estado novo em questão (intro)

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  • TlUlo original: Cidade e Imprio.

    Dinmicas Coloniais e Reconfiguraes Ps-Coloniais

    os aulores dos textos e Edies 70 (ver pgs. 7-8)

    Capa de FBA

    Depsito Legal n.' 366328/13

    Biblioteca Nacional de portuga/- Catalogao na Publicao

    CIDADE E IMPRIO

    Cidade e Imprio_ Dinmicas Coloniais e Reconfiguraes Ps-Coloniais! org. Nuno Domingos, Elsa Peralta-

    - (Hist6ria & sociedade; t 2) ISBN 979-972-44-1768-4

    1- DOMINGOS, Nuno, 1976-II - PERALTA, Elsa

    CDU 94(469-44)"19" 325 316

    Paginao: '

    ~ Impresso e acabamento:

    PENTAEDRO, LDA. para

    EDIES 70, LDA. Outubro de 2013

    Direitos reservados para lodos os pases de Lngua Portuguesa por Edies 70

    EDIES 70, uma chancela de Edies Almedina, SA Avenida Fontes Pereira de Melo, 31 - 3.' C - 1050-117 Lisboa / Portugal

    e-mail: [email protected]

    www.edicoes70.pt

    Esta obra est protegida pela lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,

    incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso lei dos Direitos de Autor ser passvel

    de procedimento judicial.

    CIDADE E IMPRIO DINMICAS COLONIAIS

    E RECONFIGURAES PS-COLONIAIS

    NUNO DOMINGOS E ELSA PERALTA ORGI.

  • ndice

    INTRODUO

    A Cidade e o Colonial Nuno Domingos/Elsa Peralta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX

    PARTE I CIDADES COLONIAIS: TRABALHO,

    TERRITRIO E ESTADO

    Cidades em Angola: construes coloniais e reinvenes africanas

    Isabel Castro Henriques/ Miguel Pais Vieira. . . . . . . . . . . . . 7

    A desigualdade como legado da cidade colonial: racismo e reproduo de mo-de-obra em Loureno Marques

    Nuno Domingos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

    Cidades coloniais: fomento ou controlo? Diogo Ramada Curto/Bernardo Pinto Da Cruz. . . . . . . . . . . 113

    Poder e a paisagem social em mudana na Mueda, Moam-bique

    Harry G. West . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

    PARTE II REPRESENTAES DO IMPRIO: DISCURSOS

    METROPOLITANOS, CIRCULAES E MEMRIAS

    As runas das c}dades: histria e cultura material do Imprio Portugus da India (1850-1900)

    FiliPa Lowndes Vicente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

  • VIII CIDADE E IMPRIO

    Lisboa, capital do imprio. Trnsitos, afiliaes, transnacio-nalismos

    Manuela Ribeiro Sanches. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279

    Ajuventude pode ser alegre sem ser irreverente. O con-curso Y-y de 1966-67 e o luso-tropicalismo banal

    Marcos Cardo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319

    A composio de um complexo de memria: O caso de Belm, Lisboa

    Elsa Peralta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 361

    PARTE III DESDOBRAMENTOS PS-COLONIAIS:

    CONTINUIDADES E RUTURAS

    A barraca ps-colonial: materialidade, memria e afeto na arquitetura informal

    Eduardo Ascenso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 415

    Fomos conhecer um tal de Arroios: Construo de um lugar na imigrao brasileira em Lisboa

    Simone Frangella. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 463

    Um lugar estrutural? Legados coloniais e migraes globais numa rua em Lisboa

    Jos Mapril . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 503

    A colnia, a metrpole e o que veio depois dela: para uma histria da construo poltica do trabalho domstico em Portugal

    Nuno Dias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525

    Lisboa redescobre-se. A governana da diversidade cultural na cidade ps-colonial. A Scenescape da Mouraria

    Nuno Oliveira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 557

    NOTAS BIOGRFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 603 NDICE REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 609 NDICE GEOGRFICO.... ......... .. .... ... ....... 619 NDICE ONOMSTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 625

  • A Cidade e o Colonial

    Este livro analisa o modo como as sociedades coloniais do antigo Imprio portugus se constituram, tomando as cidades como unidades de investigao. Um dos seus principais argu-mentos diz respeito fora dos mecanismos da reproduo social e poltica. Ou seja, a inrcia de muitos hbitos e de vrias estratgias de dominao concretizou-se no s num conjunto de espaos e temporalidades diferentes, mas acabou por extra-vasar o tempo colonial e chegar at atualidade. Neste sentido, a cidade configura-se como um objeto de investigao a partir do qual possvel colocar uma srie de problemas acerca da constituio de sociedades coloniais - incluindo nelas as suas metrpoles ou capitais - e da maneira como os seus princpios de organizao se reproduzem em contextos ps-coloniais.

    O caso portugus passvel de interpretao no contexto de processos sociais largos que caracterizam tanto o perodo colonial, como o ps-colonial. No o entendemos, desta forma, como uma exceo. O discurso da excecionalidade suportou uma ideologia estatal, apoiada por teorias acadmicas que aca-baram por permanecer. Hoje, em Portugal, em prticas quoti-dianas, na cultura popular, em polticas institucionais, em livros de histria, nos museus, na produo ideolgica mas tambm na prpria geografia das cidades, esse passado ainda visvel e continua a servir de grelha de conhecimento na mediao das

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  • x CIDADE E IMPRIO

    relaes sociais, na materialidade e na imaginao dos enten-dimentos comuns produzidos sobre o outro.

    O estudo do urbano permite identificar o modo como a dinmica de urbanizao colonial e ps-colonial no espao por-tugus se integra num conjunto de tendncias estruturais que acompanha a formao de uma economia globalizada, de um sistema-mundial, percetvel no quadro do funcionamento de uma diviso internacional do trabalho e da produo, em lgi-cas de estratificao social. Nas cidade, tais tendncias ganham uma traduo espacial evidente e que, no universo colonial, foram caraterizadas por poderosos processos de racializao e categorizao que instituram formas de cidadania desiguais. na cidade que a ordem espacial dos projetos e imaginaes imperiais concretizada. E so as cidades dos imprios e das metrpoles que operam como centros de poder e conexo da intrincada rede de relaes e de trocas que est na base do sis-tema-mundial vigente, tambm ele criado pelo colonialismo. As cidades coloniais constituem-se como centros de administra-o e de poder colonial e como locais de fluxo de bens e de servios. So importantes locais de transferncia da cultura imperial e capitalista moderna para novos espaos, muito con-tribuindo para a reproduo de ordens ideolgicas, econmicas e culturais e de controlo de populaes. No obstante, tal como noutros contextos, o urbano colonial e ps-colonial governado por Portugal foi e tambm um espao de criao de autono-mias, de projetos e resistncias, de circulao de pessoas, hbi-tos, ideias, de apropriao e adoo de prticas e representaes.

    este mundo urbano complexo que os textos deste livro, adotando olhares e perspetivas distintas, procuram descrever. Nesta dinmica, o colonial impe-se como uma relao de poder, dominado por princpios de explorao econmica, apresentando uma cultura prpria, assente em formas de domi-nao prtica e simblica que engendraram sociedades profun-damente desiguais, mas onde indivduos e grupos se apropria-ram de recursos, promoveram sociabilidades, reinventaram formas de vida e aspiraram a outras. Assim, este livro trata de dinmicas presentes nos espaos urbanos do Imprio portugus

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  • A CIDADE E O COLONIAL XI

    e O modo como estes se estendem por intermdio de prticas e representaes, para l da fronteira cronolgica do Imprio. Assumindo esta unidade de anlise, que permite localizar um objeto e problematiz-lo, o caso imperial portugus oferece um exemplo da constituio de uma sociedade colonial urbana e da sua projeo ps-colonial.

    O quadro colonial portugus, no criando uma exceciona-lidade, garantiu a este processo comum especificidades e um ritmo prprio de evoluo. Tal dinmica observvel na prpria organizao urbana, no edificado, na transmisso de hbitos, costumes e crenas. Mas tambm no nvel do desenvolvimento econmico, na capacidade do Estado em regular a urbanizao, nas aes polticas de governo - no ltimo perodo colonial, muito influenciadas pelo quadro de evoluo do fascismo por-tugus - e ainda numa certa traduo simblica e identitria que se torna operativa em diversos quadros de relao contem-pornea, como alguns dos captulos neste volume procuram identificar. A constituio de sociedades urbanas coloniais no contexto da expanso portuguesa estabelece-se como ndice evidente da prpria estrutura do poder colonial e da sua evolu-o. A sua anlise, noutro sentido, cria um corpus que permite a comparao com outros casos_ O mesmo sucede com as ml-tiplas faces da experincia ps-colonial, desde a integrao das populaes imigrantes at s polticas oficiais de memria impe-rial, passando pela sua representao nos formatos da cultura popular.

    Este tipo de anlise processual possibilitou-nos pensar para l das fronteiras de uma histria poltica definida nacional-mente, mas sem excluir da anlise os momentos de mudana impostos por uma narrativa nacional. Assim sendo, interessava perceber as lgicas de continuidade das relaes de poder entre o colonial e o ps-colonial, colocando em evidncia o seu lado estrutural, inscrito, no tempo longo, sob a forma de um sistema de organizao das relaes de poder que vivem tanto nas ins-tituies como nos corpos e nas representaes. Por fim, a ter-ritorializao urbana destas relaes oferece um espao de an-lise para interpretar o modo como as lgicas de organizao

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  • XII CIDADE E IMPRIO

    social se manifestam no quotidiano. A uma escala de anlise mais reduzida interessava compreender as estratgias e inten-es dos indivduos que, se reforavam a reproduo de relaes de poder, tambm as ajudavam a transformar.

    o espao urbano do Imprio portugus

    As cidades coloniais foram investigadas pela sua singulari-dade. Bero de uma nova organizao, o espao urbano pro-porcionou um laboratrio experimental com questiona-men tos prpl'ios, que aLrav -ssaram as ci ' ncias . o iais c 'lu s institudonalizaram m uoiversidades eI parlam mos publi-ca ' . A pesquisa sobre cidades coloniais 111 fri .

  • A CIDADE E O COLONIAL XIII

    ainda mais o significado da transformao urbana decorrente da chegada do colonizador europeu (2).

    (2) Existe uma tradio bem estabelecida de investigao da cidade colonial no contexto da formao histrica do imperialismo_ Desde os primeiros estudos coloniais, como o trabalho Orde Browne, The African Lahourer (Oxforf: Oxford University Press, International African Institute, 1933), passando pelo estudo sobre o Copperbeltdej. Merle Davies (org.), Modem lnduslry and lhe Afiican (London: Macmillan, 1933), e pelos cls-sicos do Rhodes Livingstone Institute e da Universidade de Manchester, sob a figura tutelar de Max Gluckman: Max Gluckman, An Analysis of a Social Situation in Modern Zululand, Baniu Studies, vol. 14, n." 1 (1940); Godfrey Wilson, An Essay on the Economics of Delribalization in Northem RJw-desia (Livingstone: Rhodes-Livingstone Papers, nmeros 5-6, 1941-42);j. C. Mitchell, The KalelaDance (Manchester: Manchester U niversity Press, 1956); idem, Social Networks in U,-ban Situaliom: Analysis of Personal Relationships in CentralAfrican Towns (Manchester: Institute for Social Research University ofZambia, Manchester U niversity Press, 1969); A. L Epstein, Polilics in an Uwan Afiican Community (Manchester: Manchester University Press, 1958); Philip Mayer, Townsmen or Tribesmen: Conse11latism and the PTOCesS of Uwani-zation in a South African City (Cape Town: Oxford University Press, 1961); Bruce Kapferer, The Population of a Zambian Municipal TownshiP (Lusaka: Institute for Social Research, 1966). Neste perodo tambm indispensvel referir o trabalho de Georges Balandier, SocioJgies des Brazzavilles Noires (Paris: Armand Colin, 1965). Mais recentemente h um conjunto de obras que interessar enumerar de um leque cada vez maior de referncias de onde se destacar a obra da historiadora Catherine Coquery-Vidrovitch, The Process ofUrbanization in Africa: From de Origins to the Beginning of Independence, African Studies Relliew, vol. 34, n." 1 (1991), pp. 1-98. De salientar tambm os trabalhos de Charles Van Onse\en, ChibaTO: Afiican Mine Labour in Southem Rodhesia 1900-1933 (London: Pluto Press, 1980), D. Simon, Third World Colonial Cities in Context, PTOgress in Human GeograPhy, vol. 8, n." 4 (1984), pp. 493-514, R. Ross e G. Telkamp (orgs.), Colonial Cities: Essays on Uwanism in a Colonial Context (Doddrecht: Martinus Nijhoff, 1985), N. Alsayyad (org.), Forms ofDominance: On theArchitecture and Uwanism ofthe Colonial Enterprise (Aldershot: Avebury, 1992); Anthony King, Uwanism, COJnialism and the World-Economy (London and NewYork: Rou tledge, 1990); idem, Colonial Uwan DeueJpment: Culture, Social POWe1- and EnviTOnment (London: Routledge and Kegan Paul [1976] 1992). Em 1989 Michel Cahen organizou um volume sobre a realidade urbana na frica lusfona: Michel Cahen (org.) , Bourgs et Villes en Afiique Lusop/wne (Paris: Harmattan, 1989).

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  • XIV CIDADE E IMPRIO

    No de estranhar que parte substancial da bibliografia sobre as cidades coloniais tivesse sido produzida pelas prprias potncias imperiais. Tal realidade reforou-se a partir do momento em que as potncias europ ias, n Uleada mcnte na transio para o sculo xx, pas 'a r'~m a um regime de o 'upa o efetiva. Aos poderes coloniais inte re sava n {l ap nas riar uma histria glorificadora dos seus territrios e organizar inventrios de legados materiais, mas tambm produzir um conhecimento til administrao e explorao do territrio e dos recursos, onde se incluam as populaes. Sobre estas interessava perce-ber as formas de vida, as hierarquias dos seus sistemas polticos, sociais e religiosos, fundamentais em modelos de admin L

  • A CIDADE E O COLONIAL xv

    a sociologia(4). No caso colonial portugus, como se refere no captulo de Nuno Domingos, os estudos urbanos de teor antro-polgico e sociolgico tardaram n. O primeiro trabalho desta

    (4) Georges Steinmetz (org_), Sociology andEmPire: The ImpetialEntan-glements ofaDisciPline (Durham, N.G: Duke University Press, 2013). Os tra-balhos dos antroplogos do Rhodes Livingstone Institute e da Universidade de Manchester, muito influenciados pela sociologia urbana, tornaram-se clssicos da anlise antropolgica do mundo urbano_ A herana da tradi-o de onde provieram autores como Max Gluckman,]. Clyde Mitchell, A. L. Epstein, Bruce Kapferer ainda hoje muito discutida, no quadro de trabalhos mais vastos sobre a relao da antropologia com os imprios. A este propsito veja-se: TalaI Asad, Anthropolog)' and the ColonialEncounter (London: Ithaca Press, 1973); UlfHannerz, The View from the Copper-belt, Exploring the City: Inquiries toward an Urban Anthropology (New York: Columbia University Press, 1980), pp. 119-162; Adam Kuper, Anthropology and Anthropologists: The Modern British Se/wol (London: Routledge, 1996);

    James Ferguson, Anthropology and its Evil Twin: 'Development' in the Constitution of a Discipline, in Frederick Coo per e Randall Packard (orgs.), International Development and the Social Sciences: Essays on the History and Politics of Knowledge (Berkeley: U niversity of California Press, 1997), pp. 150-175; Lyn Schumaker, Afiicanizing Anthmpology: Fieldwor-k, Networks, and the Making ofCultural Knowledge in Central Afiica (Durham, N.C.: Duke University Press, 2001).

    (5) Sobre as cincias sociais e a histria em contexto colonial portu-gus, veja-se Ricardo Roque, Antropologia e Imprio: Fonseca Cardoso e a Expe-dio ndia em 1895, prefcio de Diogo Ramada Curto (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2001); Diogo Ramada Curto, O atraso historiogrfico portugus, in Charles Boxer, Opera Minora, vol. III - Historiografia / Histo-riograPhy (Lisboa: Fundao Oriente, 2002), pp. VII-LXXXVII; Rui Mateus Pereira, Conhecer para Dominar_ O Desenvolvimento do Conhecimento Antropo-lgico na Poltica Colonial Porluguesa em Moambique, 1926-1959, dissertao de Doutoramento em Antropologia, especialidade de Antropologia Cul-tural e Social (Lisboa: FCSH-UNL, 2005); Miguel Jernimo, Almas Negras e Co7pos Brancos (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2010); Frederico goas, Estado, universidade e cincias sociais: A introduo da sociologia da Escola Superior Colonial (1952-1972)>>, in MiguelJernimo (org.), O Imprio Colonial etn Questo (Lisboa: Edies 70, 2012), pp. 317-348; Clu-dia Castelo, Cincia, Estado e Desenvolvimento no Colonialismo Portu-gus Tardio, in Miguel Jernimo (org.), O Imprio Colonial em Questo (Lisboa: Edies 70, 2012), pp. 349-388.

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  • XVI CIDADE E IMPRIO

    natureza realizado sobre uma cidade to importante como Lou-reno Marques esteve a cargo de uma antroploga sul-africana em 1956(6).

    As grandes cidades africanas distinguiam-se de uma tradio de inscrio urbana do colonialismo portugusC). Em frica, esta foi marcada pela proeminncia de um edificado militar, quase sempre costeiro, base de proteo para pequenos povo-ados, que sobreviviam de um comrcio que pouco penetrava no interior dos territrios, mas que se constituam como ncleos de trocas globais que incluam o trfico de escravos, dinmica profundamente transformadora da demografia tanto dos terri-trios fornecedores, como daqueles que recebiam estes traba-lhadores, dentro e fora do Imprio portugus(H). Ao lado dos fortes militares e de outros edifcios de proteo impuseram-se tambm nestes frgeis cenrios urbanos as construes religio-sas, nomeadamente as igrejas - no fosse o catolicismo o veculo infraestrutural indispensvel ao avano imperial portugus. Muitas cidades coloniais cresceram volta destes ncleos de organizao social. Desde as cidades indianas, at s brasileiras, pelo Imprio portugus a matriz de um colonialismo nacional, efetivo, mas progressivamente ultrapassado pela fora de metr-poles mais desenvolvidas, foi-se impondo sobre o territrio. A indpendncia do Brasil, em 1822, tornou o continente afri-cano objeto de uma colonizao mais efetiva, que apenas se veio

    (6) Hilary Flegg, Age St1Uct1Ure in Urban Africans in Loureno Marques, tese de doutoramento apresentada Universidade de Witwatersrand Uoa-nesburgo: Witwatersrand University, 1961).

    (1) Jos Mattoso (org.) Patrimnio de Origem Portuguesa no Mundo, vol. I (Lisboa: Fundao Gulbenkian, 2012)

    (8) Michel Cahen (org.) Bourgs et Villes .. . ; Jos Manuel Fernandes, A Cultura das Formas: Urbanismo, Arquitectura, Artes, in Francisco Bethencourt e Kirtu Chaudhuri (orgs.), Histria da Expanso Portuguesa, vol. 4 (Lisboa: Temas e Debates, 2000) pp. 444-485; idem, Arquitectura e Urbanismos no Espao Ultramarino Portugus, in idem, vol. 5 (Lisboa: Temas e Debates, 2000), pp. 334-383; Isabel Castro Henriques, Tmitrio e Identidade: A Constmo da Angola Colonial (1872-1926) (Lisboa: Cadernos Clio,2004).

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  • A CIDADE E O COLONIAL XVII

    a sentir mais prximo do final do sculo XIX, no contexto da viragem europeia para frica. Se, numa primeira fase, persis-tiu uma ocupao urbana mais tpica, mais tarde, nomeada-mente na transio para o sculo XX, comearam a erguer-se espaos urbanos, com populaes maiores e infraestruturas diversas (9) .

    As pesquisas coloniais urbanas situavam-se nestas grandes cidades africanas_ Eram centros com um largo nmero de colo-nos, com mltiplas atividades econmicas e milhares de traba-lhadores, lugares de possvel subverso que necessitavam de ser controlados. Num perodo de modernizao colonial mas tambm de tenso poltica e militar era necessrio conhecer melhor estas cidades, para dominar de modo mais lato as lgi-cas do ordenamento do territrio e da integrao social, fosse por meios modernos de gesto, ou pela violncia sobre as popu-laes, como nos revela o texto de Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da CruZ(IO).

    Quando, na sequncia do 25 de Abril de 1974, golpe militar revolucionrio diretamente relacionado com a evoluo das guerras em frica, se iniciou um processo de descolonizao, a herana da experincia colonial urbana em cidades como Lou-reno Marques e Luanda parecia provar, no quadro do colonia-lismo efetivo de Novecentos, a ausncia de uma excecionalidade

    (9) Jos Manuel Fernandes, Arquitectura e Urbanismo na frica Subsaariana: uma leitura, inJos Mattoso (org.) Pat1-imnio de Origem Por-tuguesa no Mundo, frica, Mar VenneUIO, Golfo Prsico, Filipe Themudo Barata (coord.) (Lisboa: Fundao Gulbenkian, 2012), pp. 214-216.

    (10) Estas eram as preocupaes que motivaram a renovao de uma cincia colonial tambm focada nos centros urbanos. Note-se a este prop-sito as seguintes obras paradigmticas: Antnio Rita-Ferreira, Os Afi-icanos de Loumno Marques (Loureno Marques: Separata das Memrias do Instituto de Investigao Cientfica de Moambique, 1967-1968); Amadeu Castilho Soares, Poltica de Bem-estar Rural em Angola (Lisboa: Junta de Investiga-es do Ultramar, Estudos de Cincias Polticas e Sociais, n." 49, 1961), pp. 173-174,Jos de Sousa Bettencourt, Subsdio para o Estudo Sociol-gico da Populao de Luanda, Boletim do Instituto de Investigao Cientfica deAngola,2 (1),1965, pp. 83-130.

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  • XVIII CIDADE E IMPRIO

    colonial lusa, apesar das mudanas sentidas na dcada de ses-senta. A desigualdade social racializada inscrita na organizao do espao e a discriminao que a tornava operativa no quoti-diano, institucionalizada mas tambm efetiva no quadro das interaes, eram aspetos que descreviam bem esse legado. Estes processos decorreram da organizao de um sistema social que lidou mal com a urbanizao dos africanos. Estes foram at muito tarde considerados, na sua esmagadora maioria, em Angola, Moambique e na Guin, como indgenas; concebi-dos como povos culturalmente atrasados, imersos nos seus cos-tumes, no elegveis para uma cidadania europeia,j de si limi-tada desde 1926 (e de modo mais efetivo desde 1933 com a institucionalizao do Estado Novo) pela emergncia em Por-tugal de um regime de tipo fascista. O regime do indigenato, que durou at 1961, enquadrou de modo significativo esta din-mica, que enunciava uma conceo estatal,jurdica, legislativa e poltica da sociedade colonial, e que enquadrava um colonia-lismo econmico fundado na explorao de mo-de-obra afri-cana barata, dentro e fora dos territrios administrados pelos portugueses, e na extrao fiscal C 1). Esta lgica de discrimina-o, apesar do enquadramento distinto, no era estranha rea-lidade urbana de outros territrios africanos sob domnio por-tugus, onde a estratificao social apresentava tambm linhas de fratura radicais( 2). Noutro sentido, o fim do indigenato no

    (II) Valentim Alexandre, Origens do Colonialismo Portugus Moderno (Lisboa: S da Costa: 1979); Gervase Clarence-Smith, Tlle Third Porlu-guese EmPire (1825-1975): A Study in Economic Imperialism (Manchester: Manchester University Press, 1985); Francisco Bethencourt e Kirtu Chau-dhuri (orgs.) I-listlia da Expanso Portuguesa, vols. IV-V (Lisboa: Temas e Debates, 2000); Omar Ribeiro Thomaz, Ecos do Atlntico Sul: Representa-es sobre o Terceiro ImPrio Portugus (Rio de Janeiro: UFRJ, Fapesp, 2002); Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferena. Relaes P01tugal-frica, Sculo xv-xx (Casal de Cambra: Caleidoscpio, 2004); Miguel Jernimo (org.), O Imprio Colonial em Questo (Lisboa: Edies 70, 2012).

    ('2) Joo Estevo, Peuplemen et Phnomenes d'Urbanisation au Cap-Vert pendant la Priode Colonial, 1462-1940 .. , in Michel Cahen (org.) Bourgs et Villes . . . pp. 42-59; Joel Frederico da Silveira, La Spatialisation

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  • A CIDADE E O COLONIAL XIX

    fez ce. sar um a discrimina o inscri ta na orel m sodal que no d p nclia tanto elemoldurasjurdica'l mas d - hbiLos 'cdimen-tado nos corpos e onde o ['entipo Dun -a deixou d. ' a sinalar um statuto urban( cr-s -ia \lm a cidadania interiorizada.

    A racializa :o da cslruLU ra social dependia de contrastes n 5S " sentido, r lacionava-se com os espa :os onde se ri fi cava 111l1 esle process em distintos contextos ('o loni"is ver, II CSl V(JIUIll , lextos de Isabel C, lro Henriques e Nuno Donlingo . Ver tambm Adelino Torres, Le Processus d'Urbanisation de I 'Angola p(!lldant 1;1 Priocl , C lonia le, 1940-1970, in Michel Cahen (org.) BOlll'g ('/ Vil! ... pp. 98-117;Jeallne Marie Penvenne, African Workers and CcltJllialRllti m. M r;n.w/I/Jicol/ Slmlegiesa'lld Sll'IIggl in LOII/'l'n('n MO'njlU!s, 1877--1962 (Londrcs: JLll11eS (:lIrr(')'. 1995); ValelcUlir Zamparoni, Entre J (//7 'OS e Mulullgos: Colouiali 1/10 f Pai fig ' III Social 1111/ l mtru/lo Marques, r.. /8 90 (.1 (40. Di sCl'lailo ele dOllloralll I1l ( o Paulo: Faculdade de Letras e Cincias I-:IlIInallasda Univ rsidad dp So Palllo, 1998); Maria da Cune io Nelo, /n 1"01111'1. (/./1([ 0,11 ai Town: ii l1G-lI f islOty of Hu.alllbo (Angola), /902-196 /, Diss~r1ao de D til ralll .nt (Lo'ndon: Scho I or Odental alld Afri 'an Slll(ji(':! nivel's il ' orL()ndon , 2012); Maria Manuela da Fonte, Urbanismo I' Arqll,iICl'lltra em Anf!o/~1 (Lisboa: .aldeidoscpio, 2013) .

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  • xx CIDADE E IMPRIO

    tos e trocas, esta diviso foi sempre matricial. O mundo dos colonos, com as suas prticas de sociabilidade e de lazer, encon-trava-se tambm estratificado, tal como o universo africano, onde preponderavam lderes associativos e notveis locais, mui-tos deles mestios e assimilados. Estas camadas sociais tomaram posies de maior destaque em ncleos urbanos mais pequenos, com uma populao colona menor e onde a mistura racial se desenvolveu com maior efetividade, nomeadamente antes do sistema colonial se impor de modo mais persuasivo. Estas cama-das africanas, cuja ambiguidade social foi traduzida numa per-manente ambiguidade existencial, eram um fiel da balana pol-tico: ou promoviam o integracionismo imperial ou, em circunstncias especficas, constituam-se como uma ameaa estabilidade do sistema. A sua integrao urbana foi, neste sen-tido, habitada por uma tenso permanente, to tpica das peque-nas burguesias. Mas, para alm da sua vida poltica, estes indi-vduos foram mediadores urbanos por excelncia, transmissores de hbitos, prticas e costumes desde os centros para as perife-rias, mas igualmente no sentido inverso. Nestas cidades coloniais viviam ainda muitos outros grupos, identificveis pela sua ori-gem geogrfica, religiosa, tnica(l:i). Todos estes indivduos e grupos se relacionaram na cidade com uma organizao social especfica que os colocou em contacto, conflitual mas tambm necessariamente cooperativo, com outros grupos. Este contacto transformou estes habitantes da cidade, abalou convices e prticas, apesar das urbes coloniais terem sido tambm um lugar da reproduo identitria, realizada, agora, sob bases distintas e quase sempre ao servio de uma estratgia de sobrevivncia prtica: conseguir uma casa, um emprego, uma rede de prote-o, um conforto existencial.

    Enquanto centros de atividades que excedem em muito a geografia da cidade, as urbes coloniais foram eixos de relaes com outros centros urbanos. A este propsito, a falta de exce-

    (I") Valdemir Zamparoni, Monhs, Baneanes, Ciumas e Afro-mao-metanos. Colonialismo e Racismo em Loureno Marques, Moambique, 1890-1940, Lusotopie, VlI (2000), pp. 191-222.

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  • A CIDADE E O COLONIAL XXI

    cionalidade do colonialismo portugus revelava-se tambm pela relao de dependncia destes espaos coloniais sobe-ranos com elementos exteriores, que participavam igualmente dos inmeros projetos proporcionados pelo colonialismo_ Note-se, por exemplo, que uma cidade to importante como a Beira, em Moambique, cresceu durante o sculo xx e at 1942 sob a gesto de uma companhia majesttica. A influncia pol-tica de outras potncias coloniais, bem como de organiza-es internacionais, sobre o rumo do colonialismo portugus, a presena de inmeros estrangeiros no quadro de deciso ins-titucional econmica e poltica e a influncia dos quadros eco-nmicos e polticos regionais revelam que o colonialismo era um projeto global. As redes urbanas africanas, as que liga-vam, por exemplo, Moambique e Angola frica do Sul, Rodsia ou ao Congo, criaram autonomias prprias que repro-duziam o ritmo do colonialismo internacional, no fluxo de mercadorias, trabalhadores e capital. A fora de cidades como Loureno Marques ou Luanda s pode ser interpretada em contextos de troca imperial mais vasta. Noutro sentido, porm, estas mesmas relaes produziram contatos e trocas relativa-mente autnomos da razo imperial: hbitos, consumos, credos, concees do mundo, aspiraes foram criados no mbito des-tas redes urbanas regionais. Resultado de uma modernidade urbana, esta cultura da cidade projetou-se para l dos limites da vida do Imprio. As cidades coloniais portuguesas foram assim eixos de passagem de prticas e consumos tendencial-mente globais, ou em circulao regional, que os Estados colo-niais facilitavam ou procuravam controlar com maior ou menor sucesso.

    No ltimo perodo do colonialismo portugus em frica, a ao do Estado Novo garantiu algumas especificidades ao colonizadora. Para alm de ter estendido a durao do tempo colonial, preservando a durabilidade de estruturas de oportu-nidades e de negcios, o efeito do enquadramento poltico sobre a organizao social atrofiou o desenvolvimento de um espao pblico urbano, bem como bloqueou e atrasou fenme-nos de associao e participao que, na segunda metade do

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  • XXII CIDADE E IMPRIO

    sculo xx, conduziram em muitos casos descolonizao(16). O regime de vigilncia urbana, acentuado pelo incio da guerra colonial, apesar de travada fora das grandes cidades, afetou-as consideravelmente. Por exemplo, a presena macia da polcia poltica no contexto urbano foi um dos mais evidentes focos de coero poltica e de perseguio de qualquer foco de dissidn-cia(17). A cultura do medo e da arbitrariedade, to sentida nas relaes de trabalho, caraterizou tambm o processo de urba-nizao, apesar das mudanas existentes aps o fim do indi-genato(1S).

    Neste ltimo perodo de domnio portugus continua a jogar-se, em grande medida, a avaliao da herana colonial portuguesa. As mudanas efetivas ficaram sempre aqum, no entanto, da representao criada pela propaganda colonial. Esta representao da mudana e da reforma, que acaba por se pro-jetar sobre o passado, tornou-se numa narrativa poderosa que, por diversos motivos, se continua a reproduzir.

    Na Metrpole

    O colonialismo no implicou apenas a construo de uma estrutura social e espacial urbana nos territrios coloniais. Exis-tiu tambm um movimento reverso (19) . A experincia imperial trouxe uma configurao imagtica diferenciada para as cidades

    (16) Christine Messiant, Luanda, 1945-1961: coloniss, socit colo-niale et engagement nationaliste, in Michel Cahen (org.) Bourgs et villes ... pp.125-199; Frederick Cooper, Decolonization and Aftican society: The labor questm inFrench and British AJrica (Cambridge: Cam bridge U niversity Press, 1996); idem, Africa since 1940: The past of the present (Cambridge: Cambridge University Press, 2002).

    (17) Dalila Cabrita Mateus, A PIDE/DGS na Guerra Colonial, 1961-1974 (Lisboa: Terramar, 2004).

    (IR) Cludia Castelo, Omar Ribeiro Thomaz, Sebastio Nascimento, Teresa Cruz e Silva (orgs.) , Os outros da colonizao (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2012).

    (19) Anthony King, Urbanism, Colonialism ...

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  • A CIDADE E O COLONIAL XXIII

    imperiais, tanto com a importao de maneirismos exticos para a arquitetura das cidades imperiais, como com a edificao de uma monumentalidade enaltecendo a dignidade da capital imperial. Mas, mais importante do que isso, a prpria existncia da capital imperial resulta dos novos arranjos espaciais e mate-riais produzidos pelo Imprio. O uso de territrios perifricos para a produo primria e para a extrao de recursos neces-sitou do crescimento de centros urbanos industriais e comer-ciais, nos quais se assistiu emergncia de novas classes indus-triais urbanas(2). A importncia das conexes ao longo dos imprios, como nota neste volume Filipa Lowndes Vicente, remete para o imperativo de se fazer uma histria articulada da metrpole e das colnias, das relaes de poder que existem entre vrios plos e dos circuitos de produo, distribuio e consumo que os atravessam, para realar que tanto os dominan-tes como os subjugados so agentes de uma mesma trajetria histrica(21). Noutro sentido, a diviso entre metrpole e Imp-rio tambm posta em causa por uma posio terica explici-tamente anticolonial, levando ao reconhecimento das vrias formas pelas quais a Europa foi criada pelo colonialismo(22). Mais: coloca em evidncia tanto os sistemas racializados de governo imperial, quanto o seu objetivo de construo de sujei-tos racializados, como revela neste livro o captulo de Manuela

    eO) John Rex, Race, Colonialism and tlte City (London: Routledge, 1973).

    (21) Eric Wolf, Europeand tltePeopkwitltoutHistory (Berkeley: University of California Press, 1982); Sidney Mintz, Sweetness and Power: Tlte Place of Sugar in Modem History (New York: Viking, 1985); Bernard S. Cohn, Cow-nialism and its forms of Knowkdge: the British in lndia (Princeton: Princeton University Press, 1996).

    ( 2 ) Franz Fanon, Les Damms de la Terre, prefcio de Jean-Paul Sartre (Paris: ditions Maspero, 1961), edio inglesa, The Wretched oftlteEarth, trad. Constance Farrington (Londres, Nova Iorque: Grove Weidenfeld, 1963); Edward W. Said, Reconsiderando a Teoria Itinerante, in Manuela Ribeiro Sanches (org.), Deslocalizar a 'Europa'. Antropologia, Arte, Literatura e Histria na Ps-Colonialidade (Lisboa: Livros Cotovia, 2005), pp. 25-42; Ver tambm Manuela Ribeiro Sanches, Lisboa, capital do imprio. Trnsitos, Afiliaes, Transnacionalimos neste livro.

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  • XXIV CIDADE E IMPRIO

    Ribeiro Sanchese~). A relao entre Imprio e metrpole releva tambm a importncia das representaes sobre o Imprio na formao de identidades nacionais dos centros de poder impe-rial europeus. Tais representaes foram veiculadas atravs de todo um aparato cultural de disseminao de imaginaes impe-riais na esfera metropolitana, o qual inclui museus, polticas de preservao do patrimnio, recurso a celebraes pblicas e uso de formas de expresso como a msica ou a literatura, para efeitos de propagandae4).

    Tambm em Portugal a questo imperial um campo pri-vilegiado de afirmao da identidade nacional, sobretudo desde finais de Oitocentos e com maior intensidade durante o Estado Novoe"). A realidade do Imprio no terreno era ento desco-

    e:') Lama Tabili, 'We asliforBrilishjustice': W01Jms a-nd Racial DiJJerellce in Lale hnperial Btain (Ithaca: Comell University Press, 1994); Mrinalini Sinha, ColonialmasC/llinil)': Tlte 'ManlyEllglisltlllan' and lhe 'Elfelllinale Bengali' in Ilte La!e Nille!eentlz CenllU) (Manchester: Manchester Universit)' Press, 1995); Antoinette Burton, At lhe Hemt Df Ilte Empire: IndiallS alld Ilte Colonial Encoun!er;l1 Lale-ViclO1'ian Britain (Berkeley: University of California Press, 1998); Catherine Hall et aI, Dejinillg lhe Viclorian Nation: Class, Race, Gender and the British Refol'mAct of 1867 (Cambridge: Cambridge Universit)' Press, 2000); Philippa Levine, Prostitution, Race, and Pofilics: Policillg Venereal Dise-ase in Ilte British EmjJire (London: Routledge, 2003); Kathleen Wilson, Tlte Island Rafe: Ellglisll'lless, E1IljJire and Genderin lhe Eigltteenfh Centw)' (London: Routledge, 2003).

    e~) John MacKenzie, Propaganda and E'IIIjJire: Tlte ManiPulation of Bri-tish Public OjJinio11 (1880-1960) (Manchester: Manchester University Press, 1984) ;John MacKenzie (org.) 11IljJerialsm a1ld Pojmlar Culture (Manchester: Manchester U niversit)' Press, 1986); Felix Driver and David Gilbert (orgs.) bnjJelial Cilies: Landscape, DisjJI.ay and Menti!)' (Manchester: Manchester U ni-versity Press, 1999); Stuart Ward (org.), British CultU1'e alld the end ofEmPire (Manchester: Manchester Universit)' Press, 2001); Bill Schwarz (org.), Wesl Indian Inlelfect!wls in B,-itain (Manchester: Manchester Universit)' Press, 2003).

    e ") Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.), A Memria da. Nao (Lisboa: Livraria S da Costa Editora, 1991) ;Jos Mattoso, A Iden-tidade Nacional (Lisboa: Gradiva Publicaes, 1998); Francisco Bethencourt, "A Memria da Expanso, in Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (orgs.), Histria da ExjJallsrio POItuguesa., vol. 5 (Lisboa: Crculo dos Leito-

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  • A CIDADE E O COLONIAL xxv

    nhecida para a maior parte das pessoas, numa altura em que as correntes de emigrao ainda no se dirigiam para frica e a presena de populaes coloniais na metrpole era escassa -apesar de ser possvel identificar um passado africano da capital portuguesa, o qual marcou a vida de alguns dos seus bairros(26). No entanto, notrio que o Imprio colonial foi santificado como elemento central da identidade da nao, sobretudo a partir da generalizao da ideia de decadncia e de progresso que caracterizou a historiografia portuguesa do sculo XIX, bem como da disseminao de toda uma mitologia nacional-impe-rialista por parte das elites republicanas(27). Demasiado distante da realidade concreta da vida quotidiana da metrpole, foi no plano dos smbolos e da imagtica discursiva que o Imprio se deu a conhecer - desvelando-se atravs de uma autntica peda-gogia nacional cuja definio era, no entanto, motivada por presses de poltica externa e por disputas por hegemonias imperiaiseR). Durante o Estado Novo, a ateno crescente ideia da misso histrica da nao portuguesa, misso mar-cada pelo ideal cristo e pela vocao colonial, o Imprio adquire uma dimenso ontolgica na arquitetura simblica da nao, resultante no desenvolvimento de uma Mstica Impe-rial que acompanhou, no plano dos smbolos, o desenvolvi-mento de uma poltica colonial nacionalista, integracionista e

    res, 1999), pp. 442-480; Lus Cunha, A Nao nas Mal/ias da sua Identidade: O Estado Novo e a Construo da Identidade Nacional (Porto: Afrontamento, 2001) ;Jos Manuel Sobral, "O Norte, o Sul, a Raa, a Nao - Representa-es da Identidade Nacional Portuguesa (Sculos XIX-XX) ", Anlise Socia~ vol. XXXIX (171) (2004), pp. 255-284; Jos Neves e Bruno Peixe Dias (orgs.) Como se Faz um POllO (Lisboa: Tinta-da-China, 2010).

    (21;) Isabel Castro Henriques, A Herana Afiicana em Partugal (Lisboa: CTT Correios de Portugal, 2009).

    (27) Yves Lonard, "O Imprio Colonial Salazarista", in Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (orgs.), Histria da Expanso Portuguesa, vol. 5 (Lisboa: Crculo dos Leitores, 1999), pp. 10-30, p. 28; Maria Isabel Joo, Comemoraes e Mitos da Expanso'" in Francisco Bethencourt e Kirt Chaudhuri (orgs.), Hist,ia da Expanso P01tuguesa, vol. 4 (Lisboa: Crculo dos Leitores, 1999), pp. 403-424.

    (28) Yves Lonard, O Imprio Colonial Salazarista" ... p. 21.

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  • XXVI CIDADE E IMPRIO

    centralizadorae9). Toda esta imaginao estava expressa no designado Acto Colonial, em que as colnias portuguesas passam a ser designadas Imprio colonial portugus CO).

    No quadro oficial, uma abordagem, assente no culto dos heris e na ideia de uma progresso histrica linear desde a fundao da nacionalidade at ao Imprio martimo, celebrado como um dos grandes feitos da humanidade, permeia os pro-gramas de ensino, a propaganda de Estado, as exposies e os congressos cientficos e toda a demais produo cultural oficiaICI). Tal como noutros centros de poder imperiais, releva--se o papel desempenhado pelas prticas espaciais de nomeao e mapeamento na construo do imaginrio espacial do Imp-rio na metrpoleC2). Centenas de mapas foram elaborados e divulgados, disseminando na metrpole, sobretudo atravs do aparelho escolar, a imagem da extenso geogrfica do Imprio, bem como das suas localizaes, dos seus povos e das suas

    paisagensC~). As geografias imaginativas do Imprio so tam-bm ficcionadas no corao da metrpole imperial atravs de exposies pblicas, como foi o caso mais expressivo da Expo-sio do Mundo Portugus, realizada em Lisboa em 1940C4 ). OS marcadores de uma verso da identidade nacional altamente seletiva, de feio imperial e efabulatria, enaltecendo as qui-meras empreendidas pelos navegadores de Quinhentos e o

    (~~I) Ibidem, pp. 24-30. (:

  • A CIDADE E O COLONIAL XXVII

    Imprio do Oriente, imprimem-se na paisagem urbana de Lis-boa, como demonstra o captulo de Elsa Peralta. Ruas so nome-adas a partir de navegadores e protagonistas da expanso mar-tima ou de locais abrangidos pelo primeiro Imprio portugus, forjando uma representao da nao assente na ideia de Por-tugal como pas dos descobrimentos. As marcas do Imprio na geografia da cidade so tambm identificveis nos inmeros palcios, palacetes,jardins e manses construdos por uma elite econmica portuguesa formada a partir de atividades coloniais, que vo desde o trfico de escravos cultura forada do algodo moambicano, muito associada ao florescimento da indstria txtil na metrpolee"). Atravs da construo do espao ou de uma arquitetura monumental de feio modernista, ou atravs das marcas na geografia da cidade deixadas pelos privados enriquecidos custa dos negcios coloniais, o Imprio adquiriu uma feio material no quotidiano urbano, permeando o ima-ginrio cole tivo nacional e sustentando as acees do senso comum sobre o passado imperial portugus, at aos dias de hoje.

    No seio da comunidade imaginada nacional, o outro afri-cano, indgena no quadro do sistema de administrao colo-nial , concebido como o objeto do desgnio civilizador e cristo da expanso portuguesa. Da influncia mora! exercida pelos portugueses dependeria o seu aperfeioamento e da sua edu-cao resultaria o cumprimento progressivo dos seus deveres morais e legais de trabalho(36). Em exposies e congressos coloniais oficiais, mas tambm na cultura popular, na literatura,

    (~r,) J 0S' A.lIgust< Fra n 'a, .. frica cm Lisboa. No ta Introdu tria" . ln .los; 'Mau LI ' I Fernall lcs (urg.). Al'q/til rclnm e Urbanismo dt~ Malriz Porl,ug lle (l (Lisboa: a lc idoscpiol niversidaclf! AUlnoma, 2011 ). pp. 11-14; Ann Pil 'h r: Pofitirs itl IlwPol't/l.gut! I! EmJIi.m: T/UI S/a,1 l1ui'lloSII')' llnel Cal/o,." 1926--1974 (Oxfo rd: Oxfo rd nver il)' Pres5 . 1993; Ca rlos F rtllna O Pio d,tt Meada: O Algodo di: Moa lllbiquJ:, Portugal e a Ero nomia- Tlm lldo, / 860-1960 ({'o ri o: AfrOllla mento I Y93); Allen Isaaclll3n. CottOT/ is III I! N1.olllllrofPoTlfJl1 : P I'(tSmll , Work, (wel RumJ . '!l'Ugg4, hl ()((mJalMflZf/. /IIbi q/le, 1 938-1 961 (J' 1'lS-mouth , N. H. : Heinemann, 1997).

    (36) Acto Colonial, ttulo II: Indgenas.

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  • XXVIII I CIDADE E IMPRIO

    na pintura, no cinema e de forma muito expressiva nas figura-es que acompanhavam a comercializao de vrios produtos coloniais, como o caf ou o cacau, encontra-se uma represen-tao do africano fortemente racializada, embrutecida e infan-til, a requerer a ateno civilizadora do colonizadorC7). Num momento em que a migrao portuguesa para Angola e Moam-bique era ainda escassa, tal como era reduzido o contacto de metropolitanos com africanos, estas representaes revelam-se um poderoso meio de formatao do senso comum, tanto em relao a esse outro africano, quanto aos territrios por ele habitadoseS).

    Aps a II Guerra Mundial, num contexto marcado por pres-ses polticas independentistas tuteladas pela recm-criada Organizao das Naes Unidas, e tambm pelo desenvolvi-mento das economias das colnias resultante do reforo dos se tores privados coloniais, a ideia do desgnio civilizador do colonialismo portugus ganha outros contornose9 ). Na metr-pole, com ressonncias nos territrios coloniais, agora efetiva-mente povoados com contingentes crescentes de populaes metropolitanas, um novo discurso sobre a identidade nacio-nal, e sobre o outro colonizado, dissemina-se pela esfera pblica(40). Tendo como pano de fundo as mudanas ideolgi-

    C7) Jos Ramos Tinhoro, Os Negros em POltugal (Lisboa: Caminho, 1997); Lus Cunha, A Imagem do Negro na Banda Desenhada do Estado Novo". Relatrio de aula terico-prtica (Braga: Universidade do Minho, 1994); Rosa Cabecinhas e Lus Cunha, "Colonialismo, Identidade Nacional e Representaes do 'Negro'", Estudos do Sculo xx, 3 (2003), pp. 157-184; Patrcia Ferraz de Matos, Imagens de frica? Filmes e Documentrios Portugueses relativos s antigas Colnias Africanas (primeira metade do sculo xx) ", Actas do VCongresso dJiEstudos Africanos no Mundo Ibrico (Covi-lh: CES, 2006); Isabel Castro Henriques, A Herana. Africana ...

    C~) Cludia Castelo, Migrao Ultramarina: Contradies e Cons-trangimentos", Ler Histria, 56 (2009), pp. 69-82, p. 75.

    ('9) Cludia Castelo 'Um segundo Brasil ou um terceiro Portugal', Polticas de Colonizao Branca em frica (c.1920-1974)", Tmllessia.s (2004), pp. 155-180.

    eO) Cludia Castelo, O Outro no Labirinto Imperial: Orientalismo e Luso-tropicalismo", in Renato Miguel do Carmo e Ruy Uera Blanes

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  • A CIDADE E O COLONIAL XXIX

    cas no sistema colonial europeu e a procura de mecanismos de legitimao para a poltica colonial portuguesa, o luso-tropica-lismo vem reforar, no plano internacional, a imagem de um Portugal pluricontinental, uma nao una e indivisvel, autora histrica de uma colonizao exemplar, marcada pela misci-genao, pela fuso cultural e pela ausncia do preconceito racista(41). A aproximao s ideias de Freyre vem desta forma facilitar uma reviso das noes prevalecentes sobre contato racial marcadas por ideias de hierarquia e um afastamento em relao s concees explicitamente rcicas que caracterizaram os fascismos europeus (42) . De acordo com a nova grelha inter-pretativa, o outro africano, negro, era uma criao do gnio colonizador dos portugueses.

    Tambm os importantes fluxos migratrios gerados pelo colonialismo portugus, primeiro em larga escala para o Brasil e depois, no ps-II Guerra Mundial, para as colnias africanas, geraram redes de circulao, econmica e demogrfica, entre metrpole e colnias. Com importantes impactos na economia do pas, estas redes de circulao favorecem tambm apropria-es metropolitanas de prticas de consumo e de concees do mundo emanadas a partir do contexto colonial, vulgarizadas, por exemplo, atravs da alimentao e do consumo de produtos coloniais(43). Reproduzido atravs de formas de cultura pblica

    (orgs.), A Globalizao no Div (Lisboa: Tinta da China, 2008), pp. 295--315.

    (41) Cludia Castelo, O Modo POl,tugus de Estar no Mundo': O Luso--tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961) (Porto: Edies Mrontamento, 1999); Diogo Ramada Curto, A Historiografia do Imprio Portugus na Dcada de 1960: Formas de Institucionalizao e Projees, Histria da Historiografia (Universidade Federal de Ouro Preto), n." 10 (2012), pp. Ill-123.

    (42) Valentim Alexandre, O Imprio e a Ideia de Raa (sculos XIX exx)>>, inJorgeVala (org.), Novos Racismos: Per>pectivasCompamtivas (Oeiras: Celta, 1999), pp. 133-144;Jos Manuel Sobral, O Norte, o Sul, a Raa, a Nao ... ; Patrcia Ferraz de Matos, As Cres do Imprio: Representaes Raciais no Imprio Colonial Portugus (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2006).

    (4g) Cludia Castelo, Migrao Ultramarina ... p. 70; Akhil Gupta, Movimentaes Globais das Colheitas desde a 'era das descobertas' e

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  • xxx CIDADE E IMPRIO

    ou atravs de prticas do quotidiano(44) - concretizadas em experincias de cidadania, em sexualidades consagradas, em hbitos culinrios, ou em narrativas histricas -, o Imprio cons-tituiu-se num aspeto central das identidades metropolitanas e da conscincia de raa, ainda que interligado com outras filia-es identitrias, nomeadamente as regionais, as rurais, as urba-nas ou as de classe (45). Como mostra o captulo de Marcos Car-do, o Imprio converteu-se em dimenso de um

  • A CIDADE E O COLONIAL XXXI

    niais criadas na metrpole(47). A incorporao destas idiossin-crasias revela que este um campo repleto de ambiguidades, correndo a par com verses polticas autorizadas e relativamente estveis sobre o ns e sobre o outro (48).

    Atravs de discursos ideolgicos, mas tambm de circula-es, de prticas quotidianas, consumos coloniais e de estrutu-ras econmicas, Imprio e metrpole so atravessados por cone-xes de vria ordem frequentemente identificveis para alm do domnio formal do colonialismo.

    o Ps

  • XXXII CIDADE E IMPRIO

    sentes nos contextos ps-coloniais de vrias formas, as quais podem ser encontradas quer na cultura pblica, quer em luga-res inesperados do quotidiano e na esfera do mundano, mos-trando que os entendimentos comuns em relao ao Imprio, no perodo ps-descolonizaes, se articulam com uma grande variedade de canais e instituies(50).

    Os passados imperiais podem ser interpretados no contexto de uma cultura nostlgica em relao ao Imprio, expressa tanto em investimentos patrimoniais feitos sobre os seus vestgios materiais, quanto na recuperao e na reproduo de imagens coloniais na cultura popular (na alimentao, nos livros escola-res, na publicidade) (51). Subsistem tambm na persistncia de uma mentalidade colonial em tempos ps-coloniais, que tem na base vises parcelares mundanas e que serve, tambm, de instrumento s polticas criadas a partir de anteriores sistemas de governao, como o caso da Commonwealth(52). Mas a per-sistncia dos passados imperiais no presente pode ser entrevista de outras formas. As relaes de poder e de diferena estabele-cidas pelos imperialismos europeus modernos so muitas vezes reativadas nas cidades europeias contemporneas, condicio-

    nial Perspective, (Oxford and New York: Berghahn Books, 2007); Benoit de L'Etoile, The Past as it Lives: an Anthropology of Colonial Legacies, Social AnthropoloffY) vol. 16, n." 3 (2008), pp. 267-279.

    ("0) Stuart Ward, British culture ... ; Bill Schwarz, Claudialones and the West lndian Gautle: Reflections on the Emergence ofPost-colonial Britain, Twentieth-Century British Hist01y, n. 14 (2003), pp. 264-285.

    ("I) RobertAldrich, Vestiges ofthe ColonialEmpire in France (Houndmills: Palgrave, 2004); Rachel Langford, Photography, Belgian Colonialism and Herg's Tintin au Congo, TheJoumal ofRomance Studies, vol. 8, n." 1 (2008), pp. 77-89; Wolfgang Struck, Reenacting Colonialism: Germany and its Former Colonies in Recent TV Productions", in Volker Langbehnm (org.), German Colonialism, Visual Culture, and Modem, Memory (Londres e Nova Iorque: Routledge, 2010), pp. 260-276; Pascal B1anchard e Sandrine Lemaire et aI., Culture Post-colonia! 1961-2006: Tmces et Mmoires Coloniales en Fmnce (Paris: d tons Autremen t 2011).

    (52) Prem Poddar, Rajeev S. Patke e Larslensen (orgs.), A Histori-cal Companion to Postcolonial Literatures - Continental Europe and its Empires (Edimburgo: Edinburgh University Press, 2011).

    1 01Colonial indd 32 13/10/21 20:58 1

  • A CIDADE E O COLONIAL I XXXlII

    nando estatutos econmicos, divises de classe e polticas raciais. Nestas cidades, as migraes ps-coloniais produzem comuni-dades de dispora de acordo com sistemas de poder prevale-centes, que adquirem uma dimenso espacial e so habitados por tenses sociais e interraciais culturalizadas("3).

    Muitos dos caminhos criados no tempo colonial desembo-caram na Lisboa ps-coloniaL Por intermdio destes itinerrios chegaram os antigos colonos, chamados pejorativamente retor-nados; chegaram tambm antigos sujeitos imperiais que agora se transformaram em imigran tes (H). Depois de cinquen ta anos de ditadura e mais de uma dcada de guerras coloniais, o fim do colonialismo portugus trouxe finalmente para o seio da antiga metrpole a dimenso real desse outro Portugal efabu-lado durante dcadas pela propaganda do regime. Com uma populao rural muito significativa e com grandes taxas de anal-fabetismo, foi com o fim do colonialismo que muitos portugue-ses tiveram contato com esses outros, negros, mestios, india-nos, que habitavam os territrios retratados nos manuais escolares. A sua integrao dependeu de vrios fatores, entre os quais se destaca a origem de classe, no poucas vezes asso-ciada ao tom da cor da pele. Elites africanas, escolarizadas, inte-graram-se na vida urbana de forma diferente de uma imigrao dirigida a setores laborais, como o servio domstico ou a cons-truo civil, para onde foram os primeiros contingentes de tra-

    ("3) John Rex e Sally Tomlinson, Colonial Immigrants in a British City: A Class Analysis (Londres e Nova Iorque: Routledge, 1979); Paul Gilroy, The,-e Ain 't no Black in lhe Union Jack: Tlle CultuTaI Politics of Race and Nation (Londres: Hutchinson, 1987); Bill Schwarz, ,,'The Only White Man in there': The Re-racialisation ofEngland, 1956-1968, Race & Class, vol. 38, n." 1(1996), pp. 65-78; Pascal Blanchard e Sandrine Lemaire et a!., La Fracture Colonial e: La Socit Franaise au Prisme de I H,-itage Colonial (Paris: Editions La Dcouverte, 2005); Adbedmalek Sayad, L 1m1l1igration ou les Paradoxes de l'Alt,-it, 2 vols. (Paris: ditions Raisons d'Agir, 2006).

    ('4) Rui Pena Pires, Os Retornados: U1l1 Estudo Sociog,-fico (Lisboa: Ins-tituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1987).

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  • XXXIV I CIDADE E IMPRIO

    balhadores cabo-verdianos, ainda no incio da dcada de 70 (55). A maior afluncia dos agora imigrantes das ex-

  • A CIDADE E O COLONIAL xxxv

    so eles que alteraram a organizao social da cidade, com as suas construes e memrias, como revelado no captulo de Eduardo Ascenso sobre os bairros de autoconstruo da peri-feria de Lisboa.

    A assuno da existncia de uma cidadania lusfona, assente na criao da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa (CPLP) em 1992, poucos efeitos ter ainda hoje face aos direi-tos concedidos pelo Estado portugus ao imigrante, ou face lgica muitas vezes perversa que acompanha a sua integrao no mercado de trabalho, como fica evidente no captulo de Nuno Dias(59). Tal situao denota as tenses e ambivalncias que caracterizam a relao entre a populao portuguesa branca e a populao portuguesa oriunda das ex-colnias e seus des-cendentes. A persistncia do mito luso-tropicalista previne um olhar mais crtico sobre as situaes de marginalidade social em que vivem frequentemente os migrantes das ex-colnias, ou sobre a persistncia de formas de racismo subtis que condicio-nam as relaes sociais(60). Sob a representao do imigrante lusfono pesa um modelo assimilacionista com ecos provenien-tes do passado colonial. Este veicula a ideia de um hibridismo cultural, caracterizado por uma convivialidade pacfica com a diferena racial e cultural.

    Mas a replicao nas cidades ps-coloniais de formas de organizao social que foram tpicas do sistema colonial urbano no ocorre de modo linear. Se nas cidades coloniais em frica aqueles que mais sofriam com o sistema discriminatrio e explo-rador se apropriaram das possibilidades conferidas pelo mundo

    (59) Michel Cahen, Des Caravelles pour le Futur? Discours Politique et Idologie dans I' Institutionnalisation de la Communaut des Pays de Langue Portugaise, Lusotopie (1997), pp. 391-433; Alfredo Margarido, A Lusofonia e os Lusfonos: Novos Mitos Portugueses (Lisboa, Edies U niver-sidade Lusfona, 2001); Lus Cunha, Lusofonia e Identidade Nacional: Narrativa e Seduo, in N. B. Bastos (org.), Lngua Portuguesa: Lusofonia, Memria e Diversidade Cultural (So Paulo: EDUC, 2008), pp. 43-55.

    (60) Jorge Vala, Rodrigo Brito e Diniz Lopes, Expresses dos Racismos em Portugal (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 1999); Jorge Vala (org.), Novos Racismos: Perspectivas Comparativas (Oeiras: Celta, 1999).

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  • XXXVI I CIDADE E IMPRIO

    urbano, nas cidades ps-coloniais as formas de poder so tam-bm contestadas e apropriadas. Nem sempre assumindo a forma de etnicidades politizadas ou de movimentos reivindicativos, as diferentes disporas tm conseguido negociar posicionamentos simblicos e vantagens sociais no espao da cidade, recorrendo a representaes imperiais previamente estabelecidas(61). Tal sugere que as polticas de identidade e diferena estabelecidas sob o colonialismo e negociadas atravs de vrias formaes ps-coloniais no so apenas praticadas em cenrios sociais particulares. Como prope Doreen Massey, o espao faz parte de uma geografia de poder e de significado em constante mudana, em que o material e o ideolgico so mutuamente constitutivos (62) . Nestas geografias, as categorias de

  • A CIDADE E O COLONIAL I XXXVII

    Na cidade global, atravessada por mltiplos fluxos migratrios e afetada por constantes processos de mudana, as sucessivas idealizaes do passado imperial podem ser entendidas como tentativas de homogeneizar a nao, traduzindo as experincias desestruturantes de raa, etnicidade e classe luz de ideias como multiculturalismo ou dilogo intercultural que, por sua vez, funcionam frequentemente como marcadores da diferena no mercado global das cidades(65).

    Tambm nos espaos de comemorao da capital portu-guesa continuam a reproduzir-se os velhos mitos imperiais, sobretudo aqueles associados s primeiras viagens de descoberta e expanso e ao esplendor do Imprio martimo portugus. Em sucessivas narrativas operadas no espao da cidade, do Mosteiro dosJernimos ao Padro dos Descobrimentos ou Expo'98, os mitos fundacionais da nao recompem-se para se acomoda-rem ao posicionamento simblico do pas numa Europa moderna, multicultural e cosmopolita. No mesmo sentido, a imagem de um imperialismo sem colnias, pioneiro e ecum-nico, adequa-se a linguagens globalizantes e a operaes de branding da portugalidade, ligadas ao turismo, ao comrcio e aos desgnios da chamada diplomacia econmica, facilitando, no plano simblico, as importantes trocas comerciais entre Por-tugal e os antigos territrios coloniais ou a nova vaga de emi-grao de portugueses para Angola ocorrida nos ltimos anos.

    Esta , porm, uma imagem feita de muitos fragmentos. Ao lado de uma nostalgia ps-imperial, muito presente nos registos literrios ou na produo televisiva, que deixa transparecer uma noo de perda, de melancolia ou de ressentimento em relao ao passado imperial, perfila-se uma outra, de carter festivo, muito presente na produo artstica e musical "lusfona(66). Por um lado, os traumas deixados pela guerra colonial e pela

    (65) Paul Gilroy, PostcolonialMelanc/!olia (Nova Iorque: Columbia Uni-versity Press, 2005).

    (66) Isabel Ferreira Gould, Decanting the Past: Africa, Colonialism, and the newPortuguese Novel, Luso-BrazilianReview, vol. 45, n." 1 (2008), pp. 182-197; Isabel Ferreira Gould, A Daughter's Unsettling Auto/bio-

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  • XXXVIII I CIDADE E IMPRIO

    experincia do retorno invadem crescentemente a esfera pblica nacional, reclamando uma ateno para as fraturas deixadas pelo colonialismo portugus (67) . Por outro, as situaes de subalternidade social e de segregao racial herdadas do colo-nialismo so obliteradas atravs de processos de estetizao da diferena, produzidos tanto pelos sujeitos metropolitanos como por aqueles oriundos das ex-colnias e seus descendentes. Posi-es de trabalho desqualificadas, imobilidade social, precarie-dade habitacional, so algumas das consequncias estruturais que acompanham esta obliterao. tambm sobre este pro-cesso que se debrua o texto de Jos Mapril.

    A reconstituio de uma retrica sobre o passado imperial portugus , portanto, composta por uma histria e por uma geografia colonial especficas, por imperialismos contempor-neos e por um sem fim de possibilidades ps-coloniais. A inter-rogao das diferentes formas pelas quais o passado colonial se projeta na contemporaneidade passa pela reconstruo destes mltiplos itinerrios. fundamental questionar as permann-cias desse passado no presente e as consequncias que da resul-tam no que toca ao relacionamento com os sujeitos que passa-ram pela experincia colonial, sejam estes imigrantes de antigas colnias portuguesas, retornados, ou ex-combatentes. Esta anlise deve incluir a interpretao dos mltiplos e complexos trnsitos entre colonizador e colonizado, e tambm entre ex--colonizador e ex-colonizado (6H). Tal pressupe considerar simultaneamente as questes da classificao racial e da misci-genao, da imigrao, da lusofonia, da cidadania e da excluso(G9). Neste contexto, interessa destacar o modo como

    graphy ofColonialism and Uprooting: A Conversation with Isabela Figuei-redo, Ellipsis 8 (2010), pp. 133-145.

    (li7) Lus Quintais, As Guerras Cohmiais P01tuguesas e a Inveno da His-t/ia (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2000).

    (tiS) Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almeida e Bela Feldman-Bianco (orgs.), Trmitos Coloniais: Dilogos Oiticos Luso-Masileims (Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2002).

    (fi") Miguel Vale de Almeida, 'Longing for Oneself: Hybridism and Miscegenation in Colonial and Postcolonial Portugal, Etnogrfica, vol. 6,

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  • A CIDADE E O COLONIAL I XXXIX

    se processou a transio do pas para a democracia e o conco-mitante processo de descolonizao, o posicionamento perif-rico de Portugal na Unio Europeia, o lugar dos imigrantes (oriundos das ex-colnias e de outras provenincias) dentro do espao nacionaICO). Mas, mais importante, deve questionar a condio de indivduos e grupos, a permanncia de lgicas de organizao social, de relaes de poder assentes em poderosos mecanismos de classificao e de categorizao herdados do perodo colonial e que operam hoje, muitas vezes, por interm-dio de categorias que eufemizam esse poder e ocultam a sua gnese. Tal pressupe a indagao das formas pelas quais essas categorias so apreendidas, vividas e praticadas, por aqueles que fazem uso dessas representaes em tempos ps-coloniais.

    Os captulos

    o conjunto de captulos aqui apresentado resultou de um longo processo de discusso entre autores que partilham temas de investigao, mas tambm perspetivas comuns sobre esses temas. Provenientes de diferentes tradies disciplinares dentro das cincias sociais, os autores trataram os seus objetos a partir das suas referncias e metodologias, o que torna este volume particularmente diverso. As leituras cruzadas entre os autores, bem como os pareceres crticos dos vrios referees annimos, como sempre acontece na coleo Histria & Sociedade, muito contriburam para a construo deste livro.

    Parte destes captulos trata do perodo colonial, focando, na maioria dos casos, a presena portuguesa em frica no sculo xx. o que sucede nos captulos de Isabel Castro Henriques e Miguel Pais Vieira, sobre as cidades angolanas, de Nuno Domin-

    n." 1 (2002), pp. 181-200; Rosa Cabecinhas, Racismo e Etnicidade em Portu-gal: Uma Anlise Psicossociolgica da Homogeneizao das Minorias, Tese de doutoramento (Braga: Universidade do Minho, 2002).

    eO) Manuela Ribeiro Sanches, Portugal no um Pas Pequeno: Contm" o 'bnprio' na Ps-colonialidade (Lisboa: Cotovia, 2006).

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  • XL CIDADE E IMPRIO

    gos, sobre Loureno Marques, de Diogo Ramada Curto e Ber-nardo Pinto Cruz em relao ao poltica sobre o territrio e as populaes que se seguiu aos acontecimentos no Norte de Angola que desencadearam a guerra colonial em 1961, e de Harry G. vVest sobre o processo de ordenao do territrio e das populaes no Norte de Moambique. Neste ltimo caso, a sua anlise estende-se desde o perodo pr-colonial at atualidade.

    O texto de Isabel Castro Henriques e Miguel Pais Vieira, debruando-se sobre o facto urbano colonial em Angola, apre-senta tambm uma anlise de tempo longo, onde a caracteriza-o da emergncia de cidades coloniais nesta colnia portu-guesa antecedida pela anlise das cidades africanas. Estes ncleos urbanos eram espaos diversos, com organizaes pr-prias que introduziam ruturas na prpria morfologia das socie-dades locais, enquanto meios de inovao, troca, inveno tcnica e de ajustamento funcional a dinmicas estruturais que evoluram com o tempo. A presena colonial transformou, em escalas diferentes, a estrutura destas cidades africanas, impondo novos mtodos de organizao e de funcionalidade, adaptados aos interesses do colonizador, e que implicaram um controlo e uma segregao sobre as populaes locais. A histria das cida-des angolanas a expresso de um processo de domnio colo-nial, representado na materialidade do espao urbano e dos seus edifcios, mas tambm na organizao social, permevel aos ritmos da histria econmica e poltica. Recorrendo a ele-mentos fotogrficos para reforar o seu argumento, os autores demonstram como a forma urbana se constituiu num terreno privilegiado do poltico e das lutas pela imaginao de uma sociedade. Neste quadro, as populaes locais tambm foram, mesmo durante o perodo de domnio colonial, construtoras das suas cidades, que habitaram e transformaram.

    Em A desigualdade como legado da cidade colonial: racismo e reproduo de mo-de-obra em Loureno Marques, Nuno Domingos parte do exemplo da capital de Moambique para interpretar o modo como o campo do poder colonial, num perodo de modernizao econmica, procurou lidar com o problema da populao que se acumulava nos subrbios da

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  • A CIDADE E O COLONIAL XLI

    cidade_ Participando criativamente na construo destas cida-des, estas populaes viam as suas vidas condicionadas pela ao colonial sobre a organizao urbana_ Num perodo de forte propaganda, assinalado pelo fim do indigenato, mais do que cidados imperiais integrados num todo cultural partilhado, os habitantes do subrbio continuavam a ser fundamentalmente concebidos enquanto mo-de-obra_ Os projetos de moderniza-o procuravam racionalizar esta fora laboral, tornando-a no apenas mais eficaz e estvel, mas tambm envolvendo-a de um modo mais orgnico com a economia monetria, ao esti-mular, por exemplo, os seus hbitos de consumo. A verdade que os dados empricos produzidos pela prpria cincia colonial sobre a populao da cidade revelavam a continuao de um sistema de reproduo barata de uma mo-de-obra que vivia em condies muito precrias, o que afetava os seus hbitos e a sua forma de ver o mundo. A questo da mo-de-obra, num quadro definido pela racionalizao da produtividade e pela questo da integrao social, continua assim a definir a cronologia do colonialismo portugus.

    Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto Cruz, em Cidades coloniais: fomento ou controlo?, recorrem a um estudo de caso sobre o realojamento de populaes na cidade de Carmona (Uge) para mergulharem em profundidade no exerccio da ao colonial, revelando as dinmicas estruturais que condicio-nam agentes, instituies e as contradies entre as polticas no terreno e a retrica de propaganda promovida pelo prprio regime. Utilizando um conjunto de fontes precisas, os autores concentram-se na reao portuguesa aos levantamentos no Norte de Angola em 1961 que iro dar incio guerra colonial. Dos relatrios polticos e administrativos, emerge uma conceo estatal das populaes locais, a qual decorre no apenas de uma representao mas de uma prtica concreta. Enuncia-se assim a lgica de um exerccio poltico que junta a coero e a violn-cia a tcnicas de urbanizao, de reordenamento do territrio e de povoamento. Este sistema de dominao -localizado a um nvel infraestrutural e bem localizado - era motivado pelo inte-resse na gesto poltica e social, pela permanncia de prticas

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  • XLII CIDADE E IMP RIO

    de segregao e de cooptao de estruturas polticas tradicio-nais, mas tambm pela necessidade de manter o fornecimento de mo-de-obra s populaes de colonos e de responder aos grandes interesses econmicos locais.

    O texto de Harry G. West trata tambm das questes do povoamento e do ordenamento do territrio, embora apresente uma cronologia mais extensa. Focando o caso de Mueda, no Norte de Moambique, cuja histria est tambm indelevel-mente associada violncia colonial, o autor traa uma inter-pretao histrica das formas de territorializao do poder desde o perodo anterior presena portuguesa at ao momento ps-colonial. Apresentando uma perspetiva que parte da inqui-rio etnogrfica das populaes que viveram estes processos, embora recorrendo tambm a outras fontes, Harry G. vVest ofe-rece-nos um olhar sobre a dinmica de territorializao do poder a partir de baixo. Fala-nos da relao das populaes com o poder tradicional, com as suas estruturas prticas e sim-blicas, sujeitas tambm a evolues, e o modo como foram transformadas pela chegada do colonizador, do Estado colonial que cobrava impostos, da empresa que beneficiava do trabalho forado. Foca tambm os planos coloniais de povoamento e de deslocao ordenada das populaes. No perodo ps-colonial, a alegria da libertao do jugo do colonizador no libertou as populaes do norte de Moambique de lgicas de dominao perenes. Os habitantes de Mueda, condicionados por estas rela-es de poder, so representados aqui enquanto os construtores da realidade em que vivem e em relao qual vo reagindo.

    O texto de Filipa Lowndes Vicente fala-nos sobre o que sobrou das antigas cidades da ndia portuguesa no final do sculo XIX (

  • A CIDADE E O COLONIAL XLIII

    afetado por uma condio social e cultural. Desse olhar, que procurava recuperar o passado portugus enquanto objeto per-dido no meio da fora da cincia britnica e da sua narrativa histrica imperial, acaba por fixar uma presena colonial base-ada em edifcios religiosos, militares e administrativos que na altura jaziam abandonados. Se a runa permitia construir um discurso historiogrfico sobre a experincia imperial portuguesa na ndia, ela era tambm sinal de um passado que, pelo olhar do historiador, no deixou muito mais do que runas.

    No final do sculo XIX, quando Gerson da Cunha procurava relatar esse passado portugus, o projeto imperial deixara ainda algumas possesses na ndia, mas virara-se definitivamente para frica. sobre alguns dos filhos mais ilustres dessa frica gover-nada pelos portugueses que escreve Manuela Ribeiro Sanches em Lisboa, capital do Imprio. Trnsitos, afiliaes, transna-cionalismos. Foi em Lisboa que, a partir da dcada de 40, um grupo de estudantes das colnias africanas se juntou. O espao criado pelo Estado Novo para formar elites coloniais, a Casa dos Estudantes do Imprio (1944-1965), foi para estudantes, tais como Mrio Pinto de Andrade, Alda Esprito Santo, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Nomia de Souza e Amlcar Cabral, o local de maturao de um conjunto de ideias sobre a condi-o dos seus territrios e populaes. A Lisboa triste do salaza-rismo surgia para estesjovens como uma zona de contacto, um espao moderno de leituras e de partilhas. A geografia da cidade ficou marcada por um conjunto de percursos africanos, de encontros polticos, consumos literrios e trocas tericas que circulavam por cidades europeias e atravs de mediadores pri-vilegiados que davam forma a imaginaes e aspiraes, por vezes conflituais: a negritude, o pan-africanismo, o marxismo, o nacionalismo. No corao do Imprio colonial portugus, mau grado as diferenas que os separavam - a origem, a cor da pele, a classe social- os estudantes discutiram o futuro do con-tinente africano, que dispensava tanto a soberania portuguesa, como a dos outros Imprios coloniais.

    O projeto da Casa dos Estudantes do Imprio no era o nico que revelava as tenses e contradies inerentes s pol-

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  • XLIV CIDADE E IMPRIO

    ticas de dominao colonial. sobre estes processos pouco line-ares que escreve Marcos Cardo

  • A CIDADE E O COLONIAL XLV

    tfica, religiosa, comemorativa, turstica concorrem para a criao de uma conceo glorificada da histria de Portugal e nomeadamente do chamado perodo dos descobrimentos. Apesar de atravessar diferentes tempos polticos, das suas cons-trues e espaos expressarem interesses distintos, servidos por tcnicas, estticas e lgicas prprias, parece subsistir em Belm, at aos dias de hoje, uma narrativa dominante sobre a histria de Portugal. Neste lugar de composio de um complexo de memria, parecem no existir meios de contestar e discutir uma verso oficial da histria portuguesa, glorificada, que hoje se manifesta sobretudo como modo de atrao turstica. Atravs deste percurso emprico, a autora explora as complexidades inerentes aos processos de composio das memrias pblicas nacionais, caraterizados pela conformao de diferentes tem-ticas e temporalidades numa narrativa coerente e unvoca, pela constante re-narrativizao dos sentidos atribudos ao passado conforme as circunstncias de cada momento e pela inscrio mnemnica no espao por via da sua represen tao material.

    Na terceira parte deste livro situamo-nos na Lisboa contem-pornea. Depois do fim do Imprio portugus em frica, em 1975, o legado do poder colonial portugus no desapareceu da capital do pas. A grande maioria dos antigos sujeitos do Imprio africano, que na Guin, em Angola e Moambique foi at 1961 considerada indgena, transformou-se em populao estrangeira, potencialmente imigrante. A alterao de estatuto, vincada pela mudana da lei da nacionalidade em 1975, ao se abandonar o critrio do solo para se adotar o critrio do san-gue, no deixa de ser significativo C'). A presena destes imi-grantes, at hoje, distingue as vivncias na cidade de Lisboa e suscita um conjunto de interrogaes sobre as ruturas e conti-nuidades que atravessaram esta transio. Um dos objetivos fun-damentais deste livro foi perceber de que forma um conjunto de sistemas de classificao simblicos, base de categorizaes de poder que justificavam quadros de relaes profundamente

    (1') Em 2006 esta lei sofreu uma alterao e adotou-se um estatuto misto.

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  • XLVI CIDADE E IMPRIO

    desiguais, desde logo aj referida oposio entre o indgena e o civilizado, se reformulam no tempo, em especial durante a transio que marcou o fim do Imprio africano. Um tal pro-cedimento obriga a pensar o colonial no s como resultado de uma relao cultural, mas sobretudo como uma relao de poder.

    no no contexto urbano, como o de Lisboa, que as relaes sociais que envolvem imigrantes das antigas colnias portugue-sas em frica so enquadradas por polticas institucionais, pr-ticas laborais e sistemas de interao quotidianos que reprodu-zem categorizaes e representaes, fortemente racializadas, e reforam a existncia de continuidades com a situao colo-nial. de notar que a fora dos mecanismos de reproduo em causa extensiva a outros grupos, caso dos brasileiros prove-nientes de uma onda de imigrao mais recente. Neste quadro, as populaes imigrantes procuram adaptar-se e conquistar o seu lugar na cidade, que constroem com os saberes que acumu-laram e que expressam no modo como imprimem uma marca prpria cidade. disso que Eduardo Ascenso nos fala em A barraca ps-colonial: materialidade, memria e afeto na arquitetura informa!. Neste captulo somos confrontados com as micronarrativas de vida dos habitantes do bairro da Quinta da Serra nos arredores de Lisboa. O autor centra-se nos proces-sos de construo do bairro, mais concretamente no conheci-mento implicado nas tcnicas e estticas que envolvem a auto-construo de habitaes, no mbito do que designado por arquitetura informal. Nesta autoconstruo esto impressas as vidas de quem constri e de quem habita, as suas memrias, os conhecimentos e as imagens que produzem do espao habita-cional, bem como as funes que lhe atribuem. Enfrentando condies de marginalizao severas, visveis na sua relao com o Estado, estes habitantes constroem tambm a cidade. Muitos deles atravessaram a experincia colonial e sentiram, depois,j na antiga metrpole, a manuteno de formas de dominao e invisibilidade.

    O modo como a populao brasileira instalada no bairro de Arroios transformou este lugar central de Lisboa foi um dos

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  • A CIDADE E O COLONIAL XLVII

    interesses que guiaram a investigao de Simone FrangeJla em ,,'Fomos conhecer um tal de Arroios': construo de um lugar na imigrao brasileira em Lisboa. A maior comunidade imi-grante em Portugal encontrou neste espao um conjunto de condies de habitabilidade que se ajustaram s suas redes e recursos, bem como sua disponibilidade para ocupar deter-minados lugares no mercado laboral. A investigao sobre estes imigrantes brasileiros permitiu autora recuperar a histria de um bairro invisvel, sem uma caracterstica histrica ou turs-tica que o torne suficientemente distintivo para lhe proporcio-nar uma identidade vincada. Um parque imobilirio em deca-dncia e uma populao envelhecida tornaram-se condies imprescindveis para a chegada dos imigrantes. As suas lojas, locais de entretenimento, de culto religioso, bem como a sua presena nas ruas e no quotidiano transformaram a vida deste espao lisboeta. O quadro de representaes que historicamente ajuda a construir imagens sobre a populao imigrante como tambm acerca da populao portuguesa constitu-se como ele-mento fundamental de avaliao desta integrao urbana. Estas representaes tornam por vezes as interaes mais simples, como se as aes se ajustassem a uma expectativa de comporta-mento pr-codificado. Isto sucede, por exemplo, em contextos laborais, onde se espera dos brasileiros a reproduo de um comportamento alegre e convivial. Em muitas ocasies, no entanto, so momentos de recuperao de um conjunto de esteretipos que invocam velhas imagens coloniais e que se tor-nam operativos como parte de um processo de categorizao do outro. Muitos brasileiros sentiram a fora destas categori-zaes, quando procuraram encontrar casas, no decorrer das suas experincias de trabalho e nas suas interaes quotidianas.

    A adaptao das populaes imigrantes a lugares urbanos especficos e determinados mercados de trabalho, com os quais passam a ser identificados, o tema principal do texto deJos Mapril, Um lugar estrutural? Legados coloniais e migraes globais numa rua em Lisboa. Partindo da sua prpria investi-gao no Martim Moniz, o autor sugere que o trnsito migrat-rio das antigas colnias portuguesas criou um lugar estrutural

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    XLVlI1 CIDADE E IMPRIO

    particular, conotado com posies de trabalho desqualificadas e com determinadas esferas da oferta comercial. Bairros degra-dados do centro de Lisboa, historicamente habitados por popu-laes pobres, entre as quais se encontravam minorias e contin-gentes migratrios, tornaram-se nos espaos de acolhimento destes novos migrantes. Foi a que desenvolveram redes e ativi-dades. Para muitos isto significava retomar conhecimentos e experincias adquiridas no mbito do quotidiano nas cidades coloniais da frica portuguesa. Este lugar, inicialmente ocupado por indivduos com uma experincia no contexto do colonia-lismo portugus, proporcionou as condies ideais para que, mais tarde, outras populaes imigrantes em trnsito o viessem a ocupar. A recomposio populacional da rua do Bem For-moso, na Mouraria, oferece uma base emprica ao argumento do autor. impossvel pensar este lugar estrutural sem analisar as condies do mercado habitacional na cidade de Lisboa e o modo como o Estado e os interesses imobilirios atuam para configurar a morfologia de um espao. Esta anlise permite reforar o in teresse em tomar as relaes coloniais como rela-es de poder com caractersticas discernveis no perodo ps--colonial e em diferentes contextos. Tais relaes reproduzem--se por intermdio de dinmicas de construo de diferenas, que apresentam um lgica estrutural na sociedade portuguesa, e traduzidas em categorias de dominao simblica, como todas aquelas que reificavam processos de racializao de grupos e populaes.

    O texto de Nuno Dias retoma a ideia de lugar estrutural. Em A colnia, a metrpole e o que veio depois dela: para uma histria da construo poltica do trabalho domstico em Por-tugal, o autor sugere a existncia de uma homologia de classe na posio estrutural do trabalho domstico em trs contextos urbanos diferentes. Assumindo que estes trs momentos esto sujeitos a processos simblicos prprios de constituio da alte-ridade, Nuno Dias prefere salientar os mecanismos de explora-o de classe prprios da condio do trabalho domstico. Estes no implicam apenas uma condio material desqualificada, mas uma subordinao prtica e simblica particular. Se entre

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  • A CIDADE E O COLONIAL XLIX

    as formas de explorao do trabalho domstico nas grandes cidades da frica imperial portuguesa, as migraes de cria-das do campo para a cidade no Portugal do ps II Guerra Mundial e a condio das empregadas domsticas imigrantes na atualidade subsistem processos de diferenciao distintos, entre estes momentos persistem prticas comprovam uma forte homologia estruturaL Ao defender este ponto de vista, o autor procura chamar a ateno para os benefcios interpretativos inerentes utilizao do conceito de classe em perspetiva com-parada, e em contextos histricos distintos. Tal operao per-mite perceber continuidades em processos de dominao eco-nmica que tendem a ser ocultados pela hegemonia de uma histria poltica, presente por exemplo na polarizao entre o colonial e o ps-colonial, ou mesmo nas interpretaes que ten-dem a no articular os processos de racializao e de construo da alteridade com a posio econmica.

    Por fim, Nuno Oliveira debrua-se sobre o processo de governana da diversidade cultural, associado mercantilizao da ideia de mistura cultural ou interculturalidade na capital portuguesa. Em Lisboa redescobre-se. A governana da diver-sidade cultural na cidade ps-coloniaL A Scenescape da Moura-ria, o autor encontra nos planos de reabilitao urbana no bairro da Mouraria semelhanas com processos que ocorreram noutras cidades europeias. Nestes contextos, a ideia de uma interculturalidade mercadorizvel, ou seja, convertvel em recurso econmico e simblico, serviu planos de reconverso urbana e social, surgindo como uma dimenso especfica dos projetos das chamadas cidades criativas. A atrao de novos grupos sociais para bairros que, apresentando uma centralidade, tm uma histria recente de degradao, passa tambm pela disseminao de uma ideia de espao e convivialidade quoti-diana baseada numa conceo de convvio cultural e de encon-tro de culturas, mais especificamente de uma vantagem da diversidade propensa a fomentar estilos de vida e consumos ps-modernos. Nuno Oliveira argumenta que este tnico per-mitido acaba por ocultar as condies reais de marginalizao e discriminao em que vivem grande parte destas populaes.

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  • L CIDADE E IMPRIO

    Mais do que isso, ao acrescen tarem valor econmico e simblico ao espao urbano, estas imagens multiculturais desencadeiam um processo de renovao que em muitos casos afasta desses mesmos bairros as populaes mais empobrecidas, sejam ou no de origem imigrante. Para o autor, a criao de uma ideia turstica e imobiliria de uma Lisboa multicultural e harmnica, cimento de um consenso social, convoca velhas noes presen-tes na propaganda colonial, firmadas na mitologia luso-tropical e que, com a fora inerente aos processos de reproduo, se reatualizam em tempos ps-coloniais.

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    NUNO DOMINGOS

    ELSA PERALTA

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