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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018. ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: OS BEBÊS E SUAS MÃES USUÁRIAS DE DROGAS E EM SITUAÇÃO DE RUA Ana Gabriela Fernandes Blacker Espozel* RESUMO: A atuação do Ministério Público foi alvo de crítica por parte do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Social por meio das Notas Técnicas 001/2015 da Secretaria de Atenção à Saúde e Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa e Nota Técnica 001/2016 do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Social. A crítica foi no sentido de que os pedidos de acolhimento institucional de bebês cujas mães são usuárias de drogas, estão em situação de rua e que não realizaram o pré-natal estão sendo feitos de forma precipitada e sem a avaliação técnica de cada caso. Partindo desta crítica, o artigo pretende analisar o papel do Ministério Público na efetivação do direito de convivência familiar dos recém-nascidos em contexto onde são evidenciados fatores de risco à violência. Para tanto, foram utilizadas as Notas Técnicas, bem como a revisão bibliográfica e jurisprudencial sobre o tema. A proteção e o cuidado são destacados como pontos essenciais para as avaliações técnicas da rede na análise do desenvolvimento integral das crianças, estabelecendo limites ao direito dos pais à convivência familiar e ao princípio da intervenção mínima do Estado. O estudo caminha discorrendo sobre a Doutrina da Proteção Integral e o papel do Ministério Público na indução de políticas públicas. A seguir são ressaltadas estratégias de atuação do Ministério Público frente à necessidade de integração de políticas, de forma a fornecer análise mais aprofundada dos casos, evitando-se acolhimentos desnecessários. Destaca-se por fim o papel do Ministério Público nas Oficinas das Maternidades em fomento à integração da rede, bem como à indução de projetos sociais, como a construção do espaço de acolhimento conjunto entre mãe e bebê. Palavras-chave: Ministério Público. Direito à Convivência Familiar. Mães usuárias de drogas e em situação de rua. Acolhimento Institucional. Atuação Preventiva. * Pós-graduada em Direito da Infância e Juventude pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro IEP/MPRJ.

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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EFETIVAÇÃO

DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: OS BEBÊS E SUAS MÃES

USUÁRIAS DE DROGAS E EM SITUAÇÃO DE RUA

Ana Gabriela Fernandes Blacker Espozel*

RESUMO: A atuação do Ministério Público foi alvo de crítica por parte do Ministério da

Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Social por meio das Notas Técnicas 001/2015 da Secretaria de Atenção à Saúde e Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa e Nota

Técnica 001/2016 do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Social. A

crítica foi no sentido de que os pedidos de acolhimento institucional de bebês cujas mães são

usuárias de drogas, estão em situação de rua e que não realizaram o pré-natal estão sendo

feitos de forma precipitada e sem a avaliação técnica de cada caso. Partindo desta crítica, o

artigo pretende analisar o papel do Ministério Público na efetivação do direito de convivência

familiar dos recém-nascidos em contexto onde são evidenciados fatores de risco à violência.

Para tanto, foram utilizadas as Notas Técnicas, bem como a revisão bibliográfica e

jurisprudencial sobre o tema. A proteção e o cuidado são destacados como pontos essenciais

para as avaliações técnicas da rede na análise do desenvolvimento integral das crianças, estabelecendo limites ao direito dos pais à convivência familiar e ao princípio da intervenção

mínima do Estado. O estudo caminha discorrendo sobre a Doutrina da Proteção Integral e o

papel do Ministério Público na indução de políticas públicas. A seguir são ressaltadas

estratégias de atuação do Ministério Público frente à necessidade de integração de políticas,

de forma a fornecer análise mais aprofundada dos casos, evitando-se acolhimentos

desnecessários. Destaca-se por fim o papel do Ministério Público nas Oficinas das

Maternidades em fomento à integração da rede, bem como à indução de projetos sociais,

como a construção do espaço de acolhimento conjunto entre mãe e bebê.

Palavras-chave: Ministério Público. Direito à Convivência Familiar. Mães usuárias de

drogas e em situação de rua. Acolhimento Institucional. Atuação Preventiva.

* Pós-graduada em Direito da Infância e Juventude pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público

do Estado do Rio de Janeiro – IEP/MPRJ.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

ABSTRACT: The action of the Public Ministry were criticized by the Ministry of Health and the Ministry of Social Development through Technical Notes 001/2015 of the Secretariat of

Health Care and Secretariat of Strategic and Participatory Management and Technical Note

001/2016 of the Ministry Health and the Ministry of Social Development. The criticism was that requests for institutional reception of babies whose mothers are drug users, are in a street

situation and who did not perform the prenatal care are being done hasty and without the

technical evaluation of each case. Based on this critique, the article intends to analyze the

role of the Public Ministry in the implementation of the right to family coexistence of

newborns in a context where violence risk factors are evidenced. For this, the Technical

Notes are used, as well as the bibliographical and jurisprudential review on the subject.

Protection and care are highlighted as essential points for the network's technical

assessments in the analysis of the integral development of children, establishing limits to the

right of parents to family coexistence and to the principle of minimum State intervention. The

study focuses on the Doctrine of Integral Protection and the role of the Public Ministry in the induction of public policies. Finally, strategies of the Public Prosecutor's Office are

highlighted in view of the need to integrate policies, in order to provide a more in-depth

analysis of the cases, avoiding unnecessary reception. Finally, the role of the Public

Prosecutor's Office in the Maternity Workshops in promoting the integration of the network,

as well as the induction of social projects, such as the construction of the joint space between

mother and baby, is highlighted.

Keywords: Public Ministry. Right to Familiar Coexistence. Mothers who use drugs and in

street situations. Reception-Institutional. Preventive Action.

Sumário: 1 Introdução. 2 Breves Reflexões sobre a Nota Técnica 001/2015: a proteção e o

cuidado na busca pela efetivação do direito à convivência familiar 3 Ministério Público e a

Doutrina da Proteção Integral. 4 Estratégias de Atuação Preventiva do Ministério Público às Mães Usuárias de Drogas e em situação de Rua. 5 Considerações Finais. Referências

Bibliográficas. Anexos.

1 INTRODUÇÃO

Em setembro de 2015, o Ministério da Saúde expediu a Nota Técnica Conjunta número

01/2015 da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) e Secretaria de Gestão Estratégica e

Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde, estabelecendo importante fluxograma para

atenção às mulheres e adolescentes em situação de rua, usuárias de crack ou outras drogas e

seus filhos recém-nascidos. A referida nota é dirigida aos gestores e operadores da saúde, mas

de extrema relevância para a atuação dos membros do Ministério Público, merecendo a sua

devida divulgação e atenção, dado o caráter interdisciplinar da questão, tão característico do

Direito da Infância e da Juventude.

Nesta nota técnica, aspectos extremamente complexos e importantes foram abordados,

como o uso das drogas, ausência de pré-natal, situação de rua, direitos reprodutivos, cuidado,

autonomia da mulher, interferência do Estado na vida familiar, proteção integral da criança,

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

acolhimento institucional, dentre outros, todos de extrema relevância e que certamente são

enfrentados no dia a dia das Promotorias de Infância e Juventude.

Logo em seguida à emissão da Nota Técnica 001/2015- SAS e SGEP, o Centro de Apoio

Operacional da Infância e Juventude, juntamente com o Centro de Apoio Operacional da

Saúde1, ambos do Rio de Janeiro, por tratar de temas presentes na atuação do Ministério Público

e por visualizar a necessidade de participação no debate como órgão do Sistema de Justiça, em

atitude de protagonismo, enviaram considerações à Nota Técnica, no intuito de fortalecer a

integração entre os Sistemas de Justiça e Saúde, emitindo relevantes considerações sobre alguns

aspectos, sob o olhar do Direito e na perspectiva da criança.

Como fruto desta articulação do Ministério Público, nova nota técnica foi emitida (Nota

Técnica Conjunta 001/2016), desta vez, com a participação do Ministério do Desenvolvimento

Humano e Combate à Fome, prevendo a integração entre a Saúde e Assistência Social, sendo

observados avanços em seu texto, levando-se em conta algumas considerações feitas pelos

Centros de Apoio do Rio de Janeiro.

Embora tenha havido algumas alterações entre as notas técnicas, sendo a sua última

versão mais clara em alguns aspectos, manteve-se a crítica às decisões de acolhimento por parte

dos membros do Ministério Público, afirmando serem estas, por vezes precipitadas. Neste

sentido, vale ser transcrito trecho das referidas Notas Técnicas:

É fundamental orientar gestores e profissionais de saúde e de assistência social a

respeito dessa temática, frente a algumas recomendações de órgãos do Sistema de

Justiça para a comunicação imediata ao Poder Judiciário, por profissionais da saúde e

da assistência social, acerca de duas situações: o nascimento de crianças filhas de

mulheres em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas; a situação de vida

de gestantes nas mesmas condições e que se recusam a realizar o pré-natal. Tais

recomendações2- oriundas de órgãos como o Ministério Público estão, por vezes,

ocasionando decisões precipitadas quanto ao afastamento das crianças recém-

nascidas de suas mães sem uma avaliação técnica de cada caso. Observa-se que

mesmo em alguns estados e municípios em que não houve a recomendação expressa

do Poder Judiciário nesse sentido, tem ocorrido tal prática3. (grifo nosso)

Com o objetivo geral, partindo da crítica acima apontada, o presente estudo pretende

analisar o conteúdo do direito à convivência familiar e comunitária, bem como o papel do

Ministério Público na sua efetivação, com foco na questão dos bebês recém-nascidos cujas

1 Os Centros de Apoio Operacionais (CAO) são previstos na estrutura interna dos Ministérios Públicos sendo

divididos em áreas de especialização, tendo como objetivos principais: dar suporte aos Promotores de Justiça,

estimular a integração e o intercâmbio entre os órgãos de execução que atuem na mesma matéria, bem como

promover a articulação entre os órgãos do Ministério Público e entidades públicas ou privadas. 2 Recomendações 05/2014 e 06/2014 da 23ª Promotoria de Infância de Belo Horizonte.

3 Nota Técnica Conjunta nº 01/15- Secretaria de Atenção à Saúde e Secretaria de Gestão Estratégica e

Participativa do Ministério da Saúde e Nota Técnica Conjunta nº 001/2016 do Ministério da Saúde e Ministério

do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

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mães são usuárias de drogas, em situação de rua, que não se submeteram ao pré-natal e que não

desejam entregar seu filho.

Inicialmente será destacada a necessidade de se avaliar a questão da segurança e bem-

estar dos bebês dentro de um contexto familiar desfavorável, a capacidade do cuidado dos pais,

a sua importância para o desenvolvimento sadio das crianças e a funcionalidade da família.

Percorre-se ainda acerca da questão da relatividade dos direitos dos pais em relação aos filhos

e a necessidade de ponderação de interesses, como forma de se estabelecer parâmetros para as

avaliações técnicas da rede, aproximando-a do Sistema de Justiça. O estudo caminha

discorrendo sobre a Doutrina da Proteção Integral e o papel do Ministério Público na indução

de políticas públicas. Por fim, são pontuadas estratégias de atuação do Ministério Público frente

à indispensabilidade de integração de políticas, de forma a fornecer análise mais aprofundada

dos casos, evitando-se acolhimentos desnecessários, bem como a importância de se fomentar

políticas públicas sociais.

Embora a adoção constitua importante instrumento de efetivar o direito à convivência

familiar não constituirá objeto do presente estudo.

Para tal, foram utilizadas, além das Notas Técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde

e do Ministério do Desenvolvimento Social, a jurisprudência e pesquisa bibliográfica relevante

sobre o tema, incluindo, não apenas obras das ciências jurídicas, mas também das ciências

sociais, psicologia e da saúde, propondo-se uma abordagem interdisciplinar. Foi utilizada ainda

a pesquisa documental com análise de legislação nacional e internacional, relatórios e

documentos de órgãos e instituições oficiais, bem como as discussões da Oficina das

Maternidades, que vem sendo realizadas no âmbito do Ministério Público do Rio de Janeiro. O

estudo visa contribuir com a sistematização do tema, partindo da crítica à atuação do Ministério

Público por parte de outros setores que compõem a rede de proteção da criança e adolescente,

a fim de influenciar a realidade da atuação por parte do membro do Ministério Público no que

tange à efetivação do direito fundamental à convivência familiar e comunitária.

2 BREVES REFLEXÕES SOBRE A NOTA TÉCNICA 001/2015: A PROTEÇÃO E O

CUIDADO NA BUSCA PELA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA

FAMILIAR

As crianças e adolescentes, como seres em desenvolvimento, têm o direito

fundamental à convivência familiar, protegido pelo art. 227 § 6º da Constituição Federal e

artigo 1637 do Código Civil, cabendo ao Ministério Público zelar para que cada criança tenha

sua família, dando eficácia ao seu direito fundamental.

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O art.226 § 8º da CF também dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na

pessoa de cada um dos que a integram.

A conceituação do que vem a ser uma família não é tarefa simples, já que se trata de

fenômeno complexo, sempre em evolução, marcado por fatores socioculturais. No entanto, há

certos aspectos e características que constituem consenso para a sua definição, podendo ser

citada a seguinte: grupo que vive em comum, afeto, estabilidade, cuidado, responsabilidade

recíproca e proteção das crianças e adolescentes membros dessa família.

A Convenção Internacional sobre o Direito da Criança (1989), caracterizando a

família, considerou-a “grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento

e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, devendo receber a

proteção e a assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades

dentro da comunidade”.

Doutrina e jurisprudência, permeados pelo fenômeno da Constitucionalização do

Direito de Família e sua repersonalização, vem destacando cada vez mais o caráter funcional

da família4. A família abandona o seu antigo modelo rígido e pré-concebido, passando a

admitir todas as formas e arranjos possíveis. A família deixa de ser hierarquizada e fundada

apenas no casamento, buscando-se, na atualidade, compreender a família como espaço de

realização pessoal e da dignidade de seus integrantes5. Assim, desde que cumpra a sua função

de núcleo de desenvolvimento individual de seus membros, constituindo instrumento de

atendimento dos legítimos interesses de seus componentes, respeitados os princípios da

dignidade humana e proteção absoluta das crianças e adolescentes, ela tenderá a ser admitida

e reconhecida pelo Direito e restará livre de qualquer intervenção estatal.

As funções do Poder Familiar estão reguladas basicamente em três textos legais: na

Constituição Federal, art.229, no Código Civil, art.1634 e no Estatuto da Criança e Adolescente

no art. 22.

A compreensão do que vem a ser o Poder Familiar, assim como o conceito de Família,

também vem sofrendo enormes mudanças ao longo do tempo. O antigo Pátrio Poder, entendido

como prerrogativa do marido, já que era o chefe de família e como exercício de poder do pai

sobre o filho, foi ultrapassada.

Como nos ensina Denise Damo Comel não se substituiu simplesmente o Pátrio Poder

4 Ressaltando o caráter funcional da família, vale ser destacado o RE778.889, Ministro Luis Roberto Barroso-

Repercussão Geral, j.10/03/16. 5 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Princípios Constitucionais do Direito de Família. São Paulo: Atlas,

2008. p. 28.

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pelo Poder familiar, mas sim se evoluiu de um para outro, tendo em conta os novos conceitos

jurídicos e os valores da sociedade brasileira, dentre os quais a igualdade entre os filhos, a

prevalência dos interesses do menor, a função instrumental do poder familiar e a isonomia

jurídica entre o homem e a mulher6.

Continua a autora a nos ensinar, que em virtude das crianças e adolescentes terem sido

elevados à sujeitos de direitos podemos dizer que “ já não falar em poder sobre eles, e sim em

deveres com relação a eles, ainda que reconhecida uma autoridade para o repisado fim. “7.

Na esteira do que ocorreu com o conceito de Família, a doutrina já se encontra

sedimentada no sentido de que o poder familiar é uma função, podendo ser definido como:

“um complexo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais, com relação ao filho menor, não

emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último”8.

O Poder Familiar é impregnado de elementos de ordem pública, estando sujeito a

fiscalização e controle do Estado, não sendo absoluto e intangível, tendo o Ministério Público

importante papel nesta seara, já que tem a legitimidade para deflagrar a ação de destituição do

poder familiar. Havendo indícios de fragilidade no desempenho deste poder-dever, cabe ao

Ministério Público cobrar a aplicação de medidas de apoio à família, fiscalizando a rede de

proteção, a fim de garantir que crianças tenham um desenvolvimento pleno e saudável.

O art.229 da Constituição Federal dispõe que os pais têm o dever de assistir, criar e

educar os filhos menores. Embora não mencione o dever de cuidado, tais atitudes acima

elencadas, como nos ensina Heloísa Helena Barbosa, traduzem atitudes de cuidar, tendo sido

substancialmente ampliados com a adoção da doutrina da proteção integral9 , devendo ser

assegurados os direitos elencados no art. 227 da Constituição Federal10

.

Continua a autora a discorrer sobre o cuidado em uma relação paterno-filial, da

seguinte forma: ”ações concretas, atitudes e valores devem evidenciar o cuidado com os

filhos, desde o que diz respeito ao seu conforto físico e psíquico, à higiene do corpo e do

6 COMEL, Denise Damo. Do Poder Familiar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 55.

7 Ibidem. p. 61.

8 MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Poder Familiar. In: MACIEL, Kátia Regina. (Org.). Curso de

Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 6. ed., 2013, p. 137. 9 A Doutrina da Proteção Integral vem prevista no art.227 da Constituição Federal e veio consolidar os princípios

básicos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº

99.710, de 22/11/90. Em apertada síntese significa que crianças e adolescentes foram elevados à condição de

sujeitos de direitos especiais, dado a sua condição de pessoa em desenvolvimento, sendo a infância colocada em

prioridade absoluta. Tal doutrina destina-se a todas as crianças e não só àquelas anteriormente classificadas como

“em situação irregular”. 10

BARBOZA, Heloisa Helena. Perfil Jurídico do Cuidado e da Afetividade nas Relações Familiares. In:

PEREIRA, Tânia da Silva (coord.). Cuidado e Afetividade. Projeto Brasil/Portugal-2016-2017. São Paulo: Atlas.

p. 178.

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ambiente, ao apoio emocional e espiritual, até a proteção no sentido da segurança11

.

O exercício da paternidade envolve proteção e cuidado, sendo um fator indispensável

à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de

conviver em sociedade12

.

A Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, reconhece o cuidado como

dever jurídico, afirmando ser decorrência da liberdade das pessoas em gerar ou adotar filhos13

.

É preciso mencionar ainda que a recente Lei 13257/16 que se convencionou chamar

como Marco Legal da Primeira Infância, bem como os estudos que subsidiaram a promulgação

desta Lei, ressaltam a importância da família e do cuidado nos primeiros anos de vida.

Mary Young, pediatra e consultora do Centro de Desenvolvimento da Criança da

Universidade de Harvard, ao tratar das ideias chaves sobre desenvolvimento inicial infantil, nos

ensina, dispondo que os fatores familiares nos primeiros anos de vida desempenham um papel

crucial no estabelecimento das diferenças nas habilidades cognitivas e não cognitivas,

ressaltando a importância da qualidade do cuidado oferecido pelos pais, pelo vínculo, pela

supervisão e consistência, sendo estes fatores muito mais determinantes do que a renda

familiar14

.

As medidas previstas na nova legislação têm como princípio norteador o fato de que

crianças na primeira infância (0 a 6 anos) necessitam de um ambiente seguro para se

desenvolverem, marcado por interações estáveis e responsivas, sendo certo que as situações de

adversidade têm relação direta com o desenvolvimento harmônico e saudável do ser humano.

Situações de adversidades vão desde a vulnerabilidade social até as situações de abuso15

.

Pesquisas no campo da neurociência vem comprovando como se dão as reações do

estresse nos cérebros dos bebês e crianças. Heloiza Egas, analista técnica de políticas sociais

expõe que as descobertas apontam para algumas16

, trazendo conhecimentos do Centro de

Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard:

11

BARBOZA, Heloisa Helena. Paternidade Responsável: o cuidado como dever jurídico. In: PEREIRA, Tânia

da Silva (coord.). Cuidado e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 93. 12

Sobre o reconhecimento do cuidado pelos Tribunais Brasileiros, valem ser destacadas as seguintes decisões:

STJ, 3ª Turma, RESP1106.637, Rel. Min. Nancy Andrighi, j.01.06.2010 e STF, Tribunal Pleno, RE898060, Rel.

Min Luiz Fux ,j.21.09.2016. Disponível em: < htttp://www.stf.jus.br/portal>. 13

RESP 1159.242/SP, 3ª STJ- Rel. Min. Nancy Andrighi, j.24.04.2012. DJo 10.05.2012. 14

YOUNG, Mary. Por que investir na Primeira Infância. In: BRASIL. Câmara dos Deputados. Avanços do Marco

Legal da Primeira Infância. Disponível em: <http://agendaprimeirainfancia.org.br/arquivos/Avancos-do-Marco-

Legal-da-Primeira-Infancia-1.pdf>. Acesso em: 29 maio 2017. 15

EGAS, Heloiza. O Marco Legal da Primeira Infância na Perspectiva dos Direitos Humanos. In: BRASIL.

Câmara dos Deputados. Avanços do Marco Legal da Primeira Infância.

Disponível em: <http://agendaprimeirainfancia.org.br/arquivos/Avancos-do-Marco-Legal-da-Primeira-Infancia-

1.pdf>. 16

Ibidem.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

[...] distinções entre o estresse positivo, que é uma parte essencial do desenvolvimento

saudável, o estresse tolerável (isto é, grande adversidade que é administrada através

de habilidades eficazes de enfrentamento, facilitadas pelo apoio de adultos) e o

estresse tóxico (isto é, ativação excessiva e/ou prolongada dos sistemas de resposta ao

estresse, na falta de proteção e amortecimento pelo apoio e cuidados atenciosos de

adultos)17

.

Verifica-se, portanto, que o direito à convivência familiar não significa apenas que

cada criança tenha uma família, mas que ela tenha uma família que cumpra o seu papel, ou seja,

que permita o desenvolvimento físico e mental de cada criança e adolescente. O direito ao

desenvolvimento saudável vem consagrado no artigo 19 do Estatuto da Criança e do

Adolescente, art.6º e 27º da Convenção dos Direitos da Criança, bem como nos princípios da

dignidade humana e melhor interesse da criança.

Bowlby18

, ao tratar sobre as privações do cuidado materno, ressalta que estas podem

ocorrer basicamente de três formas: privação nas instituições, privação no lar e separações

repetidas. Discorre o autor que o acolhimento não é a única circunstância em que há privações

de cuidados maternos, afirmando que há privação quando as mães interagem insuficientemente

com seus bebês e que “esta pode ocorrer sem a separação e sem o internamento em instituições.

A privação pode começar no lar”.

Partindo destas premissas, e diante de múltiplos fatores de risco, é que se torna

imperioso avaliar a funcionalidade das famílias em caso de mulheres usuárias de drogas e em

situação de rua e seus bebês, verificando a sua capacidade de cuidado e de proteção.

O documento sobre a Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças,

Adolescentes e suas Famílias, emitido pelo Ministério da Saúde, destaca a necessidade de se

atuar preventivamente, identificando as situações familiares que possam gerar maior

vulnerabilidade às práticas violentas, pelas dificuldades e desgaste que ocasionam. Neste

documento são citados como exemplos deste tipo de situação, a perda do emprego, o uso

abusivo de álcool e outras drogas, a separação conjugal, bem como a morte de um de seus

membros19

.

O mesmo documento também ressalta a existência da violência fetal, que pode ser

definida como aquela praticada contra o nascituro. Como exemplo deste tipo de violência são

citadas as gestantes drogaditas, alcoolistas e negligentes com o pré-natal. Mais uma vez, o

documento afirma que a identificação da violência fetal permite a intervenção e a prevenção

17

SHONKOFF, Jack. Aproveitando a biologia da adversidade para abordar as raízes das disparidades na saúde e

desenvolvimento. apud EGAS, Heloiza. O Marco Legal da Primeira Infância na Perspectiva dos Direitos

Humanos. Op. Cit. 18 BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 199. 19

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e

suas famílias. 2010. p. 20.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

precoces da violência20

.

No caso das usuárias de drogas e moradoras de rua há a necessidade de se avaliar a

capacidade para o exercício do cuidado já que sua própria capacidade21

pode estar

comprometida, podendo não estar apta a proporcionar uma convivência familiar sadia. A sua

capacidade protetiva22 há de ser avaliada.

Assim, é preciso cuidado no que tange à afirmação contida no item 22 da primeira Nota

Técnica Conjunta 001- SAS e SGEP ao dispor que: “o direito da mulher escolher fazer o uso

de álcool e outras drogas, não podem interferir no seu direito de permanecer ou não com seus

filhos, assim como no acesso aos serviços de saúde”.

Quanto ao acesso ao serviço de saúde ressaltou muito bem a Nota Técnica ao dispor

que os direitos de liberdade e à saúde não concorrem entre si, devendo ser garantido a estas

mulheres o devido acesso aos serviços de saúde, sem qualquer discriminação ou

preconceito23

.

No entanto, quanto ao direito de permanecer ou não com seu filho, há que ser

destacado que este direito não é absoluto. Se o uso da droga colocar em risco sua capacidade

de cuidar ou colocar o bebê em situação de perigo, fragilizando suas funções inerentes ao

Poder Familiar, o direito de permanecer com seu filho, poderá, sim, ser afetado. Diante destas

considerações, foi preciso evoluir de uma Nota Técnica para outra, no sentido de se

ressaltar que o direito da mulher deverá ser respeitado, desde que haja a garantia da proteção e

bem-estar da criança.

Vale ser destacado que, apesar da recente mudança da redação do artigo 19 do

Estatuto da Criança e do Adolescente, com a retirada da menção ao direito a um ambiente

livre de presença de pessoas dependentes de substância entorpecentes, persiste a necessidade

de avaliar se o ambiente em que a criança está permite o seu desenvolvimento integral.

Continua a existir a avaliação da funcionalidade da família, do poder familiar e da

capacidade de cuidado, não tendo a retirada do texto legal o objetivo de liberar e incentivar o

uso da substância entorpecente ou afirmar que não há qualquer problema em se viver em um

20

Ibidem. p.18 21

Sobre a capacidade de exercer o poder familiar valem ser citadas a jurisprudência do STJ. ARESP 692321,

Min Raul Araújo, j.07/11/2016 e ARESP 1053572, Min Moura Ribeiro, j.04/05/17. 22

Recentemente foi publicada a Lei 13431 de 4 de abril de 2017, com prazo ainda de 1 ano para entrar em vigor,

que prevê em seu artigo 19 a possibilidade de ser estabelecido no Sistema Único de Assistência Social a

representação ao Ministério Público, nos casos de falta de responsável legal com capacidade protetiva em razão

da situação de violência, para colocação da criança ou do adolescente sob os cuidados da família extensa, de

família substituta ou de serviço de acolhimento familiar ou, em sua falta, institucional. 23

Tal entendimento vem em consonância com A Política Nacional de Humanização que preconiza um SUS que

reconhece a diversidade do povo brasileiro e que oferece saúde e atenção de forma igual e integral para todos.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

ambiente marcado pela presença das drogas.

O Legislador quis evitar a vinculação da droga à falta de cuidado, deixando a análise

para o caso concreto, através de avaliação contextualizada e singular, a fim de que os pais não

fossem automaticamente considerados inaptos para o exercício dos deveres inerentes ao poder

familiar24

. Privilegiou-se a análise de cada caso, através de projeto terapêutico singular, tendo

em vista os diversos graus de comprometimento apresentados pelo uso da droga, bem como a

política de redução de danos25

.

Neste sentido também foi a modificação trazida pela Lei da Primeira Infância, ao

acrescentar § 2º ao art.13 do Estatuto da Criança e Adolescente ressaltando a prioridade na

formulação de projeto terapêutico singular, com intervenção em rede e acompanhamento

domiciliar26

.

As Diretrizes para a Reintegração das Crianças27

, estabelecem que após a identificação

da família, deve ser feita uma avaliação da mesma, tendo estipulado critérios básicos para uma

avaliação preliminar, quais sejam: fatores de risco que afetam a segurança e o bem estar da

criança e as mudanças que precisam ser feitas, pontos fortes e resiliência da família, incluindo

os dos irmãos, a percepção dos membros da família sobre as razões para a separação e outros

problemas, o nível de disponibilidade/capacidade de mudança da família, capacidade da família

de cuidar da criança e a situação econômica da família28

.

Tais critérios embora estejam focados para os casos em que já houve a ruptura dos

vínculos familiares, fornecem parâmetros básicos para os estudos de caso envolvendo as

famílias onde é indiciada situação de violação de direitos.

Os direitos não são absolutos e frequentemente Juízes e Promotores se veem diante de

24 DIGIÁCOMO, Eduardo. Das implicações da alteração do art.19 da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do

Adolescente) pela Lei nº 13257/2016 (que institui o Marco Legal da Primeira Infância). Disponível em:

<http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,das-implicacoes-da-alteracao-do-art-19-da-lei-no-806990- estatuto-

da-crianca-e-do-adolescente-pela-lei-no-13257,55859.html>. Acesso em: 08 maio 2017. 25

A Política de redução de danos vem prevista na Portaria 1028/2005. É uma política que surge enquanto

estratégia de saúde pública, visando controlar possíveis consequências negativas associadas ao consumo de

substâncias psicoativas, respeitando a liberdade de escolha, sem interferência na oferta de consumo. 26

Neste sentido o art.13 §2º que dispõe: § 2o Os serviços de saúde em suas diferentes portas de entrada, os serviços

de assistência social em seu componente especializado, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social

(Creas) e os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente deverão conferir

máxima prioridade ao atendimento das crianças na faixa etária da primeira infância com suspeita ou confirmação

de violência de qualquer natureza, formulando projeto terapêutico singular que inclua intervenção em rede e, se

necessário, acompanhamento domiciliar.” (NR) 27

Estas Diretrizes foram escritas por Emily Delap, da Family for Every Child e Joanna Wedge (consultora) em

nome do Grupo Interinstitucional sobre a reintegração de crianças, envolvendo um grupo principal de 14 agências

presidido pela FAMILY FOR EVERY CHILD. Guidelines on Children's Reintegration. Disponível em:

<http://www.familyforeverychild.org/wp-content/uploads/2016/08/RG_Digital_DC-1.pdf>. 28 Ibidem. p.18.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

colisões de direitos fundamentais, sendo necessário se utilizar da técnica de ponderação de

interesses para dizer, no caso concreto, qual deve prevalecer ou como os direitos poderão ser

harmonizados.

Nos casos ora em questão, observa-se a necessidade de se ponderar o direito à

convivência familiar e autonomia da vida privada com a necessidade de proteção das crianças

e adolescentes, o que significa dizer, em outras palavras, analisar também o momento e forma

da intervenção estatal. Trabalhar com o Direito da Criança e Adolescente significa

constantemente sopesar os interesses dos pais com o bem-estar da criança.

Neste aspecto, o artigo 9º da Convenção sobre os Direitos da Criança expõe de forma

bastante clara a necessidade de sopesar interesses. O artigo dispõe que os Estados Partes

deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade destes,

privilegiando a convivência familiar. Trata-se do princípio da prevalência da família e da

intervenção mínima.

No entanto, o mesmo artigo explicita também que tal direito pode ser limitado quando

as autoridades determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis,

que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Exemplifica que a determinação

de separação poderá ser necessária em casos específicos, como por exemplo, nos casos em

que a criança sofre maus tratos ou descuido por parte de seus pais. Resta assim evidente que o

direito à convivência familiar está condicionado a que a criança esteja bem cuidada e não

sofra maus tratos, estando intimamente ligado ao exercício regular do poder familiar.

Não há como negar que a violência intrafamiliar existe, que há famílias que não

proporcionam proteção e desenvolvimentos sadios, o que enseja a intervenção estatal, que

segundo art.100, VII do ECA deve ser mínima. Frise-se, no entanto, que a intervenção mínima

não pode significar a omissão estatal e proibição para uma atuação preventiva.

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet ao se reconhecer direitos fundamentais, reconhece-se

também deveres do Estado, o qual tem de zelar por aquela proteção, inclusive

preventivamente, não somente contra eventuais violações dos poderes públicos, mas também

contra agressões por parte de particulares29

.

Continua o autor a nos ensinar que para a efetivação dos direitos de proteção corre-se o

risco de afetar de modo desproporcional outro direito fundamental, servindo o princípio da

proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de

direitos fundamentais, constituindo uma barreira às limitações dos direitos fundamentais30

.

29

SARLET, Ingo Wolfgang, Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017. p.351. 30

Ibidem, p.392.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Transportando tais ensinamentos para a análise dos pedidos de acolhimento

institucional, mister se faz analisar se estes estão atendendo ao critério da proporcionalidade,

ou seja, se se justifica a restrição do direito à convivência familiar, tanto sob a perspectiva dos

pais como da própria criança, em prol de sua proteção e do seu melhor interesse.

O princípio da proporcionalidade costuma ser desdobrado em três subprincípios: o da

adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito. O da adequação

consiste em verificar se as medidas adotadas estão aptas a atingir os fins almejados; o da

necessidade consiste em analisar se para o atingimento do fim foi usado o meio menos oneroso

para o cidadão e, por fim, o da proporcionalidade em sentido estrito, em que se pondera entre

as vantagens e desvantagens da medida31

.

O acolhimento constitui medida prevista em lei, embora excepcional e provisória,

estando apta a proteger, em tese, a criança. Deve-se verificar também se não há qualquer outra

medida menos gravosa que o acolhimento, mas que garanta da mesma forma a segurança e

bem-estar, como a colocação junto à família extensa, programas de apoio à família e tratamento

antidrogas para os pais, bem como a retirada do agressor prevista no art.130 do ECA, dentre

outras. Por fim, há que ser avaliado se a medida de acolhimento, trará mais benefícios que

malefícios. Há que ser perguntado o tempo todo, se o risco oferecido pelos pais justifica a

separação da família, essencial para o desenvolvimento sadio. A medida de acolhimento (a

proteção) será melhor do que a desvantagem em viver fora de uma família? A incapacidade

protetiva dos pais justifica no caso concreto determinadas medidas de acolhimento? O risco à

proteção da criança ou o perigo que ela corre é de fato real que justifique a separação da criança

de sua família? Há alguma forma de garantir a segurança da criança, mantendo-a no seio

familiar? A criança se desenvolverá melhor no “mau lar” ou em uma boa instituição? Estes são

alguns exemplos de questionamentos a serem feitos ao se ponderar as medidas a serem tomadas.

Nos casos referidos na Nota Técnica, os fatores de risco são múltiplos, associados

comumente à vulnerabilidade social, o que merece a devida atenção, já que poderão

desencadear situações de maus tratos às crianças e adolescentes. Embora não possam constituir

fator automático e decisivo para a medida de acolhimento institucional, merecem a devida

identificação, prioridade e acompanhamento por parte do membro do Parquet.

Imperioso pontuar ainda que para que medidas menos gravosas que a de acolhimento

institucional possam ser adotadas, é preciso que serviços e ações da rede apoio existam e

possam ser implementadas no caso concreto pelo Promotor de Justiça. O fortalecimento da rede

31

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 3. ed., 1999. p.209.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

se faz imprescindível, bem como os programas de apoio à família, a fim de evitar decisões

precipitadas de acolhimento institucional.

3 O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

O art.227 § 6º da Constituição Federal dispõe que é dever da família, da sociedade e

do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à

vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,

ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de

toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O dispositivo constitucional vem consagrar a Doutrina da Proteção Integral, elevando

a criança e o adolescente à condição de sujeito de direitos, o que significa dizer que crianças e

adolescentes passaram a ser titulares de direitos fundamentais. Propõe-se novo paradigma,

rompendo-se com a Doutrina da Situação Irregular, em que a criança era vista apenas como

objeto de proteção, havendo atuação apenas após a situação de risco já instalada ou em ameaça

iminente. No dizer de Andréa Rodrigues Amin “agia-se apenas na consequência e não na causa

do problema “apagando-se incêndios”32

.

Segundo Sérgio Augusto Guedes33 a Doutrina da Proteção Integral possui uma

vertente positiva e outra negativa. A primeira consiste em garantir às crianças meios e políticas

públicas para que elas possam usufruir dos direitos elencados no dispositivo constitucional

acima elencado. Já a versão negativa consiste em restringir as ações e condutas dos adultos que

violem os direitos ou as garantias outorgadas na versão positiva.

Nesta esteira, o Ministério Público, representando o Estado, assume importante papel

na defesa dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, funcionando como “grande

agente garantidor de toda a rede, fiscalizando seu funcionamento e exigindo resultados34

”.

Antonio Carlos Ozório Nunes, Promotor de Justiça em São Paulo, sugere que sejam

realizadas mais ações preventivas com uma maior articulação das redes de serviço, uma maior

fiscalização e indução de políticas, sobretudo por parte do Ministério Público35

.

32

AMIN, Andrea Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral. In: MACIEL, Kátia Regina. (Org.) Curso de

Direito da Criança e do Adolescente. Aspectos teóricos e práticos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 55. 33

SOUZA, Sergio Augusto Guedes Pereira. Os Direitos da Criança e os Direitos Humanos. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2001, p. 76. 34

AMIN, Andrea Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral. Op.Cit. p. 51. 35

NUNES, Antonio Carlos Ozório. A primeira infância no contexto do sistema de garantia de direitos: avanços

do marco legal da primeira infância, p. 263. Disponível em:

<http://agendaprimeirainfancia.org.br/arquivos/Avancos-do-Marco-Legal-da-Primeira-Infancia-1.pdf>. Acesso

em: 29 maio 2017. Neste sentido também a orientação contida no Manual de Negociação e Mediação para

membros do Ministério Público. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Manual de

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

O artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê expressamente que é dever

de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.

Estabelece ainda, em seu art. 70-A, inciso VI, a necessidade de se promover espaços

intersetoriais, que são locais para a articulação de ações e a elaboração de planos de atuação

conjunta focados nas famílias em situação de violência, com participação de profissionais de

saúde, de assistência social e de educação e de órgãos de promoção, proteção e defesa dos

direitos da criança e do adolescente. Ressalta-se, desta forma, o trabalho em rede e a

necessidade de prevenção de violação de direitos36

.

Andréa Amin ressalta “o caráter preventivo da doutrina da proteção integral em buscar

políticas públicas voltadas para a criança, para o adolescente e para a família, sem as quais o

texto legal será letra morta, não alcançando efetividade social37

.

No que diz respeito ao papel do Ministério Público em relação às políticas públicas,

Luiz Antonio Miguel leciona que este pode exercer dois papéis distintos: ser usufrutuário da

política pública, encaminhando crianças e adolescentes para a aplicação de medidas protetivas

ou como garantidor da formulação e execução da política pública38

.

Assim, em caso de omissão, inexistência ou insuficiência de política pública o

Ministério Público poderá ajuizar a respectiva ação civil pública ou extrajudicialmente,

agendar reuniões, instaurar inquéritos civis e expedir recomendações.

Corroborando a necessidade de se agir preventivamente, vale ser ressaltado o relatório

conclusivo apresentado às Nações Unidas, por ocasião de seu estudo sobre violência contra

criança, em atendimento à requisição do Comitê dos Direitos da Criança. Dentre suas

recomendações destaca-se a necessidade de prevenção da violência contra crianças da seguinte

forma:

negociação e mediação para membros do Ministério Público. 2. ed. Brasília: CNMP, 2015. Disponível em:

<http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Publicacoes/manual_mediacao_negociacao_membros_mp_2_edicao.p

df>. Acesso em: 29 maio 2017. 36 Art14§2º da Lei 13257 prevê que as famílias identificadas nas redes de saúde, educação, e assistência social e

nos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente que se encontrem em situação de

vulnerabilidade e de risco ou com direitos violados para exercer seu papel protetivo de cuidado e educação da

criança na primeira infância, bem como as que têm crianças com indicadores de risco ou deficiência, terão

prioridade nas políticas sociais públicas. 37 AMIN, Andrea Rodrigues. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia

Regina. (Org.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 6. ed. São Paulo:

Saraiva, 2013. p. 55. 38

FERREIRA, Luiz Antonio Miguel. O papel do Ministério Público na política de atendimento à criança e o

adolescente. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28321-28332-1-PB.pdf>.

Acesso em: 05 maio 2017. Exemplos desta atuação são os casos de evasão escolar, em que medidas são adotadas

em caso de faltas reiteradas e os de violência escolar, o qual identificou os delitos que mais ocorrem no âmbito

escolar para o direcionamento de políticas no setor, traçando o diagnóstico.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

A prevenção deve ser priorizada: Recomendo que os Estados priorizem a prevenção

da violência contra crianças atacando as causas subjacentes. Assim como é essencial

alocar recursos para intervenções após a ocorrência de atos de violência, os Estados

devem alocar recursos adequados para atacar fatores de risco e prevenir a violência,

antes que ela ocorra. As políticas e programas devem atacar fatores imediatos de risco,

como a falta de laços afetivos entre pais e filhos, a desintegração familiar, o uso de

bebidas alcóolicas ou drogas e o acesso a armas de fogo e outras armas. Em sintonia

com os objetivos de Desenvolvimento do Milênio, é importante que sejam adotadas

políticas econômicas e sociais que ataquem a pobreza, a desigualdade de gênero e

outras formas de desigualdade, a falta de renda, o desemprego, a superpopulação

urbana e outros fatores que minam a sociedade39

.

A identificação dos casos de vulnerabilidade e propensão à violência devem ser feitas

pela rede de forma a iniciar o trabalho de proteção. Neste sentido, as suspeitas de maus tratos

devem ser notificadas aos Conselhos Tutelares, o que constitui importante instrumento de se

efetivar a proteção integral de crianças e adolescentes.

O artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a obrigatoriedade de

comunicação ao Conselho Tutelar dos casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de

tratamento cruel ou degradante e de maus tratos contra criança e adolescente, sendo certo ainda

que o artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente estipula a obrigação do médico ou

responsável de atenção à saúde em comunicar à autoridade competente, casos envolvendo

suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente.

Com a notificação40

, há a possibilidade de se iniciar um trabalho articulado e em rede,

com divisão das responsabilidades, permitindo um cuidado compartilhado, sendo esta atuação

conjunta e integrada dos profissionais de saúde a mais adequada para a satisfação do melhor

interesse do infante41

.

Rubens Dias, analista de Políticas Públicas do Ministério da Saúde, afirma que é

preciso que a notificação deixe de ser vista como denúncia e passe a ser vista como objeto de

proteção e cuidado, passando a integrar o processo de cuidado e de aproximação da criança42

.

Estudo acerca da violência contra criança, publicado pelas Nações Unidas em 2006,

39

PINHEIRO, Paulo Sergio. Direitos da criança: Relatório do especialista independente para o Estudo das

Nações Unidas sobre a Violência Contra Crianças. Requisitado pela Resolução 56/138. Assembleia Geral da

Organização das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/estudo.pdf>.

A Lei da Primeira Infäncia também acrescentou ao art.88 do ECA, o inciso X que dispõe sobre a necessidade de

realização e divulgação de pesquisas sobre desenvolvimento infantil e sobre a prevenção da violência. 40

Quanto aos profissionais de saúde, a Portaria do Ministério da Saúde nº 1968, de 25 de outubro de 2001,

regulamenta esta notificação. Art. 1° Estabelecer que os responsáveis técnicos: de todas as entidades de saúde

integrantes -ou participantes, a qualquer título, do Sistema Único de Saúde - SUS deverão notificar, ao Conselho

Tutelar da localidade, todo caso de-suspeita-ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes, por

elas atendidos. 41

STEFANO, Isa Gabriela de Almeida, RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. O dever jurídico dos profissionais da

saúde e educação no ECA. In: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.) Cuidado e Vulnerabilidade. São Paulo: Atlas,

2009, p. 162. 42

Disponível em: <http://infancia.org/.br/atencao-e-cuidado-a-criancas-e-adolescentes-em-situacao-de-rua-

reflexoes-e- documentos/>. Acesso em: 29 maio 2017.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

também acrescenta ser importante que a notificação venha acompanhada de uma estrutura

adequada de proteção, apoio e tratamento para a criança e para a família, afirmando ainda que

a notificação compulsória pode estabelecer uma relação adversarial entre a família e o serviço

de proteção. Por outro lado, o mesmo documento reconhece que devido à dificuldade de

profissionais e das pessoas em geral reportarem a violência, verifica-se que sem a notificação

compulsória, grande número de crianças em risco jamais seriam identificadas, deixando de ser

garantida a proteção necessária às crianças43

.

A falta de notificação poderá enfraquecer o trabalho intersetorial com todos os

integrantes do Sistema de Garantia de Direitos44

, na contramão da legislação infanto-juvenil e

da necessidade de trabalho em rede45

.

A preferência pela não notificação, com o objetivo único de se evitar o acolhimento

institucional dos bebês, sem a adoção concomitante de medidas protetivas ou encaminhamento

implicado, constitui total assunção por parte do profissional de saúde por eventual risco que o

recém-nascido venha a correr, em flagrante violação ao propósito da Lei, que prevê o trabalho

em rede e integrado, dada a complexidade das situações enfrentadas no dia a dia.

As Recomendações da Promotoria de Infância e Juventude de Belo Horizonte46

, sob a

ótica da proteção integral da criança, não tem por finalidade o acolhimento sistemático e

automático dos recém-nascidos, nem tampouco estigmatizar e culpar a família, mas sim a

identificação de possíveis casos de violação de direitos para permitir a atuação preventiva do

Sistema de Garantias de Direitos, em articulação com a rede de apoio, buscando medidas de

apoio à família, na concretização do princípio da convivência familiar e comunitária.

É preciso ficar claro que não se está defendendo o retorno ao Código de Menores (Lei

6697/79)47

, com a identificação de vitimados pela pobreza e pela violência, marcados pela

43

UNITED NATIONS. Study on violence against children. Disponível em: <http:// www.unviolencestudy.org/>.

Acesso em: 05 maio 2017. 44

“O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração das

instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no

funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança

e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal.

§ 1º- Esse sistema articular-se-á com todos os sistemas nacionais de operacionalização de políticas públicas,

especialmente nas áreas da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, orçamentária, relações

exteriores e promoção de igualdade e valorização da diversidade. (art..1º da Resolução 113/2006 do

CONANDA). 45

O art. 4º da Lei 13257/16 prevê que as políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos da criança na

primeira infância serão elaboradas e executadas de forma a:

VII- articular as ações setoriais com vistas ao atendimento integral e integrado. 46

Recomendações 05/2014 e 06/2014 da 23ª Promotoria de Infância de Belo Horizonte. 47

O art.2º da Lei n.6697/79 ( Código de Menores) considerava em situação irregular o menor: a) privado de

condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de

falta, ação ou omissão dos pais ou responsável, ou ainda manifesta impossibilidade destes em provê-las; b)

vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos peles pais ou responsável; c) perigo moral; d) privado de

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

“situação irregular” e alvos de medidas aplicáveis pela autoridade judiciária, pois como destaca

Esther Maria de Magalhães Arantes “foi para romper com estas práticas, que (...) os

movimentos sociais e organizações não governamentais(...) iniciaram ampla mobilização para

introduzir na Constituição Federal os direitos da criança e do adolescente"48

A intenção do Ministério Público ao fomentar as notificações ao Conselho Tutelar é

agir preventivamente no sentido da construção de uma rede de atendimento, privilegiando o

papel da família e a proteção da criança, evitando também novos episódios de violência49

.

Identificados os casos individuais, sendo os mesmos comunicados ao Ministério

Público, estratégias serão pensadas, sem que necessariamente haja a separação da mãe do

bebê. O membro do Parquet deverá iniciar, junto com a rede da Saúde e da Assistência Social,

o acompanhamento, podendo funcionar como articulador desta rede. Agindo deste modo,

privilegia-se o princípio da proteção integral da criança e adolescente, bem como o da

intervenção precoce, efetivando inclusive o princípio da convivência familiar, o qual deve

nortear toda a atuação ministerial, evitando futuros rompimentos.

A análise dos casos individuais, por outro lado, poderá ensejar a tomada de medidas

no âmbito da Tutela Coletiva para a efetivação das políticas, ações e serviços inexistentes ou

deficientes. Medidas de caráter coletivo, como por exemplo o fomento à estruturação de

comissões intersetoriais, reuniões em rede, provocações e fortalecimento do Conselho

Municipal da Criança e do Adolescente frente à política de atendimento às crianças e

adolescentes e o uso do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, merecem ser

fomentadas.

Neste sentido, dentro da ótica acima descrita, o uso pelo Ministério Público das

recomendações como forma de buscar a identificação pelos profissionais da rede de apoio de representação ou assistência legal; e) desvio de conduta em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária,

ou então f) autor de ato infracional. 48

ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Rostos de Crianças no Brasil In: RIZZINI, Irene (Org.). A arte de

governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo:

Cortez 2011, p.196. 49

O art13§2º do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que os serviços de saúde em suas diferentes portas

de entrada, os serviços de Assistência Social (CREAS) e os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da

Criança e do Adolescente deverão conferir máxima prioridade ao atendimento das crianças na faixa etária da

primeira infância com suspeita ou confirmação de violência de qualquer natureza, formulando projeto terapêutico

singular que inclua intervenção em rede, e, se necessário , acompanhamento domiciliar. Sueli Ferreira Deslandes

e Mariana Barcinski em seu artigo Família Contemporânea e Violência: Significados e Práticas de

Atendimentos. In: TRAD, Leny (Org.) Família Contemporânea e Saúde Significados, Práticas e Políticas

Públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014 expõe que: “A abordagem mais ampliada e integrada inclui o

reconhecimento dos fatores de risco associados ao aparecimento e a reincidência de comportamentos violentos.

Em relação à violência intrafamiliar, por exemplo, estudo desenvolvido em um serviço americano de proteção à

infância mostrou que 37% das crianças atendidas acabavam por demandar novamente atendimento (Terling, 1999).

Os casos de retorno de crianças e adolescentes a serviços estavam usualmente relacionados à negligência de pais

com problemas de abuso de substâncias psicoativas e à falta de apoio social adequado".

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

possíveis casos de violação de direitos é positivo, pois permite que o Promotor de Justiça possa

atuar em colaboração com a rede de apoio, evitando medidas de acolhimento precipitadas e,

inclusive, no sentido da implementação de políticas públicas e na garantia da existência dos

serviços da rede de apoio necessária dentro do território de sua atuação.

4 ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO PREVENTIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS

MÃES USUÁRIAS DE DROGAS E EM SITUAÇÃO DE RUA

A Constituição de 1988 tem como objetivo estratégico a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária, em que o desenvolvimento deve estar dirigido à erradicação da pobreza

e da marginalização, redução de desigualdades sociais e regionais e à promoção de todos, sem

preconceitos e discriminação, tendo o Ministério Público importante papel por força do artigo

127 da Constituição Federal.

A situação de rua, por si própria, constitui situação de risco, que merece atenção do

Ministério Público, pois não se pode imaginar como os pais irão prestar seus cuidados, inerentes

ao poder familiar, morando nas ruas, expostos a todo tipo de violência e perigo.

O Decreto 7053/2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação

de Rua, em seu artigo 1º parágrafo único, considera a população em situação de rua como o

grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos

familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e

que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de

sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para

pernoite temporário ou permanente. A Resolução Conjunta CNAS/CONANDA nº 01, em seu

artigo 1º §2º descreve que a situação de rua de crianças e adolescentes pode estar associada

entre outras à mendicância, violência sexual, consumo de álcool e drogas e violência

intrafamiliar.

A população em situação de rua constitui um grupo onde se percebe múltiplas

violações de direitos fundamentais, já tendo merecido há algum tempo, o olhar cuidadoso do

Ministério Público, principalmente através das Promotorias de Cidadania. Frise-se que dentre

as Comissões de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público,

encontra- se o projeto “Ministério Público em Defesa das Pessoas em Situação de Rua”, o qual

vem sendo marcado pelo diálogo e participação na construção, implementação e

monitoramento de políticas, já tendo sido convolado como referência para os Ministérios

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Públicos brasileiros50

.

Pesquisa Nacional sobre o uso de crack foi realizada em 2014 através de convênio com

a Fundação Osvaldo Cruz, ocasião em que se identificou o perfil das mulheres usuárias de

crack sendo ao final constatado que:

[...] elas encontram-se inseridas em contextos de maior vulnerabilidade e apresentam

baixa escolaridade, experiência cotidiana de viver em situação de rua, histórico de

violência sexual, uso concomitante e intenso de drogas lícitas e ilícitas, uso

infrequente de preservativos, troca de sexo por dinheiro e/ou drogas, entre outros

elementos de vulnerabilidade individual e social.

Continua a pesquisa concluindo que estas mulheres são gravemente expostas à

violência sexual e que pelo menos 50% das mulheres entrevistadas engravidaram ao menos 1

vez durante o período de uso regular do crack51

. Pesquisa realizada em Nova York em meados

da década de noventa indicou também que o uso regular do crack constitui um fator de risco

para outros agravos, como doenças infecciosas e maus tratos de crianças52

.

O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes realizado pelo

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), realizado em 2003, apontou àquela época, a

dependência química e a situação de rua como uma das causas mais frequentes de acolhimento

institucional. Verificou-se que dentre os motivos que levaram os meninos e meninas aos

abrigos, a pobreza é a mais citada, com 24,2%. Entre outros, aparecem como importantes, pela

frequência com que foram referidos, o abandono (18,9%), a violência doméstica (11,7%); a

dependência química dos pais ou responsáveis, incluindo alcoolismo (11, 4%); a vivência de

rua (7,0%); e a orfandade (5,2%)53

.

Em 2011 novo Levantamento Nacional foi elaborado, viabilizado entre o Ministério

do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz),

sendo a dependência química ou alcóolica dos pais apontada como um dos três motivos mais

frequentes para o acolhimento, chegando a um percentual de 17,7 % das crianças acolhidas, ou

seja, número superior ao coletado em 2003. No Sul do país este problema chega ao percentual

50

LIMA, Paulo Cezar Vicente, ALMEIDA, Graciele de Rezende. Indução de Políticas Públicas para as pessoas

em situação de rua. In: Tendências em Direitos Fundamentais. Possibilidades de Atuação do Ministério Público.

v. 1, 2016, p. 140. 51

Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack. Quem são os usuários de crack e/ou similiares no Brasil? Quantos

são nas capitais brasileiras? Bastos, Francisco Inácio (Org.) ICICI/Fiocruz-2014. Disponível em:

<https://portal.fiocruz.br>pt-br>content>. Acesso em: 25 mar. 2017. 52

Ibidem, p. 151 53

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Levantamento Nacional de Abrigos para

Crianças e Adolescentes. Disponível em:

<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/infanciahome_c/acolhimento_institucional/Doutrina_abrigos/IPEA.

_Levantamento_Nacional_de_abrigos_para_Criancas_e_Adolescentes_da_Rede_SAC.pdf>. Acesso em: 08 maio

2016.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

de 24,5% das crianças, ocupando a dependência química dos pais o segundo motivo de

acolhimento54

.

Em consulta ao Censo 18 do Módulo da Criança e Adolescente (MCA), desenvolvido

pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, relativo ao ano de 2016, podemos observar que o

uso de álcool e drogas constitui 6,85% das causas de acolhimento institucional no Estado do

Rio de Janeiro. Os demais Censos também apontam o percentual de 7,46% (15º Censo), 6,79

% (16º Censo) e 6,18% (17º Censo)55

.

É preciso então que o Ministério Público comece a olhar para as causas dos

acolhimentos institucionais, em uma atuação preventiva, proativa e efetiva na concretização

de direitos fundamentais, a fim de que haja a diminuição à institucionalização de crianças.

Identificar os bebês recém-nascidos neste contexto de vulnerabilidade social constitui medida

importante de garantia ao direito à convivência familiar, a fim de que haja o devido apoio da

rede de proteção. É preciso também que medidas de caráter coletivo sejam priorizadas.

O art. 14§2º da Lei 13257, trazido pela nova Lei da Primeira Infância, dispõe sobre a

prioridade nas políticas públicas sociais para as famílias que forem identificadas e que se

encontrem em situação de vulnerabilidade e de risco ou com os direitos violados para exercer

o papel protetivo de cuidado.

Assim, nesta atuação de indução de políticas públicas em face do Estado, o Ministério

Público não pode prescindir da interação permanente com as organizações e os movimentos

sociais56 , elaborando de forma conjunta diagnósticos, definindo metas com a participação

popular, participando de audiências públicas, visitas conjuntas e contato com autoridades e

gestores, além do ajuizamento de ações civis públicas57

.

Cada vez mais vem se propondo um Ministério Público aberto ao diálogo, eficaz e

articulador na resolução de conflitos, buscando conjugar os direitos garantidos

54 ASSIS, Simone Gonçalves de, FARIAS, Luís Otávio Pires (orgs.). Levantamento nacional das crianças e

adolescentes em serviço de acolhimento. São Paulo: Hucitec, 2013. Disponível em:

<http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/dicivip_datain/ckfinder/userfiles/files/LIVRO_Levantamento%20Nacional_F

in al.pdf>. Acesso em: 08 maio 2017. 55

O MPRJ criou o MCA através da Res.GPGJ1369/07 que pode ser definido como um banco de dados eletrônico,

cujo objetivo é concentrar o maior número de informações necessárias à população infanto-juvenil acolhida e

facilitar a atuação dos órgãos encarregados pela proteção do direito à convivência familiar de crianças e

adolescentes acolhidos. 56

Neste sentido foi feita proposta de Recomendação 54 do CNMP de 28/03/2017, publicada em 11/04/17

visando à aproximação do Ministério Público aos movimentos sociais, incentivando uma atuação proativa,

resolutiva e preventiva do membro do Ministério Público. 57

GOULART, Marcelo Pedroso. Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. Belo Horizonte:

Arraes, 2013, p. 226. Quanto à possibilidade de judicialização de políticas públicas, vale mencionar que nossa

jurisprudência vem admitindo: TJRJ-Apelação nº 0012661-75.2012.8.190037 Des. Lucio Durante, j.01/03/2016-

19ª CC; TJRJ-Apelação nº 00067484920158190024, j.05/04.17, 3ª Câmara Cível, Apelação nº

00054487620118190029, Des.José Acir Lessa Giordani, j.09/05/17, 12ª Câmara Cível e Apelação nº

00311714220158190002, Des. André Emilio Ribeiro Von Melentovytch, j.21/03/17, 21ª Câmara Cível.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

constitucionalmente, estabelecendo estratégias, deixando de ser visto como instituição punitiva

e que pode ser marcada pela juridicidade e não necessariamente pela judicialização.

Há assim um desafio posto ao Ministério Público que além da atuação tradicional de

fiscalizar, deve contribuir para a construção de novas estratégias para o enfrentamento de

questões extremamente complexas como as ora discutidas58 . Utilizando-se do “Poder

Simbólico Ministerial”, o Ministério Público deve funcionar como transformador social,

induzindo os gestores a voltar sua atuação para o público até então esquecido59

.

Conforme orientação do Conselho Nacional do Ministério Público60

, há que se

priorizar a atuação preventiva e o combate articulado e sistematizado às causas geradoras de

desigualdades sociais, devendo o membro buscar uma visão holística da realidade social,

buscando conhecimentos para além do Direito, como a psicologia e sociologia. Incentiva-se

cada vez mais a multidisciplinariedade e interdisciplinaridade61

.

Uma das estratégias de transformação social utilizadas pelo Ministério Público de

Minas Gerais é a indução de projetos sociais, já tendo esta atuação sido regulamentada através

da Resolução conjunta PGJ/CGMP 02/2013, o que se denominou PROPS- Procedimento para

Implementação e Promoção de Projetos Sociais62

.

Também nesta esteira e na tentativa de traçar diferentes estratégias de atuação, o

Ministério Público do Rio de Janeiro vem promovendo eventos realizados mensalmente

chamados Oficina das Maternidades, em que há a presença expressiva de profissionais de

diversas maternidades, tais como assistentes sociais, psicólogos e médicos, permitindo uma

visão global do problema em questão, bem como das dificuldades enfrentadas no dia a dia. A

Oficina conta ainda com profissionais de determinados serviços de acolhimento, representantes

do Judiciário e Defensoria Pública.

A abertura do Ministério Público ao diálogo vem permitindo o maior conhecimento

dos atores integrantes da rede, garantindo maior efetividade e integração, havendo debates

sobre a forma de atuação, inclusive do próprio Ministério Público.

Este tipo de trabalho mais próximo com a rede, fomentou a construção de debates em

58

LIMA, Paulo Cezar Vicente; ALMEIDA, Graciele de Rezende. Indução de Políticas Públicas para as pessoas

em situação de rua. In: Tendências em Direitos Fundamentais. Possibilidades de Atuação do Ministério Público.

v. 1, 2016, p. 134. 59

Ibidem, p. 137. 60

CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Manual de negociação e mediação para membros

do Ministério Público. Op. Cit. p. 132. 61

Ibidem. p. 122. 62

Neste sentido ver Resolução Conjunta PGJ/CGMP 02/2013, o que se denominou PROPS In: LIMA, Paulo

Cezar Vicente, ALMEIDA, Graciele de Rezende. Indução de Políticas Públicas para as pessoas em situação de

rua. In: Tendências em Direitos Fundamentais. Possibilidades de Atuação do Ministério Público. v. 1, 2016, p.

134.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

torno da primeira Nota Técnica 001/2015 SAS e SGEP, permitindo a elaboração de nova Nota.

Foram levados em consideração os comentários formulados pelo Ministério Público, servindo

essa atuação ministerial como importante exemplo de medida no sentido do fortalecimento da

rede, através da aproximação com o Sistema de Justiça. A interpretação dos direitos

envolvidos, fundada no diálogo multidisciplinar e interdisciplinar, ampliando o olhar para

outras áreas do conhecimento, vem se mostrando imprescindível para que o Direito se torne

instrumento de justiça e o Ministério Público possa servir para a transformação social63

.

A aproximação dos atores envolvidos também tem contribuído para o estabelecimento

de fluxos internos no Setor da Saúde64

, bem como a integração com a Assistência Social, o

que certamente impactará positivamente no trabalho do Promotor da Infância e Juventude,

que poderá contar com diagnósticos mais precisos a embasar os pedidos de eventuais

acolhimentos institucionais65

.

A experiência prática junto à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude revela que

encaminhamentos são feitos à Vara da Infância e Juventude, destituídos de informações

detalhadas sobre o histórico do caso, relatório social e de saúde respectivo (pré-natal, parto e

pós-natal), bem como da oitiva dos diversos profissionais que atuaram no caso, em uma visão

ampla e multidisciplinar.

Esta ausência de informações qualificadas em avaliação preliminar que reúna dados

colhidos dos profissionais dos consultórios na rua, unidade básica de saúde, CAPS e CREAS,

pode gerar decisões inoportunas de acolhimento institucional. Ante à falta de elementos

suficientes, fragilidade da rede e ausência de programas de apoio à família e assumindo uma

postura protecionista em relação a criança, decide-se pelo acolhimento como a primeira medida

protetiva como forma de aprofundar o caso.

Essa é a importância do presente estudo.

A atuação preventiva do Ministério Público recomenda a proximidade do Promotor

de Justiça com a rede de cuidado e apoio de seu território, situação esta que fará estar próximo

dos dados da realidade e da atuação dos profissionais de saúde e assistência social nos

casos individuais antes mesmo ou independente do encaminhamento à Vara da Infância e

Juventude.

63

CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Manual de negociação e mediação para membros

do Ministério Público. Op. Cit. p. 122. 64

Neste sentido vale observar fluxograma trazido pela Nota Técnica Conjunta 001/2016 Ministério da Saúde e

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 65

Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência

Familiar e Comunitária prevê o estudo diagnóstico articulado.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Dentro deste viés, estará o Promotor de Justiça interagindo com a rede de assistência

podendo articulá-la diante de eventuais dificuldades para a prestação de serviços de apoio à

mãe que manifeste o desejo de ficar com seu filho, mantendo-se desta forma o vínculo familiar.

Não se deve simplesmente trazer o caso para o âmbito interno do Ministério Público e

do Sistema de Justiça. Evita-se, assim, a superposição de equipes técnicas, o reinício constante

dos estudos de casos, bem como o rompimento de vínculos pré-estabelecidos das famílias

com profissionais, o que prejudica consideravelmente a análise da situação. Para tanto, o

Promotor de Justiça tem que conhecer, fortalecer e confiar na rede de seu território, o que

constitui desafio constante na prática diária da Promotoria da Infância e Juventude.

Vale ser destacado ainda que dentre as políticas de apoio à família, na Nota Técnica,

há a previsão da criação de espaços conjuntos para as mães e seus filhos onde possam ser

cuidados em momentos de vulnerabilidade durante a gravidez e após a alta da maternidade,

podendo a mãe e o recém-nascido contar com o cuidado compartilhado entre a Assistência e a

Saúde66

. Tal medida vem ao encontro do princípio da proporcionalidade, sendo verificada a

harmonização entre os direitos da mãe e bebê. Com a adoção dessa medida, protege-se a

tutela do vínculo maternal, já que o espaço possibilita o fortalecimento do vínculo entre bebê

e mãe, evitando-se a separação, em atuação preventiva.

Contando com equipe preparada e o apoio da Saúde, principalmente a da Rede de

Atenção Psicossocial (RAPS)67

, tendo em vista o envolvimento com o uso da droga, relatórios

consistentes poderão ser elaborados, permitindo decisões bem fundamentadas e melhor

avaliação da capacidade da família, segurança do bebê e necessidades de medida de proteção.

Irene Rizzini, ao tratar sobre as tendências do atendimento institucional, prevê, entre os

principais princípios a serem observados, o de: “desenvolver, financiar, implementar e

monitorar sistemas alternativos de cuidados às crianças, inspirados em princípios que

caracterizam a vida familiar”68

.

Trata-se de medida que vem ao encontro da política de atenção à primeira infância,

sendo privilegiada a ação intra e intersetorial, bem como a interdisciplinaridade e

humanização, configurando uma espécie de convivência familiar assistida.

A intersetorialidade sugere uma nova maneira de abordar os problemas propondo, “a

partir da visão holística da criança (pessoa, cidadã, sujeito de direitos), em vez de objeto de

66

Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência

Familiar e Comunitária prevê o acolhimento conjunto. 67

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é instituída pela Portaria 3088 de 22/12/2011, com republicação em

maio de 2013. 68

RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças no Brasil. Rio de Janeiro: Puc-Rio.2004, p. 80

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

várias áreas de intervenção, valorizar o conhecimento especializado e a especialização

profissional e articulá-los num projeto conjunto, num plano integrado de atenção integral”69

.

O Município do Rio de Janeiro vem protagonizando este tipo de política com a recém

abertura de um espaço denominado Espaço Elos70

, onde são harmonizados os direitos da mulher

e do bebê, precisando ainda ser definida como se dará a fiscalização do Ministério Público

quanto à efetividade do serviço, tal qual como ocorre nas entidades de acolhimento

institucional71 .Neste ponto, as “Oficinas das Maternidades” também tem se mostrado

extremamente eficazes para o debate e construção de consensos e fluxos de encaminhamentos

da maternidade para o referido acolhimento.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do trabalho consistiu na reflexão acerca de estratégias de atuação

preventiva por parte do Ministério Público a fim de que o direito à convivência familiar e

comunitária previstos na Doutrina da Proteção Integral e pelo Marco Legal da Primeira

Infância fosse efetivado. Para tanto, partiu-se da crítica formulada nas Notas Técnicas

oriundas do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Social, no sentido de

que as decisões de acolhimentos de bebês cujas mães são usuárias de drogas e que vivem em

situação de rua, estariam sendo feitos de forma precipitada, sem uma avaliação técnica e

aprofundada de cada caso e de que as Recomendações do Ministério Público estariam

contribuindo para estas decisões.

Apesar da crítica acima apontada, as Recomendações do Ministério Público, bem

como as notificações aos Conselhos Tutelares constituem importante ferramenta de

identificação de famílias e ponto de partida para início de uma estratégia de atuação. Com a

identificação dos casos individuais, o Ministério Público poderá fomentar a intersetorialidade,

aproximando-se da rede de Saúde e de Assistência Social, acompanhando e articulando a rede

em cada caso, de modo a apoiar à família e a privilegiar a intervenção precoce, sem que a

identificação signifique a adoção da medida de acolhimento institucional.

O Ministério Público objetiva que cada vez mais haja a diminuição dos casos de

69

REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA. A Intersetorialidade nas políticas para a Primeira Infância.

(guia). Disponível em: <http://primeirainfancia.org.br/rede-nacional-primeira-infancia-lanca-guia-

intersetorialidade>. Acesso em: 16 jun. 2017. 70

No Município do Rio de Janeiro foi inaugurado em 17/05/17 o Espaço Elos destinado ao acolhimento de mães

maiores de 18 anos, com histórico de uso de drogas e seus bebês. 71

Sobre a fiscalização das entidades, ver artigo 95 do ECA.

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

acolhimento institucional, mas que esta seja reflexo de uma maior política pública de apoio às

famílias e não simplesmente da invisibilidade dessas crianças. Não se quer também que essas

crianças cheguem ao Ministério Público quando a situação urgente já estiver instalada, após já

terem tido seus direitos fundamentais extremamente violados.

As famílias objeto deste estudo precisam ser devidamente diagnosticadas pelos

Setores de Saúde e Assistência Social, já que estão em situação de extrema vulnerabilidade

social, desproteção e violência, razão pela qual constituem público prioritário merecedor de

políticas públicas de promoção dos cuidados parentais e de prevenção à violência.

A aproximação do Sistema de Justiça com a rede de apoio constitui ponto crucial para

que fluxos e protocolos sejam traçados, de modo a evitar que casos de crianças com fortes

indícios de violações de direito cheguem ao Ministério Público sem elementos técnicos

suficientes e sem a avaliação singular e contextualizada de cada caso. Com estudos de casos

consistentes, evita-se que o Promotor de Justiça tome medidas na contramão do princípio da

convivência familiar e da proteção integral das crianças.

Havendo a integração de esforços, sem a superposição de trabalhos e estudos, o

Ministério Público poderá colaborar para a fixação de parâmetros, de forma que as avaliações

multiprofissionais contemplem a capacidade protetiva e de cuidado dos pais, bem como a

proteção, bem-estar e segurança da criança. Tais fatores foram apontados ao longo do trabalho

como essenciais para a busca do direito à convivência familiar efetivo e que precisam integrar

os estudos da rede, funcionando como limite ao direito à privacidade e a intervenção mínima

do Estado na esfera familiar.

A Nota Técnica 001/2016 Conjunta do Ministério da Saúde e Ministério do

Desenvolvimento Social representa um exemplo de trabalho de articulação entre o Ministério

Público e a rede de proteção, significando relevante avanço em relação à Nota Técnica Conjunta

001/2015 da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) e Secretaria de Gestão Estratégica e

Participativa (SGEP). A Nota traz importante fluxograma que merece ser implementado em

cada território, devendo o Promotor de Justiça se aproximar da rede de saúde e assistência

social, fomentando, inclusive a integração entre as duas áreas.

Estratégias de atuação preventiva e coletiva deverão ser incentivadas pelo Ministério

Público, tais como a implantação de uma política de atendimento integrada à criança, o

estabelecimento de comissões intersetoriais de prevenção à violência, as reuniões de rede, bem

como o fortalecimento do papel de cada integrante da rede de proteção.

A indução de políticas públicas, inclusive as sociais, também constitui importante

função do Ministério Público, de modo a efetivar a Doutrina da Proteção Integral. O Ministério

CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.

Público poderá servir como espaço de diálogos e consensos, com foco tanto na promoção de

direitos como na defesa de direitos. Exemplo de tal atuação tem sido a Oficina de

Maternidade no Ministério do Rio de Janeiro e o incentivo a recém abertura do Espaço Elos,

onde se procura harmonizar os direitos das mulheres e seus filhos, visando à concretização do

direito à convivência familiar, com proteção, segurança e bem-estar dos bebês.

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