estratégias para auxiliar os sem - abrigo na cidade de lisboa · definições de sem-abrigo ......

173
Relatório Final (versão em português) 2009 Estratégias para Auxiliar os Sem- Abrigo na Cidade de Lisboa Coordenador: Prof. Doutor José Lúcio Equipa de Investigação: Dra. Filomena Marques Dr. Luís Almeida Dr. Rui Carvalho

Upload: nguyenphuc

Post on 13-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

Relatório Final (versão em português)

2009

Estratégias para Auxiliar os Sem-

Abrigo na Cidade de Lisboa

Coordenador:

Prof. Doutor José Lúcio

Equipa de Investigação:

Dra. Filomena Marques

Dr. Luís Almeida

Dr. Rui Carvalho

Page 2: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

1

Índice

Introdução................................................................................................. 3

I. Conceptualização teórica sobre a Pobreza, Exclusão e o fenómeno dos Sem-

Abrigo.....................................................................................................…6

1.1. Pobreza e Direitos Humanos ........................................................................................................................... 7

1.2. A Pobreza ............................................................................................................................................................. 10

1.3. A Exclusão Social .............................................................................................................................................. 17

1.4. As Pessoas Sem-abrigo .................................................................................................................................... 24

1.4.1. O Direito à Habitação ....................................................................................................................................... 24

1.4.2. A problemática do conceito de sem-abrigo ............................................................................................... 30

1.4.3. Definições de Sem-Abrigo .............................................................................................................................. 33

1.4.4. Porque as Pessoas são Sem-Abrigo? ............................................................................................................ 41

1.4.5. Abordagem dos Sem-Abrigo de acordo com uma Perspectiva Ecológica ....................................... 43

II. Compreender o Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América:

O que é e o que está a ser feito? ............................................................. 49

Nota de Abertura ............................................................................................................................................................ 50

2.1. A “Modernização” da Sociedade Norte-Americana e a “Modernização” do Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América ........................................................................................................ 53

2.2. “Os Sem-Abrigo contam”: Contando e Explicando os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América .............................................................................................................................................................................. 60

2.3. Breve nota acerca da investigação sobre a questão dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América .............................................................................................................................................................................. 79

2.4. Estratégias para ajudar os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América – Uma Perspectiva Diacrónica e alguns exemplos actuais ..................................................................................................................... 84

III. Conhecer o Fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal e Lisboa…..112

3.1. O fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal ............................................................................................. 113

3.2. O Perfil do Sem-Abrigo na Cidade de Lisboa ........................................................................................ 119

IV. Estratégias actuais de apoio aos Sem-Abrigo na cidade de Lisboa..131

4.1. Breve Perspectiva Histórica ......................................................................................................................... 132

4.2. Respostas existentes na cidade de Lisboa............................................................................................... 136

4.3. Estratégias e Políticas de Inclusão Social ............................................................................................... 139

4.3.1. Na Europa ......................................................................................................................................................... 139

Page 3: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

2

4.3.2. Em Portugal ...................................................................................................................................................... 143

4.4. Estratégias para as Pessoas Sem-Abrigo ................................................................................................. 152

4.4.1. Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo – 2009-2015 ................................ 152

4.4.2. Plano Cidade para a Pessoa Sem Abrigo – Lisboa ................................................................................ 159

Conclusões ............................................................................................. 163

Bibliografia………………………………………………………………164

Page 4: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

3

Introdução

Este projecto de carácter exploratório surge na sequência de reuniões tidas com a

Vereadora do Pelouro da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa. No decurso

dessas reuniões, a Vereadora responsável pelo Pelouro acima mencionado, manifestou

interesse na colaboração do E-GEO, no domínio da ampla revisão do actual quadro de

políticas sociais conduzidas pela Edilidade. Assim, pretende-se com este projecto

aprofundar uma temática de grande relevância no quadro das políticas sociais de base

local e, em simultâneo, obter ganhos e economias de escala e tempo, uma vez que o

trabalho tirará partido de uma colaboração entre o E-GEO e a Câmara Municipal de

Lisboa.

Como primeira etapa de investigação, cumpre referir a estadia de três semanas (do

coordenador do presente projecto de investigação) no Departamento de Sociologia da

University of Southern California (USC) no mês de Setembro de 2007. Cumpre, aqui,

agradecer aos Professores Tim Biblarz, Michael Messner e Elaine Kaplan do referido

Departamento. Foi através da oportunidade de investigação concedida que o presente

projecto começou a ganhar forma. No âmbito dessa estadia de três semanas, efectuou-se

um primeiro levantamento de estratégias e políticas de apoio aos sem-abrigo em curso

nos EUA e iniciou-se um primeiro contacto com a realidade norte-americana.

Deste modo, a primeira etapa de investigação permitiu balizar, da forma mais

adequada, o tipo de objectivos e metodologias a seguir no âmbito do presente trabalho.

Por outro lado, o presente Projecto tem como Consultor Externo o Professor

Elliott Sclar do Earth Institute/Columbia University. Pretendeu-se, com esta consultoria,

garantir as melhores condições de sucesso do presente projecto de investigação e, em

simultâneo, ter a possibilidade de aceder aos recursos científicos e académicos de uma

instituição de renome internacional no domínio dos estudos sobre pobreza e exclusão. É

importante mencionar que o Professor Elliott Sclar possui um currículo académico e

profissional adequado ao perfil de Consultor Externo para um Projecto nesta área

Page 5: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

4

temática. Acresce, ainda, que o projecto irá incluir uma comparação com a realidade

norte-americana, no domínio das estratégias de apoio à população sem-abrigo. Esta

opção justifica-se por dois motivos:

a) Os Estados Unidos da América têm grande tradição no domínio da

investigação e da acção no que concerne aos problemas da exclusão do

mercado habitacional formal;

b) A Câmara Municipal de Lisboa pretende, até certo ponto, inspirar-se em

experiências norte-americanas no quadro do apoio à população sem-abrigo,

nomeadamente nos princípios filosóficos e organizacionais dos denominados

“Ten Year Plans”.

Assim, pensou-se que a opção por uma ligação internacional ao Earth

Institute/Columbia University, no quadro da execução deste projecto, se afigurava como

adequada e benéfica para a melhor concretização dos objectivos propostos. Deste modo,

efectuou-se um conjunto de quatro deslocações aos Estados Unidos no decurso da

elaboração do projecto: duas em 2008 e outras duas em 2009. As referidas deslocações

tiveram como objectivos a recolha bibliográfica, a discussão de materiais produzidos

com o Consultor Externo e a realização de entrevistas a investigadores e a dirigentes

com interesses e responsabilidades nesta temática1.

O presente relatório irá abordar, sequencialmente, os seguintes pontos:

a) Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo;

b) Análise das estratégias desenvolvidas nos EUA para apoiar a população sem

residência permanente;

c) Quantificação do fenómeno dos sem abrigo à escala do país (Portugal) e, mais em

pormenor, à dimensão da Cidade de Lisboa;

d) Estudo das estratégias (recentes e actuais) desenvolvidas pelas autoridades

municipais de Lisboa, em apoio dos sem abrigo.

1 Elliot Sclar, Martha Burt, Carol Canton, Sam Tsemberis, Tony Hannigan, Aaron Levitt, Kim Hopper.

Page 6: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

5

Pretende-se com o presente projecto de investigação, analisar em que medida é que a

filosofia subjacente às estratégias desenvolvidas nos EUA, e em particular as que têm

como palco a área urbana de Nova Iorque, poderá ser “adaptada” à realidade da

principal cidade do país. Nesta análise ter-se-á em consideração as características,

tipologias, história e nexos de causalidade do fenómeno dos sem abrigo em Lisboa. Por

este motivo, inclui-se no Relatório de Projecto um estudo detalhado quer da

quantificação do fenómeno, quer do historial recente das estratégias levadas a cabo pela

Edilidade do maior aglomerado urbano de Portugal.

Esperamos, assim, dar uma contribuição para uma futura

reformulação/reposicionamento das estratégias de apoio à população sem-abrigo na

cidade de Lisboa.

Page 7: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

6

Capítulo I

Conceptualização teórica sobre a Pobreza, Exclusão e o fenómeno dos Sem-Abrigo

Page 8: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

7

1.1. Pobreza e Direitos Humanos

No ano em que é celebrado o 60º aniversário da assinatura da Declaração

Universal dos Direitos Humanos2 (ou seja, em 2008), o Banco Mundial, publica, no mês

de Agosto, uma nova avaliação da pobreza, colocando o número de pobres, no mundo,

na casa dos 1,4 mil milhões de pessoas. Mais 40% face aos 930 milhões apresentados em

2005. Na Europa de Leste e Ásia Central, o número de pobres mais do que triplicou

entre 1981 e 2005, passando de sete para 24 milhões. No continente africano a situação é

dramática. Na África Subsariana a pobreza manteve-se estável em termos percentuais –

atingindo cerca de metade da população – mas quase duplicou em termos absolutos3.

“As mortes sem sentido em Bombaim, os milhares de pessoas em fuga do conflito na República

Democrática do Congo, as centenas de milhares de pessoas encurraladas em condições extremas no

Darfur, em Gaza, na zona norte do Sri Lanka, e uma recessão económica global que pode empurrar

muitos milhões para a pobreza, criam uma plataforma premente para a acção no âmbito dos direitos

humanos,” afirmou a Secretária-Geral da Amnistia Internacional, Irene Khan, no dia 10

de Dezembro de 20084.

Na União Europeia (UE), uma parte importante da população continua a viver

em situação de exclusão social, dado que uma em cinco pessoas vive em habitações

degradadas; cada dia, cerca de 1,8 milhões de pessoas são acolhidas em centros

especializados para os sem-abrigo; 10% vivem em agregados familiares desempregados;

o desemprego de longa duração aproxima-se dos 4%; 31 milhões de trabalhadores, ou

seja 15%, auferem ordenados extremamente baixos; 8%, ou 17 milhões de trabalhadores

encontram-se em situação de pobreza monetária apesar de terem um emprego; a

proporção de jovens que abandona o ensino precocemente ultrapassa os 15%; e que a

2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi redigida, em 1948, por Eleanor Roosevelt e dois outros juristas. Os trinta artigos da Declaração organizam-se em quatro grandes dimensões: i) A das prerrogativas pessoais de todos os indivíduos, como o direito à vida, o direito de não ser torturado ou escravizado, o de ser protegido pela lei e por uma justiça imparcial; ii) A dimensão dos direitos decorrentes da vida em sociedade, como o direito à vida privada, à família e à propriedade, o direito de circulação, nacionalidade e asilo; iii) A dimensão das liberdades públicas, como a de pensamento e de crença, a de expressão, reunião e associação, ficando bem explícito, no artigo 21º que “A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos (…)”; finalmente, iv) A dimensão dos direitos económicos, sociais e culturais, onde são proclamados os direitos ao trabalho, ao salário (“igual para trabalho igual”), à segurança social, ao descanso e às férias, bem como os direitos à saúde e ao bem-estar, à educação básica gratuita e à participação na vida cultural e científica.

3 Fonte: Banco Mundial (Agosto, 2008)

4 Data do Aniversário da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Page 9: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

8

fractura digital se mantém (44% da população da UE não sabe utilizar a Internet nem

um computador)5.

No momento em que a crise financeira alastra, existe um risco muito concreto de

que as pessoas e as comunidades mais pobres e marginalizadas do mundo venham a

encontrar-se numa situação ainda pior do que aquela em que vivem actualmente. A

pobreza é, ao mesmo tempo, causa e consequência de violações dos direitos humanos.

Para muitas pessoas, a Declaração Universal continua a ser uma promessa incumprida, já

que a vontade política dos Estados em matéria de cumprimento dos seus compromissos

está lamentavelmente muito aquém das suas promessas.

Hoje em dia chega-se à conclusão que têm existido inúmeros fracassos ao nível

dos direitos humanos6. Apesar dos tratados, cartas de intenção, convenções e outros

documentos, tem sido difícil, ao longo destas seis décadas, combater a pobreza e

estabelecer a igualdade de oportunidades. Perante os dados estatísticos acima

referenciados, acentua-se a ideia de que “os ricos são cada vez mais ricos e os pobres

cada vez mais pobres”. Estamos, assim, a falar de desigualdades e “(…) a desigualdade é

uma questão de direitos humanos. O Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos

estabelece que todos crescemos livres e iguais em dignidade e direitos. Para os pobres esta afirmação é uma

enorme fraude (…)” (Sané, 2007:18)7. Poderemos alvitrar que existem vícios ao nível dos

sistemas económico, social e cultural que destroem os esforços individuais, institucionais

e até políticos.

Os direitos humanos que têm estado em segundo plano são os da área económica,

social e cultural: muito tem falhado ao nível dos cuidados de saúde, habitação e

alimentação. Sabemos que os diferentes direitos humanos (civis, políticos, culturais,

económicos e sociais) estabelecem entre si relações de causalidade, reforçando-se

mutuamente, podendo “(…) criar sinergias capazes de contribuir para que os pobres assegurem os

5 Fonte: Resolução do Parlamento Europeu, de 9 de Outubro de 2008, sobre a promoção da inclusão social e o combate à pobreza, nomeadamente a pobreza infantil, na UE (2008/2034(INI)).

6 Foi considerado na Declaração Universal dos Direitos Humanos “que o reconhecimento da dignidade intrínseca a todos os membros da família humana e o da igualdade e inalienabilidade dos seus direitos são o fundamento da liberdade, da justiça e da Paz no mundo”.

7Ribeiro, E.; Oliveira, I.; Silva, M. (Org.) (2007) Pobreza, Direitos Humanos e Cidadania, Comissão Nacional de Justiça e Paz, Lisboa.

Page 10: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

9

seus direitos, desenvolvam as suas potencialidades humanas e escapem à pobreza. Devido a estas

complementaridades, a luta pela realização dos direitos económicos e sociais não deve ser separada da

luta pela realização dos direitos civis e políticos. E elas devem, as duas, ocorrer em simultâneo (…)”8.

Alguns estudos têm demonstrado correlações significativas entre direitos como, por

exemplo, a liberdade de expressão e participação na vida política, na prevenção de

catástrofes sociais. Um dos autores que chamou a atenção, na sua vasta obra, para este

facto foi Amartya Sen, referindo que os direitos políticos são fundamentais não só para

procurar respostas políticas às necessidades económicas, mas também são centrais para a

própria formulação dessas necessidades económicas. E um dos sistemas, que não sendo

perfeito, garante uma maior participação dos cidadãos é a Democracia.

Sen, na sua análise das “Fomes”, defende que, perante os valores da democracia, é

mais difícil a existência das mesmas, pois uma oposição derrubaria um governo que não

atendesse às necessidades dos seus cidadãos, no entanto, um ditador não teria que se

preocupar com o bem-estar do seu povo, principalmente os mais carentes, pois são os

que têm menos poder. A existência de democracia e liberdade de imprensa são

fundamentais, pois forçam os governos a agir mais rapidamente quando se prevê, por

exemplo, uma Fome. Amartya Sen compara o exemplo da Índia ainda não democrática9,

do Sudão e da Etiópia, com países democráticos como o Zimbabué e o Botswana, onde

as Fomes foram evitadas devido a rápidas políticas públicas. A produção alimentar foi

duramente atingida durante a seca de 1973, em Madrasta. Mas os políticos eleitos

reagiram com programas de obras públicas para 5 milhões de pessoas e evitaram uma

Fome.

As democracias também contribuem para a estabilidade política, criando espaço

para a oposição política e para a alternância do poder. Entre 1950 e 1990, os tumultos e

as manifestações foram mais vulgares nas democracias, mas foram muito mais

desestabilizadores nas ditaduras. As guerras foram mais frequentes em regimes não

democráticos e tiveram custos económicos muito mais elevados.

8 Relatório do Desenvolvimento Humano (2000:73).

9 A última Fome, em 1943, matou entre dois a três milhões de pessoas

Page 11: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

10

É de salientar que a governação democrática pode desencadear um ciclo virtuoso

de desenvolvimento, uma vez que a liberdade política dá poder às pessoas para

exercerem pressão a favor de políticas que aumentem as oportunidades sociais e

políticas, e na medida em que os debates abertos ajudam as comunidades a moldar as

suas prioridades. Da Indonésia ao México as iniciativas que foram tomadas no sentido

da democratização e da abertura política, ajudaram a produzir este tipo de ciclo virtuoso,

com uma imprensa livre e um activismo da sociedade civil, fornecendo às pessoas novas

maneiras de participar em decisões e em debates políticos.

Cada vez mais as Organizações Não Governamentais (ONG’s), com o seu

crescimento e organização em rede, têm um papel importante, em todo o mundo, na

transição para a democracia10, na mudança para sociedades mais abertas e na expansão

da solidariedade mundial no que diz respeito aos Direitos Humanos. As que antes

concentravam a sua acção nos direitos civis e políticos estão a prolongar as suas

actividades aos direitos económicos, sociais e culturais, especialmente para aqueles que

são mais vulneráveis. Na Argentina, um conjunto de ONG’s apresentou um pedido ao

Ministério da Saúde em que desaprovava a falta de cuidados de saúde e de

medicamentos adequados para as pessoas infectadas pelo VIH/SIDA, pois a

Constituição do país estabelecia o direito dos cidadãos à protecção estatal, e ela estava a

ser violada. Temos ainda movimentos como o ATD – Quart Monde, que organiza e dá

voz à Pobreza, juntando-se a modernas concepções da invisibilidade dos direitos, e a

estudos sociais pioneiros da inter-acção da dinâmica cultural apelando à participação

social.

1.2. A Pobreza

A actual percepção da dicotomia existente entre o Mundo Desenvolvido e

o Mundo em Desenvolvimento decorre, de uma forma geral, da diferença e das

desigualdades de crescimento. A fórmula que levou a este fosso e ao seu

alargamento progressivo é complexa, já que actualmente são vários os factores

explicativos, que dependem das próprias especificidades regionais. Contudo, a

10 Em alguns países com regimes autoritários, as ONG’s têm sido, com alguma frequência, uma força de oposição política.

Page 12: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

11

raiz desta realidade pode-se reportar ao advento da Revolução Industrial, a qual

teve consequências em todos os sectores da sociedade “(…) a Revolução Industrial

e o crescimento económico moderno que se lhe seguiu mudaram a existência das pessoas em

todos os aspectos fundamentais: onde e como vivem, que tipo de trabalho ou actividade

económica desempenham, como formam famílias (…)” (Sachs, 2006:75).

No fundo, e tal como enfatiza Sachs (2006), esta revolução foi mais que o

aumento da produção e o fomento do crescimento económico, foi um processo

de mudança e de transição paradigmático, que por sua vez “(…) criou uma

desigualdade global em termos de riqueza e poder (…)” (Sachs, 2006:79). Desde este

marco, a ordem global estabeleceu-se a diferentes ritmos de crescimento e mudança

que, por efeito multiplicador, continua a subsistir, e a divergir até aos dias de hoje,

sendo que as “(…) grandes desigualdades actuais de rendimento reflectem dois séculos de

predomínio de crescimento económico extremamente desiguais (…)” (Sachs, 2006:67).

Neste sentido, é visível que a percepção das desigualdades é hoje muito

maior, fruto da própria disseminação e difusão do conhecimento que aproxima a

realidade real da realidade percepcionada. Este problema é hoje conhecido e,

mais importante, é parte da agenda política mundial.

As divergências criadas e existentes entre regiões e países incidem assim

não apenas numa desigual distribuição de rendimentos, como também numa

desigual equidade de oportunidades, de acesso à saúde, à educação, à

alimentação, no fundo à possibilidade de uma existência digna, de uma cidadania

plena (recursos + direitos), sem privações, que se traduz, à escala nacional ou

regional, num maior ou menor desenvolvimento, que, em última análise, se

consegue através da erradicação da pobreza (e melhoria das condições de vida).

A pobreza é assim um fenómeno (e sobretudo uma constatação)

generalizado na sociedade, que tem merecido uma discussão e análise por parte

de várias disciplinas, sendo que “(…) a última década do século XX presenciou um

renovar da preocupação com a extensão e persistência da pobreza (…)” (Ferreira, 2000:11,

citando Hoeven e Rodgen:1995).

A pobreza é um fenómeno muito variável, quer no espaço, quer no tempo

e o seu significado deve ser entendido de uma forma aberta e abrangente e não

Page 13: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

12

redutora, o que tem implicações, tanto na dificuldade em definir o fenómeno,

como na dificuldade em o quantificar, classificar e generalizar. Deste modo,

verifica-se que cada sociedade apresenta diferentes visões sobre a pobreza, em

função do seu próprio padrão de vida e das condições que oferece aos seus

cidadãos, onde, em última instância, se pode abordar o fenómeno à escala do

indivíduo. Nas palavras de Ferreira “(…) o problema da pobreza é pois um problema

velho como o mundo, assumindo sempre novas configurações e constituindo sempre um desafio

para que as sociedades criem mais justiça e solidariedade entre todos os seus membros (…)”

(Ferreira, 2000:12)

Exprimindo esta dificuldade, é visível que a conceptualização de um

conceito de pobreza é extremamente intrincada o que, consequentemente, torna

a operacionalização de programas e “soluções” de combate à pobreza numa

tarefa de dificuldade acrescida, a vários níveis de decisão política.

São várias as teorias e abordagens a esta problemática, mais ou menos complexas,

com maior ou menor ênfase nas questões sociais ou nas questões económicas

(rendimento).

Luís Capucha, na sua Tese de Doutoramento – Desafios da Pobreza, (2005) leva-nos

às duas principais tradições teóricas que presidem a este problema. Por um lado, a

perspectiva culturista, assente no conceito de “cultura de pobreza”. Por outro, a

perspectiva socioeconómica. A primeira, ao estabelecer como central o conceito de

“cultura da pobreza”, ficou conhecida como perspectiva “culturalista”. A sustentar esta

tradição estão diversos estudos de cariz investigação-acção, assentes em metodologias

intensivas e em terminologias do foro micro-sociológico, tais como a noção de modos

de vida e histórias de vida. São particularmente abordados objectos como o

despovoamento das áreas rurais deprimidas, os estilos de vida em áreas urbanas

degradadas, ou as trajectórias de vida dos grupos “ à margem”, como os sem-abrigo,

jovens em risco, minorias étnicas, toxicodependentes, entre muitos outros.

Já na segunda perspectiva, a socioeconómica, assistimos aos debates teórico-

conceptuais em torno de termos como pobreza absoluta, relativa e subjectiva.

Metodologicamente assente num plano extensivo, esta é a perspectiva que mais se

Page 14: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

13

aproxima daquilo a que podemos chamar os grupos-alvo das políticas sociais activas,

pelo facto da definição de pobreza estar intimamente ligada a uma condição na qual a

falta de acesso a serviços como a saúde, a educação, a segurança social e os mínimos

recursos financeiros por parte de indivíduos de determinados grupos sociais, prejudica

ou impossibilita a subsistência dos mesmos.

Crain e Kalleberg apontam, também, para duas visões: a primeira refere-se ao

facto de as pessoas serem pobres devido às suas características individuais, ou seja,

colocando o “(…) focus on the socioeconomic attributes and individual behavioral tendencies of the

poor, emphasizing the «culture of poverty» (…) [e, de acordo com a segunda perspectiva, a

pobreza pode ser considerada] (…) as a structural feature of a capitalistic economy that is rooted

in the institutions of society (…)” (Crain e Kalleberg, 2007:4-5). O mesmo autor assegura

ainda que, ao se atribuírem as causas da pobreza às características individuais de cada um

é uma forma de “blame the victims”; a pobreza não pode ser atribuída a insuficiências

individuais, mas, sobretudo, a factores socioeconómicos.

Existe uma outra teoria, no seguimento da anterior linha de pensamento, a

Geográfico-Marxista, que consiste, muito sucintamente, na afirmação de que a

desigualdade e a pobreza são produzidas, inevitavelmente, pelas sociedades capitalistas; a

ideia geográfico-social refere-se ao facto de que a desigualdade pode transmitir-se de

geração em geração, através do meio ambiente de oportunidades e serviços, no

momento do nascimento de cada indivíduo.

Considerando a vasta bibliografia produzida sobre o tema da pobreza desde os

anos 1960, à partida, não seria difícil defini-la. Desta literatura poderíamos retirar

critérios simples e concisos que nos ajudariam a desenvolver, de uma forma precisa e

sintética, uma definição de Pobreza. Infelizmente, esta vasta bibliografia conduz-nos a

uma infinidade de regras e normas que torna complexo chegar-se a uma definição de

pobreza.

Colocam-se, logo à partida, duas grandes questões como por exemplo “o que é?” e

“como deve ser definida?”. Os critérios são excessivos devido à complexidade da realidade,

onde se cruzam inúmeros factores. Deveria ser suficiente afirmar que a pobreza é a

situação em que as pessoas se encontram privadas de meios para assegurar a sua

Page 15: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

14

sobrevivência e satisfazer as suas necessidades básicas, tais como alimentação, vestuário,

habitação e cuidados de saúde. Assim, poderemos considerar uma pessoa pobre a que

não consegue satisfazer as suas necessidades básicas e naturais?

Alguns investigadores consideram duas abordagens diferentes – a da pobreza

absoluta e a da pobreza relativa. A primeira está associada às ideias de subsistência e à

satisfação das necessidades básicas dos indivíduos, tais como a comida, a roupa e ter um

abrigo. As pessoas que carecem destes requisitos vivem em situação de pobreza. A maior

parte dos autores defende que a pobreza absoluta é universal e que, em qualquer parte

do mundo, coabita na pobreza quem estiver abaixo destes padrões de subsistência.

No entanto, para os seres humanos, a subsistência não significa apenas o “manter-

se vivo” através da satisfação das funções fisiológicas, mas implica, sobretudo, a noção

de decência. A decência não pode ser analisada fora de um contexto particular que lhe dá

um significado especial. Jean Labbens11, muito pertinentemente, afirma que “l’évaluation

des nécessités ne peuvent pas être fait seulement sur les nécessités purement physiologiques. Ne c’est pas

uniquement une matière de subsistence, mais surtout une subsistence décent. La décence est une matière

social”.12

A decência13 tem, de facto, implícita uma noção social. Se for circunscrita às

questões da subsistência, veremos que a representação social da pobreza é diferente de

sociedade para sociedade e, na mesma sociedade, consoante os períodos históricos14.

Temos, pois, que ter em consideração os contextos. Mas confrontamo-nos com a

dificuldade de os delimitar: a uma comunidade específica, a uma região onde vivem os

11 Militante da Association ATD – Quart Monde, denuncia as injustiças e chama a atenção para intervenções que agreguem os “esquecidos” do progresso, ou seja, aqueles que não conseguiram manter-se ou tornar-se assalariados.

12 LABBENS, Jean – Sociologie de la Pauvreté: le Tiers Monde et le Quart Monde, Gallimard, Paris, 1978, pág. 78

13 Gerry Rodgers utiliza o conceito de “decent work” como “(…) for everybody and everywhere, decent work is about securing human dignity. The expression of these goals will be different if you are an agricultural labourer in India or a high tech worker in Silicon Valley, but there is a common underlying idea, that people have aspirations which cut across and bring together these different domains (…)” (ILO, 2001, Reducing the decent work deficit, Report of the Director General to the 2001 International Labour Conference, Geneve). 14 A este propósito podemos citar Amartya Sen: “(…) Há dificuldade em traçar uma linha num sítio qualquer, e as chamadas ‘necessidades nutricionais mínimas’ têm uma arbitrariedade inerente que vai muito para além das variações entre grupos e regiões (…)” (SEN, A., Pobreza e Fomes, Terramar, Lisboa, 1999: 28) e David SHIPLER (2008:8) “(…)The American poor are not poor in Hong Kong or in the sixteenth century; they are poor here and now, in the United States (…)”.

Page 16: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

15

pobres, ou pode ser alargada em termos mundiais? O nível da pobreza deverá ser

considerado de acordo com medidas locais ou internacionais? Em suma, a pobreza

absoluta está directamente associada à ideia de sobrevivência biológica, à satisfação dos

mínimos sociais necessários à reprodução da vida, com um mínimo de dignidade

humana. E de acordo com Hélio Jaguaribe, “(…) embora este ‘mínimo de dignidade’ esteja

parcialmente sujeito a determinações culturais, supõe-se que os requerimentos impostos pela mera

sobrevivência física sejam razoavelmente universais, permitindo assim o estabelecimento de uma linha de

pobreza coincidente com esses requerimentos mínimos (…)” (Jaguaribe 1989:64).

Existem outros autores que alegam que é mais adequado utilizar o conceito de

pobreza relativa que traduz a satisfação das necessidades em relação ao padrão de

desenvolvimento e ao modo de vida de uma dada sociedade. Os adeptos deste conceito

consideram que a pobreza é determinada em termos culturais e não deve ser medida de

acordo com um modelo de privação universal. Não podemos advogar que as

necessidades humanas são iguais em todo o mundo, pois elas são distintas entre as

diversas sociedades: em sociedades desenvolvidas, por exemplo, o consumo regular de

frutas e vegetais é entendido como essencial para uma vida saudável, no entanto, nos

países em vias de desenvolvimento estes não estão divulgados junto da população.

A definição de uma linha de pobreza permite, à partida, calcular uma taxa simples

de pobreza, que, por um lado, nos dá o número de pobres mas que, por outro, não nos

permite identificar a intensidade da pobreza, isto é, quão pobres são os pobres, partindo

do pressuposto que existem grandes diferenças entre indivíduos e os grupos daqueles

que se consideram como estando abaixo da linha da pobreza, isto é, considerando-se que

existem dinâmicas diferenciadas dentro dos que “não têm”.

Neste sentido, a linha de indigência faz esta distinção, separando os que estão

entre esta linha e a linha da pobreza, como os que não têm suficiente rendimento para

proporcionar a si e à sua família os bens primários (alimentação, vestuário e habitação); e

os que estão abaixo da linha de indigência, como os que não têm rendimento suficiente

para comer, encontrando-se em situação de fome.

A definição diferenciada destas duas dinâmicas tem particular relevância nas

agendas políticas, dado que se pode optar por uma política que beneficie aqueles que

Page 17: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

16

estão abaixo da linha de indigência, dando-lhes uma possibilidade de sobreviver que, no

entanto, não tem reflexos na taxa geral de pobreza, ou pode optar-se por uma política

que promova a diminuição da taxa de pobreza, incidindo especialmente naqueles que

estão mais próximos de sair da linha de pobreza. Esta é então uma situação complicada e

sensível que merece reflexão e atenção particular.

Pode, no entanto, adoptar-se uma diferente forma de medição dos níveis de

pobreza que seja mais consentânea com as realidades particulares de cada país e que não

esconda situações mais graves, como é o caso da brecha da pobreza – poverty gap. Esta é

definida através do cálculo da diferença média entre o rendimento médio dos pobres

(em relação à população total) e o rendimento necessário para chegar à linha de pobreza.

É então um modo de avaliar e percepcionar as reais distâncias a percorrer, sendo um

instrumento essencial para a criação e elaboração de programas específicos, permitindo

definir dentro dos mais pobres, vários sub-grupos que merecem atenção especial.

Os pressupostos económicos são insuficientes para conseguir proceder à

quantificação e classificação exacta dos mais pobres. Contudo, o estudo da pobreza não

é uma ciência exacta, compreendendo-se que é necessário seguir determinadas linhas de

análise para efectivamente ser conseguida uma generalização; mas é também necessário

não cair numa generalização abusiva, dado que existem especificidades intrínsecas que

importa compreender.

Ao falarmos em pobreza, não poderíamos olvidar um fenómeno recente (anos

1980/90) – a pobreza urbana. Caracteriza-se por ser uma forma de pobreza atípica, isto

é, não são visados, somente, os grupos de indivíduos tradicionalmente pobres, e deriva

sobretudo do fenómeno de urbanização crescente que se verifica em todo o mundo,

dadas as especificidades inerentes às cidades, que possibilitam uma maior oferta de

emprego, uma melhor qualidade de vida, entre outros. No entanto, este sonho não é real

para todos, uma vez que a concentração urbana (em termos de população e, mesmo,

actividades económicas, tem trazido fenómenos de pobreza muito graves, também

associada ao fenómeno de exclusão social.

Este tipo de pobreza afecta sobretudo indivíduos que se enquadram em perfis

diferentes, como por exemplo trabalhadores assalariados, novos migrantes e idosos. O

Page 18: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

17

próprio perfil deste tipo de grupos faz com que não tenham uma delimitação geográfica

bem definida, como os grupos tradicionais, encontrando-se dispersos pela cidade. Por

este motivo, são uma classe difícil de quantificar e de enquadrar nos programas

existentes de combate à pobreza, dificultando a existência de um melhor conhecimento e

de maior informação sobre esta realidade.

O caso dos trabalhadores assalariados é um caso que merece particular atenção,

uma vez que ter uma ocupação profissional sempre foi considerado um meio para deixar

de ser pobre. Actualmente, esta realidade é mais complexa. O caso particular dos

trabalhadores pobres tem que ver sobretudo com a sua perda de poder de compra

(compressão salarial na base da escala), em que o seu salário já não permite adquirir

todos os bens de primeira necessidade.

Muitas vezes estes indivíduos são forçados a “deixar” as suas casas, por falta de

pagamento de rendas/hipotecas e vêm “cair” na rua (o caso dos sem-abrigo).

1.3. A Exclusão Social

Os conceitos de pobreza e exclusão social são muitas vezes utilizados como

sinónimos, embora cada um deles encerre diferentes formas teóricas. Não sendo

sinónimos, estes conceitos são, no entanto, complementares, uma vez que o conceito de

exclusão associa ao conceito de pobreza uma dinâmica que encerra as problemáticas do

desenvolvimento humano e social. “A eliminação da pobreza enquadrar-se-ia na dinâmica do

progresso social, ou progresso na equidade, definido como o incremento do conjunto de necessidades

acessíveis a todos numa base igualitária. O desenvolvimento, não meramente o desenvolvimento económico

mas o desenvolvimento humano, aumentaria ainda a procura da equidade (…)” (Ferreira, 2000:39,

cit. Scitovsky, 1986:7). Presentemente, manifesta diferentes aspectos pelo mundo inteiro,

e nos distintos continentes do globo terrestre, e mesmo dentro destes, subsistem, ainda,

diferenças entre regiões e países. Mas a exclusão social afecta a todos e convém conhecer

a origem deste conceito.

Page 19: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

18

A exclusão social é um fenómeno complexo15, heterogéneo, multidimensional,

universal e a sua abordagem é ainda mais difícil face à sua difusão nos diferentes

discursos, tanto económico-políticos e jornalísticos, como nos académicos. A sua

banalização adopta o conceito, por vezes, de uma forma equívoca. Assim, é da maior

importância construir uma abordagem que seja uma explicação mais fidedigna e permita

estabelecer uma definição mais completa.

Não afecta apenas pessoas, mas também territórios e instituições sociais. Os

lugares podem ser simultaneamente excluídos e provocar a exclusão nos indivíduos, pois

são “destinatários de medidas e acolhedores de cidadãos” (Rodrigues, cit. por Miguel, 2007). São

exemplo os denominados quartiers difficiles16, onde existe: uma elevada concentração de

famílias “desestruturadas”, um grande número de desempregados, pessoas com

empregos precários, entre outras problemáticas. São territórios onde o isolamento social

é enorme e onde existe uma significativa taxa de delinquência juvenil. E como refere

Serge Paugam “(…) les individus ont conscience d’hériter d’un statut dévalorisé lorsqu’ils résident

dans un ensemble d’habitations (…) dont la réputation est mauvaise (…) se sont inscrits dans la

consience social de ses habitants, à tel point que les nouveaux locataires héritent d’un statut dévalorisé et

font l’expérience de la disqualification social (…)” (Paugam, 2009:157 e 161).

Em qualquer das suas formas, a exclusão social, significa, essencialmente, uma

desagregação social a diferentes níveis – económico, político, cultural, ambiental e social.

Anthony Giddens entende a exclusão social como “(…) as formas pelas quais os indivíduos

podem ser afastados do pleno envolvimento na sociedade (…)” (Giddens, 2008:324) e por

conseguinte “(…) «exclusão social» significa «exclusão da sociedade» (…), considerando que cada

uma das esferas da existência social – da mais pequena à mais ampla, da mais simples à mais

complexa – constitui um sistema social. A Sociedade (local, nacional, regional ou global) será, então,

15 “A noção de exclusão social é saturada de significados, não-significados e contra-significados. Pode-se fazer quase qualquer coisa com o termo, já que ele significa o ressentimento daqueles que não podem obter aquilo que reivindicam” – Commissariat General du Plan, Governo Francês (1993).

16 A este propósito ler também (Jordan, 2003:173, citando Parkinson, 1994:7-8) onde é referido que “(…) social exclusion is not confined to particular groups but is concentrated in particular areas. In particular the most disadvantaged have been increasingly concentrated in areas immediately adjacent to the city center (….). They are also the areas where ethnic minorities (…), unemployed people, single mothers, disabled, (…) living on minimum income concentrated in a limited number of problem neighbourhoods (…). Economic growth has gone hand-in-hand with social exclusion (…)”.

Page 20: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

19

constituída por um conjunto de sistemas sociais, alguns dos quais poderão ser considerados como básicos

ou essenciais. (…)” (Costa et al., 2008:64-65).

Este processo tem, assim, uma repercussão na fragilização dos laços familiares e

sociais e na negação da participação na vida comunitária. Robert Castel denomina

“desafiliação” relativamente à sociedade, ou seja, a não constatação do lugar na

sociedade17, ocasionando uma quebra na própria unidade social. Se considerarmos que “a

exclusão resulta das dificuldades de assimilação, de inserção ou de integração, a situação assim definida

permite efectivamente definir uma lista de populações diferencialmente excluídas (…)” (Xiberras,

1996:27).

É por esta razão que, frequentemente, a exclusão aparece-nos relacionada com

“grupos marginais”, que colocam em risco a segurança e a normalidade social “(…)

indicando uma falta, uma falha no tecido social (…)” (Rosanvallon,1995:204). Aliás, “(…) a

temática do conflito permite, em muitos casos, explicar o ponto de partida de um processo de exclusão que

começa por uma derrota dos futuros excluídos que serão, pouco a pouco, rejeitados pela sua não

conformidade com o modelo dos vencedores (…)” (Xiberras, 1996:17).

Assim, para Robert Castel, a exclusão caracterizaria uma situação extrema de

ruptura tanto ao nível das relações familiares e afectivas, como com o mercado de

trabalho e outras formas de socialização. No entanto, dificilmente encontramos esta

situação, pois a exclusão não é a ausência de relações “(…) não há ninguém fora da sociedade,

mas um conjunto de posições cujas relações com o centro são mais ou menos distendidas” (Castel,

1998:569) e, alguns autores aconselham a que “(…)a relação (laços) entre a pessoa e cada

sistema social seja graduada, pelo menos, em «forte», «fraca» e «em estado de ruptura» (…)” (Costa et

al., 2008:77), construindo-se, para o efeito, um conjunto de indicadores que permitam a

“fixação dos limiares correspondentes” .

Como refere Jordi Estivill “(…) seria errado pensar que a realidade expressa por este

conceito não tem um vasto antecedente histórico. Pois (…) pode-se afirmar que exclusão e excluídos

sempre existiram desde que os homens e as mulheres vivem de forma colectiva e quiseram dar um sentido

a esta vida em comunidade. O ostracismo em Atenas, a proscrição em Roma, as castas inferiores na

17 Castel, R., (1998) As metamorfoses da questão social: uma crónica do salário, Vozes, Petrópolis.

Page 21: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

20

Índia, as várias formas de escravatura, de exílio e desterro, de «guetoização», de excomunhão, são

manifestações históricas de rejeição, com as quais cada sociedade tratou os indesejáveis (…)”.18

Após a Segunda Guerra Mundial e até aos finais dos anos 60, a grande

preocupação dos governos dos países envolvidos nesta Guerra, foi o da habitação.

Desenvolveram-se grandes projectos de renovação urbana e construção de grandes

empreendimentos, tendo ficado conhecidos, em França, os HLM, ou seja Habitações de

Aluguer Moderado. Na mesma época, surgiram Movimentos, essencialmente conotados

com o discurso católico, com o objectivo de ajudar a população que não conseguiu

acompanhar o forte dinamismo da sociedade industrial. Ficou conhecido o Abade

Wresinski enquanto principal dinamizador do movimento “aide à toute détresse”.

Nos anos 70, a problemática ultrapassa as questões da habitação e centra-se nos

“esquecidos” do progresso. É nesta conjuntura que surge o conceito de exclusão social

e, para isso, temos que referir a publicação do livro Les exclus: un Français sur dix, em

1974, da autoria de René Lenoir19, como um marco para conhecermos esta origem.

Utilizou-o num contexto económico, onde era difícil agregar determinados grupos, tais

como deficientes físicos, doentes mentais, alcoólicos e outros.

Como o próprio título da obra indica, Lenoir estabelecia uns cálculos que

determinavam que um em cada dez franceses ficava marginalizado20 dos resultados do

progresso económico; esta era a sua principal preocupação. O autor apontava para o

facto de que o crescimento da riqueza não reduz os níveis de pobreza que se abate sobre

os “handicapés sociaux” e uma gama de inadaptados que deveriam ser beneficiados por

políticas específicas de protecção social. Trata-se de “(…) une autre France (…) au-delà de

l’ordinaire (…) mais qui, malgré sa situation d’exception, est une (…) gangrène menaçant (…) tout le

corps social” (Lenoir, 1974:10 e 36).

18 Estivill, J., PANORAMA da luta contra a exclusão social – conceitos e estratégias, Genebra, Bureau Internacional do Trabalho, Programa Estratégias e Técnicas contra a Exclusão Social e a Pobreza (2003:5).

19 Foi Secretário de Estado da Acção Social do Governo de Jacques Chirac.

20 É importante estar atento à noção de “ficar marginalizado”, pois na época em que o livro foi publicado estávamos nos denominados “trinta gloriosos anos” (1945-1975), em que as economias ocidentais passaram de um período crítico para uma nova fase que se iniciava, naquele momento, com a crise do petróleo.

Page 22: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

21

O conceito de exclusão social foi utilizado nas políticas sociais do governo

francês, sendo utilizado como referencial de acção sobre um “(…) group of people living on

the margins of society and, in particular, without access to the system of social insurance (…)” (Percy-

Smith, 2000:1, citando Room, 1995; Jordan, 1997; Burchardt et al., 1999).

Nos finais dos anos 1980 começa a falar-se em novos pobres, pois a pobreza não

atingia só os que se encontravam à margem da sociedade, mas começava a afectar os que

estavam na base da pirâmide social. Apenas os mais providos de um capital escolar

escapavam às malhas do desemprego e a esta nova pobreza21. E, a partir do início de 1990,

as situações de maior vulnerabilidade começam a abranger os trabalhadores

especializados e estratos da população com um nível de instrução superior. Até então

detinham carreiras auspiciosas, protegidos por direitos, e era promissora uma mobilidade

ascendente, tanto em termos económicos, como sociais. Resumidamente, no espaço de

duas décadas, a questão social transforma-se de “anormais incapazes” para “normais inúteis”

(Donzelot, 1996:59).

Esta nova conjuntura, onde o desemprego e a precariedade no trabalho são

notórios, a perda de status e de raízes associadas a uma sociabilidade primária (provinda

de uma carência de relações sociais e laborais coesas) origina grupos diversificados de

“excluídos” e “marginalizados”. Assim, a marginalidade social é difícil de circunscrever:

“(…) quelles sont les frontières de groupes à l’identité incertaine (…)? On ne peut appréhender le

champ de la marginalité en l’absence d’une théorie (…) de l’intégration. (…) Sont «intégrés» les

individus et les groupes inscrits dans les réseaux producteurs de la richesse et de la reconnaissance

sociales. Seraient «exclus» ceux qui ne participeraient en aucune manière à ces échanges réglés (…)

(Castel, 1996:32). Sobre estes grupos, as ciências sociais e humanas produziram inúmeras

teorizações e investigações, nestes últimos anos, donde podemos enunciar algumas.

Pierre Bourdieu (1993:487-498) descreve o padecimento físico e mental resultante

da pobreza e divulga-nos o “que é viver por um fio”; Gaujelac e Leonetti (1994:4) salientam

a percepção de “inferioridade” e de “identidade ferida” destes novos “excluídos”; Serge

21 Ver, também, entre outros, PAUGAM, S. – La Societé Française et ses Pauvres, Paris, Presses Universitaires de France, 1993 e La Disqualification Sociale: Essai sur la Nouvelle Pauvreté, Paris, Presse Universitaires de France, 1991.

Page 23: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

22

Paugam (1991:6ss.) aponta para o “descrédito” que recai sobre aqueles que estão à

margem; Donzelot e Estebe (1991:26) enunciam o termo “anormais inúteis”; e Robert

Castel (1991:154 e 1993:145) fala em “desestabilização dos estáveis”.

Trata-se de teorizações que nos conduzem a uma percepção de desenraizamento

ao nível laboral, da comunidade, da família e que conduzem os indivíduos a um

isolamento social, e é nesta sequência que Donzelot e Estebe (1991:27) mencionam as

“não-forças sociais, esta classe de desclassificados”. Castel (1985:427) sublinha a “ausência de

perspectivas para controlar o futuro” e Rosanvallon (1995:203) exprime que “(…) os excluídos

constituem, de facto, quase que por sua própria essência, uma não-classe (…)”.

A União Europeia mais recentemente, fruto das suas políticas de coesão social,

adoptou o seguinte conceito: “(…) Social Exclusion refers to the multiple and changing factors

resulting in people being excluded from the normal exchanges, practices and rights of modern society.

Poverty is one of the most obvious factors, but social exclusion also refers to inadequate rights in housing,

education, health and access to services. It affects individuals and groups, particularly in urban and rural

areas, who are in some way subject of discrimination or segregation; and it emphasizes the weaknesses in

the social infrastructure and the risk of allowing a two-tier society to become established by default. The

Commission believes that a fatalistic acceptance of social exclusion must be rejected, and that all

Community citizens have a right to the respect of human dignity (…)” (Percy-Smith, 2000:3,

citando Commission of the European Communities, 1993:1).

Adoptando-o ou não, este conceito da UE, obviamente reflecte o seu

entendimento do fenómeno enquanto organismo supra-nacional. Constata-se, numa

dimensão global, que a exclusão social é tudo o que priva a integração de um indivíduo

na sociedade, sendo assim consequência das sociedades actuais, estando intrinsecamente

relacionado com o fenómeno da globalização, que tem alterado as próprias estruturas da

sociedade (Figura 1):“Social exclusion is seen in a wider context. In particular it is seen in the

context of globalization and the structural changes brought about by globalization (…)” (Percy-

Smith, 2000:5).

Não obstante, importa também conhecer e dar importância às realidades locais,

por terem especificidades próprias e por ser a esta escala a que se têm de tomar atitudes

Page 24: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

23

de forma a combater a exclusão, uma vez que o fenómeno acontece e subsiste à escala

individual. Neste contexto, numa sociedade de direito, ou seja, que promove a cidadania

plena, o indivíduo só não é considerado excluído se tiver acesso aos direitos cívicos (à

informação livre, das crianças, das mulheres, à propriedade privada), aos direitos

políticos (à livre associação sindical, de associação política, de eleições livres, justas e por

sufrágio universal) e aos Direitos Humanos (de não detenção sem culpa formada, de

representação legal, a uma vida livre de pressões intoleráveis, de refúgio seguro).

Figura 1 – Contextos da Exclusão Social22

Prova-se, assim, que a exclusão social é um fenómeno multidimensional. Embora

alguns autores assumam diferentes dimensões a educação e o emprego são os garantes

mais básicos de inclusão nas sociedades, possibilitando ao indivíduo uma vivência em

sociedade e um sentimento de inclusão e de pertença a uma comunidade, bem como um

sentimento de utilidade.

A promoção da inclusão é a forma essencial de combate à exclusão, pelo que

temos que saber identificar o fenómeno e, dada a sua especificidade, como actuar sobre

ele. Deste modo, é necessário saber como se manifesta (normalmente, encontra-se

associado a um determinado estigma social), saber o que está na sua raiz (causa, onde o

22 Fonte: adaptado de Percy-Smith (2000:5).

Globalização e mudanças estruturais

associadas

Contexto nacional: políticas

económicas, segurança social,

direitos dos cidadãos e respostas à

Contexto local:

especificidades, população e

Exclusão Social

Page 25: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

24

défice de rendimento não é necessariamente a causa) e analisar as consequências actuais

e as previsíveis, de forma a conseguir actuar atempadamente e minimizar os seus efeitos.

Uma postura pró-activa é uma determinante quando se lida com este fenómeno

face ao qual, dada a sua especificidade e evolução constante, são sempre necessárias

novas perspectivas e novas formas sobre como actuar com o fenómeno, à escala do

indivíduo (promovendo a sua inclusão) e à escala do território (integração territorial).

1.4. As Pessoas Sem-abrigo

1.4.1. O Direito à Habitação

Como poderemos verificar, ao longo deste capítulo, ser Sem-abrigo é um dos

exemplos e uma das “(…) formas mais extremas de exclusão social e, por vezes, uma das mais

visíveis, aquela em que o carácter de privação múltipla é patente e, por vezes, contrasta fortemente com o

meio ambiente em que se apresenta (…)” (COSTA, 1998:80).

Ao falarmos desta população ocorre-nos, de imediato, que a sua maior carência é

a de uma habitação e que, por este motivo, podem ser excluídas de muitas das nossas

actividades quotidianas, como os simples actos de receber cartas por correio, ou manter

uma conta bancária.

Durante as últimas décadas, têm-se produzido inúmeros instrumentos e

documentos internacionais, relacionados com os sem-abrigo e o direito a uma habitação.

Um primeiro documento a relevar, produzido pelas Nações Unidas, é a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, já referida no capítulo anterior, estabelece, no seu Artigo

25º, que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar a si e à sua

família, a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, à habitação, à

assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, (…)”.

Desde a adopção da Declaração Universal, em 1948, que o direito a uma habitação

tem sido, sucessivamente, reafirmado através de outros instrumentos tais como

Convenções, Declarações e outros Conjuntos de Regras e de Princípios adoptados pela

Page 26: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

25

Organização das Nações Unidas23. Tomemos como exemplos, a Declaração de Vancouver

sobre os Povoamentos Humanos, mais conhecida por Habitat I (1976), que descreve as

obrigações dos governos no que diz respeito à habitação, particularmente as ligadas à

criação de comunidades integradas a nível social e racial; a Estratégia Global de Habitação

para o ano 2000 reforça o direito a uma habitação adequada, e a obrigação das nações de

melhorarem as condições de vida dos povoamentos irregulares, priorizando as acções

que promovam uma urbanização integrada, mantendo a população no local e resolvendo

in situ os seus problemas; no Capítulo 7º da Agenda 21 – Promoção do Desenvolvimento

Sustentável dos Povoamentos Humanos, adoptada pela Conferência das Nações Unidas sobre

Meio Ambiente e Desenvolvimento (Conferência do Rio), é reconhecido que nos países

em desenvolvimento, os governos apenas dedicaram cerca de 5,6% dos seus orçamentos

à habitação, segurança social e ao lazer. Assim, é recomendado – Oferecer a Todos

Habitação Adequada considerando que “(…) o acesso a habitação segura e saudável é essencial para

o bem-estar físico, psicológico, social e económico das pessoas, devendo ser parte fundamental das actividades

nacionais e internacionais (…). Estima-se que actualmente pelo menos 1 bilião de pessoas não disponha de

habitações seguras e saudáveis e que, caso não se tomem as medidas adequadas, esse total terá aumentado

drasticamente até ao final do século e além (…)”24.

Em 1995, na cidade de Copenhaga, o Programa de Acção do World Summit for Social

Development, considerou que ser “sem-abrigo” e ter uma habitação inadequada são as

principais manifestações da pobreza. Chamou-se a atenção para a redução da pobreza no

mundo e para a necessidade de adoptar medidas “(…) to protect the displaced, the homeless,

street children (…)” (Parágrafo 34)25.

O Habitat II, que decorreu em Istambul, em 1996, continua a possuir como

princípios a melhoria económica, social e ambiental dos povoamentos humanos,

principalmente nas cidades. À data da realização desta Cimeira Mundial, previa-se que

mais de três biliões de pessoas se concentrassem nas áreas urbanas, na viragem para o

23 Os Pactos são instrumentos jurídicos internacionais, o que significa que os membros das Nações Unidas, ao tornarem-se partes num Pacto, ou noutro instrumento, mediante a ratificação ou adesão, aceitam importantes obrigações que lhes são impostas pelo Direito. 24 Consultado em: http://www.geocities.com/Heartland/Valley/5990/agenda21.html

25 Consultado em: http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/116/51/PDF/N9511651.pdf?OpenElement

Page 27: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

26

século XXI, para viver e trabalhar. E, os maiores problemas “(…) confronting cities and

towns and their inhabitants include inadequate financial resources, lack of employment opportunities,

spreading homelessness (…), increased poverty and a widening gap between rich and poor(…)”.26 Mais

adiante, no Parágrafo 11, é ainda referido que “(...) more people than ever are living in absolute

poverty and without adequate shelter. Inadequate shelter and homelessness are growing plights in many

countries, threatening standards of health, security and even life itself. Everyone has the right to an

adequate standard of living for themselves and their families, including adequate (…) housing, water and

sanitation, and to the continuous improvement of living conditions (…)”.

O Plano de Acção Global confirma, uma vez mais, o estatuto legal do direito a

uma habitação condigna e, neste contexto, estabelece mais de cem compromissos e

seiscentas recomendações para a cooperação e a acção unida no sentido da realização do

direito à habitação.

A Declaração sobre as Cidades e Outros Povoamentos Humanos no Novo Milénio (2001), foi

adoptada numa sessão extraordinária da Assembleia Geral, reviu a Declaração de

Istambul sobre os Povoamentos Humanos e a Agenda HABITAT, criadas em 1996, e

prescreveu novas iniciativas no sentido de alcançar os compromissos expressos nesses

documentos. De acordo com o espírito da Declaração do Milénio das Nações Unidas reforçou

o objectivo específico da referida Declaração, de melhorar de forma significativa a vida

de 100 milhões de habitantes residentes em bairros degradados antes de 2020.

A União Europeia não tem dado grande prioridade ao direito à habitação e,

mesmo em alguns tratados que definem a base legal destas políticas, não é referido o

direito a uma habitação digna. Embora o Tratado não atribua à União Europeia

competências específicas em matéria de habitação, algumas políticas comunitárias,

nomeadamente em matéria de ambiente, energia, transporte, política social, têm

implicações directas ou indirectas nas condições da habitação nos diferentes Estados-

Membros da UE.

26 Parágrafo 8 do Preâmbulo. Consultado em: http://www.unhabitat.org/downloads/docs/1176_6455_The_Habitat_Agenda.pdf

Page 28: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

27

No entanto, podemos mencionar alguns documentos europeus que têm referido a

provisão de uma habitação adequada, como, por exemplo, o Livro Branco sobre a Política

Social Europeia (1994) que, na sua Resolução “Política Social Europeia: Como avançar na

União” (A4-0122/94),27 encarrega a Comissão de “(…) propor um plano de acção (…) contra a

exclusão social no âmbito de uma política global de luta contra a pobreza e a favor dos direitos humanos

(…) e entende (…) que a Comissão deve ir mais além na luta contra as exclusões, atacando

directamente, por exemplo, o problema da habitação (…)” (página 12).

Na Carta Social do Conselho de Europa, assinada em Estrasburgo a 3 de Maio de

1995, houve um comprometimento no sentido de se assegurar o exercício efectivo do

direito à habitação e “(…) tomar medidas destinadas a favorecer o acesso à habitação de nível

suficiente, a prevenir e reduzir o estado de sem-abrigo, com vista à sua eliminação progressiva e a tornar

o preço da habitação acessível às pessoas que não disponham de recursos suficientes” (Artigo 31º).

Em 1999, o Comité das Regiões emitiu um parecer sobre “Os Problemas dos Sem-abrigo

e da Habitação”28 onde considerou que “(…) a presença de sem-abrigo nas cidades é uma das mais

graves manifestações dos fenómenos de exclusão social na União Europeia e que preocupam em primeiro

lugar a administração local e regional (…) [face ao que, estão convidadas] as instâncias europeias

a aprofundarem o princípio do direito à habitação (…)”.

Já a Carta Europeia da Habitação, aprovada pelo Intergrupo “URBAN-Housing” do

Parlamento Europeu, em 26 de Abril de 2006, define a habitação como um bem de

primeira necessidade, um direito social fundamental na base do modelo social europeu e

um elemento da dignidade humana.

Um ano depois, uma Resolução do Parlamento Europeu, datada de 10 de Maio de

2007, sobre a habitação e a política regional29 considera que “(…) a carência de habitação

digna por um preço abordável tem uma influência directa na vida dos cidadãos, limitando a sua

possibilidade de inserção social e de mobilidade nas zonas urbanas e rurais (…) [e que muitas das

cidades europeias] (…) têm graves problemas no domínio da habitação tais como: oferta excessiva ou

27 Consultado em: http://www.europarl.europa.eu/calendar/calendar?APP=PDF&TYPE=PV2&FILE=19950119PT.pdf&LANGUE=PT

28Jornal Oficial nº C 293 de 13/10/1999 p. 0024, consultado em: http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:51998IR0376:PT:HTML

29 [2006/2108(INI)] – Jornal Oficial da União Europeia – C 76 E/129

Page 29: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

28

insuficiente em função da região ou do país, fenómeno dos sem-abrigo, rápida subida dos custos de

aquisição e de manutenção, mau estado do parque imobiliário (…)”. É recomendada a adopção de

uma abordagem integrada perante a complexidade do fenómeno habitacional,

permitindo um acesso facilitado à habitação e a melhoria da qualidade da construção.

Mais recentemente, no dia 20 de Março de 2008, um grupo de Eurodeputados

assinou uma Declaração Parlamentar30, na qual consideram, ao abrigo do Artigo 116.º do

seu Regimento, que “(…) o acesso a um alojamento adequado (…) [é] um direito fundamental e

que o acesso a um centro de acolhimento é, muitas vezes, o primeiro passo para a resolução adequada e

sustentável do problema do alojamento das pessoas submetidas a uma exclusão e pobreza extremas

(…)”. Os subscritores desta missiva pedem ao Conselho que “(…) adopte um compromisso de

alcance comunitário para resolver o fenómeno das pessoas sem-abrigo na rua até 2015”.

Os tratados internacionais e regionais que se aplicam especificamente ao direito à

habitação têm sido amplamente ratificados, mas apenas alguns países especificam este

direito na sua Constituição. Só a partir da década de 1990, se tornou largamente expressa

a perspectiva do “direito-fundamental” de acesso a uma habitação condigna. A

Constituição da República da África do Sul, datada de 1996, é um exemplo deste novo

paradigma, que consagra, explicitamente, o direito à habitação e obriga o estado a tomar

medidas para a sua satisfação, proibindo, também, a prática de desalojamentos forçados.

Na Europa, países como Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, os Países

Baixos, o Reino Unido, Portugal, e Suécia, têm consignado, nas respectivas

Constituições, o “Direito à Habitação”. Destes, apenas a Dinamarca e a Suécia garantem

este direito às classes sociais mais desfavorecidas, embora os restantes países promovam

diversas iniciativas com o objectivo de assegurar um fácil acesso à habitação. Embora o

objectivo seja o mesmo, as políticas de habitação dos países europeus apresentam

diferentes caminhos para o atingir, resultado de heranças sociais e económicas, como o

estado de desenvolvimento da propriedade, o estímulo dos governos para o

30 Declaração do Parlamento Europeu sobre uma Resolução do Fenómeno dos Sem-abrigo na Rua [P6_TA-PROV (2008) 0163]

Page 30: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

29

investimento privado em habitação ou as medidas fiscais aplicáveis a este sector (Housing

and Homelessness: models and practices from across Europe, FEANTSA, 200831).

Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976, é, ainda hoje,

considerada uma das constituições mais progressistas do Mundo. No seu Artigo 65º,

número 1, era já consignado que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação

de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a

privacidade familiar (…)”. Os legisladores foram mais longe ao atribuir, ao Estado, um

conjunto de responsabilidades para poder assegurar este Direito, designadamente quanto

à necessidade da elaboração de um conjunto de instrumentos de planeamento e de

ordenamento do território, tanto por parte do Estado e Regiões Autónomas, como das

Autarquias Locais. Neste Artigo 65º estão previstas respostas habitacionais para

diferentes estratos da população, nomeadamente no número 2, alínea b) onde se prevê

“promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de

habitações económicas e sociais (…)”, e na alínea c) “estimular a construção privada, com

subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada (…)”. Existiu, também,

a preocupação de adequar a renda de acordo com o rendimento familiar e a promoção,

por parte do Estado, de uma política de acesso a habitação própria. Foram, igualmente,

contempladas as situações daqueles que pretendem resolver os seus próprios problemas

habitacionais, fomentando-se a autoconstrução e a criação de cooperativas de habitação.

Queremos ainda salientar que, em Portugal, os cidadãos que reconheçam que o

seu direito à habitação se encontra ameaçado, podem recorrer a uma multiplicidade de

estratégias jurídicas e não jurídicas para reivindicar os seus direitos. As estratégias

jurídicas incluem recursos legais para impedir despejos planeados ou demolições

realizadas por ordem judicial, procedimentos legais para a obtenção de indemnizações na

sequência de desalojamentos ilegais, denúncia de acções ilegais realizadas pelos senhorios

relativamente às rendas, manutenção ou descriminação, alegações de discriminação em

relação ao aluguer ou acesso à habitação, queixas contra a falta de condições sanitárias

ou condições adequadas das habitações e ainda os processos relacionados com o

31 Consultado em: http://www.feantsa.org/files/freshstart/Communications/Homeless%20in%20Europe%20EN/PDF_2009/Homeless%20in%20Europe_Winter2008.pdf

Page 31: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

30

significativo aumento do número dos sem-abrigo (não apenas em Portugal, como na

generalidade dos países Europeus). 32

Muitos Estados, como veremos no próximo capítulo, possuem programas

concebidos para se centrarem nos problemas imediatos dos sem-abrigo. No entanto,

estes programas actuam geralmente a nível local, proporcionando alojamento aos sem-

abrigo e habitação temporária aos mais necessitados, juntamente com outros serviços

como apoio psicossocial, jurídico, formação, entre outros, para que as pessoas possam

alcançar uma situação que lhes permita obter e manter a sua própria habitação.

1.4.2. A problemática do conceito de sem-abrigo

Existem inúmeras dificuldades na definição do conceito, que se prendem, desde

logo, com o facto de não existir, nem nunca ter existido, uma definição inequívoca a

nível internacional de sem-abrigo. “La définition du sans abri n´a rien d´universelle: chaque pays

développe la sienne propre” (Thelen, 2006:12). Ora, não existindo nenhuma definição

uniforme, pensamos que será conveniente começar pela palavra em si, onde nos

deparamos com dois termos que permitem contrabalançar, a priori, o horizonte

referencial do conceito: primeiro a preposição «sem», apontando para as ideias de

ausência e exclusão; posteriormente o substantivo «abrigo», que remete para as ideias de

casa e protecção. O sem-abrigo é, pois, aquele que se encontra desprovido de uma casa,

de um espaço que o filie e com o qual se possa identificar. Comummente é alguém que

vive na rua, ou seja, alguém que tem uma carência a nível habitacional. Embora

consensual e pragmática, esta acepção primeira, apesar de entrar frequentemente em

linha de conta para efeitos de contagem, não traduz a total extensão do conceito.

Sobretudo por acentuar a dimensão externa e física da questão, quando têm idêntica

32 A título de exemplo, podemos referir que o direito a ter uma casa passou a ser exigido perante os tribunais franceses. Esta medida surgiu depois de centenas de sem-abrigo e activistas sociais terem acampado, durante 15 dias, em Março de 2007, ao longo do Canal de Saint-Martin, convocando os parisienses a dormirem ao relento em sinal de solidariedade. Como resultado, foi aprovada uma lei no Parlamento, que entrou em vigor no dia 1 de Dezembro de 2008, e que contempla as seguintes situações: pessoas que carecem de alojamento; as ameaçadas de despejo sem terem alternativa; as alojadas temporariamente por terceiros; as que habitam em imóveis impróprios, insalubres ou perigosos; as famílias com menores a seu cargo ou; aquelas que vivem com deficientes físicos e que não têm uma casa decente ou suficientemente ampla.

Page 32: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

31

valoração para o entendimento desta realidade, as dimensões sociais e económicas e, não

raras vezes as psicológicas e as patológicas.

Há um vasto campo semântico, legado historicamente, associado à ideia de sem-

abrigo, que contribui para a sua delimitação estigmatizada.

O termo “sem-abrigo” poderá ter origem na tradução do francês “Sans-Abri” e do

inglês “Homeless”. A expressão “Sans-Abri” transmite uma ideia de “falta de habitat mínimo,

que protegeria o ser humano do frio, do vento ou da chuva que da mesma maneira que a alimentação

e/ou o vestuário, assegura uma necessidade essencial à sobrevivência humana” (Thomas, cit. por

Bento e Barreto, 2002:23).

O termo, em inglês, Homeless, poderá significar “sem lar” mas, ao mesmo tempo,

pode revelar uma certa desafiliação.33 No entanto, não significa o mesmo que houseless –

“Sem-Casa”, que se refere à falta de uma residência física. Por exemplo, nos Estados

Unidos da América (Anderson, cit. por Bento e Barreto, 2002:24) usaram-se termos

como hobos, ou seja, trabalhadores itinerantes; tramps, que significa vagabundos não

trabalhadores ou, por último; bums, que eram os não trabalhadores e não vagabundos.

Em França (Vexliard, cit. por Bento e Barreto, 2002:24) usaram-se termos como vagabond

e clochard para se referir aos sem-abrigo. Vexliard caracterizou-os como inúteis para a

sociedade, pois ninguém se preocupava com eles : “(…) il est certain que l'on rencontrait

autrefois parmi les vagabonds une plus grande quantité de malades mentaux, parce que nul ne se

préoccupait d'eux. Ils étaient condamnés à l'errance comme individus non utilisables socialement ; en

outre, ils n'entraient à l'asile que s'ils se révélaient dangereux pour l'ordre public (…)” (Vexliard,

1957:196).

Em Espanha, e em quase toda a América Latina, o termo mais utilizado é sin techo

(roofless). Na Finlândia, o termo homeless (kodition) foi substituído por dwellingless ou

houseless (asunnoton), porque o anterior tinha corporificada a ideia de “(…) having no

established relationships – no-one to take care of them (…)” (Edgar et al., 1999:47). Na Noruega,

o termo hjemløshet (homelessness) foi mudado para bostedsløshet (dwellinglessness). Os

33 Entende-se por desafiliado, todo aquele que rompeu com os laços afiliativos tanto familiares, como sócio-laborais.

Page 33: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

32

documentos oficiais noruegueses também utilizam o termo UFB (uten fast bolig), que

significa “sem residência fixa”.

Em Portugal, é tradicionalmente associada a categoria de sem tecto, rooflessness,

que tem tido reflexos importantes quer ao nível da investigação, quer no delinear de

estratégias e políticas. Vejam-se, por exemplo, os conceitos: vagabundo, vadio, ocioso,

mendigo, indigente (Bento et al., 2002:23) 34. Como bem nota o autor mencionado,

actualmente, a prevalência do termo sem-abrigo aponta para a instauração de um novo

olhar sob a qual esta realidade é perspectivada, particularmente nas classes dirigentes e

políticas: “Se contrastarmos esta definição [sem-abrigo] com as anteriores de vagabundo, vadio,

mendigo, verificamos que ela revela uma profunda alteração do discurso oficial sobre estas pessoas. O

sentido pejorativo e responsabilizador dos primeiros é substituído por uma definição que acentua as

causas externas do problema” (idem, ibidem: 26).

Mas, em verdade, a carga dos epítetos negativos ainda sobrevive no senso comum.

Em certa medida, arriscar-nos-íamos a dizer que vive neste conceito, um anti-exemplo,

uma negação do sujeito individual e socialmente realizado, ou, no limite, uma espécie de

produto com defeito produzido pela sociedade. Não espanta que no seio dos regimes

totalitários, propensos à auto-exaltação, esta realidade tenha sido escondida,

precisamente por se constituir como indicador de pobreza. Indo ao encontro do estigma

que recai sobre este tipo de indivíduos, podemos lembrar a definição abjecta de sem-

abrigo presente na Enciclopédia Social Russa: “The most destitute and hopeless segment of the

homeless people…beg, rummage through rubbish, steal, become carriers of infectious diseases and

originators of fires and create moral discomfort for the members of the public (Mirsagatova, 2000:34)”

(Stephenson, 2006:4).

Assim, percebemos, por tudo o que foi dito até então, que a definição de sem-

abrigo se dirige a todo aquele que se encontra desprovido de um abrigo físico. Contudo,

essa ausência repercute-se também na inexistência de uma série de outros “abrigos”

e/ou protecções, sejam eles sociais, laborais, económicos, familiares, psicológicos. Em

34 Um dos poucos livros escritos sobre esta matéria em Portugal.

Page 34: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

33

última instância, o sem-abrigo é alguém que se encontra em ruptura, em virtude de não

estar re-ligado nem a si nem ao outro.

A casa, enquanto território metonímico do próprio sujeito, institui a edificação de

um indivíduo; inversamente, a rua, na medida em que é um espaço público, desconstrói

a sedimentação dessa individualidade. O modo como se desenrola o conflito entre

interioridade e exterioridade, entre apropriação e expropriação parece-nos cheio de

consequências pois traduz, em nosso entender, o par dialéctico vinculação e

desvinculação que subjaz ao conceito de sem-abrigo.

Torna-se evidente que a questão habitacional é importante, mas os problemas dos

sem-abrigo são, também, outros e é da maior importância que estejamos conscientes

quanto a esta matéria. Por esta razão é importante que se estabeleça a distinção entre

houseless e homeless: é grave não deter uma habitação com as condições mínimas de

habitabilidade, mas é mais complexo SER homeless, pois, por trás desta situação, e de

acordo com Bulla et al., (2004:113-114), existe uma perda de vínculos familiares,

decorrentes do desemprego, da violência, da perda de algum ente querido, da perda de

auto-estima, do alcoolismo, da toxicodependência, de uma doença mental, entre outros

factores, que são os principais motivos que levam as pessoas a “morarem na rua”.

São histórias de rupturas sucessivas e que, com muita frequência, estão associadas

ao uso de álcool e drogas, não só pela pessoa sem-abrigo, mas por outros membros da

família. Snow e Anderson (1998:77) afirmam que o mundo social dos sem-abrigo se

constitui como uma subcultura, ainda que limitada ou incompleta. Trata-se de um

mundo social que não é criado ou escolhido pelas pessoas que vivem nas ruas (pelo

menos inicialmente), mas para o qual foram empurradas por circunstâncias alheias ao

seu controle. Partilham, contudo, do mesmo destino, o de sobreviver nas ruas e becos

das grandes cidades.

1.4.3. Definições de Sem-Abrigo

O fenómeno dos sem-abrigo é complexo, pois tem uma grande variedade de

causas e de consequências. Como resultado, o número de significações é desmesurado e

Page 35: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

34

os seus contornos advêm mais frequentemente de ideologias e não tanto de análises

imparciais e desapaixonadas. Após consulta a uma vasta literatura concluímos que existe

uma grande multiplicidade de definições sobre sem-abrigo. A maior parte da bibliografia

consultada converge para grupos específicos como os desempregados, imigrantes,

toxicodependentes, alcoólicos, minorias étnicas, mulheres vítimas de violência

doméstica, veteranos de guerra, crianças de rua, pessoas com problemas de saúde

mental, entre outros. Contudo, o grande problema destas perspectivas é o excessivo

enfoque em experiências subjectivas e nas características e histórias de vida dos

indivíduos, estigmatizando-os e correndo-se o risco de não serem verdadeiramente

sustentados os principais factores estruturais.

Teria um grande mérito uma definição universal que permitisse monitorizar o

fenómeno e torná-lo comparável em todo o mundo. No entanto, tal torna-se intangível

uma vez que existe uma abundância de causas que conduzem as pessoas à situação de

“sem-abrigo”, e as suas consequências estão relacionadas com uma grande diversidade

cultural e com as particularidades dos grupos afectados. Porém, têm sido feitas tentativas

para desenvolver estas definições universais, como por exemplo, a tentativa de propor o

termo houselessness para identificar aqueles que detêm abrigos desadequados, o que tem a

vantagem de reconhecer os que não têm qualquer tipo de habitação; são houseless aqueles

que a detêm, mas em condições inadequadas. Coloca-se, neste momento, a questão da

medição do fenómeno e em que categorias incluir os moradores dos “bairros de lata”, os

“moradores” dos campos de refugiados, as vítimas de catástrofes ambientais, entre

outros.

Springer, (2000:479) alerta-nos para a imensidade de definições e conclui que

“(…) there are as many classifications and definitions of homelessness as there are different points of

views. A definition of homelessness might refer to a special housing situation, to a special minimum

standard, to the duration and the frequency of a stay without shelter, to lifestyle questions, to the use of

the welfare system and to the being part of a certain group of the population, to the risk of becoming

houseless and to the possibility to move or not if desired (…)”

Em quase todos os países a definição de sem-abrigo revela a existência de uma

forte ligação entre o “ser sem-abrigo” e a carência de habitações para alojar toda a

Page 36: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

35

população. No entanto, a forma como esta situação se manifesta, varia entre as

diferentes nações. De acordo com um relatório do Centre for Human Settlements (2000), das

Nações Unidas, e referido no 2007 National Symposium on Homelessness Research, as Nações

estão organizadas em três clusters:

• “high-income, industrial countries, including the United States, Western Europe,

Canada, Australia and Japan,

• Other industrial countries with economies in transition, including Eastern and Central

Europe and the Russian Federation, and

• Developing countries, including many in Africa, Latin America, and much of Asia.”

(Leginski, 2007:1-27)35.

Por exemplo, na Índia e no Bangladesh encontramos um grande número de

indivíduos, e até famílias, a dormir nas ruas e, mesmo, nas lixeiras das grandes cidades.

Estas pessoas preferem abdicar de uma habitação, para poderem enviar as suas

poupanças para as suas regiões de origem. O Bangladesh Bureau of Statistics (BBS) sugere

como definição oficial de sem-abrigo, utilizada nos Recenseamentos Gerais da

População, “the floating population are the mobile and vagrant category of rootless people who have no

permanent dwelling units whatever (…)” (BBS, 1999: 3). Esta definição tem subentendido o

conceito de “população em trânsito” que poderá ter algures, uma habitação e que a

abandonou temporariamente.

Na China, os que dormem na rua não são tolerados e o mais aproximado a ser um

“sem-abrigo”, é estar no estado de “blindly floating”, não tendo qualquer registo nos

documentos de identificação no campo “residência”. É usual estes indivíduos ocuparem

edifícios em zonas pobres, onde a habitação é de baixa qualidade (Zhang et al., 2003).

Beavis et al. (1997) dedicou-se ao estudo dos sem-abrigo entre os Aborígenes

Australianos. Fez a distinção entre aqueles que estão temporariamente sem abrigo e os

denominados “crónicos”.

35 Historical and Contextual Influences on the U.S. Response to Contemporary Homelessness, in Toward Understanding

Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research, USA, Setembro de 2007.

Page 37: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

36

O Egipto apresenta as pessoas como sem-abrigo, dependendo da qualidade da

habitação. As pessoas que vivem em habitações marginais (Iskan gawazi) e inadequadas

são considerados sem-abrigo. Na África do Sul (tal como acontece, por exemplo, na

Indonésia) é comum as pessoas sem-abrigo ocuparem os edifícios abandonados das

principais cidades. O fenómeno dos sem-abrigo no Gana é recente, devido, sobretudo,

aos conflitos étnicos no norte do País. No Peru, aqueles que vivem em aglomerados

populacionais e que não detêm um título de propriedade são considerados, oficialmente,

“sem-abrigo”. A ênfase dada à “propriedade”, também se verifica no Zimbabué

(Kamete, 2001; Tipple e Speak, 2005). Como refere Cooper (1995), as definições de

sem-abrigo reflectem as prioridades políticas, influenciando o nosso conhecimento sobre

as questões e a forma de as resolver.

Na 61st Session of the United Nations Commission on Human Rights, realizada em Genève,

no dia 30 de Março de 2009, Miloon Kothari36 declarou que o número de sem-abrigo,

nos centros urbanos, situa-se entre 20 a 40 milhões e, no mundo em geral, fixa-se entre

os 100 milhões a um bilião. No entanto, o intervalo entre a contagem por excesso ou

por defeito é muito grande. Tal facto deve-se à definição utilizada. Como refere Peressini

et al. (1995) “(…) a definition is important because most researchers agree on one fact: who we define

as homeless determines how we count them (…)”. Avramov (1999) é de opinião que é necessário

ter cuidado a comparar dados, a descrever problemas e a encontrar soluções para os

sem-abrigo, porque não existe nenhuma definição única que caracterize o fenómeno dos

sem-abrigo.

Para efeitos estatísticos, as Nações Unidas (1998:50) desenvolveram a seguinte

definição para agregados familiares em situação de “sem-abrigo” – “(…) households without

a shelter that would fall within the scope of living quarters. They carry their few possessions with them

sleeping in the streets, in door ways or on piers, or in any other space, on a more or less random basis

(…)”. Esta definição, sugere-nos, desde logo, a imagem de pessoas que deambulam pelas

cidades, transportando os seus haveres, e dormindo nas ruas, e converte-se, assim, numa

explicação simples e universal do fenómeno.

36 Special Rapporteur on Adequate Housing.

Page 38: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

37

Vários países desenvolveram as respectivas definições, com a preocupação de

incluírem as pessoas institucionalizadas e que não tinham qualquer tipo de abrigo. Foi o

caso da Índia, França e dos Estados Unidos da América. Neste último, o Stewart B.

McKinney Homeless Assistance Act of 1987, definiu sem-abrigo como:

“(1) An individual who lacks a fixed, regular, and adequate night-time residence; and

(2) An individual who has a primary night-time residence that is:

A supervised publicly or privately operated shelter designed to provide temporary living

accommodations (including welfare hotels, congregate shelter, and transitional housing for the mentally

ill);

An institution that provides a temporary residence for individuals intended

to be institutionalized; or

A public or private place not designed for, or ordinarily used as, regular sleeping accommodations

for human beings.

(3) This term does not include any individual imprisoned or otherwise detained

under an Act of Congress or state law.

People who are at imminent risk of losing their housing, because they are being evicted from

private dwelling units or are being discharged from institutions and have nowhere else to go, are usually

considered to be homeless for program eligibility purposes” (USA, 1994: 22-23).

Esta definição é equiparada aos dois grupos identificados na Europa – os que

dormem na rua e aqueles que dormem em centros de abrigo. O termo “adequate” dá

lugar àqueles casos que se pode considerar inadequada, e também implica a ausência de

relações sociais e familiares. Avramov (1996) prefere uma definição mais ampla e que

inclui, também, o termo “adequate”: “Homelessness is the absence of a personal, permanent,

adequate dwelling. Homeless people are those who are unable to access a personal, permanent, adequate

dwelling or to maintain such a dwelling due to financial constraints and other social barriers (…)”

(Avramov 1996:71).

Nos últimos anos o UNCHS (Habitat), agora denominado UN-Habitat, esteve a

rever as suas definições sobre sem-abrigo, uma vez que existiam outras mais correctas,

Page 39: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

38

nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos. Alguns autores definiram homelessness

como uma falta de direito a aceder a uma casa com condições de habitabilidade e

descreveram-na como “(…) rooflessness (living rough), houselessness (relying on emergency

accommodation or long-term institutions), or inadequate housing (including insecure accommodation,

intolerable housing conditions or involuntary sharing)" (Edgar et al. 1999: 2).

Esta definição é muito semelhante à que foi desenvolvida pela FEANTSA37.

Procura-se, actualmente, no contexto europeu encontrar formas de entendimento mais

abrangentes que permitam abordar a questão em diferentes países. De acordo com

Brousse (2005), o EUROSTAT conseguiu chegar a uma definição consensual de “sem-

abrigo”, fruto de um entendimento com todos os actores envolvidos, nomeadamente os

profissionais da estatística e os representantes da FEANTSA: “Une personne est dite sans-

abri si elle n’a pas accès à un logement qu’elle pourrait raisonnablement occuper, que ce logement soit

légalement sa propriété ou qu’il soit loué; fourni par un employeur; occupé sans loyer d’une manière

contractuelle ou selon un autre arrangement. En conséquence, elle est obligée de dormir: à l’extérieur;

dans des bâtiments qui ne satisfont pas aux critères reconnus communément pour l’habitation; dans un

centre d’urgence dépendant du secteur public ou d’organisations caritatives; dans des centres de plus long

séjour dépendant du secteur public ou d’organisations caritatives; dans un bed-and-breakfast; dans un

autre hébergement de court séjour; chez des amis ou de la famille; dans des squats occupés avec

autorisation (…)” (Brousse 2005:52).

A FEANTSA apresentou, pela primeira vez, em 1998, a tipologia “ETHOS”38 –

European Typology of Homelessness (Tipologia Europeia sobre Sem-abrigo e Exclusão

Habitacional) que está dividida em quatro categorias:

• Os sem-tecto (rooflessness): é a forma mais visível, incluindo as pessoas que

dormem na rua;

37 Fédération Européenne d’Associations Nationales Travaillant avec les Sans-Abri. 38 É entendimento da FEANTSA que a definição desta tipologia é um meio de promover a compreensão e avaliação da situação de sem-abrigo na Europa bem como promover uma linguagem comum. Esta definição é construída em torno do conceito de uma casa. “A FEANTSA considera que existem três elementos que constituem uma casa, e na falta dos quais se esboça a situação sem-abrigo. Ter uma casa pode ser entendido como: ter uma habitação adequada sobre a qual a pessoa e família podem exercer uma posse exclusiva (elemento físico); poder manter a privacidade, conseguir relacionar-se (elemento social) e ter um estatuto legal para ocupação (elemento legal). Isto conduz a quatro principais categorias conceptuais sobre sem-abrigo: sem-tecto, sem casa, em habitação precária e habitação inadequada” (SPINNEWIJN, 2005: 22-23).

Page 40: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

39

• Os sem-casa (houselessness): refere-se às situações em que, apesar de existir acesso a

centros de abrigo de emergência ou instituições com permanência de longa

duração, as pessoas continuam a ser classificadas como sem-abrigo;

• Habitação precária (insecure housing): diz respeito à ocupação ilegal de um fogo ou

edifício, ao sub-arrendamento ou à vivência em casa de familiares e amigos.

• A habitação inadequada (inadequate accomodation): inclui aqueles cujo alojamento é

inadequado para habitação ou se encontra sobrelotado, e ainda aqueles cujo

alojamento é uma caravana ou um barco.

Springer (2000) assinala que estas duas últimas categorias coincidem, ou seja, uma

habitação pode ser simultaneamente insegura e fora dos padrões normais.

Existe um autor que discute as ideias de relative e absolute homelessness. A primeira

refere-se ao facto de uma pessoa poder ter um abrigo, mas não possuir uma casa.

Persiste a absolute homelessness quando não se tem acesso quer a um abrigo, quer a nenhum

elemento constituinte de uma casa (Cooper 1995).

Em Portugal, a utilização do termo sem-abrigo tem vindo a ser debatida,

procurando ter maior impacto na percepção de que está cada vez menos assente numa

linearidade causal explicativa, centrada nas características individuais dos sem-abrigo. É

urgente promover uma reflexão que permita dar visibilidade às causas estruturais destes

fenómenos de marginalização extrema, que se encontram, também, de acordo com

Baptista (2005), inscritas nas trajectórias individuais e familiares.

Apesar dos muitos debates sobre estas matérias foi necessário envolver um grupo

de actores que identificasse um conjunto de problemas que estão na base destas

situações e definisse um agregado de medidas que visassem a sua resolução. Assim, foi

constituído um Grupo Interinstitucional39, em Maio de 2007, cuja tarefa foi desenvolver

39 Entidades representadas no Grupo: Públicas: Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural (ACIDI), Instituto Público; Alto Comissariado da Saúde (ACS); Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP); Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG); Direcção-Geral da Saúde (DGS); Direcção-Geral da Segurança Social (DGSS); Direcção-Geral de Reinserção Social (DGRS); Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (DGSP); Guarda Nacional Republicana (GNR); Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT); Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP); Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU); Instituto da Segurança Social (ISS), Instituto Público; Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC); Polícia de Segurança Pública (PSP); Escola Nacional de

Page 41: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

40

uma Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo40. A coordenação

deste Grupo esteve a cargo do Instituto de Segurança Social, IP e nele estiveram

representados os diferentes sectores públicos e privados, considerados actores chave

para a intervenção neste fenómeno.

Este Grupo Interinstitucional sentiu a necessidade que a Estratégia a definir, fosse

dirigida a um grupo alvo bem preciso, pelo que foi definido um conceito de pessoa sem-

abrigo, que passou a vigorar, que é o seguinte:

“Considera-se pessoa sem-abrigo aquela que, independentemente da sua nacionalidade, idade,

sexo, condição sócio-económica e condição de saúde física e mental, se encontre:

• sem tecto – vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em

local precário;

• sem casa – encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito”.

Este conceito foi elaborado com base nas categorias operacionais da tipologia

proposta pela FEANTSA e utilizada por outros países europeus, com vista à facilidade

da sua aplicação e operacionalização.

Em conclusão, o conceito de “sem-abrigo” é distinto nas diversas nações e

reflecte sobretudo o clima político e nem tanto a verdadeira realidade da “privação”.

Não persiste a dúvida de que as pessoas que dormem nas ruas, debaixo das pontes, ou

noutros locais, que não são considerados de “residência”, são pessoas sem-abrigo. No

entanto, a distinção entre pessoas sem-abrigo e aquelas que vivem em habitações

inadequadas é vaga e não permite chegar a conclusões.

Saúde Pública (ENSP); e Privadas: Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS); Rede Europeia Anti-Pobreza Nacional (REAPN); Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML); Federação Nacional de Entidades de Reabilitação de Doentes Mentais (FNERDM); União das Misericórdias; e Observatório do FEANTSA.

40A Estratégia foi apresentada pelo Governo no dia 14 de Março de 2009; vai permitir a coordenação dos recursos existentes e a aposta em três áreas específicas: prevenção, intervenção e acompanhamento.

Page 42: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

41

1.4.4. Porque as Pessoas são Sem-Abrigo?

Toro e Warren (1999) descrevem como principais critérios para definir o

fenómeno dos sem-abrigo, a natureza das condições de vida, e ao fim de quanto tempo a

pessoa que viva nessas condições é considerada sem-abrigo. Associada às pessoas que

dormem em abrigos ou que vivem nas ruas, deve a definição incluir aqueles que se

encontram em instituições, hospitais ou prisões, que serão desinstitucionalizados e não

têm para onde ir. Por exemplo, Rivlin (cit. por Pereira, Barreto e Fernandes, 2000)

diferencia os sem-abrigo em termos da duração do período em que estes se encontram

na rua e do consequente grau de vulnerabilidade. Distinguem-se, assim, quatro formas

de sem-abrigo:

• O crónico, que passa grande parte da sua vida na rua, tem apenas dinheiro

suficiente para gastos mínimos; pode manter uma rede de contactos sociais ou

formar pequenas comunidades com pessoas na mesma situação;

• O periódico, que tem casa mas que, por vezes, a deixa indo viver para um

albergue ou até mesmo para a rua, mantendo-se no entanto essa casa acessível;

• O temporário, que está numa situação de sem-abrigo devido a uma situação

inesperada. Tem a capacidade para manter uma casa estável;

• Por último, o total, que é considerado o mais dramático de todos. Não tem casa,

pernoita em albergues, igrejas, edifícios abandonados. Por norma, são pessoas

traumatizadas por não manterem relações sociais na comunidade, e que não têm

qualquer tipo de suporte social nem humanos.

Em tempos, a natureza das explicações para o surgimento dos sem-abrigo, estava

centrada apenas nas características individuais dos sem-abrigo. No entanto, o

aparecimento em massa e a selectividade social do fenómeno, bem como a

heterogeneidade de situações e de trajectórias que a situação de sem-abrigo encerra,

colocaram em causa as explicações de carácter individual (Pereira, Barreto e Fernandes,

2000). Os estudos centrados apenas nos indivíduos não fariam mais do que identificar os

factores vulneráveis, e não as causas dos problemas (Bento e Barreto, 2002).

Page 43: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

42

Assim, actualmente, é considerado que a abordagem mais adequada para a

situação de sem-abrigo é a que considera a sua complexidade (Anderson e Christian,

2003; Clapham, 2003; Sosin, 2003) de uma forma contextual, tendo em conta todos os

factores que a podem influenciar, assim como a complementaridade entre diferentes

factores (Meert et al., 2005 cit. por Miguel, 2007).

Por isso, a situação de sem-abrigo não é um problema social distinto com

características e causas únicas (Pleace, 1998) e, como tal, não deve ser conceptualizada

enquanto problema de ordem estrutural ou de ordem individual, mas sim considerada na

interacção e sobreposição entre estruturas sociais e circunstâncias individuais (Anderson

e Christian, 2003), isto é, num modelo que integre ambos os tipos de factores de risco

(Commitee of the Regions e Shinn, cit. por Tompsett et al., 2003; Clapham, 2003), e que

considere também a importância dos acontecimentos de vida como centrais na

explicação da situação de sem-abrigo (Sosin, cit. por Miguel, 2007).

Poderão existir quatro causas principais que contribuem para a situação de sem-

abrigo: pobreza persistente, distúrbios de comportamentos, empobrecimento das redes

sociais e perda de habitação acessível (Koegel et al.; Rossi, cit. por Shinn et al., 1998). Os

factores estruturais estão relacionados com a organização da sociedade, tais como

condições de emprego e do mercado habitacional, e políticas públicas, como as da saúde

e da segurança social (Clapham, 2003), e os factores individuais estão relacionados com:

perturbações psiquiátricas, défices educacionais e profissionais, desafiliação e falta de

identificação cultural (Piliavin et al., cit. por Bento e Barreto, 2002).

Existem outros factores de risco que fazem uma pessoa tornar-se sem-abrigo, tais

como: conflitos; fim de relações; abuso físico e sexual; falta de qualificações;

desemprego; consumo de álcool e drogas; problemas de saúde mental e do foro judicial,

ou seja, com o sistema de justiça criminal (prisões); endividamento; falta de uma rede de

suporte social (Randall e Brown, cit. por World Health Organization [WHO] 2005, cit.

por Clapham 2003); ou institucionalização ou morte de um progenitor durante a infância

(Nordentoft e Wandall-Holm, cit. por WHO, 2005).

Uma abordagem mais centrada numa explicação da natureza dos problemas que

afectam os sem-abrigo, apresenta três explicações:

Page 44: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

43

• Ser sem-abrigo como uma opção de vida (decisão consciente em rejeitar a

vivência numa casa convencional);

• Ser sem-abrigo devido a problemas patológicos (doença mental,

droga/alcoolismo...);

• Ser sem-abrigo como consequência de acontecimentos ou circunstâncias negativas

(violência doméstica, incapacidade financeira para manter um alojamento...)

(“Estudo dos Sem-abrigo”, ISS, IP, 2005).

Koegel et al. (cit. por Sousa & Almeida, 2001) argumenta que o aparecimento de

pessoas sem-abrigo está intrinsecamente ligado às políticas que afectam o bem-estar das

famílias, particularmente das mais pobres. Isto inclui as políticas relacionadas com a

distribuição de rendimentos, com a habitação, com o emprego, com a educação, com o

abuso de substâncias e com a saúde mental. Assim a prevenção de situações de sem-

abrigo terá que passar necessariamente por mudanças nessas políticas.

1.4.5. Abordagem dos Sem-Abrigo de acordo com uma Perspectiva

Ecológica

Ornelas (1997) refere que a Ecologia é um paradigma científico e um conjunto de

valores, partindo do pressuposto de que o ambiente exerce efeitos significativos no

comportamento humano. A Ecologia focaliza-se na relação entre os organismos e os

recursos, chamando a atenção para o que está para além da pessoa.

A perspectiva ecológica, segundo Kelly (cit. por Ornelas, 1997) transpõe a

necessidade da observação dos indivíduos nos seus contextos naturais, propõe a

impossibilidade de separação, dos métodos de investigação, dos valores subjacentes e do

trabalho ou posição do interventor social.

A partir dos quatros princípios da perspectiva ecológica podemos compreender a

relação do indivíduo com os contextos sociais. Neste contexto, pretende-se fazer uma

analogia entre a perspectiva ecológica e a problemática da situação de sem-abrigo. Os

quatro princípios da perspectiva ecológica são:

Page 45: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

44

• Princípio da adaptação:

Está em causa a adaptação do indivíduo ao meio social e a sua relação com o mesmo. A

especificidade dos recursos que o meio proporciona e como estes podem facilitar

determinados comportamentos e constranger outros (Ornelas, 1997). O contexto social

é estruturado em vários níveis de análise, em que cada um deles contribui para a

compreensão do ambiente e os seus efeitos no comportamento (Bronfenbrenner, cit. in

Toro et. al, 1991). Quanto aos sem-abrigo, o princípio da adaptação demonstra que

existem diversas influências de adaptação, que são: as influências socioculturais, onde se

sugere a necessidade de considerar a forma como os factores sociais e culturais

influenciam esta problemática. Segundo Toro e Rojansky (cit. in Toro et al., 1991) numa

análise dos factores que influenciaram a problemática dos sem-abrigo, sugere-se que o

recente crescimento do fenómeno de sem-abrigo nos Estados Unidos, pode ser o

resultado de diferentes manifestações culturais, o que diferencia este país dos outros. Na

influência local é importante ter em conta os vizinhos, o meio em que interagem, tudo

aquilo que os envolve localmente. Embora vários factores socioculturais vão no sentido

de uma visão global dos sem-abrigo, a consideração de múltiplos níveis de análise sugere

que o contexto de vizinhança fornece constrangimentos mais imediatos face aos sem-

abrigo. De que forma as pessoas se enquadram no meio. Destaca a noção de que a

adaptação funciona como uma interacção entre as características pessoais e as

características individuais dos contextos; assim, nenhuma política, serviço, ou recurso

deve ser visto como a única solução possível, visto que a situação de sem-abrigo é um

fenómeno que aponta para um conjunto de factores ligados entre si (Toro et. al, 1991).

• Princípio dos Recursos Cíclicos (Cycling of Resources):

Se o princípio da adaptação realça uma visão contextual dos sem-abrigo, o dos recursos

cíclicos promove um enfoque diferente na forma como os recursos no sistema social são

definidos, distribuídos e melhorados. Adoptar a perspectiva de recursos cíclicos nos

sem-abrigo, implica a procura das forças do indivíduo e da comunidade em que podem

ser desenvolvidos e aplicados, tendo em consideração a forma como os recursos não

explorados na comunidade podem ser melhor utilizados (Toro et al., 1991). A avaliação

dos recursos a nível individual é importante para avaliar aqueles que são necessários para

Page 46: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

45

sobreviver como uma pessoa sem-abrigo nos mais variados contextos. Para o

desenvolvimento das intervenções, a avaliação dos procedimentos para a utilização

desses recursos, é essencial para clarificar a forma como as capacidades são distribuídas

na comunidade e como a comunidade partilha as suas competências (Kelly, 2006).

• Princípio da Interdependência:

Refere-se não somente à existência de uma influência mútua entre os componentes da

comunidade, mas também à sua interacção dinâmica ao longo dos tempos. Este

princípio realça a complexidade dos processos de mudança e aponta a comunidade

como unidade base de intervenção (Ornelas, 1997). O princípio da interdependência

pode ser aplicado em diferentes níveis de análise, tal como os outros princípios

ecológicos. Este princípio realça que, por exemplo, em contexto individual e familiar,

tornar-se sem-abrigo envolve várias alterações na vida, como, por exemplo, na

redefinição do papel da família, numa mudança individual e na rede social, ou no

aumento de problemas de saúde (Streuning & Padgett, cit. por Toro et al, 1991).

• Princípio da Sucessão:

É particularmente relevante para estudar os ambientes sociais e acautela o investigador a

avaliar e definir a mudança sistémica presente na comunidade antes de iniciar qualquer

intervenção (Kelly, 2006). Isto implica que na avaliação dos ambientes ou contextos,

estes não sejam designados como estáticos. Segundo este princípio os problemas e as

limitações com que nos defrontamos residem na capacidade de visionar e criar novos

contextos (Ornelas, 1997). Defende, igualmente, uma abordagem histórica e contextual

na compreensão actual deste fenómeno social. Promove a compreensão temporal dos

sem-abrigo incluindo os seus antecedentes, estádios ou fases, e reacções.

Esta perspectiva (ecológica) dá relevância ao contexto em que os sem-abrigo estão

inseridos e à complexidade das interacções ao nível social, pessoal, e económico, e os

recursos oferecidos pelos serviços que afectam directamente o seu bem-estar. Esta dá

importância ao processo de interacção pessoa-ambiente, que foi sugerido como uma

alternativa ao processo que se centrava apenas na pessoa (Toro et al., 1991).

Page 47: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

46

A perspectiva ecológica sugere muitas direcções para a pesquisa e actividades de

intervenção. Envolve a diversificação das questões de pesquisa e metodologia usadas

para compreender os sem-abrigo, começando por um período extensivo de avaliação

(Toro et al., 1991).

A conduta de investigação e intervenção é baseada em dois pontos: o primeiro

refere-se à importância de dar tempo, e levar em conta os recursos, para entender

questões, por exemplo, como é que os sem-abrigo se expressam e as repostas aos

mesmos, e assim variar as condições ecológicas. Um segundo ponto desta perspectiva

passa por envolver o compromisso de conseguir relações de “empowering” com estas

pessoas e com as organizações nas quais as mesmas trabalham (Toro et al 1991).

É de particular importância a pesquisa direccionada para a prevenção da existência

dos sem-abrigo. Por exemplo, Rossi (cit por Toro et al, 1991) defendeu uma pesquisa

orientada no sentido da compreensão das situações de grupos de pessoas que vivem em

habitações precárias. Este grupo de risco é maior que o grupo de pessoas que

literalmente não possuem habitação, talvez 20 a 30 a vezes (Rossi; Rossi, Wright, Fisher,

e DeWillis, cit. por Toro et al, 1991). Será importante compreender as causas ecológicas

que forçam estas pessoas a saírem de suas casas, ou de um modo transposto, a prevenir a

sua ocorrência.

A perspectiva ecológica encoraja os investigadores, bem como os programas

desenvolvidos, a contemplar os problemas dos sem-abrigo em diferentes níveis de

análise, de forma a olharem para os sem-abrigo como um resultado de factores do

contexto com que estes interagem individualmente e com as famílias dos mesmos, e para

olharem com cuidado para o contexto social em que os investigadores e os programas

desenvolvidos actuam (Toro et al, 1991).

Adquirir competências colaborativas e aprender a participar em projectos de

comunidades que promovam o “empowering”, são partes do desenvolvimento de uma

certeza ecológica. O valor do profissional colaborativo foi descrito como uma forma de

promover o “empowerment” e como uma epistemologia que pode enriquecer a

compreensão dos sem-abrigo (Toro et al 1991).

Page 48: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

47

Espera-se que a perspectiva ecológica possa servir como estímulo para futuras

pesquisas e acção de compromissos por parte dos profissionais, tendo em conta a

problemática dos sem-abrigo (Toro et al., 1991).

O interesse e os conceitos sobre os sem-abrigo tiveram um enorme

desenvolvimento nos últimos anos nas respostas públicas, profissionais e também nas

políticas desenvolvidas. São agora reconhecidos como um complexo e multifacetado

fenómeno que envolve políticas sociais, deficiências no sistema, falhas no suporte social,

nas diferenças individuais e familiares, e no acesso aos vários recursos e a estilos de vida

(Shinn & Weitzman, cit. por Toro et al., 1991).

Embora os actores sociais que operam nesta área de intervenção tenham uma

longa história de relutância para resolver importantes aspectos sociais (Dewey, 1946;

Fairweather, 1972; Lewin, 1951; Moleiro, 1969; Sarason, 1981, 1981; Seidman, 1988;

Smith, 1990 cit. por Toro et al., 1991), existem sinais prometedores na preocupação com

os sem-abrigo.

Segundo Blasi (cit. por Toro et al., 1991), a maioria das ciências sociais focou as

características dos sem-abrigo no contexto dos mesmos, em vez de o fazerem nos seus

contextos sociais, ou nos contextos naturais. Alguns psicólogos começaram a aplicar

componentes desta perspectiva ecológica no seu trabalho de investigação na área dos

sem-abrigo (Milburn & D'Ercole, 1991, Morse et al., 1989; Shinn et al., 1991; Shinn e

Weitzman, 1990; Toro, 1991; Watt & Milburn, 1987; cit. por Toro et al., 1991).

Muitas vezes o meio ambiente onde vivemos, onde nos formamos ou

estabelecemos as redes sociais influenciam a forma como pensamos e como agimos.

Segundo Fernandes (2002), os cidadãos, para assumirem a sua cidadania, têm de

sentir que são parte inteira de um todo corrente e solidário. Têm de sentir que os seus

representantes o são realmente e que o seu desejo de participação na “coisa pública” é

útil e como tal reconhecido, valorizado e recompensado. São muitos os cidadãos que

não se revêem na sociedade onde vivem por questões culturais, políticas e sociais.

Como foi referido anteriormente, o fenómeno dos sem-abrigo está relacionado

com factores estruturais, que reflectem a forma como a nossa sociedade está organizada

Page 49: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

48

e como está distribuída a riqueza e o poder, e que contribuem para o aparecimento de

pessoas sem-abrigo.

A utilização valorativa dos nossos recursos naturais e humanos na promoção da

qualidade de vida dos cidadãos e do progresso do bem-estar económico, social e

ambiental é uma mais-valia, e será a forma como o indivíduo vive na sociedade, e

conforme o estilo de vida adoptado, que poderá influenciar o seu percurso de vida

(Fernandes, 2002).

Page 50: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

49

Capítulo II

Compreender o Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América:

O que é e o que está a ser feito?

Page 51: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

50

Nota de Abertura

Encontrando-se já apresentadas algumas questões-chave, essencialmente de índole

conceptual – que permitiram introduzir a questão dos sem-abrigo, contextualizando-a no

espectro dos estudos relacionados com a pobreza, a exclusão social e os Direitos

Humanos (nomeadamente o Direito à Habitação) –, urge, agora, efectuar uma

aproximação à situação da “homelessness” nos Estados Unidos da América, referencial

analítico essencial ao cumprimento dos objectivos do presente projecto, ou seja, ao

delinear de “novas estratégias para auxiliar os sem-abrigo na cidade de Lisboa”.

A presente nota de abertura tratará, essencialmente, de explicitar os objectivos

subjacentes ao capítulo a que se refere (“Compreender o Fenómeno dos Sem-Abrigo

nos Estados Unidos da América (EUA): O que é, e o que está a ser feito?”),

identificando, também, a importância e contextualização desse ponto do trabalho no

projecto de investigação “New Strategies to Help Homeless People in Lisbon City Area”. Será,

ainda, incluída, nesta breve nota introdutória, um sucinto apontamento relativo à

metodologia seguida e à estrutura e organização conceptual traçada para o capítulo.

Foram traçados os seguintes objectivos para o presente capítulo, devidamente

contextualizados nos propósitos delineados, de uma forma mais geral, para o projecto de

investigação no seu todo:

1. Analisar o historial das políticas sociais americanas relativas à concessão de ajudas à

população sem-abrigo, contextualizando-as nas políticas sociais especificamente

dirigidas à pobreza e exclusão social;

2. Perceber as características, as principais valências e a evolução da aplicação das

estratégias recentes de mitigação das problemáticas inerentes aos sem-abrigo, com

concessão de uma forte atenção aos chamados “Ten Year Plans” e às abordagens no

âmbito dos programas de “Supportive Housing” e “Housing First”;

Page 52: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

51

3. Possibilitar o estabelecimento de uma plataforma que permita a realização de um

estudo comparativo entre as políticas de apoio e assistência aos sem-abrigo nos EUA

– país com uma larga experiência e “tradição” de trabalho, investigação e intervenção

na área – e Portugal, tanto no que respeita às políticas movidas a nível nacional,

como, também, em termos locais, para a cidade de Lisboa.

Este último objectivo resume, mesmo, de forma exemplar, a relevância do presente

capítulo dirigido à situação dos EUA, no âmbito de um estudo sobre os sem-abrigo na

Área Metropolitana de Lisboa (AML), uma vez que, com maior ou menor sucesso, e

sendo alvo de maior ou menor criticismo, é factual que a questão dos sem-abrigo é,

desde há largos anos, uma temática presente na sociedade norte-americana. Assim, a

análise e inventariação das políticas, das linhas de investigação académica e do trabalho

social (p.ex., proporcionado através da actuação de Organizações Não-Governamentais

– ONG’s) levados a cabo nos EUA, pode constituir uma mais-valia na identificação de

“boas práticas” a – salvaguardando as respectivas adaptações às especificidades de

Portugal e da cidade de Lisboa – eventualmente procurar “exportar” para o caso

português. Efectuando o raciocínio inverso, esta abordagem à situação americana

permite, ainda, aprender com as “experiências menos conseguidas” levadas a cabo num

país (EUA) com uma larga tradição na abordagem a esta temática, evitando repetir erros

que foram anteriormente cometidos na tentativa de colmatação das problemáticas

individuais e sociais inerentes à questão dos sem-abrigo.

De forma a cumprir os objectivos delineados anteriormente, o presente capítulo

abordará quatro aspectos principais, cujos títulos e conteúdos provisórios se apresentam

em seguida:

1. A “Modernização” da Sociedade Americana e a “Modernização” do Fenómeno dos Sem-Abrigo:

No qual se procurará proceder a uma breve introdução à actual situação da pobreza e

exclusão social nos EUA – com a devida contextualização da questão dos sem-abrigo

nessas temáticas – como reflexo de alguns aspectos inerentes ao processo de

transição para a “modernidade” por parte da sociedade norte-americana; o relevo

será atribuído à importância dos fenómenos de reestruturação urbana e de

Page 53: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

52

recomposição sociocultural que se têm vindo a fazer sentir, nas cidades norte-

americanas, de forma demarcada desde meados do século XX;

2. “Os Sem-Abrigo Contam”: Contando e Explicando os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da

América: Serão, neste contexto, apresentadas algumas definições para o conceito dos

sem-abrigo nos EUA, assim como alguns números importantes, referentes à situação

actual do fenómeno (incluindo a sua espacialização, e considerando várias

“tipologias” de análise); serão, ainda, analisadas de forma mais detalhada algumas das

principais e potenciais causas e consequências diferenciais do fenómeno;

3. Breve Nota acerca da Investigação sobre a Questão dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da

América: Trabalhar-se-ão, neste ponto, os principais aspectos relativos à actuação da

sociedade civil (p.ex. ONG’s e outras associações) e, principalmente, das instituições

de ensino superior e investigação, face à problemática dos sem-abrigo nos EUA.

Efectuar-se-á, ainda, uma introdução (de contextualização ao capítulo seguinte) ao

tratamento da legislação e dos relatórios relativos à actuação política ao nível da

prevenção e colmatação dos problemas inerentes à questão dos sem-abrigo nos EUA.

4. Estratégias para Ajudar os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América – Uma Perspectiva

Diacrónica e Alguns Exemplos Actuais: No qual será, essencialmente, efectuada uma

aproximação, sob uma perspectiva evolutiva, às várias abordagens à questão dos sem-

abrigo nos EUA, desde a “ancestral” criminalização do fenómeno às metodologias

mais recentes, com destaque nítido para os chamados “Ten Year Plans” e para os

programas de “Supportive Housing” e “Housing First”.

Finalmente, e terminando a presente introdução, é essencial efectuar uma breve nota

sobre os principais aspectos metodológicos levados em consideração no presente estudo.

Os objectivos visados pela análise efectuada, juntamente com as especificidades

inerentes ao projecto como um todo, justificam a preponderância da pesquisa

bibliográfica – possibilitada através de literatura seleccionada e recolhida nos EUA, em

Portugal e na Internet; do levantamento de dados estatísticos; e da análise de documentos

legislativos norte-americanos – como o principal método de investigação utilizado.

No entanto, uma pesquisa desta índole quedaria incompleta sem a realização de

trabalho de campo. Assim, mesmo apesar dos óbvios constrangimentos espaciais, foi

Page 54: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

53

aplicado um conjunto de entrevistas a peritos e especialistas seleccionados – íntimos

conhecedores e especialistas acerca do espectro das políticas e práticas dirigidas aos sem-

abrigo no contexto norte-americano –, cujos resultados irão sendo colocados (a

contexto, sempre que se justifique, e de forma mais ou menos explícita) ao longo dos

vários tópicos do capítulo, enriquecendo as informações decorrentes da, já acima

mencionada, pesquisa bibliográfica.

2.1. A “Modernização” da Sociedade Norte-Americana e a “Modernização” do

Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América

Ao notório processo de desenvolvimento económico que se tem registado nas

últimas décadas – e do qual as principais cidades mundiais se vêm assumindo como

palcos privilegiados – não tem sido alheio o aparecimento, ascensão e agravamento de

um conjunto de importantes sintomas de crise social (e ambiental) nas principais áreas

urbanas, quer a nível mundial, quer particularizando para os casos norte-americano e

português.

Apesar das cidades se afirmarem, actualmente, como motores de desenvolvimento

económico, é também nelas que, e em aparente contradição, se vão concentrar alguns

dos problemas e fracturas sociais de maior dimensão e de resolução mais difícil. Os

espectros em que estes problemas se exprimem são múltiplos, variando desde a

integração das populações mais vulneráveis nos mercados de trabalho formais (p.ex., os

imigrantes, quer sejam internos, quer provenientes de outros países, normalmente dos

países “periféricos”), à degradação ambiental (p.ex., a sobre-exploração dos recursos

naturais ou a agudização de fenómenos de poluição e contaminação dos solos, do ar

e/ou dos recursos hídricos), passando pelo (in)cumprimento de Direitos Humanos

básicos (e consagrados) como a Educação, a Saúde ou a Habitação.

Assiste-se assim, actualmente, do ponto de vista social, ao aprofundamento

progressivo do dualismo social nas cidades, com o aparecimento e consolidação de

crescentes clivagens e contrastes entre os vários estratos populacionais que partilham um

mesmo território urbano, e à consolidação de fenómenos de segregação social e urbana,

Page 55: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

54

de entre os quais a proliferação dos bairros de génese ilegal ou a degradação dos centros

históricos constituem exemplos claros.

Apesar da questão dos sem-abrigo constituir um fenómeno de notória ancestralidade,

a sua ligação com os supracitados processos de reestruturação urbana, que se têm vindo

a fazer sentir de forma nítida nas últimas décadas, é inequívoca. Foi a partir dos anos

1960/70 que o fenómeno começou a ganhar – particularmente nos EUA – uma maior

dimensão quantitativa, assumindo, também, novos e diferenciados contornos (cf.

AMBERT, 1998; BLAU, 1992).

Curiosamente, foi também a partir dessas décadas (1960/70) que as questões ligadas

à exclusão social e à pobreza – já trabalhadas no capítulo anterior – começaram a ser

alvo da atenção institucional, ganhando uma maior visibilidade para o mundo

académico, para os órgãos políticos e institucionais e para a sociedade civil em geral.

Pobreza e exclusão social, muitas vezes conotadas como realidades sinónimas,

apresentam, no entanto, algumas diferenças significativas. «A substituição do termo

“pobreza” pela expressão “exclusão social” seria prejudicial, quer para a ciência, quer para os grupos

desfavorecidos, mormente nos países em que a pobreza ainda reveste um carácter massivo (...) [assim, é

necessário] estabelecer um conceito de “exclusão social” que abarca a noção de “pobreza” e inclui

outras situações que, embora não sendo de pobreza, são caracterizadas por rupturas ao nível das relações

sociais» (cf. BRUTO DA COSTA, 2004: 12-13).

Percebe-se, pela anterior afirmação, que a noção de “exclusão social” – em oposição

à de inclusão ou integração social – implica o não cumprimento do Direito da Cidadania,

sendo este último traduzido no acesso a um conjunto de sistemas sociais básicos. Podem

ser identificados um total de cinco domínios no que a esses sistemas se refere, cuja

ausência de cumprimento e acessibilidade revela a existência de processos graves e

profundos de exclusão social (cf. BRUTO DA COSTA, 2004):

• Domínio Social: Referente ao conjunto dos sistemas de inserção social dos indivíduos –

estejam eles inseridos em grupos, comunidades, ou redes sociais mais vastas –, com

expressão a diversos níveis ou escalas de proximidade. Corresponde, assim,

essencialmente, aos factores de socialização e integração social. Um exemplo claro

deste domínio diz respeito ao aspecto integrador que a participação no mercado de

Page 56: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

55

trabalho – encarado, aqui, não pela sua componente de inserção monetária, mas como

factor social – pode apresentar;

• Domínio Económico: Diz respeito à participação nos: i) Mecanismos geradores de

recursos económicos (p.ex., os salários no mercado de trabalho, ou os sistemas de

pensões); ii) Mercados de bens e serviços (p.ex., nas economias de mercado, este

aspecto assume-se como uma condição básica para se aceder a bens essenciais); iii)

Sistemas de poupanças, que permitam propiciar o estabelecimento de um grau de

segurança individual e social, tanto em relação ao presente, como em termos futuros;

• Domínio das Referências Simbólicas: Refere-se ao conjunto de perdas psicológicas e

identitárias que o excluído sofre, em função dessa sua posição (de excluído).

Constituem exemplos deste domínio as perdas de identidade social, de auto-estima, de

auto-confiança, de capacidade de iniciativa, ou de sentido de pertença à sociedade,

entre muitos outros;

• Domínio Institucional: Inclui o acesso aos sistemas prestadores de serviços (p.ex., os

serviços de educação, de saúde, de justiça e/ou de habitação) abarcando, também, a

importância do cumprimento de participação efectiva em algumas instituições de

índole político-institucional, referentes à capacidade ou possibilidade de exercer, de

forma efectiva, direitos de cidadania consagrados como, por exemplo, o direito de

voto);

• Domínio Territorial: A relevância atribuída a este domínio é recente e relaciona-se,

essencialmente, com os casos em que a exclusão territorial diz respeito, não

directamente a pessoas ou famílias, mas ao acesso a um território. Pode incluir vários e

diversificados aspectos, nomeadamente, os que se relacionem com os domínios das

acessibilidades, da habitação, dos equipamentos sociais, das actividades económicas, ou

dos sistemas e tecnologias de informação e comunicação (p.ex. a inclusão digital).

De acordo com o anteriormente disposto, parece inquestionável que a questão dos

sem-abrigo se constitui como um dos exemplos mais claros da existência de processos

de pobreza e exclusão social nas áreas urbanas, reflectindo fortes disrupções sociais dos

indivíduos, que podem ser sentidas, de forma nítida, ao nível de todos os anteriores

domínios. As problemáticas afectas à questão dos sem-abrigo extravasam a mera esfera

Page 57: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

56

das questões habitacionais – que, no fundo, é o que “dá nome” ao fenómeno –

incorporando questões e situações diversas de exclusão, relacionadas com domínios

sociais, económicos, institucionais, territoriais e também, como se verá adiante, do

âmbito psíquico e identitário.

Tendo sido então, através da anterior (breve) contextualização teórica, e no

seguimento do que foi adiantado no anterior capítulo do presente relatório, consolidados

alguns aspectos teóricos que relacionam a questão dos sem-abrigo com o espectro mais

abrangente das questões relativas à pobreza e exclusão social, importa centrar a atenção

da análise desta relação nas especificidades inerentes ao caso norte-americano. Para tal, é

essencial adoptar uma perspectiva diacrónica, recuando alguns anos até ao período do

pós-II Guerra Mundial, no qual se fizeram sentir – a nível mundial e, mais

particularmente, nos Estados Unidos da América – importantes mudanças estruturais a

nível socioeconómico, político, cultural e, mesmo, urbanístico.

Neste contexto, o ano de 1956 marca de forma indelével o aparecimento e evolução

das referidas mudanças estruturais nos EUA. Os acontecimentos deste ano vão

condicionar, de forma indelével, o aparecimento de alterações significativas no modo

como o espaço urbano norte-americano passou a ser produzido (e consumido). Data

desse ano a reeleição de Dwight Eisehower, líder republicano, que vai consubstanciar (a

partir do ano seguinte, ou seja, 1957) um projecto de apoio, por parte do Governo

Federal Americano, à construção de uma rede nacional de auto-estradas inter-estaduais.

Este projecto – denominado Federal-Aid Highway Act – possibilitou, rapidamente, a

construção de mais de 75 mil quilómetros de auto-estradas, com efeitos notórios a nível

da acessibilidade rodoviária do vasto território norte-americano.

Para além de incentivar mais cidadãos americanos a recorrer ao transporte rodoviário

(particularmente ao transporte individual) foi também enorme o efeito do Federal-Aid

Highway Act na paisagem socioeconómica norte-americana. As claras vantagens logísticas

e económicas proporcionadas pelas referidas “interstates” foram rapidamente percebidas

pelo tecido empresarial norte-americano, com nítido destaque para as empresas de

transportes e para as indústrias pesadas. A circulação rodoviária ficava, então, mais

rápida, fluida e facilitada, o que permitia diminuir os custos de produção e transporte,

possibilitando, também, o funcionamento do tecido produtivo em “clusters” industriais

Page 58: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

57

cada vez mais vastos e especializados. Assim, os anos seguintes ao Federal-Aid Highway

Act caracterizaram-se pela ocorrência de massivos processos de deslocalização

empresarial, essencialmente preconizados por unidades industriais pesadas que, saindo

dos centros das cidades, se iam localizando ao longo das referidas auto-estradas inter-

estaduais (Figura 2).

Fig. 2: Mapa da rede de interstates nos Estados Unidos da América

(Fonte: http://www.antiwar.com/blog/wp-content/uploads/2006/06/map.gif).

No entanto, o anterior processo de deslocalização não se aplicou apenas às unidades

fabris. Seguindo as oportunidades de emprego industrial, não tardou até que a população

– que anteriormente habitava, também, nos centros das cidades – acompanhasse este

processo de deslocalização, aglomerando-se em redor das vias de acesso às interstates,

criando inúmeros novos bairros e localidades, num processo que o geógrafo DAVID LEY

(1983) vai denominar como “explosão para o exterior da cidade”.

É claro que nem toda a população foi capaz de acompanhar estas “ondas” massivas

de suburbanização. Apenas os grupos sociais com maior mobilidade económica

seguiram este processo centrífugo, deixando uma cidade (centro) “entregue” aos mais

desfavorecidos economicamente, normalmente, representantes de classes socioétnicas

mais vulneráveis.

Page 59: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

58

É este processo de segregação socioétnica – que WYATT (2004), de forma bastante

gráfica, vai denominar de “white-flight” –, que vai dar origem, simultaneamente, à

formação dos chamados “Whites Only Levittown Suburbs”, nas novas áreas de habitação, e

de guetos nas áreas mais centrais das cidades, que constituíam verdadeiros enclaves

socio-étnicos, desfavorecidos, urbanisticamente desqualificados, e habitados, na sua

maioria, por indivíduos de origem porto-riquenha e de raça negra (afro-americanos).

Apesar dos avisos de vários autores – de entre os quais se pode destacar, por

exemplo, JANE JACOBS (1961) que, na sua influente obra “The Death and Life of Great

American Cities” vai alertar para as consequências presentes (à altura) e futuras dos

desajustamentos sociais e urbanos que iam sendo alimentados por este processo –, este

movimento segregatório, reflexivo da ausência de eficácia no processo de planeamento

dos sistemas urbanos como um todo e, mais particularmente, dos espaços intra-urbanos

(em especial dos centros das cidades), vai-se prolongar pelas décadas seguintes, com

efeitos nítidos ainda nos dias de hoje.

Para além dos anteriores aspectos, são de realçar várias outras mudanças estruturais

na sociedade norte-americana, datáveis do mesmo período temporal. De entre estas

alterações, assumem particular destaque as que ocorreram ao nível dos sistemas de

emprego, da crescente polarização e concentração social e geográfica dos rendimentos,

do funcionamento dos mercados de habitação e do papel do chamado Estado-

Providência (Welfare-State) – não só nos apoios à habitação, mas também à generalidade

dos serviços sociais – que, cumulativamente, acabaram por resultar em intensificadas

dificuldades monetárias (para aquisição de habitação) por parte dos segmentos mais

vulneráveis da população.

Também o aumento dos fluxos imigratórios (quer legais, quer indocumentados) com

destino, especialmente, às principais áreas urbanas, vieram provocar crescentes pressões

sobre os mercados de trabalho e de habitação, contribuindo para a agudização das

insuficiências no acesso à habitação formal.

Cumulativamente aos anteriores processos de recomposição social – motivados, e

com nítidos impactos a nível dos mecanismos de reestruturação dos espaços urbanos, os

anos 1950/60 foram também, nos EUA, palco da ascensão de vários movimentos

activistas, de entre os quais se pode destacar o intenso activismo de raiz étnica. Por

Page 60: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

59

diferentes motivos, e defendendo diferentes abordagens (que, no entanto, acabavam por

radicar em objectivos comuns), nomes como Rosa Parks, Martin Luther King Jr., Malcolm

X, Huey P. Newton ou Assata Shakur, entre muitos outros; vão-se tornar, a partir dessas

décadas, “símbolos” históricos do activismo afro-americano nos EUA, sendo a sua

influência para a evolução da sociedade norte-americana reconhecida e visível de forma

inequívoca ainda nos dias de hoje.

Para além das referidas convulsões a nível interno, a política norte-americana durante

essas duas décadas foi, também, agitada por vários fenómenos externos, com nítidos e,

em muitos casos, violentos impactos internos.

Durante dez anos (1965-1975), os EUA estiveram envolvidos numa violenta guerra

com o Vietname. De acordo com HERRING (2001), essa guerra terá provocado cerca de

58 mil mortos nas tropas americanas. Para além das mortes, há ainda a registar um

elevadíssimo número de feridos graves – muitos deles mutilados e em condição de

invalidez permanente – que, segundo o mesmo autor, terá sido superior a 350 mil.

A violência social destes impactos gerou enormes e múltiplas dificuldades ao nível

dos processos de reintegração dos indivíduos que haviam estado na guerra (os

denominados “war veterans”). Para além dos problemas relativos à reinserção dos

indivíduos mutilados, importa acrescentar que muitos dos ex-combatentes da guerra do

Vietname terão voltado aos EUA com graves problemas de foro mental. A todos estes

factores se associou, ainda, o facto de, nos EUA, este ter sido um período de

generalização social do consumo de drogas pesadas, como a heroína ou o “crack”, às

quais os física- e psiquicamente vulneráveis “veteranos” retornados da guerra, se iam

mostrando cada vez mais expostos.

Em resumo, é da combinação de todos os anteriores aspectos que se veio a agrupar, a

partir das referidas décadas de 1950-70, um conjunto de importantes factores de risco,

propícios à ascensão e perpetuação de desequilíbrios sociais graves. A sua combinação

terá actuado, em grande parte dos casos (como se poderá verificar adiante), de forma a

induzir a ascensão e proliferação de “novas” situações de “homelessness” nos EUA, num

fenómeno para o qual têm surgido várias denominações consoante os autores, de entre

as quais se podem destacar, a título exemplificativo, as nomenclaturas de “ressurgence of

Page 61: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

60

homelessness” (cf. HOPPER, 1997) ou “advanced homelessness” (cf. MARCUSE, 1987; ROSSI,

1996).

Assistiu-se, então, a partir dessas décadas a uma “modernização” do fenómeno dos

sem-abrigo nos EUA que, à medida que a própria sociedade norte-americana ia

efectuando a sua transição para a modernidade, se ia revestindo de novas dimensões,

quer em termos quantitativos, quer no que respeita à agudização e diversificação das

problemáticas e consequências sociais a elas inerentes.

Como nota HOPPER (1997: 21-22), sintetizando muitos dos aspectos anteriormente

relevados, e introduzindo o ponto seguinte do próximo ponto do capítulo, «today’s

homeless poor are a far more heterogeneous group than their immediate skid row predecessors. Indeed

(…) homeless has undergone a transformation of a scale and complexity not seen since the Great

Depression [and] is now widely recognized as the staging ground for a new kind of poverty (…). Today,

the homeless population counts men, women, and children – alone, in small groups, and as families –

among its ranks (…). Reflecting the changing composition of poverty at large, today’s homeless poor are

younger and more ethnically diverse than their counterparts of the 1950s and 1960s. If certain of their

number have been found to have problems of substance abuse or a pronounced degree of psychiatric

disability, it is also the case that others are distinguishable from the settled poor chiefly by the fact of their

displacement».

Seguindo o anterior mote, e à luz do quadro conceptual evolutivo introduzido neste

tópico, a avaliação da situação actual, ou seja, dos “novos” e diversificados contornos do

fenómeno dos sem-abrigo, constituirá uma das questões centrais dos conteúdos

seguintes do presente capítulo, nos quais será efectuada, também, uma sistematização

mais detalhada das questões que têm presidido à consolidação e diversificação das

formas de “homelessness” nos Estados Unidos da América, nas últimas décadas.

2.2. “Os Sem-Abrigo contam”: Contando e Explicando os Sem-Abrigo nos

Estados Unidos da América

A reflexão acerca da definição de sem-abrigo é comum a grande parte da bibliografia

relativa à temática. Tendo já sido trabalhada no capítulo anterior, a focalização sobre

Page 62: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

61

estes aspectos será, aqui, efectuada apenas com referência às particularidades da situação

norte-americana.

São notórias, e espacialmente transversais, as dificuldades em alcançar uma definição

universalmente consensual para a delimitação de quem é, efectivamente, sem-abrigo. No

entanto, estes constrangimentos não diminuem a fulcralidade inerente ao

desenvolvimento, quer a nível político, quer em termos académicos, de critérios capazes

de nortear a actuação dos vários agentes (sejam eles políticos, institucionais ou

socioeconómicos) envolvidos na tentativa de resolução e mitigação desta problemática.

Apenas através de uma clara orientação conceptual do fenómeno dos sem-abrigo se

tornará possível a organização e implementação de políticas eficazes e pró-activas, que

permitam mitigar e diminuir a sua incidência, actuando, quer de forma preventiva –

procurando diminuir ou mesmo anular os factores de risco –, quer no sentido de mitigar

os seus (potenciais e reais) efeitos negativos a nível social e/ou individual.

Como tal, atentando na anterior necessidade e nas particularidades referentes a cada

contexto específico, cada país foi desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, a sua

própria definição de sem-abrigo. A variabilidade inerente a cada contexto nacional (que

se considerarão, aqui, como os factores “internos” ao fenómeno dos sem-abrigo) e a

diferencialidade referente às abordagens privilegiadas por cada decisor político (que,

concomitantemente com o anterior raciocínio, podem ser considerados como factores

“externos” ao fenómeno dos sem-abrigo) têm induzido um grande dinamismo na

evolução temporal e espacial da referida definição.

Percebe-se, assim, a existência de uma forte permeabilidade do conceito de sem-

abrigo, que se revela, quer relativamente às especificidades inerentes a cada locus em que

este fenómeno se desenvolve, quer face a influências externas – que influenciam as

tomadas de decisão –, sejam elas de cariz político-ideológico, referentes à disponibilidade

(e prioridade, estabelecida por cada órgão de governação, conferida à alocação) de

recursos económicos, ou às expectativas políticas e socioeconómicas que existem face à

actuação dos vários agentes com relevância sobre o fenómeno. Estes agentes são

múltiplos e diversificados, podendo variar desde os órgãos responsáveis pela criação e

implementação das políticas públicas, até às ONG’s (cujo trabalho “no terreno” se tem

demonstrado da maior fulcralidade), passando pelas instituições académicas,

Page 63: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

62

responsáveis por grande parte da teorização e da investigação existente sobre o

fenómeno.

O caso americano não é excepção à anterior volatidade conceptual. As questões

relativas à definição de sem-abrigo nos EUA têm sido alvo da atenção e teorização por

parte de inúmeros autores, alguns dos quais, ou pelo seu pioneirismo, ou pela

importância das suas produções científicas, irão sendo, em seguida, referidos ao longo

do texto.

Não parece, então, existir um verdadeiro consenso nos EUA no que à definição de

“homeless” diz respeito. Alguns autores preferem a utilização de critérios mais restritos,

enquanto outros admitem uma maior generalização da definição do fenómeno, a ponto

de incluir, por exemplo, os indivíduos em risco de “homelessness”.

Por exemplo, PETER ROSSI – experiente investigador, com vasto trabalho realizado e

publicado sobre o tema – propõe a seguinte definição conceptual: «Homelessness, at its core,

means not having customary and regular access to a conventional dwelling: it mainly applies to those who

do not rent or own a residence» (ROSSI, 1996: 10).

Percebe-se facilmente que a definição se apoia na aplicação de uma maior

restritividade ao conceito de sem-abrigo, realçando a necessidade de focar a atenção

sobre a população literalmente sem-abrigo (do inglês “literally homeless”) (cf. CORDRAY e

PION, 1997; MONTAUK, 2006; NAEH, 2007f; ROSSI, 1996).

Assim, ROSSI (1996), apesar de consciente dos vários factores que colocam as

populações em risco de “homelessness” – como, por exemplo, as dificuldades

socioeconómicas de algumas fracções da população no acesso aos mercados de

habitação, ou os constrangimentos monetários provocados pela precarização das

relações laborais –, prefere não os incluir na sua definição, considerando que os

indivíduos que assumem tais características poderão ser incorporados, com maior

benefício para a delimitação conceptual dos fenómenos, por exemplo, numa outra

categoria, correspondente aos “extremamente pobres”.

Em contraponto, outros autores atentam sobre a importância de incluir, na definição

de sem-abrigo, factores como a instabilidade residencial ou laboral, possibilitando que

seja adoptada uma visão mais lata do fenómeno, com benefícios óbvios – por exemplo,

Page 64: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

63

uma maior abrangência, universalidade e carácter preventivo – no que respeita ao

desenho de medidas políticas referentes à mitigação do fenómeno (cf. HOPPER, 1997).

No entanto, historicamente, a maior parte dos documentos legislativos tem

procurado a adopção de visões mais restritivas, menos responsabilizadoras e

penalizadoras da acção política perante a opinião pública, no que respeita à (falta ou

ineficácia da) actuação estatal, e motivando acções mais localizadas e menos exigentes

sob os pontos de vista monetário e social.

O McKinney Act (1987) – importante documento político e legislativo norte-

americano – constitui uma notável excepção à anterior afirmação, adoptando uma visão

mais lata de “homelessness”. «The definition incorporated by the McKinney Act (…) adopts a

somewhat broader view of homelessness. [According to it] the term “homeless” or “homeless

individual” includes an individual who (1) lacks a fixed, regular, and adequate night-time residence and

(2) has a primary night-time residence that is (a) a supervised, publicly or privately operated shelter

designed to provide temporary living accommodations (including welfare hotels, congregate shelters, and

transitional housing for the mentally ill), (b) an institution that provides a temporary residence for

individuals intended to be institutionalized, or (c) a public or private place not designed for, or ordinarily

used as, a regular sleeping accommodation for human beings» (CORDRAY e PION, 1997: 79).

De reparar que esta segunda definição, para além de considerar os aspectos

mencionados nas anteriores concepções dos “literally homeless” inclui, também, outras

situações, que se podem configurar como factores de risco de incorrer em situação de

sem-abrigo.

Em resumo, parece ser agora perfeitamente claro – através da apresentação dos

anteriores exemplos – que pode ser adoptada uma grande multiplicidade de critérios na

construção de definições conceptuais para os sem-abrigo. De qualquer forma parece ser

agora consensual que, quaisquer que sejam os aspectos considerados na definição do

fenómeno, existe uma forte necessidade de adopção de critérios conceptuais objectivos,

com claros benefícios em termos de uma operacionalização mais adequada e eficaz das

políticas públicas destinadas aos sem-abrigo.

Qualquer que seja a definição que se adopte, é claro que esta vai condicionar a

contabilização do número de sem-abrigo.

Page 65: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

64

Considerando critérios restritos (similares à definição de ROSSI (1996)), estimativas

acerca do número de sem-abrigo nos EUA, assumiam que estes quantitativos ascendiam,

em 2005, a valores próximos dos 750/800 mil indivíduos (cf. NAEH, 2007a).

Estimativas mais recentes (cf. NAEH, 2009) revelam alguns resultados bastante

animadores, apontando para um decréscimo da ordem dos 10% no número total dos

sem-abrigo norte-americanos, entre 2005 e 2007, assumindo que esse valor se situava, a

esta última data, ligeiramente acima dos 670 mil indivíduos. O maior decréscimo terá

sido concretizado na classe dos “chronic homeless” (cuja definição será explorada mais

adiante no decorrer do presente capítulo), com uma diminuição de 28%, e das famílias

sem-abrigo, que atingiriam, em 2007, um valor total cerca de 18% menor do que em

2005. Apesar do sucesso evidenciado pelos anteriores resultados, a redução do número

de sem-abrigo não ocorreu de forma homogénea em todos os estados norte-americanos,

sendo de assinalar contrastes geográficos importantes no que respeita à evolução recente

do fenómeno (Figura 3).

A mesma fonte estabelece, ainda, a interessante distinção entre a redução conseguida

ao nível dos indivíduos que frequentadores dos abrigos (“shelters”) (cerca de 4%) e dos

chamados indivíduos sem-abrigo “unsheltered”, com uma importante redução, da ordem

dos 13%.

No entanto, há que relevar que todos os anteriores autores alertam para a

importância de encarar todos estes valores com algumas reservas, aceitando a expectativa

de que deverão existir grandes flutuações em termos sazonais, principalmente se forem

considerados os indivíduos que vivem na rua durante períodos de tempo mais reduzidos.

(a) (b)

Page 66: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

65

Fig. 3: Evolução do número (total e segundo categorias) de sem-abrigo nos EUA

(a) ; e variação segundo Estados (b), entre 2005 e 2007 (Fonte: NAEH, 2009).

No que respeita à espacialização do fenómeno, parece ser possível verificar uma

(natural) correlação entre o número total de sem-abrigo e os Estados norte-americanos

nos quais se localizam as maiores cidades do país. Assim, seguindo o anterior raciocínio,

os Estados da Califórnia, Nova Iorque, Florida, Texas e Michigan podem-se contar entre

aqueles cuja incidência do fenómeno dos sem-abrigo é maior em termos absolutos (cf.

NAEH, 2007a; 2009) (Figura 4a). A análise dos anteriores valores em termos relativos, ou

seja, a percentagem de sem-abrigo face à população residente no Estado demonstra

resultados bastante diferentes (Figura 4b).

Em termos de grandes áreas urbanas, segundo BURT et al. (2001), entre as cidades

mais afectadas pelo fenómeno podem-se considerar os casos de Los Angeles, Nova

Iorque, Filadélfia, Chicago, São Francisco ou Seattle.

(a) (b)

Fig. 4: Incidência dos sem-abrigo por estado norte-americano, em termos absolutos

(a); e relativizado por 10 mil habitantes (b), em 2007 (Fonte: NAEH, 2009).

Percebidos os quantitativos (e a sua evolução recente) referentes ao número de sem-

abrigo nos EUA, e enquadrada a sua distribuição geográfica no interior do País, importa,

agora, procurar apresentar algumas tipologias socio-demográficas, procurando traçar –

Page 67: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

66

embora reconhecendo que a intensa variabilidade espacial e temporal do fenómeno

provoca grandes riscos à excessiva generalização dos dados – um perfil geral dos sem-

abrigo norte-americanos (Figura 5).

Mesmo entre os vários autores analisados é possível encontrar fortes discrepâncias

em termos dos números (absolutos e relativos) apresentados, pelo que se recomenda

alguma cautela na análise, utilização e cruzamento de alguns dos valores que serão

enunciados em seguida. Uma última nota para relevar que, excepto quando

explicitamente indicado no texto, os dados apresentados em seguida são referentes (ou

anteriores) ao ano de 2005 (cf. NAEH, 2007a).

São vários os autores que apontam que mais de 60% da população sem-abrigo norte-

americana tende a viver sozinha. Os mesmos autores relevam que, dentro dos indivíduos

“sós”, o género masculino é, de forma bastante marcada, o mais susceptível a incorrer

em situação de sem-abrigo uma vez que, quase ¾ dos sem-abrigo “individuais” são do

sexo masculino (cf. BURT et al., 2001; JENCKS, 1995; MONTAUK, 2006; NAEH, 2007a;

WONG, 1997).

Uma importante fracção destes últimos indivíduos “sós” do sexo masculino –

segundo as estimativas utilizadas, cerca de 1/3 destes indivíduos – corresponderá a

antigos combatentes da guerra do Vietname, os chamados “homeless veterans”. Algumas

fontes chegam mesmo a avançar que, em 2005, existiriam quase 200 mil ex-veteranos da

guerra do Vietname em situação de sem-abrigo (cf. NAEH, 2007a; 2007f).

Segundo NAEH (2009) o número destes indivíduos terá diminuído de forma bastante

intensa nos dois anos seguintes contabilizando, em 2007, um total ligeiramente superior

a 150 mil indivíduos (mais especificamente, 154 mil efectivos).

Normalmente, estes indivíduos são mais idosos e apresentam um maior grau de

escolaridade que a generalidade da população sem-abrigo. A sua incidência ao nível das

doenças mentais e do consumo de álcool e estupefacientes é, em geral, também superior

aos valores médios correspondentes à totalidade dos sem-abrigo norte-americanos. É

estimado que a distribuição geográfica destes indivíduos siga as tendências referentes à

generalidade do fenómeno, com a maioria a localizar-se nos estados onde a incidência

absoluta do fenómeno dos sem-abrigo é maior, nomeadamente, na Califórnia – que

Page 68: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

67

apresenta o valor mais elevado a nível nacional que, segundo a NAEH (2007f), chegava a

atingir cerca de 50 mil indivíduos – Nova Iorque, Texas e Florida.

A maioria dos indivíduos sem-abrigo é de raça branca (cerca de 52%, excluindo os

indivíduos de origem hispânica). No entanto, e principalmente entre os homens, existe

uma grande variabilidade étnica. Cerca de 25% dos sem-abrigo são de raça negra (não

hispânicos), correspondendo os de origem hispânica a quase 20%. A percentagem

remanescente é ocupada por indivíduos de outras etnias como, por exemplo, os “native

americans”. No que respeita a este últimos, é de assinalar a evidência de uma maior

concentração nos estados e cidades do Noroeste (p.ex. Seattle), aspecto que pode ser

explicado, notoriamente, por questões de índole marcadamente histórico-geográfica (cf.

BURT et al., 2001; WONG, 1997).

Finalmente, no que respeita às famílias com filhos, é crível que estas concentrem, no

total, mais de 30% dos indivíduos sem-abrigo. Exceptuando os importantes (e já

mencionados) decréscimos evidenciados nos últimos anos, tem-se verificado um

aumento considerável dos indivíduos incluídos nesta categoria. De relevar que a maioria

das famílias corresponde a uma mulher acompanhada por uma ou mais crianças (seus

filhos), muitas vezes com idades inferiores a 6 anos (cf. MONTAUK, 2006; NAEH, 2007b;

WONG, 1997).

Da anterior afirmação se depreende que as crianças/jovens são, também, bastante

afectadas pelo fenómeno. Acredita-se que quase 20% dos sem-abrigo têm idades

inferiores a 16 anos, a maioria dos quais acompanhados por familiares. Ainda assim,

algumas estimativas chegam a apontar para a existência de cerca de 20 mil

crianças/jovens sem acompanhamento (cerca de 3% do total de sem-abrigo) (cf.

MONTAUK, 2006; WONG, 1997).

Page 69: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

68

43%

33%

3%

17%

4%

Homens solteiros

Famílias com filhos

Crianças sem acompanhamento

Mulheres solteiras

Desconhecido

Fig. 5: Valores relativos de população sem-abrigo nos EUA, em 2005, e

segundo várias tipologias (Fonte: MONTAUK, 2006; Adaptado).

É, agora, inquestionável, que a noção de sem-abrigo envolve uma grande

multiplicidade de factores e condicionantes, que impõem diferentes actuações político-

institucionais, no sentido da sua resolução. Assim, nos EUA, é comum agrupar os

indivíduos sem-abrigo de acordo com algumas das suas características mais relevantes.

É, exactamente, sobre essas tipologias de classificação – e sua íntima relação com os

vários factores explicativos para o fenómeno dos sem-abrigo nos EUA – que irá, agora,

recair a atenção do presente capítulo.

Como já foi referido anteriormente, a questão dos sem-abrigo não é nova nos EUA.

No entanto, a partir dos anos 1960/70 – num contexto de reestruturação urbana e

recomposição social –, o fenómeno conheceu novas dimensões e proporções. Tem-se

vindo a assistir, desde então, à ascensão, permanência e agravamento de um conjunto

vasto de factores de risco, que hiperbolizaram os contextos de empobrecimento,

desqualificação social e exclusão nos EUA. São vários os autores que identificam este

período pós-fordista de evolução do fenómeno dos sem-abrigo. ROSSI (1996) atribui-lhe,

mesmo, a denominação de “advanced homelessness”.

É sobre esta base teórica e conceptual que vão surgir as múltiplas classificações

actualmente aceites, nos EUA, para categorizar as principais variantes do fenómeno.

Page 70: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

69

Uma primeira grande distinção pode ser traçada através da delimitação de uma

categoria normalmente designada como “chronic homelessness” (sem-abrigo crónico, em

português). O Governo Federal Americano inclui nesta categoria todos os «homeless

individuals with a disabling condition (substance use disorder, serious mental illness, developmental

disability, or chronic physical illness or disability) who have been homeless either: 1). continuously for one

whole year, or 2). four or more times in the past three years» (cf. NAEH, 2007a: 1-2).

Em resumo, a anterior definição baseia-se assim, essencialmente, em dois aspectos

principais, que são unanimemente considerados como as principais características dos

sem-abrigo crónicos: i) A situação de sem-abrigo é prolongada ou regularmente

reproduzida temporalmente; ii) Essa situação envolve a ocorrência de um qualquer tipo

de incapacidade, seja ela física, mental ou relacionada com o abuso de álcool ou drogas.

Segundo o “U.S. Department of Health and Human Services” podem ser consideradas as

cinco seguintes características principais associáveis à situação de sem-abrigo crónico (cf.

CATON et al., 2007):

1. A (quase) universal presença de incapacidades (debilidades físicas ou psicológicas);

2. A utilização recorrente e frequente de programas de assistência aos sem-abrigo e de

outros serviços sociais, com particular destaque para os serviços de saúde;

3. A frequente e recorrente falta de ligação com as comunidades;

4. Os múltiplos problemas de saúde, sendo comuns as disfunções ao nível das

doenças mentais, do abuso de substâncias, ou a contracção do vírus da SIDA;

5. A existência de serviços sociais fragmentados, que se mostram incapazes de

corresponder às necessidades múltiplas destes indivíduos.

As estimativas oficiais apontam que existiriam, em 2005, aproximadamente 150-200

mil indivíduos – provavelmente cerca de 171 mil, correspondentes a mais de 20% do

número total de sem-abrigo – nesta situação, espalhados por todo o País. Em 2007, o

seu valor não ultrapassaria os 125 mil (cf. NAEH, 2007a; 2009) (Figura 6). Como já foi

relevado anteriormente, respeitam com maior intensidade a indivíduos não

acompanhados (correspondendo, em 2007, a quase 30% desta fracção), em idade adulta

e do sexo masculino (cf. NAEH, 2007a; 2009).

Page 71: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

70

(a) (b)

Fig. 6: Evolução do total de sem-abrigo e dos sem-abrigo crónicos (a cinzento), nos

EUA (a) e segundo várias categorias (b) entre 2005 e 2007 (Fonte: NAEH, 2009).

No que respeita à distribuição geográfica destes indivíduos, é possível verificar que os

Estados com maiores taxas de incidência de sem-abrigo crónicos, relativamente ao total

de sem-abrigo desse mesmo Estado, são Virgínia Ocidental (quase metade dos sem-

abrigo deste Estado são classificados como “crónicos”), Mississípi, Califórnia e Utah.

Entre os estados com menor percentagem podem-se destacar Maine, Kentucky,

Montana e Wyoming (cf. NAEH, 2009).

A situação de “chronic homelessness” apresenta a particularidade de ser relativamente

transversal a inúmeros problemas que afectam os sem-abrigo. Daí que seja comum

associar esta designação com outras categorizações, nomeadamente os “homeless veterans”

ou os “mentally-ill homeless” (sem-abrigo com problemas mentais, em português) (cf.

O’FLAHERTY, 1998).

De facto, face a esta transversalidade e à dimensão dos problemas que acarretam, os

sem-abrigo crónicos são, de entre as várias categorias de sem-abrigo, os que mais efeitos

e problemas causam nos sistemas sociais (p. ex., para o sistema judicial, para os sistemas

de saúde ou para os sistemas de abrigo ou alojamento), promovendo a sua saturação ou

a ineficácia das medidas políticas implementadas (cf. CATON et al., 2007).

Para além do anterior aspecto, são também estes os sem-abrigo mais “consumidores”

de recursos e fundos públicos. Por exemplo, apenas para os chamados “mentally-ill

homeless” – importa relembrar que as incapacidades de foro mental incorrem como um

dos elementos extremamente vulnerabilizadores para a situação de sem-abrigo crónico –

estima-se que sejam, apenas na cidade de Nova Iorque, dirigidos anualmente cerca de

Page 72: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

71

$40 mil, dispendidos em abrigos com financiamento público, hospitais (hospitalizações

psiquiátricas e não só, e incluindo os “US Department of Veterans Affairs hospitals”), prisões,

entre outros recursos e equipamentos sociais (cf. CATON et al., 2007; NAEH, 2007a).

Assim, apesar de representarem uma percentagem relativamente reduzida do total de

população sem-abrigo, face à variedade e multiplicidade dos problemas afectos à

categorização de “sem-abrigo crónico”, é para estes que se dirige a focalização da maior

parte dos recursos e estratégias dirigidas aos sem-abrigo nos EUA.

E é, exactamente, sobre esta intensa focalização política nos últimos anos que pode

recair a responsabilidade da redução dos quantitativos (e das percentagens relativas)

destes indivíduos. No entanto, para atestar de forma inequívoca acerca da real eficácia da

implementação das políticas dirigidas, nos últimos anos, para este “segmento” da

população sem-abrigo, será necessário esperar por resultados mais actuais e

temporalmente abrangentes, considerando um intervalo mínimo de três a cinco anos,

que permitam identificar, com maior confiança, as tendências de evolução da “chronic

homelessness” nos EUA (cf. NAEH, 2007f; 2009).

Em resumo, a aplicação de programas dirigidos especificamente aos sem-abrigo

crónicos – iniciativas essas que serão tratadas mais à frente no decorrer do presente

capítulo – parece estar a permitir reduzir grandemente os quantitativos destes indivíduos

na sociedade norte-americana.

A confirmar-se como uma tendência estrutural, esta diminuição apresenta grandes

benefícios a vários níveis, seja em termos da diminuição dos gastos públicos, da melhoria

das condições de vida das comunidades, ou da situação de inserção social destes

indivíduos sem-abrigo, por exemplo, através da melhoria das suas condições de saúde

física e mental, do aumento da possibilidade de criação de emprego e de geração de

rendimentos autónomos, ou da menor propensão para ser detido judicialmente, entre

muitos outros aspectos.

Uma outra categorização que merece grande destaque na investigação e nas

estratégias dirigidas aos sem-abrigo nos EUA é a que engloba as famílias (incluindo pais

e respectivas crianças) sem-abrigo.

As chamadas “homeless families” têm sido identificadas como pertencentes a um

segmento de população sem-abrigo em franco crescimento desde os anos 1990. Em

Page 73: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

72

2005 compreendiam já cerca de 33% da população sem-abrigo, dos quais, quase 25%

corresponderão a crianças. Extrapolando para o total de famílias americanas, verifica-se

que estes cálculos traduzem que (pelo menos do ponto de vista estatístico) um total de

agregados familiares equivalente a quase 2% das famílias norte-americanas já teria

experienciado (pelo menos durante uma noite) uma situação de ausência de abrigo (cf.

NAEH, 2007b; ROG e BUCKNER, 2007).

Também neste grupo se assistiu a uma importante descida, da ordem dos 18%, entre

2005 e 2007. Nesta última data, o total de indivíduos sem-abrigo pertencentes a esta

categoria encontrava-se ligeiramente abaixo dos 250 mil, correspondentes a cerca de 84

mil agregados familiares. Em 2005, os valores correspondentes situavam-se,

respectivamente, em torno dos 304 mil indivíduos, constituindo cerca de 98 mil

agregados (cf. NAEH, 2007a; 2009).

No caso das famílias, uma das principais causas para a sua incorrência em situação de

sem-abrigo diz respeito aos problemas ligados às dificuldades ou insuficiências dos

mercados de compra e arrendamento de habitação, por exemplo, a existência de sistemas

de rendas incomportáveis para as capacidades financeiras de famílias, muitas vezes

monoparentais, e com baixos rendimentos. Por conseguinte, é fácil perceber a extrema

vulnerabilidade deste segmento às flutuações da economia e a outros fenómenos de

índole conjuntural (cf. NAEH, 2007b; 2009; ROG e BUCKNER, 2007).

Para além da questão (da escassez ou insuficiência) dos recursos económicos, parece

evidenciar-se, ainda, uma tendência para as famílias sem-abrigo pertencerem a um grupo

étnico minoritário. De entre estes grupos, verifica-se uma nítida e particular incidência

sobre as famílias compostas por indivíduos afro-americanos (cf. NAEH, 2007b; ROG e

BUCKNER, 2007).

O risco de uma família “cair” em situação de sem-abrigo parece, ainda, ser maior

quando estas apresentam, na sua composição, crianças em idade pré-escolar. Finalmente,

a situação de gravidez, em especial quando referente a mulheres de segmentos

socioeconómicos mais baixos, parece também – quando combinada com outros

factores, como, por exemplo, a vulnerabilidade habitacional e socioeconómica das

famílias – poder ser apontada como um importante factor de risco (cf. ROG e BUCKNER,

2007).

Page 74: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

73

Ao contrário dos sem-abrigo crónicos, as famílias sem-abrigo – constituídas,

maioritariamente, por mulheres e suas respectivas crianças – parecem evidenciar uma

menor tendência para permanecer de forma prolongada nessa situação (de sem-abrigo).

Sendo constituída, maioritariamente, por indivíduos pertencentes a grupos etários e

sociais vulneráveis – particularmente as mulheres e as crianças – esta “categoria” tem,

também, sido alvo de uma importante atenção por parte dos decisores políticos (e da

sociedade civil), e da operacionalização de vários programas dirigidos aos sem-abrigo nos

EUA. Tudo indica que seja a este relevo político e institucional que, à imagem do que se

notou para os sem-abrigo crónicos, podem ser associadas as recentes tendências de

descida dos quantitativos das famílias em situação de sem-abrigo.

No entanto, também para as “homeless families” se ressalva a necessidade de analisar

com cautela estes resultados, rejubilando com o que parecem ser resultados bastante

positivos nos últimos anos, mas considerando o carácter provisório das tendências

evidenciadas nos últimos anos. Particularmente num grupo tão vulnerável a flutuações

socioeconómicas conjunturais, será essencial procurar analisar comparativamente e

contextualizar as recentes variações positivas nos resultados impostos pelo actual

contexto de crise económica e financeira, que se tem feito sentir de forma tão

proeminente nos EUA.

São estas as duas principais categorias de sem-abrigo nos EUA, assumindo-se como

as mais contabilizadas, tanto em termos estatísticos, como no desenvolvimento e

implementação de políticas dirigidas à população sem-abrigo. No entanto, nos últimos

anos, tem vindo a ser considerado de forma individualizada um outro segmento

populacional, correspondente aos adolescentes e jovens adultos em situação de sem-

abrigo (os chamados “homeless youth”).

«Homeless youth can be distinguished from two other homeless populations: single adults, who are

predominantly male and do not have children in their custody; and homeless families, typically comprising

a mother and her children. Homeless youth include runaways, who have left home without parental

permission, throwaways, who have been forced to leave home by their parents, and street youth, who have

spent at least some time living on the streets as well as systems youth – i.e., young people who become

homeless after aging out of foster care or exiting the juvenile justice system» (TORO et al., 2007: 232).

Page 75: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

74

Alguns autores têm vindo a considerar, de forma crescente, os adolescentes e adultos

jovens – que apresentam, por exemplo, elevados níveis de susceptibilidade ao consumo

de drogas ou a depressões – como um dos grupos sociais em maior risco de incorrer em

situação de sem-abrigo (cf. TORO et al., 2007; MOLINO, 2007).

Cumulativamente os adolescentes sem-abrigo têm sido um dos grupos mais

desprezados no que à investigação e à implementação de políticas explícita- e

especificamente dirigidas a si diz respeito. O seu crescimento nos últimos anos

provocará, com certeza, uma inflexão nas anteriores tendências, alargando-se, cada vez

mais, a necessidade de desenvolver actuações específicas para este grupo de indivíduos

sem-abrigo.

A delimitação das três anteriores categorias procura corresponder aos principais eixos

de análise e actuação sobre os sem-abrigo norte-americanos na última década. Apesar de

se assumirem, actualmente, como as grandes divisões do fenómeno, não excluem as

hipóteses de diversificação e categorização das abordagens dirigidas aos sem-abrigo. Às

três tipologias anteriores e às já mencionadas anteriormente categorias “homeless veterans”

ou “mentally-ill homeless” (cf. NAEH, 2007a; 2007f; O’FLAHERTY, 1998), podem-se associar,

ainda, muitas outras classificações, representando áreas de intervenção importantes, de

entre as quais se podem destacar as questões ligadas aos ex-reclusos sem-abrigo (cf.

METRAUX et al., 2007) ou as referentes ao estudo dos sem-abrigo fora das áreas urbanas

(a chamada “rural homelessness”) (cf. ROBERTSON et al., 2007).

Em resumo, parece ter ficado até agora percebido, que são várias as tipologias

atribuídas aos sem-abrigo nos EUA. Normalmente, acabam por se reunir em três grupos

principais, apresentados anteriormente. Independentemente de qual é a tipologia

considerada, as especificidades inerentes a cada uma dessas classificações acaba por

reflectir as causas dominantes que presidiram à incorrência dos indivíduos na situação de

sem-abrigo. Importa, portanto, à luz dos conhecimentos apresentados anteriormente –

relativamente aos quantitativos, à espacialização, às tendências de evolução e às

tipologias de classificação do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA – retomar as questões

iniciadas no primeiro ponto do presente capítulo, procurando aprofundar

sistematicamente, as principais causas e factores explicativos para a existência e

consolidação dos vastos contingentes de sem-abrigo nos EUA.

Page 76: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

75

Existem, assim, como percebido até então, várias explicações para o fenómeno dos

sem-abrigo. A muitas delas pode ser associado um carácter global, outras serão mais

específicas do contexto norte-americano. Qualquer que seja o caso, já ficou percebido

que a apresentação de uma explicação vaga e monocausal, relacionada com a simples

perda do acesso à habitação – que é o aspecto nomeia o fenómeno – perecerá

rapidamente por falta de profundidade analítica e explicativa, fruto da ausência de uma

visão sistémica, capaz de abarcar toda a complexidade que se encontra intrínseca ao

fenómeno dos sem-abrigo.

Percebeu-se, até agora, que a referida falta de acesso à habitação, mais do que apenas

uma causa, deve ser considerada como a materialização de vários sintomas

socioeconómicos, ou seja, por outras palavras, como um efeito (não apenas de uma, mas

sim) de várias situações de ruptura individual e social. Seguindo o anterior raciocínio,

podem (e devem), como tal, ser aplicadas várias explicações para a ascensão, emergência

e consolidação do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA.

Apesar de muitas delas já terem sido apresentadas – no primeiro ponto do presente

capítulo, e de forma implícita às características de cada tipologia de sem-abrigo –

procurar-se-á efectuar uma sistematização conclusiva e mais organizada dessas causas.

Resumidamente, e em termos gerais, podem ser considerados dois tipos de causas

para as situações de sem-abrigo: i) Causas endógenas ao indivíduo (sem-abrigo); ii)

Factores exógenos a esse mesmo indivíduo (cf. AMBERT, 1998; HOPPER, 1997; LEGINSKI,

2007; ROSSI, 1996).

As causas de origem endógena aos sem-abrigo baseiam-se, essencialmente, em

factores ou características intrínsecas a cada indivíduo. As causas subjacentes a esta

perspectiva analítica centram-se, assim, nas esferas da responsabilização individual pelas

escolhas ou opções (socioeconómicas) efectuadas, ou das incapacidades (as chamadas

“handicaps” ou “disabilities”) de cada sem-abrigo. É, em resumo, o modelo analítico a que

DAVID HARVEY (1985; 1991) se refere, de forma explícita, como “the mad, sad, bad

explanation”. Incluem-se, neste âmbito, explicações como, por exemplo, as doenças de

foro físico ou mental ou o abuso de álcool e de outras substâncias aditivas.

No entanto, existem também os factores explicativos para a situação dos sem-abrigo

que procuram centrar-se sobre a esfera das causas (sejam elas estruturais ou

Page 77: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

76

conjunturais) subjacentes ao funcionamento da(s) sociedade(s). As explicações deste tipo

associam-se, geralmente, às questões sociais indutoras de situações de pobreza extrema e

de vulnerabilidade habitacional, tendendo a responsabilizar os agentes públicos e

privados, e realçando a existência de graves insuficiências no que concerne às políticas

públicas de protecção social (a “crise” do papel do Estado-Providência) e aos

mecanismos capitalistas de estruturação dos mercados.

Neste âmbito, por exemplo, ROSSI (1996) identifica os mercados imobiliário e laboral

e os sistemas de segurança e apoio social como os factores que, de uma forma mais

marcada e substancial, contribuem para a diminuição da autonomia socioeconómica dos

indivíduos e das famílias, tornando-as mais vulneráveis a “cair” numa situação de sem-

abrigo.

Semelhante focalização sobre os factores exógenos é relevada por HOPPER (1997: 23),

quando afirma que «whatever personal quirks, ailments, or deficiencies may put individuals or

households at increased risk of becoming homeless, the structural roots of the problem lie in the changes

that have taken place over the past two decades in the labour and housing markets in the United States.

The net effects of these trends are exacerbated by declining welfare, unemployment, and disability benefit

levels (…). The upshot, terrible in its simplicity, is the contemporary delineator of homelessness: income

insufficient to afford available housing».

Apesar da tentativa de explícita simplificação avançada pelas anteriores palavras,

nota-se, implícito nas palavras de KIM HOPPER, a existência de uma grande

complexidade nos factores que explicam o fenómeno dos sem-abrigo nos EUA. No

fundo, aquilo que parece ser um único factor – insuficiência dos rendimentos

económicos e financeiros das famílias e indivíduos – acaba por radicar e ser influenciado

constantemente por inúmeras nuances, resultantes de diferentes combinações de vários

aspectos, tanto endógenos (“ailments or deficiencies” e riscos inerentes), como exógenos

(“declining welfare, unemployment, disability benefit levels”, entre outros).

É assim, actualmente, assumido que o fenómeno dos sem-abrigo nos EUA pode ser

(em termos gerais) explicado pela existência de uma complexa espiral descendente de

situações desviantes, que se vão acumulando até um determinado momento de ruptura

socioeconómica, culminando com a perda ou rejeição de uma habitação física e das

formas de vida associadas à posse ou pertença à referida habitação. Como é óbvio, estas

Page 78: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

77

conclusões são extrapoláveis, com toda a legitimidade científica, para outros contextos

espaciais, que não apenas o caso americano.

Em resumo, considera-se, actualmente, que todas as variáveis – sejam elas endógenas

ou exógenas – tendem a inter-relacionar-se, concorrendo para a criação de um conjunto

complexo de factores de risco e vulnerabilidade, cuja combinação pode originar um

momento de ruptura, que se manifesta pela incorrência numa situação de perda

física/psíquica de acesso a uma habitação.

WALTER LEGINSKI (2007), na sua tentativa de compilar as principais causas

explicativas para o actual fenómeno dos sem-abrigo dos EUA, procura assumir essa

abordagem sistémica e de complexidade, realçando que, para explicar as incidências

actuais do fenómeno dos sem-abrigo, é essencial considerar a participação combinada de

várias explicações, endógenas e exógenas.

Assim, em resumo, pode-se compreender, em termos gerais, a actual situação dos

sem-abrigo nos EUA, como resultante da combinação dos seguintes factores (cf.

LEGINSKI, 2007):

1. Factores Endógenos: Apresentam uma maior incidência entre os jovens, os veteranos

de guerra e os adultos do sexo masculino pertencentes a estratos socioeconómicos

mais desfavorecidos e/ou ex-residentes em bairros marginalizados. De entre estes

factores podem-se destacar: i) Doenças de foro mental; ii) Doenças sexualmente

transmissível (SIDA); iii) Doenças fisicamente incapacitantes (nota-se, aqui, a íntima

ligação com a questão dos veteranos de guerra mutilados e fisicamente

incapacitados); iv) Abuso de álcool e drogas pesadas (p.ex. heroína ou crack);

2. Factores Exógenos: De entre os quais se podem considerar: i) Desemprego associado

à terciarização da economia e às reestruturações do espaço urbano; ii)

Incapacidades e desregulação dos mercados habitacionais, em especial no que

respeita à habitação social; iii) Desinstitucionalização e excessiva burocratização do

acesso aos serviços sociais de apoio aos menos favorecidos socioeconomicamente.

Sintetizados os principais aspectos gerais que presidem à explicação do fenómeno

dos sem-abrigo nos EUA passar-se-á, em seguida, de forma conclusiva, ao tratamento

Page 79: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

78

mais detalhado das situações que são, regularmente, apontadas como explicativas para

cada uma das três principais tipologias de “homelessness” consideradas anteriormente.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à “chronic homelessness” parece ser possível

perceber a incidência de causas de foro pessoal (endógenas) e social (exógenas).

Resumidamente, pode-se considerar que a «available information on the characteristics of those

who end up homeless for long periods of time indicates that older age, persistent unemployment, poor

family support, arrest history, poor functioning and coping skills, a history of placement in the child

welfare system, and recent victimization are important factors in determining the risk for chronic

homelessness (…). A longer duration of homelessness was [also] related to a lack of earned income

[and] a history of substance abuse treatment» (CATON et al., 2007: 157-158).

Estimativas de BURT et al. (2001) corroboram a anterior afirmação, demonstrando

que cerca de 60% dos sem-abrigo crónicos apresenta problemas mentais; quase 80%

desses indivíduos revela problemas múltiplos relacionados, por exemplo, com o

consumo de álcool ou de drogas pesadas.

As várias dificuldades (ou mesmo, incapacidades estruturais) políticas de re-inclusão

social dos ex-veteranos da guerra do Vietname são também consideradas como algumas

das causas mais importantes para a “chronic homelessness”. Como mostram as estatísticas,

cerca de 194 mil combatentes da guerra do Vietname já viveram em situação de sem-

abrigo nos EUA, dos quais entre 25-30% podem ser classificados como sem-abrigo

crónicos (cf. CATON et al., 2007).

Os factores que colocam as famílias com crianças em risco de incorrer em situação de

sem-abrigo são, também, diversos. As famílias monoparentais, de baixos rendimentos,

constituídas pela mãe e por um ou mais filhos, representam a maior fracção deste grupo

de sem-abrigo.

As razões económicas são, normalmente, colocadas entre as mais importantes. As

famílias que apresentam menores rendimentos – em situação ou grave risco de pobreza

– são as mais vulneráveis, não encontrando, inúmeras vezes, meios financeiros para

manter a sua habitação, especialmente em períodos de maior instabilidade económica

(cf. ROG e BUCKNER, 2007).

A desestruturação familiar, muitas vezes provocada pelo abandono do agregado

familiar por parte do homem, durante os primeiros anos de vida das crianças, ou mesmo

Page 80: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

79

ainda durante a gravidez; associada às dificuldades de inserção no mercado de trabalho

por parte das mulheres grávidas ou com filhos em idade pré-escolar actuam, também,

como factores fortemente condicionantes da situação de “homeless families and children”.

Em muito casos, essas mulheres apresentam já um preocupante historial no que respeita

a traumatismos físicos e mentais, muitas vezes derivados de abuso físico/sexual por

parte de parceiros e/ou familiares, ou do consumo aditivo de álcool e estupefacientes

(cf. BURT et al., 2001; ROG e BUCKNER, 2007).

Finalmente, no que diz respeito aos adolescentes sem-abrigo verifica-se que, às

“tradicionais” questões ligadas com o abuso de drogas ou com traumatismos mentais ou

físicos relacionados com violência parental, familiar ou de parceiros (p.ex. abusos

sexuais) podem ser associados vários factores de maior especificidade.

Como sintetiza TORO et al. (2007: 249-250) «many risk factors associated with youth

homelessness have been identified. Examples include family conflict, aging out of foster care, and

identifying as gays, lesbians or bisexuals. What is not well understood is how these factors operate. That

is, what are the pathways leading to homelessness among youth with these risk factors? Future research

needs to explore these pathways and consider how other factors (e.g., access to and quality of services

received during childhood or early adolescence, growing up in a family that experienced homelessness)

[that have recently been questioned as probable causes or suppressors for youth

homelessness] either aggravate or mitigate those risks».

2.3. Breve nota acerca da investigação sobre a questão dos Sem-Abrigo nos

Estados Unidos da América

Seguindo as principais linhas de actuação política relativas à colmatação dos

problemas individuais e sociais do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA, as primeiras

incursões académicas sobre esta temática vieram da esfera das Ciências Médicas, o que

terá acontecido, sensivelmente, até meados do século XX. Vivia-se, do ponto de vista

político, um período de desinstitucionalização e “criminalização” do fenómeno, no qual

se acreditava que a existência dos sem-abrigo poderia ser justificada, unicamente, por

factores endógenos aos indivíduos.

Page 81: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

80

A contribuição dos investigadores provenientes da esfera epistemológica e

metodológica das Ciências Médicas continua ainda, nos dias de hoje, a ser das mais

profícuas e importantes. Contemporaneamente, é possível notar a existência de

importantes contributos efectuados por médicos de várias especialidades clínicas – com

destaque para a Psiquiatria, a Cardiologia, ou a Neurologia – mas também por

psicólogos, epidemiologistas, sanitaristas, entre muitos outros.

Questões ligadas à saúde pública, ao desenvolvimento (físico e psicológico) das

crianças sem-abrigo, à incidência de doenças mentais entre os sem-abrigo e ao consumo

de álcool ou drogas pesadas continuam a afirmar-se, de forma destacada, entre algumas

das principais preocupações médicas de índole académica relativas à questão dos sem-

abrigo nos EUA (cf. ALPERSTEIN et al., 1988; BASSUK et al., 1998; FISCHER et al., 1986,

HWANG, 2001; SUSSER et al., 1997).

No entanto, desde os anos 1970/80 – e, com maior consolidação, a partir da década

de 1990 – que o fenómeno dos sem-abrigo tem despertado o interesse de outros flancos

do espectro científico norte-americano. De entre eles, o destaque pode ser concedido às

Ciências Sociais e Humanas, nomeadamente, à Sociologia, à Geografia ou à Demografia.

De relembrar que foi também a partir dessas mesmas décadas que o fenómeno dos

sem-abrigo atingiu novas proporções. É o período em que aumenta consideravelmente o

número de sem-abrigos nos EUA e em que se assiste a uma grande diversificação das

tipologias de pessoas (e famílias) sem-abrigo nas cidades norte-americanas.

A análise do interesse particular da Geografia pelas questões relativas à

reestruturação, produção e mercantilização dos espaços urbanos remonta, também, às

décadas de 1970/80, epistemologicamente concentrado no seio da Geografia Urbana de

inspiração marxista. A questão dos sem-abrigo – relacionada com outras temáticas, de

entre as quais se podem destacar, a título exemplificativo, o acesso aos mercados de

emprego urbano e de habitação, ou aos sistemas de apoio e protecção social – foi sendo

progressivamente incluída e relevada nesses estudos.

Autores como DAVID HARVEY (1985; 1991) ou NEIL SMITH (1996; 2005) –

fortemente inspirados pelas Geografias Marxistas – podem-se contar entre os primeiros

geógrafos que adereçaram (de forma mais ou menos explícita) a temática dos sem-

abrigo.

Page 82: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

81

Percebe-se assim que, pouco a pouco, os estudiosos dos espaços urbanos,

provenientes de vários ramos das ciências sociais, foram concedendo um interesse cada

vez maior a esta questão (dos sem-abrigo), considerando-a como um elemento fulcral na

análise da reestruturação socioeconómica dos espaços urbanos.

A recente atenção dispendida pelas outras correntes epistemológicas ligadas, por

exemplo, ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo – que têm privilegiado a análise

das áreas urbanas como espaços social- e urbanisticamente fragmentados – tem também

orientado o aparecimento (particularmente nos EUA, mas também na Europa e, até, em

Portugal) de estudos particularmente críticos relativamente à vulnerabilidade da posição

dos sem-abrigo nos novos processos de reterritorialização e de reconstrução do

património e da identidade dos espaços urbanos (cf. MITCHELL, 1997).

Apesar dos avanços efectuados a partir das décadas de 1970/80, é apenas nos anos

1990 que a investigação sobre os sem-abrigo vai dar um salto definitivo. Esse avanço

deu-se, não só em termos da quantidade de material produzido, como também ao nível

da sua “qualidade” patente, por exemplo, na sua maior operacionalidade e mais estreita

ligação às políticas públicas.

A escalada do fenómeno nas décadas anteriores havia induzido a necessidade de se

começar a implementar, de forma efectiva e eficaz, programas e medidas de combate e

mitigação dos efeitos do fenómeno. É, exactamente, nos anos 1990 que a eficácia dessas

medidas vai começar a ser “testada”, o que resultou na produção de intensa e crítica

investigação, cada vez mais baseada em exaustivos e profundos estudos de campo,

levados a cabo, de forma mais ou menos coordenada, em várias cidades norte-

americanas (cf. BARROW et al., 1999; BLAU, 1992; CULHANE et al., 1997; SALIT et al., 1998;

SHINN et al., 1998; WOOD et al., 1990; WONG, 1997).

A integração dos resultados da, anteriormente mencionada, intensa investigação, com

os mecanismos e directrizes de actuação política e da sociedade civil, conheceu um

incremento bastante importante no ano de 1998, através da organização do “First

National Symposium on Homelessness Research”, que juntou investigadores de vários espectros

científicos, “policy-makers” e agentes e representantes da sociedade civil (p.ex. ONG’s), e

indivíduos que se haviam já encontrado em situação de sem-abrigo (cf. DENNIS et al.,

2007).

Page 83: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

82

Os principais tópicos em focalização nesta reunião prenderam-se com questões

relacionadas com o acesso à habitação, à saúde e aos serviços de apoio por parte dos

sem-abrigo. Foram lançadas raízes que permitiram criar novas linhas de investigação e de

actuação institucional, e promover a operacionalização das políticas definidas no terreno.

Foram, ainda, levantados alguns dos alicerces que permitiram a posterior criação das

abordagens e programas que viriam a marcar a actuação política e institucional face aos

sem-abrigo – alguns desses programas serão estudados adiante – ao longo da última

década, e sobre os quais recairá muito do (pelo menos provisório e aparente) sucesso da

evolução verificada nos últimos anos.

Quase uma década depois, ou seja, em 2007 foi organizado, pelo “US Department of

Health and Human Services” (HHS) e pelo “US Department of Housing and Urban Development”

(HUD), um segundo simpósio – denominado “Toward Understanding Homelessness: The

2007 National Symposium on Homelessness Research” – intuindo efectuar um balanço dos

avanços efectuados ao longo da década antecedente e delinear novas orientações de

trabalho para os próximos anos (cf. DENNIS et al., 2007)

Para além das temáticas já abordadas em 1998, novas preocupações foram

introduzidas neste segundo simpósio, nomeadamente a importância de actuar de forma

tematicamente mais abrangente – numa tentativa de compreender, de modo mais

holístico, a verdadeira complexidade do fenómeno actual dos sem-abrigo – concertando

medidas dirigidas a: i) Educação e inserção dos sem-abrigo nos mercados de emprego; ii)

Apoio específico aos sem-abrigo veteranos de guerra e aos sem-abrigo crónicos; iii)

Ligações existentes entre a situação de sem-abrigo e os sistemas criminais, judiciais e

penitenciários; iv) Questões dos sem-abrigo adolescentes e das famílias com crianças,

cada vez mais comuns e a exigir abordagens (cada vez mais) específicas; v) Sem-abrigo e

pobreza nos espaços rurais (cf. DENNIS et al., 2007)

Foram também, nesta reunião, adereçados novos (e velhos, mas renovados)

programas e abordagens para a resolução das questões dos sem-abrigo, avaliando ou

perspectivando a sua eficácia. Discutiram-se, ainda, vários modelos de acolhimento e de

fornecimento de habitação aos sem-abrigo (com destaque para os mecanismos de

“Supportive Housing” e de “Housing First”, que serão analisados, com um maior detalhe,

mais adiante), e diversos planos de apoio à inserção laboral e à criação de rendimento

Page 84: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

83

autónomo – na tentativa de promoção progressiva da auto-suficiência dos indivíduos –

para os sem-abrigo.

Uma das principais conclusões do encontro assume a existência de uma notória

evolução na década anterior, tanto a nível da reflexão e teorização sobre o fenómeno,

como em termos do seu conhecimento empírico, como, ainda, ao nível da aplicação

efectiva de programas e iniciativas locais e nacionais dirigidas aos sem-abrigo norte-

americanos (cf. DENNIS et al., 2007)

A análise da multiplicidade de tópicos abordados permite traçar, conclusivamente,

um “state-of-the-art” (que se pode considerar relativamente actual) da investigação sobre os

sem-abrigo nos EUA. Assim, e procurando efectuar um resumido balanço da evolução

verificada, ao longo dos últimos anos, ao nível da investigação – em termos da sua

quantidade, da sua profundidade”, e da interligação com a actuação ao nível das

instâncias políticas, da sociedade civil e com os sem-abrigo propriamente ditos – sobre a

questão dos sem-abrigo nos EUA, parece ser possível contabilizar a emergência de dois

aspectos centrais, que resumem as directrizes principais que presidiram à referida

evolução decenal (cf. DENNIS et al., 2007):

1. Assistiu-se, de forma demarcada, à emergência e fortalecimento de novos (muitos

dos quais no seguimento de outros, já pré-existentes) esforços colaborativos para

adereçar a questão dos sem-abrigo a vários níveis de decisão política, com particular

destaque para a importância que foi, crescentemente, conferida à esfera local, tanto

ao nível dos “fornecedores” de ajuda, como dos “receptores” desses auxílios.

Os chamados “10 Year Plans” podem ser apontados como um dos exemplos cabais

deste maior “glocalismo” de actuação, pautado pela interligação e coordenação

entre os trabalhos efectuados em níveis de decisão distintos, mas evidenciando um

maior (e progressivamente crescente) destaque a ser assumido pela esfera local.

2. Revelou-se, durante a última década, a atribuição de uma ênfase crescente aos

processos de recolha e utilização de dados empíricos, encarados como formas de: i)

Melhor compreender as características e as dinâmicas dos sem-abrigo; ii) Auxiliar e

possibilitar a implementação de programas de assistência mais adequados; iii) Traçar

novos e mais adequados rumos de investigação e actuação política, baseados na

progressiva actualização do conhecimento que se vai reunindo.

Page 85: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

84

A utilização crescente dos chamados “Homeless Management Information Systems”

(HMIS), ou a “banalização” da aplicação de análises custo-benefício para cada uma

das intervenções realizadas, constituem exemplos de actuações recentes,

desenvolvidas no âmbito desta linha de pensamento/actuação, que valoriza e

renova a fulcralidade que deve ser concedida ao trabalho de campo e à percepção e

conhecimento aprofundado dos efeitos específicos de cada um dos programas e

iniciativas implementados.

Encontrando-se, já, devidamente contextualizados os principais processos referentes

à evolução (e situação actual) da questão dos sem-abrigo nos EUA, e introduzida a

renovação dos principais referenciais de investigação académica ao longo das últimas

décadas, parecem estar, a este ponto, lançadas as bases para a apresentação das políticas

dirigidas aos sem-abrigo nos EUA. Para tal, começar-se-á por analisar a sua evolução

diacrónica (até à situação actual) para, em seguida, se proceder a uma análise mais

detalhada de alguns dos principais programas de acção política e institucional dirigidos

aos sem-abrigo nos EUA.

2.4. Estratégias para ajudar os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América

– Uma Perspectiva Diacrónica e alguns exemplos actuais

A questão dos sem-abrigo tem constituído um aspecto persistente e duradouro ao

longo da história norte-americana. Ao longo dos últimos séculos foram sendo

implementadas diversas medidas, reveladoras de diferentes abordagens e opiniões

institucionais face a esse fenómeno.

Já foi demonstrado que, nos últimos anos, se assistiu a grandes alterações no que

respeita à questão dos sem-abrigo nos EUA. As causas estruturais (sejam elas endógenas

ou exógenas) têm ganho progressiva preponderância nos últimos anos, induzindo uma

cada vez maior permanência e diversidade de situações de “homelessness”. Este alargar de

dimensão por parte desta problemática tem também, como já foi relevado

anteriormente, proporcionado a sua maior visibilidade a nível científico, político,

institucional e, mesmo, socioeconómico.

Page 86: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

85

Particularmente em termos políticos, esta maior escala dimensional da questão dos

sem-abrigo nos EUA, tem apresentado grandes reflexos, induzindo a aplicação de novas

medidas e programas, tematicamente mais abrangentes e mais integradores face aos

trabalhos teóricos e empíricos desenvolvidos nas esferas social (associações da sociedade

civil) e académica. Nota-se, a partir da segunda metade da década de 1990, uma

progressiva tentativa de intervenção governamental – tanto por parte do Governo

Federal, como ao nível dos órgãos políticos locais –, com importantes efeitos directos

que, a acreditar no carácter estrutural das recentes estatísticas, se fazem sentir, tanto

sobre a evolução dos quantitativos e condições de vida das populações sem-abrigo,

como também sobre as próprias cidades nas quais recaem as intervenções.

Por outro lado, não se pode deixar de relevar que o entusiasmo que vem sendo

gerado em torno das políticas dirigidas aos sem-abrigo desde os anos 1990 não é geral,

sendo possível encontrar autores que se mantêm cépticos e extremamente críticos em

relação à legislação e às políticas directamente dirigidas aos sem-abrigo (principalmente

até ao final da década de 1990), assumindo-as como restritivas, excludentes,

incriminatórias e aniquiladoras do espaço público utilizável pelas pessoas sem-abrigo (cf.

MITCHELL, 1997).

Em alguns casos, esses mesmos autores assumem mesmo que estas medidas surgem

apenas como movimentos de marketing urbano, associados a grandes e visíveis

acontecimentos mediáticos, e suportando-se em planos de renovação urbana que em

nada pretendem beneficiar, pelo menos de forma legítima e desinteressada, a população

sem-abrigo.

Contrariamente, parece existir algum consenso na consideração que a evolução do

fenómeno dos sem-abrigo nos EUA se tem pautado pela existência de grandes episódios

(ou períodos). O que varia ligeiramente entre os vários autores são os intervalos

temporais considerados. De notar que, a cada uma das referidas fases é comum estarem

associadas distintas formas ou abordagens de intervenção pública (cf. BLAU, 1992; BURT

et al., 2001; CULHANE e HORNBURG, 1997; HOMBS, 2001; JENCKS, 1995; LEGINSKI, 2007).

Resumidamente, e de forma inspirada, principalmente, na classificação avançada por

WALTER LEGINSKI (2007) – considerando, no entanto, algumas nuances introduzidas pela

bibliografia anteriormente mencionada – pode ser considerado um total de cinco fases,

Page 87: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

86

cujas respectivas denominações, delimitações temporais, características e formas de

actuação política associadas se apresentam, de forma sucinta, em seguida (Tabela 1):

1. Período da “Colonial Homelessness” (do século XVII até 1820/30): Período anterior à

existência dos asilos, no qual não se identificam estratégias relevantes, localizadas e

definidas de forma propositada para a resolução da problemática dos sem-abrigo.

As classificações atribuídas a estes indivíduos eram, em geral, recriminatórias e

excludentes (p.ex., destacam-se as categorizações de “wandering poor” ou “studdy

beggars”). Evidenciavam-se as actuações de cariz violento e punitivo para com os

sem-abrigo, sendo comuns a aplicação de castigos, ou a organização de “purgas”

por parte dos órgãos políticos ou das próprias comunidades, procurando reprimir e

desincentivar a existência desses indivíduos. No seguimento da legislação de

inspiração britânica, às comunidades vai ser atribuída a responsabilidade pelos

“seus” pobres, o que induzia, em geral, um forte desconforto nas comunidades

locais para com os sem-abrigo (na altura maioritariamente migrantes) e a sua não-

inserção social, o que acabava por motivar as anteriores práticas repressivas e social-

e territorialmente excludentes.

2. Período Pós-Guerra Civil (de 1820/30 até ao início do século XX): Vai-se assistir à

manutenção das classificações discriminatórias para com os sem-abrigo, que vão ser

correntemente apelidados de “vagabonds”, “bums” ou “tramps”. Assiste-se, face ao

período anterior, a um grande crescimento do número de sem-abrigos, situação

resultante, principalmente, do rescaldo da Guerra Civil norte-americana, que

potenciou a existência de um maior número de escravos libertos, de ex-veteranos

da guerra, de imigrantes ou populações deslocadas, de órfãos, entre outros.

Institucionaliza-se, verdadeiramente, a criminalização do fenómeno, o que origina

que os sem-abrigo sejam, neste período, frequentemente encaminhados para asilos,

esquadras policiais, prisões ou orfanatos. Destaque, neste contexto, para a

aprovação do “Rhode Island Tramps Act” (1880), documento desenhado para

estabelecer as regras de criminalização dos sem-abrigo, e que acabou por ser

emulado por grande parte dos Estados norte-americanos.

Paradoxalmente, é também neste período que vão ser criados os primeiros abrigos

(“shelters”) – normalmente da responsabilidade de grupos de Cristãos Evangélicos –,

Page 88: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

87

sendo, também, efectuados alguns dos primeiros trabalhos de investigação de que

há registo, sobre os sem-abrigo norte-americanos, maioritariamente provenientes da

esfera das Ciências Médicas (p.ex., estudando e reconhecendo a existência de

ligações entre o fenómeno dos sem-abrigo e o consumo de álcool; ou a maior

vulnerabilidade destes indivíduos para a contracção de doenças infecto-contagiosas

como a tuberculose).

Page 89: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

88

Tabela 1: Fases de evolução histórica (século XVII até à actualidade) do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA

Fonte: LEGINSKI (2007)

Page 90: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

89

3. Período da Grande Depressão e das duas Guerras Mundiais (do início do século XX

até à década de 1950): Período pautado por momentos de grande

instabilidade económica e política a nível internacional, que

condicionaram a ocorrência de grandes fluxos migratórios com destino

ao continente norte-americano, factores esses que, conjuntamente,

acabaram por promover um aumento dos sem-abrigo nos EUA.

Apesar da maioria das grandes cidades continuar a não apresentar

qualquer “oferta” de apoio aos sem-abrigo, é neste período que vão ser

introduzidos os primeiros programas federais de assistência a estes

indivíduos, normalmente sob a forma de mecanismos institucionais

actuantes em termos da provisão de alimentação (“soup kitchens”), de

abrigo (“shelters”), ou de emprego (“transient relief programs”).

Apesar dos anteriores avanços, até à criação do “National Committee on

Care of Transient and Homeless” – que pode ser considerado como o

primeiro verdadeiro grupo de acção dirigido, com alguma especificidade,

para as questões ligadas aos sem-abrigo – as medidas dirigidas a estes

indivíduos não vão diferir grandemente da generalidade das políticas que

iam sendo desenvolvidas com o intuito de melhorar as condições de vida

das populações evidenciando maiores níveis de pobreza.

4. Período da desinstitucionalização das economias e dos serviços sociais (da década de

1950 até aos anos 1990): Ganham forma (e maiores proporções) vários dos

processos actuais, já mencionados em tópicos anteriores e que,

conjugadamente, concorrem para explicar as actuais e complexas formas

tomadas pelo fenómeno dos sem-abrigo. É o, já referido, período da

“ressurgence of homelessness” (cf. HOPPER, 1997) ou da “advanced homelessness”

(cf. ROSSI, 1996). Vai-se, assim, assistir à ocorrência de processos

diversos e profundos de reestruturação urbanística das principais cidades

norte-americanas, acompanhando a recomposição social que ia

acontecendo nesses mesmos espaços urbanos, com múltiplos,

Page 91: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

90

importantes e diversificados impactos directos e indirectos sobre a

questão dos sem-abrigo.

Data de 1987 a implementação do conhecido “McKinney Act”, importante

figura legislativa norte-americana que, apostando numa abordagem mais

abrangente para o conceito e problemática dos sem-abrigo, vai

possibilitar uma maior facilidade e eficácia no estabelecimento e

financiamento de programas específicos para a população sem-abrigo.

As cidades (contextos locais), ainda que de forma relativamente tímida,

ganham uma maior preponderância na resolução dos problemas dos

“seus” sem-abrigo. No entanto, vai-se verificar, nesta fase, pouca

criatividade e efectividade no desenvolvimento de programas sociais

dirigidos à maioria dos espaços urbanos, uma vez que a maior parte das

políticas desenvolvidas se vai centrar (unicamente) sobre a provisão de

abrigos e alimentos aos sem-abrigo. A teorização desenvolvida ao longo

da década de 1990 – em geral, extremamente crítica face ao período

anterior – vai reconhecer a ineficácia das anteriores políticas, chegando,

mesmo, a assumir que os seus efeitos se revelaram particularmente

nocivos e perversos, podendo mesmo ser responsabilizados como os

catalisadores da proliferação do fenómeno dos sem-abrigo em muitas

cidades americanas (cf. BLAU, 1992; BURT et al., 2001; CULHANE e

HORNBURG, 1997; HOMBS, 2001; JENCKS, 1995; ROSSI, 1996).

Podem considerar-se, dentro deste período, duas fases com diferentes

características (cf. ROSSI, 1996).

Numa primeira, vai-se assistir a uma desterritorialização da população

sem-abrigo, forjada, essencialmente, em ideologias moralmente

conservadoras e forçada pelos processos excludentes de reorganização

socio-urbanística das cidades.

À anterior fase, vai-se seguir uma outra, que se pode entender como uma

reterritorialização do fenómeno dos sem-abrigo.

Page 92: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

91

Para os mais positivos, esta fase assume-se, no fundo, como uma

reaproximação à questão dos sem-abrigo, que vai passar a ser, desde

então, encarada como uma problemática complexa, cuja resposta social e

institucional deve incluir abordagens e resoluções coerentes e

abrangentes. Esta transição vai originar um conjunto de efeitos positivos,

de entre os quais se podem destacar: i) O fomento à investigação sobre

os sem-abrigo; ii) A criação de programas, mais ou menos eficazes,

dirigidos especificamente aos problemas afectos aos sem-abrigo; iii) A

abertura de espaços para a expansão e consolidação dos trabalhos

realizados por entidades da sociedade civil, como por exemplo, as

ONG’s; iv) A criação das bases que permitiram a transição para as

transformações conceptuais e operacionais das políticas dirigidas aos

sem-abrigo, que se fizeram sentir a partir da segunda metade da década

de 1990 (cf. BURT et al., 2001; CULHANE e HORNBURG, 1997; DENNIS et

al., 2007; LEGINSKI, 2007).

No entanto, importa, também, relevar que nem todos os autores vão

revelar a anterior positividade em relação a esta fase de reterritorialização

dos sem-abrigo, assumindo-a, essencialmente, como um período de

“aniquilação legal do espaço público” através da legitimação da criação e

reconfiguração de um conjunto de mecanismos de vigilância e de

punição indirecta (p.ex. através do encaminhamento “forçado”, mais ou

menos subtil, dos sem-abrigo, para outras áreas das cidades com menor

valorização urbanística) de fenómenos como a mendicidade ou a

pernoita ao relento (cf. MITCHELL, 1997).

5. Período Contemporâneo (desde a segunda metade da década de 90 até à actualidade):

Assiste-se, em geral, à continuação do anterior período, tanto em termos

da expansão e das tipologias do fenómeno dos sem-abrigo, como das

políticas a ele dirigidas. De notar, no entanto, uma inflexão em relação a

algumas das práticas anteriores, pautada, essencialmente, pelo

Page 93: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

92

reconhecimento inequívoco do fracasso das políticas centradas

exclusivamente na oferta de abrigos e refeições. Passam a procurar-se

novas abordagens, mais holísticas e integradoras, e dirigidas às

particularidades de cada grupo e comunidade de sem-abrigo. Vai-se

assistir a grandes desenvolvimentos em termos do conhecimento dos

sem-abrigo, derivado, quer da maior intervenção e envolvimento por

parte dos agentes políticos, quer da actuação de fundações e associações

públicas e privadas, quer, ainda, da crescente teorização académica sobre

o fenómeno. Destaque, em termos políticos para a implementação de

novas práticas, de entre as quais se podem destacar os chamados “Tem

Year Plans to End Chronic Homelessness in Your Community”, os programas de

“Supportive Housing” e a abordagem subjacente à filosofia “Housing First”,

cada um deles procurando adaptar as melhores soluções a cada grupo e

situação específica.

A importância das três anteriores abordagens políticas – tanto pelos

resultados positivos que a sua implementação tem alcançado, como, também,

pela sua potencial transposição para as especificidades do caso português –

impõe que seja dispensada uma maior atenção sobre as suas principais

características, procurando avaliar as suas potencialidades e constrangimentos

principais, determinando, de forma sucinta, quais os seus “universos” de

aplicação e os principais resultados (e perspectivas futuras) que alcançaram.

Para tal, recorrer-se-á, não só à pesquisa bibliográfica efectuada, mas, também,

às informações recolhidas nas entrevistas efectuadas a vários especialistas

norte-americanos com importantes conhecimentos e valias na matéria.

Iniciar-se-á, a referida análise, com a aproximação aos denominados “Ten

Year Plans to End Chronic Homelessness in Your Community”. A identificação da sua

génese obriga a remontar até ao ano 2000, data da ocorrência da publicação

“A Plan, not a Dream: How to End Homelessness in Ten Years” (cf. NAEH, 2000).

Page 94: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

93

O referido relatório vai reconhecer – através da apresentação de um

diagnóstico relativo à problemática dos sem-abrigo nos EUA – que, para além

dos custos sociais associados ao fenómeno, a questão dos sem-abrigo

acarretava importantes externalidades em termos económicos. Apesar da

importância de tais considerações – enunciadas numa tentativa de captar a

atenção da comunidade política para a importância de actuar sobre o

fenómeno –, importa realçar que já vários autores as haviam relevado

anteriormente (cf. O’ FLAHERTY, 1998; SALIT et al., 1998).

Uma das chaves dos “Ten Year Plans” vai ser a sua tentativa de implementar

os pressupostos percebidos na intensa investigação dos anos precedentes.

Outro factor de sucesso vai-se referir ao facto de ser procurado, pelos

decisores políticos, que os planos sejam desenvolvidos de acordo com uma

abordagem mais inovadora do ponto de vista sociocultural e político,

procurando a atribuição de relevo ao trabalho que pode ser efectuado a nível

local, ou seja, em cada comunidade.

Assim, em resumo, a filosofia destes planos aponta para a importância de

conferir autonomia aos contextos decisórios locais. De acordo com a

“National Alliance to End Homelessness” (NAEH) – organização que se pode

considerar como a grande ideóloga e impulsionadora destes “Ten-Year Plans” –

é no seio de cada comunidade que melhor se poderão desenvolver as

estratégias para a resolução da questão dos sem-abrigo (dessa comunidade),

possibilitando, a esses indivíduos, um melhor, mais facilitado e menos

burocratizado acesso, quer a habitação a preços mais acessíveis – os chamados

programas de “affordable housing” –, quer aos vários serviços sociais (de saúde,

de educação, de emprego, ou de protecção social) de que os sem-abrigo se

encontram, em geral, excluídos (cf. NAEH, 2000; 2003; 2006; 2007c).

Assim, no seguimento das anteriores indicações conceptuais, foram

delineadas, no relatório inicial – “A Plan, not a Dream: How to End Homelessness

in Ten Years” – algumas directrizes importantes, que deveriam ser incorporadas

Page 95: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

94

nas estratégias de redução dos problemas ligados aos sem-abrigo, a

desenvolver no contexto dos vários “planos decenais” comunitários. Entre os

referidos conceitos directivos podem-se destacar os seguintes (cf. NAEH, 2000;

2003):

1. “Plan for Outcomes”: Assume que os territórios votados a intervenção pelos

planos locais, e as respectivas estratégias de actuação, devem ser

delineados através da realização de recolhas de dados exaustivas acerca

dos sem-abrigo desse local, de forma a permitir um maior (e melhor)

conhecimento diagnóstico do fenómeno, salvaguardando, como tal, uma

maior aplicabilidade e adequação das políticas e estratégias a desenvolver

para a sua mitigação;

2. “Close the Front Door”: Relevo para a importância de adoptar medidas e

programas holísticos e mais abrangentes de combate à pobreza nas

comunidades, para evitar que os grupos de risco nelas identificados não

incorram em situação de sem-abrigo; basicamente, defende-se, desta

forma, uma actuação preventiva;

3. “Open the Back Door”: Realça a importância de analisar as necessidades

habitacionais e sociais dos sem-abrigo de cada comunidade, definindo e

aplicando, como tal, e de forma o mais célere e eficaz possível, as

estratégias que se possam vir a demonstrar mais adequadas à sua

reinserção social e habitacional;

4. Build Infrastructures: Atenta na demonstração da fulcralidade apresentada

pelo alargamento do leque de serviços prestados pelas instituições sociais

e políticas, e da concessão de possibilidades para os sem-abrigo gerarem

os seus próprios rendimentos de forma autónoma; as medidas

implementadas ao nível dessa autonomização devem, assim, actuar de

forma complementar e intimamente associada à generalização da oferta

de alojamento (a preços mais acessíveis) para os sem-abrigo.

Page 96: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

95

Desde o ano 2000 – que, conforme referenciado anteriormente, se pode

assumir como a data de constituição das directrizes gerais de organização dos

programas comunitários decenais votados à erradicação do fenómeno dos

sem-abrigo – foram já desenvolvidas iniciativas deste tipo em mais de 360

comunidades, espalhadas um pouco por todo o País mas, com uma óbvia (e

nítida concentração) nos estados e cidades norte-americanas mais afectadas

pela questão dos sem-abrigo (Figura 7).

Do total de planos implementados, é possível anunciar que foram já

concluídos 234, encontrando-se os restantes em fase de desenvolvimento, o

que parece demonstrar um forte comprometimento por parte dos agentes

políticos e sociais.

Fig. 7: Distribuição geográfica dos “Ten-Year Plans” já concluídos (até

meados de 2009) no território norte-americano

(Fonte: http://www.endhomelessness.org/section/tools/communityplans).

Na (óbvia) impossibilidade de analisar todos os referidos planos, importa

procurar efectuar o estabelecimento de algumas tendências e padrões de

organização que revelem a existência de estratégias comuns entre eles.

Page 97: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

96

Um primeiro aspecto a relevar diz respeito à estrutura formal da estratégia

desenvolvida nos planos. Seguindo indicações da NAEH (cf. NAEH, 2000;

2003), parece ser possível identificar que a generalidade dos planos –

salvaguardando algumas pequenas adaptações locais – parece apresentar uma

estrutura disposta em torno de um conjunto de objectivos estratégicos

(“goals”), que pretendem responder à questão “o que se está a tentar alcançar?”.

Para cada um desses objectivos é possível contabilizar um conjunto de linhas

de actuação (“action steps”), cuja enunciação deve ocorrer de modo a permitir

perceber “como se vai actuar no sentido de cumprir os objectivos anteriores?”. A cada

uma das anteriores linhas de acção está, normalmente, associada uma, ou

mais, metas temporais (“timeframes”) e, em alguns casos, a discriminação da

pessoa/organização que está responsável pelo cumprimento da referida

orientação (cf. NAEH, 2000; 2003; 2006; 2007c)

Segundo a NAEH (2006; 2009), a maior parte dos planos delineados incluiu,

de forma central, estratégias dirigidas aos “sem-abrigo crónicos” (fazendo jus

ao nome completo dos planos – “Ten Year Plans to End Chronic Homelessness in

Your Community”). Este segmento dos sem-abrigo foi mesmo considerado

como o principal “receptor” das medidas estratégicas implementadas em mais

de 30% dos programas locais. Quase metade do total de planos inclui

iniciativas dirigidas aos sem-abrigo adolescentes; cerca de 50% (valor que tem

crescido nos que vêm sendo implementados nos últimos anos) centram a sua

atenção sobre as questões ligadas à “family homelessness”. Como nota NAEH

(2009: 17) «approximately 49 percent of plans to end homelessness specify families as a

target subpopulation. The recent emphasis on ending homelessness among families has

resulted in progress».

Continuando a referenciar as mesmas fontes de informação, é possível

perceber que a grande maioria dos planos concedeu uma grande importância

ao esforço de envolvimento de uma gama vasta de “stakeholders”,

contabilizando, quer agentes públicos, quer entidades privadas, no(s)

Page 98: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

97

processo(s) de planeamento. De relevar que, quase 30% dos planos já

implementados decidiu aproveitar as experiências de ex-sem-abrigo,

fomentando a sua participação no desenvolvimento desses planos.

No que respeita às fontes de financiamento, identifica-se uma grande

variabilidade em termos de “investidores”, sendo possível considerar, neste

âmbito, quer entidades públicas, quer fundações privadas. De notar que cerca

de metade dos planos foram capazes de identificar, logo à partida, doadores

importantes, que se responsabilizaram pela implementação de todo o plano.

Apesar de alguns planos terem demonstrado uma boa capacidade de

angariação de fundos provenientes de investidores privados, a viabilização

financeira da generalidade dos planos foi possibilitada pela actuação das

Autarquias, responsáveis por uma parte bastante substancial dos

financiamentos totais em mais de metade dos planos (cf. NAEH, 2006).

Um outro aspecto a destacar reside no facto de que, embora radicando

numa génese comum – nomeadamente, os referidos relatórios pioneiros da

NAEH, que construíram as directrizes e linhas de actuação gerais para a

elaboração e operacionalização de cada plano –, é possível evidenciar a

tentativa de manutenção de uma grande flexibilidade na implementação de

cada plano, visando possibilitar uma maior adequabilidade de cada conjunto

de medidas, a cada situação e comunidade específica. Algumas comunidades

apostaram, de forma mais incisiva, sobre as questões ligadas ao abuso de

álcool e estupefacientes, outras relevaram a intervenção sobre os “mentally-ill

homeless”, enquanto algumas preferiram centrar a sua actuação sobre a

concessão do acesso à habitação.

No entanto, o exercício de avaliação dos vários planos, efectuado em

NAEH (2006), permite, ainda, identificar, ao nível das próprias estratégias dos

vários planos, algumas expectativas de actuação comuns, subjacentes (de

forma mais ou menos directa) à maior parte deles. Assim, é possível identificar

Page 99: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

98

como preocupações relativamente transversais aos vários planos, os seguintes

aspectos (cf. NAEH, 2006):

1. Criação de Sistemas de Bases de Dados: Reconhecendo a importância

atribuída pelos teóricos relativamente ao papel do conhecimento e da

informação sobre os sem-abrigo (cf. DENNIS et al., 2007), cerca de 90%

dos planos implementados afirmou, na sua estratégia, a ambição de

proceder à criação – e operacionalização, visando a criação de

mecanismos possibilitadores da sua constante actualização futura – de

um “Homeless Management Information System” (HMIS);

2. Prevenção da “Homelessness”: Quase 80% dos planos reconheceu a

importância operacional que deve ser atribuída ao desenvolvimento de

medidas de prevenção relativas à agudização do fenómeno dos sem-

abrigo nas comunidades; entre essas medidas – que demonstram uma

grande variedade entre os vários contextos – podem-se destacar aspectos

como o fornecimento de apoio e consultoria a indivíduos pobres e

socialmente excluídos das comunidades, apoiando-os no processo de

negociação de rendas, ou na fuga à situação de desemprego e sub-

emprego; acompanhamento das famílias vulneráveis (em especial, as

monoparentais) com crianças adoptadas, situações de gravidez precoce,

ou crianças em idade pré-escolar; entre outras medidas;

3. Diminuição dos Períodos Contínuos de “Homelessness”: Ligação das iniciativas

deste tipo à mitigação das questões de “chronic homelessness”, ou de situação

prolongada de sem-abrigo, por exemplo, através da criação e

generalização de oportunidades de alojamento permanente para estes

indivíduos (“permanent housing”) ou da implementação dos chamados

programas de “re-housing”. As iniciativas deste tipo encontram-se

presentes em mais de 70% dos planos, totalizando um quantitativo já

superior a 200 mil unidades habitacionais subsidiadas, das quais 80 mil

correspondem a “permanent housing”; de acordo com este eixo de actuação,

Page 100: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

99

deve ser conferido um grande privilégio às iniciativas desenvolvidas no

âmbito de programas de “Supportive Housing” ou de “Housing First”, que

serão tratadas a seguir;

4. Ligação e Inserção dos Indivíduos e Famílias Sem-Abrigo à Rede de Serviços Sociais:

Uma vez completada a etapa de colocação dos sem-abrigo nos

alojamentos, cerca de 80% dos planos prevê a continuidade da actuação

através da aplicação de medidas promotoras da conexão dos sem-abrigo

aos serviços sociais básicos; assim, deve ser promovida a sua integração

laboral (possibilitando a sua auto-suficiência) e a sua inclusão nos vários

serviços de apoio e protecção social (p.ex. saúde e educação).

Resumindo, parece constituir uma opinião transversal, quer para os autores

consultados por via da sua produção bibliográfica, quer dos vários peritos

entrevistados, que a aplicação dos “Ten-Year Plans” se pode considerar, em

geral, bastante positiva. Uma grande parte dos planos foi já implementada

(dentro dos prazos estipulados), permitindo, nalgumas comunidades, uma

redução acentuada dos efectivos de sem-abrigo. A sobreposição dos mapas

referentes ao número de planos já efectivamente concretizados e aos Estados

e cidades que maior sucesso conseguiram, nos últimos anos, na redução dos

seus quantitativos de sem-abrigo, parece actuar como elemento demonstrativo

do relativo sucesso destas iniciativas.

Em contraponto, noutros contextos, os resultados terão ficado aquém das

expectativas iniciais sendo, mesmo, possível identificar alguns exemplos em

que se verificou um elevado nível de inactividade na implementação dos

programas estabelecidos nos planos. O facto destes planos – organizados para

períodos temporais relativamente abrangentes – dependerem da necessidade

do estabelecimento de um forte comprometimento a nível político pode ser

apontado como uma das explicações para a “perda de fulgor” verificada em

alguns planos durante os processos de transição eleitoral, ocorridos nas

Page 101: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

100

comunidades. A implementação desajustada de algumas das iniciativas e

planos – encarados, em alguns casos, mais como medidas de marketing

político, do que como estratégias efectivas de combate à incidência dos sem-

abrigo, pode ser apontada como outra possível causa para os exemplos menos

bem-sucedidos. Para além dos anteriores aspectos é, também, de relevar a

ineficácia observada, num número considerável de planos, ao nível da

capacidade de captação de investimentos privados. Nalguns casos, este facto

pode, também, ter actuado como uma forte condicionante a uma maior

efectividade da operacionalização das medidas inicialmente planeadas.

Em suma, independentemente das eventuais disrupções a um mais

adequado funcionamento, é essencial relevar que a abordagem subjacente aos

“Ten-Year Plans to End Homelessness in Your Community” – cuja aplicação, importa

relembrar, é considerada pelos peritos, em geral, bastante positiva – apresenta

vários aspectos de interesse, de entre os quais urge destacar: i) A focalização

que é colocada sobre os contextos decisórios locais (comunidades); ii) A sua

flexibilidade e “capacidade de adaptação” (pelo menos teórica) às

especificidades de cada contexto socioespacial; iii) A importância que

conferem, simultaneamente, às medidas preventivas e profiláticas, destinadas,

respectivamente, a “close the front door” e “open the back door”; iv) O facto de

possibilitar uma actuação conjunta com vários programas de “housing”

destinados aos sem-abrigo, como, por exemplo, os de “Housing First”, ou os de

“Supportive Housing”, cujas especificidades e principais aspectos e resultados

alcançados serão apresentados em seguida.

A abordagem subjacente ao conceito de “Permanent Supportive and Affordable

Housing” radica, essencialmente, na combinação de dois aspectos-chave: i)

Disponibilização rápida e eficaz de alojamentos, em condições

monetariamente acessíveis, para os sem-abrigo (ou seja, promoção do

chamada “affordable housing”); ii) Criação de uma rede de serviços de apoio

dirigidos às necessidades de cada indivíduo, cuja actuação ocorrerá, de forma

Page 102: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

101

contínua, após a atribuição dos alojamentos aos indivíduos sem-abrigo (daí a

denominação “permanent supportive housing”) (cf. HANNIGAN e WAGNER, 2003).

Dos dois anteriores aspectos-chave é possível retirar aqueles que, apesar de

toda a variedade inerente aos programas desta tipologia, constituem os quatro

princípios básicos subjacentes a este modelo de desenvolvimento social

dirigido aos sem-abrigo (cf. HANNIGAN e WAGNER, 2003):

1. Permanência e Acessibilidade Financeira: Um dos principais objectivos dos

programas diz respeito à procura de proporcionar uma maior

disponibilidade de alojamentos a preços acessíveis à população com

baixos rendimentos, especialmente aos sem-abrigo que apresentam

algum tipo de necessidade especial (p.ex. problemas de saúde física ou

mental). Normalmente, as rendas praticadas nunca chegam a ultrapassar

30% dos rendimentos dos novos inquilinos;

2. Segurança e Conforto: Uma prioridade para a integração dos sem-abrigo

nestes programas diz respeito à promoção do seu conforto e segurança

nas suas novas habitações, seja pela maior facilidade da sua integração

social, seja por permitir o seu grau de aceitação face aos programas.

Esses sentimentos de conforto, identidade social e territorial, e segurança

devem ser alcançados, quer por via da qualidade das habitações e

alojamentos, quer, também, pela promoção da integração e criação de

poder identitário dos indivíduos no seio das “suas” novas comunidades;

3. Acessibilidade e Flexibilidade dos Serviços de Apoio, Visando a Estabilidade

Habitacional: O desenho dos programas deve ser influenciado pelas

necessidades mais prementes dos indivíduos apoiados, tanto no

momento inicial em que as estruturas dos programas são delineadas,

como durante o seu processo de implementação, acompanhando a

evolução das necessidades de cada comunidade.

O objectivo primário destes programas deve centrar-se no assegurar, de

forma progressiva e faseada, da estabilidade habitacional dos indivíduos,

Page 103: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

102

pela promoção da sua auto-suficiência e pelo estímulo ao cumprimento

efectivo da sua cidadania e responsabilização social, por exemplo, através

do faseamento na obrigação do pagamento de rendas; da manutenção de

condições de higiene e salubridade nas habitações; ou do cumprimento

de algumas regras, quer ao nível das habitações, quer em termos da

convivialidade nas comunidades.

Os serviços de apoio são variáveis consoante as unidades habitacionais

programadas. No entanto, em termos gerais, costumam focar aspectos

como: i) Apoio e consultoria dirigido ao cumprimento das obrigações

legais dos indivíduos (p.ex., pagamento de rendas e impostos, ou

mediação, quando justificado, junto dos serviços de imigração); ii)

Criação de estruturas de apoio à formação e educação, incluindo o

aconselhamento profissional, e auxílio à inclusão nas estruturas

educativas formais, por exemplo, através da organização de cursos que

possibilitem a aprendizagem ou reciclagem de competências técnicas por

parte dos indivíduos; iii) Estreitamento das ligações entre os indivíduos e

os serviços de saúde, particularmente, dirigidos para os problemas

clínicos experienciados pelos indivíduos.

4. “Empowerment” e Independência: Os programas devem ser desenhados para

a promoção do “empowerment” e da auto-suficiência dos indivíduos,

incutindo-lhes, simultaneamente, o sentimento de liberdade e de

responsabilidade pelas suas acções.

Podem-se apontar como exemplos claros de esforços a desenvolver neste

sentido, os seguintes aspectos: i) Envolvimento dos novos inquilinos na

gestão do projecto de “supportive housing” a que pertencem; ii) Criação de

oportunidades de emprego; iii) Estímulo à constituição e participação dos

indivíduos em grupos de apoio e aconselhamento no seio da própria

comunidade.

Page 104: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

103

Um aspecto já mencionado anteriormente, e ao qual importa conceder um

maior destaque, diz respeito ao reconhecimento da existência de uma grande

diversidade de modelos de “supportive housing”. É possível encontrar grandes

variações entre programas, seja em termos das suas dimensões, estrutura dos

locais de aplicação, características dominantes dos indivíduos alojados, ou

nível e tipos dos apoios concedidos. Aliás, essa flexibilidade e capacidade de

adaptação às especificidades de cada contexto e às necessidades dos principais

“inquilinos” – expressa pelas várias formas e tipologias que pode adoptar – é,

exactamente, apontada como uma das principais vantagens e aspectos

positivos destes programas de “supportive housing” (cf. HANNIGAN e WAGNER,

2003; NAEH, 2007d).

É, exactamente, a anterior ideia que está subjacente à descrição dos

programas deste tipo avançada por HANNIGAN e WAGNER (2003: 1), quando

este afirma, de forma bastante organizada e sucinta, que «supportive housing offers

affordability and a stable living environment while helping tenants access services and

amenities that promote self-sufficiency and enhance their quality of life. Depending upon the

tenancy, supportive services programs in housing provide and/or maintain linkages to

individual and family counselling, HIV services, mental health services, alcohol and

substance use services, crisis intervention, childcare, medical care, vocational counselling, and

job placement, among others. Supportive housing projects also work to foster community-

building efforts among tenants and are often engaged with the surrounding neighbourhood as

well. (…) Affordability and the flexibility to adapt services to the needs of the tenants are

the greatest strengths of effective supportive housing projects»

Apesar de, em essência, não constituir uma abordagem social totalmente

nova para a questão dos sem-abrigo – uma vez que, em essência, estes

programas são baseados na simples concessão de alojamentos a estes

indivíduos – as anteriores particularidades adaptativas, que combinam a

referida provisão de habitação a preços acessíveis, com a organização de

estruturas de apoio adaptadas às especificidades/problemas de cada grupo,

Page 105: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

104

têm granjeado aos programas da tipologia de “supportive housing” uma reputação

de eficiência e adequabilidade aos múltiplos e diferenciais problemas

colocados pela questão dos sem-abrigo.

A expansão da sua aplicação tem ocorrido a um ritmo acelerado na última

década, muitas vezes integrados nos, já referidos, “Ten-Year Plans”. São já

contabilizáveis várias dezenas de milhar de unidades de “alojamento assistido”

nos EUA, normalmente patrocinadas e geridas por ONG’s, que variam entre

alojamentos unitários (normalmente ocupados por famílias com crianças) a

empreendimentos de várias unidades, usualmente focadas sobre indivíduos

sem-abrigo que partilham um mesmo tipo de problema (p.ex. problemas

mentais; deficiências físicas; portadores do vírus da SIDA; entre outros) (cf.

HANNIGAN e WAGNER, 2003; NAEH, 2007d).

As opiniões relativamente a estes programas dividem-se. Alguns autores

consideram-nos excludentes – caminhos para a criação de guetos e enclaves

de indivíduos “homogéneos” e socialmente excluídos – afirmando que são

desenvolvidos com o intuito de “limpar” as cidades, criando paisagens

urbanas mais qualificadas e “livres” dos sem-abrigo (cf. MITCHELL, 1997).

No entanto, outros autores preferem realçar os aspectos positivos destas

abordagens, afirmando que permitem a constituição de comunidades

progressivamente auto-suficientes (e integradas na sua envolvente), com

indivíduos que se identificam entre si e que, como tal, se ajudam mutuamente.

Acreditam, estes autores, que esta abordagem é promotora do “empowerment” e

da independência progressiva da população sem-abrigo que, de forma faseada

e aproveitando o acompanhamento próximo efectuado por vários agentes

sociais, vão sendo progressivamente reintegradas na sociedade, ganhando

acesso aos sistemas de trabalho, de saúde, e de criação e gestão das suas

próprias fontes de rendimento; e a possibilidade de “desintoxicação” de vícios

e consumo de substâncias aditivas (cf. HANNIGAN E WAGNER, 2003; NAEH,

2007d; 2009).

Page 106: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

105

Não sendo do cerne do presente relatório tecer confirmações deterministas

acerca de qual das visões anteriores será pautada por uma maior correcção,

importa, no entanto, reforçar o decréscimo evidenciado no número de sem-

abrigo norte-americanos nos últimos anos. «This decrease is likely due to both real

decreases, meaning [for example] more chronically homeless people getting back into

permanent housing, and changes in the methods used to count chronically homeless people.

Considering the recent efforts to increase the stock of permanent housing targeted (…) one

would expect a decrease in this population. And in a number of places, decreases (…) have

had a visible effect on the street» (cf. NAEH, 2009: 14-15).

O mesmo documento releva, ainda, a crescente importância destas

iniciativas a nível nacional, realçando que «communities across the country are

implementing strategies to end family homelessness, including increasing permanent housing

options for families and Housing First initiatives» (cf. NAEH, 2009: 17).

Discutidos alguns dos principais aspectos subjacentes às opções de tipo

“supportive housing”, importa, finalmente, dispensar alguma a atenção sobre os

programas de “Housing First”.

O primeiro (e, ainda hoje, mais reconhecido) programa desenvolvendo

medidas do tipo “Housing First” data do ano de 1992. Denominado “Pathways

to Housing”, foi implementado inicialmente na cidade de Nova Iorque, tendo-

se expandido, desde então, com relativo sucesso, a várias cidades e estados

norte-americanos, totalizando, já, um quantitativo de 150 programas

implementados em várias cidades dos EUA e, mesmo, do Canadá (Figura 8).

Os principais destinatários dos programas deste tipo são os sem-abrigo que

apresentam dificuldades em ser considerados aptos para outros programas de

alojamento, nomeadamente os “mentally-ill homeless”, ou todos os indivíduos

que evidenciem problemas de abuso de álcool e/ou, especialmente, de drogas

pesadas.

Page 107: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

106

Fig. 8: Programas de “Housing First” que receberam apoio da “Pathways to

Housing” nos EUA e Canadá (até 2007) (Fonte: TSEMBERIS, 2009).

O objectivo principal dos programas deste tipo consiste no fornecimento,

à população sem-abrigo, de acesso directo a alojamentos. Depois de ser

concedida essa habitação, todos os indivíduos são acompanhados a tempo

inteiro – normalmente a partir de um ponto administrativo central situado no

bairro do alojamento – por elementos (normalmente agentes sociais)

organizados em equipas, de acordo com um plano pré-estabelecido e

denominado “Assertive Community Treatment” (ACT) (cf. GULCUR et al., 2003;

NAEH, 2007e; TSEMBERIS, 2009).

Conforme resumido por um dos grandes mentores do programa, o “casas

primeiro” é «a program that provides immediate access to permanent housing and support

services with a philosophy of consumer choice. Consumer are not required to participate in

psychiatric treatment or attain a period of sobriety in order to obtain housing» (cf.

TSEMBERIS, 2009: 2).

Da anterior definição se percebe, rapidamente, que o “Housing First” acaba

por se poder constituir como uma “variante” dos programas de “supportive

Page 108: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

107

housing”, mais flexível e centrado no conceito de “consumer choice” (cf.

TSEMBERIS, 2009). A grande diferença dos programas de “housing first” reside,

exactamente, na atribuição do poder de decisão aos sem-abrigo

(“consumidores”) acerca de vários aspectos relativos aos seus “novos”

alojamentos e do tipo, sequência e intensidade dos serviços de apoio de que

crêem necessitar, podendo optar por não beneficiar de nenhum serviço de

apoio, concordando, unicamente, com a ocorrência de uma visita semanal

obrigatória, por parte de uma equipa de acompanhamento. Procura-se, desta

forma, dignificar os papéis da tomada de decisão autónoma e da capacidade

de participação dos sem-abrigo, fomentando, por estas vias, a sua auto-

responsabilização e valorização pessoal.

Assim, em resumo, verifica-se que um dos grandes aspectos inovadores

desta abordagem diz respeito à separação entre duas esferas de actuação das

equipas (cf. GULCUR et al., 2003; NAEH, 2007e; TSEMBERIS, 2009), a saber:

1. Serviços de Alojamento: Os apartamentos seleccionados pelos

“consumidores” podem ser independentes uns dos outros, desde que

adaptados às suas necessidades e possibilidades financeiras e legais.

Apesar da concessão de subsídios para a compra e manutenção dos

apartamentos – que permitem reduzir substancialmente os preços das

rendas, em relação aos valores de mercado – a responsabilização dos

novos inquilinos é fomentada pela obrigatoriedade de pagamento de 30%

do preço da renda negociada, e pelo respeito dos demais aspectos

presentes no contrato de compra, venda e utilização da casa.

São desenvolvidas, neste âmbito, pelas equipas de apoio social, tarefas

como o auxílio à procura e negociação de apartamentos; a consultoria

legal, particularmente no que respeita ao pagamento das rendas; ou a

mediação das relações entre inquilinos e senhorios.

2. Serviços de Tratamento: Os serviços de apoio clínico são, também,

disponibilizados, não constituindo, no entanto, uma obrigatoriedade. O

Page 109: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

108

acompanhamento clínico – muitas vezes providenciado no seio das

próprias comunidades – é, assim, efectuado de forma independente face

aos serviços de alojamento e pode ser disponibilizado a vários níveis,

adaptando-se às necessidades e escolhas dos indivíduos (p.ex. apoio

psiquiátrico, abuso de drogas e álcool, entre outros). Para além do apoio

clínico são ainda providenciados outros serviços de reinserção,

nomeadamente, nos âmbitos da inserção laboral, da educação e do apoio

contabilístico à gestão de contas e despesas.

Em resumo, a prioridade dos programas deste tipo centra-se na esfera dos

alojamentos. Não existe qualquer obrigatoriedade de comprometimento do

sem-abrigo em ser acompanhado para a resolução dos seus problemas

clínicos, educacionais ou de emprego. No entanto, caso este decida ser

apoiado, existem, nas comunidades, várias estruturas que possibilitam que esse

acompanhamento possa ser realizado com eficácia. A integração efectiva dos

indivíduos, não só na sociedade em geral mas, mais particularmente, na sua

comunidade é, também, um aspecto bastante relevado.

No que diz respeito à avaliação da eficácia destes programas, um primeiro

aspecto a relevar diz respeito à progressiva notoriedade e procura – em vários

estados e cidades norte-americanas – da implementação de medidas deste

tipo, o que pode ser considerado como uma medida que atesta acerca da

eficácia geral do programa.

Mais especificamente, é possível verificar que os resultados disponíveis – e

respectivas análises quantitativas e qualitativas – demonstram a existência de

traços de grande positividade proporcionados pela implementação destes

programas.

São vários os autores (incluindo os entrevistados) que anunciam taxas de

manutenção das habitações, por parte dos indivíduos anteriormente sem-

abrigo, da ordem dos 85% após o primeiro ano de concessão de alojamento

em regime de “Housing First”. Estes resultados são transversais a várias cidades

Page 110: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

109

norte-americanas, não se verificando apenas na cidade de Nova Iorque,

“berço” da iniciativa. É assumido que cerca de 30% do decréscimo

evidenciado, entre os anos de 2005 e 2007, nos quantitativos de sem-abrigo a

nível nacional seja devido aos programas de “housing first” (cf. GULCUR et al.,

2003; NAEH, 2007e; SHINN, 2009; TSEMBERIS, 2009).

Resumindo de forma qualitativa os dados quantitativos apresentados em

SHINN (2009), podem ser retiradas algumas ilações importantes. Em termos

gerais, é possível, então, afirmar que os “consumidores” do “casas primeiro”

foram alojados mais rapidamente do que noutros programas – resultado da

menor burocratização dos processos de concessão de alojamento –

demonstrando, em termos gerais, a capacidade para manter as suas habitações

durante vários anos. Os resultados económicos são, também, notórios, por

exemplo, a nível da diminuição dos custos públicos com os serviços de saúde,

justiça e protecção social com estes indivíduos (cf. GULCUR et al., 2003; NAEH,

2007e; SHINN, 2009; TSEMBERIS, 2009).

De relembrar que é sobre os sem-abrigo com historial de abuso de

substâncias, e em situação de “chronic homelessness” – em especial os indivíduos

evidenciando notórios problemas mentais de foro clínico –, que recai a

focalização destes programas. Tratando-se de indivíduos, em geral,

considerados incapazes de manter uma habitação (seja com, ou sem,

acompanhamento clínico) – sendo, normalmente, rejeitados, ou

demonstrando grandes dificuldades de adaptação em relação a outros

programas mais restritivos – estas taxas de sucesso revelam o potencial

interesse e importância que deve ser conferida a esta abordagem específica, no

âmbito (mais lato) das iniciativas de “permanent supportive housing”.

Uma das principais características das iniciativas de “Housing First” respeita

à sua potencial flexibilidade e adaptação às escolhas dos sem-abrigo. No

entanto, apesar de toda a variabilidade que lhe está inerente, é possível

encontrar alguns aspectos comuns aos vários programas.

Page 111: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

110

O seu carácter distintivo face a outras iniciativas de combate à

problemática dos sem-abrigo nos EUA, justifica que, conclusivamente, se

apresentem os seguintes aspectos caracterizadores do programa, encarados,

aqui, como valias conceptuais, que destacam este programa em relação aos

demais, realçando as vantagens subjacentes à sua aplicação (cf. NAEH, 2007e):

1. E concedido um forte privilégio – constituindo, mesmo, o mote

orientador do programa –, ao encaminhamento directo da população-

alvo (que pode ser variável e diversa; no entanto, é privilegiado o apoio

aos grupos considerados menos aptos para outros programas) para um

alojamento permanente, o que permite diminuir a burocratização

inerente ao processo de “saída” das ruas, por parte destes indivíduos;

2. Apesar dos programas poderem incluir a oferta de diversos serviços de

apoio, a participação dos sem-abrigo nesses serviços não é obrigatória, o

que, pela menor restritividade e condicionalismo que representa, fomenta

a valorização da opinião e a integração dos indivíduos;

3. Mesmo sendo possível contabilizar a existência de alguns programas

especialmente dirigidos às famílias sem-abrigo, a maior parte das

iniciativas deste tipo é dirigida aos chamados “mentally-ill homeless” e aos

sem-abrigo crónicos, especialmente os que evidenciem um historial de

consumo de drogas, que apresentam, normalmente, uma maior relutância

e resistividade em frequentar os abrigos e demais serviços sociais.

Os três tipos de programas apresentados (de forma bastante resumida)

figuram entre as principais iniciativas dirigidas actualmente aos sem-abrigo nos

EUA. Procurou-se demonstrar, de forma imparcial, os aspectos relevados

como positivos, e as críticas que lhes são imputadas, enaltecendo as suas

principais características e alguns dos seus resultados (principalmente

quantitativos) mais emblemáticos.

Apesar das iniciativas apresentadas não esgotarem a totalidade de

abordagens políticas dirigidas aos sem-abrigo nos EUA, permitem que seja

Page 112: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

111

traçado um quadro geral bastante fidedigno das principais ideias subjacentes à

referida actuação política nos últimos anos.

A selecção dos programas relevados seguiu a importância que estes

apresentam, actualmente, nos EUA, e o seu eventual potencial de transposição

– salvaguardando as (sempre) necessárias particularidades – para o caso

português, mais especificamente para o contexto local da cidade de Lisboa,

correspondente ao caso de estudo do presente relatório – cujos aspectos

distintivos e de unicidade serão analisados em seguida.

Page 113: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

112

Capítulo III

Conhecer o Fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal e Lisboa

Page 114: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

113

3.1. O fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal

O processo de conhecimento do universo dos sem-abrigo é uma tarefa

difícil e complexa, “(…) homeless people exist outside of the normal structures of society,

they comprise a moving target which by its very nature is dificult to access. Subsections of the

homeless population are even more difficult to identify (…)” (EDGAR; DOHERTY et

al, 2001). Muitas vezes, os números apontados referem-se a estimativas que,

em algumas situações, “tendem a variar amplamente consoante as fontes e o seu

significado político” (JENKS, 1995 apud BARRETO; BENTO, 2002, p.31).

Um exemplo apontado refere-se às instituições privadas que dependem de

financiamentos e que tendem a inflacionar os números; em contrapartida, as

instituições governamentais tendem a subestimá-los.

Os dados estatísticos sobre esta população são raros ao nível de Portugal e

os primeiros estudos efectuados remontam aos finais dos anos 80 do século

passado.

DRAKE (1994, apud BARRETO; BENTO, 2002, p.30), apresentou o

valor de 4.100 sem-abrigo em Portugal, um valor considerado “baixo

relativamente a outros países da Europa”41. No entanto, estas estimativas não

tiveram em consideração o número de pessoas que a viver em barracas, e que

eram de cerca de 60.000 que, segundo os critérios dos países do Norte da

Europa, também deveriam ser considerados sem-abrigo (idem: ibidem).

Actualmente, estima-se que esse valor se situe entre os 2.500 e os 3.500

indivíduos, só em Portugal Continental.

Embora não se consiga ter uma percepção real, ao analisar-se os valores

que apresentam determinadas organizações de apoio a este segmento da

41 Este valor não é consensual, uma vez que existem estimativas que apontam para uma população sem-abrigo entre os 2.000 e os 3.500 só na cidade de Lisboa (Portugal, 2007:2).

Page 115: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

114

população, verifica-se que os números apurados sugerem que este fenómeno

está longe do fim. Por exemplo, a Assistência Médica Internacional (AMI)

apresenta, todos os anos, um número elevadíssimo de novos casos de sem-

abrigo (Figura 9), sendo, 2002 e 2006, os anos em que esse valor se mostrou

mais elevado, com 1.017 e 789 novos utentes respectivamente.

Fig. 9 - Evolução do número de novos casos de sem-abrigo atendidos pela

AMI (Fonte: Relatório Anual AMI, 2007).

Em 2006, a AMI realizou, ainda, uma caracterização dos seus utentes

concluindo que estes:

• Pernoitavam, maioritariamente, na rua (32%);

• O seu recurso económico mais frequente é a mendicidade (27%);

• A esmagadora maioria encontra-se desempregada (89%);

• Embora grande parte dos indivíduos tenha familiares vivos (92%), só

existe uma pequena parte que mantém relações com eles (37%);

• Cerca de 39% não tem médico de família;

• O HIV/SIDA atinge 7% da população;

• Cerca de 28% encontra-se dependente de substâncias activas.

Page 116: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

115

O estudo concluiu, também, que tem havido um aumento, nos últimos

anos, da população feminina em situação de sem-abrigo.

Recentemente, o Instituto da Segurança Social (ISS) realizou um estudo

com o objectivo de conhecer a realidade dos sem-abrigo em Portugal, para

melhor definir estratégias de promoção de formação profissional e de

empregabilidade deste segmento da população.

Segundo os dados apurados pelo ISS42, é evidente o peso de Lisboa (48%)

face aos casos identificados de sem-abrigo. No entanto, é notório, também, o

peso de distritos como o Porto (16%), Setúbal (7%), Faro (5%) e Aveiro (4%),

o que demonstra que são os grandes centros urbanos que mais contribuem

para este problema (Figura 10).

Fig. 10 - Percentagem de Casos de sem-abrigo identificados, por Distrito

(Fonte: ISS, 2005).

42 Instituto da Segurança Social (2005) Estudo dos Sem-Abrigo, Instituto da Segurança Social, Lisboa;

Page 117: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

116

A grande maioria da população sem-abrigo continua a ser masculina

(90%) (Figura 11), embora estudos recentes apontem para um crescimento da

população feminina nesta situação, nos últimos anos.

Fig. 11 - Distribuição da População Sem-Abrigo por Género Fonte: ISS, 2005

Relativamente à idade, mais de metade da população inquirida situa-se

no escalão etário compreendido entre os 30 e os 49 anos, situação muito

semelhante à realidade Norte-Americana, que tem, neste escalão etário, a

esmagadora maioria da sua população sem-abrigo.

Fig. 12 – Distribuição Etária dos Sem-Abrigo, em Portugal

(Fonte: ISS, 2005).

Page 118: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

117

O estado civil mais representativo (Figura 13) deste segmento da

população é o dos Solteiros, com 64%, seguido dos separados/divorciados, o

que reflecte, de certo modo, a ideia da quebra de laços familiares deste

segmento da população. No entanto, o universo dos Casados é ainda bastante

significativo, com 12% dos casos identificados.

Fig. 13 - Distribuição da População Sem-Abrigo por Estado Civil

(Fonte: ISS, 2005)

Relativamente à nacionalidade destes indivíduos (Figura 14), verifica-se

que a grande maioria é portuguesa (75%), embora o efeito das vagas

migratórias, primeiro dos PALOP’s e, depois, dos Países de Leste, se faça

sentir, também, na população sem-abrigo, uma vez que cerca de 20% é

proveniente dessas áreas. A agravar esta situação, muitos destes indivíduos

encontram-se em situação de ilegalidade, o que coloca importantes problemas

ao nível de obtenção de um emprego ou de uma habitação condigna.

Page 119: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

118

Fig. 14 – População Sem-Abrigo segundo a sua macro-região mundial de

Origem, em Portugal (Fonte: ISS, 2005)

As estatísticas relativas à situação destes indivíduos face ao emprego

revelam que 73% das pessoas se encontrava, à altura do estudo,

desempregada. Entre estas, 44% estiveram na situação de desemprego mais do

que uma vez e 27%, embora encontrando-se a trabalhar, apresentava

trajectórias laborais instáveis e precárias. Cerca de 85% da população inquirida

nunca beneficiou do subsídio de desemprego e somente 2% recebe aquela

prestação. Em suma, este segmento populacional encontra-se, em geral,

desempregado, economicamente inactivo ou inserido num mercado laboral

alternativo, precário, mal remunerado e, desta forma, sem benefícios ao nível

da Segurança Social.

Embora alguns dos indivíduos tenham um emprego remunerado,

mantêm, normalmente, a situação de sem-abrigo, porque, para além dos

baixos salários, o valor do arrendamento de uma habitação é, em geral,

elevado e exige fiador e dois meses antecipados. Não existe qualquer política

dirigida a estes indivíduos para rendas e pagamento de serviços (p.ex., água ou

electricidade). A compra de habitação, por empréstimo, implica um vínculo

Page 120: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

119

laboral duradouro e a burocratização para este processo é imensa. Há, ainda, a

relevar as representações estereotipadas e negativas em relação a este grupo,

que obstacularizam um tratamento com igualdade de oportunidades

(FEANTSA).

Uma vez que este trabalho procura encetar algumas estratégias de apoio

aos sem-abrigo na cidade de Lisboa é imperativo que se conheça, também, a

realidade específica deste território, recorrendo a um número variado de

documentos que, de alguma forma, possibilite o conhecimento deste

segmento da população, de forma a que as estratégias/medidas a adoptar se

coadunem com as reais necessidades deste grupo marginalizado.

3.2. O Perfil do Sem-Abrigo na Cidade de Lisboa

O fenómeno dos sem-abrigo é, de facto, uma das realidades características

aos grandes centros urbanos actuais e Lisboa não escapa aos custos da sua

capitalidade.

Hoje em dia, os números divulgados apontam para cerca de 2,5 milhões de

pessoas em situação de sem-abrigo a viver na União Europeia. Segundo um

estudo elaborado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC),

Lisboa contava com uma população sem-abrigo de 1.366 indivíduos. Embora

estes dados remontem ao ano 2000, até agora, este foi o estudo mais

aprofundado que se realizou neste âmbito, com vista a um conhecimento mais

pormenorizado do universo dos sem-abrigo na capital.

Segundo o mesmo estudo, a maioria dos sem-abrigo encontrava-se em

Centros de Acolhimento (54%) (Figura 15). No entanto, há que salientar o

grande peso que os “sem-tecto” representam na cidade, uma vez que

representam mais de 30% do total dos sem-abrigo. As situações híbridas, que

representam os indivíduos que, localizados em espaços com forte degradação

Page 121: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

120

ou de residência muito precária, constituem-se como apenas 1% do universo

dos sem-abrigo.

31%

8%54%

6% 1%

Espaços Abertos Espaços Fechados

Centros de Acolhimento Referências/Vestígios

Situação Híbrida

Fig. 15 – Locais de Pernoita dos sem-abrigo na cidade de Lisboa

(Fonte: LNEC, 2000)

Na cidade de Lisboa, à semelhança de outras áreas urbanas nacionais, as

opções de pernoita dos indivíduos sem domicílio fixo, variam entre a

possibilidade de dormida em pensões e “camaratas” subsidiadas por IPSS43 e

albergues a funcionar sob a égide daquelas instituições ou da Autarquia. No

entanto, as vagas disponíveis nestas instituições são insuficientes para o

número de sem-abrigo existentes, o que leva à ocupação de espaços

abandonados (residenciais ou não) e de veículos. A pernoita ao relento

também é uma realidade comum, sendo estes a face mais visível do fenómeno.

Nestes casos, os locais mais comuns são arcadas de prédios, passeios públicos,

debaixo de pontes e viadutos, em terrenos expectantes ou noutros recantos da

cidade.

43 Instituição Particular de Solidariedade Social

Page 122: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

121

N %

Espaço Residencial Abandonado 90 6.6

Espaço não Residencial Abandonado 44 3.2

Veículos 119 8.7

Entradas e Imediações de Edifícios 184 13.5

Espaços Públicos de Lazer 19 1.4

Passeios e Ruas 53 3.9

Baldios e Canaviais 28 2.0

Viadutos e Pontes 25 1.8

Albergues e afins 736 53.9

Paragens de Autocarro 14 1.0

Outros 54 4.0

Total 1366 100

Tabela 2 – Espaços de Pernoita dos Sem-Abrigo na cidade de Lisboa

(Fonte: LNEC, 2000)

O quadro anterior mostra os locais de pernoita dos sem-abrigo nos

locais em que estes foram identificados. Assim, tal como já referido, a grande

maioria encontra-se em albergues e afins (53.9%). Nas restantes situações

verifica-se que os locais de pernoita mais comuns são, como também já foi

referido, as entradas e imediações de edifícios (13.5%), os veículos (8.7%) e os

espaços residenciais abandonados (6.6%).

Em suma, e tal como foi identificado no relatório do LNEC, o que

importa reter é o facto de 2/3 dos sem-abrigo pernoitarem em espaços

fechados, nomeadamente em centros de acolhimento e em espaços

residenciais e não-residenciais abandonados, potenciando, deste modo, a sua

Page 123: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

122

não visibilidade. Os restantes são a face mais visível do problema e aqueles

que, de certa forma, são os mais marginalizados perante a sociedade.

Foto. 1: Exemplo de indivíduo sem-abrigo “sem-tecto” na cidade de Lisboa

Fonte: Jornalismo Ponto Net, 2004.

Foto. 2: Exemplo de indivíduo sem-abrigo “sem-tecto” na cidade de Lisboa

Fonte: diario.iol.pt, 2008

Relativamente à distribuição espacial dos sem-abrigo na cidade de

Lisboa, verifica-se que são as freguesias do Beato, Campolide e Alcântara as

que concentram um maior número de indivíduos, com, respectivamente

26.6%, 11.6% e 6.7% do total destes indivíduos na cidade. Isto, deve-se ao

facto de ser nestas freguesias que se concentra a maior oferta de centros de

acolhimento. Por outro lado, as freguesias que apresentam os valores mais

Page 124: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

123

baixos são: São Vicente de Fora (0.1%), Marvila (0.1%) e Socorro (0.2%);

estes valores representam, respectivamente, 1, 2 e 3 indivíduos. Existem,

ainda, outras freguesias que apresentem valores abaixo dos 10 sem-abrigo

(Figura 16).

Fig. 16 - Distribuição dos Sem-Abrigo na Cidade de Lisboa, 2000 (Fonte Estatística: LNEC, 2000)

Numa análise mais pormenorizada, na qual se apresenta o número de

sem-abrigo segundo os locais de pernoita, verifica-se que as freguesias mais

frequentadas pelos indivíduos sem-abrigo que pernoitam em espaços abertos

são: São Jorge de Arroios e Santa Justa, ambas com 31 indivíduos observados;

seguem-se Alto de São João (26), São Nicolau (25) e Alcântara (24). Nestes

últimos casos, o principal factor de concentração respeita ao facto de ser

nestas freguesias que se encontra uma maior ajuda por parte das equipas de

rua de apoio aos sem-abrigo. Quanto a espaços fechados (exceptuando-se os

centros de acolhimento), verifica-se que são as freguesias de São Sebastião da

Pedreira e Santa Maria dos Olivais aquelas que apresentam os valores mais

elevados, com 30 e 15 casos, respectivamente. De salientar que, apenas 10

Page 125: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

124

freguesias44, das 53 freguesias do concelho de Lisboa, não registaram qualquer

individuo em situação de sem-abrigo (Fotografias 1 e 2).

Já em 2004, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) promoveu um outro

estudo, que tinha como objecto de análise “A População de Rua da Cidade de

Lisboa”. O intuito deste estudo foi saber: Quem são?; Quantos são?; Que

respostas poderão ser dadas?. Aqui, o conceito utilizado foi “o conjunto de

pessoas que, sem alternativa, fazem dos espaços públicos, o lugar de viver,

seja de forma circunstancial, emergente, ou de forma definitiva”.

Neste estudo, que foi aplicado a todas as freguesias da cidade de

Lisboa, foram observados 931 indivíduos, dos quais 432 se situavam

efectivamente na rua. Entre outras conclusões, verificou-se que a maioria dos

sem-abrigo identificados tinham idades compreendidas entre os 25 e os 34

anos, era maioritariamente do sexo masculino e apresentava a nacionalidade

portuguesa.

Do total de indivíduos contactados, e relativamente aos quais foi

possível identificar outras problemáticas associadas à situação de rua,

verificou-se que um grande número de pessoas tinha, ainda, problemas ligados

à toxicodependência.

No entanto, é de realçar que este estudo consistiu, apenas na realização

de uma contagem numa única noite, não sendo, como tal, possível retirar

conclusões mais aprofundadas sobre a problemática. Desta forma, a Câmara

Municipal de Lisboa (CML), atenta à necessidade de articular o trabalho das

inúmeras instituições que operam na cidade de Lisboa sob esta problemática,

criou um grupo de trabalho designado “Motivação e Encaminhamento”,

coordenado pela equipa dos sem-abrigo da Divisão de Intervenção Social e

44 São elas: Ameixoeira, Carnide, Castelo, Charneca, Mártires, Santiago, São Cristóvão, São Lourenço, São Francisco Xavier, São Miguel e Santa Catarina.

Page 126: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

125

Animação Sociocultural (DISASC) do Departamento de Acção Social da

referida Edilidade.

Entre outros objectivos, o intuito desta equipa foi obter um

conhecimento alargado sobre a população sem-abrigo da cidade de Lisboa,

não só no que se refere aos seu número, mas, também, relativamente à

caracterização social desta população e às problemáticas que esta apresenta.

Assim, o Relatório Anual de 2007 apresentou diversos dados que permitem

delinear o perfil dos sem-abrigo da cidade de Lisboa e que, de certa forma,

vão ao encontro das conclusões apresentadas por outros estudos.

Do total de 766 sem-abrigo identificados pelas equipas de rua,

verificou-se que, mais uma vez, a grande maioria era do sexo masculino (cerca

de 83%, enquanto que as mulheres representavam apenas 11,5%). Os

restantes indivíduos correspondem a situações às quais não foi possível

identificar o sexo dos indivíduos.

Fig. 17 – População sem-abrigo segundo o género, 2007

(Fonte: Adaptado de CML, 2007)

Page 127: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

126

Numa análise relativa à estrutura etária predominante destes indivíduos,

verifica-se que é o escalão etário dos 35 aos 44 anos que apresenta um valor

mais elevado (26,2%). No entanto, as faixas etárias 25-34 e 45-54 anos,

apresentam, também, valores bastante significativos, com 20,5% e 19,7%,

respectivamente. De referir, ainda, que a média de idades destes indivíduos é

de 43 anos e que os sem-abrigo observados tinham idades compreendidas

entre os 17 e os 89 anos (Figure 18).

Fig. 18 - Escalão Etário da População Sem-Abrigo em Lisboa, 2007

(Fonte: Adaptado de CML, 2007)

À semelhança de outros estudos, verificou-se, também, que o estado

civil predominante é referente aos solteiros (43,1%), seguindo-se os

divorciados (8,0%). Estas duas situações são, de facto, as mais preocupantes,

uma vez que correspondem a “indivíduos sem-abrigo sem suporte familiar directo e,

assim, também, mais vulneráveis às situações extremas de exclusão social, se atendermos à

importância do papel de suporte que as famílias ainda assumem em situações de crise”

(CML, 2007:9).

Page 128: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

127

Fig. 19 - Estado Civil da População Sem-Abrigo em Lisboa, 2007

(Fonte: Adaptado de CML, 2007)

Em relação à nacionalidade destes indivíduos, e como seria de esperar,

a maioria destes é português (63,8%). Relativamente aos estrangeiros, foi

identificado um total de 223 indivíduos sendo, os mais representativos, os

sem-abrigo oriundos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

(PALOP), correspondentes a cerca de 11,4%, seguidos dos imigrantes

provenientes dos países do Leste europeu.

Fig. 20 – Número de sem-abrigo estrangeiros na cidade de Lisboa, por região

de origem, 2007

(Fonte: Adaptado de CML, 2007)

Page 129: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

128

As problemáticas que colocam as pessoas em situação de sem-abrigo são,

também, diversas, e podem ter várias origens. Como afirma BARRETO e

BENTO (2002, p.32), “para uns a condição sem-abrigo é resultante da condição

primária de pobreza. Neste sentido, não existem «sem-abrigos» mas sim pessoas muito

pobres que, a dada altura, perdem o seu alojamento por várias razões relacionadas com a

sua pobreza”. No entanto, existem factores individuais que poderão contribuir

para que um indivíduo seja mais ou menos susceptível a entrar numa situação

de sem-abrigo. PILIAVIN et al. (1993 apud BARRETO; BENTO, 2002, p.32)

agrupou esses (vários) factores individuais em quatro categorias:

• Perturbações psiquiátricas; • Défices educacionais e profissionais; • Desafiliação; • Identidade Cultural.

Na grande maioria dos casos de indivíduos sem-abrigo existe uma

situação de co-morbilidade que, segundo a Organização Mundial de Saúde

(OMS), se refere à co-ocorrência, no mesmo indivíduo, de uma disfunção por

consumo de substâncias psicoactivas e de uma outra perturbação psiquiátrica

(OMS, 1995).

Na análise efectuada na cidade de Lisboa, as várias problemáticas

identificadas foram divididas nas categorias de “Problemáticas Sociais” e de

“Problemáticas de Saúde”. Desta forma, verificou-se que, nas questões sociais,

as situações mais frequentemente identificadas foram o desemprego e a falta

de documentação, com 27,2 % e 11,7%, respectivamente (Tabela 3).

Page 130: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

129

Problemáticas Sociais %

Desemprego 27,2

Não Recorre a Instituições 8,3

Prostituição 0,6

Ausência de Documentação 11,7

Problemas Familiares 4,5

Tabela 3 – Sem-Abrigo segundo Problemáticas Sociais

(Fonte: Adaptado de CML, 2007)

Como se verificou, a falta de emprego é, assim, um dos factores mais

comuns na problemática dos sem-abrigo. No entanto, a sua resolução não é

fácil, uma vez que por trás do desemprego há outros factores associados,

como as baixas qualificações (educacionais e profissionais) destes indivíduos,

bem como, muitas vezes, a sua idade considerada “avançada” para

(re)inserção no mercado de trabalho – de relembrar que a média de idades dos

indivíduos sem-abrigo identificados se situa em torno dos 43 anos.

A ausência de documentação é um problema muitas vezes associado à

população imigrante. Um grande número de estrangeiros entra em Portugal

ilegalmente ou por via de redes internacionais que lhes “confiscam” a

documentação, o que causa enormes dificuldades na obtenção de um emprego

ou, mesmo, de uma habitação.

Relativamente às problemáticas ligadas à saúde, é recorrente a existência

de graves problemas ao nível da saúde mental, do consumo abusivo de álcool

e da toxicodependência, muitas vezes em situação de co-morbilidade, como já

referido anteriormente. No caso específico de Lisboa, verifica-se que a

principal problemática de saúde entre os sem-abrigo é o alcoolismo (22,6%),

seguindo-se as doenças mentais (11,4%) e a toxicodependência (5,4%).

Page 131: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

130

Tabela 4 – População sem-abrigo segundo problemáticas de Saúde

(Fonte: Adaptado de CML, 2007)

Desta forma, e atentando nos anteriores dados, poder-se-á traçar um

perfil geral dos sem-abrigo na cidade de Lisboa que, segundo BAPTISTA

(2004, p.35), tem como características dominantes “pertencerem ao sexo masculino,

na sua maioria, serem, em geral, solteiros e com fracas ou inexistentes relações familiares ou

outras redes de suporte, em situação de desemprego e/ou apresentando percursos laborais

quase sempre em sectores marcados pela instabilidade, registando baixos níveis de

escolaridade e, frequentemente, também evidenciando saúde (física e/ou mental) debilitada,

por vezes, associada ao consumo excessivo de álcool”.

Uma vez caracterizada a população sem-abrigo na cidade de Lisboa,

torna-se imperativo analisar as estratégias de apoio existentes, dirigidas a este

segmento excluído, bem como delinear novas visões estratégicas que

possibilitem dar uma melhor resposta às problemáticas inerentes aos sem-

abrigo, com o intuito de proporcionar um melhor suporte, com vista à

erradicação deste grave problema social.

Problemáticas de Saúde %

Saúde Mental 11,4

Deficiência Física 0,8

Alcoolismo 22,6

Toxicodependência 5,4

DST 2,0

Tuberculose 0,6

Doenças Crónicas 2,2

Outras Doenças 2,8

Page 132: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

131

Capítulo IV

Estratégias actuais de apoio aos

Sem-Abrigo na cidade de Lisboa

Page 133: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

132

4.1. Breve Perspectiva Histórica

Ao longo dos séculos, no nosso País, as percepções sobre o fenómeno

da “população de rua” foram diferentes, consoante o período histórico, as

respectivas conjunturas socioeconómicas e os governantes da época. As

constantes mutações da sociedade portuguesa ao nível da demografia, do

tecido social e económico e, mesmo, derivada dos progressos tecnológicos,

inscreveram problemas estruturais que, até aos nossos dias, evidenciam a

necessidade da definição de estratégias de inclusão social, para determinadas

franjas da população.

No reinado de D. Afonso IV, foi aprovado um decreto que obrigava os

trabalhadores a permanecerem nos mesmos locais dos respectivos empregos,

necessitando de permissão para mudar de emprego ou para mendigar.

A Lei das Sesmarias, promulgada em Santarém, no dia 28 de Maio de

1375, no reinado de D. Fernando afirmava que “os mendigos e ociosos seriam presos

pelas justiças do lugar”. Tal ordenação estava relacionada com a carência de mão-

de-obra nos centros urbanos, devido à elevada mortalidade causada pela Peste

Negra. Só aos que não conseguiam trabalhar (velhos, doentes, deficientes) lhes

era permitido mendigar.

Tanto D. João I como D. Manuel determinaram que aqueles que não

tinham trabalho, “nem amo ou Senhor” fossem presos e açoitados, publicamente.

Na Europa, nos séculos XVIII e XIX, foram criadas “(…) grandes

estruturas asilares alternativas à prisão: a criação do Hospital Geral (1656) e dos «dépots

de mendicité» (1764) (…)” (Bento e Barreto, 2002:39). Em Portugal, não ocorreu

a criação de tais respostas e foram as “(…) Misericórdias, as igrejas e os Mosteiros

(…) os principais instrumentos de assistência e caridade (…)” (Idem:39).

De acordo com alguns historiadores, Lisboa, no século XVIII, era local

de concentração de diferentes grupos de meliantes, como mendigos,

Page 134: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

133

desocupados, e deficientes, que dormiam nas ruas e deambulavam pela cidade.

Após o terramoto de 1755, e de acordo com Suzanne Chantal, estes, ou eram

aprisionados, ou eram sujeitos a trabalhos severos, e quem era apanhado a

roubar era enforcado.

No século XIX, “(…) a vadiagem era criminalizada tendo como base a

inexistência de domicílio certo e a capacidade para o trabalho (…)”(Idem:41).

A 12 de Agosto de 1905, é publicado o Regulamento Policial de Mendigos na

Cidade de Lisboa, que foi operacionalizado pela denominada polícia de inspecção

administrativa45. Este Regulamento previa que fossem presentes a tribunal os

mendigos que fossem válidos para o trabalho. Esta polícia de inspecção

administrativa teve um papel muito importante nas rusgas efectuadas pelas ruas

de Lisboa e pelo crescendo do número de prisões efectuadas.

Em 1912, é publicada a “Lei da Vadiagem”, vertendo “(…) as preocupações

regeneradoras do governo republicano em relação aos mendigos e vadios. A mendicidade é

autorizada, desde que seja apresentada uma licença própria para o efeito. E prevê a criação

de dois novos espaços para a correcção do vadio: a colónia penal agrícola e a casa correccional

de trabalho (…)”. (Bento e Barreto, 2002:42).

De acordo com o mesmo autor, nesta época, existiam, em Lisboa,

alguns asilos e albergues para indigentes: a Albergaria de Lisboa (1913), o

Albergue Nocturno (D. Luís I), o Asilo de Marvila, o Asilo de Nossa Senhora

do Amparo e o Asilo de D. Maria Pia (1867). Existiam, na cidade, outros tipos

de apoios/respostas, como, por exemplo, a Santa Casa da Misericórdia de

Lisboa, que integrou, através do Decreto 15.778, de 23 de Julho de 1928, as

Cozinhas Económicas, a Sopa dos Pobres e os balneários, pois existia uma grande

apreensão quanto à higiene destas pessoas.

45 Em Agosto de 1893, e de acordo com uma Lei de João Franco, foi aprovada uma reforma dos serviços policiais cujos efeitos se vão reflectir na estrutura policial até ao Estado Novo (Diário do Governo n.º 194, de 30 de Agosto). Esta polícia de inspecção administrativa, pretendia “tornar eficaz a fiscalização que a moral, a higiene e as conveniências públicas reclamam”.

Page 135: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

134

No Estado Novo, a mendicidade constituía um fenómeno social

característico dos centros urbanos, com consequências perniciosas para a

sociedade em geral, na medida em que se constatava que, cada vez mais,

convergiam para a cidade de Lisboa pessoas oriundas de meios rurais, com

intenção de explorar a caridade pública. Eram indivíduos aventureiros, vadios,

vagabundos e falsos mendigos que, atraídos por uma vida fácil nas maiores

cidades, e pretendendo passar desapercebidos, se misturavam com os

verdadeiros mendigos e adoptavam comportamentos que punham em causa a

própria segurança pública. Esta realidade social, com dimensão considerável,

levou o Estado a legislar46 no sentido de estabelecer normas e processos de

acção policial adequados à prevenção e repressão da mendicidade nas ruas de

todos os lugares e cidades do País.

Assim, e visando combater este fenómeno social, a 20 de Abril de 1940

(Decreto-Lei nº 30.389), são criados – em todas as cidades capitais de Distrito,

e para funcionarem na dependência directa dos Comandos Distritais da

Polícia de Segurança Pública (PSP) – os albergues distritais para mendigos.

Os indivíduos que se encontravam em situação de mendicidade,

desamparados ou suspeitos de exercerem a mendicidade eram, então, detidos

e temporariamente internados nos albergues distritais, até se averiguar e

definir a sua real situação, para que lhes fosse dado o seu adequado destino.

Durante a actuação policial, existia o cuidado de distinguir entre os que

mendigavam por reconhecido estado de pobreza e necessidade, e os que o

faziam por vício e, quando detectadas e identificadas situações de real pobreza

e falta de amparo ou qualquer meio de sustento, poderiam, estas pessoas,

permanecer durante algum tempo nesses albergues.

46 Através do Decreto-Lei 19.687, de 4 de Maio de 1931, vai estabelecer-se “a repressão da mendicidade nas ruas e lugares públicos”.

Page 136: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

135

Os que pudessem exercer alguma actividade eram então submetidos,

sob vigilância policial, a uma ocupação ou trabalho em obras públicas,

municipais ou paroquiais, ou em serviços domésticos particulares, sob tutela

dos comandos de polícia. Poderemos dizer que a PSP, nesta época, assumia

um papel assistencial e foi quase precursora dos actuais Serviços de Proximidade.

O Decreto-Lei nº 365 de 15 de Maio de 1976, admite modificações

significativas no entendimento e compreensão do fenómeno, atestando “(…)

que a mendicidade é consequência do nível de desenvolvimento sócio-económico e cultural de

uma comunidade sendo que na sua origem estão essencialmente causas de impossibilidade de

angariar meios de sustento (por motivos de idade, de deficiências físicas ou sensoriais, de

doença física ou mental e de desemprego) e outras de natureza psicológica (instabilidade e

desvio de comportamento (…)”.

Assim, de acordo com as leis actuais da República Portuguesa, quem

dorme nas ruas não é legalmente punido. E, tanto as autoridades policiais,

como outras instituições de carácter assistencial, só podem intervir junto das

pessoas sem-abrigo, desde que estes o aceitem.

Nas décadas de oitenta e noventa do século XX assiste-se a profundas

mudanças na sociedade portuguesa, nomeadamente no plano económico e

demográfico; estas alterações, resultam, principalmente, do êxodo rural e da

consequente explosão urbana. Face ao aumento demográfico registado nos

centros urbanos e, principalmente, na capital do País, para onde as pessoas

vinham em busca de uma vida melhor, emergiram grupos de pessoas que, não

conseguindo encontrar emprego, ou que, por outras razões, não podiam pagar

uma renda de casa/quarto; “caíram na rua”, tornando-se o fenómeno das

pessoas sem-abrigo, mais visível.

Page 137: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

136

4.2. Respostas existentes na cidade de Lisboa

Foi nos finais da década de 1990, coincidindo com a realização da

EXPO 98, que foram criados vários equipamentos para as pessoas sem-

abrigo, nomeadamente o Centro de Abrigo do Beato e o Centro de Abrigo de

Xabregas47.

Importa aqui referir que, para identificarmos as respostas

implementadas na cidade de Lisboa, não interessa, apenas, enumerar, os locais

de dormida (alojamento) mas, sobretudo, reconhecer os que existem ao nível

da satisfação das necessidades básicas, como a alimentação e higiene; do

atendimento psicossocial, dos serviços de saúde, e dos serviços de promoção

de trabalho/emprego e dos ateliês ocupacionais.

É com base no diagnóstico elaborado pelo “Grupo de Trabalho para a

Pessoa Sem-Abrigo”, que produziu o Plano da Cidade para a Pessoa Sem-Abrigo –

Lisboa (PCPSAL) em Abril de 2009, que vão ser apresentadas as respostas

existentes na cidade.

Este Grupo de Trabalho percepcionou “(…) a existência de respostas no

território (…) como de suporte e vocacionadas, as primeiras com uma finalidade de

intervenção que não se esgota na população sem abrigo, e que se estende ao vasto conjunto da

população em situação de exclusão social. Considerando-se como respostas vocacionadas as

que priorizam e privilegiam a pessoa sem abrigo como objecto de intervenção (…)”

(PCPSAL, 2009:31).

Na presente investigação só apresentaremos as Respostas Vocacionadas.

47 Numa reestruturação recente, efectuada pela Segurança Social, ao nível das respostas para as pessoas

sem-abrigo, o “Centro de Abrigo” passou a denominar-se – “Centro de Alojamento Temporário”.

Page 138: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

137

Atendimento/Acompanhamento SocialServiço de Emergência Social Santa Casa da Misericórdia de LisboaATENDIMENTO

Atelier Ocupacional Centro de Apoio Social de São

Bento

Atelier Ocupacional e Sala de ConvívioCentro de Apoio Social dos

AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa

Atelier OcupacionalAtelier OcupacionalAssociação Crescer na Maior

ATELIER

Refeitório/Cantina SocialCentro de Apoio Social dos

AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa

REFEITÓRIO CANTINA SOCIAL

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento para os

Sem Abrigo de LisboaVITAE - Associação de Solidariedade e

Desenvolvimento Internacional

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Apoio Social dos

Anjos

Centro de Alojamento Temporário de Emergência

Centro de Alojamento Temporário (Extensão)

Centro de Alojamento Temporário

Centro de Alojamento Temporário Mãe d'Água

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento

Temporário para Sem Abrigo -Xabregas

Centro Social do Exército de Salvação

Centro de Alojamento TemporárioAlbergue NocturnoAssociação dos Albergues Nocturnos de

Lisboa

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Abrigo da GraçaAMI - Fundação de Assistência Médica

Internacional

CENTRO DE ALOJAMENTO TEMPORÁRIO

Equipa de RuaEquipa de Rua - ETIRVITAE - Associação de Solidariedade e

Desenvolvimento Internacional

Equipa de RuaServiço de Emergência SocialSanta Casa da Misericórdia de Lisboa

Equipa de RuaEquipa de Rua Cidade SeguraNovos Rostos Novos Desafios

Equipa de Rua Equipa de Rua Projecto

SentidosMovimento ao Serviço da Vida

Equipa de Rua Para Pessoas Sem AbrigoNoite Saudável - Unidade

MóvelMédicos do Mundo (Associação)

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaLegião Boa Vontade

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaIgreja Evangélica do Sétimo Dia

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEspaço Aberto ao DiálogoComunidade Vida e Paz

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaComunidade de Sto Egidio

Equipa de Rua Equipa de Rua ERASACML/ Departamento Acção Social

Equipa de RuaEquipa de RuaCentro Social do Exército de Salvação

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de Rua CASACentro de Apoio Ao Sem Abrigo

Equipa de RuaEquipa de RuaAMI - Fundação de Assistência Médica

Internacional

EQUIPA DE RUA

Comunidade de Inserção Centro CAIS LisboaCAIS - Associação de Solidariedade Social

Comunidade de InserçãoCentro Porta Amiga das OlaiasAMI - Fundação de Assistência Médica

InternacionalCOMUNIDADE DE INSERÇÃO

Resposta EquipamentosEntidades

REDE VOCACIONADA

Atendimento/Acompanhamento SocialServiço de Emergência Social Santa Casa da Misericórdia de LisboaATENDIMENTO

Atelier Ocupacional Centro de Apoio Social de São

Bento

Atelier Ocupacional e Sala de ConvívioCentro de Apoio Social dos

AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa

Atelier OcupacionalAtelier OcupacionalAssociação Crescer na Maior

ATELIER

Refeitório/Cantina SocialCentro de Apoio Social dos

AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa

REFEITÓRIO CANTINA SOCIAL

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento para os

Sem Abrigo de LisboaVITAE - Associação de Solidariedade e

Desenvolvimento Internacional

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Apoio Social dos

Anjos

Centro de Alojamento Temporário de Emergência

Centro de Alojamento Temporário (Extensão)

Centro de Alojamento Temporário

Centro de Alojamento Temporário Mãe d'Água

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento

Temporário para Sem Abrigo -Xabregas

Centro Social do Exército de Salvação

Centro de Alojamento TemporárioAlbergue NocturnoAssociação dos Albergues Nocturnos de

Lisboa

Centro de Alojamento TemporárioCentro de Abrigo da GraçaAMI - Fundação de Assistência Médica

Internacional

CENTRO DE ALOJAMENTO TEMPORÁRIO

Equipa de RuaEquipa de Rua - ETIRVITAE - Associação de Solidariedade e

Desenvolvimento Internacional

Equipa de RuaServiço de Emergência SocialSanta Casa da Misericórdia de Lisboa

Equipa de RuaEquipa de Rua Cidade SeguraNovos Rostos Novos Desafios

Equipa de Rua Equipa de Rua Projecto

SentidosMovimento ao Serviço da Vida

Equipa de Rua Para Pessoas Sem AbrigoNoite Saudável - Unidade

MóvelMédicos do Mundo (Associação)

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaLegião Boa Vontade

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaIgreja Evangélica do Sétimo Dia

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEspaço Aberto ao DiálogoComunidade Vida e Paz

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaComunidade de Sto Egidio

Equipa de Rua Equipa de Rua ERASACML/ Departamento Acção Social

Equipa de RuaEquipa de RuaCentro Social do Exército de Salvação

Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de Rua CASACentro de Apoio Ao Sem Abrigo

Equipa de RuaEquipa de RuaAMI - Fundação de Assistência Médica

Internacional

EQUIPA DE RUA

Comunidade de Inserção Centro CAIS LisboaCAIS - Associação de Solidariedade Social

Comunidade de InserçãoCentro Porta Amiga das OlaiasAMI - Fundação de Assistência Médica

InternacionalCOMUNIDADE DE INSERÇÃO

Resposta EquipamentosEntidades

REDE VOCACIONADA

Fig. 21 – Respostas vocacionadas para a população sem-abrigo

Fonte: PCPSAL, 2009:33.

Page 139: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

138

Da análise da Figura 21 podemos concluir que existem, especialmente,

serviços destinados às necessidades básicas da população sem-abrigo –

alojamento e alimentação. Quanto ao alojamento, e perante o diagnóstico

apresentado no capítulo 3, parece-nos insuficiente o número de camas para o

número de pessoas contactadas pelas equipas de rua (1.187).

Comunidades de Inserção 2

Equipas de Rua 13

Centros de Alojamento Temporário

(Número total de camas – 494)

8

Refeitório/Cantina Social 1

Ateliês Ocupacionais 3

Atendimento 1

Tabela 5 – Número total de estruturas existentes na cidade de Lisboa

por cada categoria das respostas vocacionadas aos sem-abrigo

(Fonte: PCPSAL, 2009).

Das 13 equipas de rua identificadas (Tabela 5), 8 só fazem distribuição

alimentar à noite, tendo as restantes um objectivo mais técnico, isto é, de

motivar as pessoas sem-abrigo para projectos de vida alternativos.

De salientar que só existe, na cidade, uma resposta (da responsabilidade

da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) ao nível da categoria

Page 140: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

139

“Refeitório/Cantina Social”, que funciona 365 dias/ano. O mesmo acontece

ao nível do “Atendimento”, também da responsabilidade da Santa Casa da

Misericórdia de Lisboa.

Os Centros de Alojamento Temporário só dão dormida, jantar e

pequeno-almoço, tendo, os utentes, que abandonar as instalações logo após a

primeira refeição da manhã. Dada esta situação parece-nos manifestamente

insuficiente o número de ateliês ocupacionais existentes, pois trata-se de um

tipo de resposta importante para que as pessoas possam permanecer, num

local abrigado, durante o dia.

No entanto, podemos, desde já, concluir que o tipo de respostas

existentes é destinado, essencialmente, à satisfação das necessidades básicas,

sem horizonte para a sua inclusão efectiva na sociedade.

4.3. Estratégias e Políticas de Inclusão Social

4.3.1. Na Europa

De acordo com o “Relatório Conjunto sobre a Inclusão”, a inclusão

social é um processo que garante às pessoas em situação de pobreza e

exclusão social acederem às oportunidades e aos recursos necessários para

participar, plenamente, nas esferas económica, social, e cultural, e

beneficiarem de um nível de vida e bem-estar considerado normal na

sociedade em que vivem.

A constatação oficial da urgência de lutar contra a pobreza, na Europa,

verifica-se desde há mais de 35 anos. Com o Conselho de Paris, em 1972,

existiu a necessidade da elaborar um programa de acção social. Os

“Programas Europeus de Luta Contra a Pobreza” tiveram, aqui, a sua origem.

Page 141: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

140

O primeiro Programa Europeu data de 1975, na sequência da crise

petrolífera, em resultado da qual se agravaram os problemas socioeconómicos

da generalidade do espaço europeu, afectando, principalmente, as classes

sociais mais desfavorecidas. Esse programa foi, essencialmente, orientado para

a investigação, ou seja, para o conhecimento do fenómeno, pois as diferentes

sociedades dos países europeus estavam a ser confrontadas com o “não

desaparecimento” da pobreza e com o surgimento de novas problemáticas.

Pretendia-se, assim, clarificar os conceitos de “pobreza” e “privação”; foi a

primeira vez, em termos da Comunidade Europeia, que se admitiu um

conhecimento insuficiente sobre este problema. Em resumo, teve como

objectivos principais “(…) promover a inovação, estimular o debate público, favorecer a

estruturação de redes de agentes e desenvolver acções de informação associando reflexão e

prática (…)”48.

Assistiu-se a uma interrupção, de 1979 a 1985, ano em que emergiu o

segundo “Programa de Luta contra a Pobreza” (período de 1985 a 1989),

prevendo uma recolha de dados estatísticos sobre a pobreza nos países

membros, a troca de conhecimentos, a coordenação de acções e o

desenvolvimento de processos de investigação específica, permitindo, ainda, a

constituição de equipas transnacionais, para discussão e aplicação de novos

métodos na luta contra a pobreza49.

Em 1989 surge o “III Programa Europeu de Luta Contra a Pobreza

(1989-1994)” que tinha como principal objectivo ultrapassar a fase

exploratória que havia caracterizado os dois anteriores programas. Tinha três

grandes objectivos a atingir:

48 - Cf. REAP – Lutar Contra a Pobreza e a Exclusão na Europa – Guia de Acção e Descrição das Políticas Sociais, Instituto Piaget, Lisboa (1998:75).

49 Idem (1998:76)

Page 142: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

141

• Contribuir para o aprofundamento do conhecimento e da

sensibilização sobre os temas da pobreza e da exclusão social;

• Promover a experimentação de novas estratégias de combate à

pobreza, dando ênfase à inovação nos métodos, nas políticas

adoptadas e nas práticas-modelo, estimulando o debate sobre as

acções e os seus resultados;

• Fundamentar as recomendações de políticas destinadas aos sem-

abrigo aos níveis local/regional, nacional e supranacional.

Os Programas Europeus de Luta Contra a Pobreza finalizaram em 1994

e, até ao ano 2000, não existiu uma estratégia europeia conjunta, tendo, como

tal, cada Estado-Membro adoptado a sua.

Desde então, aferimos, assim, que o combate à pobreza e à exclusão

social, e a promoção da inclusão social têm constituído uma prioridade

estratégica da União Europeia (UE). Em Março de 2000, o Conselho Europeu

de Lisboa definiu para a Europa um novo objectivo estratégico expresso na

fórmula do “Triângulo de Lisboa”: Crescimento económico, mais e melhor

emprego, e maior coesão social. O principal vector político deste objectivo

estratégico assenta no “Método Aberto de Coordenação (MAC)”50 no

domínio da inclusão social. O MAC baseia-se num conjunto de objectivos

comuns que devem ser transpostos pelos Estados-Membros para a política

interna, através de Planos de Acção Nacionais para a Inclusão (PNAI). O

grande objectivo da UE é promover a erradicação da pobreza e da exclusão

social no seu território até 2010. No Conselho Europeu de Lisboa, os

Estados-Membros da UE aceitaram o desafio de lutar contra a pobreza e a

50 O MAC assenta em objectivos comuns e metas: Preparação dos PNAI, nos quais os Estados-Membros apresentam as políticas que se propõem a implementar; indicadores comuns; e Relatórios Conjuntos de avaliação dos Planos, elaborados pela Comissão Europeia.

Page 143: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

142

exclusão social, como um dos elementos centrais na modernização de uma

política social europeia.

Estes esforços da luta contra a pobreza e exclusão social têm de ser

apoiados e alargados para melhorar a posição dos que se encontram numa

situação de maior vulnerabilidade, como, por exemplo, os trabalhadores em

condição precária, os desempregados de longa-duração, as famílias

monoparentais, as crianças desfavorecidas, as minorias étnicas e as pessoas

doentes e/ou com deficiência. Uma vez que as pessoas desfavorecidas têm

mais dificuldades em entrar ou permanecer no mercado de trabalho, os

Estados-Membros devem apoiar a sua integração, a fim de prevenir e

combater a exclusão social, bem como promover a educação, encorajar a

criação de empregos e assegurar a sustentabilidade dos sistemas de protecção

social.

O “Relatório Conjunto sobre Protecção Social e Inclusão Social”,

apresentado em 2005 pela Comissão Europeia, revela que os Estados-

Membros estão a intensificar os seus esforços para combater a pobreza e

garantir que os regimes de pensões permaneçam capazes de assegurar

rendimentos adequados aos pensionistas. Estão, igualmente, a centrar-se em

questões fundamentais, tais como a eliminação da pobreza infantil, a melhoria

das condições de habitação e a promoção das qualificações daqueles que

abandonam precocemente o sistema escolar.

De salientar que a Comissão das Comunidades Europeias, já em 2003,

reconheceu o fenómeno dos sem-abrigo como uma questão complexa, que

não diz respeito, exclusivamente, a uma ausência de habitação. Muitos dos

sem-abrigo debatem-se com múltiplos problemas – doença mental e física,

desemprego, etc. – que os arrastam para uma espiral de pobreza. Por isso, diz

ainda a Comissão “é essencial não enfocar apenas as pessoas que vivem na rua, mas

considerar o fenómeno dos sem-abrigo numa perspectiva mais abrangente”.

Page 144: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

143

O Conselho Europeu da Primavera de 2006, com o desenvolvimento

da Estratégia de Lisboa, anunciou um conjunto de novos objectivos comuns no

que diz respeito à protecção e inclusão social, que abrangem três vertentes do

MAC: inclusão social; pensões; cuidados de saúde e cuidados continuados.

Estabelecem a base do “Relatório Nacional de Estratégia para a Protecção

Social e a Inclusão Social”, do qual o Plano Nacional de Acção para a Inclusão

(PNAI) faz parte integrante. Configura uma estratégia global para a inclusão

social, onde são identificados os principais eixos de intervenção e políticas

sociais, e as medidas a implementar, num determinado horizonte temporal.

4.3.2. Em Portugal

O Governo português, atento ao fenómeno dos sem-abrigo e às

recomendações emanadas pela EU, tem legislado neste sentido. Desta forma,

têm-se sucedido as várias gerações de Planos Nacionais de Acção para a

Inclusão, com duração bianual, dos quais são exemplo os PNAI de 2001-

2003, 2006-2008 e 2008-2010.

A figura do PNAI tem-se constituído, em Portugal, como um

instrumento de coordenação estratégica e operacional das políticas de inclusão

social, congregando as acções a diferentes níveis, e utilizando um grande

conjunto de medidas. É envolvido um conjunto de Ministérios, que cooperam

no combate à pobreza e exclusão social, e deles depende a criação de planos

sectoriais que concorrem para uma mesma estratégia nacional. São disto

exemplo, entre outros, o Plano Estratégico para a Habitação, o Plano para a

Integração dos Imigrantes, Plano Nacional de Emprego, o Plano Nacional de

Saúde, o Plano Nacional para a Droga e Toxicodependência e o Plano

Nacional de Saúde Mental.

O PNAI de 2001-2003 assumiu como grandes desafios:

• “Erradicar a pobreza infantil até 2010;

Page 145: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

144

• Reduzir a taxa de pobreza, que era de 23% em 1995, para 17% até

2005, tornando-se igual à média europeia;

• Reduzir em 50% a pobreza absoluta até 2005;

• Lançar nos próximos dois anos 50 “Contratos de Desenvolvimento Social

Urbano”, com vista à criação de cidades inclusivas, baseados na convergência

dos meios e dos instrumentos necessários em comunidades territoriais

urbanas, e geridos de forma integrada a partir dos contributos dos diversos

actores públicos e privados, nacionais, regionais e locais;

• Lançar o Programa “Espaço Rural e Desenvolvimento Social”, integrando

os diversos instrumentos e iniciativas de desenvolvimento local integrado de

comunidades rurais;

• Assegurar que todas as pessoas em situação de exclusão social serão

individualmente abordadas pelos serviços locais de acção social, numa

perspectiva de aproximação activa, com vista à assinatura no prazo de um

ano, de um contrato de inserção social adequado à sua situação concreta e

envolvendo, conforme os casos, medidas na área da educação e formação,

emprego, habitação, saúde, protecção social, rendimento e acesso a serviços;

• Reduzir para três meses o prazo referido anteriormente, no caso das crianças

e jovens em risco, envolvendo sempre medidas específicas para o regresso à

escola ou à formação inicial;

• Lançar uma linha telefónica nacional de emergência51, devidamente

articulada com centros de emergência social distritais de funcionamento

contínuo e ininterrupto, que assegurem o encaminhamento de qualquer

cidadão em situação de emergência – nomeadamente pessoas sem-abrigo,

51 144 é a Linha de Emergência Social, da Segurança Social. Destina-se a dar resposta imediata a situações de risco e de exclusão, tais como crianças, idosos abandonados, mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas sem-abrigo. A Linha é atendida por psicólogos, juristas e técnicos de serviços sociais que, depois, accionam as equipas distritais, dando o apoio necessário, e um local onde as pessoas possam ficar.

Page 146: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

145

pessoas vítimas de violência doméstica, crianças em risco – para serviços

prestadores de cuidados primários e acolhimento” (PNAI, 2001-2003:10).

Neste Plano, dá-se conta do despontar de “novas categorias sociais de

excluídos”, onde se incluem as crianças em risco, os reclusos e ex-reclusos, os

toxicodependentes e as pessoas sem-abrigo. Fala-se, analogamente, dos

territórios onde estas problemáticas se concentram, especialmente nas zonas

urbanas, onde a “(…) habitação degradada, a marginalidade ou clandestinidade de

alguns dos residentes, a quase ausência ou dificuldade de acesso a infra-estruturas, serviços e

equipamentos básicos, o frequente funcionamento das instituições em níveis de qualidade

mais baixos, entre outras carências, marcam a vida nestas comunidades onde a pobreza

tende a perdurar e a transmitir-se de geração em geração (…)” (PNAI 2001-2003:6).

Existiu, assim, uma preocupação em “territorializar” as intervenções e

diferenciá-las quanto ao binómio rural/urbano. Foi nesta época que surgiram

medidas e programas com esta preocupação, dos quais são exemplo, entre

outros, a criação dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP)

e dos Planos Especiais de Realojamento – PER52, o qual previa a erradicação

total das barracas, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.

Em Lisboa, foram demolidos vários núcleos de barracas, que haviam

surgido, ao longo dos anos, por toda a cidade, e os bairros provisórios do

Estado Novo (do Relógio, da Boavista, da Quinta da Calçada, da Horta Nova,

das Furnas, do Padre Cruz), aos quais se aludiu o, então, Vereador do Pelouro

da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa – Vasco Franco, como “ a marca

de um regime que a democracia demorou a erradicar”.

52

Foi criado através do Decreto-Lei nº 163/93, de 7 de Maio, tendo, como objectivo, a concessão de

apoios financeiros às Câmaras Municipais, para construção, aquisição, ou arrendamento de fogos

destinados ao realojamento de agregados familiares residentes em barracas e habitações similares.

Page 147: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

146

Fig. 23 – Bairros Sociais, existentes na cidade de Lisboa (Fonte: GEBALIS)

Para termos uma noção do número de barracas existentes, com más

condições de habitabilidade, devido às quais foi necessário realojar as famílias,

foram construídos, no âmbito do PER Lisboa (Fig.23), 23.398 fogos,

distribuídos por 2.117 lotes.

Intensificou-se, assim, em Lisboa, o ritmo de crescimento do parque

habitacional municipal, que engloba 69 Bairros Municipais, com uma

população total de cerca de 81.900 moradores.

Estas políticas e programas, na área social, permitiram criar sinergias

relevantes nas diferentes acções preconizadas no Plano, privilegiando uma

lógica de Desenvolvimento Local e uma intervenção a um nível mais micro,

relevando que só desta forma se podem resolver os problemas.

O PNAI 2006-2008 apresenta uma análise da evolução da pobreza e a

identificação dos grupos que a ela se apresentam mais vulneráveis, tais como

as crianças, mulheres, famílias numerosas, pessoas idosas, entre outros. Traça,

Page 148: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

147

também, um retrato nacional do panorama sócio-económico, do mercado de

trabalho, da educação e formação, e, também, da saúde.

De acordo com uma nova orientação da UE, foi assumido um número

limitado de prioridades políticas:

• “Combater a pobreza das crianças e dos idosos, através de medidas que

assegurem os seus direitos básicos de cidadania;

• Corrigir as desvantagens na educação e formação/qualificação;

• Ultrapassar as discriminações, reforçando a integração das pessoas com

deficiência e dos imigrantes (…)” (PNAI, 2006-2008:9).

Foi com base nestas prioridades que se organizaram as medidas

identificadas no âmbito da estratégia de inclusão, tendo como intuito garantir,

aos cidadãos, o acesso a bens e serviços, recursos e direitos. Com a finalidade

de promover a igualdade de oportunidades e garantir a participação numa

sociedade coesa socialmente, os princípios pelo qual se rege este Programa são

os seguintes:

• “A consagração de direitos básicos de cidadania, que postula o direito ao

trabalho e a apoios básicos com vista à inserção, mas também ao exercício

dos direitos cívicos, à cultura, à educação, à habitação condigna e à

participação na vida social e cultural;

• A responsabilização e a mobilização do conjunto da sociedade e de cada

pessoa no esforço de erradicação das situações de pobreza e exclusão, com

particular enfoque na contratualização das respostas de protecção social;

• A integração e multidimensionalidade entendidas como convergência das

medidas económicas, sociais e ambientais com vista ao desenvolvimento e

promoção das comunidades locais, apelando à convergência de sinergias e à

congregação dos recursos;

Page 149: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

148

• A combinação adequada entre a universalidade e a diferenciação positiva, ou

seja, a garantia de que, no cumprimento dos objectivos de inclusão social,

todos os cidadãos e cidadãs são efectivamente tratados como iguais na base da

diversidade das suas situações e necessidades e em relação com os recursos e as

oportunidades;

• A territorialização das intervenções como aproximação e adequação às

especificidades locais, aí criando dinâmicas de potenciação dos recursos e das

competências;

• O reconhecimento da importância da igualdade de oportunidades e da

perspectiva de género, como forma de garantia do exercício dos direitos tanto

na esfera pública como na esfera privada (…)” (PNAI, 2006-2008:45-

46).

Com estes princípios orientadores, o Governo tenta envolver e

mobilizar a sociedade portuguesa para a erradicação da pobreza, promover a

discriminação positiva e dar uma especial atenção às particularidades

territoriais, actuando sobre as causas dos problemas e não somente sobre os

sinais exteriores.

No âmbito das medidas de protecção social queremos aqui salientar o

Rendimento Social de Inserção (RSI), instituído em 2003. Consiste numa

prestação pecuniária, incluída no subsistema de solidariedade, e num

programa de inserção social, que os beneficiários são obrigados a subscrever.

Visa assegurar, às pessoas e respectivos agregados familiares, recursos que

contribuam para a satisfação das suas necessidades mínimas e que favoreçam a

sua progressiva inserção social, laboral e comunitária. O seu valor/mês é de

187,18€, variando consoante a dimensão do agregado familiar, e/ou

determinadas situações, como deficiência, doença crónica, pessoas

dependentes, entre outras. Embora não se destine, exclusivamente, à

Page 150: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

149

população sem-abrigo, este grupo de pessoas são também beneficiários desta

medida.

Em Março de 2008, a UE lançou um guia para a preparação dos

Relatórios Nacionais de Protecção Social e Inclusão Social 2008-2011. Neste

guia é referido que o primeiro ciclo do MAC está quase a ser concluído.

Assim, o Comité de Protecção Social e a Comissão Europeia propõem que se

mantenham os Objectivos Comuns adoptados no Conselho Europeu de 2006

prosseguindo um ciclo de três anos “(…) alinhado com a Estratégia para o

Crescimento e Emprego (…)”.

O guia recomenda que os Relatórios Nacionais de Protecção Social e

Inclusão Social devem ser constituídos por quatro capítulos: o primeiro

abordará a caracterização da situação social de cada Estado-Membro, e

terminará com a apresentação da estratégia a adoptar pelo País, neste novo

ciclo. Os capítulos 2, 3, e 4 devem identificar os progressos em relação à

Estratégia Nacional para a Protecção Social e Inclusão Social (ENPSIS) e os

desafios identificados no Relatório Conjunto de 2007; o desenvolvimento das

prioridades identificadas no Relatório de 2006-2008; e os principais desafios,

objectivos prioritários, metas e recomendações de cada país.

Deste modo, os objectivos políticos delineados para a Inclusão Social,

no período 2008-2010, estão organizados em três áreas:

• “Combater a pobreza das crianças e dos idosos, através de medidas que

assegurem os seus direitos básicos de cidadania;

• Corrigir as desvantagens na educação e formação/qualificação;

• Ultrapassar as discriminações, reforçando a integração de grupos específicos,

nomeadamente: pessoas com deficiências e incapacidades, imigrantes e

minorias étnicas” (ENPSIS, 2008:30).

Page 151: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

150

Neste documento, à semelhança dos anteriores, continuam a ser

privilegiados os idosos e as crianças, com o objectivo de combater a pobreza

verificada nestes grupos específicos. Não será demais salientar que, na senda

da Carta Social Europeia, o combate à pobreza é hoje um direito básico dos

cidadãos, e a sua não erradicação faz perigar a nossa vivência em democracia.

Portugal, de acordo com um relatório sobre a Situação Social na União

Europeia (2007), é um dos países, a par da Lituânia, onde existem e persistem

as maiores desigualdades sociais: o nosso gap entre ricos e pobres continua a

ser o maior na UE. De acordo com este relatório, em Portugal, esse fosso

situa-se nos 6,9%, enquanto a média europeia se encontra nos 4,9%.

De salientar que, em toda a geração dos PNAI, o que está, actualmente,

em curso (2008-2010) é aquele no qual aparecem, pela primeira vez, medidas e

acções concretas para a população sem-abrigo. Aliás, é referido no documento

que a “(…) crescente complexidade da exclusão social tem acentuado a visibilidade do

problema da população Sem-Abrigo, desafiando respostas que se ajustem ao perfil de défices

evidenciados (…)” (ENPSIS, 2008:29). É neste sentido que o governo entende

que se deverão concretizar medidas conducentes a uma estratégia para “(…) o

seu enquadramento e para uma intervenção reforçada (…).” (Idem:29).

Assim, o governo pretende que 80% das pessoas que sejam

identificadas como sem-abrigo estejam inseridas em Planos Individuais de

Reinserção Social até ao final de 2010, e que tenham um acompanhamento

personalizado.

De acordo com o PNAI, existe um grande desconhecimento quanto ao

número de pessoas sem-abrigo que existem em Portugal, salientando-se o

facto de que se sabe que são maioritariamente homens, em idade activa (30-49

anos), solteiros ou divorciados, de nacionalidade portuguesa, com a

escolaridade básica e concentrados, sobretudo, no Porto e em Lisboa.

Page 152: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

151

Assim, uma das medidas a implementar até ao final de 2009 é um

“sistema de informação e monitorização do fenómeno”. A garantia dada pelo

governo é de disponibilizar esta base de dados, na Internet, e garantir a

utilização do sistema de informação e monitorização por todas as entidades

públicas e privadas, a nível nacional, até ao final de 2010.

No início deste ponto relativo às políticas e estratégias referentes à

promoção da inclusão social no caso português, referimos que, nos PNAI,

estão envolvidos um conjunto de Ministérios e que deles dependem vários

Planos Sectoriais. Teremos que falar especificamente num deles – o Plano

Nacional de Saúde Mental 2007-2016 (PNSM), aprovado através da Resolução

do Conselho de Ministros nº 49/2008.

No capítulo III foram identificadas algumas problemáticas de saúde na

população sem-abrigo nacional, ressaltando-se a “doença mental” com 11,4%

de casos. Trata-se, efectivamente, de um grupo em que a prevalência de

doenças mentais é elevada e “(…) requer programas especialmente desenhados para as

suas necessidades específicas. Além de apresentarem uma morbilidade geral muito mais alta

do que a população em geral, deparam-se, em regra, com inúmeras barreiras no acesso aos

cuidados prestados pelos serviços de saúde disponíveis (…)” (Resolução do Conselho de

Ministros nº 49/2008:11). Para o efeito, o Plano Nacional de Saúde Mental

propõe-se desenvolver “(…) um projecto piloto para tratamento de Pessoas Sem

Abrigo(…)” (PNSM, 2007-2016:53).

Neste Plano está prevista a desinstitucionalização dos doentes mentais

graves (PNSM, 2007-2016:20), de forma a estes serem “devolvidos” à

comunidade e à família. Ora, se não se criarem serviços e programas para o

efeito, poderá acontecer um processo idêntico ao que ocorreu em Itália, no

Reino Unido ou, mesmo, nos Estados Unidos da América. Nestes países, a

desinstitucionalização deu origem a um processo de transinstitucionalização, ou

seja, as pessoas que foram retiradas de instituições psiquiátricas não

Page 153: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

152

conseguiram ser integradas pelas comunidades e acabaram por ser excluídas

da sociedade, tornando-se, por exemplo, em sem-abrigo.

4.4. Estratégias para as Pessoas Sem-Abrigo

4.4.1. Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo

– 2009-2015

Conforme o apresentado no ponto anterior, as estratégias e políticas de

inclusão social, não têm presentes medidas específicas para a população sem-

abrigo, à excepção das incluídas (e mencionadas acima) no PNAI 2008-2010.

Aliás, poderemos questionar se esta intenção é sequer correcta.

Alguns peritos entendem que deverão existir estratégias exclusivamente

dirigidas aos sem-abrigo, pois trata-se de uma população com algumas

especificidades.

Para Marybeth Shinn (2007), as políticas sociais, que promovem e

reduzem as desigualdades sociais e providenciam rendimentos e outros apoios

para aqueles que estão na base da pirâmide da distribuição dos rendimentos,

estão associadas, normalmente, a baixos níveis de pessoas sem-abrigo, no

mundo desenvolvido. Refere ainda que “(…) the allocation of subsidies, patterns of

social exclusion, and individual levels of economic, social, and human capital interact to

influence who becomes homeless. Interventions to reduce homelessness at one level (e.g., social

policy) can counteract vulnerabilities at a different level (e.g., individual risk factors) (…)”

(Shinn, 2007:657).

Certos autores mencionam o facto das características individuais dos

indivíduos interagirem com as políticas e padrões de exclusão social, e

Page 154: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

153

influenciarem “quem se torna sem-abrigo”. É da máxima importância

conhecer as causas, pois só com base neste saber poderemos orientar as

políticas e as teorias de intervenção.

Existe uma distinção entre políticas sociais universais e as que são

dirigidas especificamente aos sem-abrigo. As primeiras incluem “(…) tax policy

as well as social welfare and housing programs that attempt to combat poverty and social

exclusion (…)” (Shinn, 2007:658). Em Portugal, por exemplo, as transferências

sociais, para um determinado segmento da população, são um instrumento

importante para o orçamento e para a vida das pessoas pobres. No entanto,

para Shinn “(…) social policies can shape the composition as well as the numbers of

homeless people in each country (...) and homelessness is not simply a surprising short-term

anomaly, but an entrenched modern phenomenon in developed nations, which will require

concerted efforts to alleviate (...)”. (Idem: 662-664).

Assim, é importante atentar nos seguintes aspectos de contexto:

• Na 17.ª reunião dos Ministros dos países da UE com a “pasta”

da Habitação, realizada em Novembro de 2008, foi elaborada

uma Recomendação para que as políticas associadas ao

fenómeno dos sem-abrigo sejam consideradas no âmbito do

Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza e a Exclusão Social –

2010;

• Os objectivos definidos nos PNAI, quanto ao risco de exclusão

de alguns grupos mais vulneráveis, nomeadamente as pessoas

sem-abrigo, têm configurado uma grande preocupação do

governo português;

• Existe um insuficiente conhecimento sobre o fenómeno em

Portugal;

• É necessário envolver todos os stakeholders na identificação dos

problemas e causas, e na sua solução; e

Page 155: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

154

• Subsiste a necessidade de rentabilizar e potenciar os recursos

existentes.

Face ao anterior cenário, o governo português entendeu criar um “(...)

Grupo Interinstitucional, cuja missão foi a de desenvolver uma Estratégia Nacional53,

(...) com vista, não só a cumprir as directrizes europeias nesta matéria, mas também a

implementar um conjunto de medidas que permita criar condições para que sejam

despistadas e acompanhadas as situações de risco prevenindo a perda de habitação, e

garantindo que ninguém tenha de permanecer sem alojamento condigno” (ENIPSA:5).

Este Grupo foi constituído em Maio de 2007 e impendeu sobre o

Instituto de Segurança Social, IP (ISS, IP) a sua coordenação. É constituído

por um conjunto de instituições da esfera pública e privada54.

A Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo traça

um conjunto de orientações gerais e comprometimentos mais específicos das

diferentes entidades públicas e privadas, e é baseada no respeito pelos direitos

individuais e de cidadania.

Preconiza que a respectiva implementação deve ser ao nível local,

através dos Conselhos Locais de Acção Local (Rede Social55), “(…) com base em

planos específicos e adequados às necessidades locais identificadas (…)” (ENIPSA:6).

53 Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo – 2009-2015 (ENIPSA).

54 Entidades representadas no grupo: Públicas: ACIDI, IP; ACS; ANMP; CIG; DGS; DGSS; DGRS; DGSP; GNR; IDT; IEFP; IHRU; ISS, IP; LNEC; PSP; ENSP; Privadas: CNIS; REAPN; SCML; FNERDM; U. MISERICÓRDIAS; CESIS, correspondente do Observatório da FEANTSA.

55 A Rede Social foi criada através da Resolução do Conselho de Ministros nº 197/97, de 18 de Novembro. É um programa que promove o desenvolvimento social local e que pretende constituir redes de apoio social, envolvendo toda a comunidade, de forma a resolver, eficaz e eficientemente, os problemas sociais de cada localidade. Pretende-se criar parcerias efectivas entre várias entidades, nomeadamente, autarquias, entidades públicas e privadas sem fins lucrativos, de modo a criar novas formas de conjugação de esforços, garantindo uma maior eficácia das respostas sociais.

Page 156: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

155

Dado que esta Estratégia é dirigida a um grupo-alvo bem definido,

existiu a necessidade de consensualizar um conceito que, após a aprovação da

Estratégia (14/03/2009), passou a vigorar, em Portugal, no âmbito da

implementação da estratégia e que é o seguinte:

“Considera-se pessoa sem-abrigo aquela que, independentemente da sua nacionalidade,

idade, sexo, condição sócio-económica e condição de saúde física e mental, se encontre:

• Sem tecto – vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com

paradeiro em local precário;

• Sem casa – encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.”

Este conceito foi baseado na tipologia (ETHOS56), proposta pela

FEANTSA, também utilizada noutros países da Europa. A Estratégia

considera que este “(…) conceito deve ser utilizado a nível nacional por todas as

entidades públicas e privadas para efeitos de contabilização e caracterização das pessoas sem-

abrigo e como base para a apresentação de medidas inseridas nos planos de desenvolvimento

social das redes sociais concelhias” (ENIPSA:16).

A Estratégia Nacional actua ao nível de três grandes áreas específicas: i)

prevenção (abrange todos os grupos de risco, ii) emergência/intervenção

(actuação sobre a população sem-abrigo), iii) intervenção/integração

(acompanhamento e integração da população sem-abrigo). Visa criar

condições para que ninguém tenha de ficar, ou voltar a estar, numa situação

de sem-abrigo, nem de permanecer mais de 24 horas na rua. Também aponta

para que ninguém tenha de permanecer em alojamento temporário

56 European Typology of Homelessness (Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional). É entendimento da FEANTSA que a definição desta tipologia é um meio de promover a compreensão e avaliação da situação de sem-abrigo na Europa bem como de promover uma linguagem comum. Esta definição é construída em torno do conceito de uma casa. “A FEANTSA considera que existem três elementos que constituem uma casa, e na falta dos quais se esboça a situação sem-abrigo. Ter uma casa pode ser entendido como: ter uma habitação adequada sobre a qual a pessoa e família podem exercer uma posse exclusiva (elemento físico); poder manter a privacidade, conseguir relacionar-se (elemento social) e ter um estatuto legal para ocupação (elemento legal). Isto conduz a quatro principais categorias conceptuais sobre pessoas sem-abrigo: sem tecto, sem casa, em habitação insegura e habitação inadequada” (SPINNEWIJN, 2005: 22-23).

Page 157: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

156

indefinidamente e que esteja garantido o acesso de todos os direitos sociais a

todos os cidadãos, bem como o exercício pleno de cidadania.

Está organizada em torno de dois eixos e com os seguintes objectivos

estratégicos:

• Eixo 1: Conhecimento do fenómeno, informação, sensibilização

e educação

1.1 Promover a utilização de um conceito único de “pessoa sem-

abrigo”, a nível nacional;

1.2 Garantir a monitorização do fenómeno, com vista à

adequação das respostas às reais necessidades do problema,

através de um Sistema de Informação e Monitorização (SIM);

1.3 Assegurar que os Diagnósticos e os Planos de

Desenvolvimento Social das redes sociais incluem indicadores

relativos ao fenómeno sem-abrigo;

1.4 Garantir a actualização permanente do conhecimento e a luta

contra a discriminação;

1.5 Garantir acessibilidade e disponibilização de informação

permanentemente actualizada sobre o tema e os recursos

existentes.

• Eixo 2: Qualificação da Informação

2.1 Promover a qualidade técnica da intervenção;

2.2 Garantir eficácia e eficiência na intervenção;

2.3 Garantir a qualidade das respostas, dos serviços prestados e

da logística operacional dos equipamentos fixos ou móveis

que prestam apoio às pessoas sem-abrigo;

Page 158: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

157

2.4 Assegurar a existência de respostas que garantam que

ninguém é desinstitucionalizado sem que tenham sido

accionadas todas as medidas necessárias para lhe garantir um

lugar adequado para viver, bem como os apoios necessários,

sempre que se justifique;

2.5 Assegurar que ninguém tenha de permanecer na rua por mais

de 24 horas;

2.6 Assegurar o apoio técnico à saída de um alojamento

temporário durante o tempo necessário;

2.7 Assegurar a existência de condições que garantam a

promoção da autonomia, através da mobilização e

contratualização de todos os recursos disponíveis, de acordo

com o diagnóstico e as necessidades identificadas: a)

Habitação – criar condições de alojamento disponibilizando

habitações de propriedade pública e privada para

arrendamento directo ou mediado; b) Emprego –

disponibilizar soluções de formação profissional e de

emprego adequadas; c) Protecção Social – assegurar o acesso

a todas as medidas de protecção adequadas; d) Saúde –

assegurar a acessibilidade aos cuidados de saúde.

Como temos vindo a afirmar ao longo dos capítulos anteriores, o

fenómeno da população de rua está pouco estudado em Portugal. Assim, o

Eixo 1 preceitua um conjunto de medidas que apontam para o conhecimento

do fenómeno a diferentes níveis, com o objectivo de comparar dados,

permutar informação a nível local e nacional e, sobretudo, “conhecer para

melhor agir”, ou seja, para que se possa planificar a intervenção e fundamentar

a tomada de decisão dos políticos.

Page 159: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

158

Outras medidas igualmente importantes estão relacionadas com a

informação e sensibilização e com a “educação da comunidade em geral para o

fenómeno sem-abrigo e outras que contribuem para a mudança das representações sociais

discriminatórias associadas a este problemas (…)” (ENIPSA:17).

O Eixo 2 preconiza um grupo de medidas dirigidas, tanto à promoção

da qualidade técnica da intervenção, através de acções de formação para os

agentes que intervêm com esta população; como a eficiência da intervenção ao

nível da qualidade/diversidade das respostas prestadas aos utentes. Surge a

figura do “gestor de caso”, na sequência de um diagnóstico, “(…) o qual ficará

responsável por acompanhar todo o processo daí em diante (…)” (ENIPSA:23).

Ainda neste Eixo, é de salientar o objectivo estratégico 2.4, onde está

prevista a “importação” do modelo Housing First, de Nova Iorque, através da

realização de um projecto-piloto, para 50 pessoas sem-abrigo com doença

mental. A grande missão desta iniciativa será apoiar as pessoas sem-abrigo

com doença mental, no processo de procura, escolha, obtenção e manutenção

de uma habitação estável e integrada na comunidade. Os participantes neste

projecto contribuem com 30% do seu rendimento mensal, para pagamento de

renda. O acompanhamento aos residentes é efectuado por uma equipa (sendo

destacado um técnico por cada 10 participantes) e realizado no contexto

residencial e comunitário, com um mínimo de seis visitas domiciliárias, por

mês e por participante. O suporte aos residentes está assegurado 24h/dia e

365 dias/ano.

Os outros serviços disponibilizados, no âmbito deste projecto-piloto,

são o emprego e a educação apoiados, a criação de um centro de empowerment e

ajuda mútua, várias actividades desportivas e de lazer e o “apoio na crise”.

De salientar que este Projecto-Piloto vai ter como consultor externo o

Prof. Doutor Sam Tsemberis, da “Pathways To Housing”. A sua avaliação e

Page 160: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

159

monitorização estarão a cargo da Prof. Doutora Marybeth Shinn, da

Vanderbilt University.

Ao nível residencial está previsto outro tipo de soluções,

nomeadamente residências colectivas para grupos populacionais com

necessidades habitacionais específicas e temporárias.

4.4.2. Plano Cidade para a Pessoa Sem Abrigo – Lisboa

No âmbito da Rede Social de Lisboa, foi constituído um Grupo de

Trabalho, em 2007, representado por treze instituições57 que trabalham na

área dos sem-abrigo e que teve por missão delinear um modelo de intervenção

para a cidade de Lisboa, que contemple tipologias de respostas, formas de

articulação e estratégias de intervenção integrada, dirigidas à pessoa sem-

abrigo e implementar medidas e programas associados à operacionalização do

plano, ou seja, contribuir de forma articulada para que a pessoa sem-abrigo

reúna condições/competências para a sua inserção/autonomização a nível

social (PCPSA, 2009).

Para a caracterização da população de rua da cidade de Lisboa,

utilizaram-se os dados da monitorização efectuada pelas Equipas de Rua,

durante o ano de 2007. Para que este Plano fosse participado por todos os

agentes que trabalham directa ou indirectamente com esta população,

realizou-se um Fórum, onde foram recolhidas contribuições muito valiosas

para a elaboração deste Plano.

O Plano Cidade de Lisboa para a Pessoa Sem Abrigo (PCPSA),

aprovado no dia 4 de Maio do corrente ano (2009), pretende centrar e integrar

57 AMI – Fundação de Assistência Médica Internacional; Associação Ares do Pinhal; Associação Novos Rostos…Novos Desafios; CAIS – Associação de Solidariedade Social; CIC – Associação para a Cooperação, Intercâmbio e Cultura; Movimento ao Serviço da Vida/Grupo de Reflexão; Médicos do Mundo (Associação); Alto Comissariado para a Saúde Mental; Câmara Municipal de Lisboa; Comando Metropolitano da Polícia de Segurança Pública de Lisboa; Instituto de Segurança Social IP/Centro Distrital de Lisboa; Santa Casa da Misericórdia de Lisboa; e o Grupo Técnico da Rede Social de Lisboa.

Page 161: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

160

a intervenção na pessoa sem-abrigo. Assenta em três eixos de intervenção:

Eixo 1 – Potenciar a Rede de Equipamentos e Serviços de Apoio à pessoa

sem-abrigo; Eixo 2 – Implementar um Modelo de Intervenção Integrada na

cidade de Lisboa; e Eixo 3 – Melhorar e Qualificar a Intervenção.

O Eixo 1 pretende a Gestão Integrada dos Recursos/Respostas de Intervenção

na cidade de Lisboa, resumindo um “(…) conjunto de acções que visa a articulação

intersectorial, a tipificação e orientação das respostas para o bem estar da população e a

elaboração de um Plano de respostas específicas (…)” (PCPSA:41). Convém salientar

que existiu uma grande dificuldade, por parte deste Grupo, em definir

estruturas/respostas para a cidade, pois chegou-se à conclusão que não se

conhecia, verdadeiramente, a população sem-abrigo da cidade de Lisboa e as

respectivas carências em termos de respostas. Assim, existe a necessidade de,

além de se conhecer aprofundadamente o fenómeno, também

conhecer/reorganizar as respostas existentes.

Tem como principais Acções:

1 - Avaliação das respostas existentes e proposta de desenvolvimento

de novos modelos;

2 – Construção de um Plano de respostas de emergência,

acompanhamento e inserção;

3 – Optimização das “Equipas de Rua” na sinalização e no

acompanhamento das pessoas sem-abrigo;

4 – Rentabilização das instituições que distribuem géneros alimentares;

5 – Avaliação das condições para a reabertura dos balneários públicos;

6 – Adaptação dos sistemas de georreferenciação à pessoa sem-abrigo –

incluindo a cartografia dos equipamentos da cidade de Lisboa;

7 – Identificação das zonas de maior concentração de pessoas sem-

abrigo para a localização dos Núcleos de Apoio Local;

Page 162: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

161

8 – Implementação de um Centro de Emergência com uma estrutura de

acolhimento;

9- Criar respostas ao nível de residências de transição com

acompanhamento técnico adequado (numa lógica de Housing First).

No Eixo 2, procura-se implementar “(…) um modelo de intervenção

integrada, de carácter pró-activo e preventivo, para a pessoa sem-abrigo na cidade de Lisboa

através de um outro conjunto de acções, que visa a definição de etapas e circuitos da rede

integrada e a garantia duma intervenção coordenada e atempada, centrada na pessoa sem

abrigo, de maneira a convergir e suportar as necessidades da população.

É neste eixo que estão previstas acções no sentido de corresponder a algumas das

sugestões referidas com maior insistência no Fórum (e cuja pertinência nos parece ter sido

entretanto, confirmada nas reflexões e partilhas de opiniões entre os técnicos)”

(PCPSA:41).

Em seguida, enunciam-se algumas Acções previstas neste Eixo:

1 – Definição de um Modelo de Intervenção integrado para a cidade;

2 – Criação de um manual de procedimentos de estratégias de intervenção face aos factores e situações de risco;

3 – Definição do modelo/papel funcional do gestor de processo/caso;

4 – Guião de princípios e definição de critérios para se poder ser gestor de processo;

5 – Criação de uma plataforma digital sobre a questão, contendo um registo partilhado das entidades por níveis de intervenção com a variável “gestão de vagas on-line”;

6 – Operacionalização do modelo, visando a reintegração e capacitação social e profissional da pessoa sem-abrigo;

Page 163: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

162

7 – Criação de um website que disponibilize informação on-line sobre os recursos e respostas existentes na cidade de Lisboa, para a pessoa sem-abrigo.

O Eixo 3 – “Melhorar e Qualificar a Intervenção” prevê “(…) a

Formação/qualificação dos agentes, dirigentes e organizações, como um dos pilares

fundamentais para qualquer mudança profunda ao nível da intervenção. Essa mudança é

consensualmente referida, como sendo necessariamente estrutural e não simplesmente em

termos de reorganização superficial de procedimentos. A introdução de elementos e

mecanismos de articulação; a clarificação de boas práticas, o envolvimento dos parceiros –

quer ao nível técnico, quer ao nível dos dirigentes – e o envolvimento das instituições num

modelo integrado de funcionamento são algumas das preocupações centrais do Plano (…)”

(PCPSA:42).

Algumas Acções previstas neste âmbito são:

1 – Constituição de um programa de formação/acção para os agentes interventores (p.ex. relativo ao modelo de gestão/supervisão e de capacitação do Terceiro Sector);

2 – Capacitação dos técnicos para a formação na vertente do atendimento integrado;

3 – Avaliação das boas práticas de referência;

4 – Formação, aos dirigentes, na vertente dos processos de qualificação;

5 – Sensibilização dos profissionais de saúde.

Para concluir queremos referir que este Plano de Cidade está em

consonância com a Estratégia Nacional, uma vez que foram construídos em

simultâneo, e que um dos elementos deste Grupo (Alto Comissariado da

Saúde) esteve presente nos dois grupos de trabalho, permitindo um

conhecimento mútuo do trabalho desenvolvido. Aliás, o próprio conceito de

“pessoa sem-abrigo” resultou, exactamente, de uma sintonia entre os dois

grupos de trabalho.

Page 164: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

163

Conclusões

Pelo que foi dado a conhecer ao longo do presente relatório, na cidade

de Lisboa existem 494 camas (que estão sempre lotadas) e (foram contactadas,

em 2007, pelas Equipas de Rua), 1.187 pessoas sem-abrigo. Logo à partida,

existe um problema quanto ao número exacto de pessoas que “habitam” as

ruas da capital do País. Os 1.187 indivíduos correspondem àqueles que foram

contactados pelas Equipas de Rua, restando saber os valores daqueles que não

foram “tocados” pelos técnicos. Urge conhecer, monitorizar e avaliar melhor

o fenómeno.

Poderemos afirmar que são necessárias novas opções de alojamento,

de modo a aumentar a capacidade de resposta e proporcionar uma oferta

diversificada a este nível. Hoje em dia, apenas existem Centros de Abrigo, face

aos quais as pessoas têm que abandonar as instalações logo após o pequeno-

almoço. Existe uma forte carência de casas para sem-abrigo, de residências

assistidas, de apartamentos de reinserção, etc.

Quanto à alimentação, verifica-se a existência de um número de equipas

de voluntários, pertencentes a várias instituições/associações, que fazem a

distribuição alimentar, sem qualquer dignificação. Apesar de alguns esforços

do Município de Lisboa no sentido de gerir rotas e horários, e de encontrar

espaços para o efeito, tal tem sido infrutífero. Atrevemo-nos a afirmar que,

neste momento, a distribuição é caótica (inclusivamente, existem alguns

particulares que também distribuem as “sobras” das “festas”) e que existe uma

verdadeira overdose de comida nas ruas da cidade de Lisboa. Assim, torna-se

necessário providenciar locais onde estas instituições possam distribuir a

comida com decência, tanto para a instituição, como para o utente; e que

possam acumular outras funções, designadamente o tratamento de roupas e a

higiene pessoal.

Os ateliês ocupacionais descritos no Plano de Cidade também são em

número insuficiente, apesar de se revelarem, no entanto, como espaços

Page 165: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

164

fundamentais, tanto para o “estar”, como para a aquisição de determinadas

competências pessoais e sociais dos indivíduos sem-abrigo.

Quanto às respostas de apoio à inserção socioprofissional das pessoas

sem-abrigo, verifica-se que essas são em número insignificante.

Afinal do que falamos? Que tipo de respostas/estruturas são estas?

São respostas/estruturas que satisfazem, apenas, as necessidades básicas

dos indivíduos! E a promoção da autonomia? Está “vazia”! Torna-se, pois,

necessário mobilizar conjuntamente vários sectores da sociedade, tais como a

educação, a formação, o emprego, a saúde, e a habitação, entre outros.

Tudo isto faz-nos pensar! Será que “alguém” está interessado na

manutenção do fenómeno? Existirão interesses instalados?

No momento em que, em Portugal, e em Lisboa, em particular, se está

a “importar” um modelo – Housing First – que tem demonstrado resultados

surpreendentes na diminuição do número de sem-abrigo (e na redução dos

custos socioeconómicos a eles associados) nas ruas de Nova Iorque, e em

outros locais onde foi implementado, eis que algumas vozes portuguesas se

têm elevado e dito que são estratégias que partem de uma perspectiva inversa

à nossa (portuguesa). Para estas “vozes”, a pessoa sem-abrigo, antes de ir para

uma casa, terá de adquirir competências pessoais e sociais para poder gerir e

manter uma habitação, num processo de reeducação social, passando,

obrigatoriamente, por diferentes patamares até que atinja a “perfeição”,

patamar essencial para poder aceder a uma casa.

Se não formos open-minded para aceitar novas soluções e novos desafios

(até, já testados e avaliados!), os técnicos das Equipas de Rua, sem nada para

oferecer de novo, continuarão a “encaixar” o silêncio, estratégico, de

impotência, e/ou desistência, das pessoas sem-abrigo, da cidade de Lisboa.

Page 166: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

165

Bibliografia

ALPERSTEIN, G.; RAPPAPORT, C.; FLANIGAN, J. M. (1988) – “Health Problems

of Homeless Children in New York City” in American Journal of Public Health, 78, pp. 1232-

1233.

AMBERT, A. (1998) – The Web of Poverty. Psychosocial Perspectives. New York: The Haworth

Press.

ASSISTÊNCIA MÉDICA INTERNACIONAL (2007) – Relatório Anual de

Actividades, Assistência Médica Internacional, Lisboa;

AVRAMOV, D., (1999) The State-of-the-art research of homelessness and provision of services in

Europe in “Coping with homelessness: issues to be tackled and best practices in Europe”

FEANTSA, Brussels.

BAPTISTA, I., (2005) “O fenómeno dos sem abrigo em Portugal” in Revista Semestral

Rediteia, nº 36, Porto, Rede Europeia Anti-Pobreza/ Portugal.

BARROW, S. M.; HERMAN, D. B.; CÓRDOVA, P.; e STRUENING, E. L. (1999)

– “Mortality Among Homeless Shelter Residents in New York City” in American Journal of

Public Health, 89, pp. 529-534.

BASSUK, E. L.; BUCKNER, J. C.; PERLOFF, J. N.; e BASSUK, S. S. (1998) –

“Prevalence of Mental Health and Substance Use Disorders Among Homeless and Low-

Income Housed Mothers” in American Journal of Psychiatry, 155, pp. 1561–1564.

BENTO, A, & BARRETO, E. (2002), Sem-Amor, Sem-Abrigo, Lisboa, CLIMEPSI

Editores

BLAU, J. (1992) – The Visible Poor. Homelessness in the United States. New York: Oxford

University Press.

BRUTO DA COSTA, A. (2004) – Exclusões Sociais. 4ª edição. Lisboa: Gradiva.

Page 167: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

166

BRUTO DA COSTA, A. (coord.) et al., (2008) Um Olhar sobre a Pobreza, Vulnerabilidade e

Exclusão Social no Portugal Contemporâneo, Gradiva, Lisboa

BULLA, L., C. MENDES, J. M. R.; PRATES, J. C. (Orgs.) (2004), As múltiplas formas

de exclusão social, Porto Alegre, Federação Internacional de Universidades Católicas:

EDIPUCRS.

BURT, M.; ARON, L. Y.; LEE, E.; e VALENTE, J. (2001) – Helping America’s Homeless.

Emergency Shelter or Affordable Housing?. Washington, DC: The Urban Institute Press.

CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA (2007) Relatório do Grupo de Motivação e

Encaminhamento: Equipas de Rua CML, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa;

CAPUCHA, Luís, (2005) Desafios da Pobreza, Celta Editora, Oeiras.

CASTEL, R., As armadilhas da exclusão. in: WANDERLEY, M.; BÒGUS, L.; YAZBEK, M.

C., Desigualdade e a questão social, São Paulo: EDUC, 1997.

CATON, C. L. M.; WILKINS, C.; e ANDERSON, J. (2007) – “People Who

Experience Long-Term Homelessness: Characteristics and Interventions” in DENNIS, D.;

LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.), Toward Understanding Homelessness: The 2007 National

Symposium on Homelessness Research, Department of Health and Human Services & U.S.

Department of Housing and Urban Development, pp. 4.1-4.44.

CORDRAY, S. D. e PION, G. M. (1997) – “What’s Behind the Numbers? Definitional

Issues in Counting the Homeless” in CULHANE, D. P. e HORNBURG, S. P. (eds.),

Understanding Homelessness: New Policy and Research Perspectives, Washington, DC: Fannie Mae

Foundation, pp. 69-99.

CULHANE, D. P. e HORNBURG, S. P. (1997) – Understanding Homelessness: New Policy

and Research Perspectives. Washington, DC: Fannie Mae Foundation.

Page 168: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

167

CULHANE, D. P.; DEJOWSKI, E.F.; IBAÑEZ, J.; NEEDHAM, E.; e MACCHIA,

I. (1997) – “Public Shelter Admission Rates in Philadelphia and New York City: The

Implications of Turnover for Sheltered Population Counts” in CULHANE, D. P. e

HORNBURG, S. P. (eds.), Understanding Homelessness: New Policy and Research Perspectives,

Washington, DC: Fannie Mae Foundation, pp. 101-134.

DENNIS, D.; LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (2007) – Toward Understanding

Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research. Department of Health and

Human Services & U.S. Department of Housing and Urban Development.

EDGAR, B.; DOHERTY, J. (eds.) (2001) - Women and homelessness in Europe: Pathways,

services and Experiences, The Policy Press, Bristol;

FEANTSA (2008) Multiple Barriers, multiple solutions: Inclusion Through employment

for people who are homelessness in Europe: National Report Portugal – Annual Theme

2007, Disponível em www.feantsa.org;

FISCHER, P. J.; SHAPIRO, S.; BREAKEY, W. R.; ANTHONY, J. C.; e KRAMER,

M. (1986) – “Mental Health and Social Characteristics of the Homeless: A Survey of

Mission Users” in American Journal of Public Health, 76, pp. 519-524.

GULCUR, L.; STEFANCIC, A.; SHINN, M.; TSEMBERIS, S.; e FISCHER, S. N.

(2003) – “Housing, Hospitalization, and Cost Outcomes for Homeless Individuals with

Psychiatric Disabilities Participating in Continuum of Care and Housing First

Programmes” in Journal of Community & Applied Social Psychology, 13, pp. 171-186.

HANNIGAN, T.; e WAGNER, S. (2003) – Developing the “Support” in Supportive Housing.

A Guide to Providing Services in Housing. Centre for Urban Community Services and

Corporation for Supportive Housing.

HARVEY, D. (1985) – The Urbanization of Capital. Oxford: Blackwell.

HARVEY, D. (1991) – “The Urban Face of Capitalism” in HUNT, J. (ed.), Our Changing

Cities, Baltimore: John Hopkins University Press.

Page 169: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

168

HERRING, G. (2001) – America's Longest War: The United States and Vietnam 1950-1975.

McGraw-Hill College.

HOMBS, M. E. (2001) – American Homelessness. 3rd edition. California: ABC-CLIO,

Contemporary World Issues Series.

HOPER, K. (1997) – “Homelessness Old and New: The Matter of Definition” in

CULHANE, D. P. e HORNBURG, S. P. (eds.), Understanding Homelessness: New Policy and

Research Perspectives, Washington, DC: Fannie Mae Foundation, pp. 9-67.

HWANG, S. W. (2001) – “Homelessness and Health” in Canadian Medical Association

Journal, 164(1), pp. 229-33.

INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL (2005) – Estudo dos Sem-Abrigo, Instituto

da Segurança Social, Lisboa;

JACOBS, J. (1961) – The Death and Life of Great American Cities. New York: Vintage Books.

JENCKS, C. (1995) – The Homeless. 3rd edition. Massachusetts: Harvard University Press.

LEGINSKI, W. (2007) – “Historical and Contextual Influences on the U.S. Response to

Contemporary Homelessness” in DENNIS, D.; LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.),

Toward Understanding Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research,

Department of Health and Human Services & U.S. Department of Housing and Urban

Development, pp. 1.1-1.36.

LEY, D. (1983) – A Social Geography of the City. New York: Harper Collins Publishers.

MARCUSE, P. (1987) – “A Shame of the Cities” in The Nation, 244, pp. 426-429.

METRAUX, S.; ROMAN, C.; e CHO, R. S. (2007) – “Incarceration and

Homelessness” in DENNIS, D.; LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.), Toward

Understanding Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research, Department

Page 170: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

169

of Health and Human Services & U.S. Department of Housing and Urban Development,

pp. 9.1-9.31.

MITCHELL, D. (1997) – “The Annihilation of Space by Law: The Roots and

Implications of Anti-Homeless Laws in the United States” in Antipode, vol. 29 (3) Blackwell

Publishing, pp. 303-335.

MOLINO, A. C. (2007) – “Characteristics of Help-Seeking Street Youth and Non-Street

Youth” in DENNIS, D.; LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.), Toward Understanding

Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research, Department of Health and

Human Services & U.S. Department of Housing and Urban Development, pp. 7.1-7.40.

MONTAUK, A. C. (2006) – The Homeless in America: Adapting Your Practice, disponível em:

http://www.aafp.org.afp a 12/07/2009.

NAEH (2000) – A Plan, Not a Dream – How to End Homelessness in Ten Years. Washington

DC: National Alliance to End Homelessness.

NAEH (2003) – Toolkit for Ending Homelessness. Washington DC: National Alliance to End

Homelessness.

NAEH (2006) – A New Vision. What is in Community Plans to End Homelessness?. Washington

DC: National Alliance to End Homelessness.

NAEH (2007a) – Homelessness Counts. Washington DC: National Alliance to End

Homelessness.

NAEH (2007b) – Family Homelessness – Fact Checker Accurate Statistics on Homelessness.

Washington DC: National Alliance to End Homelessness.

NAEH (2007c) – What Is a Ten Year Plan to End Homelessness?. Washington DC: National

Alliance to End Homelessness.

Page 171: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

170

NAEH (2007d) – HUD’s Homeless Assistance Programs. Washington DC: National Alliance

to End Homelessness.

NAEH (2007e) – The Applicability of Housing First Models to Homeless Persons with Serious

Mental Illness – Final Report. Cambridge, Massachusetts: National Alliance to End

Homelessness, U.S. Department of Housing and Urban Development Office of Policy

Development and Research.

NAEH (2007f) – Chronic Homelessness Brief. Washington DC: National Alliance to End

Homelessness.

NAEH (2009) – Homelessness Counts. Changes in Homelessness from 2005 to 2007. Washington

DC: The Homelessness Research Institute at the National Alliance to End Homelessness.

O’FLAHERTY, B. (1998) – Making Room. The Economics of Homelessness. 2nd edition.

Massachusetts: Harvard University Press.

PEREIRA, A., BARRETO, P., & FERNANDES, G. (2000), Análise Longitudinal dos

Sem-Abrigo em Lisboa: a situação em 2000.: Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa .

PORTUGAL, Rui (2007) – Ser Sem-Abrigo, in MdM, Boletim de notícias n.20, Junho de

2007, Lisboa;

ROBERTSON, M.; HARRIS, N.; FRITZ, N.; NOFTSINGER, R.; e FISCHER, P.

(2007) – “Rural Homelessness” in DENNIS, D.; LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.),

Toward Understanding Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research,

Department of Health and Human Services & U.S. Department of Housing and Urban

Development, pp. 8.1-8.32.

ROG, D. J. e BUCKNER, J. C. (2007) – “Homeless Families and Children” in

DENNIS, D.; LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.), Toward Understanding Homelessness: The

2007 National Symposium on Homelessness Research, Department of Health and Human

Services & U.S. Department of Housing and Urban Development, pp. 5.1-5.33.

Page 172: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

171

ROSSI, P. (1996) – Down and Out in America: The Origins of Homelessness. 2nd edition.

Chicago: University of Chicago Press.

SALIT, S. A.; KUHN, E. M.; HARTZ, A.J.; VU, J.M.; e MOSSO, A. L. (1998) –

“Hospitalization Costs Associated with Homelessness in New York City” in The New

England Journal of Medicine. Massachusetts: Massachusetts Medical Society, pp. 1734-1740.

SEN, Amartya, (1999) Pobreza e Fomes: um ensaio sobre os direitos e privações, TERRAMAR,

Lisboa.

SHINN, M (2007) – “International Homelessness: Policy, socio-cultural, and individual

perspectives” in Journal of Social Issues, Vol. 63, nº 3, pp 657-677.

SHINN, M. (2009) – “Experimental Evaluation of Housing First Programs” in Workshop

Casas Primeiro: Pessoas Sem-Abrigo com Doença Mental. Lisboa: AEIPS.

SHINN, M.; WEITZMAN, B. C.; STOJANOVIC, D.; KNICKMAN, J. R.;

JIMENEZ, L.; DUCHON, L.; JAMES, S.; e KRANTZ, D. H. (1998) – “Predictors of

Homelessness Among Families in New York City: From Shelter Request to Housing

Stability” in American Journal of Public Health, 88, pp. 1651-1657.

SMITH, N. (1996) – “Gentrification, the Frontier, and the Restructuring of Urban Space”

in FAINSTEIN, S.; CAMPBELL, S. (eds.), Readings in Urban Theory, Oxford: Blackwell, pp.

338-358.

SMITH, N. (2005) – “El Redimensionamiento de las Ciudades: La Globalización y el

Urbanismo Neoliberal”, in HARVEY, D.; SMITH, N. (eds.), Capital Financiero, Propiedad

Inmobiliaria y Cultura, Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona, pp. 59-78.

SNOW, D., ANDERSON, L., (1998) Desafortunados: um estudo sobre o povo da rua,

Petrópolis, Vozes.

SPINNEWIJN, F., (2005) “Sem abrigo: apelo à acção europeia”. Revista Semestral Rediteia,

Page 173: Estratégias para Auxiliar os Sem - Abrigo na Cidade de Lisboa · Definições de Sem-Abrigo ... Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo; b) Análise

172

nº 36, Porto, Rede Europeia Anti Pobreza/ Portugal.

SUSSER, E.; VALENCIA, E.; CONOVER; S.; FELIX, A.; TSAI, W.; e WYATT, R.

J. (1997) – “Preventing Recurrent Homelessness among Mentally Ill Men: A "Critical

Time" Intervention after Discharge from a Shelter” in American Journal of Public Health, 87,

pp. 256-262.

TORO, P. A.; DWORSKY, A.; e FOWLER, P. J. (2007) – “Homeless Youth in the

United States: Recent Research Findings and Intervention Approaches” in DENNIS, D.;

LOCKE, G.; e KHADDURI, J. (eds.), Toward Understanding Homelessness: The 2007 National

Symposium on Homelessness Research, Department of Health and Human Services & U.S.

Department of Housing and Urban Development, pp. 6.1-6.33.

TORO, P.A & WARREN, G. M, (1999) Homelessness in the United States: Policy

Considerations; Journal of Community Psychology, Vol. 27, Nº 2, 119-136.

TSEMBERIS, S. (2009) – “Pathways’ Housing First: Ending Homelessness and

Supporting Recovery for People with Psychiatric Disabilities and Addiction Disorders” in

Workshop Casas Primeiro: Pessoas Sem-Abrigo com Doença Mental. Lisboa: AEIPS.

WONG, Y. I. (1997) – “Patterns of Homelessness: A Review of Longitudinal Studies” in

CULHANE, D. P. e HORNBURG, S. P. (eds.), Understanding Homelessness: New Policy and

Research Perspectives, Washington, DC: Fannie Mae Foundation, pp. 135-164.

WOOD, D.; VALDEZ, B.; HAYASHI, T.; e SHEN, A. (1990) – “Homeless and

Housed Families in Los Angeles: A Study Comparing Demographic, Economic, and

Family Function Characteristics” in American Journal of Public Health, 80, pp. 1049-1052.

WYATT, C. (2004) – France Forming Ethnic Ghettos. London: British Broadcasting

Corporation.