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Estudos Jurídicos Atuais .......................................................................... - 8 - Ângela Ferreira da Silva Árlen Almeida Duarte de Sousa Wilson Medeiros Pereira Organizadores Estudos Jurídicos Atuais VirtualBooks Editora Estudos Jurídicos Atuais .......................................................................... - 9 - ORGANIZADORES Ângela Ferreira da Silva Pedagoga. Graduada em Normal Superior Anos Iniciais/Educação Infantil e em Pedagogia Licenciatura - Faculdades Integradas do Norte de Minas. Especialista em Pedagogia nos Espaços não Escolares, Supervisão e Inspeção Escolar. Coordenadora Pedagógica do curso de Direito da Funorte. Tem experiência na área da Educação, com ênfase em Educação nas séries iniciais e Secretaria Acadêmica. Árlen Almeida Duarte de Sousa Professor do curso de Graduação em Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas. Coordenador de Pesquisa do Curso de Graduação em Direito. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Doutorando em Ciências da Saúde pela Unimontes. Wilson Medeiros Pereira Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá/ Rio de Janeiro. Juiz Federal (TRF1ª Região). Especialista em Direito Econômico e Empresarial e em Direito Público. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Funorte. REVISORA Cássia Maria Aquino Suzart. Graduada em Letras Português/Francês e suas literaturas pela Universidade Estadual de Montes Claros _ FUNM / UNIMONTES. Especialista em Linguística Aplicada- Leitura e Produção Textual. Possui experiência em docência em cursos médio e superior, cursos preparatórios, pré- vestibulares, consultorias e na coordenadoria da Educação a Distância/Polo (EAD) Norte de Minas. Sócia- proprietária, coordenadora e docente no Logos Sociedade Educacional Montes Claros-MG, área de Português.

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ÂÂnnggeellaa FFeerrrreeiirraa ddaa SSiillvvaa ÁÁrrlleenn AAllmmeeiiddaa DDuuaarrttee ddee SSoouussaa

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Estudos Jurídicos

Atuais

VirtualBooks Editora

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ORGANIZADORES

Ângela Ferreira da Silva Pedagoga. Graduada em Normal Superior Anos Iniciais/Educação Infantil e em Pedagogia Licenciatura - Faculdades Integradas do Norte de Minas.

Especialista em Pedagogia nos Espaços não Escolares, Supervisão e Inspeção Escolar. Coordenadora Pedagógica do curso de Direito da

Funorte. Tem experiência na área da Educação, com ênfase em Educação nas séries iniciais e Secretaria Acadêmica.

Árlen Almeida Duarte de Sousa

Professor do curso de Graduação em Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas. Coordenador de Pesquisa do Curso de Graduação em Direito. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Doutorando em Ciências da Saúde pela

Unimontes.

Wilson Medeiros Pereira Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade

Estácio de Sá/ Rio de Janeiro. Juiz Federal (TRF1ª Região). Especialista em Direito Econômico e Empresarial e em Direito Público.

Professor e Coordenador do Curso de Direito da Funorte.

REVISORA

Cássia Maria Aquino Suzart. Graduada em Letras Português/Francês e suas literaturas pela Universidade

Estadual de Montes Claros _ FUNM / UNIMONTES. Especialista em Linguística Aplicada- Leitura e Produção Textual. Possui experiência em

docência em cursos médio e superior, cursos preparatórios, pré-vestibulares, consultorias e na coordenadoria da Educação a Distância/Polo

(EAD) Norte de Minas. Sócia- proprietária, coordenadora e docente no Logos Sociedade Educacional Montes Claros-MG, área de Português.

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APRESENTAÇÃO

A Instituição de Ensino Superior é considerada a maior ferramenta utilizada na construção e disseminação do conhecimento científico, pois proporciona aos estudantes e docentes um ambiente de reflexão. Dentro desse contexto, percebe-se que a produção científica se tornou parte essencial no crescimento profissional do estudante da área do Direito.

Uma Instituição de Ensino estabelece laços perenes com seus estudantes, devendo acompanhar e estimular a inserção deles no mercado de trabalho. Pensando nisso, o Curso de Direito da Funorte colocou em execução um projetor desafiador com seus acadêmicos e egressos. Com fincas ao estímulo e desenvolvimento da pesquisa científica, os melhores trabalhos de conclusão de curso serão publicados em livro ou revista de alcance nacional.

A presente obra faz parte desse alvissareiro projeto. Após uma percuciente análise, foram escolhidos trabalhos de conclusão de curso, os quais dispõem sobre variados temas e que provocam grandes debates no mundo jurídico. Indubitavelmente, não se propõe estancar as discussões tratadas, mas fornecer e/ou sugerir aos leitores possíveis e novas perspectivas dos temas abordados.

Nessa edição contamos, também, com a contribuição de capítulos de lavra de conceituados profissionais da área jurídica.

Os organizadores.

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SUMÁRIO Apresentação / 00

1 DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA DECADÊNCIA NA REVISÃO DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO Alex Sander Souza Vieira Ana Lúcia Ribeiro Mol Luciano Soares Maia Maria Inês Gomes da Silva Maria Letícia da Costa Leal Teixeira 2 O DIREITO À SAÚDE E A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL Carlos Eduardo Prates Fonseca Gisele de Cássia Gusmão Jane Viviane da Silva Lílian Fabrine Abreu Rodrigues Maria Letícia da Costa Leal Teixeira 3 ADOÇÃO INTUITU PERSONAE À LUZ DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR Cristiane Gonçalves de Sá Ferreira Fernanda Fagundes Veloso Lana Ludimila Souza Oliveira Ferreira Dias Warlem Freire Barbosa 4 O DESEQUILÍBRIO ENTRE A RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDAS DAS EMPRESAS OPTANTES PELO SIMPLES NACIONAL E DAS EMPRESAS DEVEDORAS DE TRIBUTOS FEDERAIS, SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. Fernanda Fagundes Veloso Lana

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5 A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO E O DEVIDO PROCESSO LEGAL Ana Lúcia Ribeiro Mol Fernanda Fagundes Veloso Lana Givago Prandini Maia Maria Inês Gomes da Silva Mauro Magno Quadros Ruas 6 OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA: ORDEM ECONÔMICA E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR Fernanda Fagundes Veloso Lana Jane Viviane da Silva Jairo Farley Almeida Magalhães Kátia Suely de Melo Gusmão Maria Inês Gomes da Silva Roberto Ribeiro Lopez 7 O CONTROLE COMO MECANISMO INIBIDOR DA PRÁTICA DE ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO TERCEIRO SETOR Givago Prandini Maia Maria Letícia da Costa Leal Teixeira Maria Inês Gomes da Silva Rosely da Silva Efraim Warlem Freire Barbosa

8 O SISTEMA FEDERALISTA NO BRASIL, BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE SUAS ORIGENS, DESDOBRAMENTOS E DIFICULDADES CONTEMPORÂNEAS Rodrigo Dantas Dias

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DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA DECADÊNCIA NA REVISÃO DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO

Alex Sander Souza Vieira1 Ana Lúcia Ribeiro Mol2

Luciano Soares Maia3 Maria Inês Gomes da Silva4

Maria Letícia da Costa Leal Teixeira5

1 A história fazendo a história: uma herança em constante redescobrimento

Não há dúvidas de que a segurança da

aposentadoria foi erigida à categoria de direito fundamental. Parte-se do pressuposto de que a aposentadoria é automaticamente incorporada ao patrimônio do segurado (ou dos seus dependentes), por todas as suas contribuições,

1 Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas. 2 Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós- graduada em Direito Econômico e Empresarial pela Unimontes. Professora e Pesquisadora PROIC-Universal das Faculdades Integradas do Norte de Minas. Procuradora Adjunta de Fazenda do Município de Montes Claros. 3 Mestre em Direito pelo Centro Universitário Fluminense – UNIFLU. Professor do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. 4 Advogada. Professora das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE e da Unimontes. 5 Professora do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas- FUNORTE. Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC.

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vertidas ao regime de previdência em vida, o que, em tese, representa a figura do direito adquirido.

Tal conclusão é corroborada pelo fato de a previdência ser um direito social básico, o qual tem, por finalidade, contribuir para a erradicação da pobreza e redução dos desníveis sociais existentes no estado brasileiro.

Desse modo, por ser a segurança jurídica, nas relações previdenciárias, um dos marcos representativos da implementação dos direitos fundamentais no direito pátrio, ao se considerar que esses últimos possuem, como característica fundamental, a irrenunciabilidade, isto é, uma feição objetiva, que leva em consideração o interesse da coletividade e não apenas o sujeito ativo, é possível cogitar a perda desse direito pelo titular em virtude do decurso de um determinado tempo?

Na mesma linha de raciocínio, como é possível esse direito componente do núcleo fundamental da dignidade da pessoa humana ser irrenunciável e ao mesmo tempo se cogitar um possível “direito à desaposentação”?

É de ressaltar que o atual estágio da Previdência Social é resultante dos inúmeros embates políticos e filosóficos do passado concretizados, em documentos jurídicos, o que caracteriza o Estado neoliberal.

O neoliberalismo, por sua vez, e até por sua base principiológica, propicia a reduzida intervenção do governo no mercado de trabalho e a busca constante pelo aumento da produção para atingir o desenvolvimento econômico, acentua o desequilíbrio no mercado econômico e nas relações de trabalho. A grande maioria dos trabalhadores não recebem bons salários e não têm respeitados os direitos trabalhistas assegurados pela Constituição.

Assim, no momento em que são implementadas as condições para se aposentar, muitos decidem retornar ao trabalho, em virtude da baixa inicial da renda mensal dos

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benefícios previdenciários, uma vez que os trabalhadores geralmente contribuem com o mínimo para a previdência, pois recebem pouco e buscam, junto à autarquia e ao Judiciário, o reconhecimento de uma possível desaposentação, ou seja, opção por um regime jurídico previdenciário mais benéfico.

A segunda parcela dos segurados opta pela correção dos critérios de concessão do benefício previdenciário, pela revisão administrativa ou judicial, mas encontram barreira em instrumentos limitadores desse exercício, como é o caso da decadência, bastante questionada em matéria previdenciária pelos estudiosos do Direito, pela fundamentalidade material que envolve esses direitos.

Tratar a desaposentação e as demais formas de revisão das prestações previdenciárias, seria ingressar no hemisfério da renúncia ao direito fundamental, o que parece paradoxal, mas que, por mais paradoxal que pareça, pode dar ensejo a uma categoria de direitos renunciáveis, visando ao melhor proveito no futuro. E é nessa conjuntura que se deve analisar o direito fundamental à aposentadoria, tão importante para a manutenção de um Estado Democrático de Direito. Procuremos as respostas.

1.1 Existe diferença entre o direito previdenciário, a seguridade social e a previdência social?

A Seguridade Social “compreende um conjunto

integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, nos moldes do art. 194 da Constituição Federal de 1988.

Na verdade, como bem ressaltado por grande parte dos doutrinadores de Direito Previdenciário, não se trata de uma definição propriamente dita, no sentido técnico da

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palavra, uma vez que o texto constitucional apenas relacionou a estrutura do sistema amplo na Seguridade Social, composto pela previdência social, assistência social e saúde, embora seja bastante comum encarar o art. 194 como sendo a definição da seguridade social brasileira.

Na opinião de alguns juristas, o termo mais adequado e correto seria “segurança social”, pois o termo seguridade trata de um estrangeirismo, advindo da língua espanhola, termo que significa, nessa língua, segurança.

Oportuna é a colocação de Sérgio Pinto Martins (2006, p. 18), em sua obra Direito da Seguridade Social, asseverando que o termo correto deveria ser segurança social, “tanto que, em Portugal, utiliza-se esta expressão”. Prossegue o renomado autor afirmando que, “mesmo na língua inglesa, a palavra security não quer dizer seguridade, mas segurança. Basta lembrar a expressão national security, que quer dizer segurança nacional”.

De fato, os autores espanhóis tiveram grande influência na elaboração da norma do art. 194 da Constituição da República. A partir de então, o que importa, de fato, é que o Estado, pela interpretação desse novo conceito, seria o maior responsável pela criação e desenvolvimento de um aparato, mais precisamente uma rede protetiva, que possibilitasse o atendimento eficaz dos anseios e necessidades dos cidadãos na área social.

Nesse sentido, Fábio Zambitte Ibrahim (2012) conceitua a Seguridade Social como:

a rede protetiva formada pelo Estado e por particulares, com contribuições de todos, incluindo parte dos beneficiários dos direitos, no sentido de estabelecer ações para o sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um padrão mínimo de vida digna.

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Por outro lado, o Direito Previdenciário pode ser

conceituado como o ramo do Direito Público, destinado a estudar e a analisar os princípios, as regras e as normas constitucionais aplicáveis à Previdência Social.

De outro lado, a palavra previdência derivada do verbo transitivo direto prever, sinônimo de antever, ou seja, tem significado de ver antecipadamente fato ou situação que, eventualmente, poderá ocorrer no futuro.

A palavra “previdência” significa a faculdade de prever, de se acautelar, providenciar meios necessários no presente para que nada falte no futuro, de modo que o homem organiza esse sistema de previdência para se proteger dos infortúnios no trabalho, aqueles que são criados, naturalmente, pela superveniência da idade e de doenças, quando não mais possa, por seus próprios meios e forças, auferir renda para providenciar o sustento próprio (NASCIMENTO, 1985 apud GONÇALES, 2009).

Dessa maneira, a Previdência Social pode ser conceituada, segundo lição de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari (2007, p. 75), como:

o sistema pelo qual, mediante contribuição, as pessoas vinculadas a algum tipo de atividade laborativa e seus dependentes ficam resguardadas quanto a eventos de infortunística (morte, invalidez, idade avançada, doença, acidente de trabalho, desemprego involuntário), ou outros que a lei considera que exijam um amparo financeiro ao indivíduo (maternidade, prole, reclusão), mediante prestações pecuniárias (benefícios previdenciários) ou serviços.

De qualquer forma, percebe-se que a finalidade

essencial desse conjunto de normas é dar ao indivíduo uma

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proteção social, uma tranquilidade em virtude da ocorrências das inúmeras contingências, proporcionando meios para a manutenção das necessidades básicas dessas pessoas.

1.2 Da previdência social à seguridade social: uma necessidade social ou obrigação do estado?

O Direito não é independente, ele se constrói a partir de certos acontecimentos históricos e também através da convergência de inúmeros aspectos culturais de cada sociedade, não se admitindo o estudo de qualquer de seus ramos sem antes se ter uma noção do seu desenvolvimento no tempo. Sintetiza com felicidade VENOSA (2010, p. 64), “o direito desenvolve-se num processo contínuo, sem prejuízo de seus valores permanentes”, de modo que “não há fenômeno ou instituto jurídico que possa ser analisado fora de seu contexto histórico”.

E a realidade não é diferente em relação ao Direito Previdenciário, sendo necessário analisar o seu passado, para bem compreender a matéria e os diversos institutos securitários existentes atualmente.

No Direito Romano, tinha-se, no âmbito da família, a figura do pater famílias, incumbido de efetivar a assistência em relação aos seus servos e clientes, tudo em forma de associação, a qual era mantida através de contribuição oriunda de seus membros, com a finalidade de salvaguardar os mais necessitados. Outra peculiaridade do Império Romano é que o seu exército, à época, resguardava duas partes em cada sete componentes do salário de cada soldado. Tudo isso para assegurar que, quando de sua aposentadoria, receberia os valores decorrentes dessa economia, sem contar, ainda, os pedaços de terras que lhes eram disponibilizados.

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No ano de 1601, ocorreu um avanço sistemático na Previdência Social, por meio da edição do Poor Relief Act (Lei de Amparo aos Pobres), na Inglaterra, o qual instituiu uma contribuição obrigatória, que era arrecadada de todos os cidadãos da época pelo Estado para fins sociais. O sistema funcionava, por meio da cobrança do chamado imposto de caridade de instituição, por parte dos juízes das comarcas, de pagamento obrigatório por aqueles ocupantes e usuários de terras, sendo que aqueles tinham, por incumbência, também, nomear inspetores responsáveis pelo recolhimento e aplicação do tributo em cada paróquia.

Porém, foi na Alemanha, já em meados do século XIX, onde surgiram as primeiras ideias da criação de um Direito Previdenciário, por meio da política social, desenvolvida pelo Chanceler Otto Von Bismarck, no período situado entre os anos de 1883 a 1889, assegurando aos trabalhadores o direito ao seguro-doença, à aposentadoria e a proteção às vítimas que, eventualmente, viesse a sofrer acidentes de trabalho. Mas o grande marco de Bismarck, que materializou essa filosofia, consistente na implantação de um direito de previdência social, foi quando apresentou, no dia 17 de novembro e 1881, o seu projeto de seguro operário, documento que serviu de parâmetro para diversas leis, as quais regulamentaram situações de necessidade (GONÇALES, 2009, p. 3)

No ano de 1885, conforme aduz IBRAHIM (2012, p. 47), citando Roberto Bissio, “a Noruega aprovou a cobertura diante de acidentes de trabalho e, também, criou um fundo especial em favor dos doentes e do auxílio-funeral.” Em 1891, a Dinamarca cria a aposentadoria.

Em meados de 1891, ainda, tem-se a criação da Encíclica Rerum Novarum, por parte de Leão XIII, documento que demonstrava a preocupação da Igreja, à época, com a

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proteção social, ou seja, “a instituição de um sistema apto a formar um pecúlio para o trabalhador, com a parte economizada do salário, visando a contingências futuras” (MARTINS, 2006, p. 4). Ressalte-se que essa instituição teve papel fundamental no desenvolvimento da seguridade social como um todo, porquanto foi ela a responsável pela cobrança constante de maior participação e intervenção do Estado e da população no campo social.

No âmbito da Inglaterra, foi criado, em 1897, o Workmen's Compensation Act, o qual teve por objeto a criação do seguro obrigatório contra os acidentes de trabalho. Tratava-se de uma espécie de responsabilização trabalhista objetiva, já que o empregador era responsável pelos infortúnios em relação aos seus trabalhadores, mesmo sem a necessidade de se averiguar se houve ou não culpa por sua parte, devendo, assim, proceder ao pagamento de indenização ao obreiro.

Já no Estado Francês, aprovou-se, em 1898, a Lei que criava a assistência à velhice e aos acidentes de trabalho.

Um marco importantíssimo que merece destaque foi a elaboração da Constituição do México, em 1917, primeira Constituição em todo mundo a incluir, em seus artigos, o Seguro Social. Cabe ressaltar que a referida carta foi elaborada, em um período em que se evidenciou o surgimento dos chamados direitos de segunda geração, com o enfoque no chamado constitucionalismo social. A partir de então, vários países passaram a tratar dos direitos sociais, trabalhistas, econômicos e também os previdenciários em suas constituições.

Elaborada a Constituição de Weimar6, em 11 de agosto de 1919, em seu art. 163, determinava-se que ao Estado

6 Diferentemente do pensamento de muitos doutrinadores, Weimar foi uma República independente, criada no período da história alemã, entre os anos de 1919 e 1933, entre o fim da I Guerra Mundial e a ascensão do

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incumbia prover a subsistência do cidadão alemão, caso não pudesse proporcionar-lhe a oportunidade de ganhar a vida com um trabalho produtivo.

No mesmo ano, em decorrência da celebração do Tratado de Versalhes, logo após o término da Primeira Grande Guerra Mundial, as nações que o subscreveram ressaltaram a necessidade de criação de um seguro social obrigatório. Tudo isto no contexto da criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, importante marco histórico quando se debate o surgimento e desenvolvimento dos direitos sociais.

No entanto, conforme preleciona Ibrahim (2012), a primeira citação feita à seguridade social, no âmbito mundial, foi a partir da elaboração da Lei de Seguridade Social, de 14 de agosto de 1935, pelo Congresso dos Estados Unidos da América, sob o governo do Presidente Franklin Roosevelt. Referido documento tinha por finalidade e estabeleceu: (i) ajuda aos idosos; (ii) estimulo ao consumo na sociedade americana; e (iii) instituiu a figura do seguro-desemprego, destinados àqueles trabalhadores em situação de desemprego temporário. Destarte, orienta o referido autor que o Social Security Act não correspondia à atual concepção sobre seguridade social, estando mais próximo da ideia de previdência social7, como a conhecemos atualmente, uma

partido nazista ao poder. O território de Weimar teve a sua constituição elaborada em 1919, enquanto a República Federal da Alemanha teve como seu documento maior a Lei Fundamental da Alemanha, editada no ano de 1949. 7A seguridade social é gênero, da qual são espécies a previdência social, a assistência social e a saúde. A previdência é a única subespécie que exige contribuição, que visa proteger o trabalhador em virtude do acontecimento de determinadas contingências. Assim, se o trabalhador quiser ter acesso a determinada proteção social, a este direito deve corresponder um valor mínimo a ser dirigido em forma de contribuição ao regime de Previdência Social.

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forma mais evoluída e capaz de atender às demandas da classe trabalhadora.

Em 1941, na Inglaterra, foi elaborado o Plano Beveridge pela Comissão Interministerial de Seguro Social e serviços afins, nomeada em julho de 1941, “com o objetivo de trazer alternativas para os problemas de reconstrução no período pós-guerra” (IBRAHIM, 2012, p. 48). O término do trabalho deu-se em novembro de 1942.

Como consequência, o Plano Beveridge representou um programa de prosperidade política e social, garantindo a cobertura e proteção do indivíduo em face de certas contingências sociais. Além disso, teve o grande mérito por ser o primeiro estudo empreendido, de maneira profunda e minuciosa, sobre o seguro social como um todo.

A repercussão desse importante plano foi de tamanha monta, que é considerado o berço de inúmeros princípios e institutos que, segundo Martins (2006), o governo da Inglaterra, em 1944, apresentou um plano com o objetivo de reformar a previdência social, que deu ensejo à reforma do então vigente sistema inglês de proteção social.

Por fim, no ano de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), no âmbito do sistema global de proteção dos direitos humanos, editou a Declaração Universal dos Direitos do Homem que, em seu art. XXV, estabelece que a proteção previdenciária é considerada como direito fundamental.

1.3 A Previdência Social como direito fundamental – renunciável ou irrenunciável?

Os direitos fundamentais exercem um papel de

substancial importância no ordenamento jurídico doméstico e internacional, porque eles cristalizam a ideia de Estado

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Democrático de Direito, logo no art. 1º, caput, da CF/88, fortalecem a ordem jurídica e o regime democrático estabelecido e privilegiam a concepção do indivíduo como um ser humano. Além disso, eles podem ser vistos desempenhando inúmeras outras funções igualmente importantes.

A primeira função é a de defesa, pois aqueles se caracterizam por serem normas de competência negativa para o Estado, vale dizer, impedindo a interferência, na esfera jurídica individual do homem, garantindo a abstenção do poder estatal, nessa esfera de liberdade do indivíduo, a fim de evitar transgressões a esses direitos, ao mesmo tempo em que a ele confere o poder de exigir positivamente esses direitos.

Noutro giro, a segunda função é a de prestação social, pois o particular tem o Direito de exigir do Estado a prestação de serviços básicos como a saúde, a educação, o acesso à moradia, a previdência social, dentre outros. Nas lições do Ministro Gilmar Mendes (2013, p. 622), “esses direitos assumem especial significado em um país como o Brasil, no qual sua concretização encontra-se, por diversos motivos, deficitária”. Paulo Bonavides (2013) ainda sintetiza, com a propriedade que lhe é peculiar, que nessa perspectiva, os direitos fundamentais sociais exercem a função de concretização da justiça social, a realização da igualdade niveladora na sociedade, voltada, sobretudo, para situações humanas concretas.

Por outro lado, a terceira função guarda relação com a necessidade de proteção perante terceiros, decorrente da própria ideia de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, aplicabilidade dos direitos fundamentais na relação entre os particulares. Incumbe ao Estado a atribuição de proteger os titulares dos direitos fundamentais perante os terceiros, como, por exemplo, proteger a vida e a integridade

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física contra a intervenção arbitrária e agressões oriundas de outros particulares.

A previdência social (art. 201, caput, da CF/88) não pode ser vista apenas como uma técnica de proteção social com a finalidade de implementar prestações previdenciárias, quando evidenciadas determinadas contingências. Mas, sobretudo, como um instrumento que tem por escopo, primordialmente, a proteção do núcleo fundamental da dignidade da pessoa humana, pois daqui parte toda a compreensão de ser um direito de relevante interesse social, fundamental para o desenvolvimento da sociedade que tem, como pressuposto e elemento norteador, a justiça social, a ideia de construção de uma sociedade justa e solidária (princípio da solidariedade), a erradicação da pobreza e a redução da marginalização, encabeçado pelo art. 3º, I e III, da CF/88.

Vale ressaltar que a dignidade da pessoa humana, conforme excerto de Luis Roberto Barroso apud Barcellos (2002), “identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. O autor ainda assevera que a dignidade se relaciona com a liberdade e as condições de espírito, além de impor o oferecimento de condições materiais de subsistência. Por oportuno, confira-se o julgamento do AgR no RE nº 477.554/MG8, sob a relatoria do Excelentíssimo Ministro

8A sigla “RE” designa uma espécie recursal de competência do Supremo Tribunal Federal: o recurso extraordinário. O art. 102, inciso III, da CF/88 estatuiu que compete ao STF julgar, em sede de recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: (i) contrariar dispositivo da constituição; (ii) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; (iii) julgar válida lei ou ato de governo local em contestado em face desta constituição; (iv) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. São características do recurso extraordinário: a) não gera impedimento à execução da sentença

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Celso de Mello, o qual assentou que a dignidade trata-se de princípio essencial fundamental, encartado no art. 1º, inciso III, da CF/88, como “significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país, e que assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais”.

Registre-se, oportunamente, que a previdência social é composta por normas jurídicas que visam à consecução das políticas sociais e a segurança material para todos, marcadas pelo intervencionismo estatal na economia e na relação entre os particulares, com o fito de assegurar o bem comum na comunidade a que serve. Referida ação estatal se justifica, na concepção de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari, porque o Estado “utiliza a regulamentação e a prestação de serviços no campo previdenciário para fazer frente as falhas do mercado” (2007, p. 19). Assim, o Estado busca a isonomia entre todos os trabalhadores e a possibilidade de acesso universal aos benefícios previdenciários.

O próprio art. 1º da Lei nº 8.213/91 assim como o art. 3º da Lei nº 8.212/91 são claros ao afirmar que a Previdência Social, mediante contribuição, tem por finalidade assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego

(art. 497 do CPC); b) admite recurso adesivo (art. 500, inciso II, do CPC); c) exige demonstração da repercussão geral (art. 543-A, § 1º do CPC); d) exige prequestionamento (súmula 282 do STF); e) não cabe quando a pretensão for simples reexame de prova (súmula 279 do STF). Cabe Agravo Regimental (sigla “AgR”) em sede de recurso extraordinário, nos termos do art. 317 do Regimento Interno do STF, no prazo de cinco dias de decisão do Presidente do Tribunal, de Presidente de Turma ou Relator, que causar prejuízo a direito da parte. O agravo regimental não tem efeito suspensivo.

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involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

Já no plano internacional, temos o art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento esse que constitui um dos instrumentos legislativos mais importantes destinados à concretização dos direitos sociais:

todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

A Convenção Americana de Direitos Humanos

(Pacto de San José da Costa Rica, em execução no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 678/92), estabelece que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua dignidade, bem como a obrigação dos Estados-partes de se comprometerem a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir, progressivamente, a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas e sociais (art. 11, item 1 e art. 26).

Especificadamente sobre a temática dos direitos sociais, temos o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) que, em seu preâmbulo, já contém importante passagem para se compreender os direitos sociais como pertencente ao campo dos direitos fundamentais, senão vejamos: “o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser

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realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos”. O direito à previdência social encontra-se positivado em seu art. 9º, o qual estatui que os Estados-partes têm, por obrigação, assegurar a toda pessoa a previdência social, inclusive o seguro social.

Desse modo, o desenvolvimento do panorama supracitado, atento ao teor do § 2º do art. 5º, o qual expõe que “os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, e ao se levar em consideração as características fundamentais da previdência social, quais sejam, a proteção do ser humano, com sua dignidade e o oferecimento de condições mínimas de sobrevivência, fez com que o constituinte optasse por estabelecer a previdência como um direito social, no art. 6º da CF/88, no Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais.

2 O princípio da segurança jurídica no direito previdenciário

A aplicação da prescrição e da decadência não são assuntos recentes no universo jurídico.

Embora seja um tema tratado por diversas doutrinas e estudiosos do direito, há de se destacar que são muitas as dificuldades e desafios que os autores encontram ao lidarem com a decadência.

E nem se fale, então, do novel Direito Previdenciário, cuja matéria só foi devidamente incorporada há aproximadamente dezesseis anos, por meio da Lei nº 9.528/97, que acrescentou o art. 103 à Lei nº 8.213/91.

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É certo que o tempo exerce sua influência nos diversos acontecimentos humanos e naturais, portanto no direito não poderia ser diferente, já que o decurso temporal para aquisição ou perda de ações e direitos constitui uma das cristalinas garantias para os sujeitos da relação jurídico-previdenciária: a autarquia gestora do sistema e o segurado.

E a compreensão dos princípios universais e especiais que regem a matéria, no caso, a segurança jurídica, que pode contribuir para o aperfeiçoamento do pensamento jurídico.

Enfim, compreender o Direito é muito mais do que entender as suas normas, uma vez que possui base principiológica, cultural e social.

2.1 Compreendendo o significado e a função dos princípios

Os princípios podem ser conceituados como

proposições lógicas que descrevem determinados direitos. Expressam mandamentos nucleares de um sistema que constitui em verdadeiro alicerce de todo o ordenamento jurídico, os quais servem para compreender o sentido e o espírito do Direito, confere lógica e racionalidade a todo o sistema normativo, além de lhe atribuir harmonia.

Na concepção de Ana Paula Barcellos (2005, p. 169), “os princípios são normas que estabelecem, de maneira diferente, estados ideais e objetivos que devem ser atingidos”. Vale dizer, são mandados de otimização, enquanto as regras tem o caráter de mandados definitivos (ALEXY, 1997). Na verdade, os princípios jurídicos são proposições primárias do Direito que exprimem valores fundamentais para toda a sociedade e servem de base para a criação, interpretação e aplicação de todo o direito.

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Em síntese, os princípios de uma ciência “são proposições básicas, fundamentais, típicas, que condicionam todas as estruturações subsequentes (...) princípios são, neste sentido, os alicerces de uma ciência” (CRETELLA JÚNIOR apud DI PIETRO, 2004, p. 66). Resta saber, então, se a segurança jurídica no Direito Previdenciário é considerada um princípio ou uma regra.

O art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal de 1988 consagrou a temática, quando dispôs que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Como o princípio da segurança jurídica foi disposto, no capítulo dos direitos e garantias individuais, resta concluir que referida proposição tem aplicação imediata, em virtude do § 1º do mencionado art. 5º, além de estar protegido pelo manto da cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º do texto constitucional.

No plano infraconstitucional, a Lei nº 9.784/99, a qual versa sobre o processo administrativo no âmbito federal, trouxe o conceito da segurança jurídica, em seu art. 2º, parágrafo único, inciso XIII, parte final, expondo que, nos processos administrativos, será observado o critério de interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Esse mesmo diploma normativo expressou também outro viés do princípio da segurança jurídica, quando dispõe sobre a possibilidade de anulação e revogação dos atos administrativos pela Administração Pública. O art. 54 da Lei nº 9.784/99 assevera que “o direito da Administração de anular os atos administrativos que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

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Referida compreensão é importante, em tema de revisão de aposentadoria, já que há dúvidas sobre a aplicação desse prazo ou do art. 103 da Lei nº 8.213/91, quando a revisão de beneficio previdenciário for empreendida, não por iniciativa do segurado, mas por ação da autarquia previdenciária, por verificar a ausência dos pressupostos para concessão ou eventual ilegalidade na prestação previdenciária.

A segurança jurídica ainda encontra-se prestigiada no art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil), diploma que estatui o seguinte: “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. O § 1º traz o conceito de ato jurídico perfeito, o qual pode ser entendido como o ato já consumado ao tempo em que se efetuou. Por sua vez, o § 2º traz a lume a definição de direito adquirido, sendo os direitos em que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. E por fim, o § 3º define coisa julgada como a decisão judicial da qual não caiba mais recurso.

A aplicação prática do princípio foi transcrita na Súmula nº 363 e 473 do STF, que expõe o dever da Administração Pública de revogar os atos inoportunos e inconvenientes ou anular os atos ilegais que, eventualmente, tenham sido praticados. De fato, a anulação e a revogação de atos administrativos, por parte do Poder Público, também corresponde à ideia central de segurança jurídica em um Estado Democrático de Direito.

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2.2 Um pouco da história da segurança jurídica e a reflexão de uma das estruturas do Estado Democrático de Direito

O princípio da segurança jurídica é corolário da

própria razão de ser de um Estado submetido ao império da lei. Como bem ressalta Gilmar Mendes (2008, p. 489), “o tema da segurança jurídica tem assento constitucional (princípio do Estado de Direito)”. Não há como visualizar uma sociedade política, juridicamente organizada pelo Direito, sem levar em consideração a segurança das relações, que, acima de tudo, é condição para o cumprimento das finalidades do ordenamento jurídico.

Isso decorre da constatação de que o Direito não nasceu na vida humana somente com o propósito de homenagear a ideia de justiça, mas para satisfazer a irrefutável urgência de segurança e de certeza na vida em sociedade (SICHES, 2000). Nessa toada, a aplicação da decadência, compreendida como sendo o decurso natural do tempo, tem por finalidade a perenização de situações jurídicas que se mantiveram estáticas por determinado período de tempo, correspondendo a um desdobramento do vetor da segurança jurídica.

A segurança jurídica, entretanto, traduz uma conquista do ser humano que decorreu de um longo processo de evolução legislativa e política. Como direito fundamental, surge, pela primeira vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, sem seu art. 2º, prevê: “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem [...] esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

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Registre-se, ademais, a conceituação prevista no preâmbulo da Constituição Francesa, de 1793, para quem a segurança jurídica “consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades”.

A Constituição Brasileira de 1824 já contemplava a noção de segurança jurídica, em seu art. 179, inciso III e XXVIII, dispondo que:

a inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos cidadãos brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte [...] III. A sua disposição não terá efeito retroativo; [...] XXVIII. Ficam garantidos as recompensas conferidas pelos serviços feitos ao Estado, quer civis, quer militares, assim como o direito adquirido a elas na forma da lei.

Por sua vez, a Constituição de 1891 consagrou a garantia da segurança jurídica em seu art. 11, § 3º, ao estabelecer que era vedado aos Estados, como a União, “prescrever leis retroativas. Tanto a Constituição de 1934, a Carta Magna de 1946 e a Constituição de 1967 asseguraram em seus textos a segurança jurídica, tal como fez o art. 5º, XXXVI da CF/88.” 2.3 Da expectativa do direito ao direito adquirido no Direito Previdenciário

Costuma-se entender a segurança não apenas como segurança pessoal do indivíduo, pois diz respeito a uma série de vedações e restrições materiais e procedimentais

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impostas ao Estado com vistas a assegurar o exercício e o gozo dos direitos individuais.

A história da segurança jurídica nos remete à compreensão dos ensinamentos do jurista italiano Carlos Francesco Gabba, o qual é considerado pontífice da teoria subjetivista, tendo redigido a famosa obra A Teoria della retroattivista delle lege, em 1891.

João Carlos Leal Júnior (2008), citando Gabba, aduz que este último compreende o direito adquirido como aquele que atenda aos seguintes requisitos: (i) originar-se de fato idôneo a produzi-lo em virtude de lei vigente no momento em que aquele teve lugar, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo; (ii) nos termos da aludida lei, sob a égide da qual o fato ocorreu, passa, o mencionado direito, naquele momento, a pertencer ao patrimônio de quem o adquiriu.

A ideia de segurança jurídica traduz a garantia de conhecimento prévio das consequências de atos e condutas, a previsibilidade que nutre a confiança na estabilidade dos efeitos dos atos, fatos e situações disciplinadas.

Com efeito, a doutrina costuma distinguir o princípio em dois prismas: aspecto objetivo e subjetivo. O primeiro representa à estabilidade das relações jurídicas, vale dizer, a proteção do direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF/88), ao passo que o aspecto subjetivo da segurança jurídica tem como pressuposto a boa-fé do cidadão em relação aos atos do Poder Público, ou seja, relaciona-se com alguns dos componentes da ordem pessoal e subjetiva dos administrados.

Na opinião de Luis Roberto Barroso (2001), a expressão segurança jurídica compreende: (i) a existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade; (ii) a confiança nos atos do

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Poder Público, que deverá reger-se pela boa-fé e pela razoabilidade; (iii) a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova; (iv) a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos, tanto os que devem ser suportados e; (v) igualdade na lei, inclusive com soluções isonômicas para as situações idênticas ou próximas.

Na seara previdenciária, o direito adquirido passa por três fases até consolidar-se. Na primeira etapa, verifica-se o surgimento da pretensão, que se dá com a filiação ao regime de previdência. Aqui, o segurado não possui direito, como regra geral, à prestação previdenciária. Ele possui somente uma pretensão jurídica, ressalvada as prestações que independem de carência, descritas no art. 26 da Lei nº 8.213/919.

A segunda fase diz respeito à chamada expectativa do direito, caso em que o segurado não implementou todos os requisitos legais, mas está em uma posição jurídica próxima a alcançá-los. Nesse sentido, a expectativa de direito é um fato 9Art. 26. Independem de carência as seguintes prestações: I - pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família e auxílio-acidente; II - auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social, for acometido de alguma das doenças e afecções especificadas em lista elaborada pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Previdência Social a cada três anos, de acordo com os critérios de estigma, deformação, mutilação, deficiência, ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento particularizado; III - os benefícios concedidos na forma do inciso I do art. 39, aos segurados especiais referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei; IV - serviço social; V - reabilitação profissional; VI - salário-maternidade para as seguradas empregadas, trabalhadoras avulsas e empregadas domésticas.

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aquisitivo incompleto, ocorre quando o segurado não satisfaz todas as condições para subjetivar o direito. Pode ser definido genericamente como todo interesse que, constituído com base na legislação vigente, não encontre plena tutela no ordenamento jurídico. José Adércio Leite Sampaio (2005, p. 47), citando Limongi França, aduz que “as faculdades abstratas seriam as expectativas de direito, enquanto as faculdades concretas os direitos adquiridos”.

Já a terceira etapa corresponde à própria noção de direito adquirido, quando o direito incorporou-se ao patrimônio do titular. No Direito Previdenciário, o segurado adquire o direito à aposentadoria no momento em que reúne todos os requisitos necessários para obtê-la, independentemente do seu efetivo exercício ou requerimento. É o que diz, inclusive, a Súmula nº 359 do STF.

Um exemplo claro de direito adquirido no Direito Previdenciário foi o art. 3º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que assegurou a concessão de aposentadoria e pensão, a qualquer tempo, aos servidores públicos e aos segurados do regime geral de Previdência Social, bem como aos seus dependentes que, até a data de publicação da emenda, tenham cumprido os requisitos para obtenção desse benefício com base na legislação vigente.

Outro exemplo é a previsão do art. 122 da Lei nº 8.213/91, a qual estatui que, por ser mais vantajoso, fica assegurado o direito à aposentadoria, nas condições legalmente previstas na data do cumprimento de todos os requisitos necessários à obtenção do benefício, ao segurado que, tendo completado 35 anos de serviço, se homem, ou 30 anos, se mulher, e optou por permanecer em atividade.

Conforme asseverou o Ministro Luis Roberto Barroso, em voto proferido no julgamento do RE nº 626.489/SE, que tinha como tema central a aplicação da

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decadência na revisão do benefício previdenciário, é de curial importância distinguir o direito ao benefício previdenciário em si considerado, o qual possui caráter fundamental, da graduação pecuniária das prestações devidas em razão do benefício. O direito à concessão do benefício não prescreve, muito menos decai, podendo ser postulado a qualquer tempo. A decadência instituída pela MP de 1997 atinge tão-somente a pretensão de rever o benefício previdenciário.

Tal posicionamento já tinha sido externado pelo Pretório Excelso no Recurso Extraordinário nº 73.189/SP, cuja relatoria foi atribuída ao Ministro Luis Gallotti, senão vejamos:

Se, na vigência da lei anterior, o impetrante preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido aposentadoria, não o fez perder o direito, que já estava adquirido. Um direito adquirido não se pode transmudar em expectativa de direito, só porque o titular preferiu continuar trabalhando e não requereu a aposentadoria antes de revogada a lei ,em cuja vigência ocorrera a aquisição do direito.

Em síntese, podemos extrair duas conclusões: (i)

quando o segurado preenche todos os requisitos para se aposentar, diz-se que ele possui direito adquirido em relação à determinada prestação previdenciária; (ii) o procedimento de concessão do benefício previdenciário constitui o chamado ato jurídico perfeito.

No entanto, não existe direito adquirido em relação ao regime jurídico previdenciário, o qual pode ser modificado através de legislação posterior (STF, RE nº 278.718/SP, Min. Moreira Alves, DJ 14/06/2002).

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De modo geral, a instituição de prazo decadencial no direito previdenciário é compatível com a Constituição, pois é resultado da ponderação dos valores da legalidade e a segurança jurídica. Conforme assevera Carlos Cortês Vieira Lopes (2008, p. 290) “não existe um direito adquirido a realizar revisões ad eternum [...] o ordenamento jurídico brasileiro privilegia o princípio da segurança jurídica, o qual repele a existência de pretensões eternas e a revisões e modificações de atos já acabados”.

Assim, a decadência representa a possibilidade de a autarquia previdenciária, no exercício de sua autonomia, anular benefícios previdenciários que estejam eivados de ilegalidade, bem como a faculdade de o segurado rever a renda ou o procedimento de cálculo de sua aposentadoria feito, equivocadamente, pelo Instituto Nacional do Seguro Social. E essa é a razão de ser da decadência: o cancelamento de uma aposentadoria ou a concessão aquém do devido pode acarretar episódios traumáticos na vida do segurado e de toda a sua família.

2.4 Prescrição e decadência

Muitos autores encontram dificuldades ao tratar o

tema prescrição e decadência, que são instrumentos que buscam conferir paz e estabilidade nas relações jurídicas e sociais.

Isso ocorre, basicamente, porque os dois institutos jurídicos têm o seu ponto de partida coincidente, qual seja o decurso do tempo, aliado à inatividade de seu titular. No entanto, notam-se outras similitudes e diferenças entre os dois institutos, razão pela qual se torna necessário delimitá-las, tema que, não rara às vezes, traz calorosos debates na doutrina e na jurisprudência.

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Em relação à definição, a prescrição, de acordo com o art. 189 do Código Civil de 2002, é a forma de extinção da pretensão do titular do direito que fora violado. A decadência, na opinião de Yussef Said Cahali (2012) é a sanção consequente da inobservância de um determinado termo, consistente, assim, no decurso infrutuoso de um termo prefixado para o exercício da ação.

A primeira semelhança entre os dois institutos é que ambos versam sobre matéria de ordem pública, significando dizer que estes foram estabelecidos pela lei “por considerações de ordem social, e não no interesse exclusivo dos indivíduos” (CAHALI, 2012, p. 24). Esse entendimento já está consolidado na jurisprudência pátria, conforme se percebe, por exemplo, pelo julgamento dos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial nº 447596, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Uma vez reconhecidas como matéria de ordem pública, pode a prescrição ser reconhecida de ofício pelo magistrado, a partir da recente alteração no art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil, e a decadência também deve ser conhecida de ofício, quando estabelecida por lei, nos moldes do art. 210 do Código Civil. Duas observações que devem ser feitas: a prescrição, via de regra, é arguida pela parte a quem aproveita, segundo o art. 193, e a decadência convencional não pode ser suprida pelo juiz, no caso de ausência de sua alegação, regra estatuída pelo art. 211 do Código Civil de 2002.

Quanto à possibilidade de conhecimento em qualquer grau de jurisdição, é assente que até as vias ordinárias, pode haver a sua análise, ainda que não levantada

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em grau de recurso, até pelo art. 193 do Código Civil de 200210.

Ressalte-se, porém, que o Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento no sentido de que, ainda que a decadência se trate de matéria de ordem pública, é imprescindível que haja o prequestionamento para o seu conhecimento no Recurso Especial, sob pena de violação da súmula nº 21111 (STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1382980/DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 15/10/2013, DJe 25/10/2013).

Além disso, outro aspecto que aproxima a prescrição da decadência, é que os dois institutos integram o direito material, pois fazem alusão a uma das formas de extinção do direito subjetivo. Essa, inclusive, é a posição do Supremo Tribunal Federal, para quem o prazo estatuído em lei, como termo para extinção do direito, seja ele considerado de decadência ou de prescrição, é de direito material, conforme assentado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 71.682/PE, de relatoria do Ministro Bilac Pinto.

Outro ponto semelhante é a possibilidade de correr o prazo prescricional e decadencial em face de absolutamente incapaz.

No Direito Previdenciário, tal tema encontra regulação especifica, mormente porque o art. 79 da Lei nº 8.213/91, estabeleceu que “não se aplica o disposto no art. 103 desta lei ao pensionista menor, incapaz ou ausente, na forma da lei”. Vale lembrar que o art. 103 trata da revisão do segurado em face da Administração Pública. O Código Civil

10 Art. 193: A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. 11Súmula nº 211: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal ‘a quo’”.

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também possui previsão idêntica, quando dispõe, em seu art. 198, inciso I, que não corre a prescrição em face do absoluta e relativamente incapaz. O art. 208 do código civilista manda aplicar à decadência a mencionada regra.

Cabe lembrar, ademais, que ambos os institutos não comportam interpretação extensiva, muito menos o emprego da analogia. O exame das disposições é sempre de aplicação estrita, porquanto, segundo regra básica de hermenêutica jurídica, “não se pode dar interpretação extensiva em matéria de prescrição, visto significar perda do direito de ação por decurso de prazo, ou seja, restrição do direito de quem o tem” (STJ, 3ª Turma, Resp nº 799.744/DF, Rel. Min. Nancy Andrigui, julgado em 25/09/2006, DJe 09/10/2006), assim, também, ocorrendo com a decadência12.

No que concerne às dessemelhanças entre os dois institutos, a primeira delas é a regra tradicional do direito civil, no sentido de que a prescrição atinge diretamente o direito de ação e, por via oblíqua, faz desaparecer o direito por ela tutelado, enquanto a decadência atinge diretamente o direito tutelado e faz desaparecer, indiretamente, o direito de ação.

A decadência acarreta a extinção do direito potestativo, e a prescrição, por sua vez, gera a extinção de um direito subjetivo. Yussef Said Cahali (2012, p. 27) propõe uma técnica para se descobrir a natureza do prazo, se decadencial 12Quanto à aplicação da decadência no benefício previdenciário de aposentadoria por invalidez, precedida de auxílio-doença por acidente de trabalho, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também decidiu no mesmo sentido: “Não é adequada à utilização da analogia e da interpretação extensiva com a finalidade de ser reconhecida a prescrição ou a decadência” (TJRS, 10ª Câmara Cível, REEX 70052169133, Rel. Des. Marcelo Cezar Muller, julgado em 07/02/2013, DJe 28/03/2013).

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ou prescricional: “se a ação constitui, em si, o exercício do direito, que lhe serve de fundamento, fala-se em decadência; se a ação tem por fim proteger um direito, cujo exercício é distinto do exercício da ação, referimo-nos à prescrição”.

Quanto à distinção legislativa, ressalta o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves (1999, p. 1), que “todos os prazos de prescrição são exclusivamente aqueles que se encontram no capítulo concernente à prescrição, e todos os demais, quer na Parte Geral, quer na Parte Especial, e que não nesse capítulo, são prazos de decadência”. Entretanto, em tema de revisão de benefício previdenciário, tanto o prazo de prescrição, quanto o prazo de decadência, estão expostos no art. 103 e 103-A, ambos da Lei nº 8.213/91.

A terceira distinção situa-se no plano da possibilidade de renúncia pelo titular. Quanto ao prazo prescricional, segundo dicção do art. 191 do Código Civil de 2002, admite-se a possibilidade de renúncia, podendo ser expressa ou tácita, valendo, contudo, só depois que a prescrição se consumar. No que tange à decadência, é nula a sua renúncia fixada em lei, consoante art. 209 do Código Civil de 2002.

Em matéria previdenciária, o direito à concessão do benefício previdenciário não prescreve nem decai. A prescrição acarreta a extinção, não do fundo do direito, mas apenas das verbas pleiteadas anteriores aos cinco anos do ajuizamento da ação, seja na concessão ou na revisão (STJ, 2ª Turma, AgRg no Resp 1436639, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/04/2014, DJe 29/04/2014), por se tratar de direito ligado à existência digna e aos direitos fundamentais. Já a decadência aplica-se somente à revisão dos benefícios previdenciários, seja a revisão promovida por iniciativa do segurado, ou mesmo a revisão por parte da

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autarquia previdenciária, conforme art. 103, caput, e art. 103-A, ambos da Lei nº 8.213/91.

Por fim, a prescrição pode ser suspensa ou interrompida, uma vez verificada quaisquer das causas previstas no art. 197 ao art. 201 do Código Civil. Já a decadência, salvo disposição em sentido diverso, não se suspende, salvo o caso do art. 79 da Lei nº 8.213/91, do art. 198, inciso I, do Código Civil de 2002 e do art. 26, §2º, do Código de Defesa do Consumidor.

3 Considerações a respeito do Art. 103 e 103-A da Lei Nº 8.213/91

O surgimento da decadência no direito previdenciário é um evento recente, tendo sido incorporada por meio da Medida Provisória nº 1.523-9, de 27 de junho de 1997, que, pela primeira vez, passou a estipular prazo de natureza decadencial na relação jurídico-previdenciária.

A referida medida provisória fora convertida na Lei nº 9.528/97, passando a estabelecer um prazo decadencial decenal para o processo de revisão da concessão de benefício, nos seguintes termos:

é de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão do benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória no âmbito administrativo.

A redação original previa apenas a aplicabilidade do instituto da prescrição, sem fazer qualquer menção específica à revisão ou concessão. Na verdade, o art. 103,

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inicialmente, utilizava a expressão “prestações não pagas nem reclamadas na época própria”, resguardando-se, de todo modo, assim como na legislação atual, o direito ao benefício e os interesses dos menores dependentes, dos incapazes e dos ausentes.

No entanto, no intervalo entre os anos de 1997 a 2004, operou-se uma significativa mudança no prazo decadencial. A Medida Provisória nº 1.663-15, convertida na Lei nº 9.711/98, de 20 de novembro de 1998, que em seu art. 24 alterava o art. 103 da Lei nº 8.213/91, reduzindo-se o prazo decadencial decenal para cinco anos. Por fim, a medida provisória nº 138, de 20 de novembro de 2003, convertida na Lei nº 10.839/04, restabeleceu o prazo decenal originário.

Com a edição destas sucessivas leis, dúvidas não restaram entre os juristas e especialistas no Direito Previdenciário em relação à fórmula legislativa para restringir o direito aos benefícios previdenciários. As correntes atualmente existentes sobre a aplicabilidade da decadência podem ser assim sintetizadas: (i) não aplicabilidade da decadência na revisão do benefício previdenciário; (ii) aplicabilidade da decadência a partir da edição da Lei nº 9.528/97; (iii) afastamento da decadência no caso de desaposentação e reconhecimento de vínculo empregatício.

Vale registrar que para a escorreita compreensão dessas teses jurídicas, é preciso lembrar primeiro dos princípios constitucionais aplicáveis ao caso, comumente citados pela doutrina e nos julgados. Um dos princípios mais citados é o da vedação do retrocesso social, que no entender de J.J. Gomes Canotilho (2002, p. 336), “os direitos sociais, uma vez obtido determinado grau de realização, passam a constituir tanto uma garantia institucional quanto um direito subjetivo”. Para esse autor, a possibilidade de reversibilidade

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da cláusula do direito adquirido afetaria a garantia da confiança e da segurança jurídica dos cidadãos.

Os outros princípios que precisam ser ponderados em relação àquele é o da segurança jurídica e o da vedação da concessão, majoração e revisão de benefício previdenciário sem a necessária fonte de custeio, insculpidos no art. 5º, inciso XXXVI, e art. 195, § 5º, ambos da Constituição de 1988.

Assim, torna-se imprescindível delimitar os argumentos favoráveis e desfavoráveis em relação às teses jurídicas sobre a aplicabilidade do instituto da decadência.

3.1 A corrente pela não aplicação da decadência no Direito Previdenciário

Essa tese foi colocada, à baila, a partir da elaboração do projeto de lei nº 2.301/0313, de autoria da então Deputada Federal Mariângela Duarte (PT/SP), por meio do qual se pretendia a eliminação da decadência no Direito Previdenciário, ao argumento de que os direitos envolvidos possuem cunho eminentemente social, e, por conta da aplicação da decadência, constituir norma, violaria o princípio do direito adquirido.

O conflito jurídico está longe de ser pacificado, embora já tenha ocorrido o julgamento do recurso extraordinário nº 624.783, pelo Supremo Tribunal Federal. Prova disso é que a Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (COBAP) ingressou, em 14/10/2013, com Ação 13Ressalte-se que, conforme consulta realizada no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, referido projeto de lei foi declarado “prejudicado” pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, juntamente com os PL’s 2353/2003 e 2541/2003, que versavam sobre o mesmo assunto, tendo em vista a superveniência da Lei n. 10.839/04, sendo arquivado no dia 17/11/2004, pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.

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Direta de Inconstitucionalidade, com pedido liminar, perante o Pretório Excelso, ADI nº 5048, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, impugnando o art. 103 da Lei nº 8.213/91, que trata sobre decadência da revisão do ato de concessão do benefício previdenciário.

Veja-se, por exemplo, que a provável superveniência da decadência foi justamente um dos fatos que ensejaram a propositura da Ação Civil Pública nº 0002320-59.2012.4.03.6183, de iniciativa do Ministério Público Federal, em face do Instituto Nacional de Seguro Social, a qual culminou com a celebração de acordo entre as partes e o Sindicato Nacional dos Aposentados e Pensionistas e Idosos da Força Sindical (Sindnapi), obrigando a autarquia previdenciária a revisar quase 15 milhões de benefícios previdenciários por incapacidade no Brasil14.

Nessa ação, partia-se do pressuposto que os titulares de benefício por incapacidade não teriam condições de se dirigir até a agência da previdência social mais próxima, com a finalidade de requererem a revisão de seu benefício no prazo legal, motivo pelo qual não teria cabimento se vislumbrar um possível reconhecimento da decadência do direito de revisão.

3.2 O posicionamento referente à aplicação da Lei nº 9.528/97 somente a benefícios concedidos posteriormente a lei

14Conforme trecho extraído da inicial da mencionada Ação Civil Pública: “a gravidade da situação aumenta, ainda mais, diante do instituto da decadência, legalmente estabelecido em dez anos, que já acarretou a perda do direito à revisão das pessoas que obtiveram os benefícios entre 1999 e 2001, conforme reportagem de f. 26. Desse modo, a cada mês, inúmeros segurados são atingidos pelos efeitos da citada decadência” (f. 03).

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O posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça caminha, no sentido de que é possível o reconhecimento do instituto da decadência na revisão de benefícios concedidos pós-edição da Lei nº 9.528/97, bem como aos benefícios concedidos antes da superveniência desta lei.

No entanto, a corte decidiu que, em relação aos benefícios anteriores à edição da lei, o termo inicial de contagem do prazo decadencial tem como marco a data da publicação da Lei nº 9.528/97.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “incide o prazo de decadência do art. 103 da Lei 8.213/1991, no direito de revisão dos benefícios concedidos ou indeferidos anteriormente a esse preceito normativo, com termo a quo a contar da sua vigência (28.6.1997)” (STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1420010 / SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 20/05/2014, DJ 26/05/2014).

No mesmo sentido:

O direito de revisão dos benefícios previdenciários concedidos antes da Medida Provisória n. 1.523-9/1997, que alterou o caput do art. 103, da Lei de Benefícios, decai em 10 (dez anos) a partir de 28 de junho de 1997, data da entrada em vigor da norma fixando o referido prazo decenal.

No julgamento do Recurso Extraordinário nº

626.789/SE, pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Luis Roberto Barroso, decidiu-se igualmente que é aplicável a decadência aos benefícios concedidos antes da Lei nº 9.528/97, mas o limite para sua aplicação seria a partir de 01 de agosto de 1997, por força de disposição nela expressamente prevista.

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Ademais, o referido ministro entendeu que: “É legítima, todavia, a instituição de prazo decadencial de dez anos para a revisão de benefício já concedido, com fundamento no princípio da segurança jurídica, no interesse em evitar a eternização dos litígios e na busca de equilíbrio financeiro e atuarial para o sistema previdenciário”.

3.3 Diversos posicionamentos do STF e do STJ a respeito do tema

A primeira particularidade a respeito da decadência na revisão do benefício previdenciário é que o instituto não incide quando o caso se tratar de desaposentação. Essa última consiste no ato mediante o qual o segurado renuncia ao seu benefício de aposentadoria, objetivando aproveitar o tempo de contribuição posterior para obtenção de benefício mais vantajoso, sem que para isso se exija o ressarcimento dos valores já recebidos.

De fato, a desaposentação “não consiste na revisão desse ato, mas no seu desfazimento, motivo pelo qual não se subsume ao decurso de prazo decadencial para o seu exercício, máxime porque se trata de direito patrimonial personalíssimo disponível”.

Quanto à aplicação da decadência na desaposentação, a primeira seção do STJ, no julgamento do Resp nº 1.348.301/SC, admitido como representativo de controvérsia (art. 543-C do CPC), assentou orientação no sentido de que o prazo decadencial de 10 anos de que trata a Medida Provisória nº 1.523-9, de 27/06/1997, não tem incidência na hipótese de renúncia à aposentadoria regularmente concedida.

Outro aspecto frequentemente considerado pela jurisprudência é a possibilidade de aplicação na concessão de

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benefício previdenciário. Nesse ponto, a jurisprudência é quase unânime no sentido de que o art. 103 da Lei nº 8.213/91 só se aplica à revisão de benefício. Vale transcrever decisão recente do Superior Tribunal de Justiça:

O direito ao benefício está incorporado ao patrimônio jurídico do titular (segurado), e não é possível que lei posterior imponha a modificação ou extinção. Já o direito de revisão do benefício consiste na possibilidade de o segurado alterar a concessão inicial em proveito próprio, o que resulta em direito exercitável de natureza contínua sujeito à alteração de regime jurídico” (AgRg no Resp nº 1.347.058/SC, Rel. Min. OG Fernandes, julgado em 17/12/2013, Dje 03/02/2014).

Em sentido contrário: o alcance do art. 103 da Lei

8.213/91, na redação da Medida Provisória 1.523-9, de 27/06/1997, e alterações posteriores, "é amplo e não abrange apenas revisão de cálculo do benefício, mas atinge o próprio ato de concessão e, sob a imposição da expressão 'qualquer direito', envolve o direito à renúncia do benefício" (STJ, AgRg no REsp 1.308.683/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe de 19/12/2012).

É importante, ainda, distinguir duas situações que podem gerar confusão na atuação dos juristas: o prazo de aplicação da decadência em relação aos segurados e o prazo decadencial em relação à entidade previdenciária.

No que toca a essa última, a Terceira Seção desta Corte consolidou o entendimento segundo o qual o prazo decadencial para a Administração Pública rever os atos que gerem vantagem aos segurados será disciplinado pelo art. 103-A da Lei 8.213/91, descontado o prazo já transcorrido antes do advento da MP 138/2003, ou seja, relativamente aos atos

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concessivos de benefícios anteriores à Lei n. 9.784/99, o prazo decadencial decenal estabelecido no art. 103-A da Lei n. 8.213/91 tem como termo inicial 1º/2/1999, data da entrada em vigor da Lei 9.784/99.

Quanto ao pedido de revisão com fulcro no art. 144 da Lei nº 8.213/91, não incide a decadência, uma vez que se trata de revisão determinada em lei, cuja mora administrativa afasta qualquer sanção pela inércia da parte se não há ato positivo da administração (TRF 1ª Região, Embargos de Declaração na Apelação Reexame necessário n. 2009.33.00.019666-1/BA, Rel. Des. Fed. Francisco de Assis, julgado em 06/12/2013.

Em relação ao início do prazo, percebe-se a aplicação do princípio da actio nata, princípio do Direito segundo o qual a prescrição e decadência só começam a correr quando o titular do direito violado toma conhecimento de fato e da extensão de suas consequências, sendo isso imprescindível à paz social e ao ideal de segurança jurídica. Referido princípio foi consagrado no art. 189 do Código Civil de 2002 e, em tema de revisão de benefício previdenciário, o prazo começa a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo (art. 103 da Lei nº 8.213/91).

Estabelecendo premissas sobre o discurso: quais são os elementos norteadores

Percebe-se que a decadência na revisão de benefícios é um tema não só jurídico e de interesse individual, mas que envolve, conjuntamente, questões políticas e

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econômicas e que, possivelmente, podem afetar ou beneficiar os direitos de milhões de segurados.

Talvez por isso que a controvérsia assumiu tamanha grandeza, a respeito do prazo previsto no art. 103 da Lei de plano de Benefícios, embora o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal tenderem a aplicar o instituto, com a ressalva da superveniência da Lei nº 9.528/97 (a partir de 28.06.1997 ou 01.08.1997).

Como visto, o tema é complexo por envolver o debate e o discurso crítico de princípios constitucionais. Ao mesmo tempo em que se vê a necessidade de proteção do manto do direito adquirido, viés do princípio da segurança jurídica, o princípio da legalidade dos atos administrativos e o da proibição de majoração ou concessão de benefícios sem a respectiva fonte de custeio, os quais devem ser confrontados com o princípio da vedação do retrocesso social e da dignidade humana.

O que se espera, com todo esse debate, é que todos possam se orientar a tomar medidas que não comprometam os cofres públicos, mas que, ao mesmo tempo, preservem o interesse maior do Estado, na busca de se garantir um mínimo de condições de vida aos segurados. O procedimento de revisão não deixa de ser um instrumento de garantia de eficácia e segurança do benefício previdenciário, que acaba se tornando, de uma forma ou de outra, tendo em vista a realidade sócio-econômica do país, meio de vida de milhões de brasileiros.

A aplicação da decadência, na revisão do benefício previdenciário, deve ser vista com cautela, atendendo aos padrões estabelecidos pelo progresso social, que constantemente forja novas teses jurisprudenciais. Infelizmente, o que se vê, nos processos administrativos de requerimento, é que a autarquia tende a acolher a tese que lhe

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é mais favorável, o que não impede o segurado de se socorrer nas vias do Judiciário, para ter a sua pretensão satisfeita. O reconhecimento desvairado do instituto da decadência pode comprometer a vida de muitas pessoas, tendo em vista consistirem em perda de valores dos cofres públicos.

Assim sendo, embora se tenha assentado alguns pontos sobre o instituto na jurisprudência, é importante refletir a respeito da criação de uma legislação específica sobre o tema, delimitando os direitos e obrigações do segurado e da autarquia previdenciária. No mesmo norte, o Poder Público é igualmente responsável pelos investimentos na Previdência Social, para que evite a ocorrência de concessões ou revisões indevidas. Referências ALEXY, Robert. El concepto y La validez del derecho. 2 ed. Barcelona: Cedisa, 1997. ALVES, Moreira. Projeto do Código Civil: a parte geral do Código Civil. Revista CEJ, v 3, n 9, set./dez. 1999. BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro. Renovar, 2005. _____ A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Renovar, 2002 (prefácio). BARROSO, Luis Roberto. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. In Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e Decadência. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

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CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5 ed. Coimbra: Almedina, 2002. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 8 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2004. GONÇALES, Odonel Urbano. Manual de Direito Previdenciário. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2009. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 17 ed. Niterói/RJ: Impetus, 2012. LEAL JÚNIOR, João Carlos; PIRES, Natália Taves. Aspectos relevantes do direito adquirido na ordem jurídica brasileira. In: âmbito jurídico, Rio Grande, XI, n. 57, set 2008. Disponível em:http://www.ambitojurídico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5104. Acesso em 23 abr 2014. LOPES, Carlos Cortês Vieira. Decadência do direito à revisão de benefício previdenciário (uma análise de Direito Intertemporal). Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24,jun.2008.Disponível em: <www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/carlos_lopes .html>. Acesso em: 25 abr. 2014. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2006. MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

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O DIREITO À SAÚDE E A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL

Carlos Eduardo Prates Fonseca15

Gisele de Cássia Gusmão 16

Jane Viviane da Silva17 Lílian Fabrine Abreu Rodrigues18

Maria Letícia da Costa Leal Teixeira19 Introdução A Saúde é consagrada na Constituição Federal de 1988, como um dos direitos sociais básicos, tida como imprescindível para uma qualidade de vida. E este, como direito fundamental, deverá ser proporcionado pelo Estado. O Estado tem o dever, direta ou indiretamente, de possibilitar melhores condições de saúde pública, independente de qualquer outra situação, tornado esse direito eficaz e pleno. Não é comum a insatisfação da sociedade quanto à saúde amplamente divulgada como de péssima qualidade, embora prevista em Lei Maior, é apenas considerada mais que um documento legal e é inadmissível que o Estado de direito ignore o cumprimento das suas previsões maiores. A lavra de 15 Enfermeiro. Mestre em Saúde Pública. Professor Assistente das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. 16 Mestre em Economia e Professora do curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas – Funorte. 17 Advogada. Especialista em Direito. Professora do Curso de Direito da FUNORTE. 18 Graduada em Direito. 19 Professora do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas- FUNORTE. Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC.

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Ferdinand Lassale, (2000) para quem a Constituição é uma mera folha de papel, ainda vigora no ambiente atual. Necessário resgatar a visão de Korand Hesse (1991), impondo força normativa da constituição ao Estado. Os direitos sociais são conquistas dos movimentos sociais ao longo dos séculos, e, atualmente, são reconhecidos no âmbito internacional em documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, bem como pela Constituição da República de 1988. A saúde é o bem mais valioso que o ser humano possui, não podendo ser violando, e nem justificado deve-se, portanto, ser melhorado e tratado de forma digna e eficiente, garantindo a cada pessoa condições mínimas possíveis o que exige do Estado prestações estatais positivas. Diga-se de passagem, os direitos sociais são normas de ordem pública, imperativas e invioláveis. Para o indivíduo saúde é pressuposto e condição indispensável de toda atividade econômica e especulativa, de todo prazer material ou intelectual. O estado de doença não só constitui a negação de todos estes bens, como também representa perigo, mais ou menos próximo, para a própria existência do indivíduo e, nos casos mais graves, a causa determinante da morte. Para o corpo social a saúde de seus componentes é condição indispensável de sua conservação, da defesa interna e externa, do bem estar geral, de todo progresso material, moral e político (ROZENFELD, 2006). O presente estudo objetiva discorrer sobre histórico da Saúde Pública e o fenômeno da judicialização da saúde no Brasil.

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Evolução histórica da saúde pública

A busca da saúde acompanha a história das civilizações. Ações de controle sobre o exercício da medicina, o meio ambiente, os medicamentos e os alimentos existiram desde longínquas eras. Povos antigos, como os babilônios e os hindus, estabeleceram preceitos morais e religiosos – fixados nos Códigos de Hamurabi e de Ur-Namu (ROSEN, 1998).

Desde a antiguidade Clássica até a Idade Média se desenvolveram ações de saneamento do meio ambiente; normatização da prática profissional dos médicos, dos cirurgiões e dos farmacêuticos. Veneza, Itália em 1348, teve início a vigilância dos portos para impedir a entrada de epidemias nas cidades, estabeleceu a inspeção das embarcações e de suas cargas, especialmente quando infectadas ou suspeitas, colocando-se os passageiros sob regime de quarentena, com exposição ao ar e a luz solar (ROSEN, 1998). Segundo Rozenfeld (2006), a partir dos meados do século XVI, ensejou à ascensão de uma nova classe social a burguesia, nesse mesmo período se formou o Estado Moderno.

Nesse contexto, salienta Rozenfeld (2006), surgiram no século XVIII as estatísticas populacionais e o conceito de polícia médica, especialmente útil como guia num sistema de higiene pública e privada, sendo que seria responsabilidade do Estado conformar e aplicar um código de leis de promoção e manutenção da saúde.

No Brasil, a intensificação da industrialização ampliou o campo da regulamentação, e conseqüentemente a produção de normas. A criação dos institutos de pesquisa e dos laboratórios de saúde pública, nas ultimas décadas do século passado, deram novas bases para a ampliação das práticas sanitárias, já que, no período colonial os problemas de

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saúde e higiene eram responsabilidade das localidades. A assistência à população pobre e indigente ficava sob os cuidados da iniciativa filantrópica e de instituições beneficentes, ligadas as igrejas católicas, como as Santas Casas de Misericórdia. A parcela restante da população buscava socorro dos médicos, ou então de cirurgiões, barbeiros, sangradores empíricos, curandeiros, parteiros e curiosos (COSTA, 1985).

Uma característica desse período, na lição de Machado et al (1978) foi o predomínio das doenças chamadas de pestilências, dentre elas, a varíola, febre amarela, malária e tuberculose. Em 1897, foi criada a Diretoria Geral de Saúde Pública, subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, reformulada em 1904, coordenada pelo sanitarista Osvaldo Cruz, quando foram desenvolvidas campanhas sanitárias, a produção de soros e vacinas.

Foi aí que se deu o nascimento da Saúde Pública no Brasil, o que representou profunda mudança nas práticas dominantes até então. Nesse período, ocorreu à reforma urbana do Rio de Janeiro, reforma portuária de Santos em São Paulo, a criação do Instituto Osvaldo Cruz no Rio de Janeiro, e a criação do Instituto Vital Brasil.

Mendes (1994) ressalta que início da década de 1930, na Previdência Social brasileira, sob doutrina do seguro e com orientação economizadora de gastos, dá-se a organização dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), estruturados por categorias profissionais. Institucionalmente, os IAPs são substituídos, em 1966, pelo Instituto Nacional da Previdência (INPS) que significou uniformizar os benefícios numa Previdência Social concentrada e crescimento de serviços médicos em proporção bem maior que dos antigos IAPs.

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Em 1977, criou-se o Sistema Nacional da Previdência Social (Sinpas) que conjuntamente com a Constituição de 1967-1969 e a Lei 6.229, formaram a base jurídico-legal do sistema de saúde vigente nos anos 1970.

Ante o agravamento da crise previdenciária em 1981, foi constituído o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (Conasp). O Conasp propôs normas mais adequadas para a prestação de assistência à saúde da população previdenciária, assim como indicou a necessária alocação de recursos financeiros de qualquer outra natureza, integrando o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) com o Setor Público de Saúde (ALMEIDA, 1995).

O INAMPS foi criado pelo regime militar em 1974 pelo desmembramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que hoje é o Instituto de Seguridade Social (INSS). Era uma autarquia filiada ao Ministério da Previdência e Assistência Social e tinha o dever de prestar atendimento medico aos que contribuíam com a previdência social, ou seja, aos empregados devidamente registrados. O INAMPS tinha estabelecimentos próprios, mas a maior parte do atendimento era realizada pela iniciativa privada. Dessa maneira, os desempregados e os trabalhadores informais não tinham outro acesso a não ser ao atendimento das santas casas de misericórdias a mercê dos graves riscos a ponto de morrer (ALMEIDA, 1995).

Foi neste momento processo de resistência democrática ao governo autoritário, fruto de análise crítica da política de saúde hegemônica nas décadas de 1960/1970 e início dos anos 1980, que nasceu e desenvolveu o chamado Movimento Sanitário que se consolida em meados da década de 1970 e, progressivamente, politiza a questão da saúde, procurando agrupar a oposição com base em uma proposta

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reformadora para o setor. Este movimento amplia sua proposta de sistema de saúde em que o princípio central é “saúde direito de todos e dever do Estado”, envolvendo a universalização, integração, equidade, descentralização, com efetiva participação do Estado. Surge então a proposta da Reforma Sanitária (ALMEIDA, 1995).

É no período de 1985 a 1987, com a proposta político institucional da Nova República que parte considerável de atores políticos do Movimento da Reforma Sanitária têm acesso ao aparelho de Estado. Foi nesse momento que o MPAS/Inamps passou a ser um grande alavancador da política de descentralização e desconcentração das ações de saúde. Há um aprofundamento da estratégia das AIS dizem respeito a todas as ações de saúde exercidas no âmbito de cada Unidade Federativa incluindo o setor público, as do setor contratado e as do credenciado, as AIS foram consideradas “estratégia- ponte” para reordenação das políticas de saúde e para reorganização dos serviços como proposta originalmente racionalizadora, mas também como espaços democráticos de ressalva, que poderia ser aprofundada e ampliada pela ação dos movimentos sociais e dos partidos políticos (ALMEIDA, 1995).

E, depois, em 1987, após a VIII Conferência Nacional de Saúde a sua transformação em Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) (FLEURY,1991).

O princípio central da Reforma Sanitária passa a ser garantido pela Constituição Federal de 1988, no título VII, da Ordem Social no Capítulo II e seção II os artigos 196, 197, 198, 199, 200 constituindo o marco legal do setor saúde na Constituição. A Constituição de 1988 foi muito sabia e brilhante na história da saúde pública do Brasil, ao definir saúde como direito de todos e dever do Estado colocando todos os cidadãos em pé de igualdade, ou seja, os cidadãos

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todos sem distinção alguma foram incluídos no direito a saúde.

Estes movimentos culminaram por assegurar na Constituição de 1988 a saúde como direito social universal a ser garantido pelo Estado. Segundo Almeida (1995), é criado então o Sistema Único de Saúde (SUS), editado pela Lei 8.080/1990 que representou importante ponto de inflexão na evolução institucional do Brasil. Um dos marcos desse processo é o fato de a constituição ter adotado um conjunto de conceitos, princípios e diretrizes extraídas não da prática corrente e hegemônica, mas propondo uma nova lógica organizacional, baseada na proposta contra hegemônica construída ao longo de quase duas décadas pelo chamado movimento sanitário.

Após a Promulgação da Constituição federal de 1988, foi iniciado um processo de formulação e promulgação das constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, incorporando os princípios e diretrizes definidos para o setor Saúde Almeida, (1995). O então chamado Movimento Sanitário passou a estabelecer como prioridade a regulamentação do SUS, no âmbito da União (ALMEIDA, 1995).

Nesse sentido, a regulamentação infraconstitucional do SUS inicia-se com as Leis 8.080 e 8.142 e é seguida por um conjunto de Leis, decretos, Normas Operacionais (NOB) que tratam de portarias editadas pelo Ministério da Saúde para o processo de descentralização das ações e serviços de saúde, no que diz respeito ao seu financiamento. Destacam-se a criação do Sistema de Informação Hospitalar e do Sistema de Informação Ambulatorial, como forma de normatizar o pagamento a prestadora de serviços hospitalares e ambulatoriais (ANDRADE, 2007).

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Leciona o autor supracitado que, seguidamente, o Ministério da Saúde editou as Normas de Assistência a saúde (NOAS) oriundas da NOB, portaria estas que vieram para reorganizar o SUS, por meio da regionalização da assistência, e modificando critérios para a habilitação dos Estados e Municípios,e fortalecendo o processo de descentralização da gestão. Direito a saúde como garantia constitucional A saúde é um direito consagrado na Constituição Federal de 1988, como uma das espécies dos direitos sociais básica a cada cidadão, tida como imprescindível para uma qualidade de vida digna, devendo ser aplicada a cada um de forma igualitária e universal (SARLET, 2009). Nesse sentido, a definição de saúde de acordo com o entendimento da Organização Mundial de Saúde “é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”. Importante lembrar que direito fundamental não é o mesmo que direitos humanos comumente utilizados como sinônimos, para o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guarda relação com os documentos de direito internacional, que são as relações jurídicas reconhecendo a pessoa como tal independente de sua vinculação com determinada ordem constitucional que abarca todas as pessoas de forma universal (SARLET, 2009). A respeito do conceito dos Direitos Fundamentais José Afonso Silva os define:

Direitos Fundamentais do homem são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo em prol da

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dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana (SILVA, 2000, p.183).

Reconhecer a diferença, contudo, não significa desconsiderar a intima relação entre direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam (SARLET, 2009). Os direitos sociais são conquistas dos movimentos sociais ao longo dos séculos, e, atualmente, são reconhecidos no âmbito internacional em documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, bem como pela Constituição da Republica de 1988, que consagrou como direitos fundamentais em seu artigo 6°.

O reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, encontra-se plasmado nos artigos 6°, inserido no Titulo II, Capítulo II denominado direitos sociais ou direitos sociais de 2° geração e nos artigos 196 a 200 da Carta Magna de 1988, representado de forma clara e significativa para a sociedade brasileira.

Em relação ao direito à saúde a Constituição Federal de 1988 diz:

Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Artigo 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua

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regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

E neste prisma percebe-se, que o direito a saúde é

universal, independente da classe social que a pessoa esteja inserida deve ter seu direito garantido, logo, cabe ao Estado promover sua efetivação.

A própria Declaração Universal da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948 diz que a saúde e o bem-estar da humanidade são direitos fundamentais do ser humano. No mesmo sentido, nas Convenções e nos tratados Internacionais, reconhecidos e ratificados pelo Brasil (SARLET, 2009).

E nesta lógica, é inadmissível que o Estado de direito ignore o cumprimento da lei sem nenhuma conformidade legal.

Sendo assim, na lição do mestre Silva (2009, p. 171):

A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da Universalidade e da Igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam.

Assim sendo, a Constituição Federal impõe “o

acesso à saúde como prestação positiva do Estado, sendo tal direito emoldurado como de segunda geração, diretamente relacionado aos direitos de primeira geração, visto que umbilicalmente ligado ao direito à vida” (BOBBIO, 1992).

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É no âmbito do direito que à saúde se manifesta de forma mais contundente a vinculação do seu respectivo objeto no caso da prestação positiva, trata-se de prestações materiais na esfera da assistência médica, hospitalar com o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. Sarlet (2009) aduz a despeito do reconhecimento de certos efeitos decorrentes da dignidade da pessoa humana mesmo após sua morte, o fato é que a dignidade atribuída ao ser humano é essencialmente da pessoa viva. Segundo o autor o direito a vida ela se liga ao direito a saúde, portanto surgi dessa perspectiva a condição do verdadeiro direito a ter direitos, constituindo, além disso, pré-condição da própria dignidade da pessoa humana.

Em face do exposto Sarlet (2009, p.166): No sentido de que a saúde é um bem fortemente marcado pela interdepência com outros bens e direitos fundamentais, apresentando de tal sorte, “zonas de sobreposição com esferas que são autonomamente protegidas”, como é o caso da vida, integridade física e psíquica, privacidade, educação, ambiente, moradia, alimentação, trabalho, dentre outras.

A saúde consagrada como uma das espécies do

artigo 6° de nossa Constituição: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção, à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Mas é no artigo 196 que o direito á saúde encontrou sua maior concretização em nível normativo-constitucional, para além de uma significativa e abrangente

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regulamentação normativa na esfera infraconstitucional, com destaque para as leis que dispõem sobre a organização e os benefícios do SUS e o fornecimento de medicamentos (SARLET, 2009). 25 anos do sistema único de saúde Cinco de Outubro de 2013 foi uma data em que a sociedade brasileira celebrou os 25 anos da Constituição Brasileira, renovando o compromisso e a esperança de transformar cada brasileiro em sujeito de direitos. A Constituição Federal de 1988 incorporou uma concepção de seguridade social como expressão dos direitos sociais inerentes à cidadania, integrando a saúde, previdência e assistência. Assimilando proposições formuladas pelo movimento da Reforma Sanitária Brasileira reconheceu o direito à saúde e o dever do Estado, mediante a garantia de um conjunto de políticas econômicas e sociais, incluindo a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), universal, público, participativo, descentralizado e integral (PAIM, 2013). Os direitos sociais são direitos ao acesso a condições mínimas de educação, saúde, trabalho e segurança, indispensáveis para se ter uma vida digna. Em se tratando do direito social à saúde, a sociedade brasileira percorreu um longo caminho até a Constituição Federal de 1988. Antes, o que se verificava era uma grande exclusão social, com a população brasileira dividida em dois grupos: os previdenciários e os não previdenciários. A conquista da cidadania, nas três dimensões civil, política e social foi e será objeto de lutas permanentes dentro das sociedades. Essas lutas levaram à instituição da cidadania civil no século XVIII, à conquista do direito político no século XIX e, finalmente ao reconhecimento da dimensão

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social da cidadania, com a ascensão do Welfare State, no século XX. No entanto, existe hoje um amplo consenso de que a cidadania só será alcançada quando suas três dimensões forem contempladas, uma vez que os direitos políticos e civis são insuficientes quando existem grandes desigualdades sociais que impedem, na pratica, que esses direitos sejam exercidos (PAIM, 2013). O SUS, segundo Mendes (2013), preconizado na Carta Magna, é uma política pública recente, com duas décadas e meia de existência. Não obstante sua curta vida tem muitos resultados a celebrar e, também enormes desafios a superar. Assevera Mendes (2013), que o nosso sistema público de saúde tem uma dimensão verdadeiramente universal quando cobre indistintamente todos os brasileiros e os estrangeiros aqui residentes com serviços de vigilância sanitária de alimentos e de medicamentos, de vigilância epidemiológica, de sangue, de transplantes de órgãos entre outros. Completa o autor dizendo que no campo restrito da assistência à saúde ele é responsável exclusivo por 140 milhões de pessoas, já que 48 milhões de brasileiros recorrem ao sistema de saúde suplementar, muitos deles acessando concomitantemente o SUS em circunstancias em que o sistema privado apresenta limites de cobertura. O SUS constitui a maior política de inclusão social da história de nosso país. Antes do SUS vigia um tratado das Tordesilhas da Saúde que separava quem portava a carteirinha do INAMPS e que tinha acesso a uma assistência curativa razoável das grandes maiorias que eram atendidas por uma medicina simplificada na atenção primária hospitalar. O SUS rompeu essa divisão iníqua e fez da saúde um direito de todos e um dever do Estado. A instituição da cidadania

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sanitária pelo SUS incorporou, imediatamente, mais de cinquenta milhões de brasileiros como portadores de direitos à saúde e fez desaparecer, definitivamente, a figura odiosa do indigente sanitário (MENDES, 2013).

Mendes (2013, p. 28) ressalta que: O SUS apresenta números impressionantes: quase seis mil hospitais e mais de sessenta mil ambulatórios contratados, mais de dois bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano, mais de onze milhões de internações hospitalares por ano, aproximadamente dez milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia por ano, mais de duzentas mil cirurgias cardíacas por ano e mais de 150 mil vacinas por ano. O SUS pratica programas que são referencia internacional, mesmo considerando países desenvolvidos, como o Sistema Nacional de Imunizações, o Programa de Controle de HIV/AIDS e o Sistema Nacional de Transplantes de Órgãos que tem a maior produção mundial de transplantes realizados em sistemas públicos de saúde do mundo, 24 mil em 2012. O programa brasileiro de atenção primaria à saúde tem sido considerado, por sua extensão e cobertura, um paradigma a ser seguido por outros países. Com esses processos o SUS tem contribuído significativamente para a melhoria dos níveis sanitários dos brasileiros. Entre 2000 e 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu 40%, tendo baixado de 26,6 para 16,2 óbitos em menores de um ano por mil nascidos vivos.

Como se percebe o caminho traçado foi longo, sofrido e árduo, é evidente que houve grande melhora no acesso à atenção à saúde em todo território nacional, sobre

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tudo na ampliação do acesso aos serviços de saúde, com repercussões positivas no perfil epidemiológico. No entanto, inovações institucionais, descentralização, participação social, consciência do direito à saúde, formação de trabalhadores e tecnologias convivem, contraditoriamente, com o crescimento do setor privado, segmentação do mercado e comprometimento da equidade nos serviços e nas condições de saúde. Entre os obstáculos destacaram-se a diminuição do financiamento federal, as restrições de investimento em infraestrutura e a gestão de trabalho (PAIM, 2013). Completa o autor dizendo mais, que há uma dívida histórica com os trabalhadores que construíram o SUS, submetidos à precarização do trabalho e a terceirização, sendo adiada a efetivação de planos de carreiras, cargos e salários. Portanto, ainda há muito que fazer para tornar o SUS universal e público, bem como assegurar padrões elevados de qualidade. Seus maiores desafios são políticos, pois supõem a garantia do financiamento do subsistema público, a redefinição da articulação público-privada e a redução das desigualdades de renda, poder e saúde. Talvez os cidadãos brasileiros tenham a consciência nesses 25 anos, que não basta dispor de uma Constituição e de uma legislação para ocorrer mudanças. Nota-se que na democracia representativa adotada pelo Brasil os governantes, não seguem os programas dos partidos muito menos aquilo que é apresentado nas campanhas eleitorais, além disso, uns que durante suas promessas defendiam melhoria em relação ao sistema de saúde, ocuparam as fileiras dos que aposta na privatização, reproduzindo o transformismo na saúde. Sendo assim, na visão de Paim (2013), novos esforços são necessários para revitalizar a sociedade civil, na qual tem origem a reforma Sanitária Brasileira e o SUS

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tentando desequilibrar o binômio da “conservação-mudança” contra a inércia da conservação. A judicialização de direitos fundamentais

A Constituição Federal de 1988 estabelece o direito à saúde, orientado pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade, mediante a garantia ao cidadão do acesso às ações e os serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. Estabelece ainda que as ações e os serviços de saúde são de relevância pública, ficando inteiramente sujeitos a regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público a quem cabe executá-los diretamente ou por terceiros, segundo normas de financiamento (BRASIL, 1988). Ainda na CF/88, no título que trata da organização do Estado, o inciso II do artigo 23 estabelece que a competência para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência é comum entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (AITH, et al, 2010). Ressalta o autor que mediante o direito preconizado e o sistema para viabilizá-lo, cada cidadão brasileiro, ou estrangeiro em solo nacional, tem garantido o acesso às ações e aos serviços de saúde. Entretanto, nem sempre o exercício de tal direito é pleno. Tendo em vista o não cumprimento por parte do Poder Público, no que diz respeito ao acesso as ações e aos serviços de saúde, a pessoa tem a escolha a qualquer tempo, ingressar em juízo pleiteando seu direito garantido por lei. Desta forma, esses ajuizamentos tem se aumentado nos últimos anos, tomado aspecto jurídico e financeiro, tendo a maioria decisões que obrigam o Poder

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Público à entrega da prestação, normalmente fundamentadas no direito constitucional à saúde. É neste dilema onde se confrontam indicações médicas, custos elevados e recursos limitados, levando as famílias a pressionar o Poder Público a se responsabilizar e arcar, sobretudo, com os custos terapêuticos. A complexidade desse fenômeno é chamado “judicialização da saúde” (AITH, et al, 2010). Em um plano estritamente processual, a expressão “judicialização das políticas de saúde” estará sempre presente que o direito à proteção da saúde for reclamado judicialmente perante a Administração Pública e o fundamento desse direito compreender a constitucionalidade ou a legalidade de um comportamento comissivo ou omissivo do poder público sobre políticas de saúde (PERLINGEIRO, 2013). Uma característica típica nos Tribunais brasileiros segundo o autor são as demandas impetradas, individualmente ou coletivamente, contra a Administração Pública para a entrega de medicamentos não agregado ao SUS. A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegurou a saúde como direito fundamental a ser garantido a todos pelo Estado. Nessa perspectiva, a Lei 8.080, denominada de Lei Orgânica da Saúde, regulamentou o SUS, como política orientadora do campo da saúde no Brasil. E estabelece seus princípios norteadores, bem como uma série de atividades que vão desde a alocação de recursos, até a previsão de ações e serviços de saúde. Seus princípios doutrinários são a Universalidade, integralidade e equidade. Dimensões que associadas à amplitude geográfica brasileira e a diversidade cultural, econômica, social e epidemiológica compõem um cenário desafiante para o poder público (AITH, et al, 2010).

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Essa conjuntura pode contribuir para que as diferentes demandas e necessidades relativas às ações e serviços de saúde possam ser ainda mais dificilmente atendidas ensejando situações que têm levado alguns usuários a buscar os serviços de saúde por meio de ações judiciais. Este fenômeno conhecido como judicialização da saúde como já dito anteriormente, tem se multiplicado nos últimos anos em diversos Tribunais. Os pleitos podem ser direcionados a qualquer uma das três esferas do SUS – Municípios, Estados, Distrito Federal e União, tendo em vista que todos possuem determinadas funções e responsabilidades, nos termos do princípio da descentralização (AITH, et al, 2010).

O posicionamento dos Tribunais de Justiça é pacífico ao assegurar que a saúde é um direito fundamental, inerente à vida humana e individual indisponível, como preconiza a Constituição vigente. Nesse sentido, os julgadores defendem a importância da saúde para a vida com dignidade, que deve ser garantida a qualquer custo:

“Assentadas estas premissas, cumpre dizer que a Constituição Federal tutela como dado fundamental ao Estado Democrático de Direito” a dignidade da pessoa humana” (artigo 1°, III), sendo certo que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...]” ( art.5°, caput). O direito à saúde além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave

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comportamento inconstitucional (TJMG, 2001, s.p.).

É assim que a violação a um direito fundamental

representa, na verdade, ofensa a todo o seu conjunto, dialoga Aith et al (2010), desse modo, temos a priorização de um direito em detrimento de outro. Essa reflexão segundo o autor, afeta não só a concepção de que o direito à vida sobrepõe-se as contingências econômicas ou administrativas do Estado, mas o próprio direito à participação democrática da população na formulação das políticas públicas.

As políticas públicas de saúde, como as demais, são fruto da produção popular e democrática, por meio das instâncias de controle social, tais como Conselhos de Saúde ou Conferencias de Saúde, e o Tribunal, ao ignorá-las, não está simplesmente controlando a atividade administrativa do Estado, mas ignorando uma construção social e coletiva do Estado, realizada por meio das lutas dos movimentos sociais (AITH, et al, 2010).

Não se quer com esta argumentação afastar a competência constitucional do Poder Judiciário, essencial ao Estado Democrático de Direito, mas desvelar o impacto de tal poder em toda a sociedade. Ressalta Aith et al (2010), é necessária uma analise mais acurada dos casos levados ao Judiciário que contemple um conhecimento acerca das razões e fundamentos de tais políticas públicas de maneira que decisões judiciais não impeçam o exercício de competência do Poder executivo, ou os efeitos da participação popular na orientação do Poder do Estado como um todo.

As funções do Estado independentes, autônomas entre si permitem “a criação de mecanismo de freios e contrapesos”. A intervenção entre as funções distribuídas pelo Estado denominadas como Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário deve ser limitada a fim de se

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evitar ofensa à essência da idéia de freios e contrapesos. Não se considera intervenção o exercício da função preponderante do Judiciário, qual seja, a resolução de conflitos (AITH, et al, 2010). O Tribunal de Justiça não considera que a concessão de serviços de saúde por meio de ações judiciais, seja interferência no Executivo.

O poder judiciário, no exercício de sua alta e importante missão constitucional, deve e pode impor ao Poder Executivo Estadual o cumprimento da disposição constitucional que garante o direito á saúde, sob pena de não o fazê-lo, compactuar com a dor e sofrimento de milhares de brasileiros, pobres e carentes, que ao buscarem, por falta de opção, tratamento no Sistema Único de Saúde, ficam á mercê de um sistema de saúde precário e ineficiente que muitas vezes conduz á morte (TJMG, 2007, s.p.).

É preciso estabelecer os limites de atuação de cada Poder em conformidade com suas funções preponderantes. É a partir do principio da razoabilidade, diz o autor que veda restrições desarrazoadas e inadequadas a direitos subjetivos dos cidadãos, que se permite o controle judicial da política pública, porém ao judiciário é vedada a anulação do ato administrativo. Desta forma, o Poder Judiciário pode e deve apreciar o mérito de atos administrativos discricionários a fim de apurar possível injustiça ou irrazoabilidade do meio empregado na solução do caso concreto (MELLO, 2007).

O controle das políticas públicas de saúde não afronta o clássico princípio da separação dos poderes, pelo contrário afirma-o, pois as funções de declaração, execução e o juízo de revisão são essenciais ao Estado democrático de Direito, assim como as teorias pós-positivistas enfatizam a

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Supremacia da Constituição baseando-se num direito que se concretiza em princípios (MELLO, 2007).

A política pública de saúde é elaborada levando-se em consideração as necessidades de toda a coletividade, por meio da análise dos perfis epidemiológicos de áreas específicas bem como organização de protocolos de padronização de medicamentos e tratamentos para atender à população.

Porém, em algumas situações o Estado pode ser induzido ao fornecimento de medicamentos caros que sequer foram liberados para comercialização no país, apesar de existirem medicamentos devidamente testados e disponibilizados gratuitamente à população. Muitos pedidos são concedidos sem que o medicamento possua registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), podendo colocar em risco a vida dos pacientes, conforme o voto proferido a seguir:

[...] No mérito, sustenta que não

se encontram presentes os requisitos exigidos ao deferimento da medida, primeiro porque não há registro do medicamento junto á ANVISA, o que impossibilita sua comercialização no país e, principalmente, sua aquisição pelo recorrente, no prazo assinalado. Segundo porque o laudo médico aponta a utilização alternativa de dois outros medicamentos pela SES/MG [...] Não há duvida sobre a presença desses requisitos diante da grave doença que acomete a gravada, “esclerose sistêmica, evoluindo com fibrose pulmonar e hipertensão pulmonar” – certificada pelos documentos de f.29 e seguintes, para a qual o medicamento mais eficiente é o Tracleer, descrito á f.30. E nem se mencione que a sua venda ainda não e autorizada no país. Além da agravada ter

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comprovado esse fato por documentos, f.83-TJ, informa em suas contra-razoes ter o agravante já providenciado a sua aquisição , como se extrai da “fl.91 dos autos principais” (TJMG, 2005, s.p.).

Esta decisão demonstra que se pede ao judiciário

que ao Estado deva ser compelido a fornecer medicamentos que não constem nas políticas de saúde, ou ainda, não possuem eficácia comprovada ou registro na ANVISA. Contudo, ao analisar os diversos pedidos de medicamentos pleiteados é que apenas o médico que acompanha o paciente pode questionar a prescrição, ainda que o SUS forneça fármacos constantes em protocolos clínicos e indicados para determinado tratamento capazes de suprir as necessidades demandadas. Contudo, considera-se legítimo o posicionamento do judiciário quando este atua no sentido de sanar as falhas existentes nas políticas públicas de saúde (AITH, et al, 2010).

O autor assevera que a despeito do processo de judicialização ser um avanço no sentido de garantia do direito à saúde, deve-se ter cautela quanto à interpretação dos princípios doutrinários do SUS. No que tange aos princípios da universalidade e integralidade, deve-se levar em conta que o “tudo para todos” pode vir a inviabilizar a concretização das políticas de saúde, podendo inclusive acentuar as desigualdades e o ônus para o Estado (BERLINGUER, 1996). Giovanni enfatiza a importância da prevenção no sentido de minimizar o volume da despesa e da desigualdade em relação às ações e serviços de saúde. No entanto, cabe lembrar que somente essa perspectiva não consegue abranger o que o princípio da integralidade garante.

Em melhor compreensão aos princípios norteadores do SUS, percebe-se como equivocada a análise

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simplista do artigo 196 da Constituição Federal. Restringir e adjetivar a atuação do Estado como eficaz, somente se houver a concessão de todo e qualquer procedimento que o indivíduo deseja, sob o argumento de assim promover a saúde pode gerar, por exemplo, desvio da finalidade das políticas públicas para o atendimento de necessidades baseadas em casos isolados e não em estudos epidemiológicos (AITH, et al, 2010).

Declarar a saúde como um bem maior acima de qualquer outro se mostra preocupante na medida em que se afirma o direito à saúde e à assistência farmacêutica como amplo e irrestrito sem o exame ponderado das políticas sociais e econômicas. Decisões Judiciais em tal sentido precisam ser reavaliadas, sob pena de colapso do Sistema e comprometimento da saúde, como a seguir:

É dever de o Estado prestar serviços de atendimento à saúde da população e o fornecimento de medicamentos aos necessitados, assegurando a todos, indistintamente o direito à saúde, que é fundamental e está consagrado na Constituição da República nos artigos 6° e 196. Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar os muitos visando alcançar a saúde. [...]. Em suma, por imposição constitucional, saúde é direito de todos e dever do Estado (gênero), cabendo a este no caso dos autos, aos Municípios a obrigação do fornecimento de medicação de uso regular ao paciente que dela necessite de forma imprescritível para o tratamento a que esteja submetido ou que seja necessário, sem qualquer suspensão. Dessa forma, o direito à saúde emana diretamente de norma constitucional (TJMG, 2007, s.p.).

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É necessário compreender que as decisões do Poder Judiciário referentes à prestação dos serviços de saúde, sem observância das normas que disciplinam o seu acesso, podem causar embaraços no desempenho do SUS como um todo (AITH, et al, 2010). O Poder Judiciário, em seus julgados, ao assegurar a integralidade do atendimento, pode comprometer princípios, como a universalidade e a equidade. Ao Judiciário cabe reconhecer o SUS, segundo diz a autora supracitada, como um modelo de política pública redistributiva, que se encontra, ainda, em processo de construção e consolidação. E apesar dos seus preceitos de universalidade e integralidade, ao se defrontar com a diversidade social brasileira, tenta legitimar o seu processo de atenção à saúde, a partir do princípio da equidade. Entende-se que este princípio deve ser o critério de justiça norteador das decisões judiciais. Considerações finais A saúde constitui o bem mais valioso e essencial a vida dos cidadãos uma vez com que compreende o seu bem-estar físico, mental e social, imprescindível para a dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana intimamente ligada à vida é a base principal da Constituição é o que dirige toda e qualquer atividade do Estado. E este é o que consolida o Estado levando a um patamar de Estado Democrático de Direito.

Depois de tantas lutas e sofrimentos vividos na história dos brasileiros a saúde foi reconhecida positivada como direito fundamental na Constituição Federal do Brasil de 1988 como direito de todos, objetivando melhores condições de vida em um Estado Social, sendo dever do Estado a garantir serviços mediante políticas sociais e

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econômicas, de forma gratuita e integral, rompendo com todo paradigma anterior.

No entanto, não existe sistema de saúde perfeito com recursos disponíveis ilimitados a ponto de oferecer todos os tipos de serviços e tratamentos pra todos. Bom seria, teríamos menos problemas em relação a outros serviços públicos. Despesas não previstas no orçamento, destinadas a demandas individuas ou até coletivas, podem comprometer a implementação das políticas públicas de saúde, ou mesmo as ações e os serviços por elas garantidos.

Aos julgadores é necessária a observância quanto aos princípios que norteiam o SUS de maneira que venha ser justo em cada decisão, é claro que a saúde sem nenhuma dúvida deve ser garantida a qualquer custo. O judiciário como interprete da lei, decide conforme preconiza a Constituição Federal, dizendo que a saúde é um direito fundamental essencial à vida e de aplicação imediata, é neste viés o seu entendimento de que se é dever do Estado a prestação do serviço/ tratamento, cumpra-se, pois é ordem imperativa o seu descumprimento estaria afrontando o princípio da universalidade. Todavia, declarar à saúde acima de qualquer outro bem se mostra preocupante na medida em que se afirma que este é amplo e irrestrito, enfatiza-se a necessidade de reavaliar as decisões judiciais sob pena de embaraçar o Sistema de Saúde diante dos recursos disponíveis, percebe-se o número excessivo de liminares concedidas causando muitos problemas orçamentários ao Estado que acabam extrapolando o seu planejamento.

E o que é universal e igualitário acaba sendo repartido de forma desigual onde o individual acaba prevalecendo sobre a coletividade. É neste sentido que se vê a necessidade de novos e estudos e pesquisas com todos os envolvidos na tentativa de resolver todos estes desafios tanto

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na efetivação do direito quanto nas políticas públicas de saúde.

Enfim, percebe-se que mesmo diante de tantas conquistas já alcançadas há muitos desafios a serem superados, na efetivação do acesso universal e integral aos serviços de saúde no SUS. Por fim, ratifica-se a necessidade de que novos estudos, novas pesquisas, bem como a interação tanto dos operadores do direito quanto profissionais de saúde sanitaristas e também dos usuários, de modo que se possa favorecer o progresso da articulação e da execução das Políticas Públicas, para melhor compreensão da problemática e aplicação do direito, culminando em melhoria do acesso aos serviços de saúde no SUS e melhoria das condições de vida e saúde da população.

Referências AITH, Fernando, (Org.). Direito Sanitário: Saúde e Direito, um diálogo possível. Belo Horizonte: ESP-MG, 2010; ALMEIDA, Eurivaldo Sampaio de. Contribuição à implantação do SUS. Tese de livre docência. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, 1995; ANDRADE, Luis Odorico Monteiro de. SUS passo a passo: história, regulamentação, financiamento, políticas nacionais. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo editora Hucitec, 2007; AROUCA, Sérgio. Crise brasileira e reforma sanitária. Saúde em Debate, Londrina Paraná. Jun. 1991; BANDEIRA de Mello, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007; BERLIGUER, Giovanni. Ética da Saúde. São Paulo: Hucitec, 1996;

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BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 11° ed. Rio de Janeiro: campus, 1992; BRASIL, Ministério da Saúde. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providencias. Brasília, DF: Senado, 1990; ______. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988; COSTA, Nilson do Rosário. Lutas urbanas e controle sanitário. Petrópolis: Vozes, 1985; FLEURY, Sônia. Bases Sociais para a Reforma Sanitária no Brasil. Saúde em Debate, Londrina Paraná jun. 1991; HESSE, Korand. A força normativa da constituição. Porto Alegre: 1991; LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: editora Júris, 2000; MACHADO, Roberto (Org.). Danação da norma: Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal 1978; MENDES, Eugênio Vilaça. Os modelos de descentralização do sistema de saúde no Brasil. Saúde em Debate. Londrina, Paraná. Jun. 1991; _____. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos Avançados, 2013; PAIM, Jairnilson Silva. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema de Saúde (SUS). Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro: 29 (10), Out. 2013; PERLINGEIRO, Ricardo. A tutela judicial do direito público à saúde no Brasil. Direito, Estado e Sociedade. n.41, Jul/dez. 2013; ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec, 1998;

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ROZENFELD, Suely (Org.) Fundamentos da Vigilância Sanitária. Rio de Janeiro, 2006; SARLET, Ingo Worfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: livraria do advogado, 2009; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

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ADOÇÃO INTUITU PERSONAE À LUZ DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR

Cristiane Gonçalves de Sá Ferreira20

Fernanda Fagundes Veloso Lana21 Ludimila Souza Oliveira Ferreira Dias22

Warlem Freire Barbosa23

Introdução Estudar a “Adoção Intuitu Personae” à luz do princípio do melhor interesse do menor. Fazem-se necessárias as modificações impostas pela Constituição Federal de 1988, as inovações introduzidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, pelo Código Civil de 2002 e a Lei no. 12.010/2009 que dispõe sobre a adoção e altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e revoga dispositivos do Código Civil Brasileiro. Serão abordados os aspectos gerais da adoção e suas principais características, os requisitos da adoção, a natureza jurídica e as formas de adoção, assim como o princípio do melhor interesse do menor. Será desenvolvido o tema principal “Adoção Intuitu Personae” onde será tratado o conceito, as críticas feitas a essa modalidade de adoção, a filiação socioafetiva, o cadastro 20 Advogada. Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas. e-mail: [email protected] 21 Mestre em Direito Público. Professora universitária de Direito Tributário nas Faculdades Integradas Funorte. Advogada 22 Mestranda em Desenvolvimento Social pela Unimontes e Professora das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. 23 Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal e Processo Penal nas Faculdades FUNORTE e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.

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de adoção e os entendimentos e divergências da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais. O trabalho desenvolvido tratará do Instituto da adoção e da adoção Intuito Personae. Serão efetuadas pesquisas doutrinárias, jurisprudenciais e legais bem como apontados os precedentes dos Tribunais Superiores referentes a cada questão levantada acerca da adoção Intuitu Personae. A adoção é um ato jurídico acompanhado sempre pelo elemento afetividade, que visa primordialmente os interesses da criança ou do adolescente, pois, o legislador se preocupou em regular a matéria de forma efetiva e satisfatória, com o objetivo de resguardar o próprio adotando. A autora Suely Mitie Kusano define-se adoção Intuitu Personae:

Como aquela em que os pais biológicos, ou um deles, ou, ainda, o representante legal do adotando, indica expressamente aquele que vem a ser o adotante, e continua.., a adoção em que o adotante é previamente indicado por manifestação de vontade da mãe ou dos pais biológicos ou, não os havendo, dos responsáveis legais quando apresentado o consentimento exigido [...] e, por isso, autorizada a não observância da ordem cronológica do cadastro de adotantes.24

Nos ensinamentos de Galdino Augusto Coelho

Bordallo ao comentar a possibilidade de os pais biológicos

24 KUSANO, Suely Mitie. “Adoção intuitu personae”. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. f. 62. Disponível em: <http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp009295. pdf>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2014.

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indicarem a pessoa do adotante, coloca a questão de forma bastante elucidativa:

Não vemos nenhum problema nesta possibilidade, eis que são os detentores do poder familiar e possuem todo o direito de zelar em pelo bem estar de seu rebento. Temos que deixar de encarar os pais que optam por entregar seu filho em adoção como pessoas que cometem alguma espécie de crime. A ação destes pais merece compreensão, pois, se verificam que não terão condições de cuidar da criança, ao optarem pela entrega, estão agindo com todo amor e carinho por seu filho, buscando aquilo que entendem melhor para ele. Assim, se escolhem pessoas para assumir a paternidade de seu filho, deve-se respeitar essa escolha.25

A mudança trazida pela Lei nº 12.010/09 veda

atitudes que são guiadas pelo afeto a quem afirma que abrir mão de um filho é abrir mão de um pedaço de si, se não de si próprio. O autor continua afirmando:

Saber que seu filho será criado por alguém que é de sua confiança garante segurança emocional à mãe e/ou pai biológico(s) que vem a abrir mão de seu filho. Não é uma delegação do poder familiar, mas vem a ser uma delegação da figura que exerceria se aquele filho fosse(m) criar.26

25 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. “Adoção. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 4. ed. SP: Lúmen Júris, 2010, p.251 a 252. 26 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. “Adoção. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 4. ed. SP: Lúmen Júris, 2010, p. 251 a 252.

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Em qualquer tipo de adoção seria crucial aos

adotados eliminar a afetividade, pois, família sem amor é inaceitável. O parágrafo 13 do artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente, modificado pela Lei da Adoção, é uma das primeiras tentativas em impor normas em substituição ao afeto que é inaceitável e prejudicial à família e ao adolescente. É necessário levar em conta o melhor interesse da criança devido aos Princípios Constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois a adoção não é mais vista sob uma ótica contratual em que a busca se limita a uma criança para uma família. O que se pretende atualmente em um processo de adoção é a busca de uma família para uma criança, o que é uma mudança de perspectiva, pois o instituto passa a centrar-se no seu melhor interesse do menor. 1 O instituto da adoção

Após analisar os conceitos de diversos autores, fica claro que o conjunto de definições é amplo e aberto sem qualquer posição dominante e consenso geral. Conforme legislação em vigor, a doação trata-se de uma manifestação de vontade condicionada à aprovação judicial, pois há requisitos estabelecidos por lei especifica e interesses do adotado que devem ser obedecidos, tais como: “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos” (ECA, artigo no 43). A conceituação de adoção acompanha todo o processo de evolução social, sendo um reflexo dos valores, crenças e padrões de comportamento construídos pelas sociedades.

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A Constituição Federal de 1988 assegurou os mesmos direitos e qualificações aos filhos havidos ou não da relação do casamento ou por doação. Não cabe mais falar em “filho adotivo”, mas em “filho por adoção”. A partir do momento em que é constituída pela sentença judicial e é retificado o registro de nascimento, o adotado é filho. A filiação natural ou biológica repousa sobre o vínculo de sangue genético ou biológico; a adoção é uma filiação exclusivamente jurídica que se sustenta sobre a pressuposição de uma relação não biológica, mas efetiva. A adoção contemporânea é, portanto, um ato ou negócio jurídico que cria relações de paternidade e filiação entre duas pessoas. O adotado adquire os mesmos direitos e obrigações de qualquer filho: nome, parentesco, alimentos e sucessão. Na contramão, também correspondem ao adotado os deveres de respeito e de obediência. Os pais, por sua vez, têm os deveres de guarda, criação, educação e fiscalização. A adoção atribui ao adotado a condição de filho para todos os efeitos, desligando-o de qualquer vínculo com os pais biológicos (artigo no 41, ECA), salvo quanto aos impedimentos para o casamento. A relação de parentesco se estabelece entre o adotado e toda a família do adotante. Os seus parentes tornam-se parentes do adotado, tanto em linha reta, como em linha colateral. Também idênticos os graus de parentesco que se estabelecem em relação aos filhos biológicos do adotante (artigo no 41, ECA). Vivendo os adotantes em união estável, também os vínculos parentais estendem-se ao adotado. A morte dos adotantes não restabelece o poder familiar dos pais naturais (artigo nos 49, ECA). Como a adoção é irrevogável (artigo no 39, parágrafo 1º, ECA), rompem-se todos os laços com a família biológica, cabendo

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questionar se há possibilidade de os pais biológicos adotarem o filho que fora adotado, mas não há vedação legal. Em relação à adoção Dias (2010, p.483) menciona: “A verdadeira paternidade funda-se no desejo de amar e ser amado, mas é incrível como a sociedade ainda não vê a adoção como deve ser vista”. A Lei no 12.010, de 03 de agosto de 2009, chamada de Lei da Adoção, introduziu modificações na sistemática da adoção na tentativa de agilizar o procedimento de adoção e reduzir o tempo de permanência de crianças e adolescentes em instituições. A referida Lei, ao dar nova redação a dois artigos do Código Civil (artigos nos 1.618 e 1.619) e revogar todos os demais do capitulo da adoção, deixou exclusivamente para o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, a adoção de crianças e adolescentes. A Lei no 12.010 de 2009 assegura ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e ter acesso ao processo de adoção (artigo no 48 ECA), direito que já vinha sendo reconhecido judicialmente. A manutenção de cadastros estaduais e nacional, tanto de adotantes, como de crianças aptas à adoção (artigo no 50, parágrafo 5º, ECA) é outro mecanismo que visa agilizar o processo. Destacamos também a preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida (artigo no 34, parágrafo 1º, ECA). É garantido aos pais o direito de visitas e é mantido o dever de prestar alimentos aos filhos quando colocados sob a guarda de terceiros (artigo no 33, parágrafo 4º, ECA), aos grupos de irmãos que devem ser colocados sob adoção, tutela ou guarda na mesma família substituta (artigo no 28, parágrafo 4º, ECA). O fato é que a adoção transformou-se em medida excepcional, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados

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os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa. Acerca da Lei supracitada a autora Maria Berenice , adverte:

Assim, a chamada Lei da adoção não consegue alcançar os seus propósitos. Em vez de agilizar a adoção, acaba por impor mais entraves para a sua concessão, tanto que onze vezes faz referência à prioridade da família natural. Claro que ninguém questiona que o ideal é criança e adolescente crescerem junto a quem lhes trouxe ao mundo. Mas quando a convivência com a família natural se revela impossível ou é desaconselhável, melhor atende ao interesse de quem a família não deseja, ou não pode ter consigo, ser ela entregue aos cuidados de quem sonha reconhecê-lo como filho. A celeridade deste processo é o que garante a convivência familiar, direito constitucionalmente preservado com absoluta prioridade (CF 227). 27

Com o Advento da Lei de Adoção, o Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA passou a prever, em consonância com o disposto sobre a capacidade no Código Civil (artigo no 5º CC), a idade de 18 anos para adotar (artigo no 42, ECA). Há outro requisito que diz com a idade: entre adotante e adotado deve existir uma diferença de 16 anos (ECA, artigo no 42, parágrafo 3º). Esta distância de tempo busca imitar a vida, pois é a diferença entre anos para a procriação. Sendo dois os adotantes, basta o respeito à

27 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010, p.484.

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diferença de idade com referência a apenas um dos requerentes. Qualquer pessoa pode adotar. Pessoas sozinhas: solteiros, divorciados, viúvos. A lei não faz qualquer restrição quanto à orientação sexual do adotante, nem poderia fazê-lo. Também independe o estado civil do adotante (ECA, artigo no 42). Quem é casado ou vive em união estável também pode adotar, sendo que a adoção não precisa ser levada a efeito pelo casal. Como a Lei não proíbe que somente uma pessoa adote, o que não é proibido é permitido. Basta haver, portanto, a concordância do cônjuge ou companheiro. Essa é a única exigência para a colocação em família substituta (ECA, artigo no 165, inciso I), norma que se aplica também à adoção (ECA, artigo no 165, parágrafo único).

O Estatuto veda expressamente a adoção entre irmãos ou entre ascendentes (ECA, artigo no 42, § 1º), definindo questão polêmica que o Código de Menores não resolvia por ser omisso. Por outro lado, não impediu a adoção entre colaterais, motivo pelo qual entendemos ser admissível a adoção entre estes parentes, o quê, aliás, não é raro na vara da Infância e Juventude. No Brasil além da adoção “Intuitu Personae”, existem outras formas de adoção que destacamos a adoção unilateral, adoção de maiores, adoção internacional, adoção póstuma e adoção à brasileira. Quanto à Adoção “à brasileira” existe uma prática disseminada no Brasil. Daí o nome eleito pela jurisprudência. Ocorre quando o companheiro de uma mulher perfilhar o filho dela simplesmente registrando a criança como se fosse seu descendente. Ainda que este agir constitua crime contra o estado de filiação (CP., artigo no. 242), não tem havido condenações pela motivação afetiva que envolve essa forma de agir.

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Em muitos casos, rompido o vinculo afetivo do casal ante a obrigatoriedade de arcar com alimentos a favor do filho, o pai busca a desconstituição do registro por meio de ação anulatória ou negatória de paternidade. A jurisprudência reconhecendo a voluntariedade do ato, praticado de modo espontâneo, por meio da “adoção à brasileira”, passou a não admitir a anulação do registro de nascimento, considerando-o irreversível. Não tendo havido vício de vontade, não cabe a anulação sob o fundamento de que a lei não autoriza a ninguém vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento (CC., artigo no. 1.604). A irrevogabilidade da adoção é garantida pelo parágrafo 1º do artigo no 39 do Estatuto, adicionado pela Lei no 12.010/09. Concluído o processo de adoção, automaticamente são rompidos todos os laços do adotando com a família biológica. Registra-se que nem mesmo a morte dos adotantes restabelece o poder familiar dos pais naturais, conforme artigo no 49 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Com relação à plenitude, os autores Luciano Alves Rossato e Paulo Eduardo Lépore afirmam que:

A plenitude é característica da adoção em virtude de o adotado ter os mesmos direitos e deveres do filho biológico, inclusive sucessórios. Não poderia ser diferente, tendo em vista a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação constante do parágrafo 6º do art. 227 da Constituição Federa.28

28 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo. “Comentários à Lei Nacional de Adoção – Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Brasil, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – “Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências”. p.48.

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Ainda quanto à plenitude, Maria Berenice Dias afirma que:

A adoção confere ao adotado a condição de filho para todos os efeitos, não havendo qualquer efeito jurídico, pessoal ou patrimonial decorrente do vinculo de consanguinidade, exceto os impedimento para casamento.29

Sobre o instituto da adoção no Brasil, os números apresentados pela Autora Maria Berenice Dias, em levantamento de 14/02/2011, são:

Há 100 mil crianças abrigadas; 88% das crianças abrigadas não podem ser adotadas por que não houve a destituição do poder familiar; mais de 50% das crianças aptas a adoção tem mais de 10 anos, mas 80% dos candidatos à adoção querem crianças com até 3 anos de idade; 23% das adoções são inter-raciais; 41% das crianças que se encontram em abrigos nunca receberam uma visita.30

1 Adoção “intuitu personae”

Chama-se de adoção “Intuitu Personae” ou adoção direcionada quando há o desejo da mãe de entregar o filho a

29 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. p.473. 30 DIAS, 2011, falando em adoção” de 14/02/2011. http://www.mariaberenicedias.com.br/pt/vocesabia- falando-em-adocao.cont , acesso em 24/02/2013).

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determinada pessoa. Também é assim chamada a determinação de alguém em adotar certa criança. Na adoção “Intuitu Personae”, os pais biológicos entregam o filho para quem, por seu arbítrio, entendam que melhor os substituirá. Com o tempo, nasce uma relação de afetividade entre a criança e a família substituta escolhida. Concomitantemente, surge não só o desejo dos adotantes, mas, principalmente, o direito da criança de regularizar a situação fática dessa adoção. A dúvida que fica é sobre a possibilidade ou não de os pais afetivos adotarem legalmente essa criança, ainda que não cumpram o requisito de estarem habilitados para a adoção, ou seja, desrespeitando a ordem do cadastro de adotantes. Nos dizeres do autor Galdino Augusto Coelho Bordallo:

Nessa modalidade de adoção, há a intervenção dos pais biológicos na escolha da família substituta, ocorrendo essa escolha em momento anterior à chegada do pedido de adoção ao conhecimento do judiciário. Não se confunde com a adoção à brasileira, que ocorre quando o adotante registra filho alheio como próprio sem o crivo do judiciário.31

Não se trata das hipóteses em que a genitora abandona

o recém-nascido em local desconhecido e sem proteção de qualquer pessoa, conduta que configura a prática do delito previsto no artigo no 133 do Código Penal. Neste caso, não há que se falar em adoção Intuitu Personae, mas sim em abandono de incapaz, conduta que possibilita a destituição do poder de família, conforme artigo no 1.638, inciso II do 31 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. “Adoção. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 4. ed. SP: Lúmen Júris, 2010.p. 251.

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Código Civil e a consequente colocação do menor em família substituta. Diversas são as razões que fazem os genitores tomar tal atitude. Muitas vezes, em casos extremos de pobreza, os pais veem em outrem, a oportunidade de oferecer a seu filho uma vida mais digna. Outras vezes, por não possuírem o equilíbrio psíquico-emocional adequado, permitem que um terceiro assuma a guarda de fato da criança. A gravidez indesejada também caracteriza uma das causas da adoção “Intuitu Personae”. Inicialmente, é necessário reconhecer que tal conduta não é ilegal, uma vez que haja qualquer norma, seja constitucional ou infraconstitucional, que vede expressamente tal comportamento. No entanto, embora não seja ilegal, há de se avaliar se a adoção “Intuitu Personae” observa o princípio do melhor interesse da criança consagrado em nossa Constituição Federal de 1988 no artigo no 227 e corroborado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA (Lei no 8.069/90). Sobre a adoção “Intuitu Personae” o autor Galdino augusto Coelho Bordallo, assim se refere:

Não vemos nenhum problema nesta possibilidade, eis que são os detentores do poder familiar e possuem todo o direito de zelarem pelo bem-estar de seu rebento. Temos que deixar de encarar os pais que optam por entregar seu filho em adoção como pessoas que cometem alguma espécie de crime. A ação destes pais merece compreensão, pois, se verificam que não terão condições de cuidar da criança, ao optarem pela entrega, estão agindo com todo amor e carinho por seu filho, buscando aquilo que entendem melhor para ele. Assim, se escolhem pessoas para assumir

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a paternidade de seu filho, deve-se respeitar esta escolha.32

Cabe ressaltar que esta forma de adoção só pode

ocorrer através do Poder Judiciário observado os requisitos legais. A escolha da criança é que ficou sujeita à decisão dos pais biológicos, ou da mãe quando a paternidade biológica não está estabelecida. Essa escolha não é irreversível: a justiça da infância, com base, inclusive em parecer da equipe interprofissional, pode determinar que os interessados na adoção não tenham idoneidade para fazê-la. A autora Maria Berenice Dias defende a adoção “Intuitu Personae” dizendo:

E nada, absolutamente nada impede que a mãe escolha quem sejam os pais de seu filho. Às vezes é a patroa, às vezes uma vizinha, em outros casos um casal de amigos que têm uma maneira de ver a vida, uma retidão de caráter que a mãe acha que seriam os pais ideais para o seu filho. (...) Ao contrário, basta lembrar que a lei assegura aos pais o direito de nomear tutor a seu filho (CC, art.1729). E, se há a possibilidade de eleger quem vai ficar com filho depois da morte, não se justifica negar o direito de escolha a quem dar em adoção.33

A adoção Intuitu Personae atende e dá prioridade plenamente o “principio do melhor interesse do adotado”. Apesar da regra do artigo no 50 do Estatuto da Criança e do

32 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). “Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 5 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011. p.326. 33 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 4. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007. P.445.

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Adolescente-ECA, com o disposto no inciso III do parágrafo 13, introduzido pela Lei no 12.010/2009 contrariar este princípio, trouxe uma discussão em torno das “adoções Intuito Personae”. Determina o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, que em cada Comarca ou foro regional, haja um duplo cadastro: um de crianças e adolescentes em condições de serem adotadas e outro de pessoas interessadas em adotar (ECA, artigo no 50). Para serem incluídos nesse rol, os pretendentes devem ser considerados aptos à adoção após se submeterem a entrevistas e a estudos social e psicológico. Nas lições de Maria Berenice Dias, adverte:

Existe uma exacerbada tendência de sacralizar a lista de preferência e não admitir, em hipótese nenhuma, a adoção por pessoas não inscritas. É tal a intransigência e a cega obediência à ordem de preferência que se deixa de atender a situações em que, mais do que necessário, é recomendável deferir a adoção sem atender à listagem. Muitas vezes o candidato não se submeteu ao procedimento de inscrição, até porque jamais havia pensado em adotar.34

Deve o Poder Judiciário legitimar tal comportamento respeitando-se a vontade dos pais biológicos, ou cabe ao Estado, nestes casos, decidir sobre o futuro da criança, desprezando-se a manifestação de vontade dos genitores? Para solucionar tal questão, é necessário analisar as vantagens e desvantagens de se admitir a adoção Intuitu Personae.

34 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. P.497 a 498.

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Observar a vontade dos pais muitas vezes pode ser benéfico ao menor, eis que não raro os genitores concordam em entregar a prole desde que seja tão somente para pessoas conhecidas, nas quais eles confiam, e creem que oferecerão à mesma um futuro melhor. Se forem desconhecidos (observando-se o cadastro de adotantes), os genitores muitas vezes não entregariam o que acarretaria prejuízos ao seu futuro, eis que poderia passar a viver com uma família que a rejeita e/ou que não possui condições financeiras ou emocionais para cuidar da criança. Além disso, considerar a vontade dos pais diminui a possibilidade de conflitos futuros, exatamente em razão da relação de confiança e, muitas vezes, de amizade existente entre os pais e aqueles que assumem a guarda de fato do menor. A Adoção Intuitu Personae atende e prioriza plenamente o “principio do melhor interesse do adotado” apesar da regra do artigo no 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, com o disposto no inciso III do parágrafo 13, introduzido pela Lei no 12.010/2009, contrariar este princípio, trouxe uma discussão em torno das “adoções intuito personae”. Segundo o referido dispositivo o cadastramento para fins de adoção passou a ser obrigatório. O candidato domiciliado no Brasil e não cadastrado somente pode ter deferida a adoção em três hipóteses: I- Em adoção unilateral; II- Formulada por parentes com os quais a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade; III- Por quem detenha a tutela ou guarda de criança maior de três anos desde que existam laços de afinidade e não seja constatada má-fé ou qualquer das situações previstas nos artigos nos 237 ou 238 do ECA.

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As considerações a respeito do cadastro de adoção, regulado no artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, são necessárias em virtude de a adoção Intuitu Personae consistir, a rigor, em uma burla à lista de espera dos postulantes à adoção. A autora Maria Berenice em artigo “adoção a espera de amor” quando se refere à adoção dirigida e o artigo 50 do Estatuto afirma que:

Apesar desta modalidade, claramente, priorizar o melhor interesse do adotado, a inutiliza a regra do art. 50 do ECA (Cadastro Nacional de Adotantes), o que faz parte da doutrina defender o não uso da adoção personae “pelos riscos de comércio ou intermediação indevida, com exploração decorrente, o desrespeito ao direito fundamental da criança de ser criada em sua família natural ou ampliada, e a manifesta burla ao cadastro de pretendentes à adoção. 35

As regras estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente são totalmente favoráveis à adoção Intuitu Personae. Com a exceção do Cadastro de adotantes do artigo 50, e que não haja perda do poder familiar, não há contrariedade a esta modalidade de adoção. Quanto à perda do poder familiar, veja os comentários do autor Munir Cury, que:

A perda do poder familiar deve ser decretada em procedimento adequado, com observância do princípio do contraditório, iniciado por quem porte legitimidade a tanto, devidamente

35 DIAS,Maria Berenice, “adoção e a espera do amor”. http://www.mariaberenicedias. com.br/pt/adocao-e-a-espera-do-amor.cont.; acesso em 24/02/2014.

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comprovada conduta, omissiva ou comissiva, dolosa ou culposa, dos pais, que se amolde em um dos casos ensejadores da perda do poder familiar, previstos em lei (CURY, 2009).36

A autora Suely Mitie Kusano define-se adoção Intuitu Personae:

Como aquela em que os pais biológicos, ou um deles, ou, ainda, o representante legal do adotando, indica expressamente aquele que vem a ser o adotante, e continua.., a adoção em que o adotante é previamente indicado por manifestação de vontade da mãe ou dos pais biológicos ou, não os havendo, dos responsáveis legais quando apresentado o consentimento exigido [...] e, por isso, autorizada a não observância da ordem cronológica do cadastro de adotantes.37

A mudança trazida pela Lei nº 12.010/09 veda atitudes que são guiadas pelo afeto a quem afirme que abrir mão de um filho é abrir mão de um pedaço de si, se não de si próprio. Saber que seu filho será criado por alguém que é de sua confiança garante segurança emocional à mãe e/ou pai biológico(s) que vem a abrir mão de seu filho. Não é uma delegação do poder familiar, mas vem a ser uma delegação da figura que exerceria se aquele filho fosse(m) criar. Não poderia deixar de elucidar o julgado que, para aqueles que defendem a possibilidade da adoção Intuitu 36 CURY, Munir. “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Comentários Jurídicos e Sociais”, 2009. P.209. 37 KUSANO, Suely Mitie. “Adoção intuitu personae”. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. f. 62. Disponível em: <http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp009295. pdf>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2014.

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Personae seja o de maior grandeza e impacto no mundo jurídico, senão o apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.172.067 – MG, da Relatoria do Ministro Massami Uyeda, em 2010:

Recurso Especial – Aferição da prevalência entre o Cadastro Nacional de Adotantes e a adoção intuitu personae - Aplicação do princípio do melhor interesse do menor- Verossímil estabelecimento de vínculo afetivo da menor com o casal de adotantes não cadastrados - Permanência da criança por oito meses de vida – Tráfico de criança-Não verificação - Fatos que, por si, não denotam a prática de ilícito-Recurso Especial provido. I - A observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro; II - É incontroverso nos autos, de acordo com a moldura fática delineada pelas Instâncias ordinárias, que esta criança esteve sob a guarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeiros oito meses de vida, por conta de uma decisão judicial prolatada pelo i. desembargador-relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590-5⁄001. Em se tratando de ações que objetivam a adoção de menores, nas quais há a primazia do interesse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem o potencial de consolidar

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uma situação jurídica, muitas vezes, incontornável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo; III - Em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente, durante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisão judicial, ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial, o estreitamento da relação de maternidade (até mesmo com o essencial aleitamento da criança) e de paternidade e o consequente vínculo de afetividade; IV - Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afastada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto, insinua-se presente; V - O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, dependente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anteriormente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusão de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ademais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menor com os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatos que, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança; VI - Recurso Especial Provido.38

38 Brasil. Superior Tribunal de Justiça, STJ. Recurso Especial nº 1.172.067-MG, processo 2009⁄0052962-4, Relator ministro Massami Uyeda. Brasília, 18 de março de 2010.

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Apesar da boa intenção do legislador ao tentar exterminar as obscuridades que maculam a adoção Intuitu Personae, algo muito maior foi deixado de lado: a afetividade. Numa primeira análise, o estudioso pode ser levado a imaginar que o parágrafo 13 do artigo no 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente, modificado pela Lei em análise é uma das primeiras tentativas legiferantes em normatizar o afeto. Existem autores contrários à adoção Intuitu Personae e são favoráveis a um cadastro nacional de adotantes e adotados, assim afirma Luciano Alves Rossato e Paulo Eduardo Lépore:

Trata-se de mecanismo que possibilita o cruzamento de dados e a rápida identificação de crianças ou adolescentes institucionalizadas. Tal expediente permite, ainda, o intercâmbio de informações entre comarcas e regiões.39

Também elogia a opção do legislador em instituir os cadastros, o autor Galdino Augusto Coelho Bordallo afirmando:

Que sua existência é bastante útil pois facilita a apuração dos requisitos legais e facilita a compatibilidade entre adotante e adotando

39 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo. “Comentários à Lei Nacional de Adoção – Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Brasil, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – “Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências”.

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pela equipe interprofissional, o que tornará mais célere os processos de adoção.40

Tratando-se da filiação socioafetiva, a constituição Federal de 1988 revelou princípios constitucionais que geraram grandes mudanças na entidade familiar e possibilitaram o reconhecimento da filiação socioafetiva. Dentre estes princípios podemos destacar o da igualdade (artigo no 5º.), da proibição de discriminação entre filiação (artigo no 227, parágrafo 6º), a supremacia do interesse dos filhos (artigo no 227, caput), da cidadania da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, incisos II e III). O Código Civil silenciou sobre a filiação socioafetiva, tratando de filiação do ponto de vista biológico, esquecendo-se da relação de efetividade que com intensidade unem pais e filhos. O afeto possui grande relevância jurídica, especialmente no que diz respeito às relações familiares. A filiação socioafetiva é a decorrente do tratamento afetivo recíproco entre pessoas que se comportam como pais e filho, assentando-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a criança da condição de filho fundada em laços de afeto, segundo a autora Maria Berenice Dias, que merece transcrição o conceito de filiação afetiva dado pela autora:

A filiação que resulta da posse do estado de filho constitui modalidade de parentesco civil de “outra origem”, isto é , de origem afetiva (CC 1.593). A filiação sócioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família, que cumpre a sua

40 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. “Adoção. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 4. ed. SP: Lúmen Júris, 2010.

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função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica. Revela a Constância social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de uma convivência afetiva. 41

Diante do consenso doutrinário é relevante o vínculo de filiação socioafetiva. É certo também que a adoção, em qualquer de suas formas, é a grande manifestação da filiação que depende unicamente da vontade. Sendo assim, por que razão haver polêmica em torno da adoção Intuitu Personae, sendo ela um perfeito exemplo de filiação socioafetiva? Uma das críticas refere-se ao desrespeito ao cadastro de adotantes, o qual será analisado a seguir. Analisando o Cadastro de adoção previsto no artigo 50 do Estatuto da Criança e da Adolescência, como já abordado, em cada comarca ou foro regional deve haver um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. A inscrição no cadastro de adotantes deve ser requerida por meio de procedimento especifico de habilitação, regulado pelo Estatuto a partir do artigo 197-A. A alimentação do cadastro e a convocação dos candidatos à adoção deverão ser fiscalizadas pelo Ministério Público, conforme artigo 50, parágrafo 12 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA. Sobre o Cadastro de adotantes e adotados a Desembargadora e autora Maria Berenice considera como mero instrumento organizador e facilitador, reputando-lhe um papel secundário no processo de adoção:

41 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. P.364.

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Ainda que haja a determinação de que sejam elaboradas as listas, deve-se atentar ao direito da criança de ser adotada por quem lhe dedica carinho diferenciado, em vez de priorizar os adultos pelo só fato de estarem incluídos no registro de adoção. Não sendo a pretensão contrária ao interesse da criança, injustificável negar a adoção por ausência de prévia inscrição dos interessados. 42

Os parágrafos 3º e 4º do artigo 50 do Estatuto, incluído pela Lei no 12.010/09 determinam que a inscrição de interessados à adoção seja precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientação por equipe técnica da Justiça da infância e da juventude. Essa preparação deverá, quando recomendável, incluir o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou institucional que estejam em condições de serem adotados. O parágrafo 13 do artigo 50 do mesmo Estatuto, com redação da Lei no 12.010/2009, indica as hipóteses em que não há a exigência de prévio cadastro, a saber:

a) pedido de adoção unilateral; b) pedido de adoção formulada por parente com qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; c) pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de três anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou crimes de subtração de criança ou adolescente para colocação em lar substituto ou promessa

42 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011. P.305.

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ou efetivação de entrega de filho ou pupilo a terceiros mediante paga ou recompensa. (Brasil, Lei no 8.069, de 13/07/1990, parágrafo 13, do artigo no 50).43

O parágrafo 14 do mesmo diploma legal afirma que, nessas hipóteses em que se autoriza a adoção por família que esteja cadastrada, deverá haver a comprovação, no curso do procedimento, de que foram preenchidos todos os requisitos necessários à adoção. É inegável que o cadastro previsto no artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA é de suma importância e possibilita um estudo aprofundado acerca de quem são as pessoas que mais adotam, qual o tipo de criança escolhida, o local onde é maior o número de adoções, etc. Permite ainda um acompanhamento psicológico e social dos pais adotivos. Entretanto, o aumento das adoções ilegais no Brasil demonstra a falência do instituto e a necessidade de mudanças. Ocorre que tal regra não vai acabar com os problemas da adoção “à brasileira” nem mesmo com a adoção Intuitu Personae. As mães biológicas vão continuar a entregar os seus filhos a quem lhes pareça mais confiável para cuidá-los e educá-los. A prática nem sempre corresponde ao objetivo geral. Sobre a questão, posiciona-se o autor Galdino Bordallo:

É uma péssima regra, que não deveria contar de nosso ordenamento jurídico. Trata-se, [...], de necessidade de controle excessivo da vida privada e ideia de que todas as pessoas agem

43 Brasil, Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, “Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências.

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de má-fé. Esta regra restringe a liberdade individual, viola o poder familiar, pois tenta impedir que os pais biológicos, ainda detentores do poder familiar, escolham quem lhes pareça deter melhores condições para lhes substituir no exercício da paternidade. 44

A autora Maria Berenice, também faz criticas a obediência cega ao cadastro de adoção:

Portanto, o que era para ser simples mecanismo, singelo instrumento agilizador de um procedimento, transformou-se em fim em si mesmo. Em vez de meio libertário, passou a ser um fator inibitório e limitativo da adoção. Com isso olvida-se tudo que vem sendo construído pela doutrina e já é aceito pela jurisprudência, quando se fala em vínculos familiares filiação socioafetiva, adoção à brasileira, posse do estado de filho são novos institutos construídos pela sensibilidade da justiça, que têm origem no elo efetivo e levam ao reconhecimento do vinculo jurídico da filiação. È de tal ordem a relevância que se empresta ao afeto que se pode dizer que a filiação se define não pela verdade biológica, nem pela verdade legal ou pela verdade jurídica, mas pela verdade do coração. Quando se trilha o caminho que busca enlaçar no próprio conceito de família o afeto, desprezá-lo totalmente afronta não só a norma constitucional que consagra o princípio da proteção integral, mas também o princípio maior que serve de fundamento ao Estado

44 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). “Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 5 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011. P.333.

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Democrático de Direito: o respeito à dignidade de crianças e adolescentes. 45

De fato, retirar a criança ou adolescente de uma família com a qual já existe o vínculo afetivo e inseri-la em outra desconhecida, seria além de uma perversidade, uma afronta aos princípios basilares concernentes à criança e ao adolescente. Proceder dessa maneira seria contrapor-se ao interesse do adotando e, consequentemente, contrapor-se a todo o sistema de proteção à criança e ao adolescente. Conclusão Diante dos diversos temas tratados, as considerações doutrinárias, jurisprudenciais, e as questões levantadas que direcionaram o presente trabalho, extraem-se as seguintes conclusões: Ficou demonstrado que esta modalidade de adoção, muito embora comum no Brasil, provoca divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Conclui-se que devido a não regulamentação legal da adoção Intuitu Persoane, esta forma de adoção só pode ocorrer através do poder judiciário, pois, atende e dá prioridade plenamente ao principio do melhor interesse do adotado, e à vontade dos pais biológicos, apesar dos cadastros de adotantes e adotados previstos no artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA. Desta forma, percebe-se que não há impedimento para que seja regulamentada a adoção Intuitu Personae como ato de amor que é, devendo ser incentivada e protegida pelo

45 DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. P.497.

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sistema jurídico, pois, a efetividade presente nos casos que envolvem essa modalidade de adoção deve sempre sobrepor-se. É sabido que a adoção Intuitu Personae não é perfeita e há criticas. Uma delas refere-se ao desrespeito ao cadastro de adotantes. Este seria peça fundamental no processo de adoção, proporcionando segurança aos envolvidos. Não se questiona a necessidade de existir um cadastro de pretendentes à adoção, entretanto, não há como priorizar o cadastro de adotantes em detrimento de relação afetiva já constituída entre a criança ou adolescente e os pais não inscritos no cadastro (ou que não sejam os próximos da fila), tendo em vista o principio do melhor interesse da criança e do adolescente. Ademais, uma vez que a adoção é um instituto voltado essencialmente aos interesses do adotado deve ser respeitado o desejo da criança ou adolescente de permanecer com a família socioafetiva, mesmo que esta não seja a próxima indicada pelo cadastro de adotantes. Uma segunda crítica refere-se ao fato de que a possibilidade de a genitora escolher os adotantes do seu filho poderia ensejar a compra e venda de crianças e adolescentes. De fato esse é um risco que não pode ser desprezado tendo em vista a precária situação emocional e/ou financeira da mãe que escolhe entregar um filho para outra pessoa criar, contudo, não se pode presumir que todas as pessoas agirão de má fé. Deve haver, sim, uma grande atenção do juízo para com o tema: estando os assistentes técnicos que fazem as avaliações dos adotantes preparados, certamente serão detectados e impedidos os casos de tráfico de crianças ou adolescentes. Igualmente, a escolha dos pais socioafetivos pela genitora é balizada pelo fato de que, conforme o artigo no 1.729 do Código Civil, os pais têm direito de nomear tutor ao filho. Assim, havendo o direito de escolher quem vai cuidar do filho

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após a morte, não se justifica impedir a escolha em vida quando não há condições de cuidar da criança. Finalmente, restou concluído que a maior parte da doutrina e da jurisprudência vem entendendo pela possibilidade da adoção Intuitu Personae. De fato, emprestar maior peso ao afeto e ao interesse do adotando em detrimento do cadastro de adoção quando da definição de quem serão os adotantes, é a opção que melhor se combina com os princípios fundamentais da criança e do adolescente. Referências BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. “Adoção. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 4. ed. SP: Lúmen Júris, 2010. BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). “Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos”. 5 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011. BRASIL, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – “Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências”. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/jurisprudencia/ jurisp.asp>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2014. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2014. BRASIL, Tribunal de Justiça de Rio Grande do Sul, TJRS - Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/jurisprudencia/>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2014. CARVALHO, Márcia Lopes de; FRANCO, Natália soares. “O cuidado na adoção: algumas experiências. In; O cuidado

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como valo jurídico”. Cood. Tânia da Silva Pereira e Guilherme de Oliveira, ed. Forense: RJ, 2008; CACHAPUZ, Rozane da Rosa. “Da importância da adoção internacional”. Ed. Forense, 2005. RJ. CHAVES, Antonio. “Adoção Internacional”, Ed. Lexml, 2004, São Paulo. CURY, Munir. “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Comentários Jurídicos e Sociais”, 2009. DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 4. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007. DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”, 7. e 8. ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. DIAS, Maria Berenice. “Falando em adoção”. http://www. mariaberenice dias .com.br/pt/vocesabia-falando-em-adocao.cont. , acesso em 24/02/2014. DIAS,Maria Berenice, “adoção e a espera do amor”. http://www.mariaberenicedias. com.br/pt/adocao-e-a-espera-do-amor.cont.; acesso em 24/02/2014. KUSANO, Suely Mitie. “Adoção intuitu personae”. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. f. 62. Disponível em: <http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp009295. pdf>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2014. ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo. “Comentários à Lei Nacional de Adoção – Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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O DESEQUILÍBRIO ENTRE A RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDAS DAS EMPRESAS OPTANTES PELO SIMPLES NACIONAL E DAS EMPRESAS DEVEDORAS DE TRIBUTOS FEDERAIS, SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.

Fernanda Fagundes Veloso Lana46

Introdução

O Simples Nacional consiste em um regime de tratamento diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte, originalmente previsto nos artigos 170, inciso IX e 179 da Constituição federal de 1988.

Não se trata de um novo tributo, e sim um regime de arrecadação tributária criado com o intuito de facilitar o recebimento e a fiscalização por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios dos tributos nele incluídos.

Entretanto, o país está enfrentando uma séria crise na economia, o que vem afetando consideravelmente as empresas brasileiras, principalmente aquelas com menor poderio econômico: as microempresas e empresas de pequeno porte.

Os empresários que dirigem empresas deste porte não têm conseguido honrar com seus compromissos em dia, tornando-se inadimplentes, cujo reflexo imediato perante o Simples Nacional é a possível exclusão da empresa, o que a obriga a retornar ao regime de tributação comum, de

46 Mestre em Direito Público. Professora universitária de Direito Tributário nas Faculdades Integradas Funorte. Advogada

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pagamento individualizado e mais oneroso de todos os tributos.

Aos inadimplentes, caso atendam os requisitos legais, como depósito de uma porcentagem do montante devido, é dada a opção de renegociação da dívida com possibilidade de parcelamento em até 60 meses, o que está na contramão dos ditames constitucionais, visto que às médias e grandes empresas inadimplentes com os tributos federais é dada a oportunidade de renegociarem seus débitos em até 180 meses.

E esse é o ponto crucial a que o presente trabalho se propõe discutir, o tratamento diferenciado dado às médias e grandes empresas para renegociarem e quitarem seus débitos em detrimento do tratamento menos benéfico dado às micro e pequenas empresas na mesma situação de inadimplência, em franco desrespeito aos princípios da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade. 1 O Simples Nacional como subsistema tributário especial

O Simples inicialmente foi regulado pela Constituição Federal de 1988, em seus artigos 170, IX e 179, que previram a criação de tratamento diferenciado, mais benéfico para as microempresas e empresas de pequeno porte.

Para dar aplicabilidade aos ditames constitucionais a Lei 9.317/96 criou um Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – SIMPLES, e mais tarde, a Lei 9.841/99 criou o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.

No ano de 2003, a Emenda Constitucional n. 42 introduziu no capítulo da Constituição Federal que trata do Sistema Tributário Nacional, mais precisamente no artigo 146, inciso III, a alínea “d” e o parágrafo único, que introduziram ordem constitucional para que fosse instituído e efetivamente

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aplicado o tratamento já mencionado àquelas empresas de menor porte (microempresas e empresas de pequeno porte nos termos da lei).

Em 2006, em substituição às legislações ordinárias anteriores, imprescindíveis para a concretização das previsões constitucionais, foi criada a Lei Complementar n. 123 que veio estabelecer normas gerais acerca do tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado àquelas empresas, no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A evolução na regulação desse sistema acompanhou o objetivo de tornar eficazes os princípios constitucionais de favorecimento destas empresas, através da simplificação e redução de obrigações, e ainda, de um sistema jurídico diferenciado.

O Simples Nacional foi criado com o objetivo de proporcionar privilégios fiscais a algumas empresas. Centro de várias discussões é considerado isenção tributária parcial, renúncia fiscal, incentivo extrafiscal, ou, simplesmente, um benefício fiscal. O mais importante é se destacar que não se trata de um novo tributo, pois não há nova obrigação tributária principal além daquelas que já estão reguladas em leis próprias dos impostos e contribuições incluídos no regime (IR, CSLL, PIS/Pasep, Confins, IPI, ICMS, ISS e CPP). Mas, de um sistema unificado de arrecadação, fiscalização e lançamentos de tributos pertencentes à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

O regime, que é opcional, abrange a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário descrito no artigo 966 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil Brasileiro), devidamente registrados, considerados microempresas e empresas de pequeno porte, segundo limites de enquadramento graduados de acordo com a receita bruta

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calculada no ano calendário, sendo o limite da receita bruta anual para microempresas de até R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais), e para as empresas de pequeno porte superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e inferior a R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais).

A Lei Complementar 123/06 prevê ainda um complexo rol de hipóteses de exclusão das empresas do regime, podendo-se destacar a inadimplência, situação que desencadeia uma série de infrações àquela norma.

A administração do regime incumbe ao Comitê Gestor do Simples Nacional – CGSN, que é composto por quatro representantes da Receita Federal, dois representantes dos Estados e do Distrito Federal e dois dos Municípios, a quem compete, segundo artigo 3º, inciso III da Lei 6.038 de 7 de fevereiro de 2007, dentre outras obrigações, regulamentar a exclusão, vedações, tributação, fiscalização, arrecadação e distribuição de recursos, cobrança, dívida ativa, processos administrativos e judiciais do Simples Nacional através de resoluções.

À Receita Federal também cabe papel importante na administração do sistema, já que concentra em suas mãos a organização, análise e consulta, sempre com atuação estritamente vinculada aos ditames legais, sem permitir margem de discricionariedade.

O Simples Nacional pode ser entendido assim, como um sistema tributário simplificado ou um subsistema tributário especial que tem por escopo prestigiar as microempresas e empresas de pequeno porte na administração, arrecadação e lançamento de tributos, de forma unificada e menos onerosa.

Não se pode deixar de destacar aqui a opinião de Robinson Sakiyama Barreirinhas, que entende ter o Poder Constituinte Derivado ceifado a competência dos Estados,

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Distrito Federal e Municípios ao criar o sistema unificado de arrecadação, ao invés de fomentar convênios entre os entes políticos no sentido de unificar os regimes especiais próprios, ou incentivar políticas para o apoio e desenvolvimento em prol dos empreendimentos de menor porte.

Mas, em contrapartida à opinião do respeitado autor, não se deve aceitar a hipótese de que houve uma redução da competência constitucionalmente atribuída aos entes políticos, os quais continuaram a exercer suas competências tributárias, e a criar seus regimes especiais de tributação. Pode-se afirmar que se buscou a concretização de objetivos há muito impostos pela Constituição Federal através da limitação ao poder de tributar.

Com o Simples Nacional criou-se uma nova técnica fiscal para que fosse desburocratizado o recolhimento de vários tributos, que passaram a ser recolhidos em um único documento, simplificando procedimentos referentes a obrigações acessórias, promovendo a desoneração, reduzindo a carga tributária e facilitando a vida das microempresas e empresas de pequeno porte, sem alterar a composição da relação jurídica tributária. 2 O Sistema Tributário Nacional e os princípios da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade

Os princípios constitucionais podem ser definidos como valores éticos, religiosos e culturais que serviram de direcionamento para a atuação do poder constituinte originário e continuam a criar parâmetros para a aplicação das normas jurídicas em nosso ordenamento jurídico.

Os princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. A pontam os rumos a serem seguidos

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por toda a sociedade e obrigatória mente perseguidos pelos órgãos do governo (pode reconstituídos). (ATALIBA, 2001, p. 34).

Dentre os princípios consagrados pela Constituição Federal está o Princípio da Isonomia, vertente primordial do ordenamento jurídico brasileiro, previsto no artigo 5º da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.(BRASIL, 1988)

No âmbito tributário, como limitação

constitucional ao poder de tributar, o princípio está previsto no artigo 150, inciso II da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; (BRASIL, 1988)

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Este princípio veda a discriminação arbitrária entre contribuintes que estejam em situação equivalente, não determina uma paridade absoluta, mas guia-se por uma equivalência entre os contribuintes.

Sobre equivalência assim nos ensina Ives Gandra:

A equivalência é uma igualdade mais ampla, a que se poderia chamar de eqüipolência. A igualdade exige absoluta consonância em todas as partes, o que não é da estrutura do princípio da equivalência. Situações iguais na eqüipolência, mas diferentes na forma, não podem ser tratadas diversamente.(...) Os desiguais, em situações de aproximação devem ser tratados, pelo princípio da equivalência, de forma igual, em matéria tributária, visto que na igualdade absoluta, na equivalência, não existe, mas apenas a igualdade na equiparação de elementos (peso, valor, etc...) (MARTINS, 2007, p. 263 -265)

Este princípio norteia, no Direito Tributário, o

agrupamento de indivíduos segundo suas semelhanças, para que se possa definir o tratamento legal a ser conferido a cada grupo.

A Lei Complementar 123/06, em seu artigo 3º, ao determinar os requisitos para que as empresas se enquadrassem na categoria microempresas ou empresas de pequeno porte, balizou esta seleção de empresas tendo como parâmetro a receita bruta, considerando uma movimentação econômica e financeira pequena, frente aos padrões da economia brasileira.

Os critérios diferenciadores não guardaram pertinência apenas quanto a critérios específicos dessas pessoas jurídicas (no caso do Simples Nacional), mas consideraram também a importância de se valorizar e proteger

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a atividade dessas empresas no cenário econômico nacional, através da criação de um sistema fiscal específico para elas, em atendimento determinação constitucional.

O princípio da razoabilidade implica na avaliação da coerência dos atos jurídicos, em certificar se esses atos foram editados ou não com observância aos princípios e normas do ordenamento jurídico que os regulam.

Este princípio possui destacado papel na ordem constitucional, pois serve para afastar leis e atos normativos que não são razoáveis, como a dispensa de tratamento igual ou desigual ou de finalidade não compatível com o senso comum.

Helenilson Cunha assevera que a interpretação guiada

pela razoabilidade “penetra e constitui uma exigência, não apenas do devido processo legal, mas de todos os princípios e garantias constitucionais autonomamente assegurados pela ordem constitucional brasileira” (2000, p. 83).

As empresas optantes pelo Simples Nacional vem apresentando realidades e, muitas vezes, dificuldades diversas frente ao cenário econômico atual, que em sua maioria exigem na aplicação da lei uma interpretação mais benevolente (e até subjetiva) da situação para que a melhor medida possível seja adotada no intuito de se preservar a empresa, ou dar à ela chance de permanecer em atividade.

Entretanto este não tem sido o posicionamento administrativo e judicial atual, que têm se apegado excessivamente à letra da lei, em detrimento da realização da justiça fiscal entre as empresas optantes pelo Simples Nacional e as demais empresas, como será melhor analisado no tópico seguinte.

O princípio da proporcionalidade visa solucionar conflitos entre direitos fundamentais. Quando para a promoção de um direito fundamental ou interesse coletivo um

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ato restringir outro direito, deve ser aplicada a proporcionalidade na interpretação e aplicação do direito.

A aplicação da proporcionalidade na análise da

colisão entre direitos fundamentais, porém, não implica na exclusão de um dos direitos envolvidos do ordenamento jurídico. Fale-se em dimensão de peso e de relativização, podendo ser aplicados ambos os direitos em conflito, mas não na sua máxima medida.

Deve-se buscar uma relação entre fim a ser alcançado com a intervenção estatal e o meio utilizado, que deve ser o melhor possível, ou seja, deve-se levar em conta a necessidade e adequação da medida.

Não é rara a inadimplência das empresas optantes

pelo Simples Nacional diante da recessão que a economia brasileira vem enfrentando, situação que as levar a recorrer a pedido de socorros fiscais, o que, caso não esteja previsto na lei, é prontamente negado, por falta de previsão legal.

O que os aplicadores do direito vêm ignorando são os

princípios que regem o ordenamento jurídico e o objetivo que ensejou a criação de um regime diferenciado para estas empresas.

Assim, por ignorar qualquer hipótese de concessão de

benefício fiscal advinda de interpretação da lei, valendo-se apenas da aplicação da letra seca da lei ao caso contrato, a administração pública vem desrespeitando a Constituição Federal, desprestigiando o sistema de favorecimento criado pelo Simples Nacional, e ainda vem contribuindo para

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aumentar ainda mais a inadimplência e quebra das microempresas e empresas de pequeno porte.

Os princípios apontados não têm qualquer

incompatibilidade com as normas que criam benefícios fiscais, as quais são movidas pela conveniência política para a concretização de interesses econômicos e sociais, estimulando e beneficiando determinadas situações merecedoras de tratamento privilegiado.

Os privilégios fiscais, ao contrário de comprometer a igualdade tributária implementam-na na prática, já que decorrem da concretização da política fiscal e econômica do Estado, ancorados no interesse social. E, para que realizem a justiça contam com atos de certa discricionariedade, e envolve Juízo de conveniência e oportunidade do gestor do sistema tributário diferenciado. 3 O desequilíbrio entre a renegociação de dívidas das empresas optantes pelo Simples Nacional e das empresas devedoras de tributos federais, segundo os princípios da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade

Apesar da criação de um regime de favorecimento, diante do contexto em que já se registrara grande recessão na economia brasileira, com desastrosos reflexos sobre todos os setores produtivos, que amargam a cada dia extrema dificuldade, mormente as microempresas e empresas de pequeno porte, um número significativo de empresas não mais conseguiram adimplir o pagamento do Simples Nacional, o que acarretou a tomada de providencias pelo órgão gestor com a criação de financiamento para os débitos inadimplidos.

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O Comitê Gestor do Simples Nacional – CGSN através da Resolução n. 94, de 29 de novembro de 2011 (com última atualização feita pela Resolução n. 119 de 19 de dezembro de 2014), criou e regulamentou o parcelamento de débitos tributários apurados no Simples nacional, que poderiam ser quitados em até 60 (sessenta) parcelas.

Diante de tantas obrigações, e com a noticiada queda das vendas, consequência da recessão instalada, fez-se totalmente impossível para as empresas quitarem seus parcelamentos, o que ditou a necessidade de que uma revisão desses parcelamentos, de forma a permitir a sobrevivência da empresa.

Não é demais ressaltar que na consolidação da dívida tributária parcelada, referente aos tributos devidos no regime do Simples Nacional, somam-se os débitos confessados, e a eles são acrescidos juros, multas, custas e emolumentos, sendo a consolidação ato unilateral do fisco, que o contribuinte, no afã de estancar os efeitos da mora e preservar a situação de regularidade fiscal, tão necessária à sua sobrevivência, não contesta, e, assim, com o ato de consolidação, vê-se abruptamente diante de uma prestação inteiramente incompatível com a sua capacidade tributária.

Desnecessário dizer da luta que as empresas, principalmente as optantes pelo Simples Nacional, enfrentam para se manterem ativas nesse cenário de tirania fiscal e crise econômica, pois foi lhe imposto tratamento desigual daquele deferido às empresas optantes por outro regime tributário, no que se refere à oportunidade para regularização e pagamento dos seus créditos, merecendo aqui destacar a criação do Refis da Copa (Lei 12.996/2014), que concedeu descontos significativos e prazo de pagamento em até 180 (cento e oitenta) meses.

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Este tratamento diferenciado, que favorece os maiores e oprime os menores, é intolerável num Estado que tem no princípio da isonomia, um dos seus pilares. Mesmo que ainda se beneficiem de um regime simplificado, diante de uma verificação do fato e da questão em foco, devem eles merecer análise sob uma visão de proporcionalidade.

Face à clara e evidente quebra do princípio da isonomia, bem assim dos abusos e distorções nos cálculos no momento da consolidação da dívida, que resvalam em valores astronômicos, com fixação de parcelas impagáveis, os programas de financiamento operam na contramão da motivação que os fez concebidos, pois colocam em risco a sobrevivência das microempresas e empresas de pequeno porte, que com a prevalência de tais exigências, acabam por encerrar suas atividades, o que, sem dúvida, contribui, ainda mais, para a já combalida economia Nacional, aumentando os índices de desemprego, que é fantasma a aterrorizar a sociedade brasileira.

Faz-se, portanto, necessária uma interferência nesta relação, para que se imponha ao Fisco revisão do financiamento dos seus créditos oriundos do Simples Nacional, de forma a que sejam preservados todos os benefícios do programa de financiamento para se evitar, desta forma, a exclusão das empresas do regime, via de consequência, que fechem as suas portas, em face do inadimplemento de prestações superiores às suas forças.

A recessão veio forte, atingindo empresas e pessoas jurídicas nacionais. Muitos postos de trabalho foram fechados, a inadimplência cresceu vertiginosamente e multiplicaram-se as falências, o que refletiu negativamente na arrecadação do ano de 2014, levando o governo federal brasileiro a instituir programas de parcelamento, tal como ocorrera com a Lei n.º 12.996/2014, que regulou o Refis da Copa.

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A moratória criada pelo diploma legal prevê parcelamento no prazo máximo de 180 (cento o oitenta) meses dos débitos fiscais e previdenciários federais, abarcando débitos remanescentes de parcelamentos anteriores, mesmo na hipótese em que o beneficiário tenha sido excluído do programa.

Trata-se de um tratamento deferido principalmente àquelas empresas em débito com a União, bastante discrepante do tratamento dado às empresas optantes pelo Simples Nacional, que, uma vez inadimplentes, somente podem parcelar seus débitos em, no máximo 60 (sessenta) parcelas.

Considerando os princípios constitucionais da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade, necessária de faz um reexame desses privilégios, concedidos de forma destoante às microempresas e empresas de pequeno porte, já tão sacrificadas pelas contingências econômicas atuais, para que possam renegociar seus débitos, nos mesmos moldes em que os débitos federais.

Embora o princípio da legalidade estrita seja limitação constitucional ao poder de tributar, é regra da melhor hermenêutica que os princípios constitucionais sejam interpretados em seu conjunto, de forma que a realização de uns não se faça com o sacrifício de outros, mormente quando ostentam maior magnitude.

Daí porque ganham foros de importância os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que devem sempre orientar a ação do administrador, o que significa dizer, em matéria de tributação, que a arrecadação de tributo não pode ser feita de forma a alijar do mercado produtivo, o contribuinte de boa fé, que quer cumprir suas obrigações tributárias na extensão de sua capacidade contributiva.

Se a finalidade de um financiamento como o REFIS é justamente combater um crônico déficit existente nas contas

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nacionais, internas e externas, incentivando o pagamento de tributos, mediante a concessão de benefícios, o programa deve ser executado de forma a preservar a um só tempo o aporte de recursos aos cofres públicos, bem assim a sobrevivência das empresas, cuja boa fé há de ser privilegiada, pois certamente não é intenção da União, ao instituir os programas de financiamento direcionados a certas empresas, inviabilizar a permanência no mercado, das demais empresas dele excluídas.

E esta pretensão encontra respaldo na jurisprudência do STJ, que tem se posicionado firme para assegurar a revisão de financiamentos, de forma a assegurar que o parcelamento de débitos inadimplidos se faça com a manutenção do contribuinte no mercado produtivo.

É o que se pode conferir nas ementas transcritas do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial Nº 482.112 - SC (2014/0046001-0), tendo como relator o Ministro Humberto Martins, e no Recurso Especial n. 1.143.216/RS, tendo como relator o Ministro Luiz Fux:

EMENTA PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. OMISSÃO INEXISTENTE. REFIS. EXCLUSÃO DO PROGRAMA. OBSERVÂNCIA DA FINALIDADE DA NORMA. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CABIMENTO. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE. ERRO FORMAL. SÚMULA 7/STJ. 1. Mostra-se despropositada a argumentação de inobservância da cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CRFB) e do enunciado 10 da Súmula vinculante do STF, pois, ao contrário do afirmado pela agravante, na decisão recorrida, não houve declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais

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suscitados, tampouco o seu afastamento, mas apenas a sua exegese. 2. O STJ reconhece a viabilidade de incidir os princípios da razoabilidade e proporcionalidade no âmbito dos parcelamentos tributários, quando tal procedência visa evitar práticas contrárias à própria teleologia da norma instituidora do benefício fiscal, mormente se verificada a boa-fé do contribuinte e a ausência de prejuízo do Erário. 3. Se a conclusão da Corte de origem, firmada em decorrência da análise dos autos, é no sentido de que a exclusão do contribuinte do REFIS mostra-se desarrazoável e desproporcional, porquanto contrária à finalidade do programa de parcelamento, pois nenhum prejuízo causou ao erário – bem ao contrário, lhe é favorável, destaca o acórdão –, estando comprovadas a boa-fé da empresa e a mera ocorrência de erro formal, a modificação do julgado esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. Agravo regimental improvido. "PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. PAES. PARCELAMENTO ESPECIAL. DESISTÊNCIA INTEMPESTIVA DA IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA X PAGAMENTO TEMPESTIVO DAS PRESTAÇÕES MENSAIS ESTABELECIDAS POR MAIS DE QUATRO ANOS SEM OPOSIÇÃO DO FISCO. DEFERIMENTO TÁCITO DO PEDIDO DE ADESÃO. EXCLUSÃO DO CONTRIBUINTE. IMPOSSIBILIDADE. PROIBIÇÃO DO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST

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VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM). (...) 10. A ratio essendi do parcelamento fiscal consiste em: (i) proporcionar aos contribuintes inadimplentes forma menos onerosa de quitação dos débitos tributários, para que passem a gozar de regularidade fiscal e dos benefícios daí advindos; e (ii) viabilizar ao Fisco a arrecadação de créditos tributários de difícil ou incerto resgate, mediante renúncia parcial ao total do débito e a fixação de prestações mensais contínuas.

Os postulados da razoabilidade e da

proporcionalidade são o norte que direciona ao justo e correto. Entre duas soluções ofertadas pelo direito, há de ser prestigiada aquela que leve o ordenamento jurídico a alcançar patamar mais alto no atendimento dos interesses coletivos. Fazer justiça é a missão do intérprete da lei.

Em feliz abordagem do tema, assim afirmou o Ministro Gilmar Mendes :

"Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou a razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador ". (1994, p. 469)

Não há duvida que a razoabilidade, assim como a proporcionalidade consubstanciam verdadeiros princípios norteadores do próprio Estado Democrático de Direito, quando ditam regras de sobrevivência dos direitos constitucionalmente assegurados, de forma a impedir que a realização de um redunde no sacrifício de outro.

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E é de todo irrazoável, que um programa de financiamento que veio, exatamente para permitir a sobrevivência da empresa, leve, pela onerosidade excessiva das parcelas fixadas, ao fechamento desta, sem lhe assegurar o reenquadramento em outro programa do próprio governo, mais acessível à quitação do débito.

Inquestionável, assim, a legitimidade de uma nova interpretação para extensão dos benefícios concedidos aos devedores de tributos federais, ao inadimplente do Simples Nacional, guiada pelos princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade, sem dúvida, atenderá não só o interesse do fisco, mas também manterá a empresa no mercado produtivo, o que é interesse de toda a coletividade. Referências ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2ªed. 2ªtir. atual. São Paulo:Malheiros, 2001, p. 34. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Publicada no diário oficial da União em 05 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm . Acesso em 10 de outubro de 2015. BRASIL. Lei Complementar 123 - institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis no 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999. Publicada em 14 de dezembro de 2006. Disponível em:

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A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO E O DEVIDO

PROCESSO LEGAL

Ana Lúcia Ribeiro Mol47 Fernanda Fagundes Veloso Lana48

Givago Prandini Maia49 Mauro Magno Quadros Ruas50

Introdução

O regime disciplinar diferenciado foi criado para combater a grande onda de criminalidade nas grandes capitais do país, sendo que a maior importância dela é garantir uma maior segurança para os estabelecimentos prisionais do país, além de monitorar os criminosos e defender a ordem pública de integrantes de facções criminosas. O regime disciplinar diferenciado foi instituído pelo poder executivo, pelo projeto nº 5.073/2001, que possibilitou a edição da lei 10.792/2003, a qual modificou a Lei de Execução Penal (Lei. nº 7.210/84), instituindo o regime disciplinar diferenciado.

47 Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós- graduada em Direito Econômico e Empresarial pela Unimontes. Professora e Pesquisadora PROIC-Universal das Faculdades Integradas do Norte de Minas. Procuradora Adjunta de Fazenda do Município de Montes Claros. 48 Mestre em Direito Público. Professora universitária de Direito Tributário nas Faculdades Integradas Funorte. Advogada 49 Mestre em Sistema Constitucional de Garantias de Direitos. Professor Universitário e Advogado. 50 Especialista em Direito Público com Ênfase em Direito Processual e Direito Militar (2013) e Graduado em Direito - Faculdades Integradas Pitágoras (2012). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, Notarial e Registral.

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Para Nucci [...] Esse regime serão encaminhados os presos que praticarem fato previsto como crime doloso (note-se bem: fato previsto como crime e não crime, pois se esta fosse a previsão dever-se-ia aguardar o julgamento definitivo do Poder Judiciário, em razão da presunção de inocência, o que inviabilizaria a rapidez e a segurança que o regime exige), considerado falta grave, desde que ocasione a subvenção da ordem ou disciplina interna, sem prejuízo da sanção penal cabível.

1 Origem do regime disciplinar diferenciado e suas características com as teorias do Direito Penal do inimigo e garantismo penal

O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é um conjunto de regras rígidas, que orientam o cumprimento da pena privativa de liberdade (quanto ao réu já condenado) ou a custódia do preso provisório.

Santos (2011) sustenta que:

O ordenamento jurídico brasileiro não ficou afastado da terrível onda legisferante em torno do chamado direito penal do inimigo. Surge em 2003 a lei 10.792 que alterou a Lei de Execuções Penais e introduziu entre nós o chamado Regime Disciplinar Diferenciado – RDD, que é característica marcante do chamado Direito Penal de terceira velocidade.

O RDD foi implantado, incialmente, no Estado de São

Paulo pela Resolução n° 26, em maio de 2001 e pela Secretaria de Administração Penitenciária. Logo após, surgiu a Lei Federal n° 10.792/03, que implantou, em todo o país, o

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Regime Disciplinar Diferenciado. Não é um regime de cumprimento de pena em acréscimo às penas privativas de liberdade e nem uma nova opção de prisão preventiva ou provisória, mas um regime especial, “caracterizado por maior grau de isolamento do preso e de restrições ao contato com o mundo exterior, a ser aplicado como sanção disciplinar ou como medida de caráter cautelar, tanto para ao condenado como para ao preso provisório, nas hipóteses previstas em lei”. (MIRABETE, 2008, p. 149).

Como apresenta Zaffaroni (2002, apud SANTOS, 2011), “o direito penal de autor considera a conduta como um simples sintoma de uma personalidade inimiga ou hostil ao direito. O delinquente é um ser perigoso”.

Afirma Zaffaroni (2002, apud SANTOS, 2011), que o RDD serve para “abrigar o preso provisório ou condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”.

Por sua vez, Santos (2011) entende que “pensamos tratar tal situação específica da punição não pelo fato praticado, regra do nosso ordenamento jurídico, mas pela análise do autor como característica marcante do direito penal do inimigo”.

Para Marcão (2010), a disciplina é inspirada em vários fatores, como por exemplo, na ordem, nas obediências às regras, nas autoridades, nos agentes e nos trabalhos internos dos presos, ou seja, em conformidade com o art. 44 da Lei de Execução Penal (LEP), que dispõe que: “a disciplina consiste na colaboração com a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho”.

Cada estado brasileiro tem autonomia para legislar a respeito de Direito Penitenciário, uma vez que o art. 24, I da CRFB/88 assim autoriza.

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Com a tutela constitucional, um dos primeiros estados a adotar o RDD foi São Paulo, com a justificativa que seus presos seriam perigosos e seus atos enquadravam-se no tipo do art.50 da LEP, in verbis:

Art. 50 - Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: I - incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; II - fugir; III - possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; IV - provocar acidente de trabalho; V - descumprir, no regime aberto, as condições impostas; VI - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V do Art. 39 desta Lei.

Observa-se que o RDD está previsto no art. 52 e incisos

da LEP, conforme segue:

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I-duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II- recolhimento em cela individual; III- visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV- o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. § 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou

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condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentam alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. § 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

Com a utilização do Regime Disciplinar Diferenciado,

os presos_ considerados de alta periculosidade_ ficarão presos, isoladamente, sem direito a visitas íntimas. Muitos doutrinadores e constitucionalistas não viram, com bons olhos, essa transformação na LEP porque, para boa parte deles, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, opinião corroborada pelo Conselho Nacional de Política Criminal. Em sentido contrário, entende Nucci (2011, p. 419-420):

Em face do princípio constitucional da humanidade, sustentando ser inviável, no Brasil, a existência de penas cruéis, debate-se admissibilidade do regime disciplinar diferenciado. Diante das características do mencionado regime, em especial, do isolamento imposto ao preso durante 22 horas por dia, situação que pode perdurar por até 360 dias, há argumentos no sentido de ser essa prática uma pena cruel. Pensamos, entretanto, que não se combate o crime organizado, dentro ou fora dos presídios, com mesmo tratamento destinado ao delinquente comum. Se todos os dispositivos do Código Penal e da Lei de Execução Penal fossem fielmente cumpridos, há muitos anos, pelo Poder Executivo, encarregado de construir, sustentar e administrar os estabelecimentos penais,

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certamente o crime não estaria, hoje, organizado, de modo que não haveria necessidades de regimes como o estabelecido pelo art. 52 da Lei de Execução Penal.

Segundo Nucci (2011), o autor de delito deve gozar de

tratamento normal, mas aqueles que não convergem com o Estado Democrático de Direito não são merecedores do mesmo tratamento exatamente porque não são pessoas com características semelhantes aos demais delinquentes. Com efeito, continua Nucci (2011, p. 420):

A realidade distanciou-se da lei, dando margem à estruturação do crime, em todos os níveis. Mas, pior, organizou-se a marginalidade dentro do cárcere, o que é situação inconcebível, mormente se pensarmos que o preso deve estar, no regime fechado, à noite, isolado em sua cela, bem como, durante o dia, trabalhando ou desenvolvendo atividades de lazer ou aprendizado. Diante da realidade, oposta ao ideal, criou-se o RDD. Tanto quanto a pena privativa de liberdade, é o denominado mal necessário, mas não se trata de uma pena cruel. Proclamar a inconstitucionalidade desse regime, fechando os olhos aos imundos cárceres aos quais estão lançados muitos presos no Brasil é, com a devida vênia, uma imensa contradição.

Observa-se que a criação do Regime Disciplinar

Diferenciado, que tem suas raízes fundadas no Direito Penal do Inimigo “pune o delinquente não pelo fato que o mesmo praticou regra do ordenamento jurídico brasileiro, mas pelo perigo que o mesmo pode causar, características da teoria do Direito Penal do Inimigo”, (ALENCAR, 2010). Sustenta Alencar (2010):

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A redação do artigo 52 da Lei de Execuções Penais, depois das modificações, estabelece o isolamento celular do apenado que comete o delito doloso ou falta grave, por até um ano, como possibilidade de repetição por um prazo igual a um sexto do prazo estabelecido inicialmente. Além disso, impõem-se restrições quanto à possibilidade de receber visitas.

A LEP obedece aos parâmetros dos princípios da

reserva legal e da anterioridade da norma, ou seja, não há crime, sem lei anterior que o defina, nem pena, sem prévia cominação legal, conforme art. 5°, XXXIX, da CRFB/88, e art. 1° do CP que afirma a impossibilidade de aplicação de sanção disciplinar ou falta grave sem a existência de previsão legal ou regulamentar. Dessa forma Alencar justifica o RDD. Em sentido contrário, pondera Iemini (2010):

A busca do imediatismo na punição de certos crimes, cria no legislador uma ânsia em contentar a sociedade que demonstra repúdio público, através dos meios de comunicação, às suas práticas. Desta maneira, leis são editadas para dar a falsa impressão de segurança restaurada, aplacando a ira da população instigada pelos meios midiáticos, o que para o legislador, tem justificado a perda de alguns benefícios e até mesmo o cerceamento de outros.

Como se percebe, Iemini é contrário à prisão em regimes mais duros aos delinquentes que não obedecem às normas estabelecidas pela lei pátria, ou seja, os mesmos que para Jakobs não são cidadãos, mas inimigos.

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A aplicação do RDD é polêmica certa entre os doutrinadores. Com efeito, o citado Nucci entende que o regime especial serve:

Para atender às necessidades prementes de combate ao crime organizado e aos líderes de facções que, dentro dos presídios brasileiros, continuam a atuar na condução dos negócios criminosos fora do cárcere, além de incitarem seus comparsas soltos à prática de atos delituosos graves de todos os tipos. (NUCCI, 2008, p. 392 – 393).

uitos políticos entendem que o Direito Penal seria a solução para os problemas de um país que não consegue conter a criminalidade. Talvez o ideal fosse buscar soluções diferentes e fora do penal como educação de qualidade, orientação às secretarias de Defesa Social dos Estados, enfim, a busca de uma real reflexão acerca das causas efetivas geradoras de situações delituosas. Haber, posicionando-se contra a edição de leis que não reflitam, seriamente, sobre o fulcro do problema da criminalidade, assevera:

As consequências já são conhecidas: apela-se ao direito penal como forma de resolução do problema da criminalidade, em detrimento do seu enfretamento por meio de políticas públicas que estabeleçam em amplo diagnóstico o problema. Mais uma vez, verifica-se a existência de uma legislação que solapa as garantias fundamentais e provoca relativização das regras de imputação e dos princípios processuais. (HABER, 2010 apud, IEMINI, 2010).

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Como se observa, há várias correntes desfavoráveis à teoria do Direito Penal do Inimigo e a aplicação do regime especial criado para conter os presos de alta periculosidade. Para Moreira, citado por Alencar (2010):

[...] tais dispositivos do Regime Disciplinar Diferenciado são inconstitucionais: “Cotejando-se, portanto, o texto legal e a Constituição Federal, concluímos com absoluta tranquilidade serem tais dispositivos flagrantemente inconstitucionais, pois no Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art.5.º, XLVII, alínea “e”, CF/88), assegurando-se ao preso (sem qualquer distinção, frise-se) o respeito à integridade física e moral (art. 5.º, XLIX) e garantindo-se, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art.5.º, III).

O art. 5°, III e XLIX da CRFB/88 rezam, respectivamente, que: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; e “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Dessa forma, percebe-se que o RDD representa um modo de intervenção estatal na punição dos cidadãos considerados perigosos e inimigos o que se revela, no mínimo, polêmico. É importante salientar que “ninguém contesta que o Estado deve intervir, com firmeza, para evitar danos para o patrimônio e vida das pessoas. Mas dentro do Estado de Direito até mesmo o Direito tem limites”. (GOMES apud ALENCAR, 2010).

“Nesse contexto, são inadmissíveis, em um Estado de Direito, normas contrárias às conquistas históricas dos direitos fundamentais. O Direito Penal do Inimigo não encontra guarida no sistema jurídico”. (ALENCAR, 2010).

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2 Os princípios constitucionais

A evolução dos direitos e garantias fundamentais passou por grandes transformações até se chegar aos dias de hoje como pilares de um Estado Democrático de Direito. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representou um grande marco para a sociedade e para o ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais são disposições declaratórias, ou seja, definem para o Estado o que é mais importante para o ordenamento jurídico e o que deve ser objeto para proteção consignada na Norma Fundamental (MELO, 2005). Ferrajoli (2006, p. 74) apresenta uma série de princípios axiológicos acerca dos direitos fundamentais:

Denomino garantista, cognitivo ou de legalidade estrita o sistema penal SG, que inclui todos os termos de nossa série, trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível. Sua axiomatização resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, que expressarei, seguindo uma tradição escolástica, com outras tantas máximas latinas: Nulla poena sine crimine, Nullum crimen sine lege, Nulla lex (poenalis) sine necessitate, Nulla necessitas sine injuria, Nulla injuria sine actione, Nulla actio sine culpa, Nulla cula sine judicio, Nulla judicium sine accusatione, Nulla probatio sine defensione.

O primeiro axioma, - nulla poena sine crimine,

significa que somente poderá ser aplicada a pena quando houver o crime que deverá estar tipificado na lei penal.

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O segundo axioma, nullum crimen sine lege, entende que o ordenamento jurídico somente poderá proibir um comportamento que comporte ameaça aos bens jurídicos considerados fundamentais.

O terceiro axioma que Ferrajoli apresenta é nulla lex (poenalis) sine necessitate; as condutas tipificadas, em lei, não devem restringir/ignorar o caráter pessoal do agente, seu modo de ser.

O quarto axioma, nulla necessitas sine injuria; significa que exteriorizados mediante uma ação.

As outras ideias garantistas apresentadas por Ferrajoli são de caráter acusatório, como: nulla culpa sine judicio, o juiz deve ser imparcial e competente para o caso; nullum judicium sine accusatione, não se deve confundir o órgão de acusação com o órgão julgador; nulla accusatio sine probatione, referindo-se ao ônus da prova que deve ser da acusação e, por fim, nulla probatio sine defensione, devendo ser assegurado ao agente causador da infração penal todos os direitos como ampla defesa e contraditório, bem como todos os recursos a ele inerentes (GRECO, 2011).

A CRFB/88 é de aplicabilidade rápida, ou seja, não é necessária a atuação do Poder Legislativo para que possam ser exercidos os direitos e garantias fundamentais expressos na Carta Magna.

Ferrajoli (2006, p. 271) apresenta o conceito de garantismo:

Esta legitimidade, como mostrarei nos parágrafos 37 e 57, não é “democrática no sentido que não provém do consenso da maioria. E, sim, “garantista”, e reside nos vínculos impostos pela lei a função punitiva e a tutela dos direitos de todos. “Garantismo, com efeito, significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais,

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cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito a sua verdade. É precisamente a garantia destes direitos fundamentais que torna aceitável por todos, inclusive pela minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e o próprio princípio majoritário.

O direito à vida deve ser entendido como o mais

importante de todos, por razões óbvias e esse exercício deve ser gozado, com dignidade, como está explícito no art. 1°, III da CRFB /88 que reflete o princípio da dignidade da pessoa humana.

O princípio da igualdade, por sua vez, deriva de uma concepção clássica de justiça e proíbe qualquer tratamento desigual nos mesmos casos e na mesma situação.

A igualdade refere-se, também, à isonomia entre homens e mulheres_ prevista no art. 5°, inciso I, da CRFB /88_ não devendo haver discriminação em relação ao sexo, exceto nos casos em que a Carta Magna cuida de discriminá-los_ art. 7°, XVIII e XIX, art. 40, § 1°, 143, §§ 1° e 2° e 201, § 7°_ e quando a legislação infraconstitucional utilize a discriminação como forma de atenuar os desníveis porventura existentes.

Ferrajoli entende que o princípio da legalidade deve ser interpretado de forma crítica racional e o cunha de técnica legislativa tendente a excluir. O jurista italiano entende assim, in verbis, que o princípio da legalidade estrita:

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[...] é proposto como uma técnica legislativa espécie dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e, portanto, com caráter “constitutivo” e não “regulamentar” daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os “desocupados” e os “vagabundos”, os “propensos a delinquir”, os “dedicados a tráficos ilícitos”, os “socialmente perigosos” e outros semelhantes. (FERRAJOLI, 2006, p. 31).

A Carta Maior chama de cláusulas pétreas os comandos que considera imutáveis, dada sua importância. Neste caso, a cláusula pétrea da nossa Constituição não admite qualquer tipo de distinção dos seres no que refira à dignidade da pessoa humana. Isso porque entende que:

O caminho para a redução do cidadão á nuda vita será percorrido mais rapidamente onde o contexto do Estado de direito precedente for mais débil e vice-versa. Uma mesma lei pode representar uma gravíssima lesão aos direitos humanos fundamentais em um contexto institucional débil (polícias corruptas, poder judiciário com escassa independência, tradição pouco democrática, ampla exclusão social, distribuição muito polarizada da riqueza, racismo, xenofobia, sexismo, homofobia e outros preconceitos muito latentes etc.) e, ao contrário, representar uma lesão de pouca gravidade no contexto oposto. (ZAFFARONI, 2007, p. 153).

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Assim, o juiz e jurista argentino é adepto da ideia de que deve haver rigidez constitucional, no tocante a modificação de pontos essenciais formadores, e que representem fundamentos do Estado Democrático de Direito. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais precisamente em seu art. 5°, enuncia que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”; referindo-se à proibição de qualquer tipo de ameaça ou tortura que possa reprimir física e moralmente o cidadão. A declaração criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) foi de fundamental importância para proteção da dignidade da pessoa humana. NA LIÇÃO DE MORAES (2011, P. 24):

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

O pacto de San José da Costa Rica, denominado

de Convenção Americana de Direitos Humanos, criado em 1969, tratou de questões relacionadas ao direito à vida, à liberdade e aos direitos e às garantias processuais e penais, além do direito de locomover-se.

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Desse modo, verifica-se uma preocupação internacional com o tema dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, bem como sua efetividade e real conscientização a respeito de sua importância.

Conforme as lições de Bobbio (1982, p. 49, apud GRECO, 2011, p. 07):

As normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento possui uma norma fundamental, que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado de ordenamento.

Em âmbito penal, a preocupação com direitos

fundamentais é tão clara que o jurista italiano Luigi Ferrajoli chamou-a de Garantismo Penal, matéria que será analisada no próximo tópico.

3 Posicionamento dos Tribunais sobre o Regime Disciplinar Diferenciado

No Habeas Corpus 44.049-SP, a defesa sustentou, dentre outras coisas, a inconstitucionalidade do Regime Disciplinar Diferenciado, alegando violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como a proibição de submissão à tortura e ao tratamento desumano e degradante.

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No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, entendeu pela constitucionalidade do RDD relatando que:

Com efeito, o regime disciplinar diferenciado não fere qualquer princípio ou norma constitucional, não acarretando a sua imposição cumprimento de pena de forma cruel degradante ou desumana. Outrossim, não contraria regras internacionais sobre a dignidade humana, nem mesmo mencionadas na contrariedade apresentada. Por outro lado, e contrariamente ao sustentado, prestigia o princípio da individualização do cumprimento da pena, uma vez que permite tratamento penitenciário desigual a presos desiguais, seja pela prática de faltas disciplinares graves, seja por seu envolvimento com o crime organizado, seja, por fim, pelo alto risco que representam para a ordem e a segurança da sociedade e dos presídios comuns. Anote-se que o regime diferenciado não suprime direitos do preso, limitando-se a restringi-lo ao que se verifica da leitura ao art. 52; I, II, III e IV, da Lei n° 7.210/83e art. 5, II a V, da Lei n° 10.792/2003. Tais restrições (recolhimento a cela individual, limitação do número de visitas e do número de horas de banho de sol), ao que se verifica, não são, evidentemente, caracterizadoras de tratamento desumano ou degradante, restringindo somente a liberdade de locomoção do preso no interior do presídio, com a finalidade de punição pelas faltas graves por ele praticadas (art. 52, caput), ou de acautelamento da administração penitenciária contra a sua potencial periculosidade (art. 52, § 1°e 2°, da LEP).

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Nesse sentido, no HC 40.300- RJ decidiu a 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça:

O Regime Disciplinar Diferenciado é previsto, portanto, como modalidade de sanção disciplinar (hipótese disciplinada no caput do art. 52, da LEP) e, também, como medida cautelar (hipóteses dos §§ 1º e 2º da LEP), caracterizando-se pelas seguintes restrições: permanência do preso em cela individual, limitação do direito de visita e redução do direito de saída da cela, prevista apenas por 2 (duas) horas. Assim, não há falar em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), à proibição da submissão à tortura, a tratamento desumano e degradante (art. 5º, III, da CF) e ao princípio da humanidade das penas (art. 5º, XLVII, da CF), na medida em que é certo que a inclusão no RDD agrava o cerceamento à liberdade de locomoção, já restrita pelas próprias circunstâncias em que se encontra o custodiado, contudo não representa, per si, a submissão do encarcerado a padecimentos físicos e psíquicos, impostos de modo vexatório, o que somente restaria caracterizado nas hipóteses em que houvesse, por exemplo, o isolamento em celas insalubres, escuras ou sem ventilação. Ademais, o sistema penitenciário, em nome da ordem e da disciplina, bem como da regular execução das penas, há que se valer de medidas disciplinadoras, e o regime em questão atende ao primado da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a severidade da sanção. Outrossim, a inclusão no RDD não traz qualquer mácula à coisa julgada ou ao princípio da segurança jurídica, como quer fazer crer o impetrante, uma vez que, transitada em julgado a sentença condenatória,

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surge entre o condenado e o Estado, na execução da pena, uma nova relação jurídica e, consoante consignado, o regime instituído pela Lei n.º 10.792/2003 visa propiciar a manutenção da ordem interna dos presídios, não representando, portanto, uma quarta modalidade de regime de cumprimento de pena, em acréscimo àqueles previstos pelo Código Penal (art. 33, CP). Pelo mesmo fundamento, a possibilidade de inclusão do preso provisório no RDD não representa qualquer ofensa ao princípio da presunção de inocência, tendo em vista que, nos termos do que estabelece o parágrafo único do art. 44 da Lei de Execução Penal, "estão sujeitos à disciplina o condenado à pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos e o preso provisório". (...) Por fim, considerando-se que os princípios fundamentais consagrados na Carta Magna não são ilimitados (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas), vislumbra-se que o legislador, ao instituir o ora combatido Regime Disciplinar Diferenciado, atendeu ao princípio da proporcionalidade. Alexandre de Moraes, em sua obra "Constituição do Brasil Interpretada", consigna que "a simples existência de lei não se afigura suficiente para legitimar a intervenção no âmbito dos direitos e liberdades individuais. É mister, ainda, que as restrições sejam proporcionais, isto é, que sejam adequadas e justificadas pelo interesse público e atendam ao critério da razoabilidade. Em outros termos, tendo em vista a observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, cabe analisar não só a legitimidade dos objetivos perseguidos pelo legislador, mas também a necessidade de sua utilização, isto é a ponderação entre a restrição a ser imposta aos cidadãos e os objetivos

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pretendidos"(in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional , 4ª edição, Editora Atlas S.A., 2004, p. 170). Dessa forma, tenho como legítima a atuação estatal ao instituir o Regime Disciplinar Diferenciado, tendo em vista que a Lei n.º 10.792/2003 busca dar efetividade à crescente necessidade de segurança nos estabelecimentos penais, bem como resguardar a ordem pública, que vem sendo ameaçada por criminosos que, mesmo encarcerados, continuam comandando ou integrando facções criminosas as quais atuam tanto no interior do sistema prisional – liderando rebeliões que não raro culminam com fugas e mortes de reféns, agentes penitenciários e/ou outros detentos – quanto fora, ou seja, em meio à sociedade civil. Mais uma vez utilizando os percucientes ensinamentos do já citado Alexandre de Moraes (obra mencionada, p. 169), vale registrar que "os direitos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito”.

Com todo exposto, é correto afirmar que, diante dos

julgados, há convergência na jurisprudência sobre a constitucionalidade do regime disciplinar diferenciado, sendo esse considerado uma forte arma no combate às organizações criminosas, que atuam dentro dos presídios, agindo como um meio para alcançar a almejada segurança garantida a todos no art. 5 º da Constituição Federal.

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Considerações finais A instituição do Regime Disciplinar Diferenciado,

no ordenamento jurídico brasileiro, não viola a Constituição. Constitui forma proporcional de resposta penal, em casos graves que, ao contrário de ofender, concretiza a garantia constitucional da individualização da pena, dentro da liberdade de conformação deixada ao legislador ordinário. Cuida de hipótese de reserva legal simples, dentro de uma relação de especial sujeição e consiste em instrumento necessário e adequado, frente a certas práticas criminosas, nomeadamente em casos de faltas graves, risco para a segurança, ou, ainda, quando o sujeito integrar organização criminosa, quadrilha ou bando, podendo tais condutas ou situações ser objeto de atuação sancionatória por parte das autoridades responsáveis pela execução. Referências ALENCAR, Antônia Elúcia. A inaplicabilidade do direito penal do inimigo diante da principiologia constitucional democrática. Revista dos Tribunais – Ano-1999 – maio de 2010 – vol. 895. Disponível em: <http://www.idecrim.com.br/index.php/artigos/76-a-inaplicabilidade-do-direito-penal-do-inimigo-diante-da-principiologia-constitucional-democratica>. Acesso em 01 de mai. 2013. BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. A constitucionalidade do regime disciplinar diferenciado na execução penal. Revista de Doutrina, Porto Alegre, edição 17, 25 abr. 2007. Disponível em: < http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.r

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evistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao017/Jose_Baltazar.htm>. Acesso em 31 ago. 2013 BORTOLOTTO, Gilmar. Regimes Diferenciados, igualdade e individualização. Disponível em: <http://www.memorycmj.com.br/cnep/palestras/gilmar_bortolotto.pdf.>. Acesso em: 31 ago. 2013. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm.> Acesso em: 16 de out. 2011. BRASIL. Lei nº 10.792, de 1º de Dezembro de 2003. Altera a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.792.htm>. Acesso em: 01 de mai. 2013. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 01 de mai. 2013. GOMES, Luís Flávio. Legislação Inglesa Antiterror Não Vale. Disponível em: <http: //www.juspodivm.com.br/i/a/%7B3971CBDC-8395-4372-8A33 DA8DD393B795%7D_terrorismo-luiz-flavio.pdf> apud ALENCAR, Antônia Elúcia. A inaplicabilidade do direito penal do inimigo diante da principiologia constitucional democrática. Revista dos Tribunais – Ano-1999 – maio de 2010 – vol. 895. Disponível em: <http://www.idecrim.com.br/index.php/artigos/76-a-inaplicabilidade-do-direito-penal-do-inimigo-diante-da-principiologia-constitucional-democratica>. Acesso em 01 de mai. 2013.

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HABER, Carolina Dzimidas. Reflexos do direito penal do inimigo na realidade brasileira. 2010. Disponível em: http://www.direito.usp.br/eventos/pet/carolina.pdf. apud IEMINI, Matheus Magnus Santos. Direito penal do inimigo: Sua expansão no ordenamento jurídico brasileiro. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 75, 01/04/2010 Disponível em: <http: //www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7619>. Acesso em 01 de mai. 2013. IEMINI, Matheus Magnus Santos. Direito penal do inimigo: Sua expansão no ordenamento jurídico brasileiro. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 75, 01/04/2010 Disponível em: <http: //www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7619>. Acesso em 13 de abr. 2013. MARCÃO, Renato. Curso de execução penal/ Renato Marcão. – S. ed. Ver. E atual. – São Paulo: Saraiva. 2010. RUAS, Mauro Magno Quadros. Aplicação do Direito Penal do Inimigo no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2012. Monografia (apresentada ao final do curso de graduação em Direito)- Faculdades Integradas Pitágoras, Montes Claros, 2012. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial/ Guilherme de Souza Nucci.- 4. ed.rev., atual. Eampl.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial/ Guilherme de Souza Nucci.- 7. ed.rev., atual. Eampl.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. SANTOS, Eric de Assis. Discutindo a terceira velocidade do direito penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2800, 2 mar. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/18603>. Acesso em: 16 abr. 2013.

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OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA: ORDEM

ECONÔMICA E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

Fernanda Fagundes Veloso Lana51 Jane Viviane da Silva52

Jairo Farley Almeida Magalhães53 Kátia Suely de Melo Gusmão54

Maria Inês Gomes da Silva55 Roberto Ribeiro Lopez56

Introdução

A obsolescência programada consiste numa série

de práticas cujo objetivo é levar o consumidor a substituir um produto por outro em um prazo que possibilite a manutenção do ritmo de produção e crescimento da indústria. Tal substituição pode ser promovida por meio da simples inovação tecnológica, do apelo moral à novidade ou da diminuição proposital da vida útil do bem, programada em sua fabricação.

51 Mestre em Direito Público. Professora universitária de Direito Tributário nas Faculdades Integradas Funorte. Advogada 52 Advogada. Especialista em Direito. Professora do Curso de Direito da FUNORTE. 53 Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas. 54 Especialista em Docência do Ensino Superior. Professora Universitária e Coordenadora Adjunta do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas- FUNORTE. 55 Advogada. Professora das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE e da Unimontes. 56 Especialização em Direito Econômico e Empresarial pela Universidade Estadual de Montes Claros,(2009). Assessor Jurídico da Prefeitura Municipal de Montes Claros. Professor Universitário.

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Periodicamente aparelhos perdem seu valor e são superados poucos meses depois de serem anunciados, com grande alvoroço, pela imprensa. Não é apenas a fragilidade física dos produtos que induz a sua rápida substituição. A campanha ideológica promovida pelos fabricantes leva a certo constrangimento pessoal em se manter apegado ao que é velho.

O paradigma de pouca racionalidade, criado pela propaganda na sociedade de consumo, é terreno fértil para a perpetuação das práticas comerciais abusivas que são objeto deste trabalho. A situação é presente no cotidiano das pessoas que, por muitas vezes, tornam-se vítimas sem se darem conta.

Não se poderia esperar que os empresários agissem, voluntariamente, de outra forma no atual cenário capitalista, uma vez que seu objetivo é o lucro. Por outro lado, é necessário observar as diversas implicações trazidas por esse comportamento. Essas abrangem vários fatores sociais e, consequentemente, múltiplos pontos de relevância jurídica: as relações de consumo, o direito empresarial, o direito ambiental, a ética no exercício profissional.

As relações de consumo, mais visivelmente atingidas pelas práticas em estudo, encontram-se no centro deste trabalho. Para promover o equilíbrio entre fornecedor e consumidor, a lei descreve determinadas práticas como abusivas. São ações imorais economicamente, que deixam pouca possibilidade de defesa para as pessoas comuns e entre as quais a literatura jurídica cita a obsolescência programada.

Para compreender o fenômeno da obsolescência programada, é preciso conhecer a sua história, que se confunde com o próprio caminho da indústria a partir da Revolução Industrial. Entretanto, foi a partir da Crise de 1929 que a necessidade de aumentar a produção e o consumo deu contornos mais definidos à prática em estudo.

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O consumo é algo inseparável do ser humano, por ser aspecto presente em todos os momentos históricos. Já o consumismo, a própria sociedade de consumo e sua estrutura são manifestações mais recentes, relacionadas à coletividade. Tal sociedade é o cenário apropriado para o desenvolvimento das formas de obsolescência aqui retratadas e que será, também, demonstrada.

São diversos bens protegidos pelo direito dos envolvidos; entre eles a boa-fé nas relações de consumo e a preservação do meio ambiente. Em sentido contrário, a estabilidade da indústria também é necessária para o bem estar social, já que o desenvolvimento é posto como objetivo das nações até em tratados internacionais. O desafio para a Política e o Direito é buscar um ponto de equilíbrio entre esses bens.

É importante ressaltar que alguns autores fazem diferenciação no uso da expressão obsolescência programada e obsolescência planejada. Os conceitos representariam, respectivamente, a inutilização em razão do desgaste artificial e a inutilização em razão da inovação. Outros autores, entretanto, usam as expressões como sinônimas, posicionamento que adotaremos, sendo as possíveis diferenciações realizadas quando for necessário.

1 Aspectos históricos

Giles Slade (2007), em sua obra Made to Break, traça uma linha histórica sobre a prática em estudo, principalmente da perspectiva norte-americana. Para Slade, os estadunidenses não só foram os inventores da obsolescência programada, como do próprio conceito de descartabilidade.

O uso da palavra "obsolescência" surge, ainda conforme o autor, no começo do século XX, para se referir a

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aparelhos domésticos fora de moda. Entretanto, o grande marco para o início do uso do termo teria sido a introdução de partida elétrica nos automóveis em 1913. Com essa mudança, todos os outros carros se tornaram ultrapassados, e as pessoas passaram a optar por esse conforto. Essa primeira forma pode ser chamada de obsolescência em razão de inovação tecnológica.

Seguindo o citado quadro histórico de Slade (2007), a segunda forma da obsolescência surge por volta de 1923. Naquele ano, os executivos das grandes montadoras de veículos perceberam que o simples desgaste natural, provocado pelo uso dos seus produtos, não ocorreria em tempo curto o bastante para promover a sua substituição.

A estratégia adotada foi adaptar o costume da indústria da moda. Com o foco em alterações estéticas, deram aos carros uma aparência mais elegante que a dos seus antecessores. Assim, os consumidores não trocariam seus veículos apenas em razão da necessidade ou de inovações tecnológicas relevantes, como no caso da introdução da partida elétrica. Da mesma forma como se fazia com as roupas, as pessoas estariam dispostas a pagar por mais “estilo”.

Tal manifestação pode ser chamada de obsolescência psicológica ou dinâmica. A prática de inovação anual dos modelos de carros que perdura até os dias atuais faz parte do pensamento iniciado nessa época. Em pouco tempo fabricantes de outros produtos, como rádios e relógios, estavam fazendo o mesmo, considerando o sucesso da técnica na indústria automotiva.

A instabilidade trazida pela Crise de 1929, que tem como termo inicial a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, provocou significativa redução na demanda por produtos industrializados. Esse foi o cenário histórico da

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inauguração de mais uma forma de obsolescência, relacionada diretamente à manipulação do tempo de vida útil dos produtos.

Os fabricantes tomaram a atitude de economizar na matéria-prima para compensar os prejuízos trazidos pela crise. O uso de materiais inferiores, entretanto, fez com que eles percebessem outro fato: a fragilidade dos novos produtos poderia ser lucrativa.

Um dos exemplos mais conhecidos da obsolescência no século XX foi registrado nesse contexto. Trata-se do caso do Cartel Phoebus, um conjunto de acordos obscuros e ilegais entre fabricantes realizados em Genebra. O objetivo era encurtar o tempo de vida útil das lâmpadas elétricas. Um limite de mil horas de duração por lâmpada foi estabelecido, mesmo que a tecnologia da época já permitisse produtos com qualidade superior. (SILVA, 2012).

Desse ponto em diante, ainda conforme Slade (2007), a publicidade dos produtos industrializados passou a ser caracterizada por um rompimento com a tradição e o estímulo à compra repetitiva. As pesquisas envolvendo a fabricação de novos produtos começaram a levar em consideração a duração máxima de cada componente.

Desde aquela época, os primeiros críticos dessas práticas comerciais começaram a surgir. As principais discussões eram de natureza ética, relacionadas à manipulação dos sentimentos do consumidor em relação à durabilidade e a necessidade de substituição dos bens adquiridos.

Por outro lado, nem todos viam a obsolescência programada como algo exclusivamente ruim ou lesivo ao consumidor. O próprio primeiro registro teórico sobre o tema, realizado pelo economista Bernard London, em 1933, trata da obsolescência programada como uma forma viável de diminuir os impactos da crise econômica, gerar empregos e

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estimular o crescimento da indústria. (SLADE, 2007). Trata-se, então, de assunto que divide opiniões.

Hoje a maior parte das práticas citadas perdura na indústria, se manifestando das mais diversas formas. Além das críticas aos aspectos éticos, também há questões ambientais a serem consideradas, visto que a preocupação com o meio-ambiente e com o equilíbrio entre a preservação deste e o desenvolvimento econômico são pautas largamente presentes desde o final do século XX.

2 O consumo, o consumismo e a obsolescência programada

O consumo, como foi dito, é aspecto inseparável da história humana. Salvo algumas exceções, consumir é algo que o homem faz de forma rotineira, ato ao qual não se dá muita atenção, ou se faz algum tipo de planejamento. Trata-se de comportamento estreitamente ligado às próprias funções biológicas dos organismos. Nas palavras do sociólogo Zygmunt Bauman (2008, p. 38):

Por toda a história humana, as atividades de consumo ou correlatas (produção, armazenamento, distribuição e remoção de objetos de consumo) têm oferecido um suprimento constante de "matéria-prima" a partir da qual a variedade de formas de vida padrões de relações inter-humanas pôde ser moldada, e de fato o foi, com a ajuda da inventividade cultural conduzida pela imaginação.

Considerando o consumo como arranjo de vontades e desejos humanos, mais relacionados a aspectos individuais, pode-se dizer que seja até mesmo neutro quanto à

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ordem política vigente. O consumismo, por outro lado, está relacionado a aspectos coletivos e surge no momento histórico em que o consumo passa a ocupar o papel social anteriormente exercido pelo trabalho (BAUMAN, 2008).

Durante a modernidade sólida, que é, na definição de Bauman (2008), o período que se inicia nos séculos XVI e XVII e vai até meados do século XX, o consumo era voltado para a segurança. Os bens produzidos, nessa época, tinham como principal objetivo a durabilidade. Quem os possuísse, em maior número, estava mais protegido. Não havia grande interesse ao prazer imediato trazido pelo consumo.

O citado estilo de vida não foi compatível com uma sociedade de consumidores. Tal sociedade tem como característica a mutabilidade de aspirações. A intensificação e urgência dos desejos humanos eram necessárias ao mercado para promover a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-las.

Novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua vez exigem novas necessidades e desejos; o advento do consumismo augura uma era de “obsolescência embutida” dos bens oferecidos no mercado e assinala um aumento espetacular na indústria de remoção do lixo. (BAUMAN, 2008, p. 45).

Esse período, nomeado pelo sociólogo como modernidade líquida, é um momento no qual não existe foco em planejamento e armazenamento de longo prazo. Os bens perdem seu valor com rapidez e a sociedade aparece imersa em um imediatismo, não há espaço para demora. Muito mais

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do que adquirir, a ordem econômica, do nosso século e do passado, é baseada na descartabilidade e na substituição.

A sociedade de consumo pode ser caracterizada como “um tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumista, e rejeita todas as opções culturais alternativas.” (BAUMAN, 2008, p. 71). Nesse contexto, os seus membros acabam identificando a si mesmos como mercadorias, ou algo ao qual se pode atribuir valor. Assim, à medida que consome, o consumidor aumenta o seu próprio valor e essa possibilidade, por sua vez, estimula o consumo.

A citada valorização, em razão do consumo, está estreitamente ligada à novidade. Não basta apenas consumir mais, mas consumir melhor. Surge o conceito de “estar à frente”, que pode ser facilmente percebido, por exemplo, na indústria da moda. Se adiantar às tendências é uma forma de promover segurança de vinculação, por algum tempo, à imagem aceita pela coletividade.

É, na indústria da moda, que podem ser percebidos outros aspectos do consumismo, que estão presentes em outros segmentos, mas nesta são mais facilmente notados. Trata-se da necessidade de pertencimento ao grupo, de adequação às exigências da sociedade. O pertencimento pode ser expresso principalmente pelo uso das marcas que, na analogia adotada por Bauman (2008), substituem os “totens” das tribos antigas e incluem o indivíduo nas “tribos pós-modernas”.

Ainda conforme o autor, a síndrome consumista, de nossa época, leva o consumidor a não se melindrar com a substituição prematura de bens que deveriam durar. Pelo contrário, pode ser identificado até certo prazer em se livrar do velho, dando lugar a supostos novos prazeres e experiências. Atribui-se naturalidade ao excesso e ao desperdício.

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Para os mestres dessa arte [o consumismo], o valor de cada objeto e de todos eles está tanto em suas virtudes como em suas limitações. As falhas já conhecidas e aquelas a serem (inevitavelmente) reveladas graças a sua predeterminada e preordenada obsolescência (...) prometem uma renovação e um rejuvenescimento iminentes, novas aventuras, novas sensações, novas alegrias. Numa sociedade de consumidores, a perfeição (...) só pode ser uma qualidade coletiva da massa, de uma multiplicidade de objetos de desejo; o prolongado ímpeto da perfeição agora requer menos o aperfeiçoamento das coisas do que sua rápida e profusa circulação. (Bauman, 2008, p. 112).

Nota-se que a obsolescência programada é produto da sociedade de consumo e da sua valorização da velocidade e da novidade. Ao mesmo tempo é meio para a sua manutenção, uma vez que a descartabilidade por ela promovida é compatível como o modelo consumista.

3 Das práticas abusivas nas relações de consumo

Expostos os aspectos históricos da obsolescência programada e a formação e funcionamento da nossa sociedade de consumo, vamos à demonstração dos pontos jurídicos relevantes em relação ao tema. Antes disso, entretanto, é necessária uma breve exposição acerca das relações de consumo e das práticas abusivas em relação a elas.

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A relação de consumo é definida por Stoco (1996, p. 413, citado por CABRAL, 2012), como:

toda relação jurídica contratual que envolva a compra e venda de produtos, mercadorias ou bens móveis e imóveis, consumíveis ou inconsumíveis, fungíveis ou infungíveis, adquiridos por consumidor final, ou a prestação de serviços sem caráter trabalhista.

A Constituição da República, em seu art. 5º, XXXII, estabelece que o estado deve promover a proteção ao consumidor. Por seu caráter constitucional, não pode o Pode Público deixar de fornecer tal proteção, mesmo que as parte envolvidas queiram abdicar dela. Em razão da sua inafastabilidade e indisponibilidade, além da sua relevância social, o Código de Defesa do Consumidor é uma norma de ordem pública (CABRAL, 2012).

O primeiro princípio basilar da citada norma é a Boa-fé Objetiva. Esse princípio se refere à necessidade de que o consumidor tenha certa garantia de que o produto adquirido terá a duração e a utilidade esperadas. Já o Princípio da Transparência tem como objetivo a correta informação ao consumidor quanto aos aspectos da relação de consumo, sob pena de estar sendo lesado. Há, também, o Princípio da Vulnerabilidade, que objetiva a proteção ao consumidor quando observada a sua fragilidade (CABRAL, 2012).

Considerando a citada situação de desequilibro técnico e econômico, que há nas relações de consumo, ou seja, em observância ao Princípio da Vulnerabilidade, o Código define os comportamentos que atentam contra a boa-fé e, por isso, devem ser combatidos. Trata-se das práticas abusivas, conceituadas por Pellegrini Grinover et al. (1998, p. 295)

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como “a desconformidade com os padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor”.

Importante ressaltar que a proteção não se refere apenas às pessoas físicas ou jurídicas que adquirem produtos e serviços. Estão incluídos todos aqueles atingidos pelas práticas, conforme artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, os abusos vetados, nessa norma e em outras da mesma natureza, não formam um rol taxativo. É considerada inaceitável, juridicamente, qualquer forma de onerar, injustamente e excessivamente, o consumidor em respeito aos citados princípios.

4 Da obsolescência programada como prática abusiva

Tendo em vista as várias manifestações da obsolescência programada, nem todas as suas formas confrontam, diretamente, algum dispositivo legal, portanto é pertinente ao tema a observação de Pellegrini Grinover et al. (1998, p. 295):

As práticas abusivas nem sempre se mostram como atividades enganosas. Muitas vezes, apesar de não ferirem o requisito da veracidade, carreiam alta dose de imoralidade econômica e de opressão. Em outros casos, simplesmente dão causa a danos substanciais contra o consumidor. Manifestam-se através de uma série de atividades, pré e pós-contratuais, assim como propriamente contratuais, contra as quais o consumidor não tem defesas, ou, se as tem, não se sente habilitado ou incentivado a exercê-las.

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Nas linhas introdutórias, expomos algumas formas pelas quais a obsolescência programada se manifesta. São elas: através da simples inovação tecnológica, do apelo moral à novidade ou da diminuição proposital da vida útil do bem, planejada em sua fabricação. Faz-se necessário esclarecer melhor cada uma delas.

A primeira, a inovação tecnológica, pode não parecer relacionada a abusos sob um olhar inicial. O conhecimento científico cresce de forma exponencial, ou seja, as descobertas científicas abrem possibilidades para novas e maiores descobertas. Na maior parte das vezes esses avanços são motivados pela possiblidade de ganho financeiro.

Não se pretende dizer que a simples inovação seja, em si, abusiva. Pelo contrário, ela é bem-vinda em vários campos da vida cotidiana, dando ao homem mais velocidade na execução de suas tarefas, mais segurança em seu transporte e mais possibilidades de cura para a medicina.

Por outro lado, pode-se notar em vários ramos da indústria, mas mais nitidamente no mercado de eletrônicos, que muitos fabricantes agem de forma abusiva nesse sentido. Não são raros os casos nos quais uma tecnologia já disponível não é inserida em um produto e, pouco tempo depois, é apresentado ao público uma nova versão, com a mencionada tecnologia, promovendo desvalorização imediata de bens recém-adquiridos.

No que se refere ao apelo moral, estamos diante de uma situação muito peculiar. Nesse caso, apesar da propaganda que estimula a substituição prematura dos produtos, não se pode dizer que o consumidor seja obrigado a fazê-lo. Nesse contexto, as questões culturais são fortes fatores a serem considerados. Deve-se notar, entretanto, que mesmo que a escolha seja do consumidor, existem outros pontos relevantes. A geração de lixo, por exemplo, que é um

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grande problema para as grandes cidades, assim como a degradação de todo o meio-ambiente, a ser mais detalhadamente trabalhada adiante.

Quanto ao último ponto, a redução planejada da durabilidade dos produtos, há mais a ser dito em relação à responsabilidade contratual. O uso de matérias primas inferiores e a programação de vida útil, apesar de ser tratada com naturalidade em nossa sociedade de consumidores, constitui verdadeira prática abusiva contra as relações de consumo.

A redução da durabilidade, vale ressaltar, não se manifesta apenas com o desgaste programado do produto. Existem outras maneiras de dificultar a utilização de um bem com a passagem do tempo. No exemplo de Vio (2004), é o caso “de produtores de bens diversos, mas complementares, cuja propriedade simultânea constitui, reciprocamente, um requisito para sua utilização, tais como pneus e automóveis ou softwares e computadores”.

Nessas situações, a obsolescência programada se manifesta na impossibilidade de se continuar utilizando um bem em perfeito estado de uso em razão da incompatibilidade com seus complementos necessários. Um computador, por exemplo, ainda que com pouco tempo de operação pode não ter possibilidade de executar os programas aplicativos.

Além disso, é comum que a assistência técnica deixe de ser prestada em períodos de tempo curtos, deixando como possibilidade ao consumidor apenas substituição do produto ou sua subutilização.

Outra forma de redução artificial de vida útil de um bem é a dificuldade para promover reparos. Peças de substituição para concertos muitas vezes são escassas no mercado, e o próprio fabricante indica ao consumidor que a alternativa viável é a aquisição de novo produto.

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Temos como exemplo cotidiano os equipamentos periféricos dos computadores (teclados, mouse etc) que, apesar de poderem ser consertados, são tratados pelos vendedores como “descartáveis”, sobretudo tendo como argumento o seu baixo custo e a sua simplicidade.

Cabral (2012) destaca que as citadas práticas, além de serem mais comuns nos países significativamente desenvolvidos, não lesam por igual toda a população. São os pobres os que mais sofrem, uma vez que para eles é mais penoso ter que substituir um produto. A hipossuficiência do consumidor, nesse caso, é potencializada por sua condição financeira precária.

A mesma Constituição que já em seu Art. 1º lista a livre iniciativa como fundamento da República define, como visto, a proteção ao consumidor como dever do Estado. Assim sendo, a intervenção estatal, provocada ou voluntária, em razão das práticas abusivas, não configura interferência inadequada. Pelo contrário, é verdadeiro meio de promoção de equilíbrio na ordem econômica.

5 Implicações na ordem econômica

A substituição de um produto gera lucro e, como

dito, pode ser antecipada por estratégias de obsolescência programada. Deve-se notar, entretanto, que não é todo produtor que tem grande possibilidade de sucesso nessa tática. Aos pequenos produtores, a redução da durabilidade dos bens pode trazer a perda de clientela em favor daqueles que dominam o mercado. Podem também atrair novas concorrências para aquele mercado. (VIO, 2004).

Conclui-se que, na medida em que seu domínio de mercado se encontra seguro, existem mais chances de um produtor implantar práticas de obsolescência bem sucedidas.

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A segurança, entretanto não basta: é preciso que haja barreiras de entrada naquele mercado específico, para impedir o surgimento de novos produtores.

Nesse contexto, a obsolescência programada ultrapassa os limites do Direito do Consumidor. Suas implicações também estão ligadas ao Direito Concorrencial, uma vez que, conforme Vio (2004), a prática em questão “tem no poder de mercado um de seus pressupostos, ao mesmo tempo em que consiste em uma das possíveis manifestações de seu exercício”.

Seguindo a linha de raciocínio do citado autor, teoricamente a concorrência deveria estimular a imediata introdução de novas tecnologias nos produtos. Além disso, o apelo à longa durabilidade e à qualidade deveria ter mais destaque junto ao consumidor. Entretanto, a mencionada concentração de mercado deixa esse cenário no plano da teoria, trazendo consigo consequências de diversas naturezas, a serem tratadas adiante. 6 Implicações no desenvolvimento tecnológico

Quando um ou alguns produtores controlam

determinado ramo da produção de bens e serviços, é de se esperar que tenham interesse na manutenção da ordem vigente. Qualquer alteração significativa na estrutura do mercado pode significar que terão que empregar mais esforços para continuar ocupando a mesma posição e não ter prejuízos.

Nesse contexto, qualquer inovação significativa pode ter como consequência o rearranjo da estrutura daquele mercado. Como forma de prevenção, as empresas dominantes se apegam a um conservadorismo tecnológico. Por mais que tenham à sua disposição novas tecnologias, a forma como

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estas serão inseridas no mercado será definida pela sua potencialidade de promover as temidas mudanças.

Daniel Vio (2004) cita como exemplo o caso dos produtores da máquina de escrever, na segunda metade do século passado:

Os fabricantes passaram a produzir modelos eletrônicos cada vez mais sofisticados. No longo prazo, boa parte das inovações implementadas (tela digital, teclado eletrônico, impressão matricial etc.) foram incorporadas aos computadores pessoais, que acabaram por aniquilar o mercado de máquinas de escrever.

Assim sendo, podemos concluir que por maior que seja o alarde que os produtores façam em razão do lançamento de novos modelos, os bens postos no mercado muitas vezes trazem inovações pouco relevantes. O apelo maior é estético, considerando que, uma vez dominado o mercado, não haveria razão para colocar a própria posição em risco.

Nesse ponto surge uma pauta nova em relação ao tema: há aqueles que defendem a obsolescência programada como forma de promoção do avanço tecnológico. Argumentam, conforme Vio (2004), que em um cenário de conservadorismo por parte das grandes empresas, existe espaço para que os produtores médios protagonizem inovações relevantes.

Considerando que as referidas médias empresas ainda não se estabeleceram de forma firme no mercado, possuem mais abertura para correr riscos. A possibilidade de assim se comportarem obrigaria os monopolistas ou

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oligopolistas a acompanhar essa tendência, que desencadearia alguma modernização nos produtos e serviços. 7 Aspectos ambientais

Segundo as Nações Unidas no Brasil (2013), a população mundial, que em 1950 era estimada em 2,6 bilhões de pessoas, deu um salto para 5 bilhões em 1987 e hoje é de aproximadamente 7 bilhões. Nota-se que o simples aumento demográfico seria o bastante para ampliar a demanda por produtos industrializados no mundo.

Ocorre que as já citadas características da sociedade de consumo potencializam a demanda. Surge inevitavelmente a pauta do desgaste ao meio ambiente causado pela industrialização, seja nos processos de produção ou no descarte de bens inutilizáveis. Esse é um cenário inédito na história.

Se por um lado se pode dizer que as práticas de obsolescência programada têm como objetivo final gerar lucro para os produtores, por outro se verifica pouca preocupação com um impacto que a substituição de produtos pode gerar a natureza. Uma vez que já obtiveram seu ganho financeiro, pouco interesse teria a indústria com os resíduos resultantes desse processo.

Foi dito que a obsolescência programada encontra mais espaço naqueles países onde há mais possibilidade de consumo. Porém, não são apenas esses que sofrem suas consequências negativas do ponto de vista ambiental. É notório que a poluição não respeita fronteiras, sendo um problema compartilhado por todo o mundo, não obstante seja negligenciado por grande parte das nações. Há, entretanto, aspectos peculiares trazidos pela prática em estudo.

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Os países desenvolvidos, sobretudo na Europa, encontraram uma forma de lidar com os resíduos sólidos do mercado de eletrônicos. Sob o argumento de promover o avanço tecnológico em países em desenvolvimento, principalmente do continente africano, tem sido feito o envio de mercadorias descartadas. O problema é que as nações que recebem os equipamentos não possuem programas de seleção e implantação da tecnologia recebia.

Essa prática muitas vezes ocorre dentro da ilegalidade. Como resultado, países como Gana e Nigéria recebem toneladas de produtos que se torna lixo eletrônico, se já não o era. Os materiais tóxicos que compõe esses produtos, além do próprio acúmulo de sucata e a falta de preparo para a manipulação, representam um sério risco à saúde da população (BBC Brasil, 2013).

No que se refere ao Brasil, a Constituição da República de 1988 elevou à categoria de direito fundamental a preservação da natureza, “na medida em que reconhece o meio ambiente equilibrado como um bem de uso comum do povo e adota a sua defesa como um princípio da ordem” (BERGSTEIN, 2011, p. 3579).

Não é o Poder Público, entretanto, o único responsável pela promoção desse equilíbrio. Trata-se de dever de todos os envolvidos na produção e distribuição de bens e serviços. Além deles, também existe a parcela de responsabilidade atribuída ao consumidor.

Ainda conforme Bergstein (2011, p. 3582) há dois instrumentos relevantes para a manutenção o equilíbrio ambiental: “a adoção da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e a logística reversa”. Ambos encontram previsão na legislação brasileira. O primeiro no art. 30 da Lei Federal n. 12.305:

É instituída a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos

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produtos, a ser implementada de forma individualizada e encadeada, abrangendo os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, os consumidores e os titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos (...).

E o segundo art. 3º, inciso XII, da mesma lei: logística reversa: instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada;

Cabe ao Poder Público promover a responsabilização definida pela lei, impondo limites e obrigações aos envolvidos na cadeia de consumo. É preciso considerar, entretanto, que o exercício de atividade econômica é livre, nos termos do próprio texto constitucional. Assim, a intervenção estatal deve ser mais ou menos presente na medida em que a atividade seja potencialmente lesiva ao meio ambiente. 8 Experiência jurídica

No tocante à experiência jurídica sobre o tema,

destaca-se internacionalmente a ação movida contra a Apple, fabricante do tocador de música conhecido como iPod, por compradores do produto perante a Tribunal Superior do

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Estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Naquela época, no ano de 2005, os consumidores reclamavam que a bateria do aparelho possuía tempo de vida útil muito curto, e quando parava de funcionar não era possível fazer a troca. O processo culminou em um acordo no qual a Apple se comprometeu a indenizar os compradores e substituir o produto. (CALIFORNIA, 2005).

Processo contra a mesma empresa vem sendo movido pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática no Distrito Federal (Processo n. 2013.01.1.016885-2). Para o Instituto, o curto espaço entre o lançamento de tablets feito pela Apple caracteriza prática abusiva, considerando que os consumidores adquiriram um produto que cairia na obsolescência em poucos meses.

Os consumidores atingidos argumentam que adquiriram o iPad de Terceira Geração, e foram surpreendidos em seguida com o lançamento da Quarta Geração, com nenhuma mudança tecnológica que justificasse ser anunciado como uma evolução. O produto que tinham em mãos perdeu automaticamente parte do valor, o que gerou revolta entre os proprietários.

Recentemente a jurisprudência pátria se manifestou acerca do tema. No julgado a seguir o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o vencimento do prazo de garantia não desonera o fabricante se o defeito do produto não podia ser percebido, dentro de certas limitações. No seu voto, o Ministro Luis Felipe Salomão discorre sobre a prática comercial em estudo:

Como se faz evidente, em se tratando de bens duráveis, a demanda por determinado produto está viceralmente relacionada com a quantidade desse mesmo produto já presente no mercado, adquirida no

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passado. Com efeito, a maior durabilidade de um bem impõe ao produtor que aguarde mais tempo para que seja realizada nova venda ao consumidor, de modo que, a certo prazo, o número total de vendas deve cair na proporção inversa em que a durabilidade do produto aumenta. Nessas circunstâncias, é até intuitivo imaginar que haverá grande estímulo para que o produtor eleja estratégias aptas a que os consumidores se antecipem na compra de um novo produto, sobretudo em um ambiente em que a eficiência mercadológica não é ideal, dada a imperfeita concorrência e o abuso do poder econômico, e é exatamente esse o cenário propício para a chamada obsolescência programada. (BRASIL, 2012).

O Tribunal reconheceu o direito de indenização pelos gastos com manutenção de bem durável em razão de vício que não podia ser identificado no momento da compra e nem do curso do prazo de garantia. Bruno Miragem (2013), ao comentar a referida decisão, traça a diferenciação entre responsabilidade por vícios redibitórios e por vício do produto e do serviço em relações de consumo.

Nessa diferenciação se destacam “a solidariedade entre todos os fornecedores frente ao consumidor para satisfação dos direitos previstos pelo Código de Defesa do Consumidor” e o fato de que “as normas legais que disciplinam a matéria são normas de ordem pública, insuscetíveis de derrogação por acordo das partes”. (MIRAGEM, 2013).

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Como já foi dito, a Constituição determinou a liberdade de exercício de atividade econômica. Entretanto a intervenção dos Poderes, principalmente do poder judiciário, quando provocado, é justificável e necessária à ordem pública, desde que proporcional às implicações sociais trazidas pelas práticas comerciais, sobretudo em relação àquelas em que há uma parte hipossuficiente, como é o caso do consumidor. Considerações finais

A Revolução Industrial, seguida pelos eventos históricos e políticos do século XX, iniciou a estruturação da sociedade de consumo na qual vivemos. Nela, o valor do indivíduo se confunde com a sua possibilidade de consumir. O capitalismo se estabeleceu, e para permanecer firme precisa ampliar seus mercados e escoar a sua produção.

Nesse contexto, o mercado dita a forma de pensar e de agir conforme as suas necessidades. A obsolescência programada é, então, uma manifestação do modelo econômico capitalista, ao mesmo tempo em que é um meio para a perpetuação de poucos produtores no domínio de mercado, não obstante haja posicionamento em contrário, como foi visto.

A obsolescência programada se manifesta de diversas maneiras, sendo as principais: através do apelo moral pela troca de um produto, sempre relacionado ao rompimento com o antigo; pelo uso da inovação tecnológica especificamente para esse fim e pela diminuição dolosa do tempo de vida útil do bem programada no momento da sua fabricação.

Do ponto de vista do Direito do Consumidor, é uma prática abusiva contra as relações de consumo. Diante da sua hipossuficiência, caracterizada pela desvantagem técnica

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e, na maior parte das vezes, financeira, pouco o consumidor pode fazer pra se defender de determinadas formas de obsolescência. Diante de outras formas, entretanto, as pessoas podem ser vitimadas sem se darem conta.

Por outro lado, como foi demonstrado, a responsabilidade pelos resíduos gerados pela substituição de bens não é apenas dos seus fabricantes e distribuidores. A lei brasileira define que ao consumidor também deve ser atribuída a obrigação de dar um destino adequado aos produtos que descartar.

As implicações ambientais da questão são de dimensões globais. Não bastasse a poluição decorrente do consumismo irresponsável, ainda há problemas de ordem internacional. Os países em desenvolvimento, sob diversos pretextos, acabam recebendo o lixo eletrônico que é produto de um cenário tecnológico do qual sua população sequer têm possibilidade de usufruir.

Nesse contexto, a conscientização do consumidor em relação às práticas em estudo é importante. Essa medida sozinha, contudo, não é capaz de modificar cenário relatado no decorrer desse trabalho, que se instalou durante anos, sendo parte da cultura contemporânea.

Esperar por uma mudança de paradigma em curto prazo é utópico. A obsolescência programada, não obstante seja planejada dentro das indústrias, tem como parte indispensável para o seu sucesso a mentalidade da sociedade de consumo. Assim como as empresas não abrirão mão do seu lucro, o consumidor, muitas vezes, já acredita que não pode abrir mão das “inovações” promovidas pelo capitalismo.

O que pode ser feito de concreto por parte do Poder Público é a correta aplicação de políticas sólidas de responsabilização em relação à geração de resíduos. Além disso, o fortalecimento da proteção ao consumidor é essencial,

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considerando a índole constitucional e a natureza de norma de ordem pública do Código de Defesa do Consumidor. Dentro dos limites definidos pela própria lei, essa intervenção não caracteriza lesão à liberdade de atividade econômica. Referências BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008. BBC BRASIL. Países pobres são destino de 80% do lixo eletrônico de nações ricas. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/01/130118_lixo_eletronico_bg.shtml > Acesso em: 13 de outubro de 2013. BERGSTEIN, Laís Gomes. EFING, Antônio Carlos. A Justa Imposição legal de Responsabilizar o Consumidor na Realização da Logística Reversa Visando à Sustentabilidade. Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 11 de outubro de 2013. ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 11 de outubro de 2013. ______. Lei n. 12.3058. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-

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2010/2010/lei/l12305.htm >. Acesso em: 13 de outubro de 2013. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 984.106-SC (2007/0207915-3). Recorrente: Sperandio Máquinas e Equipamentos Ltda. Recorrido: Francisco Schlager. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Brasília, 4 de outubro de 2012. CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat; RODRIGUES, Maria Madalena de Oliveira. A Obsolência Programada na Perspectiva da Prática Abusiva e a Tutela do Consumidor. Lex Magister, 2012. Disponível em: < http://www.editoramagister.com/doutrina_22860424_A_OBSOLENCIA_PROGRAMADA_NA_PERSPECTIVA_DA_PRATICA_ABUSIVA_E_A_TUTELA_DO_CONSUMIDOR.aspx>. Acesso em: 21 de março de 2013. CALIFORNIA. Superior Court of the State of California, County of San Mateo. Notice of Pendency and Proposed Settlement of Class Action, Judicial Council Coordination Proceeding Nº 4355. San Mateo, 2005. Disponível em: < http://www.girardgibbs.com/docs/cases/88_apple-ipod-settlement-notice.pdf>. Acesso em: 27 de março de 2013. GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. MIRAGEM, Bruno. Vício oculto, vida útil do produto e extensão da responsabilidade do fornecedor: comentários à decisão do Resp 984.106/SC, do STJ. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 85, p. 325, jan. 2013. NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. A ONU e a População Mundial. Disponível em: <http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-em-acao/a-onu-e-a-populacao-mundial/>. Acesso em: 13 de outubro de 2013.

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SILVA, Maria Beatriz de Oliveira da. Obsolescência Programada e Teoria do Decrescimento Versus Direito do Desenvolvimento e ao Consumo (Sustentáveis). Veredas do Direito, Belo Horizonte: v. 9, jan./jun. de 2012. Disponível em: <http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/252/214>. Acesso em: 10 de abril de 2013. SLADE, Giles. Made to Break: technology and obsolescence in America. 1. ed. Estados Unidos da América: Editora da Universidade de Harvard, 2007. VIO, Daniel de Ávila. O poder econômico e a obsolescência programada de produto. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, ano XLIII, v. 133, p. 193-202, jan./mar. 2004.

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O CONTROLE COMO MECANISMO INIBIDOR DA PRÁTICA DE ATOS DE IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA NO TERCEIRO SETOR

Givago Prandini Maia57 Maria Letícia da Costa Leal Teixeira58

Maria Inês Gomes da Silva59 Rosely da Silva Efraim60

Warlem Freire Barbosa61

Introdução Os instrumentos de controle, seja interno ou externo, e demais institutos de participação popular, na Administração Pública, possuem extrema relevância no sentido de inibir a prática de condutas ímprobas na Administração Pública.

Depreende-se que um órgão de controle efetivo e impessoal possibilita uma gestão pública mais transparente e moralizada.

57 Mestre em Sistema Constitucional de Garantias de Direitos. Professor Universitário e Advogado. 58 Professora do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas- FUNORTE. Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC. 59 Advogada. Professora das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE e da Unimontes. 60 Advogada, Pós Graduada em Administração Pública e Gestão Urbana pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas e em Direito Processual pela Universidade Estadual de Montes Claros-UNIMONTES, e Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia – Esfera Pública, Legitimidade e Controle pela Universidade FUMEC. 61 Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal e Processo Penal nas Faculdades FUNORTE e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.

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Carlos Pinto Coelho Motta e José Ulisses Jacoby Fernandes (2001, p. 132) acerca da influência do controle nas ações do gestor público lecionam: “A ação de controle deve ensejar uma mudança na programação das ações do gestor público responsável, pois é precisamente a permanente reavaliação que ensejará uma alteração qualitativa”.

Nota-se que o papel do controle é fundamental, mas para que se tenha a resposta esperada, faz-se necessária uma adequada execução dos diversos e relevantes mecanismos de controle colocados à nossa disposição.

Vale ressaltar, ainda, que o estudo foi realizado com base na pesquisa exploratória, com a utilização da pesquisa bibliográfica para, assim, demonstrar as afirmações realizadas neste trabalho.

Depreende-se a necessidade de evidenciar a origem e importância dos mecanismos de controle, bem como destacar o papel relevante que esses possuem no sentido de inibir a prática de atos ímprobos. 1 Origem e importância dos mecanismos de controle

Conforme relata Guerra (2003, p.23), a palavra controle origina-se do francês contrerole, desde 1367, e do latim contrarotulus, significando contralista, que consistia num catálogo dos contribuintes, o qual se verificava a operação do cobrador de tributos. O referido termo evolui-se a partir de 1611, consistindo, segundo Houaiss (2001, p. 825), em domínio, governo, fiscalização, autodomínio, equilíbrio e verificação dos atos da Administração Pública.

No âmbito da língua portuguesa, o termo controle surgiu em 1922, consistindo no ato ou efeito de controlar, fiscalizar. No direito brasileiro, o termo controle foi empregado pela primeira vez, em 1941, na obra Controle dos

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atos administrativos de Seabra Fagundes, consoante relata Guerra (2003).

A ação de controle consiste num atributo utilizado para viabilizar o cumprimento das leis, a partir da conscientização da sociedade e dos poderes e órgãos públicos, pois somente com o apoio destes, é possível conferir efetividade à legislação.

Os mecanismos de controle são instituídos com o objetivo de defender os interesses da coletividade, devendo ser aplicados, de forma rígida, impessoal e eficiente. Esses controles atuam em conformidade com as metas sociais, evitando o desvio, a inobservância das diretrizes estabelecidas no planejamento público, capazes de limitar as ações administrativas, objetivando a efetiva aplicação dos recursos públicos, bem como garantir a defesa dos interesses difusos dos cidadãos. O controle impõe limites à administração da coisa pública, garantindo a aplicação dos princípios constitucionais que a norteiam.

O controle pode ser realizado pela própria Administração Pública, pelo cidadão e por outros poderes. Esse controle consiste no poder-dever de fiscalizar. Ele pode se dar no âmbito interno, no qual os órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário exercem o controle sobre seus próprios atos e agentes, bem como no âmbito externo, praticado por órgão que não sejam o controlado, almejando a efetivação de mecanismos garantidores da eficácia da gestão administrativa.

O controle pode ser prévio, quando é exercido antes da prática do ato administrativo, com o intuito de coibir ato contrário ao interesse público. É concomitante, quando se verifica a regularidade do ato administrativo no exato momento em que foi praticado, podendo, também, ser realizado a posteriori, com a finalidade de certificar a

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regularidade dos atos, de corrigi-los no caso de defeitos sanáveis, revogá-los ou anulá-los, quando insanáveis.

Nessa seara, a Lei de Improbidade Administrativa, bem como a Lei de Responsabilidade Fiscal são leis interligadas com o intuito de coibir os atos ímprobos e, consequentemente, proporcionar uma ideal administração à população.

É importante destacar a relevância da Lei de Responsabilidade Fiscal que, em todo o seu texto, evidencia o controle, atribuindo ao ordenador de despesa a função de agente de controle da responsabilidade fiscal. 1.1 Controle pela Administração Pública ou controle

interno

A Administração Pública, visando a sua organização e à seriedade, deve instituir o sistema de controle ou autocontrole de seus atos. É importante enfocar que, se há desorganização na Administração Pública, há margem à desonestidade e o controle é um importante mecanismo que inibe os desvios e otimiza as políticas públicas.

A Administração Pública possui competência para rever seus próprios atos administrativos, devido à incidência do princípio da autotutela que norteia os atos da Administração Pública, conferindo a ela o direito de anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais.

A própria Administração, quando constata a existência de vício no ato praticado, pode exercer o controle ex-officio, aplicando a correção desse ato ilegal, bem como pode ser provocada pelos administrados, por meio de recurso administrativo, para que proceda ao reexame do ato praticado.

O sistema de controle interno constitui uma exigência,

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ou dever proveniente do princípio da eficiência, pois a Administração Pública deve, necessariamente, verificar os atos executados, almejando à correção quando necessária. Prevalecendo o desinteresse, ineficiência e ineficácia há, consequentemente, ausência de compromisso da Administração.

O Poder Público e seus agentes devem observar a probidade administrativa. A Lei de Improbidade Administrativa estabelece, em seu artigo 4º, o dever do exercício de controle interno do ato de improbidade administrativa. Deve a Administração, obedecendo aos princípios da moralidade e da probidade administrativa, punir os agentes pela prática desses atos. A Administração Pública tem a função de reprimir condutas que possam prejudicá-la.

No que diz respeito à Responsabilidade Fiscal, a Administração Pública deve controlar a ordenação de despesas, atos que desencadeiam em obrigações de despesas futuras, licitações, concessões de vantagens e benefícios aos servidores e empréstimos.

Nesse diapasão, pode-se verificar que a ausência de órgãos de controle interno inviabiliza uma correta gestão financeira e, consequentemente, uma boa administração.

1.2 Controle pelo Poder Legislativo

O Poder Legislativo é um importante órgão de controle que representa a vontade popular. O controle político, realizado pelo Poder Legislativo, objetiva fiscalizar os atos concernentes à função administrativa e organizacional.

Acerca do controle político pronunciam Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves destacando que:

São múltiplos os instrumentos existentes para a realização do controle político, podendo-se

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destacar o poder convocatório de que dispõe o Legislativo, o poder de sustação, o pedido de informações e o poder investigatório que é exercido por intermédio das Comissões Parlamentares de Inquérito (GARCIA; ALVES, 2004, p. 152).

O controle, no âmbito do Legislativo, é exercido pelo

Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, Senado Federal, Assembleia Legislativa, Câmara de Vereadores e Comissões Parlamentares. Trata-se de um controle político que alcança todos os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, no exercício das funções administrativas, bem como as entidades da Administração Indireta.

O Poder Legislativo, no âmbito municipal, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, sistema de controle interno, Ministério Público têm a função de fiscalizar o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Deve-se verificar se a Administração Pública atingiu as metas estabelecidas pela Lei de Diretrizes Orçamentárias; se obedeceu aos limites e condições para a realização de operações de crédito e inscrição em restos a pagar. Se dotadas medidas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite; se foram tomadas providências para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respectivos limites; se houve destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, levando em conta as restrições constitucionais e as disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal e se foram cumpridos os limites de gastos totais dos tribunais de contas municipais.

Esse controle, desenvolvido em parceria pelo Poder Legislativo e Tribunal de Contas, possibilita a concretização da responsabilidade fiscal e, consequentemente, o atendimento dos interesses sociais.

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1.3 Controle pelo Ministério Público

Conforme prevê a Constituição Federal, no artigo 127, o Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, sendo-lhe incumbida a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O Ministério Público exerce a função de defesa do patrimônio, dos direitos dos cidadãos e da ordem pública. Desta forma, o Ministério Público funciona como defensor da sociedade, da moralidade, possuindo atribuições e responsabilidades no que concerne ao controle da Administração Pública.

O Ministério Público possui legitimidade para instaurar direta e pessoalmente o inquérito civil, bem como para requisitar a instauração de inquéritos policiais, quando possuir elementos indiciários da configuração de ato de improbidade que também possa caracterizar crime tipificado no Código Penal ou em Leis Penais Extravagantes. Possui, também, o dever de acompanhar as investigações administrativas, conforme prevê o artigo 13, parágrafo único da Lei de Improbidade Administrativa. Nessa seara, o Ministério Público, ao receber denúncias de existência de improbidade administrativa, deve de ofício, através de inquérito civil, verificar e apurar a ocorrência, ou não, de ato ímprobo.

O Ministério Público exerce um papel fundamental na fiscalização do cumprimento dos princípios constitucionais, sendo necessário para isso um melhor aparelhamento da referida instituição, de modo que se possam apreciar questões de cunho fiscal e orçamentário, para possibilitar uma fiscalização efetiva.

A Constituição Federal de 1988, no inciso III, do artigo 29, prevê atribuição do Ministério Público no sentido de

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zelar pelo patrimônio público e social a partir da promoção do inquérito civil e da ação civil pública.

A atuação do Ministério Público tem, como premissa, a efetivação dos princípios da impessoalidade, honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade, possível a partir da responsabilização do agente público praticante do ato ímprobo. Para essa efetivação, faz-se necessária a atuação eficiente e impessoal da referida instituição. 1.4 Controle pelo Tribunal de Contas

O Tribunal de Contas funciona como uma espécie de

controle externo da Administração Pública. O referido órgão exerce o controle de caráter financeiro, técnico, pois abrange aspectos contábeis, financeiros, orçamentários, operacionais e patrimoniais. Trata-se de um órgão de grande importância na fiscalização da coisa pública, visto que é autônomo e independente em relação a qualquer órgão ou poder, além de ser especializado, por possuir condições necessárias para atuar no controle externo dos atos administrativos.

De acordo com as competências estabelecidas, no artigo 71 da Constituição Federal de 1988, o Tribunal de Contas possui poder investigativo e fiscalizador. O referido artigo estabelece que o controle externo seja realizado pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas da União. Desta forma, ressalta-se que os tribunais de contas possuem atribuições próprias, além de atuar em subsídio ao parlamento. O Tribunal de Contas possui função consultiva ou opinativa, jurisdicional, fiscalizadora e corretiva.

No exercício da função opinativa, o Tribunal executa a apreciação das contas do Chefe do poder Executivo, emitindo parecer prévio, por exercer a atribuição de realizar o julgamento técnico das contas anuais. No âmbito do poder

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Executivo Municipal, diferentemente do que ocorre na União e nos Estados, a consulta técnico-opinativa elaborada pelo Tribunal de Contas acerca das contas realizadas pelo Chefe do Executivo do município, tem sua cópia remetida à Câmara Municipal, que deverá julgá-las em prazo determinado em lei. O julgamento pela Câmara de Vereadores poderá acompanhar o parecer proferido pelo Tribunal de Contas, não exigindo a apreciação por quórum mínimo; bem como pode ser rejeitado. No caso de rejeição, necessita-se observar a maioria de dois terços dos membros do legislativo municipal para que prevaleça sobre o parecer do Tribunal.

O referido Tribunal, no exercício da função jurisdicional, julga e liquida as contas, no intuito de apurar a existência de irregularidades e, posteriormente, saneá-las, a fim de aplicar as sanções pertinentes, ou liberar o administrador público da responsabilidade, visto a inexistência de atos irregulares.

O Tribunal de Contas atua como fiscalizador na área contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial dos atos administrativos. Dessa forma, poderá realizar inspeções e auditorias, nas unidades administrativas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, da Administração direta e indireta, fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público. As referidas fiscalizações podem ser cumpridas por iniciativa do próprio Tribunal a partir de solicitação efetuada pelos órgãos legislativos da União, Estados ou Municípios.

As referidas auditorias atuam na instrução acerca da melhor forma de executar os orçamentos e compreender os procedimentos adotados, além de intimidar aqueles gestores que pretendem utilizar os cargos públicos praticando atos imorais e ímprobos.

O Tribunal de Contas exerce função corretiva,

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mediante atribuição de possibilidade de aplicar sanções estabelecidas pela Lei, no caso de constatação de irregularidades das contas públicas.

Quando provocado, o Tribunal de Contas responderá consulta sobre matéria contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial. As referidas consultas respondidas constituem dado geral, informando, assim, a opinião do Tribunal, constituindo mecanismo orientador para aqueles submetidos à fiscalização desse.

Ressalta-se que os Tribunais de contas são órgãos apropriados para desempenhar a função fiscalizadora, em função da inexistência de relação de subordinação com os poderes, prestando auxílio ao Poder Legislativo.

Nessa seara, pode-se dizer que a fiscalização da gestão financeira é exercida pelo Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas e pelos demais órgãos de controle, possibilitando a punição dos agentes públicos que praticam atos de improbidade administrativa. 1.5 Controle pelos membros da sociedade

A Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu, de maneira categórica, o dever de publicidade e transparência, possibilitando o controle dos atos da Administração Pública, pela sociedade. Nesse sentido, estabelece a necessidade de participação popular, por meio das audiências públicas, consultas públicas e demais formas de participação popular, na discussão dos atos da Administração Pública.

Assim Marcos Augusto Perez (2004, p. 20) destaca: “É de grande atualidade e relevância, portanto o debate sobre os institutos de participação popular na Administração Pública”.

Lamentavelmente grande parcela da sociedade não está preparada para exercer a cidadania, ficando inerte diante

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dos direitos que lhes são garantidos para contribuir com os destinos de uma Administração. Dessa maneira, tornam mais propícias as práticas imorais e irresponsáveis por parte dos agentes públicos, pois o sistema de controle é que inibe a corrupção.

Estamos inseridos num Estado Democrático em que a democracia participativa ganhou espaço, diante da necessária participação popular, na gestão e controle da Administração Pública.

É necessário o incentivo dos órgãos da Administração Pública, no sentido de despertar o interesse da sociedade em participar do controle e fiscalização dos atos praticados por essa Administração. Esse incentivo é raro, visto que prevalece a vontade de encobrir os atos imorais e irresponsáveis praticados.

Pode-se dizer que a participação popular está intimamente ligada à cidadania. Assim, é válido salientar que a colaboração do cidadão, no exercício da fiscalização dos atos da Administração Pública, é indispensável, por ser capaz de inibir a prática de atos de improbidade administrativa e demais atos imorais na gestão da coisa pública. 1.6 Controle pelo Poder Judiciário

No Brasil, a moralidade e a probidade necessitam da tutela do Poder Judiciário, evitando condutas inconstitucionais. Desta forma, estará zelando pela coisa pública.

O Poder Judiciário exerce controle acerca da legalidade dos atos administrativos, na administração dos órgãos do Estado, no que concerne à legalidade e à moralidade, princípios constitucionais que regem a Administração Pública.

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É fundamental que o Poder Judiciário exija dos legisladores e administradores públicos a observância dos princípios e normas que regem a Administração Pública.

O Poder Judiciário presta sua tutela somente quando provocado pelas pessoas que foram prejudicadas pelo ato administrativo tido como ímprobo. Desta forma, possui condições de controlar, de forma efetiva a Administração Pública, pois é capaz de exercer um amplo e apropriado controle sobre ela.

A Constituição Federal de 1988 estabelece meios de efetivação do exercício do controle por parte do judiciário tais como: hábeas corpus, hábeas data, mandado de injunção, mandado de segurança, ação popular e ação civil pública.

Pode-se dizer que o Poder Judiciário deve atuar, na gestão fiscal, com o intuito de corrigir eventuais desvios das metas estabelecidas pela Administração Pública. Ele tem, por escopo, controlar os atos do Executivo, Legislativo e administração do próprio Poder Judiciário.

Cumpre-se destacar que o controle interno, executado pela própria Administração, é ineficiente e pessoal. E o controle exercido pelo Poder Legislativo possui caráter político, sofrendo influências do Poder Executivo, enquanto que deveria exercer um controle de caráter técnico-jurídico. Nessas considerações cumpre certificar-se que o Poder Judiciário é capaz de garantir a imparcialidade necessária na solução dos conflitos, sendo a interferência do Poder Judiciário, de interesse da sociedade.

Os administrados necessitam de proteção visto que, muitas vezes, são vítimas de injustiças por parte do próprio Estado. O Poder Judiciário, por sua vez, possui o poder, o dever de prestar a tutela jurisdicional, com seriedade, coibindo a influência de fatores externos, observando os princípios do contraditório e da ampla defesa.

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2 O controle como mecanismo inibidor dos atos ímprobos

A LRF prevê condutas que, se forem inobservadas, podem resultar em atos de improbidade administrativa, além das condutas já apontadas pela Lei nº 8.429/92. Assim, percebe-se que o referido diploma normativo prima pela organização na Administração Pública, sendo essa organização imprescindível para coibir práticas ímprobas. Nessa seara, ressalta-se que uma administração desorganizada dá margem à prática de condutas ilegais, imorais e ímprobas.

Pode-se dizer que a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, Lei Complementar 101/00 _foi editada, no Ordenamento Jurídico Brasileiro, solidificando as previsões da Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº 8.429/92_ com o intuito de contribuir no controle das condutas dos agentes públicos. Tal contribuição é identificada, nas previsões de transparência, na ampla divulgação dos planos orçamentário-financeiros, na fiscalização, na participação popular, nas audiências públicas e nos mecanismos de controle. Nesse contexto, ressalta-se que, por meio do controle, é possível alcançar o cumprimento da norma. Nesse enfoque, destaca-se a existência de diversos mecanismos de controle, sendo possível salientar que os mesmos merecem ser mais bem explorados para que possam, de fato, atingir a finalidade esperada. Nessa linha, percebe-se que o controle executado, de maneira eficiente e impessoal, é capaz de coibir a prática de atos de improbidade administrativa e de demais atos que comprometem a moralidade administrativa e prejudicam o erário, independentemente da vontade do agente, contribuindo, assim, para a moralização na Administração Pública.

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A atuação efetiva do controle interno, nesse órgão, pode evitar que agentes públicos pratiquem atos de improbidade administrativa. Para isso é necessário que esses controles sejam realizados por servidores concursados, uma vez que o controle realizado por servidor ocupante de cargo de recrutamento amplo, os chamados cargos de confiança, é frágil e pode prejudicar a efetividade. Qualquer espécie de controle, seja interno ou externo, é relevante no sentido de coibir e reprimir práticas ilegais, imorais e ímprobas; deve-se, pois, dar destaque ao controle realizado pela sociedade, que é a destinatária das ações da Administração Pública. Nesse enfoque, Marçal Justen Filho (2008 p. 880) enfatiza:

O controle da atividade administrativa depende de instrumentos jurídicos adequados e satisfatórios. Mas nenhum instituto jurídico formal será satisfatório sem a participação popular. A democracia é a solução mais eficiente para o controle do exercício de poder. A omissão individual em participar dos processos de controle do poder político acarreta a ampliação do arbítrio governamental.

Nessa seara, ressalta-se que a participação popular é

um requisito fundamental para a efetiva realização da democracia. Isso resulta na colaboração do cidadão no exercício da fiscalização dos atos da Administração Pública. A referida assertiva enfatiza a indispensabilidade do controle social, além de todas as outras espécies de controle existentes, e destaca o poder que essa espécie de controle detém. Ressalta-se que a Lei de Improbidade Administrativa

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bem como a Lei de Responsabilidade Fiscal deve ser adotada pelo cidadão como fonte de controle dos atos administrativos. Considerações finais Os mecanismos de controle são primordiais na tentativa de combater e inibir a improbidade administrativa. É tarefa de toda a sociedade, bem como da própria Administração Pública, Poder Legislativo, Ministério Público, Tribunal de Contas e Poder Judiciário modificar a cruel realidade da Administração Pública no Brasil.

A sociedade deve-se conscientizar da necessidade de sua participação, na fiscalização e controle dos atos da Administração Pública, participando, com assiduidade ns audiências públicas, nos orçamentos participativos, nas consultas públicas e de vários outros institutos de participação popular na Administração Pública. Diante da relevância dos instrumentos de controle existentes, depreende-se que esses são mecanismos capazes de inibir a prática de condutas abrangidas pela Lei de Improbidade Administrativa. Para que essa inibição seja efetiva, é indispensável a melhor utilização desses institutos, pois, da forma como o controle tem sido executado ultimamente, não é possível atingir o escopo almejado com a sua criação. Referências BITENCOURT NETO, Eurico. Improbidade administrativa e violação de princípios. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 32.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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BRASIL. Lei nº. 8.429, de 02 de junho de 1992. Define as sanções a serem aplicadas aos agentes públicos. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Direito Administrativo. 10 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. HABERMAS e o Direito Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2008. CUNHA, Sérgio Sérvulo. Responsabilidade do administrador público. Revista Interesse Público, Porto Alegre, ano 4, n. 15, p. 126-139, jul./set. 2002. DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo pós-moderno: novos paradigmas do direito administrativo a partir da relação entre o estado e a sociedade. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. FIGUEIREDO, Marcelo. Responsabilização por atos de improbidade. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, ano 7, n. 28, p. 38-44, jul./set. 1999. FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à boa administração pública e o direito administrativo brasileiro do século XXI. Del Rey Jurídica, Ano 10, nº. 19, p. 5-7, 2º semestre, 2008. GARCIA, Emerson, ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011. GUERRA, Evandro Martins. Os controles externo e interno da administração pública e os tribunais de contas. Belo Horizonte: Fórum, 2003. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. V.II, 2.ed. tradução; Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3.ed.rev. e atual. São Paulo: saraiva, 2008.

MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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O SISTEMA FEDERALISTA NO BRASIL, BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE SUAS ORIGENS,

DESDOBRAMENTOS E DIFICULDADES CONTEMPORÂNEAS

Rodrigo Dantas Dias

Introdução Federalismo significa foedus, aliança, indica a forma

de Estado (Estado Federal), sendo a qual coexiste(m) mais de uma esfera de competências autônomas, atribuídas a entidades de base territorial geográfica, fundadas numa constituição escrita e rígida.

O debate em torno do federalismo tem sido questão proeminente em sede doutrinária, sobretudo no cenário político nacional. É habitual uma análise global do federalismo sob a perspectiva histórica e legislativa, sem adentrar-mos em pontos específicos.

A Constituição da República Federativa do Brasill impõe o regime federativo, mas o estado federal brasileiro não possui as características de uma federação clássica, pois diversas são as suas particularidades e peculiaridades. A repartição de competências legislativas e materiais dispostas na CRFB/88, tem demonstrado o gigantismo do poder central, onde a União encontra-se rodeada de prerrogativas, as quais, em

Advogado. Mestre em Direito Público. Pós graduado em Direito Econômico/Empresarial, Pós graduado em Direito Processual. Professor de ensino superior em cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Montes Claros, Faculdades Integradas Pitágoras, Facudade Vale do Gorutuba e das Faculdades Integradas do Norte de Minas.

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determinadas situações, inibem ou anulam o exercício de competência local. Neste trabalho, procura-se demonstrar, sob o ângulo do federalismo instituído os conflitos de competências incidente em nossa federação ressaltando principalmente a situação dos municípios, tendo em vista que sua autonomia não é totalmente pacífica na visão doutrinária.

1 Federalismo no Brasil 1.1 Origens

O federalismo brasileiro ao longo de sua história,

conquistou simpatizantes e gradualmente se propagou pelo País. A idéia do Estado unitário descentralizado, defendida pelos partidários da monarquia, não foi capaz de conter os avanços do federalismo no Brasil, que foi declarado pelo Decreto I, em 15 de novembro de 1889, tal diploma legal dispunha respectivamente em seus artigos 2º e 3º que:

Art. 2º- As províncias do Brasil-colônia, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil. Art. 2º- Cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais.

O federalismo passa a integrar o diploma

constitucional a partir de 1891, porém não podemos deixar de mencionar que as manifestações embrionárias do federalismo insurgiram-se com força crescente a partir da Regência (1831-1840) e expressaram-se em diversos setores. Em nível legislativo, aponta-se a Emenda Constitucional de 12 de

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agosto de 1834 – o Ato Adicional. Ele resultou da pressão das províncias em nome da descentralização. A iniciativa de sua elaboração partiu da Câmara dos Deputados, estabelecendo-se, entre outros pontos, as assembléias provinciais.

Com isso, transformaram-se os Conselhos Gerais previstos na Constituição, que não podiam elaborar leis, mas apenas apresentar propostas à Assembléia Geral, em Assembléias Legislativas Provinciais. Ocorreu, é certo, uma descentralização do poder, em proveito de uma maior autonomia das Províncias. Tal aspecto viria posteriormente a causar inúmeros conflitos e divergências. Uma das grandes falhas foi a ausência de distribuição de rendas públicas, entre gerais e provinciais.

Paulatinamente, houve o fortalecimento de idéias conservadoras relativas á interpretação do Ato Adicional. Isso operou com a transição do Primeiro ao Segundo Reinado. É que a grande descentralização realizada através desse diploma legal ensejou muitas dificuldades de interpretação e interesses politicamente colidentes, Em vários momentos, as Províncias deliberaram sobre assuntos que o governo central entendia serem da sua competência.

Com o intuito de resgatar-se o poder fracionado, em prol do poder central, editou-se o poder fracionado, em prol do poder central, editou-se a Lei 105, de 12.05.1840, que interpretou o Ato Adicional, sob o pretexto de correção dos excessos cometidos pelas províncias.

Desde os primórdios, a adoção do federalismo no Brasil sofreu críticas em virtude das diferenças que nossa estrutura de poder guardava em relação à dos Estados Unidos, país do qual importou-se o federalismo. Ocorre que nos Estados Unidos da América existiu a Confederação de Estados (1777), formada após a independência (1776). Os Estados eram reconhecidamente fortes. Abrindo mão da totalidade de

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seus poderes, delegaram à Confederação parcela dos mesmos, como forma a garantir autonomia e unidade entre eles. Esse movimento político teve sua culminância com a constituinte. Em 1787, a primeira Constituição Norte Americana foi proclamada, consagrando-se o federalismo.

Tal conceito empregado pelos fundadores da federação norte-americana baseava-se “na posição coordenada e independente dos distintos centros de governo. Cada qual está limitado a sua própria esfera e, dentro da mesma, é independente dos demais”. Dessa forma, uma nova estrutura política foi definida, representante natural da evolução sociopolítica desse país.

Durante a monarquia no Brasil, não tínhamos províncias fortes como os Estados americanos que depositaram na União a esperança da indissociabilidade. É fato: quando do Império, chegamos a experienciar alguns movimentos separatistas, mas que não lograram sucesso justamente porque as Províncias eram frágeis frente ao poder central.

Nesse sentido aduz Cezar Saldanha de Souza Júnior ao demonstrar as diferenças substanciais entre o Estado Norte Americano e o Brasil:

Os Estados Unidos constituem o caso clássico de anterioridade do povo ao poder. O Brasil, por sua vez, representa o exemplo mais radical de preexistência do poder: o poder precedeu o povo não apenas no sentido político do termo, mas fisicamente. Quando o primeiro Governador-Geral Tomé de Souza desembarcou, em 1549, com a máquina completa do Estado, não havia, a rigor, ninguém a ser governado. Não havia povo nem no sentido material da palavra62.

62 SOUZA JÚNIOR, 1978, p. 60.

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O federalismo no Brasil pode ser representado

através de um movimento pendular63. O poder central fez primeiramente maiores concessões aos Municípios, os quais constituíram a expressão natural da organização político-administrativa na colônia; depois, às Províncias; até reverter no crepúsculo do Império em prol daqueles.

A descentralização política e administrativa foi uma das questões que atravessou toda a história do Império, dividindo liberais e conservadores. Os liberais lutavam pela ampliação da autonomia provincial, e os conservadores defendiam um poder central forte que assegurasse a unidade do vasto território brasileiro. Nas palavras de Patrícia Azevedo da Silveira64, “esse fenômeno irá marcar ainda a fenda do federalismo no Brasil, uma fenda entre o real e o abstrato, ou seja, entre o real e o normativo.”

1.2 Evolução do Federalismo da Constituição de 1891 à Emenda Constitucional n. 1, de 1969

Entre a Constituição de 1891 e a de 1988, vigeram

cinco diplomas constitucionais. No conjunto, depreende-se essencialmente o aumento quantitativo no rol da competência privativa da União, a partir da Constituição de 1934. O ideal federalista, baseado no federalismo norte-americano, permeou os trabalhos da Constituinte. Segundo Bernard Schuartz65 tendo os seguintes elementos identificadores:

63 SCHWARTZ, 1985, p. 68-69. 64 AZEVEDO DA SILVEIRA, 2008, p. 38-39. 65 SCHWARTZ, 1985, p. 15.

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I)Trata-se de uma união de um número de entidades comuns; II) A divisão entre os poderes legislativos do governo central e dos Estados componentes está presidida pelo princípio de que o primeiro é um “Governo Nacional com competências taxativamente enumeradas”, enquanto que os segundos, são governos de “competências residuais; III) A competência de cada um desses centros de governo se exerce diretamente dentro de seus limites territoriais; IV) Cada Centro de Governo está provido de um amparato legislativo, executivo e judicial, para poder exigir o cumprimento das leis, e V) a supremacia do governo nacional, dentro de sua esfera respectiva em caso de conflito com o Governo dos Estados.”

A constituinte preocupou-se em atender ao

cumprimento desses elementos na elaboração do diploma constitucional, dando continuidade aos termos do Decreto n.º I, já anteriormente referido. O artigo 11, do projeto do Governo Provisório, foi rejeitado pela Constituinte em eu o poder da União restava acentuado. Assim dispunha o art. 11:

“Nos assuntos que pertencem concorrentemente ao Governo da União e aos governos dos Estados, o exercício da autoridade pelo primeiro obsta a ação das segundas e anula, de então em diante, as leis e disposições delas emanadas”

Tal dispositivo previa a competência privativa, com

exclusão dos Estados, pois, em havendo conflito entre a União e o(s) Estado(s), competiria àquela a regulação do tema. Isso provocou a rejeição pela constituinte de tal dispositivo, por considerá-lo antifederalista. Vejamos outros aspectos relativos aos diploma constitucional pátrio sob análise: a) a noção da

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necessária autonomia dos entres da federação no seu âmbito de competência (art. 10, por exemplo)66; b) a supremacia do governo nacional sobre as ordens jurídicas parciais (art. 6º)67, o que leva à conclusão de que a distinção entre a União e o governo nacional era de conhecimento do constituinte.

Na constituição norte-americana, ao regular-se a repartição de competência, fica definido que os poderes não delegados ao Estados Unidos pela Constituição, nem proibidos por ela aos Estados, são reservados respectivamente a estes e ao povo. Trata-se da competência residual: toda matéria cuja regulação não fosse de âmbito nacional, ou cuja proibição de ser regulada pelos Estados inexistisse, poderia sê-la pelos mesmos. Infere-se por conseqüência que, nos termos do constitucionalismo dos EUA, fixaram-se dois campos de poder mutuamente exclusivos e sem intercâmbio – traço que caracteriza o federalismo dual, sendo esta a chave mestra do federalismo norte-americano, uma vez que no constitucionalismo pátrio o elemento central passou a ser a discriminação das competências em sede constitucional, desde a Constituição de 1891.

Em nosso constitucionalismo os campos privativos foram essencialmente destinados à matéria tributária através da qual receitas são auferidas. O rol de competências aponta uma estrutura administrativa federal ainda simples, sem maiores ramificações.

A discriminação da repartição de competências reunia aspectos do que hoje encontramos em diversos títulos da Constituição pátria. Além de assegurar o sistema de obtenção de receitas, ela visava ainda a regular o mercado ao

66 Art. 10: “É proibido aos Estados tributar bens e rendas federais ou serviços a cargo da União, e reciprocamente”. 67 Art. 6: “O Governo Federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo: (...)2º para manter a forma republicana federativa(...)”.

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longo do território brasileiro, o que poderíamos caracterizar como um planejamento em nível normativo, ainda que embrionário, comparando-se com a atualidade, das atividades econômicas no país.

Quanto aos Estados, cumpre lembrar que, nos termos desse diploma legal, eles se organizariam de forma que fosse assegurada a autonomia dos municípios, no que dissesse respeito ao seu peculiar interesse; também deveriam respeitar os princípios constitucionais da União, tais como a liberdade individual e suas garantias, a democracia, a representação política, a forma republicana e o regime federativo.

Identifica-se se então no constitucionalismo pátrio um fato importante e determinante do federalismo, tornando uma praxe normativa que ira marcar as constituições posteriores: o da especificação cada vez maior das matérias atinentes à União e aos demais entes da federação no diploma constitucional.

Ocorreram três espécies de fenda no federalismo pátrio: o descompasso entre a teoria constitucional e a cultura jurídica e política existente; a ocorrência do autoritarismo no Brasil, o que causou implicações desfavoráveis ao exercício da autonomia dos entes da federação e ao equilíbrio entre os Poderes; o fenômeno da centralização, o que se verificou também no federalismo norte-americano – fruto da crise econômica e política.

O período em que vigoraram as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, foi marcado por inúmeras transformações históricas, operadas em nível nacional e internacional, que repercutiram certamente na história do constitucionalismo brasileiro e, particularmente, no federalismo.

Entre os mais importantes, seguindo a cronologia dos acontecimentos, destacamos a Primeira Guerra Mundial, que

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afetou a economia brasileira, fundada no cultivo e exportação do café. Com a redução da exportação, o Governo foi igualmente atingido, na medida em que a sucessão presidencial girava em torno da “política do café com leite” (1898-1919), constituindo o revezamento dos Estados de Minas Gerais e São Paulo no exercício da pasta presidencial, o que denotou não somente a inexpressividade política dos demais Estados mas também contribuiu ao diagnóstico da forma como expressou-se o federalismo em nosso Estado, mostrando o desequilíbrio no desenvolvimento das relações políticas e econômicas entre os entes da federação vividas no País. Por outro lado, a guerra fomentou a aceleração da industrialização no país. O desenvolvimento urbano, o movimento operário, a crise do capitalismo acompanharam ação do crescente intervenção do Estado na economia.

O liberalismo que norteou a redação da Constituição de 1891 não se repete na Constituição de 1934, que proclama o Estado Social e prevê expressamente a possibilidade de atuação dos Estados em caráter supletivo ou complementar em matérias que foram arroladas como privativas da União. Portanto, a partir da Constituição de 1934, somada à maneira de enumerar-se a competência da União, deixando-se os poderes residuais para os Estados, surge essa nova técnica baseada na competência concorrente. Eis a expressão de um novo modelo de federalismo – o federalismo cooperativo.

O federalismo cooperativo, fruto do constitucionalismo alemão, possibilita a formação de novos canais de relação entre os entres da federação, fundado na colaboração, na uniformização de leis, práticas administrativas, e não apenas na colaboração através de serviços públicos. Lá, através do federalismo cooperativo, verificou-se a transformação do planejamento político-estatal, de cunho amplo e multiforme, com base na interdependência

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entre Bunt e Länder68. É claro que o papel do Conselho Federal é fundamental à natureza dessa relação, sem o qual restaria enfraquecida.

Ressaltando que a constituição brasileira de 1934, ao consagrar o federalismo cooperativo, afirma a tendência mundial do modelo, estando este vinculado ao paradigma do welfare State, ampliando a atuação do Estado, privilegiando os direitos sociais, ressaltando uma crescente centralização de poderes no governo federal.

O Estado brasileiro, com a adoção do federalismo cooperativo, traz como características a possibilidade em ter um sistema aberto de comunicação da legislação e da atuação dos componentes federativos entre si, ao contrário do federalismo dualista inaugurado na Constituição norte-americana de 1787, onde não há uma clara e rígida divisão de competências entre os entes federados e as competências concorrentes passam a ser um identificador desse sistema, considerando ainda priorização das relações intergovernamentais, observando as decisões democráticas e negociadas pela política nacional, regional e municipal, no caso brasileiro.

Após a crise do Wefare State, o governo central não consegue mais responder às crescentes demandas de sua população com a decrescente entrada de suas divisas e a formação de uma sociedade fragmentada sem o grau de integração vivenciado nas décadas que se seguiram a Segunda Guerra. Fomenta-se uma revisão das bases do federalismo até então praticado.

Quando essa crítica ao federalismo cooperativo passa ser formulada se estabelece também um novo paradigma, o do Estado Democrático de Direito, um uma sociedade complexa 68 ARDNT, Klaus et AL. O conselho federal. In O Federalismo na Alemanha. São Paulo: Konrad Adenauer, 1995. P. 114.

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e múltipla. Sendo assim, o modelo federalista alemão encontra atualmente várias críticas por não conseguir superar os desafios sociais, políticos e econômicos acarretados pela globalização.

Em nível internacional, a crescente intervenção do Estado na Economia, desencadeada pelos efeitos negativos do capitalismo, culmina no surgimento de regimes autoritários – o fascismo e o nazismo. No Brasil, é na década de 30 que “amadurecem plenamente as correntes autoritárias”. Manifesto disso foram, respectivamente, a) o Decreto 19.398, de 11.11.30, expedido pelo governo provisório comandado por Getúlio Vargas com o fim de dissolver o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais69, b) além da outorga da Constituição de 1937 que não se orientou nos tradicionais mecanismos de elaboração e promulgação de uma constituição.

Ressalta-se que nesse período a autonomia dos Municípios foi extinta, passando-se à nomeação de interventores. Ademais, restringiu-se o rol da competência concorrente, comparando-se com a constituição anterior.

A fase de 1937 a 1945, conhecida como Estado Novo, constitui-se através de golpe de autoria político-militar. Tal fase delimita o apogeu e o declínio do autoritarismo no Brasil, ressurgindo o clamor por uma nova constituição, fundada em processo legislativo democrático e fruto de uma Assembléia Nacional Constituinte, marcando também o fim da 2ª Grande Guerra Mundial.

A Constituição de 1946, norteada por novos ares democráticos, retoma a autonomia dos Estados e Municípios e

69 PAIM, Antonio et al. Evolução do pensamento político brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985, p. 419. A expressão amadurecimento demonstra o crescimento desse processo ao longo da década de 20, especialmente na sua segunda metade.

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organiza à planificação da economia, porém em 1964, um golpe militar instaura a ditadura, substituindo a constituição de 1946 por novo diploma constitucional que entra em vigor em 1967, mantendo a estrutura do Estado Social, abalando novamente o federalismo pela ausência de democracia.

A Emenda n. 1 de 1969, não alterou substancialmente a redação da Constituição de 1967. Quanto ao aspecto prático, manteve-se a centralização do poder e o desrespeito para com as instituições democráticas, de forma que os Estados e Municípios exerceram restritivamente suas autonomias, sob vigilância e submissão ao poder central em mãos dos militares. O parágrafo único do artigo 8º desse diploma legal enunciou que a competência da União não exclui a dos Estados para legislar supletivamente sobre as matérias das alíneas c, d, e, q, v, do item XVIII, respeitada a lei federal, técnica que já figurava na Constituição de 1934.

O Poder Legislativo teve seu campo de atuação invadido frontalmente quando da vigência das Constituições de 1934, 1967 e da Emenda n. 1 de 1969. O comprometimento da harmonia entre os poderes é auferido no período de vigência de todas essas constituições, incluindo-se o relativo ao diploma constitucionalismo pátrio.

2 O Federalismo na CRFB de 1988 2.1 Principais aspectos

Considerando o intuito da Constituição de 1988 em

resgatar os ideais democráticos dissolvidos em períodos anteriores, em conseqüência fomentou efeitos importantes sobre o federalismo. Nos termos do artigo 1º podemos

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observar indissociabilidade da República Federativa do Brasil, onde é proclamado também o Estado Democrático de Direito, cujos fundamentos informam o federalismo, devendo nortear o nosso processo legislativo.

O debate em torno da presente matéria encontra-se disciplinado no Título III da CRFB de 1988, que trata da “Organização do Estado”, e subdivide-se nos seguintes capítulos: Da Organização Político-Administrativa, Da União, Dos Estados Federais, Dos Municípios, Do Distrito Federal e Dos Territórios, Da Intervenção da Administração Pública.

A atual Constituição fomentou o renascimento do municipalismo no Brasil, fazendo com que esses entes fossem reconhecidos como integrantes da federação brasileira, outro avanço importante em relação ao federalismo é a repartição das receitas tributárias, representando a descentralização ao promover o aumento do número de impostos estaduais e municipais, ampliando ainda a autonomia dos entes federativos no que se refere ao poder de legislar e se cobrar tributos, em detrimento do poder da União.

Cabe ressaltar que houve uma ampliação no que se refere ao rol da competência concorrente, “(...) prevendo-se ação legislativa mais ampla e maiores contatos intergovernamentais, dentro da minuciosa regulação constitucional prévia”70. A estrutura federalista no Brasil, passa a se apresentar sob quatro ordens jurídicas, tais como: a nacional, a federal, a. estadual e a municipal.

2.2 A Repartição de Competências prevista pela CRFB de 1988

70 HORTA, Raul Machado. Problemas do Federalismo. In Perspectivas do federalismo brasileiro. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1958, p. 17.

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Em relação a repartição das competências previstas em nosso sistema federalista, podemos observar que o constituinte preservou dois métodos de corte de competência: a) o corte horizontal que consubstancia a competência privativa ou exclusiva e b) o corte vertical que caracteriza as competências comum e concorrente. 2.2.1 A competência segundo o corte horizontal Em relação à competência privativa ou exclusiva prevista na Constituição de 1988, podemos constatar o agigantamento dos poderes da União no que se refere à atividade legislativa, considerando que o legislador fixou dois critérios para autorizar aos Estados que disciplinem as matérias arroladas no artigo 22, quer seja através de lei complementar, quer seja através da extensão referente à questões específicas. Resta por fim, uma outra questão, a do âmbito da delegação; se é possível uma delegação para determinado ou determinados Estados ou, em contrapartida, apenas para todos. Há dois entendimentos a esse respeito na doutrina: um aponta a existência de uma limitação material implícita, pois o princípio da igualdade de tratamento deve atingir todos os entes federativos e não foi excepcionado pela Constituição. Outros crêem ser conveniente ao equilíbrio federativo a igualdade formal fixada, salientando-se que os casos de assimetria para a concreção da igualdade material já constam do texto constitucional.

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Pelas competência privativa ou exclusiva prevista no artigo 22 da CRFB de 1988 entendemos a competência exercida por um ente da federação com exclusão dos demais. Já a competência concorrente por sua vez, prevista no artigo 24 do mesmo diploma legal, constitui a competência na qual todos os entes da federação atuam em cooperação; possuindo cada qual um poder de atuação definido sobre determinada matéria, desde que respeitado o campo geral restritivo à União. Em relação aos Estados-Membros, a competência privativa que lhes cabe encontra-se descrita no artigo 25, §1º, que dispõem: “São reservados aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta constituição”. Vale esclarecer que tal dispositivo é referência aos poderes residuais que possuem nascedouro na doutrina norte americanas”71. Verifica-se aqui um sistema de coexistência em que “tudo podem os Estados-Membros, contanto que não infrinjam os princípios que limitam sua autonomia, e tudo pode a União, desde que respeite os direitos dos Estados”72. A atuação dos Estados - Membros, nos termos da nossa Constituição, possuem incidência nos campos não abrangidos pelos artigos 21, 22, 24 (atuação da norma geral se a União não editou) e 30. Dessa forma, são reservados aos Estados as competências que não forem privativas da União e dos Municípios, nesse sentido, podemos dizer que o constituinte estadual não está intitulado a impor padrões

71 A Emenda X da Constituição Norte Americana assim dispõe: “The power not delegated to the United States by the Constituition, nor prohibited in to the States are reserved to the States respectively, or the people.” V. COOLEY , 1960, p. 61. 72 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. O poder constituinte dos estados-membros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p.165.

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de conduta aos entes locais, mas tão somente a definir a organização dos Poderes Estaduais. Considerando que o legislador não enumerou as competências dos Estados-Membros, elas serão obtidas por exclusão, ficando a cargo do legislador que elabora a Constituição estadual, respeitando-se é claro, a ordem jurídica nacional, nos termos da Republica Federativa do Brasil conforme disposto no artigo 18. O município também é um ente da Federação Brasileira e pode exercer o papel legislativo próprio em matéria de interesse local, suplementando, no que couber, a legislação federal e estadual, sendo esta competência depreendida no artigo 30 da CRFB de 1988. Dessa forma, a atividade legislativa municipal submete-se aos princípios da Constituição Federal com estrita obediência à Lei Orgânica dos municípios, à qual cabe o importante papel de definir as matérias de competência legislativa da Câmara, uma vez que a Constituição Federal não a exaure, pois usa a expressão interesse local como catalisador dos assuntos de competência municipal. As competências legislativas do município, diferentemente do que ocorria na vigência da constituição anterior, possui como aspecto de maior relevância da autonomia municipal a edição de sua própria Lei Orgânica, consubstanciando se em competência genérica em virtude da predominância do interesse local (CRFB, art. 30, I); competência para estabelecimento de um Plano Diretor (CRFB, art. 182); hipóteses já descritas, presumindo-se constitucionalmente o interesse local (CRFB, artigos. 30, III a IX e 144, § 8º); competência suplementar (CRFB, art. 30,II). Apesar de difícil conceituação, interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem

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gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União).

Sob a égide do constituinte de 1988, o município ganhou mais que nunca definitivos foros de autonomia e liberdade administrativa, sendo dessa forma contemplado como peça estrutural do federalismo brasileiro, conforme análise dos arts. 1º, 18, 29, 30, 34, VII, c, todos da Constituição de 1988.

A autonomia municipal encontra-se fundada na tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, auto-governo e auto administração não encontra precedentes nas Constituições anteriores, assegurando aos Municípios os elementos indispensáveis à configuração de sua independência, efetivada mediante a titularidade de atribuições que lhe são privativas, expostas no art. 30 da atual Constituição da República, em especial, o assim chamado interesse local, fixando sua área de atuação, entendido este como o que afeta mais diretamente as suas necessidades imediatas, e , indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais.

Na dicção da CRFB de 1988, é total a autonomia municipal no que concerne aos assuntos de interesse local, em que pese a aparente redundância, é tudo aquilo que o Município, por meio de lei, entender do interesse da sua comunidade.

Assim, o município passou a ganhar expressamente status constitucional, face a sua incorporação como parte integrante e autônoma do Estado Democrático de Direito.

Não obstante correntes doutrinárias em contrário que ainda apregoam a redução da autonomia municipal, entre eles Castro Nunes, Pontes de Miranda e José Afonso da Silva. A opinião desses autores embora não podemos concordar

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denotam que o município não constitui peça essencial do federalismo.

Porém, no federalismo brasileiro, os Municípios merecem tratamento distinto, tendo em vista as bases históricas do municipalismo no Brasil, somado ao novo comando normativo estabelecido com a Constituição de 1988. Um estudo sobre a o federalismo no Brasil há de analisar necessariamente o municipalismo, pois foi peça fundamental na estruturação do nosso Estado e hoje alcança posição diferenciada, em relação aos diplomas constitucionais anteriores

Para José Nilo de Castro, inegavelmente, cabe ao Município como poder público, dispor sobre regras de direito, legislando comum com a União e o Estado com Fundamento no art. 23, VI CR.

Portanto quando um município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo administrativo em se tratando de competência comum, disciplinar esta matéria no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a ordenação pela compatibilidade local , e consideração a esta ou aquela vocação sua.

2.2.2 A competência segundo o corte vertical A competência comum arrolada nos doze incisos do

artigo 23 e seu parágrafo único da Constituição se assenta em uma forte relação de cooperação, fruto do constitucionalismo alemão, em sua essência, deve privilegiar a solidariedade e atuação conjunta dos componentes federativos, sem exclusivismos na definição de competências e finanças, e de outra parte, a globalização tem estimulado o fortalecimento de

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poderes locais, porém, os entes federativos não estão se fortalecendo e apenas se desconstruindo as conquistas do Estado do bem-estar.

Já a competência concorrente tratada no artigo 24 da CRFB de 1988. Possui dezesseis artigos e quatro parágrafos. Neste artigo os municípios não são mencionados nominalmente, o que para muitos autores constitui uma falha, porém tal falha encontra-se suprível com a leitura do dispositivo 30, II. Aquele dispositivo, juntamente com os artigos 23 e 30, representam uma ruptura formal com prática normativa de cunho centralizador vivida sob a égide da Constituição anterior.

A competência concorrente poderá exercer-se não só quanto à elaboração de leis, mas de decretos, resoluções e portarias, e nas palavras de Toshio Mukai:

“trata-se do denominado federalismo cooperativo, onde os níveis de governo não se digladeiam pelas suas competências, mas se unem para, cada qual, dentro de suas atribuições, darem conta das necessidades dos administrados”.73

Acreditamos que a exaustão das matérias passíveis de

suplementação, engessam a flexibilização e dinamismo do federalismo, nunca abrangendo todas as possibilidades.

Cabe ressaltar no diploma constitucional pátrio, que o legislador utiliza um conceito indeterminado ao mencionar o termo, “norma geral” para tratar da competência concorrente. Tal expressão é criação de Aliomar Baleeiro, que desejava solucionar questões na área tributária. Esse jurista apresenta a finalidade da norma geral nos seguintes termos: ela “constitui

73 MUKAI, Toshio. Direito Ambiental Sistematizado, 3º ed. pág. 17.

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uma fórmula verbal para vencer resistências políticas”74. O conceito de lei nacional, por sua vez, é bem é bem definido por Geraldo Ataliba. Segundo ele, lei nacional represente “a lei brasileira, que transcende as contingências regionais e locais (...), transcende as distinções estabelecidas em razão das circunstancias políticas e administrativas” 75.

Paulo Afonso Leme Machado, conceitua como norma geral como “aquelas que pela sua natureza podem ser aplicadas a todo o território brasileiro”76. Para ele, a norma geral diz respeito a um interesse geral, de forma que a superioridade não está no fato de ser federal, mas no fato de ser geral.

O estudo das normas gerais envolve, assim, não só a questão de sua função e natureza, como a de seus limites. Por sua vez, esses temas só podem ser explicados à luz do federalismo, forma de estado que lhes dá uma dimensão especial e uma diferença específica. Nos Estados federativos as normas gerais versam sobre matéria que originariamente é de competência também de Estados-Membros e Municípios, padronizando a normatividade do conteúdo a ser desenvolvido pela legislação ordinária desses entes estatais e da própria União, e tornando de suma relevância a difícil tarefa de trançar-lhes os lindes.

Ocorre porém que o conceito de normas gerais pode representar idéias diferentes. Na prática, demonstra-se conflituosa a fixação dos limites do que vem a significar generalidade e peculiaridade, de modo que não se afasta a ventilação de uma eventual inconstitucionalidade. Será fundamental a atuação do Poder Judiciário no deslinde da fixação dos limites da norma geral.

74 ALMEIDA, F. 1991, p. 157. 75 ATALIBA, 1969, p. 49. 76 MACHADO. 1998, p.33.

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Caso não ocorra atuação normativa pela União sobre determinado tema, poderá o Estado exercer competência legislativa plena77. Se a norma geral já tiver sido editada, então cumpre salientar a competência suplementar dos Estados.

Nesse sentido, podemos dizer que as normas gerais possuem a natureza de regras quase-constitucionais, pois são hierarquicamente inferiores a Constituição. Porém, ao traçarem rumos à legislação das pessoas estatais78, erigem em posição de superioridade às demais leis ordinárias federais, estaduais e municipais. Configura-se assim, manifestação de um federalismo integrativo, no qual há uma ordem especial, composta dessa quarta espécie normativa, nem federal, nem estadual, nem municipal, mas acima de tudo ordenamento dessas ordens jurídicas parciais e hierarquicamente inferior tão-somente à Constituição Federal.

A União está obrigada a inserir na norma geral o conteúdo dos acordos, tratados ou convenções internacionais já ratificados, depositados e promulgados no Brasil, como, evidentemente, guardar fidelidade a Constituição em vigor.

De acordo com o art. 23 da CF/88, em seu parágrafo único, fica previsto que “Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União, Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem estar em âmbito nacional”. Dispõe ainda o art. 69 da Lei Fundamental que a lei complementar necessita da

77 Nesse sentido, v. Adin n. 903 – MG, j. em 14.10,1993, DJ 24.10.1997. p. 54.155, vol. 0188801 p. 29. O Estado de Minas Gerais promulgou lei em benefício de pessoas com deficiências físicas, competência que lhe foi conferida concorrentemente com os demais entes da federação. Inexistência de lei federal. 78 Exemplo: resoluções do Congresso Nacional, como Leis Complementares.

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aprovação da maioria absoluta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Acreditamos que os Municípios, por sua vez, podem legislar sobre norma geral com base no interesse local, uma vez que os municípios atuam no campo de sua especificidade, de sua autonomia, ou seja, com base no interesse local, mas atrelados às limitações oriundas das competências que particularmente competem à União (arts. 21 e 22) e ao que lhe compete em nível comum ou concorrente (arts. 23 e 24, caput e incisos).

3 Problemáticas e necessidades do federalismo após a Constituição de 1988

Considerando que na organização da estrutura

administrativa poderá ocorrer a atuação de diversos órgãos ou mesmo de mais de um ente federativo, é notório que deve ser respeitada a receita traçada pelo legislador constituinte no que se refere à repartição de competências.

Por outro lado, todas as etapas de produção devem ser analisadas e devidamente avaliadas, nesse sentido percebemos que em nível municipal o cidadão se sente mais próximo do poder, daí a importância da multiplicação dos círculos de decisões políticas.

É notório a reivindicação de autonomia em nível municipal, nesse sentido se manifesta HESSE:

“A reivindicação por uma ‘revitalização da política vinda de baixo’ não somente expressa esperanças e expectativas para uma maior eficiência, transparência e legitimidade nas políticas tradicionais através do emprego de processos políticos descentralizados, como

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também reconhece que as relações entre o Estado e a sociedade estão mudando novamente.”79

Cabe ressaltar que para alcançar a efetividade do

conteúdo das normas, fruto do exercício da competência legislativa municipal, depende da captação de receitas, qualificação de pessoal, estrutura administrativa própria. Infelizmente tais dificuldades, esbarram em processos legislativos lentos e com interesses opostos.

Dessa forma, a atividade legislativa municipal submete-se aos princípios da Constituição Federal com estrita obediência à Lei Orgânica dos municípios, à qual cabe o importante papel de definir as matérias de competência legislativa da Câmara, uma vez que a Constituição Federal não a exaure, pois usa a expressão interesse local como catalisador dos assuntos de competência municipal. As competências legislativas do município, diferentemente do que ocorria na vigência da constituição anterior, possui como aspecto de maior relevância da autonomia municipal a edição de sua própria Lei Orgânica, consubstanciando se em competência genérica em virtude da predominância do interesse local (CF, art. 30, I); competência para estabelecimento de um Plano Diretor (CF, art. 182); hipóteses já descritas, presumindo-se constitucionalmente o interesse local (CF, arts. 30, III a IX e 144, § 8º); competência suplementar (CF, art. 30,II). Apesar de difícil conceituação, interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem

79 HESSE, Joachin Jens. República Federal da Alemanha: do federalismo cooperativo à elaboração de política conjunta. In O Federalismo na Alemanha. São Paulo: Konrad – Adenauer, 1995. P. 135.

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gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União). O art. 30 da Constituição da República trata da competência municipal e merece breve análise:

“Art. 30. Compete aos municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; II – suplementar a legislação federal a estadual no que couber; III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluindo o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental; VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.”

O disposto no art. 30, inc. I, da Constituição,

segundo o qual os Municípios têm competência privativa para legislar sobre assuntos de interesse local, suscita dúvidas. A legislação municipal deve ser sempre concorrente, nunca deve

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extrapolar seus próprios interesses nem entrar em confronto com interesse estadual ou nacional.

A limitação oposta no art. 30, inciso II, em que o legislador permitiu ao município, apenas e tão somente suplementar a legislação federal e estadual, embora nas áreas que lhe são reservadas não tenham as leis federais e estaduais qualquer prevalência. Sendo assim, a competência legislativa é uma expressão basilar da autonomia municipal. O município, no âmbito de sua competência, edita leis que tem a mesma hierarquia das leis estaduais e federais, salvo se no exercício da competência suplementar, quando então as suas normas terão de se amoldar as dos outros níveis de governo.

Considerando que um dos aspectos marcantes da adoção do federalismo cooperativo no Estado brasileiro, traz como características a possibilidade em ter um sistema aberto de comunicação da legislação e da atuação dos componentes federativos entre si, ao contrário do federalismo dualista inaugurado na Constituição norte-americana de 1787, onde não há uma clara e rígida divisão de competências entre os entes federados e as competências concorrentes passam a ser um identificador desse sistema, considerando ainda priorização das relações intergovernamentais, observando as decisões democráticas e negociadas pela política nacional, regional e municipal, no caso brasileiro.

O federalismo cooperativo é um sistema complexo que envolve não somente a possibilidade de atuação autônoma, mas também, desenvolvimento de políticas conjuntas e solidárias, mas para tanto necessário frizar a necessidade efetiva da participação dos entes da federação e organismos regionais ou municipais interessados na formulação dos planos de desenvolvimento nacional e regional.

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Igualmente válida é a organização dos Municípios em associações transparentes, tornando pública suas dificuldades, suas demandas, trocando experiências, como forma de participação do governo estadual. O próprio aprofundamento das relações entre os municípios, no intuito de congregar forças e superar dificuldades, só tem a fortalecer os entes da federação perante a União, bastante centralizadora. Sendo assim, não devemos concentrar nossas forças apenas em questões como reforma tributária dentre outras, sem que para isso ocorra uma reforma administrativa e sem a ampliação dos esforços cooperativos, atualmente em pauta no Congresso Nacional.

Não devemos perder de vista a necessária autonomia dos Estados – Membros, intimamente ligada à efetiva autonomia dos Municípios, por guardarem relação, isso não significaria autonomia absoluta considerando que a limitação do Poder Constituinte Decorrente é da essência do próprio federalismo. Impossível conceber um Estado Federal em que as unidades federativas gozem da plenitude do poder, ou detenham soberania.

Nossos senadores deveriam ainda priorizar suas atuações em prol dos Estados-Membros, estabelecendo vínculo de primeira grandeza e não somente vínculo partidário, considerando que a solidez de um Estado Federal não se funda somente em bases jurídicas, mas em sua essência encontram-se ligados à bases políticas que irão legitimar tanto a União quanto aos demais entes federativos de forma ampla e homogênea.

A problemática em se manter a unidade federativa depende ainda da atuação de um Congresso, responsável pelo processo legislativo a nível federal, tal congresso apresenta um notável desequilíbrio em relação a sua representatividade

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considerando que maioria dos políticos que o compõem são da região nordeste.

4 Considerações finais A base do federalismo brasileiro de acordo com a

atual Constituição se assenta em uma forte relação de solidariedade e atuação conjunta dos componentes federativos, porém alguns exclusivismos na definição de competências e finanças, e de outra parte dificultam a atuação dos menores entes. A globalização tem estimulado o fortalecimento de poderes locais, porém, os entes federativos não estão se fortalecendo e apenas se desconstruindo as conquistas do Estado do bem-estar.

Sob a égide da nossa Constituição, o município ganhou mais que nunca definitivos foros de autonomia e liberdade tanto legislativa como administrativa, sendo dessa forma contemplado como peça estrutural do federalismo brasileiro.

A autonomia fundada na tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e auto administração não encontra precedentes nas Cartas fundamentais anteriores, assegurando aos Municípios os elementos indispensáveis à configuração de sua independência, efetivada mediante a titularidade de atribuições que lhe são privativas, expostas no art. 30 da CRFB de 1988, em especial, o assim chamado interesse local, que aparece como conceito-chave para fixar sua área de atuação, entendido este como o que afeta mais diretamente as suas necessidades imediatas, e , indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais.

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Na dicção, é nítida a autonomia municipal no que concerne aos assuntos de interesse local, em que pese a aparente redundância, é tudo aquilo que o Município, por meio de lei, entender do interesse da sua comunidade.

Assim, o município passou a ganhar expressamente status constitucional, face a sua incorporação como parte integrante e autônoma do Estado Democrático de Direito, não obstante correntes doutrinárias em contrário que ainda apregoam a redução da autonomia municipal.

Enquanto for defeso a municipalidade abolir as exigências federais ou estaduais, a Lei Magna autoriza o poder público municipal, e sobre isso não há dúvida, formular exigências adicionais sempre que estas tenham por viso seu próprio interesse no caso concreto.

Inegavelmente, cabe ao Município como poder público, dispor sobre regras de direito, legislando comum com a União e o Estado com Fundamento no art. 23, VI CR.

Portanto quando um município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo administrativo em se tratando de competência comum, disciplinar esta matéria no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a ordenação pela compatibilidade local , e consideração a esta ou aquela vocação sua.

A repartição de competências não deve ser vista como um fim em si mesmo, a redefinição da repartição de competências nao há de centrar-se somente na redefinição da repartição de competências entre entes da federação, mas entre o Estado e a sociedade, o público e o privado80, num somatório de esforços necessários aos contornos de sutuações cada vez mais problematizadas.

A federação brasileira foi idealizada para atingir os altos ideais do ser humano, do cidadão e da sociedade. Por 80 V. BARACHO, 1995, p. 100.

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esta razão, a interpretação que deve ser extraída das competências federativas logicamente não deve visar uma rigidez absoluta dos papeis dos entes federados. Os poderes das entidades federadas, evidentemente, não podem ser menosprezados, mas a distribuição das competências deve, isto sim, atender aos valores fundamentais postulados pelo texto constitucional. Neste sentido, devemos prestigiar o espírito da Lei Máxima.

As dificuldades financeiras que assinalam os tempos atuais parecem indicar no sistema pátrio não um federalismo cooperativo e sim um federalismo “de negociação”, em que se intensificam o poder de barganha e o acirramento dos lobbies.

5 Referências

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