a linguagem do rap

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1 O Código dos Marginalizados: a linguagem do Rap Álvaro Cardoso Gomes Márcia Aparecida Leão * Resumo: O artigo trata das composições do rap, tentando mostrar que elas manifestam, em suas letras, o cotidiano da população marginalizada da periferia. Analisando os aspectos formais das canções, o vocabulário, as imagens, os autores constatam a presença de um dialeto específico que se contrapõe à norma culta, como forma de protesto, de defesa contra a opressão. Palavras-chave: rap, canção, dialeto, socioleto, verso, poesia. Os compositores de rap (rhithm n´ poetry) orgulham-se de cantar canções que registrem o cotidiano de quem mora na periferia. Acreditam que estão denunciando os processos de violência, de marginalização social a que são submetidos. E mais, esperam que as composições deixem uma mensagem para o público que as escuta, de forma a mover alguma ação afirmativa em favor da comunidade pobre. Os adeptos deste estilo musical formam um grupo específico que atua dentro ou fora da cultura Hip Hop. Os cantores de rap estabelecem códigos entre si, incluindo o modo de vestir: o tênis com cadarço desamarrado, adornos dourados (imitando jóias), jaquetas escuras e bandanas, uma espécie de lenço que vai abaixo do boné. Mas é preciso considerar também um modo todo especial de se comunicar, com os rappers criando uma linguagem codificada, um modo de se expressar específico, para gerar uma compreensão restrita por parte daqueles que não pertençam à comunidade. Na análise de Thaíde: Para quem conhece a história sabe da sua importância porque na verdade o rap é isso, comunicação, informação e entretenimento. Infelizmente, muitos o estão usando como comunicação e outros como informação. Vejam bem, se a música rap tem esses três aspectos, porque então retalhá-la? Também não posso interferir na opinião de todos. Cada um faz sua música da forma que decidir, mas o mais interessante é que, não todos, mas uma boa parte, decidiu fazer do * Álvaro Cardoso Gomes é professor do programa de pós-graduação multidisciplinar em “Administração, Comunicação, Educação” da Universidade São Marcos e romancista; Márcia Aparecida Leão é mestra no mesmo programa e professora de Sociologia e História da Educação.

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Page 1: A Linguagem Do Rap

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O Código dos Marginalizados: a linguagem do Rap

Álvaro Cardoso GomesMárcia Aparecida Leão*

Resumo:O artigo trata das composições do rap, tentando mostrar que elas manifestam, em suasletras, o cotidiano da população marginalizada da periferia. Analisando os aspectosformais das canções, o vocabulário, as imagens, os autores constatam a presença de umdialeto específico que se contrapõe à norma culta, como forma de protesto, de defesacontra a opressão.Palavras-chave: rap, canção, dialeto, socioleto, verso, poesia.

Os compositores de rap (rhithm n´ poetry) orgulham-se de cantar canções que

registrem o cotidiano de quem mora na periferia. Acreditam que estão denunciando os

processos de violência, de marginalização social a que são submetidos. E mais, esperam

que as composições deixem uma mensagem para o público que as escuta, de forma a

mover alguma ação afirmativa em favor da comunidade pobre. Os adeptos deste estilo

musical formam um grupo específico que atua dentro ou fora da cultura Hip Hop. Os

cantores de rap estabelecem códigos entre si, incluindo o modo de vestir: o tênis com

cadarço desamarrado, adornos dourados (imitando jóias), jaquetas escuras e bandanas,

uma espécie de lenço que vai abaixo do boné. Mas é preciso considerar também um

modo todo especial de se comunicar, com os rappers criando uma linguagem codificada,

um modo de se expressar específico, para gerar uma compreensão restrita por parte

daqueles que não pertençam à comunidade. Na análise de Thaíde:

Para quem conhece a história sabe da sua importância porque na

verdade o rap é isso, comunicação, informação e entretenimento.

Infelizmente, muitos o estão usando como comunicação e outros como

informação. Vejam bem, se a música rap tem esses três aspectos,

porque então retalhá-la? Também não posso interferir na opinião de

todos. Cada um faz sua música da forma que decidir, mas o mais

interessante é que, não todos, mas uma boa parte, decidiu fazer do

* Álvaro Cardoso Gomes é professor do programa de pós-graduação multidisciplinar em “Administração,Comunicação, Educação” da Universidade São Marcos e romancista; Márcia Aparecida Leão é mestra nomesmo programa e professora de Sociologia e História da Educação.

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mesmo jeito. Será que todos têm que falar do mesmo jeito, e muitas

vezes errado?.

A gíria existe porque surgiu como código da área onde as

pessoas pudessem tratar de assuntos que só a elas interessavam, nunca

foi sinônimo de erro verbal. A gente se preocupa tanto com a

autenticidade das ruas que acabamos esquecendo da nossa própria

autenticidade1.

As músicas são consideradas como armas pelos seguidores do movimento rap,

porque veiculam expressões fortes, sem limites verbais, que estimulam os sentimentos

de revolta, de vazio, de perda. O ritmo, a mensagem dos pobres da periferia de que tudo

está perdido e que não há mais nada a fazer, e até mesmo o próprio cenário de miséria e

violência, fazem nascer uma espécie de convocação de guerra contra aquelas pessoas

que conquistaram algum bem ou trabalho e principalmente contra os responsáveis pela

repressão, no caso, a polícia. Seguidores da cultura Hip Hop dizem que esse tipo de rap

é muito ruim para as crianças e os mais jovens, pois os afasta de oportunidades de

estudos e até mesmo de formar uma identidade social positiva. O trabalho de

institucionalização do Hip Hop tem o propósito de mostrar o contrário para os

adolescentes, isto é, que é um movimento preocupado com a formação e informação dos

garotos, no intuito de prepará-los, em sua auto-estima, para o mercado de trabalho. O

compositor do rap, via de regra, escreve uma letra contundente que serve para alertar

sobre a realidade sofrida pelo grupo social em que os afrodescendentes estão inseridos,

assim como faz reflexões sobre o que irão enfrentar numa sociedade racista e desigual.

Seus intérpretes são chamados de repentistas eletrônicos, porque despejam frases

ininterruptas com um fundo sonoro formado por distorções do scratch (manipulação de

um disco em vai-e-vem, enquanto ele gira no prato), de baterias eletrônicas ou samplers.

A aparente agressividade do rap cativa muitos adeptos, seja da periferia ou da

classe média2. São jovens que se identificam com o estilo de letras repletas de palavras

de baixo calão, compostas por adolescentes com caras de maus. Jovens que não sabem

1 São informações de Dj Thaíde, um dos precursores do rap no Brasil e também artista do movimento, atuantenas festas e artes de rua, no centro de São Paulo. Esta declaração foi dada em entrevista ao jornal interno daCasa do Hip Hop, em Diadema. Informativo do Centro Cultural Canhema – Casa do Hip Hop, nº 3, maio de2000 – 4.000 exemplares distribuídos pela comunidade. Ritmo & Poesia, caderno Ponto de Vista.2 Os jovens de classe média não vivem o mesmo drama da população de periferia, porém como adolescentesque são, buscam na agressividade e violência dos guetos o aumento de adrenalina e aventuras.

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se expressar direito e só falam de “tretas”3 e do bairro onde vivem, como se fosse o

lugar mais perigoso do mundo. As características do movimento Hip Hop apresentam

elementos que Manuel Castells chamou de construção da “identidade de projeto”, cuja

formação se dá a partir de um projeto cultural. Observa-se que o rap se destaca das

outras artes de rua por criar possibilidades para a construção de uma identidade de

resistência, que Castells analisa: “criada por atores que se encontram em

posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação,

construindo assim trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios

diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes

últimos”4.

Com isso e com a desculpa de reprimir a hostilidade da sociedade racista ou

preconceituosa, jovens formou o movimento rap, o contraponto, o oposto do Hip Hop.

Os adeptos desse movimento realizam verdadeira apologia do crime, do uso de drogas,

da violência, ou simplesmente passam alguma mensagem de alerta ou reflexão sobre a

vida simples e humilde de um afro-brasileiro na periferia.

1. Aspectos Formais das Composições

A maioria dos compositores de rap declarou na mídia que pouco freqüentou a

escola, tendo que parar de estudar, a fim de ajudar a família na sobrevivência. Sem

contato didático com a música, eles se tornaram autodidatas para desenvolver letras e

temas. Em geral buscam na realidade, dentro do universo de pobreza, desemprego,

violência e até mesmo em desilusões amorosas a inspiração para compor. Devido a isso,

supõe-se que tanto o conhecimento das técnicas musicais quanto das técnicas utilizadas

para a composição das letras originam-se da espontânea influência de músicos que

admiram. A elaboração das letras se dá na práxis, no ato da escritura, da composição.

Por isso mesmo, a formação do gosto dos compositores obedece a um princípio de

imitação de modelos musicais, disseminados na comunidade a que pertencem. Como

não poderia deixar de ser, é possível identificar em todas as composições determinados

elementos básicos, presentes nas letras da música popular, como o verso, a estrofe, a

rima. Formalmente, portanto, as letras têm como unidades básicas os versos, se

3 Ao final deste capítulo vem uma lista de termos usuais no movimento Hip Hop. Dentre as palavras maiscomuns usadas pelos adeptos do movimento, a palavra treta significa conflito, confusão, bagunça, briga.

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entendermos os versos como segmentos frasais ou segmentos de frases, com algumas

características específicas:

É a sucessão de sílabas ou fonemas formando unidade rítmica e

melódica, correspondente ou não a uma linha do poema. Cada

verso pode compor-se de subunidades ou células métricas,

caracterizadas pelo agrupamento de sílabas, chamado pé na

versificação greco-latina; ou compor-se de uma seqüência de

sílabas ou fonemas, como de uso entre as línguas românticas. No

primeiro caso, a quantidade ou duração das sílabas é que importa;

no segundo, o seu número; ali temos o sistema quantitativo, aqui o

silábico, qualitativo ou acentuativo5.

Mas os versos das composições do rap, de maneira geral, além de serem

descomprometidos com uma metrificação precisa, são também quantitativamente muito

longos. A falta do conhecimento clássico da metrificação faz com que os rappers

ignorem o ritmo silábico do verso e o substituam pela batida forte da música; mais

precisamente é possível dizer que o cantor/compositor segue o compasso do bumbo..

Nas letras de rap, portanto, não se pode falar em regularidade no sistema quantitativo,

pois a variação de sílabas de verso para verso é muito grande, como se pode verificar no

exemplo abaixo:

Diadema 2 do doze de 99.

1 2 3 4 5 6 7 8 9-12

Saudades amigo Dexter, tudo bem?

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

Espero que sim e que esta o encontre na mais pura paz espiritual, e que você esteja

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 161718 19 20 21 22 23 242526

firme e forte.

27 28 29

Olha, por aqui

4 Vale lembrar o seu significado no movimento Hip Hop. Castells, op. cit., p. 24.5 Idem, p. 508.

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1 2 3 4 5

nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Os versos numa mesma composição costumam ter medidas completamente

diferentes. No exemplo citado, dá para verificar que há um alexandrino clássico, com

acento, nas 2ª, 6ª e 12ª sílabas, um verso eneassílabo e outro pentassílabo. Essa

disparidade silábica dos versos implica variação rítmica muito grande, como se, na

entonação, o compositor representasse e/ou mimetizasse o ritmo da fala, do

coloquialismo, na medida em que tais composições, ainda que visando ao canto,

costumam também ser recitadas/faladas. Assim, por exemplo, os versos “olha por aqui”

e “nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis” supõem uma

natural continuidade, dentro de um contexto puramente prosaico. A transformação em

verso (e não poesia frise-se bem, como explicaremos adiante) é responsabilidade

exclusiva da entonação que dita as pausas, por meio da eliminação da pontuação, para

permitir as quebras de frases perfeitamente elaboradas e que, fora do contexto da

canção, passariam por uma seqüência frasal prosaica, desde que se evitasse a quebra e

desde que também se utilizasse com propriedade a pontuação: “Olha, por aqui, nada

anda bem. Cada dia que passa, as coisas ficam mais difíceis”.

Na composição “Pião da Vida Loka” , a variação da extensão dos versos é

levada ao extremo, pois, em alguns momentos, os versos compreendem duas linhas; em

outros, seis e mesmo dez, isso se se considerar os blocos de frases, limitados pelo ponto

final, como um conjunto de versos (e/ou estrofe). Se não se considerar desse modo, é

possível ver cada bloco, limitado pela pontuação, como um único e extensíssimo verso,

cuja medida varia intensamente. Outra coisa: a alternância entre os blocos mais curtos e

os mais longos é aleatória, não obedecendo a nenhum padrão definido. O caráter

aleatório da arrumação dessa composição e, acima de tudo, do tamanho dos versos,

serve para salientar o aspecto recitativo da composição com uma entonação mais

prosaica, que mimetiza o ritmo da fala, do coloquial.

Mas, nas letras, chama a atenção também a utilização da rima, recurso nem

sempre constante e que obedece também a padrões dos mais variados. A rima é um

recurso sonoro que tem uma função de retorno a um princípio e que, portanto, facilita

não só a memorização de uma seqüência, como também serve para prever a sonoridade

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vindoura. Evidentemente, a rima não é garantia de poesia. É apenas um recurso que

tanto pode servir de adjuvante num texto propriamente poético (por razões intrínsecas

de ritmo e imagem), o que é mais comum, ou mesmo num texto de prosa, embora isto

seja mais raro. No caso das composições, verifica-se, numa primeira instância, a

presença das chamadas rimas soantes, que se caracterizam pela concordância sonora

completa da última sílaba tônica das palavras:

Quero saber o porquê daquele olharEu tô na dela aí, vou enquadrar

As rimas em ar são consideradas ricas, porque a classe gramatical das palavras é

diferente: “olhar”, substantivo, e “enquadrar”, verbo. O mesmo acontece no exemplo

abaixo – a classe gramatical dos termos rimados é diferente (adjetivo, substantivo):

Ontem tudo bem com a família inteiraHoje um a menos parece brincadeira

Em outros exemplos, verifica-se a presença de rimas soantes no interior de um verso:

Eu tô por aqui na fé na paz, na correria adiantos (sic) e mais

e

Me lembro das festas que a gente fazia, saía às dez da noite e só voltava nooutro dia

Esse recurso é levado a extremo em “Pião da vida loka”, talvez para quebrar a

monotonia dos versos muito extensos. Para temperar o prosaico com o poético, por

meio do retorno a um determinado tipo de sonoridade, o autor utiliza-se da engenhosa

repetição de um mesmo recurso: o uso da rima interna, a intervalos mais ou menos

regulares: “enquadrado/forgado”, “facção/capão”, “escadinha/minha”,

“Pinheiros/maloqueiro”, “fora/hora”, “moral/pau”, “joga (por jogar)/fica (por ficar)/luga

(por lugar)”, “hora/fora” e assim por diante.

Além da utilização das rimas soantes, os compositores usam as rimas toantes,

caracterizadas pela concordância sonora somente da vogal tônica da última palavra dos

versos:

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nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.Com a Laisla tudo bem, pois ela ainda uma criança e não compreende assurpresas da vida.Sabe meu amigo...

A concordância rímica se dá somente na identificação sonora da sílaba tônica da última

palavra (“i”). O mesmo acontece nos versos seguintes, em que se dá a identificação

sonora final da tônica “a”:

Natal de 97 passei na sua casa,Muita treta vários amigos na parada

Ainda é preciso considerar, nas letras, a presença do refrão, que institui a

polifonia, ou seja, as vozes que se alternam entre a voz principal, enunciadora do tema,

e o coro, estabelecendo-se uma espécie de contraponto. De recorte muito antigo, essa

técnica, remontando ao teatro grego clássico, sugere a integração entre a voz de

comando do líder e a resposta da comunidade.

A existência dos versos, das rimas, do refrão, expedientes muitas vezes

utilizados pela mais autêntica poesia, contudo, não faz que as letras dessas músicas

constituam poesia em si, o que nos leva a uma reflexão mais cuidadosa das diferenças

de gênero. Em síntese, a poesia se diferencia da prosa, já numa distinção apontada por

Aristóteles, não pela existência do verso (além da rima, é claro) propriamente dito. Há

muitos exemplos da mais genuína poesia que não se utiliza do verso e nem mesmo da

rima, como se pode verificar, por exemplo, nos poemas em prosa de um Baudelaire e de

um Cruz e Sousa. Por outro lado, durante os séculos XVII e XVIII, era muito comum

ver tratados científicos escritos em verso, sem que tais textos pudessem ser

considerados como poéticos. Na realidade, um texto só é considerado poesia, se tiver

um ritmo especial e, sobretudo, se trabalhar com a imagem, como um modo específico

de traduzir o real. (consultar Octavio Paz) A imagem implica a aproximação de coisas

distintas ou a sua diferenciação, num contexto absolutamente sintético, o que supõe o

uso sistemático das chamadas figuras retóricas, principalmente a metáfora, a analogia, a

comparação, a antítese. Já o que acontece nas letras de rap é a prosa pura e simples, com

o ritmo sugerido pelas rimas e, acima de tudo, pelo suporte dado à letra pela entonação,

pelo acompanhamento dos instrumentos musicais, pela batida imposta com o auxílio da

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bateria. Em suma, dizendo o óbvio: as letras só se sustentam quando cantadas e/ou

recitadas, ou, melhor dizendo, não constituem poesia em si, não contém poesia, sem que

isto implique um juízo de valor, no que diz respeito à eficácia e à qualidade desse tipo

de composição.

Ainda formalmente, observa-se que muitas letras seguem o modelo de prosa em

forma de narrativa porque contam histórias de um povo que sofre as conseqüências

diretas da exclusão social, num mercado com poucas oportunidades de emprego e de

sobrevivência. Também há letras em forma demonstrativa, que recorrem à oratória. Há

casos que usam uma estrutura de carta para desenvolver um tema, como no exemplo

abaixo, um modelo de carta inserida na letra de rap. É um dos trabalhos do grupo 509-

E:

Saudades Mil

Diadema 2 do doze de 99.Saudades amigo Dexter, tudo bem?Espero que sim e que esta o encontre na mais pura paz espiritual, e quevocê esteja firme e forte.Olha, por aquinada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.Com a Laisla tudo bem, pois ela ainda uma criança e não compreende assurpresas da vida.Sabe meu amigo...É, vou responder essa carta agoraMês de janeiro, ano 2000, xadrez 509-ESaudades mil.Alô, Alô amiga, como vai você, senti saudades resolvi te escreverEspero que esta carta te encontre numa legal, com saúde harmonia e talEu tô por aqui na fé na paz, na correria adiantos e maisQuase dois anos que a gente não se vê, vira e mexe penso em vocêMe lembro das festas que a gente fazia, saía às dez da noite e só voltavano outro diaQue barato só alegria, lembra? qualquer lugar a gente íaSempre fui considerado, você também, lembra da Simone e da Nenem?Aquelas minas são problemas, zueira de montão, zueira a noite inteiraNatal de 97 passei na sua casa,Muita treta vários amigos na paradaSua irmã estava linda aquele dia, Adriana que gata ave-Maria, foi dahora Natal cabulosoDaria o que tenho pra viver tudo de novoMas aí esqueci perdi tudo, dei tiro no escuro amiga perdi tudoAté aquela mina que dizia me amar,me esqueceu depois que eu vim pracá

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É foda a vida é assim mesmo, nem tudo é do jeito do modo quequeremosInfelizmente retrocedemos não dá mais, bola pra frente é assim que sefazJorge cantou que Charles ia voltar, e como Charles eu também podeacreditarCom este dia não paro de sonhar, quero ver o morro inteiro feliz e pá

(Refrão):

Velha camarada, obrigado pela cartaQue saudade preta rara"Quero viver"De cabeça erguida logo vou sair pra vidaQualquer dia..."Eu vou te ver"Eu recebi a carta que você mandouFiquei desnorteado, aí abalouNão acredito que mataram seu marido, o Amarildo era meu amigoSempre chegou comigo em várias fitas, difícil de entender as surpresasda vidaOntem tudo bem com a família inteiraHoje um a menos parece brincadeiraMeu aliado respeitado no crimeA inveja é uma merda conheço esse filmePeço a Deus que vocês estejam bemE que meu truta esteja em paz Aleluia AmémAí amiga hoje eu não tô legalAfetaram meu lado espiritualVi um maluquinho me olhando diferenteCom a maldade nos olhos entende?A cabreragem tomou conta de mimEu tô esperto ligeiro enfimQuero saber o porquê daquele olharEu tô na dela aí, vou enquadrarO que ele quiser comigo eu quero em dobro, to no veneno, to dispostoAqui nessa porra é assimO demônio te atenta planeja seu fimQue Deus me proteja espero que não seja nadaMas se for topo qualquer paradaAí amiga este lugar é o infernoAí Dexter, caiu mais um no pátio internoViver na paz é o quero, mas não aquela paz fria de um cemitérioLâmpada para meus pés é a palavra de DeusSenhor me proteja este filho seuJorge cantou que Charles ia voltarE como Charles eu também pode acreditarCom este dia não paro de sonharSerei um vencedor pode apostar

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(Refrão):

Velha camarada, obrigado pela cartaQue saudade preta rara"Quero viver"De cabeça erguida logo vou sair pra vidaQualquer dia..."Eu vou te ver"

Aí amiga tô com saudade da quebradaNa próxima carta me fale da rapaziadaComo vai o Romildo e o MarquinhosO Robson Ediberto e o ZinhoAí pede pra eles me escreveremDiga que liguei pra não esqueceremQue o cuidado é necessárioHoje em dia o mundão tá cheio de otáriosNão pensam duas pra puxar o cãoAí já era sobre mais um irmãoSair é arriscado demaisA pedra tá em alta derrubou a pazNóias nas esquinas provocam medoNo nosso tempo não era desse jeitoAí amiga filme triste de verViolência marca registrada o que fazerNo escadão se escuta vários tirosE logo em seguida a mãe que chora por seu filhoRoberto que Deus o tenha manoQuem me contou a fita foi o LucianoEle também tá por aquiMe disse que na Vila agora tá assimQuem sabe quando eu sairTudo já esteja bem melhor por aíQuem sabe os irmãos um dia compreendamQue o crime, as drogas não passam de doençasÉ só cadeia, velório, destruiçãoTristezas em família só decepçãoÉ necessário corrigir a posturaAmor, justiça é a curaBem acho que já falei demaisNa próxima te escrevo maisAmiga minha, lembranças a todosFiquem na fé orando por todosVê se não demora pra me responderTô com saudades de você

(Refrão):

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Velha camarada, obrigado pela cartaQue saudade preta rara"Quero viver"De cabeça erguida logo vou sair pra vidaQualquer dia..."Eu vou te ver"6

2. Um código lingüístico especial: o socioleto

Compor uma letra de rap atualmente significa expressar a contemporaneidade

do tempo histórico, da qual elementos como a agitação, ansiedade, concorrência e

muitos outros que foram adquiridos a partir do capitalismo, distanciam o aspecto

romântico da música. As letras são compostas de acordo com o modo de vida das

pessoas que apreciam o rap e que moram em lugares muito distantes do centro das

cidades. São palavras codificadas que obedecem a um padrão local de fala e

comunicação. Em cada região periférica da cidade há um código comunicativo de

determinadas palavras cujo uso só é feito quando os indivíduos se conhecem. Os

dialetos funcionam como uma espécie de passe livre para circular na área onde vivem.

Confundidas como gíria, as palavras codificadas têm duração muito curta, pois a todo

instante estão inventando novos significados para substituí-las. Nelas, a necessidade

maior está no poder da denúncia e da identificação entre membros de grupos isolados

dentro da sociedade e que formam verdadeiros guetos. Nesse sentido, não é de se

estranhar que os letristas visem à criação de um código especial que pode ser entendido

como um verdadeiro dialeto, assim definido pelo lingüista Milton M. Azevedo:

A term designating a distinct variety of languagem, often one

constrating with that taken as the standard (with thechnically is also a

dialect). As used since the end of nineteenth century, the term “dialect”

tends to designate a geographically or regionally defined variety. When

social variables intervene, social dialect or sociolectis is used. The more

generic term language variety covers both kinds. In common parlance, the

6 Música e composição de Dexter, parceiro do artista X. Ambos passaram a fazer sucesso na mídia após avenda de seus discos. São presidiários e formam o grupo de rap 509-E.

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term “dialect” often has negative connotations, wich are totally absent from

its use in linguistics.7

Mas acreditamos que, na realidade, o código das letras dos rappers seria mais

convenientemente classificado como um autêntico socioleto que, ainda na concepção de

Azevedo, se define como “a language variety, or dialect, defined in terms of social

features, such as the sex, age, or social classe of the speaker” (os grifos são nossos)8.

Em outras palavras, como um socioleto, esse código, estribado numa linguagem

específica, independentemente dos valores que carrega, trai a classe social a que

pertence o letrista. Tanto ele como seus ouvintes servem-se, portanto, do mesmo

vocabulário, das mesmas expressões, como se pode ver na letra abaixo, um exemplar

mais acabado desse código fechado, só acessível, muitas vezes, aos iniciados:

Trilha Sonora do Gueto - Pião de Vida Loka

Se é vida loka, é né jão não é facil não, as vezes na Diogo se pá té naFundão, que tem tô enquadrado, com a mão pro alto, gambé inda vemfala que eu sou forgado.O meu boné já pede pra olha, aí neguinho a facção come que tá, aíchefão a fita é um seguinte só tenho a dizer que 19 num é 20, e facção, écoisa de escadinha eu sô periferia do capão só faço a minha.Tô num rolê voltano pra minha casa, tava curtindo um baile lá no Asa,no Asa Branca de Pinheiros algema o neguinho Estive é maloqueiro.O preconceito já volta a impera, gambé olha pra mim pra ve se eu vo

gela, se tem passage, tem DVC quadrilha vida loka né neguinho cê vaivê, na madrugada só eu e Deus nenhuma testemunha pra falar o queaconteceu, a fé de Jó derruba até montanha, gambé na nóia olha prooutro e se estranha, não sei dize mano qualé que é só sei que Deus émais eu tô vivo pela fé, aquela noite tava macabra, puta gambézinho queele não se conformava, e eu no rolê já tava saindo fora, e eu pra ataca saígingando até umas hora.Sõ vida loka jão daquele jeito, neguinho de favela pros coxinha eu sô

suspeito, é vida é né na mô moral, invejoso perde a linha pé de brekepassa mal.é vida loka jão daquele jeito neguinho de favela pros coxinhaeu sô suspeito, sou vida loka jão na moral neguinho de favela que asmenina paga um pau.10e 20 nego, na leste noturna, bola que bola o plano quem que furtuna,

7Milton M. Azevedo. Portuguese: A Linguistic Introduction, Cambridge: Cambridge University Press,2005, 298.8 Milton M. Azevedo, Op. cit., p. 303.

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puxo pra coroa aí uns pano da hora, Brait no pulso e seus malote dedollar, um Ímpala na garage nego novinho, estilo vida loka pra ataca oszé povinho, então bola com ele que eu quero vê que cor que ele é e ovidro é degrad, cê deu mô sorte mô cara de dollar reune a famíliaabastece e caí, não vou me joga preciso fica, na leste eu nasci, a leste émeu luga, i vou desliga uma barcona colou aí já vai enquadra.Que carro bem loko hein, e seu cê pago, que nada chefão herença domeu avô cê, faz sua cara que eu preciso i os mano da sul tá esperandopor mim, pr1 estive é new por aqui, aí neguinho pego mô boi pode i,nessa hora a gente vê chefão se vale a pena ser um vida lokao robozinho do sistema.As mina da quebrada fala que eu pareço mal, é será que é isso que elaspaga um pau, só sei que eu me pergunto estão cê que o que? cê temconceito, muié e procede, você é vida loka e canta rap cê é foda, achoque isso que as mina se empolga, será que não fosse tudo isso era assim,saí invejoso dá uma arruda aí pra mim, aqui é vagabundo,vida loka atéumas hora se ocê num leva mal, eu tô saindo fora.Liguei o golfão 00 gti, aí neguinho encosta aí, dicumento, rg, hibilitação

se num tive impuni, pro camburão, aqui eu falo cê esculta eu sôotoridade uma mentira de farda valetipo 10 verdade, então neguinho vida loka cê num era todo pam, pagavade guerreiro do rap do amanhã, da uma olhada na quadrada que táengatilhada e se eu pá na sua cabeça cê num vale mais nada, e você vaise vida loka lá no céu que sua cara, junto com Dimans, Bob Marley,Malcon X e Cheguevara, aí seu guarda dá licença agora eu posso meespressar, quem sou eu, quem é você pra quere alguém julgar, aprendique o ser humano nunca sabe o amanhã, hoje tudo Hoppi Hari depois

bom dia Vietinan, cê se pensa que é Deus pra quere alguém julga eu quesô um zé nínguem que cum nada que fica, mais não sabe os comandante

o que sabe o zé nínguem que quer queira quer não queira vamos todospro além, o além é um misterio e quem vai nos responde, eu sou tudonão sou nada diga então quem é você, se dissernos que é Deus eu nãovou acredita, porque se você é Deus quem esta no seu luga.Ei Karatê cê deixa eu i, já faz algum tempo que eu gosto de ti, falei praminha mãe, pra gente casa, agora mudei e não sou mais de ficar.Cê gosta de mim ou do meu malote eu vo desliga eu tô achando que étrote, lembra quando eu não era lembrado na quebrada andava dehavaianas e bermuda rasgada você olhava só xiiiii pros bunda lele, agoraalguém já se amarrou por Karatê9

Observando-se o vocabulário, as construções frasais, o repertório de imagens,

verifica-se, acima de tudo, em diversas ocorrências, as marcas da oralidade. Algumas

palavras são grafadas, simplificando-se a ortografia, como em “loka”, em que acontece,

o ditongo sendo reduzido para a vogal e a consoante “c” substituída graficamente pelo

9 As palavras em itálico representam exemplos do dialeto desenvolvido por jovens na periferia de São Paulo.

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“k”. A redução sonora das palavras, para obedecer à oralidade é constante também em

“qualé” (por “qual é”), em “mó” (por “maior”), em “mina” (por “menina”) e, na forma

de alguns pronomes, como “cê” (por “você”) em alguns verbos, como “tô” e “sô” (por

“estou” e “sou”) e, sobretudo, nas formas infinitivas que são reduzidas, com a

supressão do “r” indicativo da desinência verbal, como em “dize”, desliga”, “olhá”,

“enquadra”, “pega”, “quere”, “acredita”, “i”. Há no texto a presença de onomatopéias

pra reforçar a oralidade, como em “pá”, imitando o ruído de um tiro.

A letra chama a atenção pelo uso da metonímia: “coxinha” por policial (há uma

crença na periferia de que os policiais gostam de se alimentar dessa espécie de iguaria);

“coroa” por velha (talvez pela relação com a tonsura dos padres, que remete aos velhos

carecas e, por extensão, também às mulheres de idade), “quadrada” por pistola (o

formato retangular representando o todo da arma), “coisa de escadinha” para se referir a

atos praticados por marginais (aqui o efeito metonímico é alcançado pela referência ao

famoso traficante Escadinha), “malote” como indicativo de riqueza (no caso, malote

tomado por carteira, geralmente serve para levar dinheiro ao banco). O uso constante da

metonímia serve para reforçar o princípio da construção do socioleto, pois os nomes são

representados por qualidades inerentes a eles, qualidades essas que apontam para as

idiossincrasias de um determinado grupo social.

Ainda é possível fazer levantamento de um glossário específico, que serve para

acentuar a natureza de um código só acessível a iniciados: “rolê (dar um rolê)” (dar uma

volta, passear), “maloqueiro” (pessoa sem educação, arruaceira, por referência

metonímica à habitação que, supostamente, serve de moradia a esse tipo de pessoa, a

“maloca”), “gambé”, referência injuriosa a policial (corruptela de “gamberria” (pessoa

que costuma bater nas pernas do outros), “nóia”, como o viciado em drogas,

“enquadrar”, como prender, “quebrada” por região da periferia, mas precisamente,

região abandonada, “procede”, por pessoa que tem comportamento adequado e assim

por diante.

Enfim, com esses poucos exemplos, pode-se perceber a tentativa de criação de

um código próprio que reflete um modo de ver e viver uma realidade marginal. O tom

oral da fala é, de certo modo, uma resistência à norma culta, letrada, das classes mais

favorecidas, ao lado das quais se encontram as forças da repressão, representadas tanto

pela polícia (vista sempre de um modo crítico, pejorativo), e os burgueses, responsáveis

pela ostentação de riqueza, presente nos bens da “coroa”: os “dollars” e o carro de

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marca “Impala” na garagem. A resistência dos compositores está na montagem de uma

fala “suja”, contaminada pelos palavrões, pelas palavras grosseiras, pela apropriação,

muitas vezes proposital, daquilo que poderia ser considerado um autêntico erro

gramatical, em relação à norma culta (como em “otoridade”, por exemplo). A assunção

da oralidade, do coloquial, causa uma maior e mais adequada aproximação entre o

emissor e o destinatário – ou seja, faz que haja uma quase imediata interação entre

códigos comuns, evitando-se assim a opacidade da linguagem.

Apêndice

1. Letras do Rap

8º anjo

Acharam que eu estava derrotadoQuem achou estava erradoEu voltei to aquiSe liga só escuta aíAo contrário do que você queriaTo firmão to na correiraSou guerreiro e não pago pra vacilarSou vaso ruim de quebrarOitavo anjo do apocalipseTenebroso como um eclipseÉ seu pesadelo tá de voltaNo puro ódio cheio de revoltaVou te apresentar o que você não conheceAnote tudo vê se não esqueceVocê verá que não deixei me envolverPra sobreviver por aqui tem que serMesmo no inferno é bom saber com quem se andaSenão embaça vira desandaVejo vários irmão tomando backO barato é feio bem pior que o crackQuiaca todo dia cabo branco na mãoEncontrar a morte é 1 2 ladrãoMais um pilantra foi sentenciadoSua pena: morrer esfaqueadoAqui é foda não tem comédiaO clima é de tensão maldade invejaA destruição mora nesse lugarE mesmo assim não deixei me levarSubi chegar na humildade e páFaça o contrário caro pode te custar

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Obrigado deus por me guiarSó em ti tenho forças pra lutarDescobri que alem de ser um anjoEu tenho cinco inimigos...Irmão de atitude moram comigoManos de estiloZé carneiro doidera até os ossosPatrão de renome vários sóciosFacínoras contaminados pelo ódioRejeição abandono é óbvioEstar em cana é embaçadoQuem nunca esteve não ta ligadoUns querem te ajudar outros de afundarJogue o dado em quem confiarQuem é quem difícil saberSó mesmo deus pra te protegerFulano entra aqui pede licença até o pro boiChega devagar se vacila já foiMaluquinho primário é cruelSentirá o gosto amargo do felAs grades te fazem chorarA saudade na direta vem te visitarÉ difícil ter a mente sãDetenção pior que o vietnãUm cristão me ligou pra me dar uma idéiaDisse pra mim que jesus ta a minha esperaDisse também pra eu mudar de vidaAi mano não me escondo atrás da bíbliaSou quem sou assim sigo em frenteDeus está comigo não preciso virar crenteNada contra quem é na féMas tem canalha que se esconde néMuitas coisas aprendiVárias fitas erradas na prisão eu viInjustiças aqui humilhação aliCadáveres sangrando perto de mimObrigado meu deus por me guiarSó em ti tenho forças pra lutarDescobri que além de ser um anjoEu tenho cinco inimigos...Cadeia um cômodo do infernoSeja no outono no invernoSem anistia todo dia é fodaCadeia ai maluco tô foraContinuar no crime não tô afimNão quero mais essa vida pra mimNum pássaro voando enxerguei minha verdadeCompreendi o valor da liberdadeNa paz sigo sempre mais

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Pena que esta idéia pra você tanto fazEscuta lá ou não qual a diferençaRepresentei não tive recompensaSe conselho fosse bom não se davaLuz pra cego que piadaEi mano de nos ouvidosNão seja vocês mesmo seu próprio inimigoTermino por aqui espero que me entendaPra que depois não se arrependaÉ tudo no seu nome decide aiEscolha seu caminho o exemplo ta aquiObrigado meu deus por me guiarSó em ti tenho forças pra lutarDescobri que alem de ser um anjoEu tenho cinco inimigos.

Capítulo 4 Versículo 3

(introdução)60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreramviolência policial;a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras;nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros;a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em SãoPaulo;aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.Minha intenção é ruim, esvazia o lugar!Eu tô em cima, eu tô a fim, um dois pra atirar!Eu sou bem pior do que você tá vendoPreto aqui não tem dó, é cem por cento veneno!A primeira faz "bum!", a segunda faz "tá!"Eu tenho uma missão e não vou parar!Meu estilo é pesado e faz tremer o chão!Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição!Na queta ou na ascenção, minha atitude vai além!E tem disposição pro mal e pro bem!Talvez eu seja um sádico ou um anjoUm mágico ou juiz, ou réuUm bandido do céu!Malandro ou otário, quase sanguinário!Franco atirador se for necessário!Revolucionário ou insano. Ou marginal!Antigo e moderno, imortal!Fronteira do céu com o inferno!Astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso!Violentemente pacífico!Verídico!Vim pra sabotar seu raciocínio!Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo!

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Pra mim ainda é pouco, dá cachorro louco!Número um guia terrorista da periferia!Uni-duni-tê, eu tenho pra você,O Rap Venenoso é uma rajada de PT!E a profecia se fez como previsto:Um nove nove sete, depois de Cristo.A fúria negra ressuscita outra vez:RACIONAIS, Capítulo 4 Versículo 3.Aleluia...(Hamm) Aleluia...Racionais!!!"No ar, filhas da puta! pá! pá! pá!Faz frio em São Paulo, pra mim tá sempre bom!Eu tô na rua de bombeta e moleton!Din-din-don, RAP é o som, que emana do Opala marrom!E aí...Chama o Guilherme, chama o Vanio, chama o Dinho,E o Di, Marquinho chama o Éder vamo aí,Se os outros manos vêm, pela ordem tudo bem!Melhor, quem é quem, no bilhar no dominó. "Rolou dois Mano,um acenou pra mim,de "jaco" de cetimde tenis calça jeans."Hey Brown, sai fora, nem vai,nem "cola"!Não vale a pena "dar idéia" nesse tipo aí.Ontem à noite eu vi, na beira do asfaltotragando a morte, soprando a vida pro alto!Aos caras só o pobre é rioso, no fundo do poço,E mais flagrante no bolso!"Veja bem, ninguém é mais que ninguém, veja bem,veja bem e eles são nossos irmão também."Mas de cocaína e crack, whisky e conhaque,os manos morrem rapidinho se é lugar de destaque!Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fumanem dá...Nunca te dei pôrra nenhuma!Você fuma o que vem, entope o nariz!Bebe tudo que vê!Faça o diabo feliz!Você vai terminar tipo o outro mano lá, que era preto tipo ANinguém "entrava numa", mó estilo!De calça "Calvin Klein", tênis "Puma"É... o jeito humilde de ser, no trampo e no rollé.Curtia um funk, jogava uma bola,buscava a preta dele no portão da escola.Um exemplo pra nós, maior moral, "mó" IBOPE!Mas começo "cola" com os branquinhos do shopping,"Ai já era"...

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Ih! Mano, outra vida, outra pique!E só mina de elite, balada e vários drinks!Puta de Botique, toda aquela pôrra!Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra!Hã... faz uns nove ano...Tem uns 15 dias atrás eu vi o mano...Cê tem que ver, pedindo cigarro pro "tiozinho" no pontoDente todo "zoado", bolso sem nem um conto!O cara cheira mal, a sinha senti medo!Muito louco de sei lá o quê, logo cedo!Agora não oferece mais perigo:viciado, doente e fudido, inofensivo!Um dia um PM negro veio me "embaçar",e disse pra eu me por no meu lugar.Eu vejo mano nessas condições não dá...Será assim que eu deveria estar?Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor!Pelo rádio, jornal, revista e outdoor,te oferece dinheiro, conversa com calma.Contamina seu caráter, rouba sua alma.Depois te joga na merda sozinho!É... transforma um um "preto tipo A" num "neguinho"!Minha palavra alivia sua dor, ilumina minha almaLouvado seja o meu Senhor!Que não deixa o mano aqui desandar,Ah! e nem "sentar o dedo" em nenhum pilantra!Mas que nenhum filha da puta ignore minha lei:RACIONAIS Capítulo 4 Versículo 3 !Aleluia...Aleluia...Racionais!!!"No ar filhas da puta! pá!, pá!, pá!Quatro minutos se passaram e ninguém viu,O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil!Talvez um mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo,que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos!O mano que entrega envelope o dia inteiro no solou o que vende chocolate de farol em farol!Talvez o cara que defende o pobre no tribunal,ou que procura vida nova na condicional.Alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela,ouvindo o rádio velho, no fundo de uma cela!Ou da família real e negro como eu sou,um príncipe guerreiro que defende o gol!"E eu não mudo, mas eu eu não me iludo:os mano "cu de burro", eu tenho eu sei de tudo!Em troca de dinheiro e um cargo bomtem mano que rebola e usa até batom!Vários patrícios falam merda, pra todo mundo rir!haha! pra ver branquinho aplaudir!

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É... na sua área tem fulano até pior!Cada um, cada um,você se sente só!Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério,

ou explode sua cara por um toca fita velho!click! plau! plau! plau! e acabou!Sem dó e sem dorFoda-se sua cor!Limpa o sangue com a camisa e manda se f...!Você sabe porque, pra onde vai, pra quem vaiDe bar em bar, de esquina em esquina,pegar 50 conto, trocar por cocaína,E fim! o filme acabou pra você!A bala não é de festim! Aqui não tem dublê!Para os manos da baixada, fluminense à Ceilândia:eu sei. as ruas não são como a Disneylândia!De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro,ser um "preto tipo A" custa caro!É foda!F... é assistir a propaganda e ver,não dá pra ter aquilo pra você,playboy "forgado" de brinco o trouxa,Roubado dentro do carro na Avenida Rebouças!Correntinha das moças,Madame de bolsa, dinheiroNão tive pai, não sou herdeiro.Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de um real,minha chance era pouca,Mas se eu fosse aquele moleque de touca,Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca,"de quebrada".Sem roupa, você e sua mina,Um, dois! Nem me viu! Já sumi na neblina!Mas não...Permaneço vivo, prossigo a mística!27 ano, contrariando a estatística!Seu comercial de TV não me engana,HÃ! Eu não preciso de status nem fama.Seu carro e sua grana já não me seduz,E nem a sua "PUTA" de olhos azuis!Eu sou apenas um rapaz latino americanoapoiado por mais de 50 mil mano!Efeito colateral que seu sistema fez,Racionais, capítulo 4 versículo 3!

Glossário do RAP

Apê – apartamento

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Back – errando, caindo socialmenteBico – fofoqueiro, intrometidoBombeta – bonéBaguio – coisas, situação, drogasBarcona – viatura da políciaBalada – movimento, festa, saídaBuchicho – fofoca, assuntoBoi – BanheiroCara – amigo, conhecidoCamisa da vida loka – roupas largasCoxinha – políciaColo – encostouChapado – drogado, bêbadoCapô – sem identidadeCata – pegarComer – transarCorreria – buscando oportunidadesCabulosa – intensa, profunda.Cabreragem – vem da expressão “to cabrero”, ou seja estoupreocupado.Doidera – vida agitadaDesanda – se perder nas drogas, fracassaEmbaça – confusoEnquadrado – passar por revista policialEsquema – planoFacção – formação de quadrilhaFundão – periferiaFirmeza – legal, bomFunção – acordo, negóciosFulano – alguém, em geral estranhoFita – roubo, encontroGambé – políciaGingando –andar malicioso, codificado entre os adeptos do rap

Goma – casaGuela - denúnciaImpala – nome do carro opalaJaco – jaquetaLokos – drogadosLigado – esperto, atentoMina – menina, garotaMano – irmãoMuquiada – escondidaMigué - desentendido, espertezaMaluco - malandroNovim – novinhoNóia – drogadoOpalão – marca do carro opala (muito apreciado entre os rappers)Pedra – crack (droga)Preto tipo A – negro decente, formado, culto, consciente

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Pé de urso – chama a atençãoPé de breck – que atrapalha a vida dos outrosPaga um pau – fica com invejaPassa um pano – esquecerQuadrada – pistolaQualéqueé – qual que éQuebrada – lugarQuiaca – briga, lutaRolê – fato, sairResponsa – responsabilidadeServiço – roubo, denúnciaSe liga – preste atençãoTá pela ordem – está tudo bem, tudo normalTruta – amigoTabela – acertoTalarico – que paquera a mulher de outroVivão – espertoVacilo – marcar bobeira, não prestar atençãoVida loka – malícia, malandragem, vida bandida sem ser do crimeVenenoso – drogado, valente, agressivoVapor – fumando maconhaZica – confusão, encrencaZé povim – pessoa insignificante

Informativo do Centro Cultural Canhema – Casa do Hip Hop, nº 3, maio de 2000.CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 3ª. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.24.AZEVEDO, Milton M. Portuguese: A Linguistic Introduction, Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2005.ARISTÓTELES. Poética.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro, trad. Beas., rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19 Letrasde rap e depoimentos de artistas do hip hop. São Paulo, 2002. Disponível em:<www.realhiphop.com.br>. Acesso em 23 out. 2005.CIDADÃO, Negro. Jornal da Comunidade Negra de Rio Claro. No 1, junho 2003.Educação, Informação, Orientação Social, Notícias.ANDRADE, Elaine Nunes de. Rap e Educação, Rap é Educação. São Paulo: Selo Negro,2000.