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1 Jorge Escher ESTRANHO EM CASA São Paulo Edição do Autor 2015

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Page 1: Estranho em casa - perse.com.br · e atrair a atenção da mulher para si tocando-a no om- bro, para que ela lhe servisse logo um copo d’água. Temendo, porém, causar-lhe um choque,

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Jorge Escher

ESTRANHO EM CASA

São Paulo

Edição do Autor

2015

Page 2: Estranho em casa - perse.com.br · e atrair a atenção da mulher para si tocando-a no om- bro, para que ela lhe servisse logo um copo d’água. Temendo, porém, causar-lhe um choque,

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Copyright© Jorge Escher

Estranho em Casa

ISBN livro impresso: 978-85-918090-3-5

Conto. Literatura brasileira

Capa e Diagramação: Jorge Escher

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O pedreiro e a anciã .......................................................

Fabíola ............................................................................

O ônibus .........................................................................

Namorados .....................................................................

O goleiro ........................................................................

Mulher biônica ...............................................................

O assassino de meu pai ..................................................

Fantasia de Romeu .........................................................

Estranho em casa ............................................................

Primeira impressão .........................................................

Fantasia de Julieta ..........................................................

O preço ...........................................................................

Estêvão ...........................................................................

O baú ..............................................................................

Marido pai ......................................................................

Passageiros .....................................................................

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O pedreiro e a anciã

— Melhor ficar no escuro que

viver nas trevas — replica Alex num

repente filosófico.

De cócoras no quintal, o pedreiro sopra a gota

de suor que descansava na ponta de seu nariz. Volve

então a cabeça para a casa, da qual dona Maristela

não vinha nunca com seu copo d’água gelada. Fazia

dez minutos que lhe fizera o pedido, mas, supõe o

moço, a mulher provavelmente o esquecera. Precisa-

va beber, beber. Depõe, por isso, a colher de pedreiro

no chão e se dirige à cozinha, de onde emanava um

cheiro bom de cebola e alho fritos. A corpulenta mu-

lher lidava ao fogão com uma panela de ferro. Não

apenas morava sozinha, diz consigo o rapaz, admira-

do da força física e moral de sua contratante, como

sozinha cuidava da casa e ainda fazia a própria comi-

da... Preocupado em não assustá-la, introduz a cabeça

no vão da porta e a chama baixinho:

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— Dona Maristela!

A anciã tem um estremeção, bufa, e segue refo-

gando o arroz branco com uma colher de pau.

Aflito, Alex sente impulso de adentrar a cozinha

e atrair a atenção da mulher para si tocando-a no om-

bro, para que ela lhe servisse logo um copo d’água.

Temendo, porém, causar-lhe um choque, apenas a

chama novamente, elevando um pouco a voz:

— Dona Maristela!

A anciã bufa outra vez e, carrancuda, volta-se

lentamente para o moço.

— O que o senhor quer aqui? — pergunta-lhe

seca, ríspida.

Alex esboça um sorriso amarelo.

— A senhora pode me arranjar um copo de água

gelada? Eu estou morto de...

— Água? — atalha ela.

— Sim, senhora — confirma o moço.

— Volte pro seu trabalho, que eu levo a água

pro senhor lá — responde-lhe no mesmo tom a mu-

lher.

“É impressão minha ou dona Maristela está

mesmo zangada comigo?”, pensa Alex. “Vai ver se

assustou quando eu chamei ela, e ficou azeda por

causa disso...”

— Tá certo, dona Maristela — assente o moço

amavelmente, e se afasta. Fazia um calçamento e ou-

tras pequenas obras no quintal, como o reparo das

rachaduras no muro carcomido.

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Minutos mais tarde, vesgo de sede, corre à área

de serviço e bebe muito, sofregamente, na torneira do

tanque. Em seguida, pega um lenço encardido num

bolso traseiro da calça e entra a enxugar a testa e o

pescoço. “Além de meio surda”, diz a meia-voz mi-

rando a janela da cozinha, “dona Maristela deve de

ter a memória fraca...” Eram já dez para as onze; o

aroma de comida no ar apetitava narizes de estômago

vazio. Alex, que tinha o seu cheio de água, não co-

mida, guarda o lenço no bolso da calça, vai até a bi-

cicleta, pega a marmita no bauzinho do bagageiro e

segue na direção do abacateiro, a cujo pé se senta

com as costas contra o tronco. Daí a minutos, esfria-

do o sangue e assentada a água, destampa a marmita

e começa a almoçar com prazer seu arroz, feijão, filé

de peito de frango, quiabo refogado e duas azeitonas

verdes. Sobremesa não havia. A anciã o espia da ja-

nela da cozinha, dá um muxoxo, sai para o quintal e

vem em sua direção pé ante pé, arrimando-se na ben-

gala.

— Por que o senhor está aí sentado? — indaga

do pedreiro assim que se acerca dele. — Desse jeito

o senhor não acaba hoje o serviço!

— Estou almoçando, dona Maristela — respon-

de-lhe afavelmente Alex. E obtempera: — Não se

preocupe com o serviço não, viu? Eu acabo hoje,

sim.

A anciã coça o nariz.

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— O senhor está me enrolando, isto sim! — diz-

lhe severa, vibrando energicamente o indicador em

riste.

Um pedaço de peito de frango entala na gargan-

ta do rapaz.

— Enrolando a senhora?! — diz Alex entre so-

luços, o rosto congestionado, pondo-se de pé. — Não

estou não, dona Maristela! Já disse pra senhora que

eu acabo hoje o serviço, não disse?

— Só quero ver! — replica a anciã, cética, des-

confiada. — Só quero ver! Aposto que no fim do dia

o senhor vai me dizer que vai ter que voltar amanhã,

só pra me cobrar mais pelo serviço!

— Cobrar mais pelo... — ia dizendo o moço,

perplexo, indignado, resfolegando, mas ela o inter-

rompe.

— Pois pode ir tirando o seu cavalinho da chu-

va, está me ouvindo?, que eu não lhe darei nem mais

um centavo do meu dinheiro! Nem mais um centavo!

O que o senhor está pensando, hein? Que eu sou bo-

ba só porque sou velha? Não sou não!

Tal fala espicaça os nervos e os brios de Alex.

Só não diz poucas e boas à mulher porque urgia de-

sobstruir a garganta, razão pela qual corre à lavande-

ria e bebe alguns goles d’água. Ao voltar de lá, dona

Maristela retornava claudicando à cozinha.

Alex soluçava ainda. Seu rosto, vermelho por

natureza, achava-se em brasa, menos pelo engasgo

em si que aquela ultrajante palavra da mulher. Não

podia acabar de crer que dona Maristela pudesse fa-

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zer tão mau juízo de sua pessoa, pois seu nome era a

coisa que ele mais prezava neste mundo. Por quem

ela o tomava, afinal? Um mau-caráter? Um embro-

mador? Um vigarista? Além do mais, eles haviam

combinado que ele faria o serviço por R$ 80,00, não

haviam? Então, que diferença faria pra ela ele acabar

o serviço naquele dia ou no seguinte? Absolutamente

nenhuma! Ele já não trabalhava por dia por isso

mesmo, porque não gostava de ser pressionado a cor-

rer com o serviço!

Perdido o apetite, o pedreiro guarda a marmita

no bauzinho, abre a garrafinha térmica, toma um gole

de café. Logo em seguida, volta ao trabalho, ansian-

do agora acabá-lo quanto antes para se ver livre da

mulher. Temia que ela viesse com aquela conversa

besta pro seu lado outra vez. Tinha o estopim curto,

curto, podia fazer besteira. Já não tinha caniveteado

um ajudante por causa de conversa mole? Foi. Por

isso seria bom aquela velhota de cara amarrotada não

vir aporrinhar ele de novo não...

Pouco antes das três, sucede o que Alex mais

temia: dona Maristela vem capengando da cozinha

em sua direção. Ao dar com a aproximação da idosa,

o rapaz, que cimentava um trechinho de chão, estre-

mece.

— Eu não disse que o senhor está me enrolan-

do? — diz ela junto dele. — Já são quase três horas e

o senhor ainda não acabou o serviço!

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O pedreiro apruma-se, encara a mulher com um

olhar minaz e lhe diz num tom quase normal de voz,

posto trincasse os dentes de raiva:

— Daqui a pouco o serviço estará pronto, dona

Maristela. Se a senhora não me atrapalhar de novo, é

claro.

— Atrapalhar... — escarnece ela. — O senhor

trabalha mal e eu que sou a culpada?! Se eu soubesse

que o senhor é careiro e enrolão desse jeito, eu tinha

era contratado outro pedreiro, isto sim!

Alex respira fundo. Nunca, em doze anos traba-

lhando como pedreiro, nunca tinha sido tão ultrajado

e injustiçado. Nunca. Por pouco, muito pouco mes-

mo, não atende aos apelos da vontade monstro que o

acometia de voar ao pescoço da mulher e esganá-la.

Fulminando-a com o olhar, diz-lhe apenas:

— Posso trabalhar?

— Não só pode como deve — adverte dona Ma-

ristela, ensaiando um passo. E acresce, desdenhosa:

— Fique sabendo que o seu serviço não vale R$

80,00 não, viu? Qualquer meia-colher faria um servi-

ço melhor que esse aí. E pela metade do preço!

Agora Alex faz um esforço ingente, quase so-

bre-humano, para refrear o assomo que sentia de pe-

gar na enxada e dar uma pancada fatal na cabeça da

mulher. “Se eu soubesse”, pensa furibundo, tiritando

da cabeça aos pés, “que essa velha era tão sovina e

impertinente assim, não tinha pegado essa porcaria

de serviço!”

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Meia hora mais tarde, quando o espírito do mo-

ço finalmente serenava, já lá volta a mulher. Ao dar

com sua aproximação, o pedreiro decide ignorá-la.

Afinal, pondera, dona Maristela não passava de uma

velha caduca, uma velha esclerosada. Como seu pai

costumava troçar dos conhecidos, estava no bico do

corvo. Por isso, ele precisava ser paciente com ela,

não levar a sério as bobagens que lhe dizia. Agora ele

sabia a razão por que ela morava sozinha naquele

casarão. Agora ele sabia. Quem conseguia viver com

um estrupício daqueles?... Quem?...

— Mas o senhor ainda não acabou o serviço?!

— pergunta a idosa, abespinhada, às costas do moço.

Indignado com tamanha insolência, Alex res-

munga sem voltar-se para a mulher: “Velha imperti-

nente...”.

— Impertinente é o senhor, que passou o dia in-

teiro me enrolando! — retruca a idosa no ato.

Colérico e surpreso com o fato de dona Mariste-

la tê-lo ouvido perfeitamente bem, embora ele tivesse

sussurrado, Alex salta-lhe na frente como uma fera.

— Eu não estou enrolando a senhora não! —

vocifera possesso, o indicador no nariz dela.

A mulher recua um passo e se mantém estática e

retraída, os olhos esbugalhados, olhando a fito para o

moço. Nisso, ocorre a Alex que ela estava talvez ten-

tando desvalorizar seu serviço para pagar-lhe menos

que o combinado. Seria tão sovina assim?...