por uma vida sem treta: rap, juventude e exclusão social nos anos 90
TRANSCRIPT
HELENO BRODBECK DO ROSÁRIO
POR UMA VIDA SEM TRETA:
RAP, JUVENTUDE E EXCLUSÃO SOCIAL NOS ANOS 90
Trabalho de conclusão de curso apresentado à
disciplina de Estágio Supervisionado em
Pesquisa Histórica do curso de História, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná
Orientador: Prof. Dr. Marcos Napolitano
CURITIBA
2004
SUMÁRIO RESUMO ..........................................................................................................................i INTRODUÇÃO ..............................................................................................................01 1. “TEMPOS DIFÍCEIS”: JUVENTUDE E EXCLUSÃO NO SÉCULO XX ..............05
1.1 Exclusão social e a sociedade pós-industrial ................................................05
1.2 Juventude no século XX ...............................................................................08
1.3 Rap e identidade ...........................................................................................10 2. A FORMAÇÃO DA CULTURA POLÍTICA DOS RAPPERS ................................13 2.1 Ritmo, atitude e poesia: a função do rap ......................................................13 2.2 A “verborragia” no rap: a eleição de um inimigo .........................................15 2.3 Rap, cultura política e indústria fonográfica ................................................18 3. OS RAPPERS EM AÇÃO: DISCURSO E PRÁTICA .............................................22 3.1 A noção de campo de possibilidades: “escolha o seu caminho” .................22 3.2 O rap e a proposta de informação ................................................................25 3.3 A visão de cidadania dos rappers .................................................................27 CONCLUSÃO ...............................................................................................................30 FONTES ........................................................................................................................32 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................33
1
INTRODUÇÃO
No final dos anos 70 e durante toda a década dos anos 80, como afirma Maria da
Glória Gohn, surge uma novo objeto de estudos sobre os movimentos sociais: a cultura
dos países do Terceiro Mundo1. Apresentando novas problemáticas e novos cenários
sociopolíticos, este período também é marcado, segundo José Valenzuela Arce, pelo
surgimento de um novo ator social juvenil: o jovem das favelas e/ou bairros populares.
Este novo ator social adquire visibilidade devido à mobilidade adquirida frente ao
acelerado processo de urbanização de várias cidades brasileiras, em sua maioria capitais.2
Portanto, seguindo o raciocínio de José Arce, durante praticamente todo o século
XX o conceito cultivado de “jovem” era principalmente ligado à classe média e alta, sendo
que à juventude de periferia das grandes cidades, em nosso trabalho representada pelos
rappers, foi relegado simplesmente o papel de coadjuvantes daquele processo3.
Um outro fator que contribuiu para, digamos, uma “popularização” da temática da
juventude excluída nas últimas duas décadas foi a ostensiva exposição daqueles jovens na
mídia – principalmente nos veículos televisivos. Associada a essa exposição vem a
violência, que nesse contexto está fortemente ligada ao narcotráfico, o qual encontrou nas
comunidades de periferia liberdade sem igual para a sua disseminação.
Essa liberdade de propagação do tráfico não vem senão de um histórico descaso
sofrido pela população pobre brasileira, que, na falta de opções dignas de sobrevivência,
acaba por optar pela saída que lhe pareça a mais viável, sendo ela, muitas vezes, o mundo
do crime. Ademais, não é raro que essa “saída” não seja considerada uma opção, e, sim,
um caminho a ser trilhado naturalmente, devido à convivência com o tráfico e com a falta
de oportunidades para uma vida saudável. Aliada a isto, a baixa auto-estima desses jovens
conformada pela ausência de perspectivas de vida acaba por construir cada vez mais
jovens com aquele lamentável perfil.
Na contra-corrente dessa espécie de ‘sistema’ ao qual a juventude das periferias
urbanas estaria desde o nascimento condicionada, situa-se um enorme número de jovens
1 GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997 2 ARCE, José Manuel Valenzuela. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 79 3 Idem, p. 76
2
influenciados pela politização alcançada através de um movimento sociocultural gerado na
própria periferia: o hip-hop.
A expressão “hip-hop” (que, em inglês, significa algo em torno de “pular
balançando os quadris”) nasceu no final dos anos 60 e foi difundida na década de 70 nas
periferias de Nova Iorque e Los Angeles4. De acordo com Tricia Rose, historiadora do
hip-hop americano, a falta de políticas sociais dos governos dos grandes centros urbanos
norte-americanos contribuíram para a emergência da cultura hip-hop como uma saída
criativa e agressiva para a expressão e identificação juvenil, fundamentalmente entre
negros e hispânicos que habitavam as áreas de maior descaso governamental.5
Conforme se deu a institucionalização do hip-hop, através da criação da Universal
Zulu Nation (maior organização de hip-hop do mundo, criada em 1974 por Afrika
Bambaataa, um dos pioneiros a divulgar a expressão “hip-hop”), o movimento passou a
defender quatro elementos como sendo os fundamentos da cultura hip-hop: o break, forma
de expressão a partir da dança; o grafite, expressão plástica daqueles jovens
marginalizados; e o rap, manifestação musical que envolve a participação de dois
elementos, o DJ (disc-jóquei, que fornece a base musical para o rap) e o MC (mestre-de-
cerimônias, que é o cantor/ letrista).
O rap é, portanto, fruto da união do ritmo (através do DJ) e da poesia (representada
pelo MC) – Rhythm And Poetry, em inglês. Ele, assim como os outros elementos, também
se desenvolveu nos guetos nova-iorquinos nos anos 70, entretanto a apropriação dessa
expressão cultural pela indústria fonográfica na década de 80 fez com que esse estilo
musical fosse conhecido mundialmente e, anos mais tarde, influenciasse uma massa de
jovens não só nos Estados Unidos, como também no Brasil, como veremos a seguir.
A Velha Escola do hip-hop brasileiro (anos 80) tem por característica principal o
envolvimento com o break, que por volta de 1984 adquiriu fama mundial através do
popstar Michael Jackson, que em suas performances utilizava passos da dança. O rap
nacional, por sua vez, já engatinhava, sendo que no final da década alguns discos já
estavam sendo produzidos, principalmente coletâneas de artistas paulistas. Nomes como o
do rapper Thaíde e o de sua dupla, DJ Hum, ou como o do grupo Racionais Mc’s,
4 As expressões em língua inglesa – principalmente relativas ao universo do hip-hop – estão grafadas em tipo normal por serem de uso corrente durante o texto. 5 ROSE, Tricia. Um estilo que ninguém segura: política, estilo e cidade pós-industrial no hip-hop. In: HERSCHMANN, Micael (Org.). Abalando os anos 90 – funk e hip-hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 196
3
denominavam-se representantes da juventude de periferia já nessa época, pregando a auto-
valorização da juventude de baixa renda, e, ao mesmo tempo, denunciando o racismo, os
maus tratos, enfim, o processo de exclusão sofrida por esses jovens no cotidiano da
sociedade dita globalizada.
Enfim, o discurso dos rappers em suas letras e em suas performances se
caracteriza, assim, como uma referência para o questionamento dos jovens de periferia a
respeito do seu lugar na sociedade e do seu papel como cidadão. Nesse sentido, nosso
trabalho buscou analisar a tensão entre inclusão e exclusão social, presente nas letras de
raps gravados entre 1988 e 1995.
Devido à dificuldade de se encontrar registros fonográficos de raps daquele
período, acreditamos que os três CD’s aos quais tivemos acesso – o álbum Escolha o Seu
Caminho, do grupo Racionais mc’s, de 1992, e a coletânea Poetas de Rua, Vols. 1 e 2, de
95 e 96 – serem bons representantes do estilo de rap divulgado no início dos anos 90.
Metodologicamente, trabalhamos a partir das letras, “ignorando” outros elementos
de análise que um rap pode conter, como a base utilizada pelo DJ, a intensidade da
interpretação, etc. Isso se deu principalmente por uma maior viabilidade da investigação.
Com isso, foi possível a leitura de todas as letras, e, a partir daí, pôde-se agrupar certos
elementos comuns àquelas, permitindo até uma espécie de classificação das letras entre
raps denunciativos/ distópicos e raps de caráter propositivo.6
Quanto à monografia, em si, ela foi dividida em três capítulos:
O primeiro deles teve o encargo de fazer uma discussão teórica em cima da
exclusão social dos jovens de periferia e a estigmatização daqueles, principalmente, por
critérios que perpassam a questão do consumo na sociedade contemporânea. Ao mesmo
tempo, procurou-se entender de que forma os grupos estigmatizados tendem a lidar com a
“aversão social” por eles sofrida.
O segundo capítulo, entitulado “A formação da cultura política dos rappers” teve
como pano-de-fundo as relações dos rappers com a indústria fonográfica no início dos
anos 90. Buscou-se, neste momento, tratar a agressividade das letras a partir da concepção
da “verdadeira função do rap” para os adeptos do hip-hop.
Em contrapartida à agressividade expressa pelos rappers no segundo, o último
capítulo teve como referencial teórico a noção de campo de possibilidades apresentada por
6 Mais detalhes sobre análise social da música popular, ver NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte: Editora Atlântica, 2002
4
Gilberto Velho no livro “Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas”
(1994) e, a partir dela, procurou-se investigar como se constróem as perspectivas de
inserção social dos jovens de periferia. Também pôde-se tirar algumas conclusões sobre a
concepção de cidadania presente no discurso dos rappers e de como se dá o “processo
educativo do movimento hip-hop”7.
Dessa forma, pretendemos com este trabalho contribuir ao campo acadêmico
principalmente no que diz respeito às pesquisas das manifestações político-culturais dos
jovens e, ao mesmo tempo, dar a uma cota de colaboração direta ao universo não-
acadêmico, em especial aos jovens identificados com o movimento hip-hop.
7 ANDRADE, Elaine Nunes de. Hip Hop: movimento negro juvenil. In: Rap e educação, Rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999, p. 89
5
1. “TEMPOS DIFÍCEIS...”: JUVENTUDE E EXCLUSÃO NO
SÉCULO XX
1.1 EXCLUSÃO SOCIAL E A SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL
Muito se produziu nos últimos trinta anos acerca da nova etapa do
desenvolvimento capitalista, o chamado pós-industrialismo (ou informacionalismo)8. Esta,
contudo, não pode ser, associada simplesmente às novas relações de trabalho (muito
enfatizadas nas leituras dos anos 70 e 80), pois, de acordo com o nosso entendimento, esse
processo vem a ser compreendido por toda a dinâmica que envolve as novas relações
surgidas ou modificadas pelo impacto da revolução tecnológica dos meios de informação.
A nova ordem global, portanto, não pode ser vinculada somente à economia, haja vista
inúmeras transformações em âmbito cultural e social que o sistema de poder globalizado
tem provocado.
A sociedade pós-industrial, em meio a uma intensa crise de identidade e, ao mesmo
tempo, de incrível êxtase diante das possibilidades oferecidas pela tecnologia, tanto na
informática como nas telecomunicações, nos desafia no sentido de esforçarmo-nos cada
vez mais em estudos que reflitam sobre o “outro lado da moeda”, isto é, a realidade em
que se encontra uma imensa quantidade de pessoas que possui pouca ou nenhuma
identificação com o que é veiculado na mídia e, muito menos, tem acesso às novas (ou
mesmo às velhas) tecnologias de informática; enfim, a realidade – nada virtual – da
exclusão social.
De acordo com Maria da Glória Gohn9, a exclusão social passou a ser, na década
de 90, uma categoria predominante nas análises dos movimentos populares e, conforme
Alba Zaluar10, a expressão envolve “diversos processos simultâneos, entre os quais se
inclui o desemprego, o afastamento da escola e a estigmatização pelo uso de drogas,”
além, logicamente, da apartação de benefícios sociais mínimos, como alimentação e
8 CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 1. São Paulo : Paz e Terra, 2001, p. 226 9 GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo, Loyola, 1997, p. 265 10 ZALUAR, Alba. Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência. In: VIANNA, Hermano (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 2003, p. 32
6
saneamento básico. Reforçando o conceito de exclusão social, Manuel Castells afirma que,
no contexto do capitalismo, ela é dada, acima de tudo, pelo “processo que priva alguém do
direito ao trabalho”11.
Podemos afirmar que a exclusão social é uma “bola-de-neve” que vem crescendo à
medida que as políticas públicas para a área social não vêm dando conta dos seus
propósitos e, com isso, há o aumento de uma série de fenômenos contemporâneos, como
por exemplo a violência ligada ao narcotráfico, que, no caso do Brasil, é a maior causa de
mortes entre jovens de periferias urbanas.
Já partindo para o reflexo da exclusão no que tange à juventude na dita nova ordem
global, a proscrição passa a ser uma categoria teórica de extrema pertinência. Aquela é
uma denominação que, no começo de nossa pesquisa, ainda era confundida com exclusão.
De fato, são dois conceitos distintos, que, muitas vezes, são utilizados para qualificar um
mesmo “personagem”, o que contribui para a confusão dos termos. Podemos citar como
exemplo as expressões juventude excluída e juventude proscrita. Estas qualidades
atribuídas ao sujeito (sintaticamente falando) juventude, como veremos mais a diante, dão
sentidos bem distintos para o sujeito, sendo-nos importante uma melhor definição do
termo proscrição.
Recorrendo à enciclopédia, encontramos que proscrição significa “banimento,
desterro”12, o que não nos ajuda muito na diferenciação entre proscrição e exclusão. Ao
que tudo indica, o termo proscrição ainda não foi cuidadosamente trabalhado no âmbito
das ciências sociais, embora tenha sido difundido com certa frequência no meio.
Para uma tentativa de definição teórica do que vem a ser a proscrição, servimo-nos
de alguns autores que se utilizam desse conceito (embora sem uma discussão sobre o
mesmo) e tentamos defini-lo a partir do seu emprego textual13. Um exemplo que nos
auxilia muito nessa busca é a categorização feita por José Manuel Valenzuela Arce a
respeito das identidades proscritas. Para o autor, elas são:
Formas de identificação rechaçadas pelos setores dominantes, nas quais os membros dos grupos ou das redes simbólicas proscritas são objeto de caracterizações pejorativas e muitas vezes persecutórias. Entre essas identidades encontramos agrupamentos políticos com posições ideológicas contrárias aos
11 CASTELLS, M. op. cit. Vol. 3, p. 98 12 LAROUSSE-CULTURAL, Grande enciclopédia ilustrada. São Paulo : Larousse & Nova Cultural, 1998, p. 4804 13 Os autores são José Manuel ARCE e Glória DIÓGENES
7
sistemas dominantes, grupos étnicos, grupos viciados em drogas, grupos religiosos, grupos nudistas ou alguns grupos ou redes juvenis14.
O que marca a conceituação acima é o caráter depreciativo do “setor dominante”
em relação aos grupos e às redes simbólicas proscritas15. Dessa maneira, propomos que a
proscrição nasça a partir do embate entre redes simbólicas dominantes e redes simbólicas
que não estão ao alcance do domínio daquelas. Portanto, nesse abstrato terreno de embate
(cultural, sócio-econômico, político) desenvolve-se a proscrição, a qual procuramos
definir através da expressão aversão social.
Numa perspectiva mais ampla, esta aversão se manifesta através de diversas
formas de preconceitos, xenofobia, etc. Entretanto, fazemos questão de enfatizar o caráter
social desta aversão argumentando em conformidade com José Arce quando, por exemplo,
ele aborda o movimento funk carioca, no livro Vida de Barro Duro:
O funk nos remete a uma forma de ação coletiva que se constrói a partir do que definimos como identidades proscritas. Foi a posição social dominante fortemente persecutória o que propiciou campos densos de identificação simbólica entre os jovens funkeiros. Em países como o México, o funk é escutado e dançado pelos jovens da classe média, sem que represente qualquer apreensão para os grupos dominantes. Por isso, consideramos que no caso brasileiro o estigma não se dirige contra o baile funk, que além do mais mostra poucos traços de questionamento ao sistema social, mas sim contra o setor social que o assumiu como significativo elemento de identidade. Uma vez mais, a proscrição e a agressão orientam-se para impedir o desenvolvimento de formas afirmativas de identificação nos setores populares.16
Enfim, a proscrição é um sintoma característico da sociedade no final do milênio,
principalmente dos grandes centros urbanos, concluindo-se, assim, que ela é uma categoria
derivada da exclusão social, ou seja, à medida que o capitalismo pós-industrial, cada vez
mais, gera níveis maiores de desigualdade entre setores dominantes e camadas populares,
14 ARCE, José M. V.. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 1999, p. 147 15 ARCE caracteriza o grupo “por uma estrutura definida, da qual participam diferentes formações de poderes e lideranças. Os grupos possuem códigos mais ou menos explícitos; apresentam uma rotina cotidiana compartilhada, portam elementos que os identificam e diferenciam de outros grupos”. O autor também define rede simbólica como sendo “formas de identificação nas quais os jovens participam da formação no sentido de rede. É uma espécie de comunidade hermenêutica ou rede de sentido que não possui uma coesão social forte entre o conjunto daqueles que fazem parte da rede. As redes simbólicas são processos de inter-reconhecimento entre seus membros”. 16 Idem, p. 148
8
diminui-se a possibilidade de inscrição17 de determinados grupos ou redes simbólicas, o
que acarreta na contribuição para o processo de estigmatização dos excluídos, gerando,
como visto, grupos ou redes proscritas, como os jovens das periferias urbanas, ou,
especificamente no caso do presente estudo, a juventude do hip-hop. Nesse sentido, faz-se
necessário uma abordagem sobre a juventude, em seu âmbito geral, para, posteriormente,
enfocarmos o estudo nos adeptos do hip-hop.
1.2 JUVENTUDE NO SÉCULO XX
A juventude não é apenas um período compreendido entre a dependência infantil e a autonomia adulta, marcado pela inquietude, imaturidade e florecimento das faculdades mentais. A juventude é uma construção sóciocultural e em nenhum lugar, em nenhum momento na história, pode ser definida segundo critérios exclusivamente biológicos ou jurídicos.(...) O conceito de juventude é relacional, e é preciso estar atento ao caráter marginal ou limítrofe da juventude, ao fato de ela ser irredutível a uma definição estável concreta.18
De fato, a condição de ser jovem sofreu importantes transformações ao longo de
sua história, entretanto, o que nos é mais relevante é o caráter impreciso, até inseguro, que
o conceito de juventude tomou no decorrer do século XX: passou de um período entre a
infância e a idade adulta para uma categoria social identificada principalmente pelo
comportamento, o qual não sofre tanta influência da idade.
Este enaltecimento do segmento juvenil se deu a partir das décadas de 1950 e 60
com o desenvolvimento das indústrias culturais, as quais perceberam naquele um
grandioso mercado. “As indústrias fonográfica, cinematográfica, televisiva, assim como
uma enorme maquinaria produtiva e publicitária, orientaram-se para a fabricação de
filmes, discos, roupas, posters, diversão e sonhos juvenis”19.
Nesse sentido, o aparato industrial auxiliou no modelamento de inúmeros jovens
com diversos estilos que, sob formas como as explicitadas anteriormente, eram
propagados, como o dos “rebeldes sem causa” (anos 50/60) e os hippies (anos 60/70).
Desse modo, dentro dessa reorganização capitalista do pós-guerra, o conceito do
17 Glória Diógenes opõe os proscritos em relação aos inscritos da sociedade: DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e movimento hip-hop. São Paulo : Annablume, 1998 18 HERSCHMANN, Micael. O Funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 2000, pág. 54 19 ARCE, op. cit. p. 77
9
comportamento juvenil acabou por se firmar no âmbito da rebeldia, da contestação, o qual,
ainda hoje, encontra-se em nosso imaginário.
Portanto, nessa sociedade de consumo que se consolida a partir da segunda metade
do século XX, o jovem de classe média passa a ter papel fundamental não só nos apelos
das indústrias culturais, como também no reconhecimento da força política possuída pelo
segmento juvenil, força esta alavancada pela repercussão dos movimentos reivindicatórios
de estudantes que, em muitos lugares no mundo, inclusive no Brasil, marcaram a virada da
década de 1960/70.
Ao mesmo tempo, tem-se o aceleramento do processo de urbanização das maiores
cidades dos países ligados ao sistema capitalista. Este é um dado relevante para nosso
estudo se levarmos em conta o “surgimento”, como já comentamos na introdução desta
pesquisa, de um novo ator social juvenil: o jovem das favelas e dos bairros populares20.
Ao afirmarmos que este novo ator “surgiu”, procuramos mostrar que através da
mobilidade geográfica adquirida com o processo de urbanização dos grandes centros –
como Rio de Janeiro e São Paulo, em termos de Brasil – foi possível a real percepção dos
moradores das regiões de classe média e alta em relação aos jovens de periferia, ou seja,
pode-se dizer que dentro das cidades se inicia um contato – ou um embate – entre o setor
dominante e grupos de jovens excluídos.
O critério do consumo, como afirma Glória Diógenes, passa a ser o elemento-
chave para a “inscrição” do jovem na conjuntura do capitalismo global21. Ao mesmo
tempo, o confronto entre produtores/ consumidores com a massa crescente de excluídos
tende a provocar um “profundo sentimento de estranhamento” (ou aversão, como
colocamos) entre aqueles grupos. Portanto, no que tange aos jovens de favelas e de bairros
populares, o final do milênio é caracterizado por uma conjuntura especial para o
enquadramento daqueles na condição de proscritos, afinal, eles são jovens (portadores da
“rebeldia”) e despossuídos (o que tende a os incitar o confronto com os “possuidores”).
Na qualidade de excluídos (e proscritos), os jovens de periferia tentam se incluir
socialmente através de modelos alternativos de inserção e/ou resistência, como os grupos
evangélicos, o uso ou o tráfico de drogas, a participação em galeras ou gangues, enfim,
20 idem, p. 79 21 DIÓGENES, op. cit. p. 38
10
por meio de inúmeras maneiras que podem ser elas lícitas ou não22. O movimento
sociocultural hip-hop, no caso da presente pesquisa, pode ser encaixado em um desses
modelos juvenis alternativos.
1.3 RAP E IDENTIDADE
Como comentado anteriormente, a música rap é fruto da união entre a arte da
discotecagem (DJing) e a arte de rimar (MCing).
O desenvolvimento desses dois elementos se deu no Bronx, bairro negro nova-
iorquino, a partir de festas influenciadas por recém-imigrados disc-jockeys jamaicanos,
como o DJ Kool Herc e Afrika Bambaataa, no início da década de 70. Com poucos
equipamentos de som e microfones, aqueles conseguiam reunir expressivos números de
pessoas em suas festas, sendo estas festas importantes espaços para a realização dos
contundentes discursos dos rappers, os quais delatavam a exclusão social e a opressão
racial. Ao mesmo tempo, este era um espaço usado para a exaltação de líderes negros,
como Malcom X e Martin Luther King, e para a valorização de estilos musicais dos
negros, como o funk e o soul.23
Com o tempo, os DJ’s aprimoraram o estilo rap com inúmeras alegorias que, até
hoje, são características presentes na maioria dos raps. Esses enfeites, tais como o back-to-
back (repetição de sílabas ou trechos da música), o scratch (giro do disco contra a sua
rotação, provocando o som de arranhadura) e a utilização de samplers (que permitem o
enxerto de trechos de outras músicas, principalmente mais antigas, no rap) são
transformações e hibridizações que “refletem o espírito inicial do rap e do hip-hop como
um espaço coletivo e experimental, onde temas contemporâneos e forças ancestrais são
trabalhados simultaneamente”24.
O agrupamento dos quatro elementos durante as festas na emergente cidade pós-
industrial, enfim, trouxe um novo fôlego para a obtenção de status e para o reforço da
identidade (proscrita) dos jovens afro e hispano-americanos. Analisemos a questão do
Brasil:
22 Propositadamente foram diferenciados os termos gangue e galera. Conforme as discussões da sociologia e da antropologia da juventude, galeras seriam grupos de jovens que se reúnem para diversão, e, eventualmente, cometer atos ilícitos; as gangues seriam grupos juvenis mais organizados reunidos em geral para ações ilícitas, e, geralmente, dividem-se em territórios geograficamente marcados. 23 Mais “histórias” da história do hip-hop, ver o site da Universal Zulu Nation: www.zulunation.com
11
[...] Menores carentes se tornam delinquentes E ninguém nada faz pelo futuro dessa gente A saída é esta vida bandida que levam Roubando, matando, morrendo Entre si se acabando Enquanto homens de poder fingem não ver Não querem saber Fazem o que bem entender E assim... aumenta a violência Não somos nós os culpados dessa consequência? [...] Meu nome é Edy Rock, um rapper e não um otário Se algo não fizermos, estaremos acabados KL Jay! Tempos difíceis...
(Tempos difíceis – Racionais Mc’s, 1988) 25
O surgimento do movimento hip-hop no Brasil se deu sob a influência dos “bailes
black” de grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Os bailes
de música negra eram espaços alternativos criados nas comunidades de periferia e
influenciavam um enorme público através da apologia ao orgulho negro nos anos 70 e 80.
Por conseguinte, com a popularização da ‘ideologia’ do orgulho negro, e,
acrescentando o aprimoramento do “funk falado” do início da década de 80, grupos dos
novos atores sociais juvenis uniram-se para, a partir da apropriação das ruas, cantar,
dançar e discutir a sua situação. Com o passar dos anos, a ideologia do hip-hop já havia
tomado conta daqueles jovens.
Não demorou para, no final dos anos 80, algumas coletâneas de rap nacional serem
lançadas e, com elas, um retrato do jovem das periferias urbanas brasileiras: uma
fisionomia de revolta, de grande indignação com a exclusão por eles vivida, uma imagem
de uma juventude contestadora de idéias como a do Brasil não-violento, a qual mostra um
país em que a violência não passa de uma situação de exceção26.
Nessa direção, afirmamos que, se o Brasil conheceu um novo ator social nas
últimas décadas, o rap brasileiro vem mostrar que esse ator não está nada contente (como
explicitou a letra do Racionais Mc’s) com a herança recebida por consequência do descaso
histórico da classe dominante em relação ao resto da população. Das desigualdades da
sociedade pós-industrial emergem novas forças para a luta social, fundamentadas
24 ROSE, In: HERSCHMANN (Org.), op. cit. p. 210 25 POETAS DE RUA, Vol. 1 26 HERSCHMANN, op. cit. 2000, p. 37
12
principalmente a partir da experiência de um espaço social situado “entre a esfera da casa
e a da rua. Com base em vínculos de vizinhança, coleguismo, procedência, de trabalho,
estabelece-se uma forma de sociabilidade mais[...] próxima do cotidiano que a ditada pelas
normas abstratas e impessoais da sociedade mais ampla”27.
Assim, a esfera cultural, a princípio, passa a ser a grande mobilizadora das ações
juvenis neste final de milênio, principalmente a partir de identificações em dimensão local.
Nesse sentido, os jovens de periferia urbana se “armam” com o que têm em mãos. A partir
do reforço das suas identidades (pelo setor dominante estigmatizadas), aqueles jovens
tendem se confrontar – simbolicamente, na maioria das vezes – com os representantes dos
grupos dominantes. O próximo capítulo trata essa questão sob a ótica dos rappers.
27 MAGNANI, José Guilherme. Transformações da cultura urbana das grandes metrópoles. In: MOREIRA, Alberto (Org.). Sociedade global: cultura e religião. Petrópolis : Vozes, 1998. p. 63
13
2. A FORMAÇÃO DA CULTURA POLÍTICA DOS RAPPERS
2.1 RITMO, ATITUDE E POESIA: A FUNÇÃO DO RAP
[...] Mora em uma vila e não tem televisão mas se veste de etiqueta e se acha o gostosão e até por isso então agora inventa de cantar diz que é um MC e vai botar para quebrar. Mas seu rap é estúpido, não tem nenhuma mensagem não tem nenhum estilo, foi feito sua imagem ridículo, sem nexo, sem pé nem cabeça e a galera em delírio grita: - desapareça! [...] Pois é, Melô, você vai ter que mudar vai ter que deixar de ser assim e vai ter que inovar não alisar mais o “bêlo”, não rebolar mais pra dançar e só ser um MC, só depois de se informar. Pra não falar besteira, bobeira, asneira no Hip-Hop a coisa é séria, cara, não é brincadeira sem cabelo alisado, com papo interado talvez será por nós muito bem considerado. (Melô [O Lagartixa] – Doctor Mc’s, 1994 [?])28
Para efeito de nossa pesquisa, daremos maior ênfase nos raps que possuem caráter
mais ‘combativo’, na medida em que eles podem ser considerados símbolos da cultura de
resistência representada pelo hip-hop. Os raps “de atitude”, portanto, são os mais
importantes para o nosso estudo; o caráter lúdico de certos raps, inclusive, faz trazer à tona
algumas discussões internas do movimento hip-hop, como, por exemplo, qual a verdadeira
função do rap dentro desse movimento.
Partindo para a análise das letras, em específico à supracitada, podemos notar que,
para os rappers do grupo Doctor Mc’s, os raps que não trazem uma “mensagem”, ou seja,
que não exploram o cotidiano das favelas e, consequentemente, não questionam a
exclusão, não são bem-vindos, ou, no mínimo, causam certa preocupação com relação ao
perigo da banalização ou do esfarelamento dos preceitos do hip-hop.
28 POETAS DE RUA, Vol. 1
14
Micael Herschmann comenta sobre essa tensão existente no hip-hop como
tentativa de priorizar a autenticidade do movimento. Para o autor, essa tensão é motivada
principalmente
por divergências quanto às formas de conduta e/ou à qualidade da produção. Os b-boys cobram de cada um dos membros uma vida sem “vícios”, um engajamento e uma postura, muitas vezes, rígidos, que devem estar expressos, inclusive e principalmente, na arte que realizam
29.
Obviamente, não se pode fazer uma generalização da cultura política dos rappers
no sentido de uma valorização da politização daqueles, entretanto ao fazermos uma
pequena constatação quantitativa dos três compact discs aos quais tivemos acesso,
observamos que a grande maioria das músicas abordam temas relacionados com a
exclusão social (preconceito, violência policial, disparidades sócio-econômicas), sendo
que cerca de apenas 10% das músicas apresentaram como temas centrais as relações
amorosas e as formas lúdicas de prazer.
Em se levando em conta estes percentuais, na medida em que eles são números que
pouco variam na relação de raps produzidos na primeira metade da década de 1990, é
possível afirmar que os raps de caráter contestatório, como o do grupo Doctor Mc’s, além
de representarem a essência de um movimento sociocultural, apresentam-se também como
maioria numérica esmagadora dentre os raps produzidos naquele momento, o que mostra,
em certa medida, o comprometimento político-social dos rappers brasileiros.
Entretanto, o pano-de-fundo que permeia toda a discussão sobre raps “de atitude” e
raps de teor lúdico dentro do movimento hip-hop é a questão de qual seria, afinal, a função
do rap para o público (os jovens de periferia). De acordo com Tella,
O papel do rapper, além do entretenimento, é fazer um discurso com uma linguagem acessível para informar e tentar ampliar a consciência de uma parcela da juventude negra. Os rappers têm como tarefa transmitir suas mensagens para um público mais amplo. Querem constituir-se numa alternativa de informação e conhecimento, colocando a grande mídia como adversária do seu trabalho. Querem, enfim, ser formadores de opinião
30.
Seguindo na direção apontada por Tella, as características difundidas, implícita e
explicitamente, no discurso dos rappers valorizam, fundamentalmente, um elemento de
29 HERSCHMANN, M. op. cit. p. 193
15
identificação por eles chamado de atitude, isto é, a severa postura diante das injustiças
sociais e/ou a ação de combate às mesmas. A função do rap, portanto, seria de provocar a
dita atitude no ouvinte a partir da mensagem contida nas letras, sendo o entretenimento
mera consequência da relação entre o rap e o público, e não uma forma fútil de diversão,
como demonstrou a letra dos Doctor Mc’s e como reforça o seguinte trecho:
[...] E você, em seu canto, acomodado Dizendo que essa vida é pra tirar um barato Mano, o que você tem na cabeça? Acha que tudo é festa? Progrida, cresca! [...] (Auto Valorização – Consciência Humana, 1995[?])
2.2 A “VERBORRAGIA” NO RAP: A ELEIÇÃO DE UM INIMIGO
Como já colocado anteriormente, para um rap ter seu conteúdo apreciado no meio
hip-hop, ele deve compreender uma “mensagem”, em geral, resultado de uma “atitude”.
Contudo, após a análise dos raps que estamos utilizando como fontes, concluímos que esta
mensagem pode assumir dois tipos de caráter: o primeiro, mais denunciativo/ distópico e o
segundo, por sua vez, mais propositivo. De momento, ateremo-nos nos raps que possuem
a primeira característica, tal qual o que segue:
[...] Pode pensar que o que eu falo é forte demais Mas é a vida como ela é, e nada mais Observe, veja, chegue a uma conclusão Por que bairro pobre é só miséria e baixaria então Nunca fomos lembrados por nenhum filha-da-puta eleito Não sei por quê, acharam algum defeito Aqui só mora preto, não merecemos respeito Nem sequer temos ajuda nem tampouco direito Mas observe a vila de brancos requintados Tem polícia nas ruas dando “bom dia” aos vigias Mas na BR você pode crer Têm policiais nas ruas enquadrando você Estamos esquecidos neste lugar sujo e desgraçado
30 TELLA, Marco Aurélio Paz. Rap, memória e identidade. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (Org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999. p. 63
16
Não tem jeito o meu destino é morrer nesse buraco É aqui que fui criado, cara Correndo pelas ruas, atrás de doce e bala E agora, mano, dez anos depois Não posso esquecer meu passado que na vila foi plantado É violento, mas eu gosto, é a minha vida É revolver, maconha, polícia e cocaína [...] ( Bem vindos ao inferno – Sistema Negro, 1994)31
O trecho da letra da música Bem vindos ao inferno trás alguns elementos
interessantes para o enriquecimento, principalmente, da discussão sobre o teor violento
contido em muitos raps. Herschmann afirma que,
Tal qual os rappers norte-americanos, os brasileiros se caracterizam pela “verborragia”, e os temas de suas composições giram em torno da miséria, da violência urbana, do racismo e assim por diante. [...] As músicas produzidas pelo hip-hop, são quase sempre marcadas pelo tom de protesto, politicamente [...] engajadas, dramáticas e agressivas
32.
As características explicitadas por Herschmann vão nitidamente de encontro às
expostas na letra do grupo Sistema Negro, em particular, pelo tom “verborrágico” da
mesma. Segundo Glória Diógenes, esse é um modo de “violência direcionada” reeditada
na força da palavra, de uma “recomposição da dinâmica da violência em contraposição ao
uso da força física”33. Para a autora, a violência vivida pelos jovens em seu cotidiano na
periferia tem que ser de alguma forma extravasada, sendo o rap uma alternativa inteligente
para a canalização da ira daqueles jovens.
Seguindo na linha dos raps denunciativos/ distópicos, podemos afirmar que, para
os rappers, o caráter verborrágico das letras não passa de um relato da pura realidade de
exclusão por eles observada (e vivida), sendo que a partir da agressividade das suas
composições eles tentam explorar a indignação dos jovens das periferias urbanas
utilizando-se dos próprios elementos causadores da proscrição daqueles pelo setor
dominante, ou seja, exaltando o pior lado que a favela pode ter (drogas, criminalidade).
Desse modo, a tentativa do rapper é a de simplesmente descrever o dia-a-dia de
muitos jovens das periferias das grandes cidades. Embora algumas vezes pareça uma
31 POETAS DE RUA, Vol. 1 32 HERSCHMANN, M. op. cit. p. 197/8
17
espécie de incitação ao crime, o objetivo do rapper ao explorar o teor violento da letra é
mostrar a sua insatisfação e a sua revolta contra aquele cotidiano de “revólver, maconha,
polícia e cocaína”. A prova disso é que a grande maioria de compositores desse estilo de
rap mais ‘pesado’ também compõem raps mais otimistas, ou, no mínimo, evidenciam certa
esperança em meio à verborragia.
Uma outra questão a ser analisada a respeito dessa cruel realidade retratada no rap
é o caráter unificador que aquele discurso apresenta. Em outras palavras, os rappers, ao
elaborarem as letras de suas músicas, mesmo que inconscientemente, tendem a passar uma
certa mensagem para o público da periferia que diz estarem eles todos “no mesmo barco”,
isto é, enfrentando o desgosto pelas mesmas dificuldades, sendo importante, então, que
todos se unam contra o inimigo em comum dos oprimidos: o “Sistema”.
A perspectiva estrutural fundamenta a análise da juventude das periferias urbanas a
respeito do “Sistema”, como mostra o rapper PMC:
[...]O tempo está passando e quase nada mudando Infelizmente a situação piorando O povo continua desorientado Por um Sistema indeciso e tão manipulado Por falta de alimentação e a desinformação É um problema que envolve a nossa população Há muito tempo que estamos vivendo na merda (Pode “crê”, PMC, suas palavras estão certas!) Somos um bando perdido, discriminado, oprimido Oprimido, sim, discriminado então O Sistema me coloca nesta situação! [...]34 (Radical Sim – PMC, 1994[?])
Grande parte das letras de rap direcionam toda a sua violência, no sentido colocado
por Diógenes, para o inimigo “Sistema”. Mas, quem ou o que é este inimigo cruel e
opressor que é o responsável pela manutenção das desigualdades? Para Mariane Lourenço,
o “Sistema” pode ser considerado “um intrincado jogo de burocracias impessoais, que
aumenta a sensação de que é impossível agir”, ou seja, na dificuldade de se atribuir culpas
33 DIÓGENES, G. op. cit. p. 134 34 POETAS DE RUA, Vol. 1
18
– afinal, ninguém é diretamente responsável – ‘elege-se’ para protesto o inimigo
“Sistema”, que, conforme a autora, “é todo mundo e, ao mesmo tempo, ninguém”35.
Portanto, a impossibilidade de atuação política direta é a tônica que envolve a idéia
da eleição de um inimigo chamado “Sistema”. Contudo, apesar deste não ser de certa
forma ‘palpável’, podemos afirmar que, para os rappers, o “Sistema” tem seus
representantes, tais como a polícia (os “otários fardados”), os jovens ‘inscritos’ (tidos
como “playboys”), além de políticos (“corruptos racistas”) e jovens de periferia alienados
(nas letras muitas vezes citados como “acomodados”). Enfim, apesar de o “Sistema” ser
uma abstração, a forma como ele se manifesta é, para os rappers, muito clara e presente,
sendo que o rap, juntamente com os outros elementos do hip-hop, tem a obrigação de
combatê-lo.
2.3 RAP, CULTURA POLÍTICA E INDÚSTRIA FONOGRÁFICA
Como afirmado anteriormente, para um determinado rap ser bem aceito no meio
hip-hop, sua letra tem de conter uma “mensagem”, servindo o rap muito mais como um
instrumento político do que como um mero entretenimento lúdico. Em outras palavras, o
rap deve ter a função de combate ao “Sistema”, e não fortalecê-lo por meio da alienação
do público. Pretendemos aprofundar essa questão na sequência.
Datam do biênio de 1988/9 os primeiros registros fonográficos de rap no Brasil,
mais especificamente em São Paulo. Coletâneas como Hip Hop Cultura de Rua e
Consciência Black Vol. 1 foram álbuns que revelaram para o público do hip-hop os
rappers que se consagrariam – quase dez anos depois – como os maiores nomes do rap
nacional: a dupla Thaíde e DJ Hum, e os membros do até então não formado Racionais
Mc’s.
O período que nos propomos a refletir (1988-94) é interessante no sentido de
percebermos que é nesse espaço de tempo que se consolida o rap (e, com ele, a ideologia
do hip-hop) para o público de periferia, ainda que fundamentalmente em São Paulo e
35 LOURENÇO, Mariane Lemos. Cultura, arte, política e o Movimento Hip Hop. Curitiba : Chain, 2002. p.161
19
Brasília. Portanto é esse o momento no qual há uma grande tentativa de solidificação da
cultura política dos rappers (e dos futuros hip-hoppers)36.
Essa cultura política desenvolvida pelos adeptos do hip-hop no início da
disseminação dessa cultura de rua influenciou muito nas relações que o rap vem mantendo
ao longo dos últimos dez anos com a indústria fonográfica. Para Herschmann,
Pode-se afirmar que o mercado funk e do hip-hop se desenvolveram à margem ou nos interstícios da indústria cultural. Entretanto, em vez de sair de uma condição informal/ marginal e consolidar-se como um subproduto internacional da world music, tal como o samba e outras expressões culturais inscritas sob o rótulo axé music, o funk e o hip-hop produzidos no Brasil, apesar do sucesso, mantiveram, até o momento, uma condição ambígua – periférica e central em relação ao mercado e à cultura urbana37.
A análise apresentada pelo autor neste trecho é valida para retomarmos a discussão
sobre o funk e o hip-hop. Um tema comum na grande maioria de teses e livros sobre hip-
hop, principalmente nos que usam entrevistas como fontes de análise, é a preocupação dos
rappers em não serem comparados aos funkeiros, não só pela matriz musical diferenciada,
mas, principalmente, pela ‘função’ (como vimos anteriormente) que cada um deles
admitem ter na sociedade.
O movimento funk carioca nasceu e cresceu quase que paralelamente ao hip-hop
paulistano (em menor proporção: ao brasiliense, fortalezense, entre outros). Entretanto, ao
contrário do que ocorreu com a música do hip-hop, houve no início dos anos 90 uma
espécie de “aliança” entre o movimento funk e algumas grandes gravadoras, o que
resultou na ascensão do funk no mercado fonográfico e nos meios televisivos, inclusive
chegando a “monopolizar” certos programas de audiência jovem, como o Xuxa Hits, na
Rede Globo.
Essa “explosão” da cultura funk assume um significado de grande importância se
pensarmos o seu papel na formação da cultura política dos rappers. Nas palavras de
Herschmann, as culturas hip-hop e funk se difundem através de “circuitos marginais e
alternativos de produção/ consumo” que são representados por selos e gravadoras
independentes, programas de rádios comunitárias, revistas, fanzines, etc., os quais, para
36 Como cultura política de um movimento, entendemos ser algo que “se constrói ao longo da trajetória e não é mera herança de tradições passadas. É algo vivo e operante. Ela se constrói a partir da experiência vivenciada no cotidiano. O conjunto das práticas sociais, informadas pelas ideologias e representações, configuradas pelo projeto do movimento” (GOHN, M. Teoria dos movimentos sociais... p. 259) 37 HERSCHMANN, M. op. cit. p. 245
20
rappers e funkeiros, têm significados distintos. Enquanto que a “indústria alternativa”,
para os funkeiros, é uma forma de garantir certa visibilidade, podendo até ser considerada
como uma porta de entrada para a contratação por uma grande gravadora (como no caso
de alguns no boom de 1993), para os rappers, esse circuito alternativo garante um relativo
controle sobre seu trabalho, pois, para eles, a união à uma grande gravadora representa
ceifar toda a liberdade de palavra necessária à produção de um rap “de atitude”.
Nesse sentido, o boom do funk na primeira metade da década de 1990 pode ser
articulado com a consolidação da consciência crítica dos rappers, pois, para estes, ficava
evidente que a “grande indústria cultural” tinha interesse exclusivamente em produtos
“alienáveis” e/ou representantes da cultura dominante, conforme veremos:
[...]Encaro a vida de frente pois sei aonde mora o cara Não sou “pensador”, sou da rua onde é a lei da bala[...] (Bem vindos ao inferno – Sistema Negro, 1994)
Como bem mostra esta pequena parte da letra, o processo de consolidação da
cultura política dos rappers também foi influenciado, além de pela “explosão lúdica” do
funk, pela ascensão de um rapper carioca branco, de classe média-alta, aliado à uma
grande gravadora: Gabriel, O Pensador.
Independente da sua qualidade como letrista, as críticas a ele dirigidas pelos
rappers de periferia caminhavam no sentido de em seu rap não ressoarem os preceitos de
“atitude” do hip-hop. Por mais conteúdo crítico que contivessem as letras como Retrato de
um playboy e Lôra burra, que “estouraram” em 1993, aquelas não representavam a
realidade dos bairros de periferia brasileiros, o que, aliás, não era o objetivo do rapper
carioca. Enfim, um rapper que tratava em tom crítico de temas pautados na sua realidade
de classe média, O Pensador, para os adeptos do hip-hop, era o esteriótipo que se
enquadrava para o rap se aliar ao “Sistema”.
Nosso argumento, pois, se encontra na tentativa de somar elementos (como o boom
funk e a ascensão d’O Pensador) de destaque no período de formação da cultura política
dos rappers e que, por sua vez, tenham dado um alerta, ou, em certa medida, tenham
influenciado na consolidação da consciência crítica dos membros do hip-hop,
principalmente no que tange às relações deles com a indústria cultural, mais
especificamente com a indústria fonográfica.
21
Podemos considerar, por fim, que o rap brasileiro obteve tempo suficiente e
condições favoráveis para a consolidação da sua cultura política em circuitos marginais de
produção e consumo até a sua “grande explosão” em 1997 com o disco Sobrevivendo no
Inferno, do Racionais Mc’s, que obteve uma vendagem de mais de um milhão de cópias
pelo selo Cosa Nostra, dos próprios Racionais. Enfim, essa cultura política forjada na
marginalidade/ informalidade, somada com a do próprio movimento hip-hop, vem
exigindo na última década que a “grande indústria fonográfica” ceda em prol do hip-hop
brasileiro ao ter em vista uma fatia desse grande mercado, que, nos dias de hoje é formado
não só por jovens de periferia, como também de certos setores da classe média.
22
3. OS RAPPERS EM AÇÃO: DISCURSO E PRÁTICA
Nos capítulos anteriores tentamos demonstrar de que maneira a postura crítica dos
rappers se fortaleceu em oposição a um escolhido inimigo (o “Sistema”) e a certos
representantes deste, como as “grandes gravadoras”, responsáveis pela exploração da
alienação (através do funk) e da divulgação dos raps de um representante do setor
dominante, qual seja, Gabriel, O Pensador. Dessa forma, a cultura política dos rappers
brasileiros se consolidou em torno dos preceitos do hip-hop em confluência com uma
exaltação à verdadeira função do rap para eles, que é a de denunciar e informar.
Nesse primeiro momento da investigação, demos certa prioridade aos raps que
caracterizamos como denunciativos/ distópicos. Naturalmente, se a função do rap não é só
“denunciar”, mas também “informar”, não podemos deixar de lado essa importante fração
dos raps, os quais categorizamos como raps de caráter propositivo. Nesse sentido,
analisaremos as ‘propostas’ expressas nas letras dos rappers.
3.1 A NOÇÃO DE CAMPO DE POSSIBILIDADES: “ESCOLHA O SEU
CAMINHO”
Às vezes eu paro e reparo e fico a pensar Qual seria o meu destino senão cantar Fui rejeitado, perdido no mundo, é um bom exemplo Irei fundo no assunto, fique atento [...] (Beco sem saída – Racionais Mc’s, 1990)38
No sentido de dar um maior fundamento teórico à pesquisa, galgaremo-nos em
noções apresentadas pelo antropólogo Gilberto Velho no livro Projeto e Metamorfose
(1994), trabalho este que aprofunda elementos para o estudo da atuação de grupos e,
especialmente de indivíduos-sujeitos, dentro de sociedades complexas39. Estas, de acordo
com o autor, são sociedades caracterizadas pela coexistência de estilos de vida e visões de
mundo diferentes, o que nos permite considerar como sendo os exemplos mais pertinentes
os grandes centros urbanos, os quais são os espaços de atuação dos adeptos do hip-hop.
38 POETAS DE RUA, Vol. 1 39 VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1994
23
Em se tratando do presente estudo, a noção de campo de possibilidades presente na
obra de Velho assume maior importância. Nas palavras do autor:
[...] na grande metrópole contemporânea, encontramos não só um maior número e diversidade de papéis e domínios, como evidentes descontinuidades e contradições entre estes. Família, trabalho, religião, lazer, opções políticas, entre outros, configuram um campo de possibilidades em que os atores individuais se movem, mais ou menos impelidos e pressionados, mas com uma gama básica de alternativas e opções. Embora existam papéis e situações mais contaminadores, há maior separação e autonomia, produzindo maior margem de manobra do que num pequeno grupo, relativamente isolado, onde todos se conhecem.
40
Desse modo, Gilberto Velho dá exemplos de possibilidades de atuação do
indivíduo dentro do campo das sociedades complexas, quais sejam:
[...] a adesão vigorosa e militante a uma ordem de valores, religiosa ou não, é uma alternativa possível.[...] A circulação entre vários estilos de vida e uma participação limitada ou, mesmo, um certo grau de sincretismo pode ser outro caminho, bastante comum.[...] uma certa indiferença e distanciamento em relação à multiplicidade de estímulos e situações é outra possibilidade. O ceticismo radical [...] é também uma resposta possível às descontinuidades e fragmentação da sociedade moderna.41
Se nos propusermos a “encaixar” os rappers em algum desses “modelos de
atuação” indicados por Velho, tendo em foco as letras, certamente enquadraremos aqueles
dentre os mais radicais, dependendo do teor do rap: “adepto vigoroso/ militante” para os
compositores de raps propositivos; “cético radical” para os que elaboram raps
denunciativos/ distópicos. Como já comentamos no decorrer desta pesquisa, essa oposição
extremada é verificada nos raps, e não nos rappers, que, na maioria das vezes, compõem
ambos os “estilos” de rap. Inclusive um rap pode conter, ao mesmo tempo, a militância e o
ceticismo, traduzindo o ideal “denunciar e informar” dos rappers.
De certa forma, essa leitura ‘de extremos’ feita pelos rappers não é senão o reflexo
da tensão vivida pelos jovens das periferias urbanas brasileiras que, ao crescer em contato
próximo com a criminalidade, tendem a enfrentar uma encruzilhada entre optar pelo
“bem” ou pelo “mal”. Aprofundemos com a análise da fonte:
40 Idem, p. 79. 41 Idem, p. 98
24
[...] “– Então, vocês que fazem um rap, aí e tal... tão cheio de ser professor... falá de droga, polícia... e tal, e aí? Mostra uma saída, mostra um caminho aí, então...” (trecho
falado) Cultura, educação, livros e escolas Crocodilagem demais, vagabundas e drogas A segunda opção é o caminho mais rápido e fácil A morte percorre a mesma estrada é inevitável [...] Você tem duas saídas: Ter consciência ou se afogar na sua própria indiferença Escolha o seu caminho (dê-nos ouvidos!) Ser um verdadeiro preto, culto, informado Ou ser apenas mais um negro limitado (Negro limitado – Racionais Mc’s, 1992)42
O excerto selecionado é significativo para trabalharmos a questão de como os
rappers interpretam o dito ‘campo de possibilidades’ de acordo com a sua própria
experiência. O radicalismo que impera na abordagem do campo de alternativas por eles
explicitado, como comentado anteriormente, é marcante. Para os rappers, os jovens de
periferia têm “duas saídas”: a primeira, considerada “o caminho mais rápido e fácil”, é
entregar-se ao “Sistema”, deixando-se levar pelo contato com as drogas e com o universo
da criminalidade; a segunda, a mais digna para um “verdadeiro preto”, é a educação (ou a
informação, categoria afirmada pelos rappers em contraposição às formas de atuação que
eles consideram como alienantes, as quais fortalecem o “Sistema”). O maniqueísmo
retratado nas letras, portanto, passa a ser a representação da angústia daqueles jovens na
encruzilhada por eles enfrentada na transição para a vida adulta.
Pois, se no campo de possibilidades de Gilberto Velho “os atores sociais se movem
mais ou menos impelidos e pressionados”, podemos considerar que as letras de rap
estudadas apontam uma dupla “pressão” em relação ao jovem de periferia: uma consciente
e a outra não.
A pressão “inconsciente” provém do contexto social no qual o jovem está inserido,
isto é, na visão dos rappers, o meio/ cotidiano impele aquele jovem para a direção da
criminalidade e/ou das drogas; já a pressão “consciente”, por sua vez, é resultado de um
esforço voluntário que tem um objetivo mais bem definido, o qual, em se tratando de
jovens de periferia, normalmente vai contra certos elementos intrínsecos ao cotidiano por
eles vivido, principalmente com relação à violência.
42 RACIONAIS MC’S. Escolha o seu caminho, 1992
25
Ademais, se voltarmos à questão da função ideal “denunciar e informar” do rap,
podemos conceber como havendo, nas letras, a denúncia da pressão exercida pelo meio/
cotidiano/ “Sistema” e a informação de como os indivíduos, através de um esforço
consciente, devem atuar para combater àquela denunciada pressão sofrida pelos jovens de
periferia. As formas de atuação propostas pelos rappers serão abordadas na sequência.
3.2 O RAP E A PROPOSTA DE INFORMAÇÃO
Como resultado do esforço consciente da denúncia/ informação dos rappers, tem-se
a propagação de novas formas de atuação, sobretudo em âmbito informal. É nesse sentido
que Elaine Nunes de Andrade dá ênfase ao que ela denomina ser o “processo educativo do
movimento hip-hop”43. Esta proposta pedagógica do hip-hop e, consequentemente do rap,
é fundamentada não só no teor crítico do discurso dos rappers (inclusive a questão mais
analisada até agora), como também na prática cotidiana através de iniciativas daqueles
jovens as quais têm por objetivo desenvolver estratégias de melhoria nas suas
comunidades.
O hip-hop, portanto, ultrapassa o limite de um movimento cultural/ artístico para o
de um movimento social no momento em que as práticas executadas por seus membros
“geram uma série de inovações nas esferas pública (estatal e não-estatal) e privada, [além
de participarem] direta ou indiretamente na luta política de um país, e [contribuírem] para
o desenvolvimento e a transformação da sociedade civil e política”44. Enfim, como afirma
Geni Rosa Duarte: “o hip-hop não fica na simples denúncia, mas revela-se um ‘construtor’
de possibilidades e de perspectivas de vida”45.
Como já expusemos anteriormente, o discurso dos rappers é enfático em explicitar
a sua posição em relação ao campo de possibilidades (resgatando Velho) para um jovem
morador da periferia de um grande centro urbano. Eles (os rappers), na tentativa de
explorar a possibilidade de uma vida saudável dentro da própria periferia, constróem
meios de ação e interação que vêm se proliferando nas metrópoles brasileiras, como o caso
das chamadas posses.
43 ANDRADE, Elaine Nunes de. . Hip Hop: movimento negro juvenil. In: Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999. p. 89 44 GOHN, M. op. cit. p. 251 45 DUARTE, DUARTE, Geni Rosa. A arte na (da) periferia: sobre... vivências. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (Org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999, p. 18
26
As posses são espécies de associações organizadas por rappers, breakers e/ou
grafiteiros que têm objetivos variados, como, por exemplo, desenvolver discussões e
oficinas que envolvam temáticas como arte, política, cultura negra, etc. Herschmann,
sempre contrapondo hip-hop e funk, aborda esta questão:
Diferentemente das galeras funk, que se organizam em função, principalmente, da proximidade geográfica (guetos, morros, favelas, conjuntos habitacionais, etc.) e das afinidades mais diversas, as turmas e grupos do hip-hop organizam-se em torno, especialmente, das posses e associações. Distintamente dos funkeiros, buscam não só solidariedade, a cumplicidade do grupo, mas o amparo institucional e assistencial que parecem não encontrar em lugar nenhum.46
Esses grupos se compõem a partir de iniciativas individuais e são muito comuns
principalmente na cidade de São Paulo, sendo por sua proliferação alvo de interessantes
estudos sobre a mobilização dos jovens de periferia, mobilização esta que também é
encontrada nas letras:
[...] Precisamos de nós negros essa é a questão DMN, meus irmãos, descrevem com perfeição, então Gostarmos de nós, brigarmos por nós Acreditarmos mais em nós independente do que os outros façam Tenho orgulho de mim, um rapper em ação Nós somos negros, sim, de sangue e coração Mano Ice Blue me diz: Justiça é que nos motiva a minha, a sua A nossa voz ativa! (Voz ativa – Racionais Mc’s, 1992)47
O extrato escolhido consegue expressar de sobremaneira a falta de apoio
institucional comentada por Herschmann, e ao mesmo tempo, a garra daqueles jovens que,
diante da exclusão social por eles sofrida e das adversidades impostas pelo “Sistema”,
continuam a lutar pela causa da periferia:
Todos em frente todos ao ataque É chegada a hora de mostrarmos o que somos E dizermos que nós estamos vivos Cremos nisso Não seremos eternos submissos[...]
46 HERSCHMANN, M. op. cit. p. 191 47 RACIONAIS, Escolha o seu caminho. 1992
27
( A Voz do Brasil – GOG, 1993[?])48
Obviamente não são as posses as únicas formas de organização da juventude do
hip-hop. Os adeptos do hip-hop dispõem de um “sub”- campo de possibilidades de atuação
os quais podem variar desde a ação pedagógica simples até intervenções maiores por meio
de Organizações Não- Governamentais. O fato é que todas essas formas de atuação são
“independentes”, pois, na maioria das vezes elas não recebem apoio (no sentido de
políticas públicas) para uma melhor ação dentro das comunidades, o que dificulta o seu
trabalho, mas, ao mesmo tempo, unifica a coalizão contra o “Sistema”.
Por conseguinte, compreendemos que o discurso crítico evidenciado nos raps exige
uma participação social efetiva dos membros do hip-hop e que esta participação, em
paralelo com a produção dos raps, está se dando de maneira fértil no âmbito da ação
comunitária, o que nos motiva a um aprofundamento da discussão sobre a concepção de
cidadania dos rappers.
3.3 A VISÃO DE CIDADANIA DOS RAPPERS
A cidadania é um conceito que adquiriu diferentes significados em diversos
períodos na história, sendo que nas últimas duas décadas, admitiu-se dentro das ciências
sociais mudanças no seu conceito tradicional. Segundo Diógenes,
O conceito tradicional de cidadania, em que o recorte é essencialmente político, não consegue dar conta da paradigmática dinâmica da vida social moderna. O ator social constitui-se como ator, mergulhado em uma diversidade de polifonias narrativas e policromias visuais, ensejando campos alternativos de sociabilidade e novos referentes de pertencimento.49
Essa noção de pertencimento, do indivíduo como sujeito da história, é uma
concepção que fica patente na leitura comparativa das letras, as quais tentaremos expor
aqui:
Você se compara a playboys de TV Alisa seu cabelo e finge não ser um PRETO
48 POETAS DE RUA, Vol. 2 49 DIÓGENES, G. op. cit. p. 187
28
Pois, tem que se assumir [...] E muitos como você que não se assumem E sua parte não fazem, tome uma atitude [...] E você, em seu canto, acomodado Dizendo que essa vida é pra tirar um barato Mano, o que você tem em sua cabeça? Acha tudo que é festa, progrida, cresca! [...] (Auto valorização – Consciência Humana, 1995[?])50
Conforme se sucedeu a análise das fontes, cada vez mais fomos nos convencendo
de que a preocupação principal contida nas letras (dos raps propositivos,
fundamentalmente) é a de levar a “mensagem” para o ouvinte (jovem de periferia) de
maneira direta e incisiva, praticamente em tom de cobrança, como mostrou o trecho da
letra selecionada acima. Essa cobrança parte da exigência de uma postura mais ativa em
relação aos problemas que cercam os jovens ouvintes, sendo que os rappers assumem, em
parte, a responsabilidade da “conversão” do jovem no intuito de torná-lo um “adepto
vigoroso/ militante” do hip-hop, nos termos de Velho. Vejamos mais um exemplo:
[...] Por culpa de você que não se valoriza Eu digo a verdade, você me ironiza A conclusão da sociedade é a mesma Que com frieza, não analisa, generaliza e só critica O quadro não se altera e você ainda espera Que o dia de amanhã será bem melhor Você é manipulado, se finge de cego Agir desse modo acha que é o mais certo Fica perdida a pergunta de quem é a culpa Do poder, da mídia, minha ou sua? [...] (Beco sem saída – Racionais Mc’s, 1990)51
Reparemos a quantidade de vezes que o Racionais Mc’s (a exemplo da maioria dos
grupos de rap) menciona a palavra você. Essa persistência é um ponto passível de
discussão ao salientarmos a questão da “pressão” que o rapper deseja fazer sob o ouvinte.
Segundo a “teoria da dupla pressão” anteriormente exposta, o ouvinte (jovem de periferia)
tem todo o seu contexto social (marcado pela violência e pelas drogas) o pressionando; em
contrapartida, ele tem uma música que, a todo o momento, afirma “você não fez/faz isso”,
50 POETAS DE RUA, Vol. 2 51 POETAS DE RUA, Vol. 1
29
“você deve fazer aquilo”, e esta é uma das formas que os rappers acharam para exercer a
sua “pressão”. Outro ponto importante que explica a intensa “pressão” por parte dos
rappers para com o jovem/ ouvinte é a noção que os rappers têm da realidade que cerca o
jovem/ ouvinte. Nesse sentido, sabendo que existe todo um contexto social problemático
influenciando aquele jovem, os rappers tentam, por meio da repetição e da cobrança,
resgatar o papel que aquele deve ter na mudança do meio em que vive52.
Dessa maneira, o discurso dos rappers é portador de um tom desafiador com
relação ao ouvinte principalmente quando este é questionado sobre o que ele/ “você” está
fazendo para mudar a sua situação. É nesse sentido que podemos captar a concepção de
cidadania dos rappers, que vai de encontro com a noção da “nova cidadania” dos anos 90
expressada por Evelina Dagnino:
A nova cidadania requer (e é até pensada como sendo esse processo) a constituição de sujeitos sociais ativos, definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania “de baixo para cima”.53
Como pudemos perceber nas letras, essa concepção de sujeitos sociais ativos
encabeça de forma persistente a relação que o rapper tenta manter com o jovem de
periferia, ao passo que, com o desenrolar dessa relação, essa idéia de que “cada um deve
fazer a sua parte” vem se disseminando e produzindo frutos como o caso das associações
de rappers. A cidadania, pois, para os rappers, tem haver com toda a forma de ação que
um indivíduo demonstre com enfoque na melhoria de vida das camadas populares.
Portanto, através da cobrança e da repetição, os rappers mostram de que forma o
jovem ouvinte deve agir dentro do campo de possibilidades proporcionado pela periferia.
Essa persistência dá resultados, na medida do possível, satisfatórios, desenvolvendo ainda
mais a cultura política e prática dos adeptos da cultura hip-hop principalmente nos termos
do resgate da verdadeira função do rap e da verdadeira função do cidadão.
52 É possível, inclusive, fazermos uma analogia que o rap tem com o papel dos pais na família moderna. Como a presença dos pais na educação dos filhos, principalmente na periferia, é um tanto distante, o rap assume o papel – o qual seria dos pais – de cobrar e ficar repetindo por uma melhor atuação dos filhos/ jovens dentro da sociedade. 53 DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova concepção de cidadania. In: Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1994. p. 108
30
CONCLUSÃO
Caminhando rumo a um desfecho, acreditamos que o presente estudo tenha aberto
algumas portas para a interpretação da tensão entre exclusão e inclusão social vivida pelos
jovens das periferias urbanas brasileiras.
Nesse sentido, pudemos observar que, ao mesmo tempo em que existe o que
chamamos de “aversão social” dos setores dominantes em relação a certos grupos das
classes populares, estes, por sua vez, tendem a se unir cada vez mais em torno das sua
estigmatizadas identidades no intuito se incluírem socialmente através de modelos de
inserção e/ou resistência que, no caso dos jovens, podem variar desde grupos cometedores
de atos ilícitos até a militância dentro de movimentos sociais, como o hip-hop.
Os membros do movimento hip-hop, por sua vez, reconhecem-se na defesa de um
elemento de identificação por eles chamado de atitude, isto é, a severa postura diante das
injustiças sociais e/ou a ação de combate às mesmas. A função do rap, portanto, para os
jovens do hip-hop, é a de combater um inimigo abstrato por eles eleito, porém que se faz
presente em quase todas as situações de desigualdade: o “Sistema”. A resposta à crueldade
deste “Sistema” é a agressividade nas letras dos rappers, as quais são, segundo Micael
Herschmann caracterizadas pela verborragia. Enfim, dentro desse campo de combate ao
“Sistema”, somamos dois elementos contextuais que, em nosso entendimento, ajudaram a
fortalecer a cultura política dos rappers: o boom do movimento funk carioca e a projeção
nacional do rapper de classe média Gabriel, O Pensador, ambos por volta de 1993. Com
base na postura crítica dos rappers diante destes dois fenômenos da “grande indústria
fonográfica”, pudemos concluir que estes exerceram certa influência na formação de uma
cultura política de rejeição dos rappers no sentido de ter dado uma espécie de alerta
àqueles sobre as relações que o rap produzido na periferia poderia vir a ter com a indústria
fonográfica.
Em contrapartida, esses mesmos letristas que compõem raps caracterizados pela
“verborragia”, têm composições que propõem posturas mais participativas do seu público
alvo (os jovens das comunidades periféricas).
De acordo com a análise feita das letras, foi possível notar que, apesar de ser
conferido a cada jovem um campo de possibilidades, nos termos de Gilberto Velho, na
perspectiva dos rappers aquele ‘campo de possibilidades’ é interpretado por uma visão
31
maniqueísta de alternativas. Para eles, existem opções boas e ruins. As ruins são
representadas pelas drogas e pelo crime (na voz dos Racionais Mc’s, “a saída mais rápida
e fácil”), sendo que as boas são a educação e o trabalho (ou qualquer forma de atuação
que não seja ilegal e alienante). Os rappers, portanto, defendendo os princípios da
“verdadeira função do rap”, manifestam uma grande agressividade em suas letras ao
denunciar o violento cotidiano em que vivem e, ao mesmo tempo, uma adesão vigorosa e
militante à ordem de valores do hip-hop ao incentivarem os jovens de periferia a dar mais
valor à sua cultura, principalmente por meio da educação informal.
Esse processo educativo do hip-hop e, consequentemente do rap, é fundamentado
não só no teor crítico do discurso dos rappers, como também na prática cotidiana através
de iniciativas daqueles jovens que têm por objetivo desenvolver estratégias de melhoria
nas suas comunidades. A partir disso analisamos as letras no sentido de tentar extrair o
conceito de cidadania presente nos raps. Este conceito, ao que indicam as fontes, constrói-
se para os rappers individualmente, através da valorização da necessidade de cada pessoa
exercer o seu papel dentro da sociedade, como sujeitos sociais ativos.
Dessa maneira, a presente pesquisa apresentou discussões acerca da percepção que
os rappers possuem da realidade de exclusão que os engloba. Também, com este trabalho,
tornou-se possível a indicação de certos elementos – expostos durante o texto – sobre a
relação entre exclusão e inclusão social dos jovens das periferias das grandes cidades
brasileiras. Esperamos que estes elementos apontados, por hora pouco aprofundados,
sirvam para incentivar estudos de maior fôlego sobre o tema, o que ainda está por
acontecer no meio historiográfico.
32
FONTES
COLETÂNEA. Poetas de Rua (Vol. 1). São Paulo : Zâmbia Fonográfica, 199[5],
13 faixas.
COLETÂNEA. Poetas de Rua (Vol. 2). São Paulo : MA Records & Zimbabwe
Records, 1996, 13 faixas.
RACIONAIS MC’S. Escolha o seu caminho. São Paulo : Zimbabwe Records &
RDS Fonográfica, 1992, 4 faixas.
33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, Miriam (et al.). Gangues, galeras, chegados e rappers:
juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro :
Garamond, 2002.
ANDRADE, Elaine Nunes de. Hip Hop: movimento negro juvenil. In: Rap e
educação, rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999.
ARCE, José Manuel Valenzuela. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e
grafite. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 1999.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. Vols.
1e 3. São Paulo : Paz e Terra, 2001
DAGNINO, Evelina (Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo :
Brasiliense, 1994.
DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o
movimento hip-hop. São Paulo : Annablume, 1998.
DUARTE, Geni Rosa. A arte na (da) periferia: sobre... vivências. In: ANDRADE,
Elaine Nunes de (Org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos. São Paulo : Loyola, 1997.
HERSCHMANN, Micael. O Funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro :
Editora UFRJ, 2000.
LAROUSSE-CULTURAL, Grande enciclopédia ilustrada. São Paulo : Larousse &
Nova Cultural, 1998, p. 4804
LOURENÇO, Mariane Lemos. Cultura, Arte, Política & O Movimento Hip Hop.
Curitiba : Editora do Chain, 2002.
MAGNANI, José Guilherme. Transformações da cultura urbana das grandes
metrópoles. In: MOREIRA, Alberto (Org.). Sociedade global: cultura e religião.
Petrópolis : Vozes, 1998. p. 63
NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte : Editora Atlântica,
2002.
NOVAES, Regina Reyes. Juventudes cariocas: mediações, conflitos e encontros
culturais. In: VIANNA, Hermano (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e
encontros culturais. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 2003.
34
ROSE, Tricia. Um estilo que ninguém segura: política, estilo e a cidade pós-
industrial no hip-hop. In: HERSCHMANN, Micael (Org.). Abalando os anos 90 – funk e
hip-hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro : Rocco, 1997.
TELLA, Marco Aurélio Paz. Rap, memória e identidade. In: ANDRADE, Elaine
Nunes de (Org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Selo Negro, 1999.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades
complexas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1994.
YOSHINAGA, Gilberto. Resistência, arte e política: registro histórico do rap no
Brasil. Monografia de conclusão de curso, Comunicação Social/ habilitação em
jornalismo, UNESP, 2001.
ZALUAR, Alba. Gangues, galeras e quadrilhas. In: VIANNA, Hermano (Org.).
Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro : Editora
UFRJ, 2003.