre-a, então, de alto a baixo e, quando a concha da palma da mão se encaixou na maça do rosto, faz uma ligeira pressão com o polegar, de modo a comprimir a bochechinha. inatacavelmente único.

- tenho visto os teus treinos… e o zé, como é que ele está?- ó pá… como eu, na luta, nos treinos… sabes que ele já fez umas duas ou três…- eu também. eu tenho feito. agora ando de volta dos trails, dos mini iron man…- enfim…- ei, fazes a maratona na boa, vais ver!- como foi a tua primeira?- ó pá, uma estupidez. foi uma aposta. uns dias antes desafiaram- -me e eu lá fui. ia morrendo. andei imenso. pêdjaime, não te enganes.

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sabes, toda a gente anda.- é?- é, vais ver, fazes aquilo na boa. acredita em mim, na boa.- o zé também acredita que eu sou capaz…- ei, claro que és!…- (outro que agora também sabe do que é que eu sou capaz…)- … aquilo, vais ver, pêdjaime, aquilo passa muito depressa. sério, nem dás pelos quilómetros passarem. quando deres por ela… “eh pá, já fiz trinta e dois quilómetros?”… vais ver, toda a gente anda.- pronto, se o dizes…- eu estou inscrito para nova york, mas vou fazer também a de lisboa…- (coisa pouca) como é que conseguiste inscrever-te?- fui tentando. ano passado, não houve. agora, ao terceiro ano de tentativa, consegui lugar.- maravilha!- temos de combinar uns treinos… eu, quando vier do trabalho… sabes, fazemos uns treinos… falas com o zé para ele alinhar… olha, vamos para o jamor… aquilo é espectacular. e podemos fazer um treino porreiro para nós que já somos velhos…- (velhos? quê? velhos? ai o caralho… olha, olha, velhos…)… e precisamos de reforçar os joelhos e os tornozelos… fazemos umas rampas, vais ver.- amigo, vou continuar porque estou a arrefecer e ainda tenho uns minutos para terminar…- pêdjaime, aquele abraço.

a saber: não custa nada, passa num instante, toda a gente anda e somos velhos.

e é isto.

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1719 de julho de 2013

tomatudo

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tinha decidido que a machadada final em relação à decisão de ir ou não à maratona, o vai ou racha, aconteceria no momento em que chegasse o subsídio de férias e, com isso, a ajuda que faltava para a inscrição.

quando o recebi, olhei para o saldo e pensei “que desculpa arranjas agora? vais continuar a treinar sem te comprometeres para que, daqui a umas semanas, o exponencial aumento dos preços das inscrições seja a justificação falaciosa para desistires a meio?”

não podia hesitar.

e não hesitei. de manhã cedo, estaciono junto à feira de cascais e vou ao banif da vinte e cinco de abril tratar do assunto.

regresso ao carro, sento-me, fico a olhar para o raça do papel… e sorrio. um sorriso nervoso, frágil.

sorrio a medo. sorrio com medo.

chego à loja para trabalhar, ainda antes da hora de abertura, entro no face e…

o orçamento de um jantar e meio no ramiro obriga-me a criar este memorando visual precisamente para isso, para poder vir aqui relembrar que já não há volta a dar. que quando estiver com preguiça, com dores ou com outras paneleirices, houve um dia que cometi uma loucura (ó pedro, deverias ter gravado isso!) e fui pedir lá aos senhores que me deixassem ver se era capaz de ir de cascais até para lá do matadouro de beirolas, mas a fingir que os maquinistas da cê pê, da carris e do metro estavam todos de greve. por isso, agora, é assumir os prejuízos e lutar por um breique ívan.

(sinto-me tão estúpido, neste momento, caramba!)

its been a long time since i rock and rolled...

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o zé, o meu zé, comenta: “tomatudo”.

(não há volta a dar.)

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1819 de julho de 2013

cinto

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amanhã é dia de treino longo. agora, ultrapassado o das duas horas, segue-se o treino de duas horas e quinze minutos. com treinos desta duração já não pode ser, já não me posso ficar por ali, pelo paredão, onde me sinto “seguro” com esta minha mania de andar o mais leve possível: sem mochila, sem garrafas de água, sem géis, sem camisola…

no paredão, com a quantidade de bebedouros que lá estão, é mais fácil mantermo-nos hidratados e irmos matando a sede. nah, não pode ser. tenho de correr também para lá da guia ou de carcavelos. tenho de variar e ir mais além.

vou à decathlon, fico ali a olhar para os expositores e tomo uma decisão: vou comprar um cinto com uns coldres para as garrafinhas de água. querendo correr para locais sem bebedouros preciso de carregar líquidos comigo. é simples, vem nos livros. tenho de me habituar ao cinto. tem de ser.

escolhi um da marca da decathlon. veremos como corre.

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19mais outroacima da meia

20 de julho de 2013

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circunstâncias giras proporcionaram que a minha mulher viesse correr comigo. o treino de hoje era de duas horas e quinze e ela estaria comigo na meia hora inicial.

ora, o facto de ela estar na primavera desta aprendizagem das corridas obriga-a a correr bem lento. devagarinho, diria. está ainda a fazer os seus passinhos à bebé e, por isso, tudo é feito com mais cuidado, mais calma e com mais amparo.

para mim, a companhia dela é bestial: sei que a ajudo a ter juízo e a correr mais devagar, mas o facto de a acompanhar também me obriga a seguir no seu ritmo. correndo numa velocidade inferior à que estou habituado, acabo por fazer um aquecimento que só me beneficia e me leva a fazer um resto de treino com mais segurança, menos lesões e menos dores.

andei com ela sempre, ali, pelo paredão. neste local, temos mais de uma dúzia de bebedouros à mão (ou à boca, vá!), podendo recorrer a eles para andarmos sempre hidratados (e sem sede, claro!)

quando chegou à altura de ela parar e terminar o seu treino, eu segui em direcção à guia e, de lá, para o guincho. a descer para as furnas, cruzo-me com o bruno mesquita que já vinha a terminar a volta dele. ai fáive, palavras de mútuo apoio e lá sigo eu.

acabo o treino já para lá da meia-maratona

caramba, que coisa tão estranha, tão difícil de compreender. banalizei completamente, em meros três treinos, esse pequeno monstro chamado “vinte e um mil e noventa e cinco metros”.

não passei a fazer a distância sem esforço. não, nada disso. mas… o medo que acarretava de correr vinte e um quilómetros (e mais uns pozinhos) desapareceu de vez.

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ainda termino com muitas dores e os alongamentos são feitos com muita dificuldade. quando chego ao ginásio - de onde normalmente saio, onde termino e tomo duche - tenho de passar primeiro pelo power plate e só depois consigo dobrar as pernas, alongando-as em condições.

o cinto para as bebidas “funcionou”. eu poderia dizer que é um acessório aborrecido ou maçador, mas não, o que ele é mesmo é chato! porém, é um mal necessário. hidratar, hidratar, hidratar. não pode ser de outra forma.

a postura, a minha forma de correr, vai também aos poucos mudando. vai-se corrigindo. com isso, tenho menos dores nalgumas partes do corpo: o levantar da cabeça reduziu-me as dores no pescoço e o facto de contrair com mais coerência e cuidado - com mais atenção, diria - os músculos do tronco ou das pernas fez com que as dores que aqui e ali apareciam - nos joelhos, por exemplo - praticamente tivessem desaparecido.

serão indícios de “resultados”? quem sabe…

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2025 de julho de 2013

peso

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“… e vais ver, às tantas, quando deres por ela, estás seco, pá! com os treinos, vais ver, começas a perder peso…”

estas bonitas e esperançosas palavrinhas disse-me o zé num daqueles trezentos e quarenta e nove telefonemas que me fez, ao tentar convencer-me de que seria uma boa ideia iniciar este “casamento com a tropa” que é fazer um plano de treinos para a maratona.

e ainda mais bonitas seriam se eu visse resultados.

oh, merda, então não era para ficar magro, porra? aquelas palavrinhas soaram-me a promessas de políticos em campanha pelas feiras.

pertinente foi o comentário que a xana fez, lá no post onde escrevi isto: desconfia sempre do “vais ver”.

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21para lá de maratonistas, ultra-maratonistas

29 de julho de 2013

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tinha pouco tempo porque a minha mulher me ameaçou - e bem - “vê se te despachas que o bacalhau, depois, fica sem piada nenhuma”. por isso, por saber que iria ser curto, tentei que fosse mais rasgadinho.

mas não foi só por isso. foi também em honra do jota cê alves, meu irmão e meu “mentor de seita”, que ontem - juntamente com o seu irmão, meu parceiro de outros carnavais - fez uma prova daquelas que, se tivesse acontecido no estrangeiro, me faria ir recebê-lo à portela, de bandeira das quinas numa mão e a do vcl na outra, a cantar o seu nome e a gritar que “a picheleira é linda!”

muitá fortes, pá!

antes do meu treino leio um relato glorioso - como só ele sabe fazer - de uma não menos fantástica prova que o zé e o pedro fizeram: a ultra maratona atlântica melides-tróia. caramba, como é que esta malta das ultras treina? a que horas? quantas horas? de que matéria são eles feitos? de que forma olham eles para estas pessoas que tentam, durante doze ou dezasseis semanas, mentalizar o corpo e a alma de que são capazes de correr uns “míseros” quarenta e dois quilómetros?

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221 de agosto de 2013

treinar séries

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séries. caramba, que raio! mas é assim tão importante treinar séries? (sim, é. eu sei que é.) mesmo? (siiiiiiim.)

merda, merda, merda! se há dia que eu mandava para canto, na boa, era o de treinos de séries. a sério, séries é realmente o treino que não tem a ver comigo, não se adapta a mim, não me diverte… mas faço porque sou educadinho.

odeio séries!

(já se imaginaram a fazer séries? eu sei que sim, mas… refaço a questão “já se visualizaram, já viram imagens vossas a fazer séries de, por exemplo, quatrocentos metros?” ficamos ridículos! ou bem que temos corpo e garra de michael johnson ou ficamos ridículos naquele papel.

a cabeça, tudo bem, imagina-nos a galgar terreno, mas a realidade é completamente diferente.

ora tentem lá dizer em voz alta “rural”. até aqui tudo bem, não é? agora tentem “rural” em inglês. ahhhh, pois é! custa, não custa?

eu a correr séries sou ainda pior que eu a dizer “rural” em cámone.)

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233 de agosto de 2013

mais férias

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dizia-me o zé, algures no início deste meu plano, que o “bom e o bonito” aconteceriam quando chegasse agosto e, no pino do calor, começassem a pingar aqueles treinos de trinta quilómetros ou coisa assim.

carai, trinta quilómetros!

recordo-me muito bem de ver esses números quando ele postava os treques dos treinos que fazia, quando andou a preparar berlim ou paris.

trinta quilómetros! mas será possível?

há tantos anos que eu não fazia sequer vinte quilómetros e agora teria de chegar a altura de fabricar treinos com três dezenas de quilómetros. é que quarenta e dois, em boa verdade, a gente acha que é uma loucura, mas não deixará de ser um acontecimento único. uma coisa a não repetir. agora, fazer treinos - vários - com o algarismo três na casa das dezenas… quer-se dizer… vai lá vai!

recordo-me que ele dizia-me outra coisa quando lhe mostrava os meus treques: olha, quando fores lá para a terra da tua mãe, põe-te a treinar lá por aqueles montes que te fará bem.

mas bem a quê???

tudo bem, chego à terra numa sexta-feira à noite, deito-me e no sábado, acordo com espírito.

“vamo lá!”

ora bem: tenho de cumprir duas horas e quarenta e cinco minutos “lentos”. até aqui tudo bem. mas… e para que direcção hei-de ir? não me posso pôr a fazer uma hora e vinte para lá e outro igual para cá porque não sei se aguento, com estas subidas e descidas, fazer

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dessa forma; e chafarizes para repor a auguinha, como é, encontram--se por aí?

estou lixado.

bom, arrisquemos numa onda de circuito com cerca de vinte e poucos quilómetros e logo veremos se terei de fazer alguma coisa mais, para completar o tempo que venha a faltar.

saio da terra, vou em direcção à candosa pelo alcatrão, bem devagarinho, calminho, sempre muito calminho e enveredo pelo troço do rally. acho que só fiz isto de carro uma vez ou outra; a pé tenho a certeza de que nunca fiz. seja lá de que maneira for, para mim, será experiência nova.

subir, subir, subir. os primeiros nove quilómetros são sempre a subir. o troço é um deserto, a vista é magnífica, mas, confesso, sinto falta do mar. do mar e de água, de saber onde estão os chafarizes desta vida. sinto-me a arriscar demasiado. se por um lado fico à rasca porque o termómetro já toca os trinta graus, por outro fico a pensar que são estes treinos que nos criam calo para a prova.

chego ao fim do troço da candosa e reentro no alcatrão, desço para a ponte de sótão e decido subir pelos cunhais até sacões.

foda-se, no que eu me fui meter. estou metido numa subida com uma cadência na ordem dos sete e tal. aguenta, pedro, aguenta!

a água começa, aos poucos, a escassear. trouxe uma embalagem de gel que, estúpido, ao tomá-lo, deixei-o ficar por instantes na boca, fazendo com que toda a água do mundo não fosse suficiente para me tirar o sabor adocicado.

dor, dor, dor.

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estou a descer de sacões novamente para o troço. agora é em alcatrão com um pendor muito acentuado. sinto as pernas a fraquejar e decido fazê-lo quase a caminhar. não, não posso andar. nem que seja muito devagar, tenho de resistir, tenho de ir a correr.

estou com cerca de uma hora e quarenta e cinco de treino e uns dezassete quilómetros percorridos. o calor é abrasador.

tenho de resistir.

decido voltar a entrar no troço, tornar a subir para depois, então, voltar para trás algures a meio e chegar a minha casa perto das duas horas e quarenta e cinco de treino.

subo novamente. o calor, a bebida isotónica, provavelmente o gel ou simplesmente o facto de não ter jantado algo mais leve - já estava de férias, recordam-se? - deram-me a volta ao estômago e precisei de parar. não vou estar aqui com descrições exaustivas sobre o tema, mas também não estarei com nenhum rodeio: foi mesmo ali, a três metros da beira da estrada, que a coisa se fez.

ahhh, muito mais leve agora. continuemos.

continuemos sim, mas… e o calor? e a sede? uns metros à frente vejo uma coisa, uma construção parecida com um tanque para o combate aos fogos florestais. paro, vou até lá e deparo-me com um tanque sim, cheio de água mas… será potável? que se lixe, em casa farei um chá para limpar a tripa. bebi, soube-me bem, enchi os cantis, segui. ahh, que maravilha. prossiguemos. caramba, como isto de se beber água ajuda.

agora será sempre a descer: bum, bum, bum… as pernas estão num misto de fraqueza com uma robustez de pedra. doem-me imenso, principalmente os quadríceps. o esforço é enorme. vou controlando o relógio, vejo que o treino está já perto do fim. que se lixe, eu quero

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é chegar a casa.

quando entro na estrada que me leva da candosa a casa, naqueles últimos, não sei, dois quilómetros talvez, vou a correr já em modo automático, sem sequer pensar em nada. apenas a desejar o fim. porra, como odeio correr, como odeio a maratona!

última curva. vejo ao longe o chafariz que fica no fundo da minha casa. a cinco metros dele paro.

uuuuuuui! é muita dor.

olho para o gêpêésse e ele marca vinte e oito quilómetros e quinhentos metros. deus do céus, nunca tinha corrido tanto.

bebo água, encho o cantil e vou a subir aqueles cem metros até minha casa, com um ar desolador. estava longe de pensamentos de “dever cumprido” ou coisas assim.

não, nada disso, estava apenas cansado e nem sequer consegui alongar. tinha dores horríveis.

foda-se, odeio correr!

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246 de agosto de 2013

rampas

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compreender para que raio servem as rampas é algo que eu não estou nem aí para fazer. se os senhores que inventaram os “planos de treino” as lá colocaram é porque servem para alguma coisa.

porém, caramba, sempre foi algo que me fez espéce: então, mas… escolhemos primeiro uma subida, não é? depois, presumo, desatamos a percorrê-la, como a palavra indicia, sempre a subir. e depois, voltamos a descer? e se sim, como? a andar? a trotar?

hoje o treino era de cinquenta minutos lentos e mais umas séries de cem metros.

acordei, estranhamente muito cedo, comi e fui logo correr. estava a chamada neblina matinal. estava bom para treinar.

como este meu plano em nenhuma altura contempla os treinos de rampas, pronto, faço-as sempre que posso, sempre que há pica, oportunidade ou me lembre, durante o percurso, de ir “por ali” porque sei que tem uma subidita - por vezes nada pequenina, mas sim muito grandona.

lá na terra nem pode ser de outra forma, aquilo tem rampas mesmo só para ir da sala à casa de banho.

mais a sério, aproveitei que era um treino muito curto, apenas cinquenta minutos em ritmo lento, e decidi fazê-los maioritariamente a subir. ali, calminho, sem sol, sem calor… porreiro, muito porreiro.

deu para esquecer o inferno que foi o treino de sábado de manhã, aquele lá pela serra.

o fim do treino tinha oito séries de cem metros. chatas. séries para mim são coisas chatas.

fez-se.

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256 de agosto de 2013

volta de bicla

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a terra da minha mãe tem um molho de gente que se dedica ao btt. essa malta criou um grupo chamado os vncycles. há uns meses organizaram um passeio btt que percorreu as ruas, estradas e trilhos por lá, pela terra. um circuito muito giro, com cerca de vinte quilómetros.

alguns desses maduros dos vncycles calha de caminho serem meus amigos, amigos de “outros carnavais”. assim, um deles, o paulito, telefona-me no fim da tarde e desafia-me para dar uma voltinha com ele. nem hesitei, peguei na cabra do meu cunhado, enchi-lhe os pneus, botei luvas e capacete e lá fomos. a nós dois juntaram-se o marco e a catarina.

estava um final de tarde daqueles: solinho a descer, o calor a acalmar, umas minis num abastecimento em casa do tozito geraldes… mas, principalmente, a alegria de ter andado por sítios que desconhecia e que estiveram, ali, à minha frente, durante trinta anos que levo de férias na terra, sem que eu tivesse dado por isso.

a caminho de casa pensei: espera, e se eu aproveitar este percurso para o usar no treino longo de fim-de-semana? tenho chafarizes com fartura ao longo do percurso; não preciso de me preocupar com a água, nunca me afasto mais do que um quarto de hora - em ritmo de caminhada - de casa, caso me afecte o calor e tenha de parar; as subidas não são, digamos, de matar ninguém… parece-me perfeito.

a ver, a ver…

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26treinos durante as férias familiares

8 de agosto de 2013

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evitem preparar provas de corrida durante as férias familiares.

não, o calor é para meninos e isso não me afecta nem me afectará, pelo menos ao ponto de me fazer desistir, entenda-se.

mas, a saber, e de uma forma totalmente aleatória: salame, frango, sardinhas, entremeada, vinho alandra, salame outra vez, panaché, minis, bolo brigadeiro, melão, salame outra vez, cruássãs com doce de ovos, pãezinhos mistos - daqueles que se derretem na boquinha, tadinhos... - caracóis... finos e tulipas... mais cruássãs…

em boa verdade nunca ninguém disse, nem eu li nesses manuais de corrida e mais o camandro, que os gordos não terminam provas de corridas, não é?

vêm é mais devagar.

(e eu gosto de fazer as coisas devagar.... vocês sabem.)

post publicado no face depois dumas séries de mil metros, antecedidas por um aquecimento muito lentinho, na companhia da minha mulher.

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2710 de agosto de 2013

calooooooooooor

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amanhã termino as férias aqui na terra da minha mãe. por isso, hoje será o último treino por estas bandas. no plano diz que terei de correr três horas. porra, três horas não lembra a ninguém. ainda por cima com este tempo.

a voltinha de bicicleta que o paulito me mostrou servirá como inspiração para o treino de hoje; assim não preciso de andar a fazer contas ao número de minutos ou de quilómetros que devo correr “para lá”, antes de virar “para cá” num suposto bidon e regressar ao ponto de partida. é bem mais simples: ando aqui nos arredores ou até mesmo dentro da terra, tenho a facilidade de ter uns chafarizes aqui ou ali que me facilitam os abastecimentos e, se a coisa correr para o torto, estou sempre a menos de dez ou quinze minutos a andar (ou a coxear) até casa.

ponho o cinto devidamente artilhado com água, um ou dois géis da isostar e vamos lá!

começo com uma subida. é como gosto. não sei se é um erro mas é uma forma de me obrigar a iniciar mais lento. é de propósito e assim faço.

nestes treinos longos, nestas valentes secas, é bom variar os percursos. isto de concretizar um plano de dezasseis semanas já é um pincel dos valentes; ter o arrojo de repetir os percursos nestes treinos mais chatos é, parece-me, uma verdadeira estupidez. já bem basta estar um calor daqueles, o percurso não ser plano e… e estarmos de férias.

no fim da primeira hora de treino percebi que tinha mesmo de o fazer bem devagar, com muita, muita calma para não rebentar quando chegasse lá para os vinte quilómetros. recordo-me de ver treques gêpêésse dos treinos do zé e ficar maravilhado com a ventarola que era encontrar o algarismo três representando as dezenas no número de quilómetros percorridos. entendi logo, ao fim dessa tal hora, que ainda não era neste treino que o conseguiria imitar nas história do

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algarismos três.

que pena…

não faz mal, ainda tenho de comer muito bifinho para chegar aos calcanhares dele. porém, fico preocupado porque era suposto… não sei, quer-se d’zer… eu imaginava que nestes treinos o meu corpo já conseguisse ter resistência suficiente para aguentar treinar, durante mais tempo, a uma velocidade maior. bom, ainda estamos a meio do plano, veremos como as coisas correm nas restantes semanas.

além disso, o facto de apostar na altimetria em detrimento da velocidade - que frase do caneco. “altimetria” e “detrimento” assim uma pertinho da outra. que níbel! - faz-me “sentir” outro tipo de sofrimento que, parece-me, não será mau de todo para ganhar mais caparro mental. veremos.

com cerca de hora e quinze eu não tinha mais de doze/treze quilómetros e estava a começar a sentir-me mal dos intestinos. tenho a impressão que o jantar de ontem, somado com este calor, com o pequeno almoço - que eu julgava ter sido pequeno mas pelos vistos não fora tão minorca assim -, acrescido do gel que ingeri, foram a fórmula secreta para desencadear… uma ida à mata. e onde é que vamos fazer a ida à mata? isso, precisamente na mata.

para os que têm curiosidade em saber como é que eu me limpo, meus amigos, mata é mata. e se há coisas que a mata tem são folhas e outras ramas. além disso, isto é um treino, não é um baptizado, por isso, daqui a instantes um duche lava tudo.

ufa! pareço outro.quando julgava que agora seria sempre a rolar, aumentando a cadência e finalizando bem, o calor começa a ser insuportável, as subidas a incomodar mais do que julgava, a velocidade a diminuir substancialmente e as forças a fraquejar.

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chego a casa a bater as duas horas e cinquenta e faço, então, só mais uma volta pelas redondezas para completar o estabelecido. olho para os quilómetros e concluo que ainda não é desta que consigo chegar aos trinta quilómetros.

acabo com vinte e oito quilómetros, desgastado, quase sem conseguir andar mas, pior, novamente sem conseguir sequer me agachar para efectuar os alongamentos. socorro-me duma power plate que a minha irmã tem na garagem e que me chocalha os músculos das pernas, permitindo-me, finalmente, dobrar-me e alongar minimamente os quadríceps, os gémeos, depois os aquiles, os braços… foda-se, estou de rastos!

como é que estes treinos se traduziriam se fossem feitos lá no paredão? estas subidas andinas significam, depois, num terreno plano, um acrescento de quilómetros? conseguirei fazer treinos de mais de duas horas e trinta minutos a uma média de seis minutos por quilómetro ou o meu corpo não foi feito para tanto? deveria ter tentado outro plano?

que fazer?

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acumulado

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alves,

sabes que eu não ligo a velocidades, não ligo a classificações. mais do que uma vez, para não defraudar o interlocutor, inventei números porque é sempre chato quando nos perguntam “que tempo fizeste?” e um gajo não faz puto de ideia ou pelo menos não tem na memória.

vamo cingir-nos aos treinos para a prova de dia seis e, entre estes, aos treinos de fim-de-semana. mais: pegando apenas nestes treinos, caguemos para a sua duração ou quilometragem e vamos, finalmente, olhar apenas para aquela coluna que diz respeito ao “ganho de elevação”. estás a seguir-me?

assim, num treino de, sei lá, duas horas, duas horas e meia, coisa que faço habitualmente ali para os lados do guincho, apanho uma subida no parque palmela, aquela outra subida da boca do inferno - mais longa, com cerca de um quilómetro, que não mata mas que faz alguma mossa - e, no regresso, a subida para a bomba da guia. ou seja, durante aquele tempo todo, durante cerca de vinte ou vinte cinco quilómetros, os ganhos de elevação rondam, vá, entre os cento e dez e os cento e trinta e cinco metros. topas?

entretanto, antes de ir de abalada para férias, alertaste-me: “treina rampas!”, “faz umas subidas para ganhar calo.”, “é bom, é sempre bom.”, blah, blah, blah.

a pergunta que te faço é a seguinte: quando quase em desespero de causa me gritaste ao telefone “olha, por exemplo, vai lá por aqueles montes que ficam lá para trás da tua casa”, era em treinos como este que pensavas, assim, com um acumulado de seiscentos e cinquenta e cinco metros?

(ontem, no das três horas, fiz seiscentos e nove metros de acumulado. sabes que temperatura estava, não sabes? acredita, ou isto transposto para uma coisa plana, assim como a marginal, me dá, num espírito de

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equivalência à relvas, qualquer coisa na ordem dos trinta e cinco ou trinta e sete quilómetros, ou então, acredita, eu não tenho fé alguma que chegue lá. é que cago para a coisa, apanho o metro no terreiro do paço e vou comer caracóis ao filho do menino júlio.)

post escrito no face, no dia seguinte ao treino que descrevi no verbete anterior “27 - calor - 11 de agosto de 2013”

vale a pena curtirmos alguns dos comentários:

josé costa alves - o que tenho a dizer-te é que hoje fiz vinte e cinco quilómetros com duzentos e oitenta metros de elevação e acabei cagado. estava calor de mais. portanto, das três uma: ou chegas a outubro e estás toda roto ou ficas nos vinte primeiros ou então daqui por um ano estás a treinar para o utmb. enfim, único conselho: percebe o teu corpo. se estiveres rasgado de alto a baixo não tenhas problemas em deixar um ou outro treino de lado. mais vale chegares a cascais com um défice de treino do que um excesso de cansaço. um beijo grande de admiração.

pedro jaime - rasgado, não. mas acabo a coisa muuuuuito, muito cansado, entendes? a pensar “mas que raio estou eu aqui a fazer?”

(o próximo é de três horas e meia. se conseguir fazer, sei lá, entre trinta e dois e trinta e cinco, então acredito que lá para o dia seis estarei ô puã para me escangalhar até ao fim.)

josé costa alves - pensa que trinta e dois ou trinta e cinco foi uma distância organizada para terreno plano. se vais subir e com este calor, poupa-te a essas distâncias. a menos que estejas a treinar para uma ultra...

pedro jaime - (na terra não havia sítios planos, tu sabes.)

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reforço

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estamos no final da nona semana e o plano de treinos diz-me que tenho de correr três hora e meia seguidas. repito, três horas e meia.

há uma semana tinha corrido três horas e não posso dizer que as coisas tenham, passe a expressão, corrido bem. quer dizer, não sei se correram bem ou mal.

se calhar, treinar é isto mesmo, é fazermos as coisas mesmo que fiquemos com a impressão de que estamos a anos-luz de… como é que eu hei-de dizer isso… é acharmos que ainda não conseguimos, que ainda não temos corpo para correr quarenta e dois quilómetros.

e cabeça, teremos?

a verdade é que durante esta semana, uma dúvida pairava no ar: “será que se o treino de há uma semana tivesse sido num terreno plano, precedido de uma alimentação, digamos, mais adequada a corridas que a baptizados ou casamentos, eu teria conseguido ultrapassar esse ‘cabo da boa esperança’ que é a marca dos trinta quilómetros?”

por outro lado fiquei com a sensação de que não ando a dar ao corpo, durante o treino, tudo aquilo de que ele precisa e deseja.

tenho a sorte de ter, no meu grupo de amigos facebookianos, uma dúzia de corredores experimentados ou graduados pê tês. mando uma mensagem/circular a todos e peço-lhes duas ou três dicas sobre o que comer antes, durante e depois do treino, frisando que o mesmo terá uma duração de três horas e meia.

por estarem em férias, por não perceberem que sou um analfabeto, no que respeita aos grupos de alimentos, já que não faço a mínima ideia do que é um prótido, uma proteína, um hidrato ou o raio que o parta, acabei frustrado com as vagas respostas que gentilmente me deram.

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esperava que me falassem no gel ou no pó assim ou assado, sabem? ou então que me disessem, precisamente, para evitar esses produtos, as tabletes, as proteínas, os isostares ou lá o que aquilo é.

um ou dois dias antes, recordo-me, tinha estado na loja de produtos do género - lá dessas coisas que eles tomam no final dos treinos - do cascaishopping e as respostas às minhas perguntas foram tão… (enfim)… vagas, digamos, que achei que o moço estava ainda em formação.

voltando às respostas, o mesquita foi mais preciso: os géis, barras ou tabletes têm a indicação no rótulo se devem ser tomados antes, durante ou depois do treino; entre os que são indicados para o “durante”, existem também indicações (orientadoras) sobre o intervalo entre cada toma; depois é arriscar nos sabores, é ir adaptando a carteira e a boca à oferta. de resto, as diferenças de qualidade não são assim tão grandes como possam parecer. insistiu - não só ele como todos os amigos a quem perguntei - que num treino com esta duração, uma bebida isotónica com sais é imprescindível. sugeriu-me uma da marca decathlon, aptonia, que, em boa verdade, não tem um sabor tão bom quanto a isostar mas não mata ninguém. serviu, pelo menos para ver que “serve”.

o ricardo teve um email bestial e recomendou-me uma coisa de que eu já tinha ouvido falar mas pensei que saberia a comida para hamsters: papas de aveia.

“pedro jaime, vais à net e procuras a receita da bimby. depois, se te apetecer, adiciona à confecção umas nozes ou umas passas. fazes na noite anterior e até podes logo comer metade. se gostas de arroz doce, gostas também disto. até dá para polvilhares com canela. gostas de canela? então, vá! de manhã, quando acordares comes a outra metade que deixaste da noite anterior. se quiseres, depois, podes, então, comer a tua sandocha com peito de peru, acompanhada por sumo de laranja. acredito que não terás muita

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fome durante o treino. podes comer uma banana durante o treino ou no fim. quando acabares, já que gostas tanto de snickers… vá, pronto, podes comer um porque mereces.”.

era mesmo isto que eu queria ouvir, queria que alguém me desse uma receita. pronto, simples, assim sei por onde hei-de começar.

saio do trabalho e dou um salto à decathlon. não estão a ver bem o ar com que fiquei quando me dei conta de que, apesar das indicações do mesquita, a oferta e a variedade de produtos - géis, tabletes, garrafinhas, pastilhas, pós - deixa um gajo sem saber muito bem por onde começar. bom, mas vamos lá, então olhar para os rótulos. chiii, isto é pior que as bulas do ilvico ou do dinintel. e agora?

acabei por trazer uns de limão da isostar e uns outros, também da isostar, com sabor a cola e com um tipo de embalagem mais prática de abrir e de ingerir.

do supermercado veio o pão, bem como as laranjas para espremer de manhã. à noite foi pôr a bimby a bombar.

os dados estão lançados.

(muito, muito nervoso e ansioso - estou a exagerar - para o dia do treino de amanhã.)

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um dois, um dois, teste

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ok, então três horas e meia, não é? muito bem.

primeiro que tudo, para onde é que hei-de ir, que direcção devo seguir se quero fazer três horas e meia? ou melhor, correndo isto como espero que corra, hoje passarei os trinta quilómetros de treino, com sorte chego aos trinta e dois ou trinta e três. assim, para onde me devo dirigir caso pretenda fazer estes quilómetros sem que me meta em grandes subidas, sem que ande no meio de carros, por onde possa, aqui e ali, abastecer-me de água? não será fácil, acredito.

olho para o mapa e decido: até ao abano pela ciclovia, regresso pelo mesmo caminho e, quando estiver perto da karen, no escotilha, decido, pelo tempo que ainda me restar, para onde e até onde devo ir.

acordo por volta das sete horas e trinta minutos - a fingir que estou a acordar no dia da prova - e como as papas de aveia que tinha feito na noite anterior. em seguida, marcha mais uma sandocha com peito de peru e acompanho-a com um suminho de laranja. faço as defecções e as abluções, preparo o cinto com as isotónicas, os géis e a música, e siga!

deixo o carro no estacionamento do ginásio e… são nove horas e dez minutos, vamos a isso!

na marina faço a primeira paragem na loja da sandra. deixo-lhe um saco com uma banana que espero comer no regresso. desta vez não tive a minha mulher a pautar-me um ritmo lento nos primeiros quinze ou vinte minutos que me obrigasse a aquecer. desta vez aqueci por mim, ou seja, não aqueci. mas comecei com cabecinha, tentando que os primeiros quilómetros fossem na casa dos seis minutos, cadência que, imagino, possa ser a minha durante a maratona, que é já dali a mês e meio.

apesar do desconforto com o aipode (a minha filha foi de férias

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levando consigo o seu émepêtrês. assim, tive de me socorrer do meu aipode classique (estão a ver a peça, não estão?), com uns auscultadores que debitam bom som mas estão sempre a escorregar-me da jorelhas e, ainda, do cinto onde carrego as bebidas, os géis e o resto. o ritmo está bom, calmo como eu desejo e não sinto nada de anormal. é um treino como outro qualquer.

nos oitavos o vento faz a sua aparição. tudo bem, o passo começa a ficar mais lento, mas consigo resistir em segurança. quando dobro o cabo raso, passo a apanhar com o vento de chapa. foda-se, isto hoje está complicado. a cadência diminui ainda mais. neste momento devo estar a correr a aproximadamente mais trinta ou quarenta segundos por quilómetro do que é o meu habitual. vou a bolinar.

quando chego ao porto de santa maria, a areia da duna começa a praticar em mim uma espécie de body piercing. se por um lado corro sem camisola porque não aguento com o calor - estamos em agosto, não esqueçam - por outro lado, se calhar, uma vez que vim para o guincho, teria sido boa ideia fazer este pedaço de treino com camisolinha. e óculos, já agora.

não desisto nem paro. passo o guincho, sigo pela estrada que vai para a malveira e corto para o abano. aí, consigo descortinar um carreiro que acompanha a estrada pelo lado direito e sigo por ele.

vento, vento, vento, subir, subir, subir.

porra, esta parte é mesmo complicada. sede, começo a ficar com sede e sinto as pernas a fraquejar de vir há uns quantos quilómetros curvado para me defender do vento.

ahhhh, o forte do abano, abençoado sejas. aproveito os últimos metros que são a descer, deixo-me ir, contorno o forte e… e o pior, espero, já foi.

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bom, não passou a ser nenhum paraíso, mas o vento agora está nas costas. vendo bem as coisas, nem sequer sinto o vento. ou seja, o vento só se sente quando nos impede de prosseguir, quando nos está a ajudar nem damos por ele. mas o cronómetro dá.

resistir, resistir, resistir.

no muchaxo encontro um amigo dos velhos tempos, dos tempos dos mapas, a passear de bicla. conto-lhe que estou a treinar para uma maratona, sorri, acha que sou maluco mas apoia-me durante o percurso de regresso.

que alívio. dá ideia que se acabaram as subidas, as descidas, o vento… vou em velocidade de cruzeiro.

quando chego à guia, paro para reabastecer junto das bicicletas. agora sim, daqui para a frente sei onde estão os chafarizes, posso dispensar, se quiser, as garrafas que transporto comigo e posso começar a fazer uso dos géis. vou com cerca de duas horas de treino, estou perto dos vinte quilómetros e as coisas nem estão a correr mal de todo.

na marina passo pela sandrinha e como a banana que tinha deixado na ida. em breve estarei no paredão. sinto que a cadência está mais lenta mas ainda continuo a seguir, a maior parte das vezes, abaixo dos seis minutos por quilómetro. são as pernas a ceder, faz parte.

chego ao escotilha, olho para o relógio e vejo que ainda tenho uma hora de treino pela frente. faço umas contas rápidas e, uma vez que tenho meia-hora para lá e outra para cá, se tudo correr como até ali, acredito que consiga ir até à ponta do sal.

calor, calor, calor. estamos perto do meio dia e está um dia de praia daqueles. serpenteio pelos bares e esplanadas, olho para pratos de peixe grelhado, para hambúrgueres, para bandejas cheias de canecas

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de cerveja… em frente, seguir em frente. quando me aproximo da praia da poça decido rapidamente subir as escadas da azarujinha, fazendo um esforço de trinta ou quarenta segundos, em vez de subir pela marginal, façanha que não tenho certeza de conseguir concretizar.

chego à ponta do sal, bebo água. aliás, bebo muuuuita água e praticamente tomo banho naquele chafariz. dou a volta para regressar, levanto a cabeça, vejo lá ao longe o hotel onde se localiza o ginásio, olho para o relógio, olho para a praia, para o sol, sinto o calor e não acredito que ainda me falta uma boa meia hora. percebo que o gêpêésse está a dar-me as horas e não as informações da corrida. carrego lá nuns botões e… eh pá, o algarismo das dezenas, no campo da distância percorrida, tem um três em vez de um dois. foda-se, pela primeira vez atinjo uma distância de trinta quilómetros. caramba, aquilo que o zé me dizia “quando chegares a agosto e tiveres de fazer aqueles treinos a pingar os trinta quilómetros é que verás o que…” está agora a acontecer. caramba!

porra, pensando bem, isto nem sequer é a prova. porque raio devo eu continuar? isto está tão difícil, está taaaanto calor, doem-me tanto as pernas, as coxas parecem pedra. acho que já nem reagem. será isto o malfadado muro? terei eu exagerado com a cadência que assumi na primeira e segunda hora? ou será, apenas, isso mesmo, resultado de um treino longo, muito mais longo do que eu alguma vez tinha feito?

não era suposto, depois de dois treinos lá na terra, com aquelas subidas e tal, este ser bem mais calmo e… e, assim, como se fossem três horas e meia a rolar, suave e tal? porquê, porque é que está a ser assim, com tantas dores e tão difícil?

três horas e vinte. três horas e vinte? bolas, estou quase a chegar e ainda tenho de correr mais dez minutos? não consigo. juro que não consigo. não me estou a divertir, não quero correr mais, não quero

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treinar mais. odeio correr! reparem no que eu disse que é verdade, eu odeio correr! maratona? que coisa mais tola.

três horas e vinte e três. oh meu deus, eu estou tão farto. ah, o pontão da praia da rata. nahh, este eu tenho de fazer. é ponto de honra fazê--lo sempre que passo aqui e, além disso, sempre dá para queimar mais uns minutos.

já vejo os painéis do nadir afonso… acabe-se com isto, já! o gêpêésse até autopause tem, logo, de certeza absoluta que os momentos em que tive de parar, quer para beber água, quer para comer ou até para prender os atacadores, esses momentos todos somados são muito mais que o tempo que falta para acabar…

estou já pertinho da entrada do ginásio e ainda me faltam dois minutos? oh foda-se, vou voltar para trás, até ali à entrada do parque de palmela…

três hora e trinta minutos. trinta e cinco quilómetros e duzentos e dez metros.

quero morrer.

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vaselina

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o acordar é estranho.

terminado o treino, vou muito devagarinho para o ginásio. o corpo está muito preso, muito cansado. estou nitidamente pouco hidratado - ia escrever desidratado mas parece-me… um exagero -, preciso de beber muita água, preciso de me colocar em cima do power plate para ver se agito as moléculas. tento dobrar-me para alongar e não consigo. estou mesmo muito perro.

deito-me no chão e deixo-me ali ficar, a pensar, a tentar perceber como é que fica um corpo depois de três horas seguidas a correr, em condições meteorológicas, digamos, adversas. pino do verão, muito, muito, calor.

dizia, o acordar é estranho. não tendo feito os alongamentos em condições - estúpido! - o corpo ressente-se.

o banho funciona como que uma sindicância às partes do corpo escaqueiradas: tenho uma bolha sob um dos dedos do pé esquerdo - nada de grave; tenho o rabo completamente assado; tenho as virilhas em ferida; tenho a pele junto da coluna, ali na lombar, toda raspada por causa da costura das cuecas e da acção do cinto que carrega as garrafinhas; a própria pilinha tem a pele assada…

enfim, vou fazer uma cura de betadine e de bepanthene e prometer que a aplicação de vaselina será um dos trâmites que deverão ser cumpridos, o-bri--ga-to-ri-a-men-te!

mas sinto-me confiante, sabem? pela primeira vez vejo uma beca de luz ao fundo do túnel. ainda acho que não dá para fazer a maratona - e não, não são “só mais sete quilómetros” -, mas sinto que nas semanas que faltam vou conseguir solidificar a resistência física e mental para acabar a coisa.

maldita coisa!

por outro lado, também fico contente por saber que o treino não foi

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limpinho. funcionou como um laboratório “vivo” de estudo para o dia que se avizinha. há coisas a melhorar, a rectificar (o uso da vaselina, adesivos para os mamilos e para a etiqueta das cuecas..) e há outras que vieram para ficar (as papas de aveia, os géis…)

é continuar… é continuar…

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flocos de aveia

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googla-se “flocos de aveia bimby”; de entre muitas receitas, foi esta a que escolhi.

duzentos e cinquenta gramas de leitetrinta gramas de flocos de aveiavinte e cinco gramas de açúcardez minutos/noventa graus/velocidade dois e meio

um abraço especial ao ricardo santos que me deu esta dica. nunca imaginei que os flocos de aveia pudessem ser ingeridos acompanhados com açúcar.

mais tarde percebi que restos de banana lá para dentro também fazem uma conjugação bem catita. depois, ainda, li que casca de limão dá um toque do belo e, por fim, decidi que se adicionasse passas ou sultanas e miolo de nozes, ficavam umas papas muito, muito boas.

e canela, obviamente… como se não houvesse amanhã.

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música

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acho que já disse por aqui: nunca tive muito o hábito de correr com música. ou porque costumava andar pelo alcatrão junto dos carros, ou porque me incomodava, ou por outra coisa qualquer, a verdade é que não era grande freguês da coisa.

os treinos longos fazem-nos pensar de forma diferente. são coisas que duram muito tempo, muito cansativos e a música, para quem gosta, é uma das coisas boas que não só nos pode distrair como, nalguns casos, proporciona um alento extra que vem sempre a calhar em certas alturas.

a minha filha tem um leitor fixola da philips: pequenino, maneiro, quatro gb, som decente. é com ele que tenho corrido quando preciso de usar a tal música de que falei ali atrás, durante os tais treinos longões. calha de caminho o raça da miúda ter ido com a mãe passar uns dias fora e eu tive de voltar a buscar o meu aipode classique. quem conhece a peça sabe que não é propriamente a melhor opção no que respeita aos itens “peso” e “tamanho”. além disso sou um moço pouco dado a armbands ou objectozecos carregados nas mãos. assim, a coisa ou vai entalada na cintura, tipo “chocolate gamado nos supermercados” ou no cinto que agora me tem acompanhado para carregar as garrafas de água e os géis.

ao fim de duas horas de treino, percebi que não só são importantes as características dos auscultadores como também o peso e as dimensões do leitor de émepêtrês. ou da telefonia. ou do leitor de cassetes. ou…

assim, no fim do dia de hoje coloquei um anúncio no mural do meu face:

alguém quer desfazer-se de algum leitor de émepêtrês que já não use?

(bem sei que os que têm melhor som são os da sony, mas se houver por aí algum apple da quinta geração...)

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digamos que não tive sorte nas respostas. parece que tenho de convencer a minha mulher a usar o seu aifone libertando-me o seu chiquérrimo aipode rosa choque.

pimba!

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3420 de agosto de 2013

memórias caninas

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hoje no treino, caramba, tive o azar de me lembrar do cheiro, da textura e dos gestos do meu cão. que merda! fiquei mesmo à nora.

permitam-me o desabafo, mesmo que parvo e descompensado (eu sei que é): nem vinte gatos, amigos, fofinhos e mais o camandro, compensam as memórias que um cão deixa em nós.

amigos bem me avisaram “vais correr ao sol? hidrata-te, pá!”. deve ter sido isso que falhou hoje.

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3522 de agosto de 2013

séries, muitas.

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o plano dizia que deveria aquecer durante trinta minutos num ritmo lentinho e depois arrancar com quinze séries de quatrocentos metros.

decidi trocar o aquecimento por uma aula de rpm e, de seguida, meter-me em cima de uma das passadeiras, sintonizar a velocidade da máquina, assim, em modo “a rasgar” e usar o conta-quilómetros para fazer as malditas séries.

quinze? porra, quinze não lembra a ninguém. eu simplesmente odeio séries. ainda por cima em modo “deslarga-me que se não eu fodo--te os cornos!”

tinham de ser em oitenta e cinco segundos cada uma. acho que nem na primeira consegui esse desempenho. mas não faz mal, se fosse perto desse tempo já me dava por satisfeito.

na quarta ou quinta série já eu não via nada nem ninguém. a ideia era, como disse, começar a correr, ir aumentando a velocidade carregando lá nos botões da máquina e, quando concluísse os quatrocentos metros, pressionar o botão de pausa, sair, caminhar durante uns poucos segundos, beber dois ou três goles de água e regressar para nova série, antes de a máquina desligar de vez.

duro, muito duro.

perdemos a noção do número das séries. temos sempre alguém imaginário atrás da orelha a puxar-nos para pararmos à nona, ou à décima terceira - afinal que diferença fará concluir treze ou quinze séries? é assim tão importante? - ou até a pôr-nos em dúvida se já fizemos as quinze ou se ultrapassámos esse número.

repito, dureza.

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3623 de agosto de 2013

rpm

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o albuquerque anuncia pelo face que vai fazer uma aula de rpm dedicada aos clássicos.

dou uma volta pelos meus alfarrábios, faço uma selecção, lanço a escada e escrevo-lhe a dizer que “bom, bom, seria uma aula assim ou assado, com esta na primeira faixa, esta na segunda, esta na terceira…”

diz-me para aparecer porque o negócio está fechado. assusto-me, entretanto, porque ele lá pelo meio menciona que será uma aula de duas horas.

olho para o plano de treinos, olho para a minha vontade de pedalar ao som do boys of summer, olho outra vez para o plano, começo a fazer contas e chego à conclusão de que terei doze horas para me restabelecer da aula, antes de iniciar o treino. ainda por cima, um treino com a distância de uma meia-maratona.

na pior das hipóteses… corramos mais devagar, ora!

valeu a pena, foi uma aula nota mil. forte. forte, mas muito, muito… “coisas d’antigamente”.

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37meia-maratona em modo treino

24 de agosto de 2013

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vento.

não é novidade para ninguém, guincho nos meses de verão é sinónimo de vento. nós é que, como começamos a correr ainda do lado de cá, achamos que “nah, desta vez é que será um dos tais dias em que o vento abandonou o guincho”. mas não, nunca é assim.

até aos oitavos a coisa corre bem. pelos oitavos a coisa que começa a “correr bem” é precisamente o vento. corre-nos pela peitaça e pelos cabelos. quando dobramos o raso já a coisa fica insuportável. ao passarmos pelo porto de santa maria ou pelo arriba, a areia, tão fofinha, vem fazer companhia ao vento. e fustiga. e fustiga. e fustiga. e é nesta altura que compreendemos o uso da areia para decapar os cascos dos navios que estão nos estaleiros para serem reparados e pintados de novo.

quando chego à loja da sandra, na marina, para comer a bananinha e o chocolate que lá deixei de manhã, ela olha-me com ar abismado e exclama “mas… mas tu estás cheio de areia!”

tenho de arranjar uma solução para a porra do cinto porta-garrafas. pelo menos no verão, sem camisola, é complicado conciliar a necessidade de se levar água e as isotónicas para aqueles lados do guincho - onde não há chafarizes - com o facto de as costas depois ficarem todas marcadas e em sangue, por causa do roça-roça do cinto na pele, aqui, na lombar, junto da coluna.

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3826 de agosto de 2013

agadir

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a recordar o momento em que ouvi o alone dos liquideep durante o treino

ali, na parte em que os oitavos começam a ser cabo raso e onde o vento é tão forte que se um gajo der um passo maior que a perna aterra... em agadir.

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3927 de agosto de 2013

sol

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dia daqueles complicados no trabalho.

escolho fazer o treino no final do dia. está um daqueles finais de tarde de verão. vinte e quatro graus, marcava o termómetro às seis e cinquenta. uma hora e meia em ritmo lento, ordenava o plano para hoje.

ahhh, este sol… este sol amarelo torrado… eu tenho de voltar para a ciclovia.

sigo, num ritmo calmo, como manda o figurino, mas percebo que não vou tão calmo quanto é desejável.

está mesmo uma tarde daquelas.

ali perto do coconuts cruzo-me com a sandra e a renata que estavam a terminar o treino delas.

adoro cruzar-me com gente conhecida.

continuo em direcção ao guincho. hoje não há vento nenhum. do meu lado esquerdo tenho a companhia do sol, já a aproximar-se do mar.

olho para o relógio e reparo então que não vou, mesmo, assim tão lento. estou bem, estou mesmo bem e cago para esse facto. hoje quero correr à velocidade que as minhas pernas pedirem.

o regresso é com outras cores. tenho o sol a pôr-se nas minhas costas e a pintar os verdes da quinta do champas com uma tonalidade de verão. perto das furnas vejo a susana silva. que maravilha, ergo o braço e ai fáive!…

termino às portas do ginásio, já com dezasseis quilómetros e meio no bucho. faço as séries na passadeira, duras, durinhas. oito vezes

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cem metros.

hoje foi um dia (treino) dos bons.

estava feliz.

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40treinos grandes demais para a hora de almoço

29 de agosto de 2013

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e agora, como é que eu consigo encaixar os treinos no período do almoço? eu que já tenho a sorte de ter duas horas para almoçar, mesmo assim, começo a não conseguir ter tempo para realizar os treinos que o plano me pede para fazer.

não gosto muito dos treinos de final de dia. rouba-me aquele bocadinho de tempo de lãzeira pré jantar.

mas vão ter mesmo de passar a ser nessa hora.

azarito!

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4130 de agosto de 2013

vício

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a ouvir no youtube o we make love, um mashup da rhianna e dos daft punk

porque é que eu insisto tanto em pensar e em dizer que não gosto de correr se chego aqui, a sexta-feira, e fico ansiosíssimo por aqueles treinos looooooongos de sábado, em que “fujo” para o guincho e fico ali, a sofrer, cheio de sede, a levar com vento, com areia... porquê?

este mashup destas duas cantigas, o momento em que viramos o cabo raso e a serra fica ali, assim, de frente... o marzão do lado esquerdo, a estalagem lá ao fundo, o barrão no mar... pronto, é por isso.

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4231 de agosto de 2013

treino de alterne

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o papelinho com o plano da coisa não tinha lá nenhum dos treinos longos habituais. desta vez, mandava-nos alternar momentos lentos com momentos mais velozes.

trinta minutos lentos para aquecer.

foram feitos mesmo nas calmas, como habitualmente faço em qualquer início de treino. até aqui tudo bem. passa, então para vinte minutos rápidos. ok, então e esses tais vinte minutos rápidos deverão ser “rapidinhos” ou “vinte minutos a abrir como se fosse acabar logo ali o treino”? pois, nunca saberemos, mas optei por correr ali na casa dos quatro quarenta e cinco, que para mim é muito puxado.

no fim desses vinte minutos tenho agora dez minutinhos que, espero, possam ser de descanso. descanso activo, como se diz na sport tv. descanso com bola, à mourinho. curiosamente, por vezes o corpo é tolinho e é enganado pela cabeça com uma pinta do caneco. assim, se subirmos “apenas” vinte ou trinta segundos, o corpo acha que estamos a descansar quando, na realidade, estamos a correr bem mais rapidamente que o “normal”. sendo que o normal é uma coisa que nem eu sei muito bem o que é.

passemos a mais outro intervalo, mais rápido, agora de dez minutos. será que aguento outros dez minutos como os vinte que fiz há pouco, ou será que, no espírito dos programadores do treino, a ideia é pôr o corpo a aguentar-se à bronca com estas mudanças de velocidade? seja como for, dá para perceber que uma coisa que, inicialmente, poderia parecer ser “dez minutinhos mais velozes” começa a ser “dez minutões fodidos”. a velocidade aumenta mas já não atinge os níveis do outro intervalo. ainda assim, são dez minutos na casa dos quatro cinquenta e cinco por quilómetro. horrível, francamente horrível. não é assim que gosto de correr. não é mesmo.

os cinco minutos que se seguem, lentos, são feitos bem cá para baixo, ali na casa dos cinco quarenta e com a cabeça a mil. sucedem-se as

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perguntas habituais: mas por que é que eu me meto nisto? mas por que razão preciso de fazer este tipo de treinos, se eu não tenho interesse algum em fazer uma “marca”, mas apenas quero chegar à expo vivo? e que tal se eu “arredondasse” este treino, daqui para a frente, para uns finais vinte cinco minutos lentos? trinta, pronto! por que não?

é uma gestão complicada, não sei explicar. aliás, qual gestão qual carapuça, nem sequer a cabeça consegue lembrar-se se ainda faltam vinte ou trinta minutos.

depois, ao calor associa-se o cabrão do vento que invariavelmente invade o guincho nesta altura do ano. merda!

cinco, cinco minutos. provavelmente, nem um quilómetro sequer será. cinco minutos em ritmo rápido é o que falta. vá, deixa-te de mariquices, vamos lá!

e fui.

e foi indescritível.

claro que já nem baixei os cinco trinta. foi uma espécie de “fez-se o que se pôde”.

vinte minutos lentos para acabar. faço questão de que sejam mesmo, mesmo, mesmo lentos. bem para lá dos seis minutos por quilómetro.

que canseira.

que treino sem um pingo de prazer.

que horrível.

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acho que já aqui falei na importância de encontrarmos, durante o treino, pessoas conhecidas. do como sabe bem aquele erguer de braço em modo ai fáive ou um mero polegar ao alto quando nos cruzamos com um corredor. hoje, já bem perto do cabo raso, voltei a encontrar a irene e o victor que também andavam por ali a preparar a sua meia-maratona. é como vos digo, mesmo não estando a treinar com eles, só o facto de ter ouvir um “pedro!!!”, dá-nos um ânimo extra de que este treino bem precisava. com o bili é igual. sempre que encontro o bili, ele de bicla e eu a correr, há uma sintonia, uma comunhão que vem habitualmente “vestida” de um “pêdjaaaaaaaaaaaaaime, cuméqueé?” que só o bili sabe gritar.

e é tão bom.

repito, principalmente nestes treinos, sabe muito bem saber que não somos os únicos “parvos” com manias estranhas, como por exemplo decidir fazer uma maratona ou fazer treinos intervalados num sábado de verão. termino o treino na marina junto à loja da sandrinha. enquanto bebo água, água e água, como uma banana e finjo merecer um snicker, descarrego nela toda a minha ira e desalento com este plano de treinos. e, principalmente, com esta coisa dos “intervalados”.

eu sempre disse que não gostava de correr.

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433 de setembro de 2013

greta na brasa

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(post no facebook)

estava um pôr-do-sol na guia que... eh pá, eu estava até com medo que viesse um fiscal cobrar bilhetes, sabem?

abraço ao walter, à neah e ao filipe. digo e repito, sempre que me dê na real gana, é show de bola quando nos cruzamos com gente conhecida.

zé, às tantas ultrapassa-me uma gaja, assim com aquele corpo de kristiansen mas com cara de greta waitz, que deus tem, tadita. ia num pedal daqueles. sabes quando a gente é ultrapassada por ferraris e pensa “carai, a que velocidade é que o gajo irá? a mais de cem, imagino!”. bom, decidi investigar e fui atrás dela durante bué de tempo (ok, foram aí uns trinta e quatro segundos) para tentar medir-lhe o pace com o meu gêpêésse slaice otrónic.

ia a três quarenta e sete.

enfim...

(comentários do zé:“greta na brasa.“tinha de dizer, não sei por quê...”)

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445 de setembro de 2013

mais séries

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é inevitável. agora será sempre assim, séries atrás de séries. desta vez trinta minutos de aquecimento, lentos, calminhos, seguidos de cinco séries de dois mil metros, feitos, ali, na ordem dos dez minutos por série.

é, de caras, o treino que mais dificuldade tenho em fazer. o que puxa mais por mim. o que me obriga a mais sacrifícios.

meti na cabeça - e sinto no corpo - que não consigo ser veloz. gosto de andar por ali, mais calmo, a pensar… a pensar em merdas.

cada vez maior a vontade de desistir desta tropa!

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456 de setembro de 2013

treino acompanhado

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durante a preparação para a maratona foram raros os treinos que fiz na companhia de outra pessoa.

tive alguns em que aproveitei a suave velocidade da minha mulher, que me obrigou a começar devagarinho e a preparar-me para não abusar, permitindo-me, assim, ter pernas para quando o treino passa as duas horas e meia. nos restantes, corri sempre sozinho.

nada contra. habituei-me.

no fim-de-semana não tenho o treino longo que está programado porque vou fazer uma prova de btt. assim, decidi fazer um terceiro treino na sexta-feira.

a sandrinha está a preparar a sua primeira meia-maratona. ela com aquele frio na barriga por não saber “se aguenta”, eu num descrédito supremo por estar farto desta trampa e por não sentir necessidade de “fazer uma maratona”.

combinamos os dois um treino de final de tarde: - às sete horas na karen?- ok.

eu quero que o treino seja o mais calmo possível. não me quero cansar nem quero entrar em loucuras. por mim, nem relógio trazia. em boa verdade, foi quase como não o trazer já que ao gêpêésse deu--lhe a louca e passou-se.

ela fez o treino dela, eu fiz o meu. para mim uma hora e meia, para ela mais ou menos a mesma coisa. (ela já tinha uns minutos nas pernas quando nos encontrámos.)

é sempre bom correr acompanhado. é sempre, mesmo, muito bom. esqueçam lá essa coisa de não se perceber se estamos a incomodar o parceiro por irmos mais depressa que a sua cadência ou de estarmos

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com vergonha de lhe pedirmos para abrandar por não termos a sua pedalada. esqueçam de vez. se vão com esses problemas na cabeça nem sequer o treino curtem. e se nem o treino curtem…

repito, foi um treino muito bom. eu nunca tinha treinado com ela e percebi que teria de haver mais treinos como este. ela, querida, acabou por me confidenciar que aquele treino a “acalmou” e “serenou” em relação à maior parte dos medos com a meia-maratona.

soube-me bem saber isso.

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468 de setembro de 2013

lesões

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no facebook: (nem me digam nada)

vende-se um dorsal para a corrida do tejo. alguém o quer comprar?

(repito, nem me digam nada...)

o rui andava ao tempo a cantar-me junto da orelha “pedrito, quando é que fazemos a nossa prova de btt?”.

eu, em boa verdade, não me cortava. como ele, eu também desejava fazer uma prova.

incensado pelo bruno mesquita, iniciei-me nos trilhos da serra de sintra, há já uns dois anos. meses depois, levei para lá o rui, que andava a cavalgar, há já uns tempos, pelo monsanto. passados outros meses, levei para lá outras pessoas, não com o espírito de cavalgar drops e outras coisas que tal, mas mais na onda de lhes mostrar que, com uma boa câmara fotográfica, com unhas e com um pouco de sorte com a luz solar, temos por lá locais que se comparam, na boa, com a cartonância que é mostrada nas fotos das montain bike uk desta vida.

- pedrito, btt terrugem. há uma volta para trinta e cinco quilómetros e há outra, maior, para sessenta quilómetros.- ou vamos para a de sessenta ou então não vamos.- e aguentamos a coisa?- e alguma vez desistimos?- sendo assim…

a coisa resume-se da seguinte forma: grande ambiente; uns a abrir, outros a curtir a vista; nós dois a seguir com a manada; abastecimento ali perto de janas; uns seguiam para os trinta e cinco e outros para os

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sessenta; uns quilómetros mais tarde, percebemos que estávamos no trilho de trinta e cinco; “e agora, seguimos para a meta ou voltamos para trás?”; “conheces bem o trilho dos sessenta?”; “eh pá… não. sei que sobe até aos capuchos, desce pelas três marias até à barragem do rio da mula, volta a subir até aos mosqueiros, torna a descer pela eugaria e depois é voltar para a meta.”; “porra, pelo menos temos de tentar encontrar os trilhos, temos de passar para o lado de lá da serra, retornar para o lado de cá e terminar.”; “mesmo que andemos sempre sozinhos?”; “mesmo que andemos sempre sozinhos, sim.”; siga; ali perto da entrada para o trilho das pontes… “ahhhhhhhh que já fodi o pé!”; “estás bem?”; “acho que sim. espera vou andar. sim, dói-me um bocado mas não é nada de grave.”; completamente perdidos; telefonemas para a organização; “é por onde?”; cansaço, cansaço, cansaço; mais outros telefonemas; chegada triunfal à meta quando a meta já estava a ser desmanchada e o povo, já sentado, comia que nem uns alarves e bebia do tintol.

a despir para tomar banho vejo que o pé está “ali” com um altinho.

- rui, afinal esta merda está fodida.- ihhhh, pois está. e agora?- …

prego no pão, três ou quatro imperiais, um cigarrinho à saída do restaurante, encontro na praia com o resto da família:- e agora, como é que vais fazer com os treinos?- agora... agora vou pôr à venda o dorsal da corrida do tejo.

o cunhado ria-se:- daqui a três dias estás a correr.- tem juízo, nem em dois meses! a maratona já foi pró maneta.- cunhado, ouve o que eu te digo, quatro dias no máximo.

só me apetecia chorar.

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479 de setembro de 2013

fisioterapia

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tentava adormecer, mas estava num estado de ansiedade fora do vulgar. e se as palavras do meu cunhado estiverem certas? e se afinal… nah, não podia ser. eu ainda tinha bem presente as dores que se instalaram no meu pé em fevereiro, quando me lesionei, sabe-se lá de que forma, e o tempo que aquilo demorou a sanar. não podia ser, não podia ficar bom a tempo de poder correr no dia seis de outubro, durante mais de quatro horas e meia. não podia ser.

antes das nove horas estava à porta da clínica de fisioterapia. era tempo de férias, só abriam após a hora de almoço.

merda!

fui trabalhar. coxeava. caramba, eu estou a coxear! é impossível isto ficar ô puã em dois meses, quanto mais em menos de um mês.

e depois são os treinos que eu vou começar a perder. um primeiro já amanhã, depois séries na quinta-feira, outro lento no sábado, a corrida do tejo no domingo…

merda!

- senta-te aí na marquesa, pá!

o terapeuta é bruto como tudo. ou melhor, não é bruto, gosta de se armar em bruto. mas é craque. mexe para um lado, mexe para o outro, roda, espreita, fica a olhar para mim à medida que me provoca dores…

- deita-te que vamos começar já agora.- agora?- sim, claro! não queres começar a correr em breve?- breve?- sábado já corres.- sábado? estás a dar baile?

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- vá, tenho mais que fazer, deita-te lá!

(yes!!!!!!!!!!)

o gajo está a gozar, com certeza. não pode. não é possível ficar bom, as dores são… penetrantes, caramba!

fiz calor, fiz frio, fiz laser, fiz mesoterapia, fiz fisioterapia, fui lá na segunda-feira, fui na quarta-feira, fui na quinta-feira (e as dores ainda continuavam…), fui na sexta-feira… espera, mas… posso correr já amanhã? sério? sério mesmo? e consigo? jura? ok, ok, vou ter cuidadinho, não vou forçar, vou devagarinho…

obrigado, obrigado, obrigado, obrig…

salvo erro, tinha vendido o meu dorsal para a corrida ao sá ou a outro parceiro qualquer, já não me recordo. nesse mesmo dia, converso com a sandrinha, conto-lhe as novidades, fica contente por mim. evito contar a mais alguém, fica só entre mim e ela. pareço uma daquelas mães que acabou de ver o risquinho azul no teste do chichi e só divulga ao mundo quando o feto tiver filiação partidária, não vá a coisa correr mal.

passado um par de horas entra-me a sandrinha no chat:- queres ir à corrida do tejo?- pois… agora é tarde, sabes que vendi o dorsal.- queres ou não?- mas estão esgotadas…- queres ou não????- e quanto me vai custar?- uma cerveja na karen.- encontramo-nos daqui a meia hora à porta da tua casa, vale?

estava tão contente.

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4814 de setembro de 2013

o retornado

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o meu cunhado, usando uma “arrogância” generosa, disse-me logo, com aquele ar que é apanágio da “sabedoria dos velhos”: “ó cunhado, isso são só três ou quatro dias, vai por mim”. mas eu não fui por ele. confiei, em demasia, nas más experiências do passado e julguei que tinha trabalho de estaleiro para mais de dois meses.

(aquilo doía, foda-se!)

o terapeuta que me mudou os platinados e a cambota aqui do meu artelho direito ia pela mesma onda: “sábado estás a correr”.

mau, mas até gente com estudos diz que é assim tão pouco tempo?

e tinham razão. vendi o meu dorsal para amanhã mas uma “alma caridosa” (não me esqueço, não me esqueço, é isso, devo-te uma cerveja na karen.) lembrou-se de que seria engraçado ver, em prova, como é que o meu pezinho direito estava a funcionar.

e por isso amanhã lá estarei, pronto para a prova e, segundo os meus cálculos, para mais duas horas de treino. como dizem os cámones, estou “beque on treques”.

este treino de hoje... bom, este de hoje tinha lá escrito na folhinha que era um treino lento de uma hora e, pronto, aqui está ele.

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4915 de setembro de 2013

corrida do tejo

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eu não sabia, não tinha a certeza se deveria fazer a corrida ou não, mas precisava de um pretexto para a fazer. e o pretexto que encontrei foi o próprio facto de a corrida existir.

estava um dia maravilhoso, toda a gente ia participar na corrida do tejo e eu não seria excepção. o terapeuta deu-me luz verde, mas avisou que não seria mau de todo usar uma meia elástica durante a prova.

soube-me bem o encontro com o pessoal, soube-me bem aquela coisa de estarmos todos na estação de carcavelos a caminho de algés. as brincadeiras, as bocas, os propósitos, as maluquices…

calhou de caminho que o jorge - o nosso mais querido e adorado bate-chapas - tivesse deixado a sua máquina fotográfica em casa (mentira, trouxe-a consigo na mesma) e tentasse fazer a sua prova de estrada. calhou que a moniquinha estivesse em baixo de forma. calhou, ainda, que o nuno rodri andasse com uma maleita num gémeo que o impedia de andar, ali, taco a taco com os melhores ou, pelo menos, os melhores da sua rua. assim, sem nada combinado, arranjei um pretexto bom para fazer a prova, sem percalços e sempre em ritmo de “bolinha baixa que o guarda-redes é anão”: foi sempre com eles.

e correu bem. um calor de derreter catedrais. muita, muita gente - já se sabe, corrida do tejo, né? - mas aquela marginal maravilhosa, aquele nosso tejo ali ao lado… uma maravilha.

foi muito bom, eu acho que nunca me diverti, nunca me ri, nunca gozei tanto numa prova como naquela. sério, um dia experimentem, deixem o gêpêésse, a cadência xis e o ritmo ípsilon em casa e corram com o mais lento do vosso grupo. farão uma prova maravilhosa, não duvidem.

ainda agora, olho para qualquer uma das fotos que tirámos nessa

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prova e só tenho boas memórias.

o tempo, mais uma vez, não interessou para nada. estava feliz. feliz por a sandrinha me ter conseguido o santo e senha para nela participar; muito feliz por estar novamente numa prova, ali, a sentir o cheiro do alcatrão (claro que o alcatrão não tem cheiro); mas, principalmente, por tê-la feito no meio de amigos.

o plano de treinos deste domingo obrigava-me a fazer um de três horas em ritmo lento. consegui seduzir o joão matos, o nosso querido loirinho, que também andava a treinar-se para a sua primeira meia-maratona, a fazer comigo mais uns quantos quilómetros.

então, após a prova terminar e tirarmos a costumeira foto de grupo, zarpámos carcavelos afora, em direcção a oeste, tentando construir um treino que se visse.

ali por volta da parede, uma estranha dor aparece-me no calcanhar. não era bem uma dor, era mais um incómodo, como se uma pedrinha tivesse entrado na meia e burilasse a pele. deixei-me andar, pois acreditava que seria uma coisa passageira. curiosamente, recordo-me, andava a ler - a folhear, mais precisamente - o livro do dean karnazes - pode-se usar o termo folhear num kindle? - e no dia anterior tinha passado pela parte em que ele diz que quando tivermos um “espinho na carne” desse género, devemos, nesse mesmo instante, parar, ajeitar a meia, limpar o sapato ou solucionar o problema, seja ele qual for, para não deixarmos que as coisas piorem. pois foi mesmo isso que eu não fiz. quando parei, digamos que já o fiz tarde demais. não só já o calcanhar estava em ferida, como dali para a frente não mais consegui deixar de ter dores, nem corri como deve ser.

acabei por me retrair. encontrei uma desculpa no facto de estar muito calor e de ainda não estar em condições de seguir até às três horas, acabando por fazer apenas cerca de duas horas e vinte minutos.

fui totó.

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a não repetir.

felizmente não era nada de grave mas… mas teria sido evitável.

parvo!

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5016 de setembro de 2013

últimas verificações

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entro na clínica de fisioterapia para ouvir o veredicto final.

conto-lhe que treinei calminho no sábado, conto-lhe que fiz a prova no domingo, também em modo “juizinho”, ele entorta o pé para um lado, entorta para o outro, manda-me pôr assim, agora assado e… e diz-me para desaparecer para sempre!

e agora? será que ainda vou a tempo? terei perdido o comboio da maratona? que relevância tem, num plano de dezasseis semanas, baldar-me durante dois ou três treinos, sabendo que já só falta menos de um mês para a prova?

dúvidas…

medos…

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5117 de setembro de 2013

nide fór spide

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o primeiro treino da semana, à terça-feira, é normalmente um treino mais calmo. estamos cada vez mais próximos do dia da prova e concentramo-nos nas séries que se realizam na quinta-feira.

eu acho que até previa só fazer este treino na quarta-feira, para dar mais tempo de repouso, depois do fim-de-semana, depois do regresso. estava ainda com cagufa, havia ainda algum respeitinho no ar. uma tarde de merda no trabalho fez mudar tudo. a quinze minutos do fim do meu dia de trabalho, decido “vou treinar e é a-go--ra!”.

vou ao carro buscar o saco da ginástica e visto-me, imagine-se, ainda dentro da loja. à hora certa bazo para o ginásio, tendo o cuidado de ir ligando o gêpêésse para ir captando sinal das nuvens.

desta vez foi tudo rápido, nem no balneário pus os cotos e saí logo da garagem. às dezoito horas e quarenta e cinco minutos já estava a correr. direcção: cabo raso.

era um final de tarde dos bons: meados de setembro, o calor já mais manso, aquele amarelo torrado do sol, ciclovia do guincho… eu estava bem, sabem? estava com vontade de treinar, de voltar a apresentar resultados. comecei a correr. a correr, mesmo. entrei num ritmo certinho, tau, tau, tau, tau, e deixei-me ir.

ainda antes do cabo raso, dou a volta ao imaginário bidon e regresso sem abrandar o ímpeto. os quilómetros e o tempo iam-se acumulando, e aumentava a minha curiosidade em relação aos resultados. sabia que não estava a cumprir o plano, que estava numa velocidade que não era adequada para um “treino lento”, mas… que se lixe a taça!

“hoje quero ir à velocidade que me dê na real gana. hoje quero mostrar ao meu corpo e ao meu pé ‘que estou preparado para sofrer’.”

acabei bem. cansado mas bem. olho para o relógio e descubro lá

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uma média de cinco vírgula vinte e um por quilómetro. dezassete quilómetros e poucos metros. bom, muito bom, das melhores corridas da minha vida. muito à frente.

em casa, mando o linque do treque à sandrinha e digo-lhe: não contes a ninguém, mas olha aqui o que me aconteceu hoje. estou bem, não estou?

(do lado de lá eu tenho a certeza de que ela sorriu.)

naaaaaaice!

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52séries ouuuuuuutraaaaa veeeeez

19 de setembro de 2013

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o papelinho que me tem acompanhado nos últimos três meses dizia que hoje teria de fazer um crossezito de aquecimento, seguido de vinte, repito, vinte corridinhas de quatrocentos metros, naquele ritmo “pira-te que o velho já nos topou a chinchada e vai buscar a caçadeira.”.

estou aqui que nem posso.

mas quem é que me disse para me meter nisto, quem????

foi assim que desabafei no meu face o treino de hoje. contava ir correr lá para fora, aquecer por ali, fazer aquela corrida inicial, calminha, pelo paredão, a ver o mar, e depois desatar a correr as malfadadas séries entre o escotilha e a praia da rata, ou entre o baiuka e o jonas, mas estava um calor “complicado” e lembrei-me que se as fizesse no ginásio, programando a passadeira para puxar por mim, talvez, com sorte, a coisa fosse mais disciplinada.

e foi.

assim, como escrevi lá em cima, saí do ginásio para aquecer as pernas. não corri meia hora como o plano indicava, mas dei uma volta ao quarteirão, passando pelo parque palmela e pelas traseiras do hotel miragem. a duração da hora de almoço é boa mas não dá para tudo, para fazermos o treino nas calmas. é tudo, ali, contabilizado “à pele”.

voltei para o ginásio, subi para a passadeira e… e o resto é história.

eu já fiz treinos de duas horas sob aquele calor do algarve, marroquino, abrasador…; eu cheguei, porra, a fazer o treino das três horas e meia naquela manhã de agosto, tocada com aquele vento que nos fustiga com areia, vento forte, quente, que o abano acolhe nos meses do verão; eu andei lá pelos montes da terra da minha mãe, desesperado porque não havia casas de banho num raio de cinco quilómetros

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e tinha os intestinos com restos de frango, chanfana e coisas desse quilate… mas, acreditem, nesta preparação para a maratona, para mim, não há nada pior do que o raio das séries. ainda por cima séries de quatrocentos metros, uma distância francamente louca, louca, louca.

hoje, declaro ter feito o pior treino de todos os que já efectuei.

repito para que quem leia não tenha dúvidas: eu odeio correr. porém, dizem que as séries são importantes para … oh foda-se, para nada, não é?

mas fi-las na mesma. é como nos diziam na tropa “não pensem. aqui só executam, não pensam. houve uns senhores que já pensaram por vós. que já estudaram o assunto e que decidiram que estes são os exercícios que vocês devem fazer.”

vou entender as séries, assim, como sendo o óleo de fígado de bacalhau dos treinos para a maratona.

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53as “férias”a intrometer- -se novamente

22 de setembro de 2013

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o plano tinha, pela segunda semana seguida, dois treinos ao fim- -de-semana. aliás, as quatro últimas semanas são assim, com quatro treinos por semana - apesar de tudo, é um plano menos exigente do que o que se vê por aí.

no sábado, trinta minutos de aquecimento seguidos de dez séries de mil metros, feitas a cinco minutos por quilómetro, finalizando com mais dez minutos de relaxe. no domingo, um longão de duas horas e meia.

tinha-me inscrito em duas provas: no sábado, o urban trail - que substituiria o treino de séries - e, no domingo, faria a corrida destak, seguida, se tivesse paciência - e teria, claro! -, de mais treino até preencher as duas horas e meia.

o hélder telefona-me e decreta: fim-de-semana de vinte e um e vinte e dois vamos todos para a minha casa de melides.

ainda tentei contra-argumentar com a possibilidade de ele transferir o simpósio lúdico-gastronómico para o fim-de-semana seguinte, mas os impropérios que me dirigiu, vindos do outro lado do telefone, foram mais do que suficientes para perceber que nem deveria tentar, sequer, arriscar baldar-me à coisa.

- hélder, há por lá uma estradita para eu fazer um treino…

vender os dorsais para o urban e a destak foi simples. o sá - salvo erro - e a susana trataram de passear o meu nome apenso em suas maravilhosas barrigas “ginasiamente” trabalhadas.

para despachar trabalho e expediente, fiz, na sexta-feira, um treino extra de uma horinha, a rolar a cinco zero quatro. assim, no domingo, peguei na minha mulher e pusemo-nos a correr, duma forma calma, em direcção à praia, pelo meio do pinhal que ladeia o arrozal de melides.

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enquanto a sofia estava comigo, os quilómetros eram feitos acima dos sete trinta, chegando nalguns casos - quando ela começou a ficar sem pernas, coitada - aos oito quarenta e cinco.

deixei-a perto de casa e lá continuei eu, desta vez em direcção à praia, pelo alcatrão. não tinha ilusões de conseguir ter paciência para fazer as exigidas duas horas e meia, mas pronto, estava a tentar ver até onde é que conseguiria ir.

a manhã estava a ficar cada vez mais alta e o calor começou a complicar.

não fui preparado com água ou gel. sabia que tinha dois chafarizes pelo caminho e, por isso, estava mais ou menos descansado. mas, repito, estava mesmo muito calor e, nestes casos, é uma tolice - e um perigo! - irmos para a estrada sem uma garrafa na mão ou na cintura.

perto da uma hora e quarenta e cinco de treino começo a ter dores na barriga e nos intestinos. um dia inteiro de volta de grelhados, bolos, cigarrilha, cerveja e algum (pouco) whisky foi suficiente para construir um cocktail incompatível com treinos destes.

encerrei a loja com duas horas e catorze minutos.

que coisa mais parva, correr num domingo de setembro com o sol num power do catano a convidar para a praia.

o mundo não acaba aqui.

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54então ecarrego no aceleradormuito ou pouco?

24 de setembro de 2013

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dez para as sete da tarde. vinte e três graus. um final de tarde com uma luz daquelas. vocês sabem… aquela luz que apanhamos quando o verão deixa de fazer dói-dói. estranhamente também não está vento. parece que o tempo parou, fez um frize, num paraíso solar.

um final de tarde amarelo torrado.

durante a tarde, combino com a sandrinha fazer este treino de hora e meia. prometo-lhe que o meu propósito será rolar calminho, para se apreciar esta luz e esta paisagem.

vamos os dois por aí fora, sempre no treco lareco, ali, a destilar considerações, medos, ansiedades. a sandrinha foi, durante estas últimas semanas, o receptáculo de todos esses meus sentimentos em relação à maratona. ela a dizer que ainda tem os seus receios, cada vez mais raros, sobre a sua primeira meia-maratona e eu com medos idênticos do que poderá correr mal na minha prova. é giro, verificar como temos profunda certeza em relação ao sucesso do outro e somos mais reservados com o que pode acontecer a nós mesmos.

ah, mas está uma tarde de sonho. pelo caminho vamos encontrando o walter, o filipe… e até a susaninha passa por nós, desta vez sem o liminha.

os quilómetros são feitos entre os seis minutos e vinte e os seis minutos e cinquenta. vamos precisamente a pensar nisso: que cadência deveremos usar durante a prova? teremos também “direito” ao malfadado muro? quando é que o apanharemos? como é que fica o corpo quando ele aparecer? terá o muro uma força tão destruidora que seja capaz de se sobrepor à vontade da mente? será o muro uma questão mental?

e o tempo final? ok, mesmo que isso, nesta primeira experiência, não seja importante… bolas, temos de ter um norte que nos guie na luta com o cronómetro, certo?

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estará o corpo preparado para terminar entre as quatro horas e as quatro e trinta? será um objectivo parvo demais, querer fazer os tais quatro e catorze (o dobro do tempo do lopes em roterdão?

ou será a maratona uma prova tão longa que qualquer ideia de tempos é uma incógnita tão grande, que qualquer previsão que possamos efectuar passa a ser uma roleta russa?

a data da prova a chegar a passos largos e algumas “questões de ir ao cu” aparecem com mais convicção durante o treino.

faz parte, não é?

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5526 de setembro de 2013

diferentes pedais

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aqueço durante trinta minutos, faço dez séries de duzentos metros (um calor complicado, gente na praia, muita gente na água, eu, parvo, a correr…) e termino com mais dez minutinhos dos lentos.

à noite ligo o gêpêésse ao computador, transfiro o treque, cusco ali ao lado e vejo o treino de ontem, do bili.

percebi então que ele faz séries de mil metros à mesma velocidade a que eu faço as de duzentos metros.

na certa, só porque é mais bonito que eu.

que ódio, meu cabrãozinho querido.

estou brincando, pá!

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56e as séries que nunca mais acabam...

28 de setembro de 2013

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sábado de manhã.

no papel dizem-me que tenho de fazer um aquecimento de trinta minutos, uma coisa lenta e tal, para depois arrancar para seis séries de mil metros em modo cinco minutos e trinta segundos por quilómetro.

recupero a memória de uma vontade que o joão tinha de fazer uns treinos comigo - e dessa maneira, preparar-se também para a sua primeira meia-maratona - e convoco-o para me vir mostrar como é que esta malta com vinte e poucos anos corre.

vamos os dois em direcção ao guincho em modo sóf’te. ali por volta da guia começamos a aviar quilómetros duma forma “depressinha”. gosto, desta vez até estou a gostar. o joão é um parceirinho nota mil. tem pedal para me meter num chinelo mas fica ali, junto a mim, sempre a puxar (e a ser puxado, ora, ora!), sempre a garantir que a coisa fica bem feitinha.

estas séries mais longas, de mil ou de dois mil metros, confesso, são duras mas não fazem mossa. são durinhas, vá! nada que se compare com aquele inferno das séries de duzentos ou de quatrocentos metros.

desta vez, ainda por cima, a cinco trinta. quer-se dizer, não posso botar defeito, porra!

correu bem.

terminámos com mais dez minutinhos para acalmar e ficar olhando as saias, de quem vive pelas praias…

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5729 de setembro de 2013

uma semana...

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a uma semana da malfada data tenho treino de uma hora e meia. estou, confesso, num stress filhodamãe. estou farto, estou farto de treinar: de regras, de séries, de saber que há um plano a cumprir.

apetece-me saber como é que é isso de só correr “porque sim”. apetece-me mandar isto da maratona para o maneta.

farto, farto, farto!

hoje, deixou de fazer sentido a prova. começa a deixar de ser giro “tentar aquela tal coisa de fazer uma maratona”.

treinar para a maratona é uma coisa mesmo muito longa, muito chata. o corpo precisa de ser muito bem preparado.

é uma tropa.

saio para a rua, ligo o gêpêésse, e vou ali, a olhar para o relógio, sem vontade, sempre à coca para ver quando é que chega o minuto quarenta e cinco para voltar para trás e terminar na hora e meia.

dezasseis quilómetros!

imagine-se, dezasseis quilómetros. não é suposto esta distância ser uma coisa que se faz, assim, “pronto, olha, fiz dezasseis quilómetros. agora vou tomar banho.” repito, não é suposto.

há coisa de poucos anos, por alturas em que fazia cinco ou sete quilómetros por treino, recordo-me, o zé pôs-me a fazer, precisamente dezasseis quilómetros. saímos da parede, fomos até à torre, seguimos depois, salvo erro, para a ponta do sal e regressámos à parede. caramba, nesse dia eu fiquei desfeito, estava feliz mas desfeito. hoje? hoje não, hoje estou na boa, mas estou mentalmente desfeito. foda- -se, estou farto!

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no ginásio, onde me dirigi para me deitar num colchão a fingir que alongava, quando me levantei para me espreguiçar vi a ireníssima na elíptica. conta-me que está cheia de medo da meia-maratona.

a sua primeira meia.

que acha que não dá, que se calhar não consegue aguentar bem a coisa.

é tola! nem a prova faria sentido, se o seu sorriso não estivesse presente na reta da meta.

eu a queixar-me dos meus treinos e afinal…

animei um cadinho.

chego a casa e reparo que o kipsang acaba de bater o record do mundo com duas horas e três minutos. as pessoas não têm noção do que é que isto significa.

super-homens, mesmo!

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581 de outubro de 2013

conselhos do bili

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primeiro treino da última semana: quarenta minutos lentos.

hoje chove. uma chuva miudinha, calminha. está uma humidade das valentes: está chuva, está calor, estamos em modo filipinas.

fez-se. não se pensa mais no assunto.

chego ao facebook, posto uma canção dos love and rockets e o bili comenta com o seguinte:

amigo pedro jaime,

seguem os meus conselhos para quem vai fazer a primeira maratona.

já deves ter lido aqueles conselhos normais: conhecer bem o circuito, não estrear nada na prova, blahblahbah… o que te escrevo aqui são “os meus conselhos” (vou começar de uma forma aleatória, sem que esta ordem tenha nada que ver com a importância dos mesmos):

um - podes andar. todos já andámos numa prova. mas anda com dignidade, cabeça levantada e passadas largas.

dois - vaselina. muita no rabinho e virilhas. podes pedir a um amigo chegado para ta colocar (o zé, talvez...).

três - abastecimentos. come e bebe em todos, a partir dos vinte e cinco quilómetros. é muito importante.

quatro - alimentação. não inventes no jantar nem no pequeno-almoço. massa para o jantar é tradição. ao pequeno-almoço come o normal. leva uma banana ou uma barrita para comeres trinta minutos antes da prova.

cinco - nas subidas - e vais ter uma difícil, quando já tens alguns quilómetros de prova - reduz a velocidade. compensas o tempo que gastaste aqui, depois, durante a descida.

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seis - se treinas com abastecimento (cinto e afins) usa para a prova. nos últimos quilómetros da maratona a água é muito importante. além disso, vai estar calor.

sete - quando um bacano com mais vinte anos do que tu passar por ti, não tenhas problemas. é muito provável que não tenha o teu tesão. este ponto aplica-se também em relação às gajas.

oito - quando tudo estiver a ficar fodido, podes ter a certeza que vai piorar.

nove - aproveita a maratona. é das melhores provas para correr. a pior parte é o treino. é uma verdadeira seca.

dez - o famoso muro dura até à meta e só melhora no último quilómetro.

aproveita. o percurso é maravilhoso. grande abraço e até ao fds.

mais palavras para quê? é o bili.

o meu bili.

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593 de outubro de 2013

séries até ao fim

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daqui a pouco, último treino de séries.

(já deito maratona, treinos, séries, rampas e mais o catano pelojólhos!)

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60e se eu pedisse ao pessoalque viesse fazer comigo a maratona?

4 de outubro de 2013

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estão a ver uma maratona? estão a ver muá méme? estão a ver maratona e muá méme na mesma frase?

pronto, é isso, vou tentar que a coisa aconteça no domingo. é. faltam quarenta e oito horas e ainda estou na parte do “tentar”. acontece.

vou levar um cantante para me distrair com músicas, para tentar aliviar as dores, aliviar o cansaço e acreditar que ainda tenho pernas. se me querem incentivar, mesmo ficando na caminha ou indo para a praia (sim, vai dar para ir para a praia), está aqui uma maneira boa: escolham uma música de que gostem, de que gostem muito, eu sacarei essa canção e, quando ela estiver a passar (isto anda sempre no modo aleatório, pessoal), eu vou imaginar que me estão a colocar uma mãozinha nas costas - ou na peida, pronto! -, estão a dar-me aquele empurrão para que não seja aqui que eu desista.

querem alinhar?

(não prometo usar canções do zambujo, de fado, da simone de oliveira, de ópera ou o life is life do opus, mas se a anabela (andas bem?), por exemplo, achar que eu devo levar o fix you, ahhh, na boa, uso-o.)

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614 de outubro de 2013

de cascais à expo

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ora, de cascais à expo.

um gajo lê isto e até se arrepia. à expo, imagine-se! se há local na minha terra que eu acho feio e desconfortável é a expo. parece um deserto de cimento. parece-se com aquelas fotos do dubai e mais o camandro, com arvorezinhas no meio de caldeiras de betão. patobravice no seu esplendor, mas em “modernaço parolo”.

ora, de cascais à expo.

passar ao lado do casario de alfama, seguir para santa apolónia, olhar lá para cima e ver o prédio dadondandei na faculdade... depois, xabregas, ver lá muito em cima “o bairro”, as torres de iluminação da nossa basílica... depois, mais à frente o que o espera é... a expo? foda-se, a expo! porque raio não fizeram eles a coisa em sentido contrário em direcção a cascais? não entendo.

ora de cascais à expo.

mas depois lembrei-me: espera lá, e se, ao invés disso, um gajo meter antes na cabeça que a prova é de cascais ao bota feijão?

claro! até porque a gente chega lá ao restaurante e tem a sensação de que aquilo já existia no tempo em que ainda havia hidroaviões em beirolas.

nem água, nem géis, nem barrinhas... um gajo vai o tempo todo a pensar no senhor aníbal pereira, a sorrir, de bandeja na mão e tal… e não quer saber de mais nada.

rock and roll maratona de lisboa edp “cascais-bota feijão”

dúvidas?

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62trabalhos para casa todos feitos

5 de outubro de 2013

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julgo que já tinha dito por aqui que, se foi o meu zezinho que abriu as hostes com o lançamento do desafio da maratona, a verdade é que foi a sandrinha quem mais “esteve lá”, nestas semanas finais.

era ela que recebia os linques com os treinos que me corriam melhor - e que eu escondia do meu face -, era ela que ouvia os meus lamentos quando os treinos não corriam bem, era com ela que eu desabafava e descarregava esta evolução do meu espírito: de “medo”, primeiro; em seguida “será que sim?”; mais à frente “porra, custa tanto!”; continuando até ao “que se lixe a puta da maratona, quero lá saber!”; e aterrando, em definitivo, num “a sério, é só uma corrida, não é o fim do mundo nem nenhuma glória.”.

por isso, foi com muita satisfação que recebi a notícia de que ela tinha aceitado fazer comigo o último treino do plano - vinte minutos em ritmo lento - de preparação para a minha primeira maratona e também para a sua primeira meia-maratona.

não foram vinte minutos como planeáramos, mas percorremos, num ritmo mesmo muito suave, quase seis quilómetros em cerca de quarenta minutos.

acabámos com a sensação de “estamos preparados!”. com um permanente frio na barriga, com uma sensação de ansiedade levada da breca, mas também com a certeza de que já não há mais nada a fazer ou treinar.

tomo banho, sigo para a expo para levantar os dorsais - um pequeno susto porque o meu nome não estava nas listas, mas que foi resolvido de imediato -, passo pela prorunner, na esperança de encontrar uma camisola vermelha de alças (boa) ou uns calções da asics de jeito - boas lojas de roupa de corrida em lisboa? por enquanto, esqueçam - mas não tive sucesso.

tudo bem, regresso à marina, entrego o dorsal - número par, hein? - à

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sandra, vou almoçar e sigo para a praia com a sensação de ter os trabalhos para casa todos feitinhos.

uff…

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635 de outubro de 2013

motivação final

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quando me meteram na cabeça que era uma ideia gira, eu não tinha a mínima noção se era ou não capaz de completar aquilo. em boa verdade a dúvida mantém-se. e é, confesso, uma dúvida legítima: receio de lesões, dores de burro, exageros ou defeitos na preparação, cansaço, falta de perninhas... caramba, tanta coisa que nos pode acontecer.

pessoas davam-me conselhos, mostravam-me livros com dicas, transmitiam-me ensinamentos, sugeriam-me sáites motivadores, tentavam-me inspirar e eu, népia, não era por ali que acreditava. não era por eles que decidia ir até ao fim ou continuar.

mas treinei, fiz o trabalho de casa, treinei com moderação - não tenho assim tanta paciência como possam pensar -, treinei de uma forma quase disciplinar. fiz o que pude. e ainda assim...

há umas semanas lembrei-me de uma coisa. lembrei-me da minha aldeia, do meu bairro, do nosso clube. foi como se tivesse não só descoberto a última peça do puzzle, mas verificado também que, depois de a encaixar junto com as outras peças, o desenho que ficou à vista era muito diferente do que eu tinha imaginado.

o nosso clube participou em muitas competições: umas vezes ficou em primeiro, outras ficou em último, e outras ainda ficou lá pelo meio. em algumas competições fomos injustiçados, noutras tivemos muita sorte, mas a verdade é clara e está à vista pelos últimos meses da vida daquele clube: nunca desistimos.

e se nunca desistimos, então se eu correr com o emblema do clube apenso no meu corpo também não desistirei.

e não desisto, mesmo!

este texto que se segue foi escrito há uns anos pelo meu zezinho, um moço que me conhece desde os nove anos e que tem sido, desde

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essa altura, a minha alma quando ela está moribunda, a minha pena quando eu não sei escrever e o meu coração quando ele não acredita.

“jogava o vitória no campo do real de massamá. o real ia em primeiro (subiu nesse ano) e o vitória andava na luta para se manter (e manteve-se).

quem ia ao campo do real era despachado à cabazada. mas o vitória (que naquele domingo levou metade da picheleira para ver o jogo) aos vinte minutos já tinha feito dois golos. como a proporção no campo era de três vitorianos para um realista (ou realense ou massamense - só deus é que sabe), em cada golo ouvia-se um troar de arrepio (sabes como é, irmão? equivalente aos campos ingleses?). os outros estavam calados e não se apercebiam que raio de tempestade os estava a varrer.

até ao intervalo, até podia ter aparecido o terceiro e o quarto, mas como qualquer equipa de qualquer clube de coração grande, às vezes mais valia um extremo dar duas cuecas num beque do que isolar-se para a baliza. já podes imaginar a festarola ao intervalo. mesmo não sendo tão boas como as do campo do agualva, as bifanas eram menos do que a vontade de as comer.

contudo, quem andou pelos campos do distrital percebe o que vou dizer, às vezes o intervalo é a parte mais importante de um jogo.

e quando a segunda parte começou, os catorze jogadores do real começaram também a jogar. um deles caiu sozinho na grande área e deu penalty. no mesmo lance, foi um dos nossos para a rua.

quando se estava a dez minutos do fim, o vitória jogava com oito e o guarda- -redes do real já andava sempre a meio do seu meio-campo.

a dois minutos do fim, eles empatam com um canto em que o quíper dos nossos entrou pela baliza adentro. refilou, foi para a rua e deixou a equipa com sete.

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as substituições já tinham saído e foi o ponta-de-lança para a baliza . e os da casa, continuavam imparáveis, empurrados por um vento de negro.

é depois que na sequência de um triplo off-side (não havia cá foras-de- -jogo de posição), alguém se isola com a bola e é atirado ao chão pelo inepto guarda-redes. penalty. mas, golpe de teatro, a bola vai ao poste e na recarga o guardião fica com ela encaixada.

levanta-se, chuta com força para fora do campo (do campo mesmo, não das quatro linhas) e grita para o árbitro. mas grita mesmo, com espuma aos cantos da boca: ‘nós é que somos o benfica, caralho! nós é que somos os campeões, foda-se! nem com o dobro dos jogadores (n.d.r.: já disse que eram catorze contra sete, certo?) dão a volta à picheleira.’

quando o árbitro deu o último apito, vi algo que nunca tinha visto nos distritais. sete jogadores de mãos dadas aproximaram-se da malta da picheleira (juro que alguns choravam de raiva) e para aí duas centenas gritavam “vitória! vitória! vitória!...”.

foda-se, pedro, até me vieram as lágrimas, caralho. aquilo não era um clube. naquela altura, naquele dia, aquilo era um cabrão dum estado de alma.”

maratona?ok zé, vamos lá!

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646 de outubro de 2013

o dia

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as coisas tinham ficado mais ou menos preparadas e estendidas no chão junto do guarda-roupa. por isso, quando acordei, a minha preocupação era mesmo a paparoca.

viver a dez minutos do local da partida tem as suas vantagens; ainda assim o acordar foi feito às sete da matina. dizem as regras que devemos comer três horas antes do início da prova. foi como fiz. tinha preparado as papas de aveia na noite anterior e marcharam logo que cheguei à cozinha. um suminho de laranja e uma sandocha com peito de peru depois das papas deixaram-me preparado para ir fazer as abluções da manhã.

a vaselina foi bem untada pelas partes mais íntimas, a roupinha vestida, os géis no bolso, a telefonia e os auscultadores carregados, gêpêésse no pulso… a mala com carteira e chaves… o saco para o bengaleiro… e pronto, saio de casa, vou a caminho do carro e… eh pá, não trouxe adesivos para as mamas. ai… bom, estão bem besuntadas e por isso, acredito, será suficiente. arranquei, então, para o ginásio onde deixei o carro estacionado. dali em diante segui a pé. pelo caminho, fui a comer uma banana e, com o sol a bombar logo desde cedo, mandei abaixo uma garrafa de água.

fui pelo paredão, passei na praia da conceição, desci pela rua direita e, curiosamente, senti-me sozinho. não sei explicar, estou habituado a que estes momentos que antecedem a partida sejam partilhados com dez ou quinze amigos, sempre com um ambiente tão fixe, tão fraterno… não sei, sabia que eles estavam todos lá pela ponte, preparados para partir, uns na meia-maratona, outros na mini… não sei descrever… senti-me sozinho.

andei por ali, tentando encontrar este ou aquele parceiro que eu sabia que iria fazer esta loucura também. uns repetentes, outros a baptizar-se, procurei por essa malta e não via ninguém.

pronto, tudo bem.

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deixei-me andar por ali, fiz um chichi e começei a subir a baía.

auscultadores nos ouvidos, carreguei lá no plei para aquilo dar música aleatoriamente, vou para o pé do d. carlos, fico por ali a ver o pessoal. alguns já a aquecer, outros simplesmente no paleio, outros já a combinar estratégias… e eu continuava sozinho… parvo, meio totó, meio lerdo. não sei explicar. mesmo! parece que tinha voltado a sentir-me ansioso. sim, por um lado ansioso, por outro “triste” ou “desiludido” porque não estava a sentir grandeza nenhuma que era suposto ver (e sentir) só pelo simples facto de aquilo ser a tão falada “maratona”. afinal não, era uma prova como as outras, com as mesma caras que encontrava nas outras provas. os mesmos equipamentos, os mesmos sorrisos, as mesmas coisas que se dizem.

enfim…

às tantas, quase sem dar por isso, enquanto olhava para o mar, a baía, a praia… começo a ouvir uma música dessas que me foi recomendada por um amigo. um dos bons. estou a ouvir aquilo ao mesmo tempo que olho para trás da linha de horizonte do hotel baía e descubro a serra de sintra. curioso, nunca tinha reparado que se via a serra daqui deste ponto. que pinta. e ainda por cima, hoje, apesar deste calor, o barrão está instalado na serra.

caramba, como eu adoro o barrão.

foi como que se esta conjugação me tivesse transformado. fiquei diferente, mais animado. fiquei mais determinado. acho que a prova “recomeçou”, ali, naquele momento.

reencontro um atleta que também tinha estacionado no parque do ginásio, acompanho-o enquanto bebe um café e ele oferece-me uma barra energética. é das que se tomam antes da prova. fico curioso e experimento. porreira. realmente, é quase um chocolate.

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estávamos já na caixa da partida e tal, assim, aos saltinhos e mais não sei quê… às tantas… eh pá… mas… é o jorge!

porra, o jorge veio ver-me?

que show! o jorge que está sempre presente nas provas, de máquina fotográfica em punho. o jorge que tinha dito que não conseguiria estar presente porque hoje era dia de almoço de cds (casa da sogra, antes que perguntem). eh pá, que alegria! fiquei mesmo feliz.

e parece combinado: agora vejo o marco silva, vejo a pati… a xana! a xana, pá! a xana que esteve no bes de sintra, com o pessoal, e cuja preparação fui acompanhando por via dos relatos da sandrinha.

que giro, como em meio minuto tudo muda.

- xaninha, então? - a xana é daquelas pessoas que com cinco minutos de amizade já parece que somos amigos há quinze anos.- oh pedro…- que foi? receios?- claro!- a sério? tens projectos? eh eh. tens ideia do tempo que julgas fazer?- sei lá! talvez quatro horas ou isso?- não, espera! o que estás a querer dizer é que fizeste as contas para correres em seis por quilómetro, é isso?- sim, sim, isso… mais ou menos isso…- ok, então, se calhar deves pensar, não em quatro horas, mas sim em quatro horas e doze minutos, topas? é também o meu espírito, sim. olha, eu gostava de conseguir fazer, sem grandes loucuras, claro, e sem saber se consigo, quatro horas e catorze, porque é o dobro do antigo record do lopes. vamos tentar?- eh pá, isso é maravilhoso.- então vá, vamos juntos.

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tudo aconteceu de repente e no meio duma inusitada excitação. o jorge bateu-nos duas ou três chapas e fugiu lá para a frente para nos tirar mais outras quantas, quando passássemos por ele.

boa sorte, disse-nos.

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656 de outubro de 2013

partida, largada, fugida!

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bum!

e soa o tiro da partida. olho mais uma vez para a xana, dou-lhe mais um último xi-coração “já está, xaninha, acabou-se a ansiedade. agora é a valer. vamos‘mbora.”.

agora sim, estava em festa, tinha ganhado, sem ter encomendado nada, uma parceira com uma passada - e um propósito de cronómetro - parecida com a minha.

passagem pela linha da partida, toque no gêpêésse, siga! que maravilha, as pessoas a baterem palminhas. que giro, como olham para nós, fazendo aquele ar… como se fôssemos campeões de verdade. como se fôssemos descobrir o caminho marítimo para a índia.

cem metros depois da meta avisto o jorge. estava de máquina em punho para mais uma chapa. faço-lhe um ái fáive, fincamos os punhos e saio daquele gesto com uma força que não consigo descrever. olho à volta, olho para as pessoas. olho mesmo. estou a curtir todos os detalhes da prova. estou feliz, sabem? estou a usufruir de todos aqueles euros que dei pela inscrição. sinto-me a comer tostinhas com paté do couvert dum porto de santa maria qualquer, topam?

ali por volta do estoril-sol o primeiro grito “pedro, pedro… pedro jaime”. olho para o separador central da marginal e ali está ela, é a karen! ahhh, não resisto, volto para trás e damos um abraço dos bons: “diverte-te. até já!”. tão bom, mesmo a força que eu queria e não esperava: o jorge na partida e a karen na despedida de cascais. a xana fica a rir-se do ar que uns gajos fizeram por verem uma bifa, loura, gira, a gritar pelo nome de um corredor “mas quem raio é este gajo?”.

o terceiro quilómetro é passado junto do casino. tenho na cabeça uma dica que vai ao encontro do que sempre defendi: fazer os primeiros sete ou oito quilómetros bastante lentos. sim, mesmo com

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calma. não ter medo de correr com vinte ou vinte e cinco segundos por quilómetro mais lento do que prevíramos correr durante a prova. nada que eu já não tivesse feito durante os primeiros vinte, ou até trinta minutos, daqueles treinos longos que se iniciavam na companhia da minha mulher.

“nunca corri tão devagar”, dizia-me a xana. desafiei-a a seguir a não se prender no meu ritmo, na minha estratégia. “nahh, comanda tu a coisa.”.

ali na subida frente à praia da poça a xana alerta-me para mais uma “visita”. caramba, mas estarei a ver assim tão mal ou será o raça da excitação e da alegria que me está a toldar e a turvar a visão? é a sofia que trouxe a família para bater palminhas também. mais uns beijinhos

vamos embora!

fico com a ideia de usar a rotunda da bp de são pedro como ponto onde aumentaremos, então, o ritmo até se aproximar da nossa passada normal. assim, baixo de uns seis quinze ou seis vinte e cinco, para uns cinco quarenta e cinco, cinco cinquenta e até seis minutos por quilómetros, que assumimos durante toda a marginal.

os abastecimentos a cada dois quilómetros e meio fazem-nos ter a sensação de que a prova está “a passar, a decorrer, muito rapidamente”. não damos pelos quilómetros a passar. que estranho. é mesmo como o bili me dizia “aquilo passa num instante, vais ver!”. bom, mantive o mesmo ritmo. sempre, sempre, sempre a correr com “cabecinha”. ao mesmo tempo que me lembrava disso que o bili me dizia, também me recordava das descrições que fez dos sempre longos dez quilómetros finais. os tais que nunca tinha feito em qualquer treino. os tais que pareciam ser o “ainda além da taprobana”.

vamos com calma, sempre neste ritmo, sem exageros, a curtir a

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prova. acima de tudo, ali, os dois, a curtir a prova, a curtir a festa que cada corredor fazia. os conhecidos que íamos encontrando, os que traziam, estampados na camisola, símbolos de outras corridas e maratonas concretizadas em diversos locais desse mundo fora: madrid, paris, berlim, sevilha…

quinze quilómetros. percebo que estou cheio, inchado. tenho a barriga cheia de água. desde que acordei, já bebi, desconfio, para cima de dois litros de água. mal não faz.

está muito calor, parece um típico dia de verão. carcavelos está cheia de gente. gente na água, mesmo. ali, após o saisa, não aguento e vou mudar a água às azeitonas.

tínhamos traçado mentalmente que a primeira grande dificuldade aconteceria quando chegasse a subida para o farol da gibalta. porém, quando dobrámos a curva do mónaco…tcharan! eh lá, uma rampinha para subirmos o passeio? que fixe, não há subidas para ninguém. entrámos pelo paredão junto ao rio, passámos abaixo do farol. que bom! ficámos com um ar parvinho. muito, muito contentes a correr pelo meio dumas meninas que seguravam bandeiras de diversas nacionalidades dos corredores presentes. junto à foz do jamor reentrámos na marginal e tivemos novo abastecimento. o calor estava a fazer das suas, levávamos praticamente duas horas de prova, íamos com vinte quilómetros e tomei o meu primeiro gel.

mesmo que haja um qualquer efeito placebo, a verdade é que a simples toma faz-nos sentir revigorados, quase como novos. um pouco à frente, já na reta do dafundo, uma faixa sobre a estrada indicava que já tínhamos percorrido uma meia-maratona. metade já lá ia.

- isto a dizer meia-maratona é desta prova? perguntava-me a xaninha, incrédula.- claro que é.

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- mas é uma outra meia-maratona ou é a meia-maratona que também partiu hoje à mesma hora?- xana, repara, desde que saímos de cascais já percorremos vinte e um quilómetros, por isso eles colocaram esta faixa para… pronto, para ficarmos contentes por já termos papado metade da prova. - respondi eu, num tom de gozo e a brincar com ela, como se estivesse a explicar a coisa a uma criancinha.- já, pedro? já percorremos uma meia-maratona? como é que é possível? eu não dei pelos quilómetros terem passado.- eu sei.

e continuavam a fazer sentido as palavras do bili quando me garantia que a prova demora muito tempo mas passa, realmente, num instante.

(continua)

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66ok, vamos lá então saber se o muro existe ou não

6 de outubro de 2013

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(continuando)

estranhamente, os quilómetros passavam e o ritmo, propositadamente lento no início, tinha estabilizado entre os cinco cinquenta e cinco e os seis e cinco. a verdade é que estávamos já para lá do meio-dia e o calor apertava a sério. se calhar já deveríamos ter descido para uma cadência ali na casa dos cinco quarenta ou cinco quarenta e cinco. porém, se por um lado estávamos muito divertidos e a curtir todas as peripécias da prova, por outro lado havia uma reforçada dose de cagufa e respeitinho - mais esta último, diria -, que nos impedia de começar a correr mais depressa. tínhamos medo que o calor nos dobrasse e nos cortasse as forças que, sabíamos, iriam ser necessárias quando a marca dos trinta e tal quilómetros viesse, acompanhada pelo calor que se iria sentir por volta da uma, uma e meia da tarde. é que estava um dia típico de verão, com pessoas não só na praia como também invadindo a água.

nesta fase da corrida fomos encontrando mais pessoas conhecidas: o zé lima, amigo da xana, que apanhámos já para lá de algés, e mais à frente o tiago petinga, velho compadre dos tempos do rainha dona leonor, que me acenou quando o ultrapassámos com um “compadre, uma bifana e uma imperial é que vinham a calhar bem agora”. ai não que não vinham.

entretanto o suor e a camisola meio folgada começaram a fazer das suas. se até ali as coisas estavam a correr bem no que toca a equipamentos, em pedrouços comecei a sentir os mamilos a doer muito. tinha cometido dois erros com a mesma questão. em primeiro lugar, usei uma camisola que não tinha experimentado antes, no mínimo, num treino dos longos. comprei-a de propósito para a maratona, julgando ser melhor para mim, mas enganei-me. gastei uma pipa de massa na camisola, uma coisa comprada numa loja da nike, porreira, de alças, preta, levezinha, drái fite e mais não sei o quê. vai-se a ver e aosdespois, por não ser bem justa ao corpo, com o desenrolar da prova começa a friccionar a pele, principalmente os

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mamilos, e a dor começa a ser insuportável. depois, claro, confiei que a vaselina que pus seria suficiente para me safar desse martírio. puro engano. não só a vaselina desapareceu rapidamente como também o facto de me ter esquecido dos adesivos, acabou de vez com o artista. assim, comecei a indagar pelo pessoal que andava nas bicicletas a socorrer os corredores. aconselharam-me, então, uma ambulância que estava parada lá para os lados de belém, em frente dos jerónimos. e assim foi, saí da estrada, abeirei-me dos socorristas e pedi que me adesivassem os tetos.

ahhhh, que alívio.

voltei à estrada e tive de me esforçar para apanhar a xaninha. aliás, mesmo com o calor que estava, mesmo com toda a prudência que eu não queria largar nem por nada, continuei a rolar nos quilómetros seguintes abaixo dos seis minutos. estava cansado, claro, mas estava bem. estava como supunha estar quando sonhava com a prova.

como já seria de esperar, também os adesivos dos mamilos escorregaram em três tempos. não queria levar nada na mão ou preso nos calções mas não tive outra hipótese, tirei a camisola porque não aguentava mais as dores. sei que não estava só, neste meu martírio. muitas das camisolas oficiais da prova - brancas, como se recordarão - apresentavam manchas de sangue na zona dos mamilos. eu não cheguei a tanto. mas tinha dores. não poderia continuar a pensar mais no assunto e, por isso, lá seguiu a camisola presa nos calções.

recordo que estávamos na casa das três horas ao passar pelo quilómetro trinta. para mim era um bom tempo, uma boa marca. a xana estava cansada, eu também, claro, mas se calhar eu estava mais eufórico, digamos. um dos organizadores que ali estava no controlo dos tempos de chip, ao ver o ar dela, meio desolado, concordava comigo “claro que é um bom tempo. estão bem! vocês estão bestiais!”. a xana sorria.

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quilómetro trinta e um e chegamos ao terreiro do paço. finalmente encontramos turistas. ou por estarem, isso mesmo, a fazer turismo, ou porque lá nos países onde moram é habitual as pessoas baterem palminhas, a verdade é que, finalmente, sentimos aquelas tais coisas a que chamam aplausos. é bom, sabem, sabe mesmo bem. o calor estava insuportável. a subir a rua do ouro tentávamos resguardar--nos do sol, correndo pela sombra, sob as estreitas varandas dos quarteirões do lado esquerdo. que horror, que calor. não estava mesmo no programa um dia como este.

entretanto, começo a reparar que a xana se calou. bem sei que é normal, viemos sempre na conversa, sempre muito bem dispostos e chega uma altura em que deixamos de ter cu para o que quer que seja. depois da festa da sic no rossio, subimos até aos restauradores, onde chegamos aos trinta e dois quilómetros. decido, então, comer a barra energética que tinha trazido. acho que não correu bem. ou melhor, se calhar correu bem “depois”, o “durante” é que foi complicado. já disse que estava calor, a boca ficou seca apesar de termos bebido muita água. não quis parar para comer com calma e, por isso, tentei abrandar o menos possível mas reduzi para uma velocidade que me permitisse engolir o raça da tablete. pronto, já passou.

- xana, o que se passa?- não sei muito bem. é uma moínha aqui no joelho…

isto aconteceu, disse, quilómetros antes, talvez perto de santos. não conseguia perceber se era algo grave, não sabia até que ponto ela iria esconder ou esquecer a dor. também, é verdade, muitas das vezes estas coisas aparecem, fazem-nos sofrer e depois, quase que sem darmos por nada, desaparecem. a descer a rua da prata, porém, deu para ver que a xana não estava bem.

- pedro, vai. vai andando. eu fico num passo mais lento. não pares por mim. vai, vai! dói-me muito.

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eh pá… e agora? e agora o que é que eu faço? nove, faltavam nove quilómetros e eu praticamente nem hesitei. olhei para o tempo que levava, fiz umas contas, consultei as minhas pernas, olhei para a xaninha e decidi logo, logo, logo ali sem qualquer dúvida.

- xana, nem pensar! estamos nisto há três horas e tal. se eu fosse agora embora, iria fazer quantos minutos a menos? cinco? sete? quinze? que diferença é que farão esses minutos numa prova de mais de quatro horas? nem pensar! é a nossa primeira maratona, não é um desafio para fazer tempos. isso é para outro tipo de corredores. xana, quero ficar contigo!

o quilómetro trinta e quatro é feito nas imediações do lux e dali em diante decido tomar as rédeas da coisa: - xana, vamos abrandar a sério, se não, matas o teu joelho.

reduzimos a cadência para os sete minutos por quilómetro. estávamos cansados também, claro. mas, por outro lado estávamos também “bem”. ou pelo menos sentíamos que tínhamos pulmão e pernas para aguentar a coisa. mas, para não piorar a lesão que ela carregava, decidi que ela abrandaria uns dez metros antes do abastecimento, caminharíamos durante o mesmo e aproveitaríamos para beber e comer com calma. depois, retomaríamos a corrida duma forma o mais calma possível. o joelho tinha de aguentar.

aos trinta e cinco temos um abastecimento com bananas e laranjas ali na zona do ferroviário. o espectáculo era dantesco, cascas de laranja e de banana espalhadas pelo chão, os ténis colavam-se ao alcatrão por causa dos isostares e powerades desta vida, a paisagem à volta era desoladora, cheia de contentores, linhas de comboio, lixo… enfim…

trinta e seis, trinta e sete, trinta e sete e meio e temos mais água. o joelho da xana continua a dar de si. viro-me para ela, seguro-lhe nas mãos e, frente a frente, peço-lhe para flectir as pernas ao mesmo tempo que eu. devagar, descemos até chegarmos a tocar com o cu

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nos calcanhares e voltamos a subir. repetimos umas três vezes, bem de-va-ga-ri-nho. as pernas parecem pedra. mas ainda assim, sentimo- -nos animados. cansados, é certo, muito cansados, mas animados.

na rotunda da escultura do josé de guimarães está um carro de bombeiros a despejar uma chuveirada sobre nós. aproveito praticamente para tomar banho. ahhhh, fesquinho…

trinta e nove perto do altejo… está quase.

- xana, e o joelho?- está bem, pedro. está bem. acho que já estou habituada.- sério? ok, mas não vamos apertar muito. agora é aguentar.

na rotunda, sob os viadutos da marechal gomes da costa vejo estacionadas duas ambulâncias:

- eh pessoal, calma, está tudo bem. só que tenho os mamilos numa lástima e queria terminar a prova de emblema do clube ao peito. façam-me aqui qualquer coisa, vale?

trinta segundos depois vim de lá com uns adesivos fortes, umas quantas voltas ao peito e a certeza que aquilo passaria, na boa, por um soutien. camisola vestida. mãos livres, sem pesos no corpo e lá vou eu a tentar apanhar a xana que, entretanto, continuou por ali fora.

apanho-a quase na torre da sacor. quando contornamos a rotunda da sport tv e começamos a subir, olho para ela e sorrio.

está feita, foda-se!

em silêncio. é um final feito em silêncio. sabemos que esta já está. conseguimos!

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a subida é horrível. são, sei lá, uns cem ou cento e vinte metros que parecem oitocentos, com um declive de oito por cento. incrível.

ouve-se barulho de pessoas, de ajuntamento, sons que vêm lá da zona da meta. apesar do cansaço, há um ânimo que vem não sabemos de onde e que nos faz, estranhamente, ir buscar forças que nos permitem baixar um minuto ao ritmo que trazíamos. que loucura.

- pedro, olha ali. é a sandra!

não acredito. juro, não acredito! ali mesmo, sentada no chão, à nossa espera, está a sandra. que maravilha, que bom…

em alguns dos meus treinos, não só nos longos mas também nalguns dos que fiz naqueles luminosos finais de tarde, lá pelo porto de santa maria ou pelos oitavos, muitas das vezes tive sonhos com o final da maratona. sonhos que tentava reprimir com medo que passassem de sonho a desejo e de desejo a obsessão. inundavam-me imagens dos meus amigos a virem ao meu encontro, ali, algures por volta da matinha, para comigo fazerem, em festa, os metros finais da prova. nunca contei isto a ninguém e também, obviamente, nunca tive coragem de pedir que me fizessem isso. a acontecer que fosse por iniciativa própria. ver a sandra ali, caramba, curiosamente a sandra que foi o depósito das emoções, medos, alegrias, expectativas e ansiedades que tive nas últimas semanas do plano de treinos, a sandra, dizia, estava ali, precisamente para materializar o meu sonho. o sonho que eu achava, obviamente, impossível de concretizar. emocionadérrimo, comecei a chorar. enfim… mariquices.

levanta-se e começa a correr connosco. mas corre compenetrada. não vai a correr assim, na brincadeira ou coisa assim, nahhh, vai concentradíssima como se estivesse a cumprir uma missão ou a desempenhar uma função que lhe tivesse sido atribuída por alguém. olho para ela e ela vem ali junto de nós.

- vá está quase. está mesmo quase. vá, força, agora é sempre em

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frente e, vão ver, logo a seguir viram à direita e é logo ali. força, força. muito bom, vocês são os maiores. nós estamos à vossa espera. estamos todas à vossa espera. orgulho, pá, que orgulho!

nas bermas da estrada existem agora mais pessoas a aplaudir. é tão bom, é impossível ficar indiferente. ali, junto do tivoli, perto da entrada do vasco da gama a quantidade aumenta. campeões. é o que nos chamam. tão bom. o ego, coitado, já não tem espaço para tanto inchaço. que final do caraças.

a sandra abandona-nos para não receber aplausos imerecidos - tola! - e avisa-nos que vai andando para a meta.

volto a olhar para a xana. quero certificar-me de que ela vai bem, de que vai feliz. quero, exijo que ela esteja feliz. pelo menos feliz como eu. feliz por causa da prova, feliz pelo mimo da sandra, feliz porque sim.

há um ou outro fotógrafo da prova que nos capta num estado eufórico fantástico. é esse o espírito. olho para o relógio e já passaram quase quatro horas e meia. acabaram-se todas as dores.

faltam menos de quatrocentos metros.

falta o mesmo que uma volta ao estádio. não consigo pensar nos quarenta e dois quilómetros. em vez de número, tenho antes uma sensação de distância. porra, vim a correr de cascais até aqui? é de doidos!

entramos na recta final e exijo acabar lado a lado com a xana. já perto da meta, vejo a minha filha e a minha mulher. cerro o punho direito e faço-lhes um sinal de “já está!”. páro junto delas, beijo-as e decido fazer a dança que a minha filha faz quando está feliz. assim uma espécie de índio navajo a dançar requerendo chuva. ela ri-se mas fica ao mesmo tempo envergonhada. volto para a corrida, agarro na xana

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e, de mão dada, termino a prova muito, mas mesmo muito feliz.

- xana, conseguimos! dá cá um xi-coração, minha querida.

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4 de março de 2014

posfácio

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no momento em que escrevo estas linhas já passaram praticamente cinco meses desde o dia da maratona de lisboa.

nos primeiros dias, após a prova, fiquei com um vazio enorme. foi terrível. fiquei feliz, claro. mas a minha felicidade teve mais que ver com o espírito de festa que inesperadamente me aguardava no final do que propriamente com um suposto “orgulho” que deveria espalhar-se pelo meu corpo por me sentir maratonista.

a verdade é que nada disso aconteceu. francamente, é apenas uma prova. uma prova dura, é certo, mas apenas isso. é uma corrida. não é, acreditem, nada que eu queira ostentar como medalha. aliás, não guardo nenhuma medalha de nenhuma prova.

é verdade o que dizem, que durante uns tempos não queremos mais ouvir falar sobre corridas. comigo aconteceu o mesmo. aconteceu mais ou menos como sucede quando como leitão. durante umas horas (três horas, no máximo) não quero ouvir falar sequer em regressar a negrais. com a maratona aconteceu algo idêntico: só quis voltar a ouvir ou a falar de corridas, vá, dois ou três dias depois, pronto!

mas quero voltar atrás para dizer umas coisas sobre a tal coisa que é “a primeira maratona”. acreditem, fazer uma maratona não é uma coisa do outro mundo. repito, a maratona é uma corrida e, como qualquer corrida, é um momento único.

os treinos muitas das vezes acabam por ser repetitivos: ou são rampas, ou são séries, ou são lentos, ou são em ritmo de corrida, ou... são quase chapa cinco. as corridas não. as corridas têm sempre aquele gostinho especial que as diferencia sempre e as torna, lá está, únicas.

difícil, difícil é prepararmo-nos para correr uma maratona. isso sim é outra loiça. uma preparação para uma maratona, em particular se for a primeira, é algo que exige uma disciplina férrea e uma força de vontade inusitada que, na maior parte dos casos, só poderá

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ser alcançada com ajuda de terceiros: para fazer um treininho xis ou ípsilon; para nos ouvir quando não queremos alguém que nos censure, quando pretendemos desabafar que estamos fartos “desta merda toda!”; para nos dizer “boa, pá!”; para nos amaciar a alma, quando estamos doridos e julgamos que “ainda não estamos lá”.

concordo quando se diz por aí que não faz sentido correr uma primeira maratona se ainda não corremos uma prova de quinze quilómetros e depois uma de vinte ou uma meia-maratona. e não é por questões técnicas. é mesmo porque, digo eu, as conquistas fazem sentido e são mais saborosas se forem degrau a degrau. se estamos habituados a fazer provas de dez quilómetros e queremos passar logo para uma maratona eu não digo que não seja possível, mas o que eu acho é que estão a roubar o prazer que se tem quando olhamos para o pulso e no relógio vemos marcados quinze quilómetros. depois, semanas mais tarde, vinte. e mais à frente ainda, meia-maratona. acreditem, o passo que é dado mais além não só faz a alma banalizar o número de quilómetros realizados, mas também nos oferece umas alegrias que podem durar uma semana ou uma vida. terminar corridas sem festa, digo eu, não faz sentido.

eu acrescento até: corridas sem festa são momentos para esquecer. mas isso sou eu que penso, não é a generalidade, ok? para quem como eu não gosta de correr (e não há um grama de ironia nesta frase), é preciso que aconteçam umas quantas coisas que lhe façam esquecer que… que está a correr: os amigos presentes; os amigos que nos vieram ver, os petiscos de fim da prova (e os que acontecem antes também); as brincadeiras, as bocas, as histórias…

duas ou três vezes por ano tento correr depressa. ou pelo menos depressa para a minha bitola. por um lado, confesso, para aferir se tenho tantas pernas como alguns dos meus amigos (e amigas, porra! não vá a patrícia ler isto e sentir-se ofendida) têm (apesar de ninguém ter pernas nem pedal, lá está, como a patrícia). por outro lado, para “ver se consigo”.

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mas já sei que é corrida que “estrago”, em que não me divirto. ou seja, se por um lado gosto de saber que consigo o objectivo xis ou ípsilon - afinal, correr como fazia quando tinha dezoito anos -, por outro sei que vou estar duas horas (ou coisa que o valha) a respirar com aquele ar de quem está a presenciar uma porca a parir. é custoso, digamos.

pode ser, é verdade, uma incongruência, mas mantenho o meu desejo de um dia correr a maratona nas tais quatro horas e catorze minutos, o tal dobro de tempo que o lopes fez em roterdão um dia, quem sabe. um dia que me lembre de tentar. logo se vê.

entretanto, nestes cinco meses que passaram desde a maratona de lisboa, decidi treinar para uma outra. é verdade, motivado por uns amigos (a sandrinha, claro, quem mais poderia ser?) lá me meti a preparar-me para mais essa epopeia. e fez-se, lá está. uma preparação feita com treinos sem calor, alguns com muito frio, outros (muitos) com muita chuva e vento e nenhum com aquele sol de fim de tarde que havia nos treinos que fiz no verão. comigo, nessa maratona, além da xana, que também repetia a distância, estiveram três pessoas, três amigos que se iam estrear. com eles estavam também três tipos de medos ou ansiedades. do meu lado, havia um escondido e disfarçado sorriso de certeza de que eles eram capazes de a completar. nalguns casos, sentia-os infinitamente mais bem preparados fisicamente do que eu estava aquando da corrida de lisboa.

se eu tivesse de dar um conselho sobre “treinos para pessoas que querem terminar um dia uma maratona e não estão nem aí para o raio do tempo que possam alcançar” eu diria para treinarem a dor. sim, a dor. a dor psicológica e a física. porem-se à prova para quando acontecem aqueles momentos em que vos apetece desistir… e não desistem, quer seja em treinos de quarenta e cinco minutos, quer seja nos longões de três horas e meia. é, é nos treinos de mais de trinta quilómetros que irão verificar o que é que corre bem (ou o que corre mal) e que devem repetir, depois, na maratona: que roupas devem

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usar; que pequeno-almoço não vos faz querer fazer cocó durante a prova; de que adesivos precisam para não sangrar; que géis e em que altura os devem tomar; de quanta água precisam; que cadência o vosso corpo aguenta; que música está dentro do vosso aipode ou aifone que vos irrita, alegra ou excita, etc. acreditem, é nesses longões que verdadeiramente treinam a prova. é quando estão “em baixo”, quando estão, por vezes, fartos, quando desatam a efectuar reflexões que normalmente começam por “mas que caralho estou eu aqui a fazer, pá?”, que realmente percebem que estão a “treinar” para a prova.

outra sugestão: corram devagar. é simples: de-va-gar! treinem para conseguir correr devagar. se correrem depressa não curtem a maratona nem metade. e se correm com calma, acreditem, nem sequer passam pelo muro, muito menos o chegam a sentir.

a maratona, reforço, é uma prova como outra qualquer. as pessoas que encontram numa prova de dez quilómetros são precisamente as mesmas, com as mesmas roupas e os mesmos sapatos - e manias - que encontram na maratona.

eu estou a dizer isto e dá ideia de que sou apologista de uma balda permanente ao plano de treino. nada disso. quem comigo foi acompanhando os meus treinos sabe que o meu desvio em relação ao planeado foi mínimo. se a vossa ideia é “concluir” a prova, acreditem, sejam fiéis ao plano que escolheram. a um qualquer. depois de olharem para o plano, para os treinos que ele comporta, desde que a vossa vida profissional e pessoal permita que eles se realizem, executem o plano da única forma possível: um treino de cada vez. simples.

simples mas difícil.

a prova, sabem, passa num instante. acreditem no que vos digo. a prova decorre num ápice.

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mais, se tiverem cumprido minimamente um plano de treinos, estão física e mentalmente aptos para concluírem a prova. porém, a vossa cabeça não está preparada para a alegria que acontece durante a prova. uma maratona é uma coisa cara, é dispendiosa. não só não é uma inscrição monetariamente barata, como ao longo dos treinos há também um desgaste (e também um criar de caparro, é certo) de carteira que acaba sempre por acontecer: géis, isotónicas, equipamentos, etc. por isso, quando chegarem ao momento de correr, meus amigos, tirem partido dele! sério, foi para isso que andaram a preparar-se e é por isso que é tão “caro”: é porque a alegria que acontece durante a prova só é sentida por quem está lá dentro. pagámos uma inscrição e andámos a treinar para recebermos palminhas (quando temos sorte) e palmadinhas nas costas dadas pelos amigos, quer queiramos quer não. é bom!

repito, quando estiverem rodeados pelas centenas de corredores que convosco se amontoam à espera do tiro de partida, naquela comunhão gloriosa, vocês não têm noção nem estão preparados para a alegria que vos espera.

e é por isso que conseguem terminar uma maratona, mesmo quando não gostam de correr...

(...porque se calhar até gostam.)

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24 de março de 2014

agradecimentos

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os agradecimentos para a façanha da maratona, como devem supor, estão escarrapachados nas páginas anteriores. são uma miríade de amigos que aqui e ali me ajudaram a chegar ao fim.

porém, para este livro eu tive a preciosa ajuda de outras pessoas: o marquinho silva, que me deu as ideias sobre como deveria paginar e compor com simplicidade estes textos; a cristina “ana clara” amante, que foi, não só o olho clínico que detectou as gralhas, como também me ajudou a ser uma coisa parecida com um decente aluno da professora maria de lurdes guisado...

(ela sabe do que eu estou a falar.)

...por fim, já à última hora, a carlinha palhares mostrou-me com quantos pauzinhos de faz uma canoa. (que luxo!)

obrigado aos três.

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índice

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prefácio 8

pré-história 14

pipáterra 18

parafuso 24

o zé a convencer-me para a maratona 26

marginal à noite 28

alongamentos 32

planos de treino 34

primeira semana, primeiro treino 38

auscultadores 42

trail nocturno 44

crise 48

treinos nas ferias 52

treinos nas férias, parte ii 56

Page 246: eu não gosto de correr

244

puto, a meia é uma cena que 60 não me assiste

e se escrevesse sobre a maratona? 64

e encontro o bili 66

tomatudo 70

cinto 74

mais outro acima da meia 76

peso 80

para lá de maratonistas, 82ultra-maratonistas

treinar series 84

mais ferias 86

rampas 92

volta de bicla 96

treinos durante as férias familiares 98

caloooooooooooor 100

Page 247: eu não gosto de correr

245

acumulado 104

reforço 108

um dois, um dois, teste 112

vaselina 118

flocos de aveia 122

música 124

memórias caninas 128

séries, muitas 130

rpm 132

meia-maratona em modo treino 134

agadir 136

sol 138

treinos grandes demais 142para a hora de almoço

vício 144

treino de alterne 146

Page 248: eu não gosto de correr

246

greta na brasa 150

mais series 152

treino acompanhado 154

lesões 158

fisioterapia 162

o retornado 166

corrida do tejo 168

últimas verificações 172

nide fór spide 174

séries ouuuuuuutraaaaa veeeeez 178

as “férias” intrometer-se novamente 182

então e carrego no acelerador 186muito ou pouco?

diferentes pedais 190

e as séries que nunca mais acabam 192

uma semana… 194

Page 249: eu não gosto de correr

247

conselhos do bili 198

séries até ao fim 202

e se eu pedisse ao pessoal que 204viesse comigo fazer a maratona?

de cascais à expo 206

trabalhos para casa todos feitos 208

motivação final 212

o dia 216

partida, largada, fugida! 222

ok, vamos lá então saber se o muro 228existe ou não

posfácio 238

agradecimentos 244

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249

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pedrojaime

crescido na picheleira, para onde foi em 1969 depois de umas poucas horas passadas na rua do viriato, mais pro-priamente na maternidade do senhor alfredo; militar de carreira durante oito meses; ex-fumador; ex-ex-fumador de vez em quando (tem um carinho especial por uma beca de português suave sem filtro, ducados e gauloises que tem incrustado num brônquio); proprietário de uma colecção de mapas que fazem inveja ao google maps e amigo do seu amigo leitão, o de negrais.

escreveu este livro porque correr ainda é pior do que para aí falam mas, paradoxalmente, quer aparecer um dia numa foto do cascais addicted, a correr lá para os lados do guincho, com o mar em pano de fundo, assim como aquela foto do millôr que está no ‘ela é carioca’ do ruy castro.

este livro é a brincar. pelo amor da santa, não sigam o que para aqui está escrito como exemplo.

mmxiv