estado de direito - 20 ediÇÃo

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Página 1 6 PORTO ALEGRE, MAIO E JUNHO DE 2009 ANO III N° 20 Estado de Direito Dieter Grimm Página 08 Veja também Página 07 Página 19 O Direito que emancipa o homem Direitos da Convivente Gustavo Rene Nicolau analisa a falta de uma legislação clara e eficaz sobre a proteção da família no País e questiona se é correto a convivente de união estável ter mais direitos do que a esposa em comunhão universal. Página 12 CARLOS BAILON O Jornal Estado de Direito é um espaço singular de inserção social, através da cultura jurídica leva a informação que forma, fundamentada no pensamento de estudiosos da realidade contempo- rânea. É com satisfação que apresen- tamos a 20ª edição do Jornal Estado de Direito em que reune profissionais de diversos países para promover a inte- gração cultural. O objetivo é colaborar nas práticas de cidadania para que todos tenham condições de participação social e de expressão do pensamento. Nessa edição, contamos com a colabo- ração de juristas do Brasil, Portugal e Alemanha. O destaque é a entrevista com o Professor Dieter Grimm um dos mais expressivos nomes do direito constitucional da atualidade. Leia na página 13. Princípio da Proporcionalidade : “... sempre que está envolvida a limitação de direitos fundamentais pela lei, ou seja, a questão é sempre determinar se a restrição que é feita de um direito fundamental é proporcional ou não. Direito Comum Leandro de Mello Schmitt aborda os desafios para se pôr em prática o direito comum ou mundializado e seus reflexos nas sociedades Direitos Humanos Ubiratan Cazetta avalia a efetividade da aplicação dos mecanismos de defesa dos direitos humanos no Brasil e quais as sanções que a Comunidade Internacional pode impor caso estes não sejam respeitados Para um Estado de Direito Efectivo António Francisco de Sousa salienta a importância da participação popular para o exercício efetivo do Estado de Direito não apenas diagnos- tificado pelo voto, mas sim pela busca do conhecimento jurídico a fim de se proteger e respeitar direitos alheios. Página 04 CPI de Minoria Giovani Corralo apresenta as condições para a criação de uma CPI e questiona por que as comissões necessitam do apoio de apenas um terço dos parlamentares para serem implementadas Catedrático Emérito da Universidade de Humboldt de Berlim, membro da New York University School of Law Sequestro Relâmpago Válter Kenji Ishida faz um painel sobre a tipificação do sequestro relâmpago e especi- fica nova lei que inclui o pa- rágrafo terceiro ao artigo 158 do Código Penal que relata o crime de extorsão. Página 21 Opinião Pública Bruno Espiñeira Lemos reflete sobre a prostração do Legislativo e o receio da influência dos meios de comunicação e da opinião pública de influenciar nas decisões jurídicas Página 20 Ambiente Luís Paulo Sirvinskas discorre sobre a necessidade de maior conscientização de empresas e governos na defesa do meio ambiente e no cumprimento da legislação ambiental em um mercado globalizado

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ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO Veja as outras edições também pelo site: www.estadodedireito.com.br

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Page 1: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Página 16

PORTO ALEGRE, MAIO E JUNHO DE 2009 • ANO III • N° 20

Estado de Direito

Dieter Grimm

Página 08

Veja também

Página 07

Página 19

O Direito que emancipa o homem

Direitos da Convivente

Gustavo Rene Nicolau analisa a falta de uma legislação clara e eficaz sobre a proteção da família no País e questiona se é correto a convivente de união estável ter mais direitos do que a esposa em comunhão universal.

Página 12

CARLO

S BA

ILO

N

O Jornal Estado de Direito é um espaço

singular de inserção social, através da

cultura jurídica leva a informação que

forma, fundamentada no pensamento

de estudiosos da realidade contempo-

rânea. É com satisfação que apresen-

tamos a 20ª edição do Jornal Estado de

Direito em que reune profi ssionais de

diversos países para promover a inte-

gração cultural. O objetivo é colaborar

nas práticas de cidadania para que

todos tenham condições de participação

social e de expressão do pensamento.

Nessa edição, contamos com a colabo-

ração de juristas do Brasil, Portugal e

Alemanha. O destaque é a entrevista

com o Professor Dieter Grimm um

dos mais expressivos nomes do direito

constitucional da atualidade. Leia na

página 13.

Princípio da Proporcionalidade:“... sempre que está envolvida a l imitação de direitos fundamentais pela lei, ou seja, a questão é sempre determinar se a restrição que é feita de um direito fundamental é proporcional ou não.”

Direito Comum

Leandro de Mello Schmitt aborda os desafi os para se pôr em prática o direito comum ou mundializado e seus refl exos nas sociedades

Direitos Humanos

Ubiratan Cazetta avalia a efetividade da aplicação dos mecanismos de defesa dos direitos humanos no Brasil e quais as sanções que a Comunidade Internacional pode impor caso estes não sejam respeitadosPara um Estado de

Direito EfectivoAntónio Francisco de Sousa salienta a importância da participação popular para o exercício efetivo do Estado de Direito não apenas diagnos-tificado pelo voto, mas sim pela busca do conhecimento jurídico a fim de se proteger e respeitar direitos alheios.

Página 04

CPI de Minoria

Giovani Corralo apresenta as condições para a criação de uma CPI e questiona por que as comissões necessitam do apoio de apenas um terço dos parlamentares para serem implementadas

Catedrático Emérito da Universidade de Humboldt de Berlim, membro da New York University School of Law

Sequestro Relâmpago

Válter Kenji Ishida faz um painel sobre a tipificação do sequestro relâmpago e especi-fica nova lei que inclui o pa-rágrafo terceiro ao artigo 158 do Código Penal que relata o crime de extorsão.

Página 21

Opinião Pública

Bruno Espiñeira Lemos refl ete sobre a prostração do Legislativo e o receio da infl uência dos meios de comunicação e da opinião pública de infl uenciar nas decisões jurídicas

Página 20

Ambiente

Luís Paulo Sirvinskas discorre sobre a necessidade de maior conscientização de empresas e governos na defesa do meio ambiente e no cumprimento da legislação ambiental em um mercado globalizado

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Estado de Direito, maio e junho de 20092

O Jornal Estado de Direito como referencial científico do projeto: “Conhecer o Direito é Desenvolver a Cidada-nia”, continua firme na sua linha de disseminar gratui-tamente o conhecimento de renomados juristas a toda a população. Do mesmo modo, leva palestras, sempre com a convicção da importância de sermos agentes promotores da esperança de mais conscientização, educação jurídica independente da formação de cada pessoa.

Nessa edição contamos com a colaboração de pro-fissionais do Brasil, Portugal e Alemanha. Agradecemos ao Professor Ingo Wolfgang Sarlet pelo apoio que, sem dúvida, foi fundamental para a realização da entrevista com Professor Dieter Grimm.

Nos dias 5 e 6 de junho participaremos da XIV Jornada Internacional de Direito, em Gramado, Rio Grande do Sul e nos dias 4 e 5 de julho da Gaia Commitment - Fórum do Condomínio da Terra que será realizado, em Portugal, na ci-dade de Gaia. O evento marca a passagem do Dia Mundial da Terra, que tem como objetivo incentivar o desenvolvimento de ações para conservação da Terra. No artigo “Organizar a Vizinhança Global”, página 6, elaborado pelo professor Paulo Magalhães, coordenador cietífico do evento, poderão obter

mais informações. Muito nos engrandece por ser o veículo de comunicação da área jurídica convidado oficial do evento em que estaremos registrando todos os painéis, bem como, captando depoimentos e fotografando.

A próxima edição será feita diretamente de Portugal! Aguardem e faço votos que venham novos convites, pois desejamos integrar culturas e disseminar a importância de se pensar na Terra como um imenso condomínio em que devemos propagar a cultura jurídica preventiva para melhor participação de cada pessoa.

Os vídeos dos eventos realizados em abril e maio que falo na Rota Jurídica estão sendo postados no site http://br.youtube.com/carmelagrune.

Agradeço o apoio dos patrocinadores e apoiadores que são essenciais para a continuidade do nosso trabalho e aos professores que compartilham seus conhecimentos com os nossos leitores.

Um abraço,

Carmela Grüne

Investir em ConhecimentoEstado de Direito Comunicação Social Ltda.CNPJ 08.583.884/0001-66Porto Alegre - RS - Brasil

Rua Conselheiro Xavier da Costa, 3004CEP: 91760-030 - fone: (51) 3246.0242 e 3246.3477

Nextel ID: 84*97060e-mail: [email protected]: www.estadodedireito.com.br

Diretora PresidenteCarmela Grüne

[email protected] | [email protected]

Diretor FinanceiroRenato de Oliveira Grüne CRC/RS 45.039

Diretor Institucional - NordesteJosé Julio Gomes da Silva

Relações Institucionais - Internacional

FrançaKarlo Tinoco | [email protected]

Jornalista ResponsávelEsteban Rey Fontan - MTb 8856

Colaboraram nesta EdiçãoBayard Fos, Cármen Salete Souza, Diego Moreira Alves,

Luciano Gazineu, Carlos Bailon, Cláucia Piccoli Faganello e Luis Spadoni

Redaçã[email protected]

Anúnciosteleanuncios (51) 3246.0242

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DiagramaçãoCarmela Grüne

Tiragem: 40.000 exemplares

Pontos de distribuição

PORTO ALEGRELivraria Saraiva Shopping Praia de Belas1001 Produtos e Serviços de Informática:

Matriz - Rua São Luís, 316 - Santana - 3219.1001Rédito Perícias

Andradas, 1270, sala 21 - Centro - 3013.9090

Nossa Livraria Pernambuco e Alagoas

Maceió: Av. Moreira e Silva, 430 - Farol Maceió: Rua Íris Alagoense, 438-A - Farol

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Recife: Av. Cais do Apolo, 739 - TRT Recife: Av. Dantas Barreto, 191 lojas 22 a 24 - TJ

Recife: Rua da Aurora, 325 loja 01

Santa CatarinaNas salas da OAB/SC, com apoio da Caixa de Assitência aos Advogados

Com o apoio das empresas patrocinadoras, colaboradores e professores o Jornal Estado de Direito é distribuido em Repartições Públicas, Foros,

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Estado de Direito

Apoio

*Os artigos publicados nesse jornal são responsabilidade dos autores e não refl etem necessariamente a opinião do Jornal e informa que os

autores são únicos responsáveis pela original criação literária.

As justifi cativas são muitas, mas a causa é uma só: o pre-conceito. Outro motivo não existe para a omissão do legislador. O Projeto de Lei 1.151, do ano de 1995, que regula a parceria civil registrada, para a época, foi considerado arrojado. A única referência que existe às uniões homoafetivas é feita Lei 11.340/06 – a chamada Lei Maria da Penha – que, ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica, trouxe moderno conceito de família: uma relação íntima de afeto, independente da orientação sexual.

O silêncio da lei, no entanto, não impediu conquistas no âmbito do Judiciário. Quer fazendo analogia com a união estável, quer invocando os princípios constitucionais que asse-guram o direito à igualdade e o respeito à dignidade, a Justiça vem deferindo direitos no âmbito do Direito das Famílias e do Direito Sucessório. O próprio Superior Tribunal de Justiça, ao afastar a extinção do processo sob o fundamento da impossi-bilidade jurídica do pedido, garantiu às uniões de pessoas do mesmo sexo acesso à justiça.

Tudo isso, porém, não supre o direito à segurança jurídica que só a norma legal confere. O silêncio é a forma mais per-versa de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade que afronta um dos mais elementares direitos, que é o direito à cidadania, base de um Estado que se quer democrático de direito.

A aprovação da Lei da Parceria Civil Registrada, nesta altura dos acontecimentos, seria um retrocesso. Daí

o signifi cado do Projeto de Lei 4.914/2009, que inclui um artigo ao Código Civil (1.727-A), para que sejam aplicadas às uniões de pessoas do mesmo sexo os dispositivos referentes à união estável, exceto a regra que admite sua conversão em casamento.

O projeto tem o mérito de contornar o aparente óbice constitucional que limita o reconhecimento da união estável aos heterossexuais. De outro lado, para evitar que se diga tratar-se do temido “casamento gay”, de modo expresso é afastada a incidência do dispositivo que autoriza a transformação da união estável em casamento.

A proposta busca somente consagrar em lei o que de há muito vem sendo assegurado pela jurisprudência. Claro que esta não é a solução que melhor atende ao princípio da igual-dade, mas, ao menos, acaba com histórica omissão que gera enorme insegurança e impõe o calvário da via judicial para o reconhecimento de direitos.

Enfi m, é chegada a hora de resgatar o débito que a sociedade tem para com signifi cativa parcela da população que não mais pode fi car à margem do sistema jurídico. Insistir no silêncio afronta o direito fundamental à felicidade – o mais importante compromisso do Estado para com todos os cidadãos.

*Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões,

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS, Vice-Presidenta Nacional

do IBDFAM, www.mariaberenice.com.br

Maria Berenice Dias*

União estável homoafetiva, até que enfim!

Page 3: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 3

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Page 4: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 20094

Para um Estado de Direito EfectivoA expressão Estado de direito está na moda

há algumas décadas. Não há Estado moderno que não invoque para si o atributo de Estado de direito, incluindo aqueles que não passam de ditaduras disfarçadas. A generalidade das Cons-tituições ocidentais não só consagra expressa-mente esta forma de Estado, como também re-conhece um vasto leque de direitos fundamentais que são considerados imprescindíveis no Estado de direito. E vão mais longe ao reconhecerem expressamente formas de organização adminis-trativa e instituições que são exigências próprias do Estado de direito, como acontece, por exemplo, com o poder local autónomo, no primeiro caso, e com os tribunais independentes, no segundo caso. Tudo isto é comum ao mundo ocidental (e para além dele). A fórmula Estado de direito é também frequentemente transformada pelo

poder político em bandeira de progresso, civis-mo e respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos. À partida, parece haver toda a justifi-cação e razão de ser para este ponto de vista. O Parlamento é constituído pelos representantes do povo, que o elege em eleições livres e perió-dicas, competindo-lhe fazer as leis (mais impor-tantes) e fiscalizar a acção do Governo, que também goza de legitimidade democrática. Pa-rece que o sistema é realmente perfeito. Não faltam políticos, talvez mesmo a maioria, segui-dos por uma pequena parte da população, a sustentar que este não é o sistema perfeito, mas será o caminho certo para lá chegarmos. Faltará apenas aperfeiçoar alguns “pequenos detalhes”.

Ora, é preciso discordar frontalmente desta visão optimista e simplista, porque de facto estamos muito longe do Estado de direito efectivo. Não nos faltam apenas os mencionados “pequenos detalhes”. O que temos é sobretudo o Estado de direito declarado; o que estamos longe al-cançar é o Estado de direito efectivo, isto é, o Estado de direito tornado realidade, aquele que chega efectivamente, nas suas múltiplas vertentes, ao dia-a-dia dos cidadãos. O primeiro é fácil de conseguir, porque basta apenas escre-vê-lo nas leis principais; o segundo é difícil de alcançar, sendo tarefa de décadas, se houver grande empenho nisso. Para podermos passar de um para o outro, temos de ter em linha de conta o seguinte: o Estado de direito meramen-te declarado, mas ainda não suficientemente concretizado, satisfaz muito bem os interesses do “poder instituído”, à cabeça do qual estão os titulares de cargos políticos e as cúpulas da Administração Pública (presidentes, chefes e directores de serviço, administradores, etc.). Para esses, o Estado de direito declarado satisfaz plenamente. Este sistema de “faz de conta” ga-rante-lhes a situação de privilégio (traduzida em salários elevados, lugares de poder e prestígio - que muito bem fazem ao seu ego - , espaço para o “tráfico de influências”, etc.) face à maioria da população. Por isso, de forma egoísta e insensí-veis às dificuldades dos outros, fazem tudo para defender o status quo. Estão sentados à mesa do grande banquete, vivem no “país das maravi-lhas”, tudo lhes corre bem. Por isso, não são necessárias mudanças de fundo. Este é o desu-mano Estado de direito declarado. As décadas de experiência já realizada comprovam-no. In-quieta-nos, enquanto seres humanos e humanis-tas, que o sistema “Estado de direito” possa ser aproveitado para esconder e perpetuar injustiça, desigualdade, exploração do homem. Por isso, algo terá de ser mudado, para que a esmagadora maioria da população deixe de viver no seu “vale de lágrimas”, ao mesmo tempo que uma minoria

se mantém comodamente instalada no seu “país das maravilhas”. É longo o caminho a percorrer para alcançarmos níveis aceitáveis de igualdade e de justiça social. Sabendo, embora, que a perfeição é um absoluto humanamente inalcan-çável, reconhecemos todavia a possibilidade de atingirmos um bom nível de efectivação do Es-tado de direito. Por isso, não podemos perder tempo. Urge pôr toda a sociedade a reflectir sobre o que tem de ser feito. Uma coisa é certa: esse não é um trabalho que possa ser deixado apenas nas mãos do “poder instalado”, com a alegada “participação” pelo voto “livre” e perió-

dico dos cidadãos. Sabemos que as eleições têm servido sobretudo para “legitimar” o “poder instalado”, dando-lhe um cariz “democrático”, precisamente o que lhes faz falta para manter um sistema de aparências. Participação sim, mas não apenas essa do voto, de tantos em tantos anos. É fundamental interiorizar que não pode-mos esperar que sejam os outros, os que estão bem, a generosamente proceder às alterações necessárias para a efectivação do Estado de direito, renegando voluntariamente aos seus privilégios (e dos familiares e amigos). Os cida-dãos não podem deixar a sua sorte apenas na boa vontade do poder instalado que, inequivo-camente, cuida antes de mais dos seus próprios interesses. Tal atitude de passividade não tem produzido frutos. Será mais sensato partir do princípio de que ninguém abre mão de privilé-gios, se a tal não for obrigado. Cumpre então perguntar o que fazer, se o voto afinal se trans-formou num instrumento que em larga medida, ou mesmo em última análise, se converteu con-tra os interesses da maioria? Será que apenas restará a revolução sangrenta? A resposta é cla-ramente não! Guerras e revoluções sangrentas nunca resolveram coisa nenhuma. O que é ne-cessário e urgente é criar nos cidadãos uma consciencialização dos seus direitos, informá-los de que podem e devem protestar e indignar-se com a injustiça e a desigualdade, para que o “poder instalado” sinta que está a ser atentamen-te observado e que não pode “pisar o risco” (por exemplo, nas frequentes práticas corruptivas). É urgente tornar a actividade administrati-va transparente e assegurar um efectivo sistema de controlo externo, quer através de órgãos independentes face à Administração, quer através da acção dos tribunais. Sobretudo o controlo jurisdicional tem de ser extrema-mente exigente com a Administração, fazen-do um cerco apertado em matéria de poderes discricionários, “margens de apreciação”, impar-cialidade, igualdade, justiça, boa fé, proporcio-nalidade, etc. Sem uma acção determinada dos tribunais nestes domínios, a Administração tem todo o espaço de manobra para criar injustiças e desigualdades efectivas, não obstante as leis formalmente o proibirem (o que corresponde,

António Francisco de Sousa*

“... o Estado de direito tornado

realidade, aquele que chega

efectivamente, nas suas

múltiplas vertentes, ao dia-a-

dia dos cidadãos.”

“O que é necessário e urgente

é criar nos cidadãos uma

consciencialização dos seus

direitos...”

“Os cidadãos não podem

deixar a sua sorte apenas na

boa vontade do poder instalado

que, inequivocamente, cuida

antes de mais dos seus

próprios interesses.”

ON

U

ON

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Estado de Direito, maio e junho de 2009 5

Políticas públicas, sexismo e colonialismo

A hegemonia do processo de modernidade ocidental invisibilizou as relações coloniais, sexistas e racistas que com ela estavam entrelaçadas, o que tem se refl etido na formulação das políticas públi-cas. Reconhecer, pois, o caráter discriminatório ou excludente de determinadas medidas legislativas, administrativas ou judiciais é a outra face necessária da análise dos chamados processos de inclusão.

Primeiro, porque a inclusão implica, sempre, a necessidade de decidir quem são os membros do grupo. O agente que estabelece a inclusão está, ele mesmo, “além” da inclusão: o processo de inclusão

é, de certa forma, um processo de novos proces-sos de exclusão. Esta dupla face, que permitiu a invisibilização dos processos de desigualdade, diferença colonial e de exclusão racial e sexual, é que se põe a nu quando os mecanismos de inclusão hoje utilizados são postos em ação: não é à toa que as “ações afi rmativas” passem, até certa medida, como “excludentes” daqueles que nunca se viram “benefi ciários” do sistema, porque “naturalizadas” as relações sociais. Ou que “gente branca de olhos azuis” se veja vítima de “discriminação racial” ou homens sintam-se “atingidos” por medidas que

reduzam o grau de desigualdade salarial ou ocupa-cional experenciada pelas mulheres. Opera-se ora pela negação das diferenças, ora pela absolutização das diferenças.

Segundo, porque mesmo a defi nição dos termos - gênero, sexo, sexualidade- não escapa de um questionamento de um suposto universalismo. Que tipo de relações sociais serão produzidas, ocultadas ou mesmo visibilizadas se for utilizado o conceito chinês de “xingbie” ao invés do convencional “gênero” ou o árabe “shudhudh” para as relações designadas como “homoeróticas”? Até que ponto a “descolonização” da linguagem permite sejam os fenômenos vistos de outra forma? Quais são as formas possíveis de tradução entre os distintos conhecimentos ( e, pois, de os tornar inteligíveis)? O que é visto como eventual violação à dignidade com a utilização de novos termos? A constitucionalização do bem viver- “sumak kawsay” (no Equador) ou “suma qamaña” (na Bolívia)- e atribuição de direitos à natureza (“pachamama”) são dois bons exercícios legislativos neste sentido.

Terceiro, porque determinadas práticas e formas de lutas são vistas como “naturais” (ou únicas) e, portanto, são reproduzidos os mecanismos de um contínuo “desenvolvimento” e de etapas “necessá-rias” para a “modernidade”. É possível, por exem-plo, aceitar a “universalização” do “sair do armário” defendido pelo movimento gay internacional ou, pelo contrário, as táticas de “coming home” de asiáticos são culturalmente mais “empoderadoras” dos movimentos naquele continente? O “secula-rismo” ocidental clássico é sempre a melhor forma de defesa dos direitos das mulheres ou é possível pensar um feminismo islâmico, com uma episte-mologia corânica que trabalhe com formas mais emancipatórias para 49 países que assumem o Islã como religião ofi cial? E que dizer de um feminismo indígena, assentado numa epistemologia aimará, que, conforme salienta Silvia Rivera, está centrada no “escutar” a “Pachamama” ( mãe terra) e não mais na “visão”? A “descolonização” dos sentidos altera o entendimento e a formulação de nossas lutas contemporâneas?

Quarto, porque sendo entrelaçadas as desiguais opressões, as lutas contra o racismo, sexismo e colonialismo devem estabelecer distintas formas

de cooperação ou de prevalência. Como lembra bell hooks, os homens negros podem ser vítimas do racismo, mas o sexismo pode permitir que oprimam as mulheres; as mulheres brancas podem ser vítimas do sexismo, mas o racismo permite que explorem negros e negras. Da mesma forma, as mulheres ocidentais e brancas podem estabelecer a melhor forma de as islâmicas serem “libertadas” (invisibilizando, portanto, o colonialismo), ou o movimento ecológico ocidental fi xar os parâmetros para “preservação ambiental” a ser realizada pelos indígenas ( ignorando, pois, conhecimentos diferen-ciados). A luta por justiça cognitiva é a outra face da luta por justiça social.

Quinto, porque todo o debate da intercultura-lização nas políticas públicas demonstra o caráter “experimental” de tais inovações, que procuram “descolonizar”, ainda que parcialmente, as formas de intervenção de e no Estado. As políticas “afi rma-tivas” ( que não se reduzem a “cotas”, mas envolvem medidas pró ativas), imperfeitas que sejam na sua aplicação, instáveis em sua elaboração, e mesmo transitórias na formulação, implicam um grau de “experimentação” na busca de soluções, demons-trando que a aparente “neutralidade” das políticas estatais não impediu o racismo mascarado de “miscigenação”, o machismo estabilizado no âmbito “privado” e a manutenção de todo um sistema de “colonialismo interno”.

O impacto do reconhecimento da demodiversi-dade (diferentes instituições com distintos graus de-mocráticos), da sociodiversidade (distintos grupos so-ciais) e da cosmodiversidade (diferentes cosmologias) dentro de um Estado que sempre se viu homogêneo ainda está para ser avaliado e testado nos próximos anos. As lutas contra o racismo, o colonialismo e o sexismo são muito mais complexas que a teoria social e a prática jurídico-política vem admitindo. Terão os poderes públicos (Judiciário incluído) ou o Ministério Público se dado conta desta realidade?

*Mestre em Direito ( ULBRA/RS), doutorando Universidad

Pablo Olavide ( Espanha), chefe de gabinete no TRF-4ª

Região, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade

cosmopolita” ( Ed. Renovar, 2004).

César Augusto Baldi*

em geral, à situação que temos). A interpretação e aplicação meramente formal do Estado de di-reito permite constantes e graves injustiças e mesmo ilegalidades materiais. Os tribunais têm de se consciencializar que a Administração, sem controlo jurisdicional, resvala inevitavelmente para o arbítrio e, por conseguinte, não se realiza

o Estado de direito. Temos, portanto, dois pila-res fundamentais para a efectivação do Estado de direito: por um lado, cidadãos conscientes, informados, exigentes com os detentores do poder, dispostos a protestar, a criticar e a de-nunciar as injustiças e as violações da lei, apoia-dos pelos advogados e pelas instituições políticas e administrativas (cujos titulares de cargos têm de se concentrar no cumprimento escrupuloso dos seus deveres funcionais); por outro lado, tribunais, conscientes do seu papel decisivo para a efectivação do Estado de direito, fortemente empenhados em cumprir efectivamente os seus deveres, com exigência e sem receios. Há certa-mente outros complementos importantes, tais como uma justiça barata e célere, mas os dois

pilares referidos são, a nosso ver, os pontos fulcrais de uma reforma profunda que tem de ser feita, se queremos ter, daqui por alguns anos, um Estado de direito efectivo. Poderá haver necessidade de algumas alterações legislativas (sobretudo nos planos do reforço da transpa-rência da acção administrativa e de uma maior e mais efectiva responsabilização dos detentores do poder). Mas o acento tónico está sobretudo numa nova atitude dos cidadãos e dos tribunais, tudo em nome da justiça social e do bem comum. Por enquanto, o que temos é a realidade de profunda injustiça social, das constantes violações dos direitos e liberdades dos cidadãos, da discriminação, da falta de ética, enfim, uma sociedade desumanizada que hipo-

critamente invoca para si o epíteto de Estado de direito. A verdade é que as vítimas do sistema são os principais responsáveis pela sua existên-cia e perpetuação, na medida em que se deixam iludir na ideia de que vivem num Estado de direito. Acordemos, indignemo-nos, gritemos, protestemos, critiquemos, exijamos uma Admi-nistração Pública transparente e, com o apoio de um controlo intenso e efectivo dos tribunais, teremos, daqui por alguns anos ou décadas, um Estado de direito efectivo.

*Mestre em Direito pelas Universidades de Freiburg (Alemanha)

e de Coimbra, Doutor em Direito e em Letras pela Universidade

do Porto, Portugal. Professor de Direito Administrativo da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

“As lutas contra o racismo, o

colonialismo e o sexismo são

muito mais complexas que a

teoria social e a prática jurídico-

política vem admitindo.”

“... o acento tónico está

sobretudo numa nova atitude

dos cidadãos e dos tribunais,

tudo em nome da justiça social

e do bem comum.”

“... o sexismo pode permitir

que oprimam as mulheres; as

mulheres brancas podem ser

vítimas do sexismo, mas o

racismo permite que explorem

negros e negras.”

AGÊN

CIA

BRAS

IL

Page 6: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 20096

Organizar a Vizinhança Global

Este será talvez maior desafio que se colo-cou até hoje à humanidade! Ao descobrirmos que entre a crosta terrestre, o mar, a atmosfera e os seres vivos, existe um emaranhado de in-terligações permanentes que sustentam a vida no planeta, temos de adaptar o nosso modo de vida e organização a este funcionamento global da Biosfera. Somos todos vizinhos, todos dependemos de todos e problemas globais não se resolvem de forma isolada.

A busca de uma solução, para nos adap-tarmos a esta realidade que nos era desconhe-cida, passa obrigatoriamente, não pela busca de novas formas de sancionar, mas sim, pela assunção do papel de “organizador” do direito, actuando assim de forma preventiva. E embora para muitos este seja um problema do ambiente e das ciências ambientais, parece-nos que a crise ambiental tem a sua origem na deficiente adaptação das nossas sociedades ao funciona-mento da Biosfera. Por isso, a solução requer uma nova abordagem jurídica a nível planetar aliada a uma nova contabilidade relativamente aos serviços vitais que os ecossistemas prestam, e sem os quais, a vida tal como a conhecemos, não é possível.

Depois de desvendadas estas ligações, as abordagens as estas questões não podem ser mais isoladas de todas as implicações e inte-racções que se operaram como feedbacks, entre todos os sistemas. Isto é, por exemplo, a análise económica não pode deixar de ter em conta o efeitos globais de determinada actividade, bem como o sistema jurídico tem de absorver esta globalização dos efeitos dos comportamentos de cada um, e incorporar em si as consequências económicas.

Este papel preventivo de organização, que cabe em primeira linha ao Direito, é quase desconhecido na vida de cada cidadão - sempre visto de uma maneira impositiva e negativa “o que não é proibido é permitido” fazendo com que toda a sociedade encare a cultura jurídica voltada para o litígio e não a busca da solidarie-dade, diálogo, paz e justiça social. Este papel tem de ser de novo assumido na sociedade do futuro, organizando uma vizinhança, que até há pouco tempo nos era completamente desconhecida.

O que é o Condomínio da Terra?As últimas descobertas acerca do funcio-

namento global da atmosfera, alteraram por completo a percepção que tínhamos do planeta que habitamos. Para o direito poder continuar a desempenhar o seu papel de organizador das sociedades, terá de ter a capacidade de ques-tionar-se sobre alguns institutos jurídicos que permaneceram intocáveis durante séculos.

O facto de todos os cidadãos ou Estados, poderem afectar de forma positiva ou negativa bens de que todos dependem e em que nenhum deles se pode excluir do seu consumo, obriga à procura de um sistema que permita a con-ciliação dos legítimos interesses individuais de cada cidadão ou Estado, com os interesses colectivos de todos os habitantes do planeta e dos inegáveis direitos das gerações futuras.

O modelo jurídico do condomínio permite precisamente a conciliação destes interesses normalmente opostos, através da definição e delimitação das partes comuns, e que reque-rem uma administração comum, relativamente às partes individuais. Consegue de forma

absolutamente fantástica e com uma perfeita “engenharia jurídica”.

E tal como as escadas, telhado e corredores de um prédio, também o nosso planeta tem partes comuns. Partes essas que são imprescin-díveis à vida humana e que estão a precisar de manutenção urgente. Se num prédio garantimos a manutenção das partes comuns através do Condomínio, porque não fazemos o mesmo para o planeta? O Condomínio, depois de separar e organizar o que são partes comuns e partes individuais, permite que os interesses indivi-duais e colectivos, em muitos casos opostos, se conciliem e se tornem interdependentes. E se aceitássemos o desafio de combinarmos a vida com as ideias e pensássemos a Terra como um imenso Condomínio?

Quais são as Partes Comuns?A atmosfera, a hidrosfera e a biodiversidade,

são partes comuns do planeta. Não só porque ultrapassam todas as fronteiras e os serviços que prestam não podem ser divididos mas também porque todos dependemos delas para viver e todos as podemos afectar de forma positiva ou negativa.

A atmosfera protege a vida no planeta e o facto de criarmos fronteiras, não impede a livre circulação do ar, de forma constante, por todo o globo.

A hidrosfera é o conjunto de todas as águas do planeta, águas que circulam de forma inces-sante por todo o planeta, independentemente das fronteiras políticas. Ninguém consegue pa-rar ou dividir o ciclo da água, ou sequer prever para onde é que a água vai a seguir.

A biodiversidade define-se como a totalida-de dos recursos vivos e dos recursos genéticos do planeta. O conjunto das formas de vida do planeta compõe um ecossistema global e os serviços essenciais que a biodiversidade presta, não respeitam qualquer fronteira.

Serviços dos EcossistemasA Biodiversidade e os ecossistemas, são os

“motores” das partes comuns, ou seja, são eles que sustentam a regulação dos ciclos da nature-za, sendo determinantes no funcionamento dos serviços ambientais vitais. Estes serviços podem ser definidos como aqueles capazes de sustentar e satisfazer as condições de vida humana, e portanto serviços de interesse comum.

Soberania ComplexaA Soberania Complexa é uma proposta

de coexistência de soberanias autónomas num espaço colectivo, ou seja, um poder político, supremo e independente, relativo à fracção ter-ritorial de cada Estado, e partilhado, no que concerne às partes insusceptíveis de divisão ju-rídica, (atmosfera, hidrosfera e biodiversidade) das quais todos os povos são funcionalmente dependentes.

Economia de Simbiose A Economia de Simbiose propõe uma

articulação daquilo a que se poderia chamar de “economia da manutenção dos sistemas vitais” com a tradicional economia de produ-ção. Aproveitando a valoração económica dos Serviços Ecológicos Vitais já desenvolvida pela Economia Ambiental, integra-se esta valoração com o conceito de partes comuns, proposta pela Soberania Complexa. Tornar possível a gestão global dos bens indivisíveis, é o objectivo.

Valoração dos Serviços Ambientais

Para entender o conceito agora proposto, é fundamental distinguir a soberania ou proprie-dade que é exercida sobre os ecossistemas, dos serviços vitais que estes prestam. Estes serviços não se confinam a nenhuma linha de fronteira, a nenhuma forma de titularidade ou soberania,

são “usados” por todos, em qualquer ponto do planeta e por isso são de interesse comum. Se o valor destes serviços vitais é de alguma forma incalculável, precisamente porque são vitais, resta-nos a certeza de que os ecossis-temas prestam serviços cujo valor económico deveria ser muito superior aos lucros gerados pela exploração tradicional dos seus recursos. As árvores deveriam valer mais vivas do que o valor da sua madeira!

Gaia Commitment - Forúm do Condo-mínio da Terra - Decorrerá na Cidade de Gaia nos próximos dias 4 e 5 de Julho. Este evento vai trazer a Portugal vários oradores de todo o Mundo das áreas de Ambiente e Ciências asso-ciadas, Economia e Direito, para se debater esta ideia e juntos procurarmos um projecto global para perpetuar as nossas sociedades através da preservação do ambiente natural. Entre os parceiros que vão debater “Como Organizar a Vizinança Global?”, vai estar o Jornal Estado de Direito , que desde o início mostrou a abertura e o espaço necessário para o jurista pensar, imaginar e inventar, buscando novas soluções, sem estar preso a paradigmas que demonstaram já não funcionarem no planeta que conhecemos hoje. Cedo percebeu o papel primordial e preventivo de organização que falta fazer a nível global e a necessidade de envolvimento de toda a sociedade na inserção dos cidadãos nas várias dimensões do que é o “jurídico”. Por isso, pela sua identificsação com este projecto e pelo papel absolutamente central que o Brasil irá desenpenhar no futuro ambiental do planeta, esta é uma parceria em que depositamos todas as esperanças.

*L i cenc i ado pe l a Un i ve r s i dade do Po r t o , Pós -

graduado pela Universaidade de Coimbra, e aluno do

Doutoramento da Universidade de Salamanca. Autor do

livro “O Condomínio da Terra” publicado pela Editora

Almedina.

Paulo Magalhães*

DIV

ULG

AÇÃO

Page 7: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 7

Já é possível falarmos em um Direito comum ou “mundializado”?

Desde a idéia do Estado de Direito, como forma de proteger o indivíduo das arbitrariedades do poder temporal, foi pensado e criado um poderoso instru-mento: o Direito Positivo. Nos sistemas decorrentes da família romano-germânica de Direito, o Direito Positivo pode ser simbolizado e explicado a partir da idéia de lei. Um mecanismo de “dever-ser” dissociado da moral e da religião. Ciência, portanto.

Ocorre que a partir do aumento cada vez mais crescente da sociedade, vamos ver uma profusão de normas que torna a ordem jurídica pouco palpável, digerível. Sentimos, assim, a necessidade de um “Direito comum”, comum em todos os sentidos, acessível a todos e que não fosse imposto de cima ou por instituições ilegítimas.

O Direito uniforme vem se apresentando, após o advento da criação da sociedade das nações, das organizações de Direito Internacional, do consenso de Washington, da União Européia, da nova Lex Mercatoria, enfi m, de sistemas de formação de ordens jurídicas independentes do Estado nacional, como um mecanismo plural, mas que, paradoxalmente, reduz a complexidade e a própria pluralidade. Não permite aos povos manter sua identidade cultural e jurídica. As que ainda as mantêm, estão a mercê do que André-Jean Arnaud (In: Globalização e Direito I) chama de la mondialisation, e que atua como ameaça às peculiaridades de cada povo.

Surge, desta forma, um novo ideário jurídico,

para além do pluralismo e da complexidade dos sistemas de Direito. Um Direito reinventado, um “Direito Comum” (Mireille Delmas-Marty. In: Por um Direito comum).

No plano da formação das normas, como ins-tância suprema está o Parlamento. Este deve agir com prudência e parcimônia, jamais devendo ceder a pressões pouco ou nada legítimas dos escritórios de legislação a mando de entidades privadas. Embora arriscada, a redução da complexidade do sistema jurídico-normativo, deve estar voltada à compreensão das normas pelos seus destinatários últimos: o cida-dão, o “homem médio” dos positivistas exegéticos.

Como exemplo de áreas do Direito interno que devem dispor de normas mais facilmente com-preensíveis estão o Direito do Trabalho, Tributário, Financeiro, Alfandegário, Ambiental e, sem qualquer dúvida, o Econômico, a servir de exemplo as leis anti-trust. Atualmente, nestas áreas, o arcabouço jurídico apresenta-se tão complexo e confuso que até os advogados mais habilidosos encontram difi cul-dades de compreender o que o positivismo jurídico denominou de mens legis. Onde está, aqui, portanto, o Direito Comum pretendido por alguns importantes juristas da atualidade?

Considerados estes desafi os, será ainda possível um Direito Comum? Algumas situações que bem retratam a difi culdade merecem destaque: em 1987, um tribunal de Nova Jersey reconheceu a validade de um contrato de

“barriga de aluguel” e determinou à locadora da barriga a entrega da criança aos pais, tomadores do “serviço”; em 1988, um tribunal da Califórnia entendeu que um doador de sangue por ser proprietário das células no mesmo contidas, tinha direito a royalties sobre os me-dicamentos fabricados a partir de tais células; em 1988, uma clínica britânica recrutou cidadãos turcos que quisessem vender seus rins. Ou seja, nestes exemplos, o corpo humano é coisa que faz parte do comércio. Seria possível conciliar esta posição com a de outros sistemas normativos que entende estar este fora do comércio? Até quando, em um cenário de direito mercantilizado, alguma coisa permanecerá fora do comércio? Este é apenas um dos inúmeros e inimagináveis exemplos que podem ser formulados a partir da perspectiva de um direito mundial ou “comum”.

Dentre estes e outros, vai o espaço nacional cedendo lugar a novas formas de Direito, fundadas em normas internacionais e supranacionais, onde prevalece a preocupação econômica que, quase sempre, passa ao largo do código dos povos, sendo este produto do tempo, da tradição.

Como exemplo a ser seguido, cabe lembrar Malone x Reino Unido (agosto de 1984): a lei deve ser “sufi cientemente acessível; o cidadão deve poder dispor de informações sufi cientes, nas circunstâncias da causa, sobre as normas jurídicas aplicáveis a um dado caso; em segundo lugar, só se pode considerar como lei uma norma enunciada com sufi ciente preci-

são para permitir a um cidadão reger sua conduta”.E como atores principais na concepção de um

Direito Comum, estão também juízes e advogados. Estes últimos, em especial, deverão cuidar para não se transformar em “comerciantes do direito”, expressão de Dezalay (In: Marchands de droit, Fayard, 1992). Os primeiros, juízes, sem formar uma “ditadura da toga”, deverão interpretar o direito de modo a pos-sibilitar a concretização dos direitos fundamentais do homem e dos povos. Cabe ao legislador, em especial, evitar a “orgia das leis” (Grant Gilmore), e servir de mecanismo de fi ltro para normas vindas de fora pouco ou nada coincidentes com os valores que também devem preservar como “fabricantes de leis”, em certas situações impostas de forma unilateral como condição ao recebimento de vantagem pessoal ou outro fi m particular.

Para fi nalizar este breve ensaio, importante afi r-mar que Direito Comum é Direito acessível a todos, Direito que não simpatiza com o “abuso do direito de legislar”. Lembrando Portalis, o Direito deve ser compreendido apenas como meio de comunicação entre “a lei e o povo” se o povo saiba ou possa saber que a lei existe e que existe como lei.

*Advogado. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do

Rio dos Sinos. Professor de Direito Internacional na FEEVALE

(Novo Hamburgo -RS, Brasil) e UNISINOS (São Leopoldo

– RS, Brasil).

Leandro de Mello Schmitt*

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Estado de Direito, maio e junho de 20098

Direitos Humanos: realidade ou discurso?

Falar em redução da importância das frontei-ras e em internacionalização crescente do nosso cotidiano chega a ser hoje um lugar-comum, um clichê que, por vezes, expressa muito pouco.

Às facilidades tecnológicas que nos permitem saber instantaneamente o que se passa em países distantes, acompanhar seu cotidiano (conhecer da situação do trânsito ao prato do dia no res-taurante ou a agenda cultural) e que deixam seus habitantes, longes no espaço, ao alcance de um toque no teclado, somam-se as intensas relações diplomáticas e comerciais, que tornam a convivência internacional uma intrincada malha social e econômica, em que um incidente na Rússia afeta diretamente a bolsa de valores em São Paulo, em interesses que se entrelaçam e, muitas vezes, se chocam.

Neste contexto, ganham força as obrigações que os países assumem publicamente, prome-tendo cumprir e defender um conjunto mínimo de valores comuns, que estabelecem mecanismos de proteção dos direitos humanos. São vários os tratados internacionais já assinados, cuidando de direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, proteção ao meio ambiente, tratamento adequado a refugiados, proibição de discriminação de gênero, raça ou credo e assim por diante.

O Brasil, cuja Constituição Federal solene-mente eleva a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento da própria existência republicana e que reafirma que a presença do país no cenário internacional tem a prevalência dos direitos humanos como um de seus prin-cípios, é signatário de vários destes tratados e aceitou expressamente a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Este gesto, pleno de significados simbólicos, demonstra a importância que o respeito aos direitos humanos assume em nosso dia-a-dia, permitindo que a comunidade internacional conheça de casos concretos onde o Estado brasileiro tenha descumprido os compromissos assumidos e violado direitos daqueles que vivem em território nacional.

Assim, deixar de garantir o direito à vida ou à saúde, não decidir em tempo adequado os casos que são levados ao Poder Judiciário, não investigar crimes, deixar impunes os autores de medidas lesivas aos direitos humanos são exemplos simples de situações que, acontecidas no Brasil, mesmo atingindo apenas brasileiros, podem gerar uma condenação internacional.

Esta condenação pode trazer várias conseqü-ências: expor o Brasil a censura internacional (re-conhecimento público de desrespeito aos direitos humanos), obrigar à reparação dos danos, tanto com o pagamento de indenizações em dinheiro, quanto com a especificação de obrigação de fazer (repor o estado anterior daquele cujo direito foi violado; adotar medidas públicas de reconhe-

cimento da falha estatal e adoção de políticas públicas para evitar a repetição do ato etc).

Como se sabe, no âmbito internacional os municípios, o Distrito Federal e os estados-mem-bros não tem capacidade de agir e assim como não podem assumir encargos (financiamentos, acordos, contratos etc), também não podem ser responsabilizados. Isso faz com que a punição internacional que decorra de atos imputados aos estados-membros (por ação ou omissão) recaia sobre o ente federal, como se deu, por exemplo, na condenação imposta pela Corte Interameri-cana de Direitos Humanos em razão da morte de Damião Ximenes Lopes, ocorrida no Ceará, em uma clínica médica privada, conveniada ao Sistema Único de Saúde, onde se internara para tratamento psiquiátrico.

A forma federativa, então, embora possa influir em determinados casos concretos, não poderá ser utilizada como escudo para evitar a punição internacional que decorra da violação dos direitos humanos.

Este quadro permite, então, af irmar a existência de, ao menos, um duplo reconheci-mento do interesse federal, que decorre quer da obrigação da União de implementar as regras constitucionais (e não é outro o motivo que pode levar à intervenção por violação aos princípios sensíveis, prevista no artigo 34, VII, “a”, da Constituição Federal), quer da necessidade de atribuir eficácia aos compromissos internacio-nais assumidos.

Não se trata, por certo, de extinguir a estru-tura federativa, mas, sim, de reconhecer o papel reservado à União.

E é exatamente nesta teia de relações que se insere o Incidente de Deslocamento de Competên-cia - IDC, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004, e que permite ao Procurador-Geral da República provocar o Superior Tribunal de Justiça para transferir, para a Justiça Federal, fatos que estejam submetidos ao Poder Judiciário Estadual.

Situações que, em regra, seriam de com-petência da Justiça Estadual, se observada a possibilidade de responsabilização internacional do Brasil por violação dos atos internacionais de proteção dos direitos humanos, poderão ser deslocadas para a Justiça Federal, desde que de-monstrada a necessidade de tal ato para efetivar a proteção que se busca.

Esta medida de força não implica, é bom ressaltar, a criação de um juízo de exceção ou uma condenação prévia daqueles que vierem a ser apontados como responsáveis pelo ato ilícito, uma vez que os fatos serão transferidos para o âmbito de atuação de um juiz federal previamente instituído, também dotado de todas as garantias da magistratura nacional, a quem também compete zelar pela ampla defesa e devido processo legal. A rigor, o deslocamento pode se dar até em benefício do acusado, liberan-do-o de um processo custoso e lento ou, ainda, direcionado a condená-lo.

Por ser medida excepcional, normalmente vista como um voto de desconfiança na estrutura de poder do estado-membro, o IDC deve, de fato, ser usado com ponderação, mas não pode ser visto como um jogo de força, pois, antes de tudo, é um instrumento capaz de ajudar na implementação dos direitos humanos, com um custo institucional muito inferior ao de uma intervenção federal e muito mais efetivo do que

o simples “empréstimo” temporário da Polícia Federal para a investigação de um crime.

Conhecer e tornar eficaz o IDC é, portanto, medida salutar, que pode tornar o debate sobre o respeito aos direitos humanos um assunto central na agenda pública brasileira, despindo a discussão de seu caráter meramente retórico e buscando uma efetiva capacidade de mudar a triste realidade que ainda nos cerca.

*Procurador da República. Diretor da ANPR – Associação

Nacional dos Procuradores da República. Mestre em

Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará.

Docente da ESMPU – Escola Superior do Ministério

Público da União. Autor do livro Direitos Humanos

e Federa l i smo: o Inc iden te de Des locamento de

Competência (Atlas, 2009)

Ubiratan Cazetta*

“... deixar impunes os autores

de medidas lesivas aos direitos

humanos são exemplos

simples de situações que,

acontecidas no Brasil, mesmo

atingindo apenas brasileiros,

podem gerar uma condenação

internacional.”

“... o Incidente de

Deslocamento de Competência

- IDC, introduzido pela Emenda

Constitucional 45/2004, e

que permite ao Procurador-

Geral da República provocar

o Superior Tribunal de Justiça

para transferir, para a Justiça

Federal, fatos que estejam

submetidos ao Poder Judiciário

Estadual.”

“A forma federativa, então,

embora possa influir em

determinados casos concretos,

não poderá ser utilizada como

escudo para evitar a punição

internacional...”

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Estado de Direito, maio e junho de 2009 9

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Page 10: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 200910

Completará vinte anos, em 09 de novembro de 2009, a queda do Muro de Berlim. A derruba-da das paredes e cercas de arame que separaram a Alemanha por vinte e oito anos, entretanto, pelo menos no que toca ao seu simbolismo, tem muito mais a ver com o soerguimento e a consolidação de relações políticas, econômicas e sociais que, emergindo no início da segunda metade do século XX, desestabilizaram concei-tos e maneiras de compreender o mundo que, até então, revelavam-se suficientes para que se pudesse saciar a curiosidade humana.

Tenho em vista, especialmente, a globaliza-ção, que, de acordo com ULRICH BECK (Poder y Contra-Poder en La era Global: la nueva economia política mundial, Paidós Estado y So-ciedad, 2004), abarca, simultaneamente, ideias de interconexão, de fluxos transfronteiriços e de superação de espaço e de tempo, assinalando uma transformação histórica de decomposição da modernidade ou, nas palavras de ALAIN TOURAINE (Crítica da Modernidade, 7ª ed., Vozes, 2002.), “de uma modernização endóge-na, do triunfo das luzes da razão e das leis da natureza”.

Concepções outras, no entanto, agregaram-se ao longo da década de noventa e do início do século XXI, contribuindo para uma elucidação do atual momento histórico.

Destaque-se a noção de risco que, para ULRICH BECK (World Risk Society, Blackwell Publishers, 2001), consubstancia “uma abor-dagem moderna para prever e controlar as futuras consequências da ação humana, as várias consequências não planejadas da modernização radicalizada. (...) uma tentativa institucionaliza-da, um mapa cognitivo, para colonizar o futuro.” Toda sociedade tem experimentado perigos, todavia, sustenta BECK, o regime de risco é uma função da nova ordem: não nacional, mas global. Intimamente conectado com um processo de tomada de decisão administrativo e técnico, “risco pressupõe decisão (…) previamente tomada com normas fixas de calculabilidade, conectando meios e fins ou causas e efeitos. Tais normas são precisamente o que a ‘sociedade de risco mundial’ invalidou. Tudo isso se tornou muito evidente com o seguro privado, talvez o melhor símbolo da calculabilidade e da seguran-ça alternativa – que não cobre desastre nuclear, nem mudanças climáticas e suas consequências, nem a quebra econômica da Ásia, nem o risco pouco-provável e de elevada-consequência das várias formas de tecnologia futura.”

Igualmente relevante se afigura a compreen-são das mudanças atinentes ao poder soberano,

que HARDT, M. e NEGRI, A. analisam sob a ideia diretiva de Império. Esclarecem os autores (Império, 6ª ed., Record, 2004) que se trata, atualmente, de atentar para um novo registro de autoridade que alcança toda a produção e reprodução da vida. O Império, dizem, “não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas (...) O conceito de Império caracteriza-se fundamen-talmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites. Antes e acima de tudo, portanto, o conceito de Império postula um regime que efetivamente abrange a totalidade do espaço, ou que de fato governa o mundo ‘civilizado’ (...) o Império se apresenta (...) como um regime sem fronteiras temporais, e, nesse sentido, fora da História ou no fim da História (...) O objeto de seu governo é a vida social como um todo e assim o Império se apre-senta como um paradigma de biopoder.”

Ideologia que se tem beneficiado da organi-zação Imperial – de certa forma sua gestora – é o neoliberalismo. Na medida em que o poder soberano se organiza de maneira difusa, em rede, e o mercado, principalmente na economia internacional, consegue mitigar a soberania dos Estados em determinados assuntos, espraia-se o discurso de que se tem de buscar, prepon-derantemente, a liberdade individual e a livre empresa. Aos Estados incumbe manter, como no

liberalismo clássico, a estrutura administrativa básica, garantindo, por exemplo, serviços públi-cos de base – água, saneamento e educação – a integridade da moeda e a segurança mediante utilização de recursos militares e ações de polícia. A intervenção direta na economia e no mercado deve ser evitada.

A um contexto assim, que denomino situ-ação de exceção permanente (CORVAL, P.R.S., Teoria Constitucional e Exceção Permanente, Juruá, 2009), evidentemente, não está imune a Constituição e a sua capacidade reguladora e integradora da realidade social: sua normativi-dade. Problemático é dizer se continua adequado o entendimento acerca da normatividade cons-titucional construído sob o influxo da teoria pós-1945.

Embora crítica no que toca ao isolamento entre realidade social e normatividade, a teoria pós-1945 caracteriza-se por justapor, lado a lado, esses elementos. Realidade e norma, aí, se condicionariam reciprocamente para atribuir à Constituição uma força própria motivadora e ordenadora da vida social.

Onde, contudo, semelhante força normativa num cenário político e econômico global-na-cional gerador de dominação, propagador de violência e contrário à criatividade constituinte do ser humano, que revela características se-melhantes àquelas encontradas em estados de exceção, emergência ou sítio da primeira metade

do século XX, nos quais os preceitos fixados na ordem jurídica, embora vigentes, não são efetivados e em que se reafirma a lógica da in-suficiência do regime democrático, a capacidade de a constituição regular a vida é, sem dúvida, ameaçada?

Nada melhor, portanto, do que buscar na ideia mesma de exceção – adjetivada, nos últimos tempos, pela permanência – categoria capaz de contribuir para o entendimento do fenômeno jurídico-político, em especial, do direito cons-titucional.

A exceção permanente encontra ponto de partida na doutrina sustentada por CARL SCHMITT – para quem, na exceção, o sujeito da soberania não está adstrito a um catálogo de competências, mas à decisão, subsistindo, toda-via, “em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem jurídica.” (Teologia Política, Del Rey, 2006) É consolidada, entretanto, numa perspectiva ideológica distinta, na formulação de GIORGIO AGAMBEN (Estado de Exceção, Boitempo, 2004), que, em apertada síntese, em harmonia com Walter Benjamin, postula ser a exceção, o momento político originário, um espaço vazio.

A relação entre norma e vida já não é de simples reciprocidade, mas de imanência: o dado normativo não é autônomo, estando, como numa linha paralela, em mera correspondência com a realidade. Em vez disso, a realidade social é, além de sua parte integrante, por ele também integrada, compondo um espaço de indiscerni-bilidade a exigir o exercício de uma violência pura, criadora, capaz de se viabilizar por meios não-jurídicos de entendimento.

Enquanto a normatividade autônoma pós-1945 pretende manter contato pleno com a realidade, mas, ao enfrentá-la, manifesta certa repugnância pelo que está diante de si e se isola na mera reciprocidade – almeja emanci-pação, conquistas pela sua capacidade regente, mas, confrontado com o real, transmuta-se em imobilidade – a normatividade, à luz da

exceção permanente, trata da criação/inscri-ção do âmbito de sua própria referência na vida social, de modo que a distinção entre normatividade e realidade perde sua razão de ser, emergindo espaços de solução de conflito não juridicizados.

Reestruturada, nessas linhas gerais, a norma-tividade constitucional, repercussões surgirão, sem dúvida, no que se refere ao entendimento da Constituição, dos direitos fundamentais, da hermenêutica constitucional e da atividade dos tribunais constitucionais.

Neste artigo, contudo, ponho em relevo apenas duas grandes diretivas que, acredito, emergem para a teoria constitucional do século XXI sob as lentes da exceção permanente: (i) a revalorização do processo histórica na com-preensão do fenômeno político constitucional e (ii) a ampliação do espaço destinado ao agir político.

A influência do processo histórico, ninguém ignora, encontra na teoria constitucional clássica e na teoria pós-1945 seu ponto de partida. Toda-via, na medida em que redimensionada a própria compreensão da tensão entre normatividade e vida não se poderá ler, de igual maneira, a influência do dado histórico. Bem adverte JOSÉ RIBAS VIEIRA que “em razão mesmo da grandeza desse denso fluir histórico, ao qual a constituição de forma constate defronta, não podemos, pro-vavelmente, reduzir as fronteiras do atual cons-titucionalismo somente a um esgotamento, por exemplo, do paradigma constitucional pós-45, a uma única variável explicativa seja a de caráter valorativo ou de matriz política.” (Perspectivas da teoria constitucional contemporânea, Lumen Juris, 2007)

Na óbvia referência da teoria pós-1945 ao processo histórico é luz externa para a compre-ensão do direito. Sob a categoria da exceção, em vez disso, por ele se sinaliza a insuficiência mesma das análises que se pretendem exclusi-vamente jurídicas no âmbito da teoria consti-tucional.

A ampliação do espaço destinado ao agir político decorre de se reconhecer uma zona de indiscernibilidade entre norma e realidade, em que não se afigura possível inscrever no registro jurídico a totalidade do fenômeno político-cons-titucional. Trata-se, grosso modo, de assumir que a conquistas e consolidação de direitos e valores perpassa, muito mais do que o âmbito de um dis-curso jurídico, em específico de direito constitu-cional, nosso agir político. Noutras palavras: a atribuição de direitos, de uma cidadania jurídica, por mais desejável que possa ser não é suficiente para viabilizar, qualitativamente, a emancipação e a conquista de “novos” direitos, a exemplo dos intermináveis debates concernentes aos direitos humanos sociais. É preciso explorar a potência destrutiva e constituinte da multidão que se espalha pelo globo para alcançar ou manter, em um nível que transcende a própria juridicidade, objetivos e conquistas que, em determinado momento histórico, no discurso constitucional estrito, não se mostra acessível.

*Mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio; Advogado;

Assessor na Procuradoria Regional da República – 2ª

Região/Ministério Público Federal; graduado em Direito

na PUC-Rio, 2004. Autor do livro “Teoria Constitucional

e Exceção Permanente - Uma Categoria para a Teoria

Constitucional no Século XXI” publicado pela Editora

Juruá.

Normatividade constitucional no século XXIPaulo Roberto dos Santos Corval*

“Aos Estados incumbe manter,

como no liberalismo clássico,

a estrutura administrativa

básica, garantindo, por

exemplo, serviços públicos de

base – água, saneamento e

educação...”

“A ampliação do espaço

destinado ao agir político

decorre de se reconhecer uma

zona de indiscernibilidade entre

norma e realidade, em que não

se afigura possível inscrever

no registro jurídico a totalidade

do fenômeno político-

constitucional.”

“... ponho em relevo apenas

duas grandes diretivas que,

acredito, emergem para a

teoria constitucional do século

XXI sob as lentes da exceção

permanente: (i) a revalorização

do processo histórica na

compreensão do fenômeno

político constitucional e (ii) a

ampliação do espaço destinado

ao agir político.”

“A relação entre norma e

vida já não é de simples

reciprocidade, mas de

imanência: o dado normativo

não é autônomo, estando,

como numa linha paralela, em

mera correspondência com a

realidade.”

Page 11: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 11

Já virou lugar comum dizer que a Constituição da República de 1988, vintenária no ano passado, resulta na mais perfeita expressão do pacto popular, representando a democracia brasileira após muitos anos de ditadura militar. Não é por outro motivo, aliás, que recebe o nome de Constituição Cidadã. Ao referendar o Estado Democrático de Direito, ela assegura o aprimoramento das instituições sob o apanágio das conquistas materializadas mediante a tutela das cláusulas pétreas, mecanismos respon-sáveis por proteger direitos fundamentais na sua mais essencial aptidão qualitativa.

Ocorre que uma das mais sintomáticas lições enraizadas nos manuais de direito constitucional – a supremacia e a força normativa do texto cons-titucional– vem sofrendo ramifi cações cuja espe-cifi cidade merece ser disseminada com profunda sobriedade à sociedade brasileira. Isto porque não basta a mera proclamação vazia de que o ordena-mento constitucional constitui o ápice das leis,

situando-se acima das demais normas jurídicas, devendo estas subordinarem-se hierarquicamente na conformidade dos conteúdos expostos na Lei Maior. A garantia da constitucionalidade dos atos normativos e dos comportamentos em geral ini-cia-se da própria interpretação da Magna Carta, quando ela mesma sofre o processo interpretativo concretizador da justiça que dali emana.

Daquela lição basilar de proeminência constitu-cional retumba a interpretação das leis de acordo com a Constituição. Em conseqüência, todas as leis, por exemplo, devem guardar conformidade com o acervo constitucional de conteúdos e procedimentos, o que implica sua regular formação e, mais importante, cor-respondente compatibilidade material (de conteúdo adequado aos ditames constitucionais). Nessa senda, ganhou realce a fi gura dos princípios constitucionais, através dos quais se permite não apenas declarar uma norma como inconstitucional, mas conferir-lhe inter-pretação em consonância aos expedientes axiológicos erigidos pelo Texto Maior.

Porém, e aqui enaltecemos o ponto nevrálgico da discussão, será que a própria Constituição merece ser interpretada de acordo com os critérios nela ditados? Nenhuma resposta no direito merece ser dada de antemão, sem o confronto com um caso concreto, exatamente pela inerência de ser a ciência jurídica descendente da razão prática. Há alguns meses o Supremo Tribunal Federal, a quem compete dizer o que a Constituição representa na sua vitalidade cotidiana, foi confrontado com uma situação bastante peculiar. Determinado político

fora processado perante instância privilegiada, de acordo com os ditames legais e, ao ser acossado pela iminência de julgamento, resolveu renunciar ao seu mandato. A questão posta no STF redun-da no seguinte: deve este tribunal adentrar no mérito da renúncia – claramente configuradora de manejo em prol da imediata procrastinação processual e de mediata impunidade do réu, tendo em vista que a remessa dos autos para a compe-tência ordinária implicará em inevitável extinção de punibilidade – ou simplesmente interpretar mecanicamente o artigo 53, §1º da Constituição? O respectivo artigo deduz, em conformidade aos julgamentos desta Corte, que deputados e sena-dores serão julgados pelo Tribunal de Cúpula, na constância de seu mandato. Uma vez desprovidos da condição de parlamentar, seja por qualquer motivo, dentre eles, a renúncia, a competência de julgamento é retomada pelas regras comuns de competência.

Parte dos Ministros do STF, em minoria, se inclinaram pela desconsideração da renúncia por qualificá-la nítido abuso de direito, propósito dia-metralmente contraditório a um alegado direito subjetivo de renunciar; neste sentido, remanes-ceria ao Tribunal a prerrogativa de julgar o réu. A tese vencedora, no entanto, preferiu – para usar do verbo corrente no caso – renunciar à análise do caso concreto em benefício, como consta da decisão, “do que ocorre normalmente”, sem se apegar a circunstâncias “extravagantes”.

Ora, uma das diretrizes primordiais da nossa

Constituição revela o desígnio pelo devido proces-so legal, nele consagrando a devida consideração das especifi cidades do caso concreto para efeito de se promover a justiça. Neste exemplo, o STF acatou verdadeira exegese do texto constitucional, ao simplesmente condecorar o sentido literal contido nas palavras de sua expressão, em vez de realizar adequada interpretação de acordo com os seus cânones mais elevados, como é o caso do princípio da moralidade, a informar que também as regras constitucionais merecem interpretação auto-refl exiva. Ao fi m e ao cabo, parece-nos, a interpretação mais recomendável seria aquela adotada pela minoria da Corte, ao fazer persistir a competência de o STF julgar aquele ex-político.

* Advogado, Professor Universitário, Mestre e Doutorando em

Direito pela UNISINOS

As normas constitucionais admitem interpretação?Mauricio Martins Reis*

“A garantia da

constitucionalidade dos

atos normativos e dos

comportamentos em

geral inicia-se da própria

interpretação da Magna

Carta...”

“... todas as leis, por

exemplo, devem guardar

conformidade com o acervo

constitucional de conteúdos e

procedimentos, o que implica

sua regular formação e, mais

importante, correspondente

compatibilidade material.”

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Estado de Direito, maio e junho de 200912

Uma pergunta sem resposta: afinal, quais são os direitos sucessórios da convivente?

Apesar de estarmos em 2009, o Brasil ainda está na idade das trevas quando o assunto em pauta é a proteção da família, entendida esta no sentido constitucional da expressão. Como em muitos outros aspectos, não temos um texto constitucional efi caz, uma norma suprema que conceda direitos e prerrogativas ao indivíduo.

O art. 226 § 3º da Constituição (que eleva a união estável ao status de entidade familiar) parece ter a mesma efi cácia do 7º, V (o salário mínimo será sufi ciente para atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família no que tange a moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social). Ninguém responde hoje com segurança e fi rmeza à seguinte pergunta: na prática, no formal de partilha, quais são os direitos sucessórios da convivente da união estável.

Só a título de curiosidade vale registrar que em 1940 (!) o art. 258 do Código Civil boliviano (escrito pelo jurista Angel Ossório) previu ao concubino supérstite direito hereditário idêntico ao do cônju-ge, numa regra tão justa quanto clara, eliminando quaisquer resquícios de dúvida.

Dentre os seis artigos que o Código brasileiro reservou para regulamentar a união estável está o famoso 1.790, talvez um dos piores artigos da his-tória jurídica de nosso país. Em síntese o dispositivo demarca o conjunto de bens nos quais a convivente herdará com o falecimento de seu parceiro. Esse local no qual a convivente concorrerá com os outros herdeiros do fi nado é exatamente a parte que coube ao falecido na meação dos bens comuns.

Explicando melhor: Reúne-se tudo o que o casal construiu ao longo de sua parceria de vida. Metade já pertence à convivente, afi nal, o regime é o da comunhão parcial de bens (levamos 112 anos de República para estabelecer esse regime sem ressalvas para a união estável). A outra metade pertencia, portanto, ao falecido. É nesta outra metade que a convivente herdará, segundo o artigo já citado.

O detalhe é que – se a hipótese fosse de casa-mento sob comunhão parcial – a esposa herdaria nos bens particulares do falecido marido (bens que

ele herdou, recebeu de doação ou mesmo comprou, mas antes de casar).

Neste ponto, cabe uma observação muito relevante. Não é sempre que o cônjuge herdará em melhores condições do que o companheiro. Imagine a hipótese em que há enorme prevalência de bens comuns e quantidade reduzida de bens particulares. Neste caso, concorrendo com um fi lho comum, o companheiro meará e depois herdará metade dos bens comuns, enquanto que o cônjuge nas mesmas condições apenas meará, fazendo a sucessão sobre os reduzidos bens particulares existentes.

Da maneira pela qual a lei estabelece, a con-vivente de união estável pode acabar tendo mais direitos do que a esposa em comunhão universal. Imagine que José e Maria se uniram no ano de 1970 e – como a imensa maioria da população brasileira – pouco herdaram, conquistando a maior parte do seu patrimônio durante a vida de casados. Tal enlace durou exatamente 39 anos, quando José falece. No momento do inventário, os bens parti-culares trazidos por José ao casamento limitam-se a poucos livros e um carro muito velho, ao passo que o patrimônio construído ao longo da vida do casal perfaz considerável soma em dinheiro liquido, além de dezenas de bens imóveis a garantir a renda da viúva. O casal teve dois fi lhos.

Se José e Maria tivessem se casado sob o regime da comunhão universal de bens, Maria não teria direitos sucessórios (a pessoa casada em comunhão universal não herda do cônjuge quando concorre com descendentes). Faria jus então à sua meação, levando 50% da grande massa patrimonial adquirida

na constância do casamento.Se o caso fosse de união estável, pela letra fria

da lei em vigor, Maria faria jus a 50% da meação e ainda herdaria sobre os outros 50%, concorrendo com seus dois fi lhos justamente na massa de bens mais volumosa, levando, portanto, uma maior quantidade de bens do que no primeiro caso.

Percebe-se, portanto, que vivemos hoje uma situação de convulsão legislativa. A lei ora parece conceder mais direitos aos cônjuges, ora pende radi-calmente para o lado da convivente, não se podendo responder ao certo – para efeitos sucessórios – qual é a melhor opção patrimonial: se o casamento ou a união estável.

O próprio STJ percebeu tal descompasso: “A diferença nas regras adotadas pelo código para um e outro regime gera profundas discrepâncias, che-gando a criar situações em que, do ponto de vista do direito das sucessões, é mais vantajoso não se casar” (MC 14.509/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 21/8/2008).

A Escola Paulista da Magistratura em curso reali-zado em 2006 proferiu a Conclusão n.º 1 a respeito da concorrência sucessória do convivente: “Afi gura-se inconstitucional a previsão do art. 1.790 do CC ao atribuir a participação do companheiro na sucessão em concorrência com os fi lhos sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência”.

Juízes de 1ª instância também têm decidido pela inconstitucionalidade do art. 1.790:“A regra inscrita no art. 1.790 do CC padece, realmente, do vício da inconstitucionalidade” (Processo n.º 03.092595-9, da 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central

de São Paulo).Porém, após afastar a incidência do artigo 1.790,

os magistrados devem se atentar para não deixar a convivente sem herança. Exclui-se o art. 1.790 e concede-se o quê? Nesse cenário parece que os princípios gerais do Direito indicam que o caminho adotado é mesmo o de se atribuir à convivente os mesmos direitos sucessórios da esposa casada em comunhão parcial, conforme a Bolívia já fez há quase setenta anos.

A conclusão que se chega é que no Brasil, o homicida – antes de praticar seu crime – tem informações claras a respeito das conseqüências do seu ato. Sabe com precisão qual a pena mínima e máxima que poderá sofrer, tem condições de conhecer os recursos que terá a sua disposição, as regras para o sursis, as normas sobre liberdade provisória etc.

Já a mulher que encontra seu parceiro de vida, que deseja com ele formar o núcleo básico da so-ciedade, com ingredientes de afeto, consideração, amor e respeito, auxiliando o Estado no ofereci-mento de pessoas educadas e bem criadas para o desenvolvimento de uma sociedade evoluída, não obtém respostas seguras a respeito das normas que pautarão sua vida familiar, especifi camente no que tange às conseqüências sucessórias desta união.

*Bacharel em Direito, Mestre e doutorando pela Faculdade

de Direito da USP. Entre os livros publicados pela Editora

Atlas destacamos “Medidas Provisórias: o Executivo que

legisla“, “Direito Civil: Sucessões - v. 9” e “Direito Civil:

Parte Geral - v. 3”

Gustavo Rene Nicolau*

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Estado de Direito, maio e junho de 2009 13

EntrevistaLei Fundamental AlemãO Professor Dieter Grimm (*) palestrou no dia 08 de abril, no Goethe-Institut Porto Alegre, na Conferên-cia Lei Fundamental da Alemanha 60 anos de conquistas, desafi os e perspectivas, nessa oportunidade o Jornal Estado de Direito registrou a entrevista. Confi ra!

Estado de Direito: Primeiramente, gostaría-mos que o senhor explicasse um pouco como funciona o ingresso na Magistratura alemã, considerando também sua atuação como Magistrado do Tribunal Constitucional Federal Alemão?

Dieter Grimm: Existe uma diferenciação entre um Juiz que atua na Jurisdição ordinária e os Juízes do Tribunal Constitucional, em termos de ingresso. Um juiz de carreira (togado) é no-meado de acordo com a sua qualidade e seus conhecimentos pelo Ministério da Justiça, com base nas notas auferidas nas provas realizadas pelos diversos estados da federação e que asseguram o acesso às carreiras jurídicas, exi-gindo uma nota mínima para os que pretendem ingressar na Magistratura, sendo chamados de acordo com as vagas disponibilizadas. Já o Juiz do Tribunal Constitucional é eleito. Metade dos juízes do Tribunal Constitucional é eleita por uma das casas do Parlamento e metade pela outra casa, sendo o mandato de doze anos. O entrevistado considera esta uma boa regra, pois além de ter que ser escolhido por uma das casas do Parlamento, a eleição se dá pela maioria qualificada de dois terços, o que significa que esse juiz vai ter que ter um apoio de pelo menos dois partidos majoritários, o que impede que seja escolhida uma pessoa que tenha posições extremadas. Isso não significa que um juiz que não pertença a um determinado partido político vá ser preterido, mas é uma boa regra na escolha dos juízes.

ED: O Senhor poderia fazer um balanço sobre os 60 anos da lei fundamental alemã ao longo de sua trajetória existencial, especialmen-te sobre a sua força normativa e receptividade pela população?

DG: Ele acredita que a atual Constituição Alemã, a Lei Fundamental de 1949 , é a mais im-portante da Alemanha até agora, por pelo menos quatro motivos. 1. Num primeiro sentido, temos uma questão temporal, visto que a Constituição de 1848, do Império, durou 47 anos, a Cons-tituição de Weimar, por 17 anos, ao passo que a Lei Fundamental de 1949 completa 60 anos agora em maio. 2. Em segundo lugar é uma questão de relevância. As pessoas vislumbram na Constituição uma obra de significado para as suas vidas, pois a Constituição tem peso nas suas escolhas e elas se identificam com a sua Constituição, o que está fortemente vinculada à criação e ao papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional, no que diz com a proteção e desenvolvimento do direito constitucional, bem como com a formação, na Alemanha, do assim designado “patriotismo constitucional”. 3. Um terceiro fator, vinculado à identificação do indivíduo com a Lei Fundamental, reside na possibilidade de qualquer pessoa, sempre que estiver diante de uma suposta violação a direito fundamental, pode ajuizar diretamente uma reclamação constitucional sem qualquer cus-to, buscando um pronunciamento do Tribunal Constitucional. 4. Em quarto lugar porque essa Lei Fundamental serviu de exemplo também para diversas outras Constituições que foram elaboradas após 1949.

ED: A Lei Fundamental define a Alemanha como um Estado Social. Qual a razão dessa opção e não a de positivar direitos sociais, econômicos e culturais?

DG: O professor acredita que há especial-mente dois motivos pelos quais não foram positivados os direitos fundamentais sociais. Primeiro, porque a experiência anterior que eles tinham era a experiência da Constituição de Weimar, que sobre esse aspecto, apesar de ter positivado direitos fundamentais sociais, não teve sucesso. Sendo eles considerados de menor importância, sua força normativa não foi desenvolvida e assim eram tidos como meras declarações políticas, destituídas de vinculatividade. A partir daí, a idéia era não repetir essa tentativa de positivar direitos fun-damentais sociais.

A segunda razão, que é a mais importante, é que no Conselho Constituinte havia certa polarização política entre Liberais e Social-Democratas. Ambos os lados tinham mais ou menos a mesma força e isso fez com que nenhum conseguisse estabelecer - os Liberais a ausência total de normas sociais e os Sociais Democratas a positivação mais ampla dos direitos sociais – predominantemente seus interesses. Dada essa igualdade de forças, o compromisso entre os dois lados foi alcançado justamente na figura dessa norma que institui o Estado Alemão como um Estado Social, apesar de a Lei Fundamental não positivar direitos sociais propriamente ditos.

ED: Quais os mecanismos de controle de constitucionalidade das leis alemãs?

DG: O entrevistado refere novamente que foi precisamente com a Lei Fundamental de 1949 que, pela primeira vez na historia da Alemanha, foi estabelecida uma Corte Constitucional, já que isso não foi previsto nas Constituições anteriores e essa Corte tem amplos poderes para justamente analisar a constitucionalidade de atos do governo. Isso foi um reflexo da ex-periência com o nazismo, um período durante qual praticamente não se ligava para a lei, não havia qualquer controle dos atos do governo, seja do Poder Executivo, seja do Poder Legis-lativo, razão pela qual se previu uma eficiente Jurisdição Constitucional, representada pelo Tribunal Constitucional Federal, que decide de cinco a seis mil casos por ano.

ED: Para a tutela dos direitos fundamentais a população conta com a “queixa ou reclamação constitucional”. Como funciona esse procedi-mento e qual tem sido seu papel efetivo para o desenvolvimento, proteção e promoção dos direitos fundamentais?

DG: No que tange à Reclamação Constitu-cional (Verfassungsbeschwerde), o entrevista-do asseverou que qualquer pessoa pode trazer uma demanda perante a Corte, designadamente nos casos de violações de direitos fundamen-tais por parte do Estado. Isso significa que não são apenas cidadãos alemães que podem ajuizar essa reclamação, mas também estran-geiros que estejam na Alemanha no momento da violação. Claro que há algumas condições para o uso da Reclamação Constitucional.

O primeiro, dentre os mais importantes, é a exaustão dos outros meios para a cessação dessa violação, ou seja, as instâncias inferiores da Jurisdição devem ser acessadas antes de se recorrer ao Tribunal Constitucional. Também há o limite temporal de quatro semanas, ou seja, até quatro semanas após o ato que violou ou supostamente violou um direito é que é possível ingressar com a Reclamação. O entrevistado reiterou que desses cinco a seis mil casos que a Corte julga anualmente, em torno de 95% são sobre casos individuais. Quando se trata de casos mais relevantes, as decisões são tomadas pelo Plenário da Corte, ao passo que nos demais casos a decisão é afeta a um cole-giado composto por três Juízes. Precisamente o fato de que qualquer pessoa pode fazer essa Reclamação Constitucional contribui para o alto respeito que os alemães têm pela Corte Constitucional.

ED: O Princípio da Proporcionalidade tem sua origem na Alemanha? A sua aplicação na jurisprudência constitucional alemã diverge muito da de outros países, como é o caso dos Estados Unidos?

DG: De fato, a origem do Princípio da Pro-porcionalidade é alemã. Ele surgiu no direito administrativo, no século XIX, em questões vin-culadas ao direito de polícia. Apenas em 1950 é que a Corte Constitucional passou a utilizar o princípio, tornando-se ele em um princípio de direito constitucional. O princípio é usado pela Corte Constitucional sempre que está envolvida a limitação de direitos fundamentais pela lei, ou seja, a questão é sempre determinar se a restrição que é feita de um direito fundamental é proporcional ou não. Além disso, é feito também um teste de proporcionalidade dos atos do Executivo que aplicam as leis. É uma aplicação de dois tempos: primeiro verifica-se se a lei é proporcional na sua limitação que faz dos direitos fundamentais e, no segundo momento, se o ato que aplica aquela lei tam-bém é proporcional. O entrevistado acredita que os direitos fundamentais na Alemanha são protegidos justamente pelo Princípio da Proporcionalidade.

ED: Como se dá a relação entre o Tribunal Constitucional e os demais Órgãos Estatais?

DG: A Corte Constitucional Alemã na ver-dade é um órgão muito poderoso, justamente por essa ampla prerrogativa de controle cons-titucional. O que acontece então é que diversos atos do governo, bem como algumas decisões de instâncias inferiores da jurisdição, são decla-rados inconstitucionais. Isso significa que por vezes os outros poderes são tolhidos nos seus interesses e nas suas intenções e nem sempre gostam disso. Neste contexto, o entrevistado frisa desconhecer situação na qual a Corte foi desobedecida, o que se deve principalmente ao grande apoio popular do qual goza a Corte Constitucional. Ou seja, como a população apóia a Corte o custo político, para os partidos políticos e para órgãos dos três Poderes, no sentido de não cumprirem uma decisão ema-nada pela Corte, seria muito grande.

ED: Para finalizar, o senhor poderia falar

sobre o que significa o Estado de Direito na sua concepção e qual a contribuição alemã e da Lei Fundamental para a afirmação e compreensão de tal modelo?

DG: O mais básico de tudo é justamente a idéia de que ele consagra o império da lei, isso é, assegurar que a forma de exercício do poder político esteja em conformidade com a lei. Disso resultam pelo menos quatro aspectos a considerar: a) que o próprio Estado do qual emanam as leis, e não apenas os indivíduos, está submetido a essas leis; b) que todos aqueles atos estatais que submetem o cidadão a fazer ou deixar de fazer alguma coisa emanam da lei, o que, para o entrevistado, é justamente o contrário do império do arbítrio; c) Outro aspecto relevante é que tudo depende então de existir a lei, o que significa que algumas coisas precisam ser reguladas, como por exemplo, a proteção de diversos direitos. A regulação pelo legislador, por sua vez, não assegura por si só um conteúdo legítimo e justo às leis, de tal sorte que são necessárias garantias de conteúdo dessas leis, para que elas sejam justas, ou seja, que haja respeito dos direitos fundamentais no que tange ao conteúdo da lei; d) O quarto as-pecto seria que o Estado de Direito não funciona sozinho: as instituições muitas vezes sentem-se inclinadas a não cumprir a lei (o que inclui a Constituição) o que significa que é necessário que haja órgãos de controle. É neste plano que assume importância a Corte Constitucional.

Para este controle ser realmente efetivo, para garantir o Estado de Direito, é necessário que não só a jurisdição como um todo, mas especialmente a Corte Constitucional seja inde-pendente em relação aos demais poderes.

(*) Catedrático Emérito da Universidade de Humboldt de Berlim,

membro da New York University School of Law, Professor

Visitante de Direito (Georges Lurcy Visiting Professor of Law) da

Yale Law School e Professor Visitante no Programa “International

Legal Studies Courses und Reading Groups” (2008-2009)

da Harvard Law School. Foi Professor na Universidade de

Bielefeld, no Instituto Max-Planck de História do Direito

Europeu de Frankfurt, além de Professor e Reitor (2001-2007)

do Instituto de Estudos Avançados (Wissenschaftskolleg) de

Berlim, e Magistrado do Tribunal Constitucional Federal Alemão

(1987-1999). Tradução: Ivar Alberto M. Hartmann. Revisão da

tradução: Ingo Wolfgang Sarlet

CARLO

S BA

ILO

N

especial

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Estado de Direito, maio e junho de 200914

Àqueles a que tudo julgam, a que tudo estarão a julgar?

Chega 2009 e um tema se mantém na pauta. A Reforma do Judiciário (ao lado da constante reforma processual) ocupa a mente de juristas, juízes, advo-gados, políticos, jornalistas e deveria estar na mira de todo o brasileiro preocupado com os rumos da cidadania, como um bonus pater familias, cuja casa esteja (constantemente) em obras. Não obstante a importância da horizontalidade do respectivo de-bate, o que nos ocupa por ora é o rumo que toma a verticalização do tema na Imprensa, no Legislativo e dentro do Poder Judiciário, no contexto da Sociedade do Espetáculo, pulsante na esfera pública.

No ano que encerrou, 2008, a jovem Consti-tuição Federal festejava seus vinte anos e a idosa codifi cação civil os seus cinco anos no Brasil. Dentre os muitos eventos dedicados aos aniversários, eu destacaria um momento em específi co. Na abertura do Congresso da OAB, dedicado ao Código, onde tive a honra de ladear o ilustre amigo, Prof. Antonio Junqueira de Azevedo (USP), seguindo à sua fala. Disse assim, o preclaro doutrinador paulista, como arauto do evento: “Nunca se viu, na sociedade bra-sileira, tão grande fuga do Poder Judiciário, como nesses cinco anos de vigência do Código Civil. A sociedade está fugindo do Judiciário. Exemplo disso é o crescimento dos juízos de conciliação e das cortes de arbitragem.” A fala seguinte, coube a mim. Disse eu, no momento vestibular de minha conferência: “Nunca se viu, na história desses muitos brasis, uma acorrida tão grande ao Poder Judiciário, como nesses vinte anos de vigência da Carta. À luz da edifi cação de uma Estado Social, no desenvolvimento de sua imanente cidadania, o povo, para bem além de suas elites, inicia paulatinamente à acessar o Judiciário. Em detrimento de juízos excepcionais, não raro dirigidos pela mais diversa forma de criminalidade. Onde não houver Estado, alguém ocupará seu papel.”

Destaque maior vai para o fato de que não há divergência alguma entre minha conferência e a do Prof. Junqueira. Apenas estavamos a falar de brasis distintos, dentre os muitos brasis que se abrigam no “território real” (?) dentro do “mundo real”. Em um deles, de mega-corporações e empreendimentos, essa fuga é uma evidência; porém no Brasil-favela, irredu-tível a fórmulas em seus paradoxos, uma mudança no sentido contrário se pôs em curso. Mesmo que fosse em um “horário diferido”, com um algo “fora de expediente”, então chamado “Juizado de Pequenas

Causas”, certas camadas da população passaram a acessar espaços de cidadania que não lhes eram permitidos. Destaque-se o esforço em prol do cha-mado acesso à justiça, corporifi cado em especial nas Defensorias Públicas que se espalham nas unidades da federação; onde, vergonhosamente, o estado de SC até hoje não o implementou, negando realização de direitos fundamentais de muitas comunidades necessitadas.

Ocorre que, precedentemente a qualquer dis-cussão sobre acesso à justiça, deve-se ter uma sólida noção do que tomamos por Jurisdição e, sem dúvida relevante perquirir na contemporaneidade nacional, o que percebe-se como um mínimo jurisdicional necessário. Afi nal, ao vetar a auto-tutela dos direitos subjetivos pelos particulares, o Poder Público atrai para si um dever de prestar uma adequada juris-dição aos respectivos direitos. Ou seja, um dever de jurisdicionar minimamente e com efi cácia os direitos subjetivos de seus administrados, adequando procedimentos e ritos à singularidade das lides que aportam diariamente nos foros e tribunais. De modo indisponível.

É nesse contexto que gostaria de proceder alguns destaques que viabilizem uma crítica, quiçá útil, aos rumos da discussão das muitas reformas pensadas em torno do processo e do Judiciário. Principalmente para não corrermos o risco de reduzir a discussão à tematização, mormente em torno da efi ciência, de números e resultados; mera expressão da percepção do drama processual das partes como um número lançado à capa dos autos.

Nesse contexto, importante destaque vai para as diversas manifestações e a crescente simpatia para com as iniciativas conciliatórias. Em 2008 chegou-se a ver em solo nacional, mutirões em unidades da federação, não sem aplauso da Presidência do STF; fato certamente indicativo de uma tendência. Na imprensa as respectivas autoridades emolduram tais iniciativas sinalizando com a impossibilidade de ins-truir-se e julgar tantos processos. Perceba-se o quanto isso é chocante. Não a afi rmação, propriamente, mas como ela passou em branco. Certamente dissesse o Ministro da Saúde, em meio à uma suposta ou afi rmada crise do sistema de saúde, que o problema do setor decorreria do excesso de doentes no Brasil, estaria sendo indagado do sentido de suas palavras. Já o Judiciário parece ter certas prerrogativas decor-

rentes do hermetismo jurídico; não raro úteis para o silêncio do espaço público. Desse modo percebe-se o quanto é forçado um acordo nos processos, com diversas marcações de audiências conciliatórias, não raro ancoradas em risíveis (quando não trágicas) tentativas quase coativas de não se instruir os feitos. Bom para todos... Quais todos ??? Talvez àqueles que acusem os recursos como vilões procrastinatórios. Serão eles que retiram efetividade do processo ao suspender seu trâmite ? Para isso, o efeito suspensivo deveria ser regra na esfera recursal... Mas não é... Não obstante, distribuída uma separação, esta, antes de qualquer apreciação irá, no estado do RS, para o Projeto Conciliação. Somente após começar-se-á a discutir seu mérito... Depois de quanto tempo ??? E se houver alguma urgência nesse ínterim, com a alteração do estado fático do objeto litigioso ?? Implementa-se a tipologia do atentado. Quem vai apreciar a respectiva cautelar ? O Projeto Concilia-ção ??? E a dependência por conexão que resulta no apensamento ?? Basta explicar ao Juiz e apressar o Cartório para desapensar, não é ?? Quanto tempo terá passado ??? Como apreciar a cautelar em dependência (ou seja, não preparatória, incidental) sem os autos principais ?

Perceba-se o quanto da credibilidade da De-mocracia é posta em risco com tal aposta da admi-nistração da Justiça e regulação do processo. Nesse passo, importa perquirir se alguém ousaria apontar a realidade processual trabalhista como exemplo de efetividade processual, no contexto brasileiro. Qual a efi cácia, portanto, da problemática unifi cação do processo de conhecimento com o de execução, no último conjunto de reformas do processo civil? O procedimento mudou ?? Tudo virou uma grande monitória ??? Aumentou-se a efetividade do processo civil ???? Já iniciativas como juizados especiais intine-rantes existentes em regiões mais pobres, ou ainda a iniciativa manauara do Juizado Especial de Trânsito, onde um pequeno cartório e sala de audiências circula em um veículo e julga in loco os respectivos litígios, fi cam fora do foco dos “diálogos”. Parece-me, estas últimas experiências, estarem muito mais próximas de iniciativas em prol da efetividade do processo do que as demais. Não obstante, o que comparece ao espaço público para um monólogo acéfalo, parece o contrário. E isso é muito signifi cativo.

Voltemos, pois, aos recursos (sem trocadilhos).

Direito, ao fi m e ao cabo, lida com valores, de modo a trazer a subjetividade qual sua sombra (em verdade sua luz). Isso é fato (o que também é valor) irretor-quível, mesmo quando negado nas teorias apegadas ao fetiche da neutralidade. Neutralidade de todos !! Sistema, Juiz, Legislador... Isso quando a própria teoria é o elemento de menor neutralidade, dentre os players metafisicamente privilegiados. Temas recorrentes podem revelar problemas recorrentes. Aqui não se vislumbra exceção. Por trás de tudo, o outro. “O inferno são os outros”, já disse Sartre, mesmo “entre quatro paredes”. Diferença. Alteridade. O outro.

Não há processo sem o outro; não havendo Direito sem alteridade. Essa frase tem implica-ções carentes de serem razoavelmente exploradas nos limites de um editorial; mas revela amplas possibilidades de investigar o tema em liça. Até porque tratar a reforma do Processo é tratar de alteridade. De mudança... Ou não... Como se trata também, especifi camente no recurso. Reformar... Ou não... Simulacro. Paradoxalmente, processo é representação e, portanto, sempre mapa; nunca território. Assim perceberia Boudrillard. Os atores (ou fantoches) processuais, estão imersos na Matrix. Em alguma medida, demandar é adormecer. Sonhar com conceitos e embalar pretensões.

A norma é a inimiga da alteridade, sempre que tomada no paradigma tradicional. De outra banda, ela também é a própria afi rmação dessa alteridade. Normaliza-se, e portanto normatiza-se, somente o que oscila. Nunca o que é estático ou sem relativos. Sem relatividade não há medida. Rule... Sem relati-vidade, qualquer medida é desmedida... Qualquer verdade é desmentida...

E sequer chegamos a tocar no tema recursal... Tal-vez como um recurso retórico... Talvez não... O tema merece editorial próprio. Até lá... Sem recurso...

* Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1992),

mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul (1998) e doutorado em Direito pela

Universidade Federal do Paraná (2000). Atualmente é professor

titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,

profissional liberal - Ricardo Aronne Advocacia e Consultoria

Jurídica, professor convidado da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul.

Ricardo Aronne*Interrogações sobre Direito Processual e Simulacro na Sociedade do Espetáculo

LUIZ

SIL

VEIR

A -S

CO-

STF

Page 15: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 15

A Invalidade no Direito Processual Civil:uma definição fundamental

A refl exão acerca dos institutos jurídicos deve ser realizada a fi m de que se obtenham conceitos fi dedig-nos com a realidade, evitando, assim, a confusão entre fenômenos distintos. Com essa preocupação, busca-se atingir a maior precisão possível em tais defi nições, facilitando, dessa forma, o estudo do tema, e, principal-mente, a aplicação do direito no caso concreto.

No que tange às invalidades processuais, a formu-lação de um conceito que seja capaz de demonstrar suas características principais é fundamental para evitar confusões passíveis de trazerem repercussões altamente negativas para a condução do processo. Nunca é demais ressaltar que poucos institutos do Direito Processual Civil repercutem tanto na realização dos valores constitucionais da segurança e da efetividade como o das invalidades. O equilíbrio entre tais valores, grande meta a ser atingida na condução do processo, é alcançado, em grande parte, por meio de um bom manuseio do instituto das invalidades. Ao contrário, a percepção equivocada do que vem a ser realmente uma invalidade processual pode fazer com que o processo seja demasiadamente inseguro ou, ao contrário, pouco efetivo, comprometendo, irremediavelmente, a justiça do caso.

A essência da invalidade é de sanção aplicada pelo órgão julgador quando diante de ato processual

praticado em desconformidade com o ordenamento ju-rídico interpretado sistematicamente diante de um caso concreto. A invalidade, desse modo, não se confunde com o vício que o ato processual apresenta. Enquanto não aplicada a sanção, o ato, por mais defeituoso que seja, continuará produzindo efeitos. Uma decisão interlocutória que, por exemplo, antecipa a tutela em ação de alimentos sem apresentar uma linha sequer de fundamentação produzirá efeitos, compelindo o demandado a cumpri-la até que o tribunal, apreciando o agravo de instrumento interposto, venha a aplicar a sanção de invalidade gerada pela falta de motivação. A invalidade é, portanto, um acontecimento que surge em momento posterior ao vício, e não concomitante-mente a ele.

Uma sanção, por sua vez, pode se apresentar de di-versas formas. Por exemplo: no Direito Penal, a sanção, no mais das vezes, tem a forma de restrição da liberdade do condenado; No Direito Administrativo, a sanção aplicada contra o funcionário público infrator é, muitas vezes, de perda do cargo; No Direito Tributário, a sanção pelo não recolhimento do tributo apresenta-se, geral-mente, como uma multa lançada contra o contribuinte. Especifi camente no que se refere à sanção de invalidade, tem-se que revela a característica de interferir nos efeitos jurídicos do ato processual considerado inválido. Ou

seja, a invalidade apresenta-se (forma) como uma sanção que retira (parcial ou totalmente; retroativamente ou não) os efeitos jurídicos do ato processual sancionado. Essa é a forma da sanção de invalidade.

Já a causa efi ciente da invalidade é exatamente a decisão judicial. Não há falar em invalidade processual antes do decreto judicial. Antes disso poderá existir uma pretensão de que determinado ato seja invalidado, mas invalidade ainda não. Por isso que invalidade se decreta e não simplesmente se declara. O que faz nascer a invalidade é exatamente a decisão judicial que aplica a sanção, ou, em outras palavras: a ação transformadora que efetivamente faz com que a invalidade passe a existir no mundo jurídico é o pronunciamento específi co do Poder Judiciário nesse sentido.

É um equívoco, nesses termos, afi rmar que as partes seriam as causadoras das invalidades processuais. As partes podem, no máximo, dar causa aos atos atípicos (viciados) que, por força de determinação judicial específi ca, serão anulados.

Por fi m, cumpre explicitar qual a fi nalidade da sanção de invalidade, isto é, qual a principal razão pela qual determinado ato processual é sancionado. Essa fi -nalidade não pode ser outra senão a de conferir primazia ao valor segurança jurídica diante das circunstâncias do caso concreto. Quando se decreta a invalidade de

determinado ato do procedimento se está, de forma absolutamente inexorável, buscando retomar a previ-sibilidade perdida com a prática do ato atípico. Dito de outro modo: o órgão judicial, ao decretar a invalidade, está reconhecendo que o processo não pode tolerar o vício constatado, porquanto estaria a segurança jurídica demasiadamente prejudicada em prol da efetividade (o antagonismo entre segurança e efetividade é constante no processo). Essa é a fi nalidade maior da sanção de invalidade: promover o valor segurança jurídica. Essa consideração é fundamental para dar sentido ao instituto e, com isso, orientar o raciocínio judicial a ser elaborado no caso concreto.

Em síntese: a invalidade processual pode ser conce-bida como uma sanção constituída por meio de decisão judicial, caracterizada por ter a aptidão de retirar os efeitos jurídicos do ato processual considerado inválido, com a fi nalidade de fazer prevalecer, no caso concreto, o princípio da segurança jurídica em detrimento da efetividade do processo.

*Mestre em Direito pela UFRGS, Professor do Centro Universitário

Feevale; Professor da Escola Superior de Direito Municipal - ESDM

(POA) e da Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul

- FMP. Procurador do Município de Porto Alegre. Advogado em

Porto Alegre e Brasília.

Alexandre Salgado Marder*

Sobre a repercussão geral e seus reflexos nos processos coletivos

Defi nidos os direitos que se podem veicular nas ações coletivas, cumpre-nos enfrentar a questão da aplicabilidade da disciplina legal instituída pela Lei 11.418, de 19 de dezembro de 2006 (CPC, arts. 543-A e 543-B), aos processos que versam sobre os direitos coletivos lato sensu.

Da conceituação acima exposta deduz-se facil-mente que os direitos coletivos, pela própria natureza (difusos e coletivos stricto sensu) ou pela homogenei-dade que permite a busca da tutela coletiva (direitos individuais homogêneos), geram questões constitu-cionais ‘de repercussão geral’. Nas ações coletivas em que se discute, por exemplo, saúde e educação, há evidente relevância social. Além da relevância social, há relevância econômica nas demandas coletivas que versam, por exemplo, sobre moradia ou serviços pú-blicos de telefonia. Em suma, nos processos coletivos, há relevância que transcende o caso concreto - repita-se - não apenas pela natureza do direito tutelado, mas pela circunstância de suas decisões versarem sobre direitos que, mesmo não sendo públicos, no sentido tradicional desse vocábulo, pertencem a muitas pessoas ou, até mesmo, a toda a sociedade.

Por essas razões - como já defendeu um dos autores deste texto -, entendemos que o requisito da repercussão geral da questão constitucional deve ser pressuposto nas ações coletivas, pelo simples fato de serem coletivas. Em outras palavras, os recursos extra-ordinários deverão ser selecionados para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal simplesmente porque contidos em demandas de natureza coletiva.

Sobre o tema da repercussão geral em ações

coletivas, é interessante a opinião de Bruno Dantas, que estabelece distinção entre as dimensões objetiva e subjetiva desse requisito. Segundo o autor, algumas matérias seriam hábeis a causar impacto indireto em determinados grupos sociais, ou em toda a sociedade. Haveria, nesses casos, objetivamente repercussão geral. Na dimensão subjetiva, haveria de se perquirir qual o seguimento social a ser atingido pela decisão do recurso extraordinário - e não a matéria propriamente dita -, para aferir se a questão constitucional é ou não, subjetivamente, de repercussão geral. Haveria reper-cussão geral se a decisão atingisse toda a sociedade ou um “grupo social relevante”.

Nessa ordem de idéias, Bruno Dantas afi rma que os direitos difusos gerariam, na dimensão objetiva, questões de repercussão geral. Explica o autor: “(...) algumas matérias, como a interpretação e a aplicação dos princípios constitucionais sensíveis, dos direitos fundamentais e dos princípios norteadores da ordem social, terão a repercussão geral de forma imanente em seu conteúdo. (...) No mesmo sentido, por defi nição, as ações coletivas cujo objeto seja a tutela de direitos difusos, em sua quase totalidade, serão dotadas de repercussão geral”.

No que diz respeito aos direitos coletivos stricto sensu e aos direitos individuais homogêneos, Bruno Dantas sustenta que as questões constitucionais devem ser analisadas na dimensão subjetiva, para verifi car-se a existência ou não de repercussão geral. Quanto aos direitos coletivos, afi rma o autor: “(...) embora sejam indivisíveis, seus titulares são membros de grupo, classe ou categoria; acreditamos que essa determina-

bilidade, por si só, é sufi ciente para deslocar o foco da repercussão geral da dimensão objetiva para a subjeti-va. Em outras palavras, a caracterização da repercussão dependerá do grupo social relevante, e não da questão debatida”. E, no tocante aos direitos individuais ho-mogêneos, aplica o mesmo raciocínio, afi rmando que, em razão de sua característica central, a divisibilidade, por serem seus titulares identifi cáveis, deve-se analisar a existência, ou não, da repercussão geral, a partir do olhar subjetivo, e não do enfoque objetivo, isto é, da matéria trazida no recurso extraordinário.

Em nosso sentir, com todo o respeito, não haverá que se fazer essa distinção na aferição da repercussão geral das questões constitucionais versadas em recursos extraordinários interpostos em ações coletivas. Deve ser pressuposta a repercussão geral nas demandas coletivas, como já dissemos, independentemente de os direitos nelas veiculados serem difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Em verdade, nos valendo da expressão de Bruno Dantas, mas entendendo diferentemente do que sustenta este autor, sempre que se tratar de direi-tos coletivos lato sensu, a análise da repercussão geral deve ser feita em sua dimensão objetiva. Para nós, em se tratando de direitos transindividuais, haveria uma espécie de ‘eleição prévia’, pela própria coletividade, de matérias prioritárias em cada momento histórico. Se assim não fosse, entendemos que a matéria, antes de se questionar a existência ou não de repercussão geral, não poderia nem mesmo ser tratada coletivamente, ou seja, no âmbito de ações coletivas.

Em suma, para nós seria possível fazer uma co-nexão conceitual entre a repercussão geral e qualquer

das espécies de direitos coletivos lato sensu, e não apenas com os direitos difusos, como na opinião de Bruno Dantas. Entendemos que, em qualquer desses direitos - inclusive nos individuais homogêneos, pela possibilidade de sua defesa em juízo se dar coletiva-mente -, é imanente a repercussão geral.

Mas, mesmo pressuposta a repercussão geral nas ações coletivas, lembramos que somente os recursos extraordinários em que tenha sido apresentada a preliminar de repercussão geral poderão ser objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal (art. 543-A, §2º). Essa regra também se verifi ca no art. 327 do Re-gimento Interno do Supremo Tribunal Federal (com a redação dada pela Emenda Regimental n. 21, de 2007), que determina a recusa, pela Presidência do Tribunal, dos recursos que não apresentem preliminar “formal e fundamentada” da repercussão geral.

Cumprida a exigência de se apresentar a prelimi-nar de repercussão geral, esta deve analisada objeti-vamente nas ações coletivas, portanto, concluindo-se que, pelo simples fato de os direitos nelas invocados transcenderem o interesse dos litigantes, a repercussão geral da questão constitucional é inafastável.

*Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UEL.

Professor no curso de mestrado em Direito da Unaerp e no

curso de especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP.

Membro do IBDP. Advogado.**Doutora em Direito pela PUC/

SP. Mestre em Direito pela PUC/PR. Professora no curso de

mestrado em Direito da Unaerp, no curso de especialização em

Direito Processual Civil da PUC/SP e nos cursos de graduação

e pós-graduação em Direito da PUC/PR. Advogada.

Luiz Rodrigues Wambier* Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos**

Page 16: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 200916

Para fi ns práticos e jurídicos é fundamental dis-tinguir essas duas fases da formação dos contratos. O período de formação da vontade contratual pode ser mais ou menos longo. O contrato pode ser concluído instantaneamente, fi cando quase imperceptível, ou inexistindo uma fase preliminar. Contudo, não é o mais comum nos contratos de mais elaborados. Geralmente, os contratos com maior complexidade exigem uma troca normal de tratativas e negociação. Essa fase de tratativas será tanto mais longa e complexa quando no futuro contrato existir um interesse econômico relevante, um conteúdo complexo, a observância de determinada forma imposta pela lei ou pelas partes etc. É a fase também conhecida por negociações ou pontuações.

Essas tratativas ocorrem na presença ou na ausên-cia das partes, conforme defi ne o ordenamento, bem

como por meio de representantes ou núncios, isto é, porta-vozes. As pessoas jurídicas fazem-se representar por seus órgãos nas negociações, nem sempre aqueles que celebrarão o negócio. Atualmente são importantes os contratos concluídos por via eletrônica, os quais não dispensam os princípios gerais.

Existe, portanto, maturação das negociações antes que culminem na conclusão do contrato. Falamos daquele contrato pontuado pelas partes, discutidos em detalhes e não dos contratos de adesão. Ao fi nal das tratativas, as partes desembocam quer num contrato defi nitivo quer num contrato preliminar, ou então não concluem negócio algum, frustrando-se as respectivas expectativas. No contrato preliminar, as partes preordenam o que será disposto no defi nitivo, mas o contrato em si já é defi nitivo. A questão da responsabilidade pré-contratual, tanto pela recusa de

contratar como pelo rompimento injustifi -cado das negociações é também matéria importante nessa área. A responsabi-lidade, nesse caso, é extracontratual, podendo gerar dever de indenizar, porque contrato ainda não existiu.

As tratativas po-dem ser cansativas, ingentes, precedidas de estudos, projetos e refl exão profunda sobre as implicações da contratação. Dei-xando agora à mar-gem o rompimento das negociações pre-liminares, questão importante que surge na matéria é a fi xação

do momento em que se reputa concluído o contrato. As negociações preliminares, como regra, não obrigam, enquanto não fi rmado o contrato. As concordâncias paulatinas obtidas ainda constituem tratativas; não constituem contrato. Essas tratativas podem trans-correr unicamente sob a forma oral, mas também podem ser documentadas, com correspondência entre os interessados, minutas, contraminutas, atas, anotações etc. Por vezes, há interesse das partes de se assegurarem por escrito nessa fase pré-contratual, de-nominada pontuação, em que pode surgir um esboço ou rascunho do contrato, ou uma carta de intenções. Denomina-se geralmente minuta o esboço do futuro contrato. O termo signifi ca algo que é menor, leve. A minuta, em regra, não obriga, mas serve de subsídio para a interpretação do contrato futuro. Pode também servir de base probatória para o exercício da ação de indenização pelo rompimento injustifi cado das trata-tivas. Há outro signifi cado impróprio para a minuta, que é o de um resumo ou sinopse de um contrato já fi rmado, o que refoge ao tema tratado.

As negociações preliminares ou as tratativas não podem ter o mesmo tratamento jurídico da oferta, esta com conseqüências fi xadas na lei (Código Civil, arts. 427 a 435). A oferta já traz em seu bojo uma manifestação de vontade inequívoca de contratar e, enquanto não revogada, até o momento legalmente permitido, é obrigatória. As negociações preliminares não traduzem uma vontade defi nitiva de vincular-se ao contrato. As circunstâncias concretas serão importantes para distinguir ambos os fenômenos. A lei dá força vinculativa à proposta. Essa é sua verda-deira natureza jurídica. A frustração da proposta pode gerar um dever de indenizar, dever esse que não é contratual, porque contrato não existe. Contudo, ao rompimento da proposta aplicamos princípios legais quando ocorrer frustração, assemelhando-se a uma obrigação, enquanto o rompimento injustifi cado das negociações preliminares situa-seno plano exclusivo da responsabilidade extracontratual.

Discute-se se a minuta assinada é vinculativa. A questão é exclusivamente de exame do caso concreto.

Se apenas uma das partes fi rmou a minuta, poderá ela ter os efeitos de uma proposta. Se fi rmada por ambos os contratantes, a questão é de interpretação de sua vontade. Poderá valer como contrato se a lei, ou a vontade das partes, não exigir escritura pública. Por outro lado, se o contrato é apresentado à parte em desacordo com a minuta e mesmo assim concluído, a questão é transferida para os vícios de vontade, podendo ocorrer erro ou dolo.

Os contratos preliminares, por seu lado, que por negócios jurídicos devem ser entendidos, são contratos perfeitos e concluídos. Podem ser bilaterais, quando, por exemplo, as partes se comprometem reciprocamente a cumprir obrigações e a fi rmar a escritura defi nitiva de venda e compra de um imóvel; mas podem ser unilaterais, quando uma só das partes se obriga a contratar. A outra parte, nesse caso, fi ca com a faculdade de exigir a outorga defi nitiva em certo prazo, como ocorre com a opção.Na opção, o outorgante compromete-se a não revogar a avença, a qual, se violada, o sujeita a perdas e danos. Ocorre uma verdadeira renúncia temporária à revogação da proposta.

Cumpre não esquecer que o Código de Defesa do Consumidor assume efi cácia muito mais acentuada à proposta. Cuidando-se de contratação em massa, não poderia ser de outra forma. No campo do consumi-dor, em princípio, não existe uma fase de negociação preliminar, mas uma adesão à oferta.

Toda essa matéria é riquíssima de meandros e nuanças, exigindo cuidado extremo das partes e seus advogados, pois é versada freqüentemente nos tribunais.

*Juiz aposentando do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São

Paulo, tendo exercido a magistratura nesse Estado por 25 anos.

Consultor e assessor de escritórios de advocacia. Professor

convidado e palestrante em instituições docentes e profissionais

em todo o País. Membro da Academia Paulista de Magistrados.

Entre os livros publicados pela Editora Atlas destacamos “Direito

Civil: Parte Geral, v. I“ e “Introdução ao Estudo do Direito:

primeiras linhas”.

Sílvio de Salvo Venosa*

Período pré-contratual e proposta

Pode a mídia, em nome de uma “opinião pública”, influenciar no protagonismo judicial?

Diz-se com freqüência que faltaria aos Juizes a representatividade necessária em uma democracia, representatividade esta que somente seria concedida pelo voto popular. Em contraponto, tem-se a previsão do artigo 2º, da Constituição brasileira, nos moldes preconizados pelo próprio poder constituinte originá-rio para quem, “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, confi gurada em verdadeira cláusula pétrea, impassível de reforma pelo constituinte derivado. (v. art. 60, § 4º, III, CF/88).

Outro cenário que infl uencia e repercute na indagação do título do presente artigo se dá dian-te da sociedade “info-democrática” ou com uma “democracia de alta intensidade”, como nos ensina Boaventura Santos.

Até que ponto o “ativismo” judicial é conseqü-ência da inação do Poder Legislativo, omisso em legislar e também fruto da sua provocação? Em outras

palavras, apenas o parlamento (partidos de oposição ao governo), tem se utilizado, com legitimação ativa constitucional e com resultados concretos, dos me-canismos de provocação do próprio Poder Judiciário, leia-se STF, em situações de indefi nição que deveriam começar e terminar no Congresso Nacional.

Ao deixar de legislar e abrir as portas ao Poder Judiciário (que demonstra querer protagonismo ou afi rmação) e considerando que somente o Poder Legislativo possui a real legitimação para conter excessos “legislativos” do Poder Executivo que se utiliza das medidas provisórias, apreciando-lhes a “urgência” e “relevância”, encontra-se confl agrado e confi gurado um cenário confuso que ainda perdura no Brasil.

Em matéria de “protagonismo judicial”, o mesmo Boaventura Santos, afi rma que,“Este novo protago-nismo judiciário traduz-se num confronto com a classe política e com outros órgãos de soberania,

nomeadamente o poder executivo. Estamos perante uma judicialização dos confl itos políticos que não pode deixar de traduzir-se na politização dos confl itos judiciários” (“Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação?”. Porto Alegre, Socio-logias, ano 7, nº 13, jan/jun, 2005, pp. 82-109).

Tem-se desse modo a advertência quanto à “espetacularização” produzida na mídia “e o perigo da feitura de justiça à medida da opinião pública, ao possibilitar que o elemento opinião pública, que a mídia ajudou a criar, “adentre” para a sala do tribunal podendo produzir reinterpretações do real no sentido da sua aproximação às expectativas da comunidade.

A discussão deverá ganhar corpo ao se indagar e esclarecer, em que medida a “judicialização” da política, o “ativismo judicial” com o seu possível pro-tagonismo, leva a uma “excessiva” expectativa quanto à atuação do Poder Judiciário por parte da sociedade

civil organizada, confundindo o destinatário dos plei-tos e das expectativas, no que diz respeito a políticas públicas e outras atuações de natureza política.

A conseqüência que deve ser discutida quanto ao novo destinatário de alargadas expectativas, qual seja, o Poder Judiciário, é a do visível enfraqueci-mento dos demais Poderes (Executivo e Legislativo), gerando uma cultura “judiciarista”, na qual se pode retirar o caráter de solução e criar-se um “problema”, na medida dos limites de atuação dos tribunais, em matéria de políticas sociais.

*Possui graduação em Direito pela Universidade Federal

da Bahia (1993) e mestrado em Direito pela Universidade

Federal da Bahia (2001). Ex-Procurador Federal. Atualmente

é advogado, Procurador do Estado da Bahia, com atuação

nos Tribunais Superiores, Coordenador e professor de Direito

Constitucional do Curso de Direito do Uniplan - Centro

Universitário Planalto do Distrito Federal (licenciado).

Bruno Espiñeira Lemos*

Page 17: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 17

O Direito Tributário é um dos setores mais importantes da vida do cidadão e grande parte da riqueza pessoal ou empresarial se deve a uma boa gestão dos tributos. De outra parte, não pode o Estado sobreviver sem a arrecadação de impostos. Dessa forma, o correto equilíbrio entre o dever fun-damental de pagar tributos e os direitos fundamentais do contribuintes é uma das tarefas constitucionais mais relevantes.

Neste sentido, a construção de uma teoria tributária que inclua este desafi o de unir direitos fundamentais, o fi nanciamento da esfera pública e a produção de riqueza pessoal e social é fundamental para a construção de uma sociedade desenvolvida.

Defendemos, portanto, uma Teoria Sistemática do Direito Tributário que se firma sobre uma nova compreensão do fenômeno jurídico-tributário, espe-cialmente pela incorporação de novos mecanismos de análise e pela revisão dos conceitos anteriormente estabelecidos, fruto da obra de diversos autores nacionais e estrangeiros, que utilizaram os mais modernos recursos hermenêuticos e fi losófi cos para construírem uma teoria tributária que restabeleça a centralidade dos direitos humanos na problemática do fi nanciamento dos direitos fundamentais.

Três grandes vertentes irão delimitar esta con-vergência de escolas de pensamento com matrizes teóricas distintas: i) teoria dos direitos fundamentais

e o neoconstitucionalismo. ii) a hermenêutica ética e a teoria da justiça e a iii) a teoria do discurso e da argumentação.

Estes três pilares estão intimamente conecta-dos e interligados, dado que a teoria moderna do constitucionalismo afi rma que o objetivo do Estado Democrático de Direito é se constituir em um Esta-do de Direitos Fundamentais, ou seja, um Estado que pretende realizar os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensão. Dessa for-ma, considerando que a Constituição Democrática pretende realizar os Direitos Fundamentais esta deve prover os meios para custear estes direitos, que possuem logicamente um custo. O modo de fi nanciamento deste custo dá-se mediante o pagamento de tributos. Os tributos, por sua vez, devem ter o seu encargo dividido entre os cidadãos de modo equitativo e justo, de tal modo que uma teoria sistemática do Direito Tributário exige uma compreensão de uma teoria da justiça. A aplicação concreta da teoria da justiça em matéria jurídica não pode ser entendida como mera aplicação, incidência

ou subsunção normativa, de tal modo que a resolução legítima do inevitável confl ito de valores em uma sociedade democrática somente pode ser encontrada no interior de uma teoria do discurso jurídico que pri-vilegie a coerência argumentativa no âmbito de uma teoria da argumentação. A teoria da argumentação irá fornecer o instrumental teórico adequado para que ocorra a formação de um consenso no confl ito entre valores distintos em uma sociedade democrática, por meio da ponderação de interesses legítimos.

Essa tentativa difusa e diversa será denominada por nós de pensamento sistemático, como expressão atual do pensamento crítico. Seu objetivo é funda-mentar o discurso jurídico em uma ética material, através de um método analítico, ou seja, um método fundado em requisitos de clareza, transparência e rigor nas demonstrações .

Nessa concepção, a relação tributária é vista como sendo mais do que uma mera relação de poder ou “normativa pura”. Trata-se uma relação dirigida à regulação da cidadania, de seu conteúdo e alcance em uma sociedade. A relação tributária trata, essencialmente, do núcleo do pacto social, ou seja, da contribuição cidadã à manutenção de uma esfera pública e privada de liberdade e igualdade. Assim, a relação tributária possui uma estrutura normativa nítida, visto que trata de proposições prescritivas ou comandos de conduta e, por outro lado, trata possui um sentido original à realização da cidadania.

As obrigações tributárias de-verão ser entendidas como normas jurídicas, possuidoras de homoge-neidade sintática e heterogeneidade

semântica. Contudo, a estrutura semântica não será preenchida de modo absolutamente livre; deverá, na sua composição normativa, dentre as diversas possibilidades de proposições prescritivas - utili-zar aquelas que mais se aproximem de uma ética material. Ou seja, a justiça fi scal irá atuar como um critério seletor de proposições normativas possíveis de compor a estrutura sintática da norma jurídica. Portanto, o conceito de justiça fi scal possuirá duas características: intransitividade e coerência semântica. O sentido de justiça será essencialmente variável, conforme a época e a sociedade. No entanto, existirá um mínimo de sentido a que a noção de justiça fi scal irá reportar-se.

*Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, mestrado em Sociedade e Estado em Perspectiva

de Integração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo e aperfeiçoamento em Direito Tributário Internacional

pela Ludwig Maximilian Universität München. Atualmente é

Professor Permanente da Pontifícia Universidade Católica do

Rio Grande do Sul.

Paulo Caliendo*

Uma visão contemporânea do Direito Tributário

Súmula n. 375 do STJ: fraude à execução e registro da penhora

De acordo com a Súmula n. 735 do STJ, recen-temente editada (j. 18.03.2008, DJe 30.03.2009), “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

Entendemos que a referida Súmula não elimina a distinção que se deve fazer entre a alienação do bem penhorado e a fraude à execução prevista no art. 593, II do CPC.

O art. 659, § 4.º do CPC estabelece que, para que haja “presunção absoluta de conhecimento por terceiros” da ocorrência da penhora de bens imóveis, deve o exeqüente providenciar a sua averbação junto à matrícula do bem. De acordo com o art. 240 da Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos), “o registro da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer

transação posterior”. Tem-se, assim, que, embora não seja requisito

da penhora, nem necessária para que surja o direito de preferência do exeqüente em relação a outros credores, o registro impede que eventual adqui-rente do bem venha a alegar desconhecimento da penhora.

Se, de um lado, realizado o registro, é inescusável o desconhecimento da penhora por terceiro que venha a adquirir o bem, por outro lado, inexistindo o registro a que se refere o art. 659, § 4.º do CPC, ocorre o inverso: a ausência de registro faz presumir que se encontra de boa-fé o terceiro adquirente. Cumpre ao exeqüente des-fazer tal presunção, demonstrando que o terceiro conhecia, sim, a penhora que incidia sobre o bem. Assim, no caso de alienação de bem penhorado, tendo sido a penhora levada a registro, tal aliena-ção é ineficaz, em relação ao exeqüente; ausente o registro, deverá o exeqüente demonstrar que o terceiro adquirente conhecia a penhora.

Como se disse acima, a penhora sobre o bem, de que teve ciência o adquirente, é, em si mesma, fundamento para o reconhecimento da inefi cácia da alienação. Na hipótese, a inefi cácia da alienação

decorre do fato de o bem ter sido penhorado, sendo irrelevante saber se o executado será ou não levado à insolvência, em razão de tal alienação.

Diferentemente ocorre no caso em que, ainda que não registrada a penhora, a alienação do bem penhorado conduz à insolvência do executado. Nesse caso, o fundamento da inefi cácia da aliena-ção frente ao exeqüente será a ocorrência de fraude à execução, ex vi do art. 593, II do CPC, e não o fato de ter sido alienado bem que se encontrava penhorado. No julgamento do REsp 494.545-RS (rel. Min. Teori Albino Zavascki), decidiu o STJ, a respeito, que “convém evitar a confusão entre (a) a fraude à execução prevista no inciso II do art. 593, cuja confi guração supõe litispendência e insolvência, e (b) a alienação de bem penhorado (ou arrestado, ou seqüestrado), que é inefi caz perante a execução independentemente de ser o devedor insolvente ou não. Realmente, se o bem onerado ou alienado tiver sido objeto de anterior constrição judicial, a inefi cácia perante a execução se confi gurará, não propriamente por ser fraude à execução (CPC, art. 593, II), mas por representar atentado à função jurisdicional”.

A repercussão da distinção está nos pressu-

postos que devem estar presentes, para que se reconheça a inefi cácia da alienação, em relação ao exeqüente:

(a) o reconhecimento da fraude à execução prevista no inc. II do art. 593 do CPC depende da demonstração de que a alienação ocorreu enquanto pendia ação contra o executado, capaz de reduzi-lo à insolvência, sendo, no caso, irrelevante a penhora;

(b) na hipótese prevista no § 4.º do art. 659 do CPC, basta a existência de penhora levada a regis-tro, ou que, ausente o registro, se demonstre que o adquirente conhecia a existência da penhora. Neste caso, além disso, não importa saber se a alienação leva ou não o executado à insolvência.

*Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP;

professor de Direito Processual Civil no curso de graduação

da Universidade Estadual de Maringá – UEM, nos cursos

de mestrado da Universidade Parananense – UNIPAR e da

Universiade de Ribeirão Preto – UNAERP e no curso de

pós-graduação lato sensu da PUC-SP; membro do conselho

de redação da Revista de Processo – RePro; da Academia

Brasileira de Direito Processual Civil – ABDPC; advogado;

conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil,

Seção do Paraná.

José Miguel Garcia Medina*

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que teve ciência o adquirente,

é, em si mesma, fundamento

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Page 18: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 200918

Direitos fundamentais de 4ª dimensão?

Classifi cam-se os direitos fundamentais em gerações levando-se em conta, dentre outros aspectos, o modelo de Estado adotado em cada uma delas.

A Revolução Industrial, no Século XVIII, e o movimento do Iluminismo, relacionam-se com o modelo Liberal, o qual tinha por preceito que o Estado deveria interferir o mínimo possível nas relações sociais, assegurando a liberdade dos indivíduos.

Não à toa, os direitos relativos a essa época são chamados de direitos negativos ou de primei-ra geração, cuja efetivação pressupõe uma não intervenção do Estado, como reação da classe burguesa ao Estado totalitário e absolutista que reinava até então.

Com o advento da Primeira Guerra Mundial e da crise capitalista de 1930, iniciou-se o período de declínio do liberalismo, com o conseqüente apogeu do Estado do Bem-Estar, ou Estado Social.

Tal modelo estatal caracteriza-se pelo diri-gismo, ou seja, a tendência do Estado em manter uma intervenção no sentido de regular a economia capitalista, em contraposição ao Estado Liberal.

Paralelos ao Estado do Bem-Estar vislumbram-se os direitos fundamentais de segunda geração, que são direitos positivos, no sentido de que, para serem realizados, pressupõem uma intervenção do Estado, a qual pode ser de índole material ou normativa.

Assim, o Estado assume importante papel na promoção de benefícios sociais, havendo então uma forte atuação do Estado.

Posteriormente, mais precisamente na década de setenta, os choques econômicos fazem declinar o Estado Social, com o correspectivo advento do neoliberalismo, com o objetivo primordial de garantir a acumulação de capital. No Brasil, foi no início da década de noventa que se fi zeram sentir maiores refl exos do modelo do Estado mínimo, tese do neoliberalismo. Em decorrência deste novo modelo, reduz-se a atividade do Estado no âmbito econômico a níveis inexpressivos.

O Estado passa então a intervir menos, editan-do menos leis, possibilitando maior espaço para a economia desenvolver-se livremente, atrelando-se ao capitalismo internacional, que preconiza a derrubada de fronteiras econômicas com a livre circulação do capital e o fortalecimento de con-glomerados transnacionais.

Seria necessário, para a implementação do ne-oliberalismo, uma desregulamentação da economia e do direito estatais, aceleração da competição em nível nacional, privatização das empresas públicas que não desempenhem atividades exclusivamente estatais e a supressão máxima de obstáculos para inserção do processo de globalização.

Os neoliberalistas pretendem reviver o libera-lismo que eclodiu com a Revolução Francesa, com o dogma da liberdade baseada na igualdade jurídica dos cidadãos e nos ditames do mercado. De se ver, todavia, que essa pretensa igualdade dos cidadãos, especialmente nos países de Terceiro Mundo, é apenas e tão-somente uma igualdade formal, que não se efetiva na prática.

Conjuntamente ao Estado neoliberal, aparece o fenômeno da globalização, com o qual as fronteiras nacionais deixam de se confi gurarem em limites às atividades do capitalismo, dando lugar a uma economia de mercado transnacional, mundial, ou, como o próprio nome do movimento indica, global.

Começa-se então a falar em direitos funda-mentais de quarta geração, que seriam aqueles

ligados ao advento de altas tecnologias e avanço científi co.

Como frutos da evolução do homem e da so-ciedade, os direitos fundamentais representam um processo de conquistas do homem na luta por seus direitos ao longo do tempo. A quarta dimensão de direitos humanos fundamentais coincidem então com um novo modelo estatal: o Estado neoliberal globalizado. Esse novo modelo caracteriza-se por uma elasticidade no conceito de soberania, para proporcionar maior integração entre todos os Es-tados. “Os direitos de quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política”.

Assim, o fi nal do século XX é marcado por uma evolução dos direitos humanos que propicia, a um só tempo, a criação de novos direitos relacionados especialmente com a qualidade de vida do homem no planeta e um retorno à clássica noção jusnatura-lista de que os direitos são inerentes ao homem.

O advento dos direitos de quarta geração coin-cide com as inovações tecnológicas, que criam para a humanidade problemas que forçariam o Direito a apresentar soluções.

Sob pena de alteração e deterioração do geno-ma humano deve haver limitação às pesquisas e uso de dados com vistas à preservação do patrimônio genético da espécie humana. O Direito não protege, nesse ínterim, o indivíduo, mas sim o membro de uma espécie de seres vivos.

Costuma-se defi nir os direitos de quarta gera-ção como aqueles que resultam dos novos conhe-cimentos e tecnologias resultantes das pesquisas biológicas contemporâneas.

Bobbio se refere aos direitos humanos funda-mentais de quarta geração da seguinte maneira: “Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações no patrimônio genético de cada indivíduo.”

Não se pode deixar de assinalar, no entanto, que a existência desta dimensão de direitos é po-lêmica, isto é, não é aceita por grande parte dos doutrinadores.

Ingo Wolfgang Sarlet levanta o seguinte ques-tionamento: “Ainda no que tange à problemática das diversas dimensões dos direitos fundamentais, é de se referir a tendência de reconhecer a existência de uma quarta dimensão, que, no entanto, ainda aguarda sua consagração na esfera do direito internacional e das ordens constitucionais internas. Assim, impõe-se examinar, num primeiro momento, o questionamento da efetiva possibilidade de se sustentar a existência de uma nova dimensão dos direitos fundamentais, ao menos nos dias atuais, de modo especial diante das incertezas que o futuro nos reserva. Além do mais, não nos parece impertinente a idéia de que, na sua essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais, gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade humana, de tal sorte que uma quarta dimensão dos direitos fundamentais.”

Realmente, ao se tentar elaborar uma visão um pouco mais crítica, vê-se que os chamados direitos de quarta dimensão são apenas novos de-lineamentos dos já conhecidos direitos de primeira, segunda ou terceira dimensão, mas com um toque de modernidade, em face dos avanços científi cos e biotecnológicos.

Assiste razão, pois, à lição de Ingo Wolfgang

Sarlet, supra colacionada, e ao entendimento de Paulo Gustavo Gonet Branco: “Pode ocorrer, ainda, que alguns chamados novos direitos sejam apenas os antigos adaptados às novas exigências do momento. Assim, por exemplo, a garantia contra certas manipu-lações genéticas nada mais expressa do que o clássico direito à vida confrontado com os avanços da ciência e da técnica.”

Não se quer com isso afi rmar que os direitos humanos fundamentais se esgotaram, que não mais continuam a evoluir. Pelo contrário, a luta pelos direitos humanos e sua conquista é eterna, inacabável, e evolui de acordo com o homem e com a sociedade em que ele se insere.

Todavia, em termos de uma teoria dos direitos humanos fundamentais, as três primeiras gerações consagram as possíveis diferenças existente entre os grupos de direitos que cada uma engloba, e , por esse motivo, os direitos que venham a surgir a partir de então se amoldarão a uma dessas dimensões.

Como visto, o que diferencia uma dimensão da outra não é exatamente o direito que ela contém, mas sua titularidade, seu objeto, a forma de ser exercida.

Na primeira dimensão, temos direitos nega-tivos, que pressupõem uma abstenção do Estado, que, para serem concretizados, precisam apenas

de um non facere por parte de todas as demais pessoas que não o titular.

Na segunda geração, temos direitos positivos, que para serem concretizados necessitam de uma atuação estatal, a qual ocorre através de uma prestação, sendo que esta poderá ser positiva ou negativa. Caracterizam-se por terem como titular não apenas um indivíduo, mas normalmente classes (exemplo: direito dos trabalhadores, direito das mulheres).

Os direitos de terceira geração se diferenciam dos anteriores especialmente por sua titularidade. Não são mais direitos de uma pessoa e nem de um grupo determinado de pessoas. São direitos de grupos indeterminados, chamados de difusos ou transindividuais, que podem ser realizados tanto através de uma prestação negativa ou positiva por parte do Estado, a depender do direito que se pretende preservar.

Assim, cremos que essas três dimensões explicam satisfatoriamente os direitos humanos, não havendo por que se falar na existência de uma quarta geração.

*Mestra em Direito Público pela UFPE. Juíza de Direito

Substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e

Territórios. Professora da Escola Superior da Magistratura/

DF.

Geilza Fátima Cavalcanti Diniz*

BG P

RES

S

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Estado de Direito, maio e junho de 2009 19

As CPI’s, a minoria e o Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito, evolução histórica e teórica do Estado de Direito, retrata, no caso brasileiro, um Estado comprometido com os direitos fundamentais consignados no texto constitucional e com uma efetiva participação da população no exercício dos poderes estatais. Além disso, requer a observância dos limites impostos e dos poderes conferidos a cada uma das funções estatais nas suas pertinentes relações de controle e complementaridade.

Não obstante a existência de modelos histó-ricos de organização e rígida separação entre os poderes constituídos, como é o caso da França pós-revolução francesa, hodiernamente vige, nas democracias contemporâneas, uma inequívoca compreensão acerca da impossibilidade fática de uma separação absoluta das funções legiferantes, judicativas e administrativas. Há uma relação de complementaridade entre tais funções, as quais se devem acrescer a função de controle, capitane-ado pelos poderes Ministério Público e Tribunal de Contas. Aliás, Louis Althusser já alertara o mundo acadêmico acerca dessas distorcidas in-terpretações da clássica obra L’Esprit des Lois de Montesquieu.

Dentre as precípuas funções do parlamente encontram-se a função legiferante e a função fi scalizadora. A primeira, consubstanciada na construção das espécies legislativas previstas no art. 59 do texto constitucional. A segunda, efetivada mediante os poderosos instrumentos elencados na Constituição (art. 50, 49 IV, 52 III, 71 par. 1º, 70 a 75, dentre outros), dos quais se destaca a constituição de Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI.

A Constituição Brasileira, no seu art. 58, par. 3º, apresenta os requisitos para a criação de CPI: a) requerimento de um terço dos parlamentares; b) fato determinado; c) prazo certo. A determinação do fato conduz à impossibilidade de investigações que pretendam efetivar uma verdadeira devassa, ou seja, é preciso que existam provas ou indícios de irregularidades que fundamentem a investigação a ser levada a cabo. Tem que haver um foco, sob pena de inobservância desse requisito. O prazo certo, por sua vez, impede investigações que se prolonguem indefi nidamente, o que poderia con-duzir a um desvio dos fi ns investigatórios para fi ns políticos-eleiçoeiros. Tais imperativos se robuste-cem diante dos poderes próprios das autoridades judiciais que são conferidos às CPI’s, razão pela qual o seu uso somente se justifi ca na presença dos requisitos elencados no art. 58 da Constituição. A questão que exsurge é acerca do número de um terço de assinaturas dos parlamentares: não há uma ofensa ao princípio democrático da maioria?

Os parlamentos funcionam sob a égide da maioria nos mais diversos processos de tomadas de decisões, seja para a aprovação de espécies legislativas, seja para as demais deliberações do plenário. Este princípio da maioria se concretiza em três variáveis: maioria simples (maioria dos presentes), maioria absoluta (maioria do total de parlamentares) e maioria qualifi cada (dois terços ou três quintos). Entretanto, a constituição de CPI confi gura-se na única exceção ao princípio da maioria que vige nas Casas Legislativas. É o único momento em que as minorias se sobre-põem à maioria. Trata-se de um empoderamento às minorias conferido pela Constituição Federal,

visando uma maior transparência e controle das funções estatais.

Em razão de tais considerações que o do disposto no par. 3º do art. 58 se constitui num verdadeiro princípio constitucional e, enquanto tal, inderrogável por Estados, Distrito Federal e Municípios. Trata-se de uma norma de repetição obrigatória por todos os entes da Federação, que não podem dispor de maneira diferente em suas Constituições e Leis Orgânicas, sob pena de in-constitucionalida-de material. Aliás, abundam decisões jur i sprudencia i s nesse sentido nos tribunais pátrios.

A observância do pr inc íp io da minoria na consti-tuição de CPI, ao invés de afrontar o princípio demo-crático subjacente ao Estado Demo-crático de Direito brasileiro, consti-tui-se num impe-rativo que observa os contornos legais deste Estado e que fortalece a transpa-rência e as relações de controle entre as funções estatais, conf igurando-se

num poderoso instrumento de controle entre as funções estatais.

*Especialista em Direito Municipal pela UFRGS; Mestre e

Doutor em Direito do Estado pela UFPR; Coordenador da

Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo; Autor

da obra: O Poder Legislativo Municipal: aportes teóricos

e práticos para a compreensão e o exercício da função

parlamentar nas Câmaras de Vereadores, Editora Malheiros;

site www.giovanicorralo.com.br

Giovani Corralo*

O pensamento crítico e problemático de Castanheira Neves

Com sua lucidez filosófica, Castanheira Neves se destaca pela forma como pensa o Direito a partir de sua problematicidade atual, contextualizando que o Direito, hoje, se revela fortemente problemático, ao ponto de também atingir sua subsistência, visto que não é mais capaz de dar respostas às demandas advindas da complexidade estrutural, dimensional e in-tencional da sociedade atual. Suas reflexões são como um grito de alerta contra os anos sombrios do deserto positivista, interpelando pela crise do homem, pela crise do pensamento e do conheci-mento e pela crise do ensino jurídico em nível global. Suas obras e seus artigos são reflexos de uma mente preocupada em desvendar a tensão humanista da contemporaneidade e o papel do Direito, das Faculdades de Direito e do jurista neste novo contexto.

As profundas reflexões realizadas pelo mestre português demonstram que, tanto a filosofia como o Direito, como dimensões constitutivas de uma cultura alicerçada em paradigmas, trazem, na essência de sua crise, como questão última a pergunta pelo sentido do ser. Quando o ser humano se volta a perguntar pelo sentido mais íntimo de sua existência, Castanheira Neves crê

que é possível resultar um “novo princípio ou a plena consumação do fim – autenticamente, pois uma histórico-cultural situação limite que aqui nos convoca”.

Ler Castanheira Neves é entrar nos meandros do seu pensamento e seu questionar crítico, pois o autor mostra como se deve responder e qual deverá ser a atitude perante a situação problemática em que o pensamento jurídico se encontra. Instiga a não simplesmente ocultar a crise do pensamento jurídico ou ficar apenas num processo de reflexão sobre ela, como tam-bém mostra que não é mais possível contentar-se em encontrar uma pré-solução e vê-la apenas sob a ótica da “esperança-futuro”. Para evoluir, o autor convida ao entendimento da dialética da liberdade problemática. Castanheira Neves propõe que o diálogo assim estimulado instiga o homem a uma auto-reflexão crítica de sua pró-pria liberdade e de sua própria autodeterminação que, nas palavras do mestre português, é justa-mente a reflexão filosófica, ou seja, uma reflexão problematicamente radical com o objetivo de tentar uma resposta – “a resposta hoje possível”. O autor quer reafirmar com essa posição que o Direito é uma dimensão capital e irrenunciável

da humanidade do homem, e que não necessita ser pensado para o ser, mas só pensando-se o homem a sim mesmo se assume como homem – que a filosofia do Direito concorra para esse pensar-se”, ou seja, pensar o homem na sua humanidade.

O autor propõe um novo olhar para entender o Direito a partir do problema, isto é, a decisão judicial não é apenas o resultado de conceitos e valores identificados com a simples aplicação de determinada norma. A dimensão criadora de Castanheira Neves remete ao entendimento do sentido de um Direito gravemente problemático. Ou seja, o Direito não é mais visto apenas como objeto de problemas, mas em si mesmo um pro-blema, tanto em relação ao seu próprio sentido como em relação à índole de sua normatividade, pois, pela abordagem do problema, é possível en-contra uma solução à qual o Direito deve servir, dentro de toda a complexidade que aí se revela. Salienta que não se pode aceitar apenas o prévio saber jurídico (normas positivas, precedentes ju-diciais, doutrinas, etc. oferecidas pela ordem ju-rídica positiva), a autônoma posição do problema jurídico do caso decidendo e a pré-compreensão do problema. O autor assume os “problemas” de

uma prática, atribuindo à metodologia jurídica a perspectiva de um pensamento prático, ou seja, a prático-problemática realização do Direito. A posição metodológica adotada pelo autor é de uma relação de reconstrução crítico-reflexiva que parte da intencionalidade prática da realização do Direito, “compreendida na sua problemática específica e dirige-se reflexivo-criticamente a esta prática”. O pensamento prático compro-mete-se com o problema do caso concreto, pois é chamado a resolvê-lo. Ao assumir essa posição, Castanheira Neves dá um passo além, alcançando elementos para poder reconhecer que a aplicabilidade da norma terá de pressupor um juízo autônomo de juridicidade sobre o caso decidendo, significando que a lei não pode mais ser reconhecida como único indicador decisivo e como limitadora da concretização do Direito ao caso concreto.

*Dou to r a em D i re i t o pe l a Un i s i nos , Docen te e

Coordenadora de Formação Continuada da Feevale.

Advogada. Pesquisadora, Autora dos Livros: “Ensino

Jurídico e Compromisso Social: a Extensão como Prática

Transformadora do Currículo” e “Ensino Jurídico: um

Novo Caminho a partir da Hermenêutica Filosófica”.

Haide Maria Hupffer*

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Estado de Direito, maio e junho de 200920

Sustentabilidade, do ponto de vista empresa-rial, engloba quatro conceitos básicos: efi ciência econômica, equilíbrio ambiental, justiça social e governança corporativa. Com base nisso, grandes empresas começaram a contratação de profi ssionais especializados em tais áreas para a implantação desses conceitos sustentáveis. Essas questões antes eram analisadas fragmentariamente; agora, as empresas procuram centralizar os problemas ambientais numa diretoria. A preocupação passou a ser relevante no momento que se criou o Índice de Sustentabilidade das Empresas (ISE), no sentido de avaliar as em-presas do ponto de vista socioambiental. Trata-se de empresas de capital aberto que cumprem os requisitos legais de sustentabilidade. A identifi cação e a avaliação são constatadas na Bovespa. O número de empresas com essa consciência está aumentando ano a ano. As instituições fi nanceiras são as primei-ras a criar departamentos para avaliar as empresas que causam signifi cativo impacto ambiental, tais como: atividade de mineração, papel e celulose, cimento, energia etc. Aludidos especialistas devem ter profundo conhecimento da legislação ambiental. Muitos profi ssionais têm procurado cursos de pós-graduação em Direito Ambiental e Gestão Ambiental para acrescentar conhecimentos nessa área: bacharéis em direito, biólogos, antropólogos, geólogos etc. Referidos profi ssionais têm a responsabilidade de en-contrar medidas efi cientes para economizar energia, matéria-prima, água etc. Em outras palavras, devem eles ajudar a empresa a melhorar a sua imagem no mercado globalizado.

A Petrobras, por exemplo, foi excluída do ISE, em 2008, pelo não cumprimento da Resolução 315/2002 do CONAMA que determinava a redução do teor de enxofre no diesel comercializado no Brasil a partir de janeiro de 2009. Essa decisão foi tomada pelo Conselho do ISE, composto pela Bovespa, International Finance

Corporation - IFC, Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar – ABRAPP, As-sociação dos Analistas e Profi ssionais de Investimentos do Mercado de Capitais – APIMEC, Associação Nacional de Bancos de Investimentos – ANBID, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, Ministério do Meio Ambiente – MMA e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Instituto Brasil PNUMA). A exclusão da Petrobras se deu pelo inconformismo de onze en-tidades que encaminharam uma carta ao Conselho do ISE, em 6 de novembro de 2008, comunicando o des-cumprimento da citada resolução. São elas: Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais, Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais e de Biodiversidade, Secretaria do Verde e Meio Ambiente do Município de São Paulo, Movimento Nossa São Paulo, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, SOS Mata Atlân-tica, Greenpeace- Brasil, Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, Instituto Akatu pelo Consumo Consciente e Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Como pode-mos perceber, o Conselho do ISE tem se pautado por critérios rígidos tanto para quem pretende nele ingressar como para nele permanecer.

O agronegócio, para não fi car atrás, tem en-vidado esforços no sentido de também contribuir para a mitigação do aquecimento global. Para isso, empresários, representantes dos trabalhadores e ambientalistas vêm debatendo com profundida-de os princípios e critérios que devem nortear o processo de verifi cação da produção agropecuária no Brasil. Tenta-se antecipar as exigências que os consumidores de todo o mundo vão passar a impor aos produtores de alimentos, denominando-se de “Iniciativa Brasileira para Criação de um Sistema de Verifi cação da Atividade Agropecuária”. Visa-se, com isso, implantar o primeiro sistema de certifi cação do setor agropecuário do mundo. Este sistema tem por pressuposto a verifi cação voluntária, que inclui a certifi cação independente, e como unidade de monitoramento a propriedade rural, fundamentado num elenco de cinco princípios e quinze critérios, que darão ao mercado a garantia de origem e qua-lidade socioambiental de toda e qualquer produção realizada num empreendimento verifi cado sob essas condições. Esta certifi cação está respaldada na gestão

ambiental e social da propriedade. Objetiva-se, como se vê, a manutenção das reservas legais, a proteção dos recursos hídricos e a garantia de melhores con-dições de saúde e segurança dos trabalhadores rurais. Todo empreendedor que quiser receber a certifi cação deverá se submeter aos critérios citados para poder ter seus produtos aceitos no mercado internacional (Roberto Rodrigues, Certifi cando nosso futuro, Folha de S. Paulo, de 16 ago 2008, p. B-2).

A empresa multinacional PepsiCo – proprietária da marca de sucos Tropicana – contratou especialistas em cálculos matemáticos na tentativa de responder a seguinte pergunta: quanto um copo de suco de laranja que você toma no café da manhã contribui para o aquecimento global? Após a realização de complexo cálculo, os especialistas apuraram que as maiores fontes emissoras de CO² eram as próprias plantações de laranja e não o seu processo industrial. Referidas plantações consomem grande quantidade de ferti-lizantes à base de nitrogênio, que requer o uso de gás natural na sua fabricação e que podem se tornar um potente gás de efeito estufa quando pulverizado sobre os pomares. Apurou ainda que são lançados no ar atmosférico 1,7 kg de CO² para cada embalagem com meio galão (aproximadamente dois litros) de suco de laranja. Com base nestes dados, a empresa pretende realizar uma parceria com a Universidade da Flórida para descobrir formas de cultivo de laranja que emitam menos gases nocivos (PepsiCo estuda quanto polui um copo de suco de laranja na mesa, Gazeta Mercantil, de 11 fev 2009, p. C-4).

Com a implantação do Projeto Respira São Paulo, os municípios estão se esforçando para conseguir a certifi cação do Município Verde que é concedido anualmente pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Para isso, ele precisa cumprir dez diretivas do projeto, cujas notas variam entre zero a cem no ranking ambiental. São elas: esgoto tratado; lixo mínimo; recuperação da mata ciliar; arborização urbana; educação ambiental; habitação sustentável; uso da água; poluição do ar; estrutura ambiental; e conselho de meio ambiente. As notas mais altas são erradicação de lixões, esgoto tratado e educação ambiental. São Paulo possui 645 municípios, mas somente 322 cidades responderam ao questionário ambiental. Um passo importante dado pelo Muni-cípio de Mogi das Cruzes foi a criação da Secretaria do Meio Ambiente para 2009, possibilitando a

implantação de programas ambientais importantes com a intenção de conseguir a certifi cação.

Registre-se, além disso, que estudo realizado pela consultoria Ernest & Young, denominado “Riscos Estratégicos aos Negócios — 2008. Os dez maiores riscos às empresas”, revela preocupação com os de-nominados “radicais verdes”. O consumidor está mais atento às questões ambientais e disposto a mudar seus hábitos de consumo para alternativas mais ecológicas. Isso pode ser considerado um potencial risco aos negócios. O estudo, com base nas análises de 70 especialistas ao redor do mundo, avaliou 12 setores da economia e apontou as dez maiores ameaças para os negócios na atualidade. Um deles é o que o estudo chama de radical greening, que pode ser traduzido como a adoção extremada de hábitos “verdes” e aos poucos está infl uenciando o comportamento das empresas. A militância dos consumidores ativistas fi gura lado a lado com outros riscos aos negócios, como mudanças na legislação, infl ação dos custos corporativos e envelhecimento da população. O risco do radical greening aparece na nona posição na média dos maiores impactos e seu peso varia conforme o setor em que a empresa atua (Andréa Vialli, Consu-midor “verde” já é visto como um risco aos negócios, O Estado de S.Paulo, site: <www.estadao.com.br>, acesso em: 15 maio 2008)

Vê-se, por tudo isso, que as empresas e os municípios vêm se esforçando para dar sua contri-buição em prol do meio ambiente. Não basta mais os empresários fazerem marketing encima do meio ambiente. Agora, eles deverão, de fato, aplicar estes princípios sustentáveis em suas empresas se quiserem permanecer no mercado globalizado.

*Promotor de Justiça em São Paulo, Doutor e Mestre pela

PUC-SP. Professor Universitário. Membro da Associação dos

Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB. Autor

do Manual de Direito Ambiental, 7ª ed., Saraiva, 2009, dentre

outros.

Luís Paulo Sirvinskas*

Sustentabilidade empresarial e governamental

“Todo empreendedor que

quiser receber a certificação

deverá se submeter aos

critérios citados para poder

ter seus produtos aceitos no

mercado internacional...”

“... quanto um copo de suco

de laranja que você toma no

café da manhã contribui para o

aquecimento global?”

Palestra Gratuita Inscrições Gratuitas tel. (51) 3246-0242

A venda e o Fornecimento de Drogas (Lícitas e Ilícitas) a Crianças e AdolescentesPalestrante ConvidadoDelegado Christian Nedel

16 de junho, às 19hLivraria Saraiva, do Praia de Belas, Porto Alegrewww.estadodedireito.com.br - Confi ra a programação de palestras!

Page 21: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 21

A tipificação do crime de sequestro relâmpagoVálter Kenji Ishida*

De que forma a arte , cultura e educação estão ligadas?

Einstein em um encontro com Freud , questio-nou-o sobre o porquê da guerra. Freud respondeu que desde os primórdios existia a guerra , pois o ser humano possui dentro de si impulsos destrutivos .

Como lidar com estes impulsos ? Aprender a conter os impulsos é um lento

e contínuo processo iniciado desde o início do desenvolvimento do ser humano.Através das primeiras marcas de amor o bebê vai aprendendo a esperar, apesar de querer ser atendido logo. Mas , a vida vai impondo limites.

A criança vai crescendo e aprendendo que nem tudo o que se quer se pode ter ou fazer.

Haverá uma lei que representa o limite para seus desejos . Quando o pequeno ser , sente que perderá o amor de quem lhe é importante, aceita o limite para não perder este amor. Porém , é necessário ter um amor forte para ter medo de perdê-lo. Este processo que fará a criança conter seus impulsos para não desagradar às pessoas que ela ama. Desta forma, o amor é fundante do psiquismo e o limite é estruturante.

Entretanto, se não há o amor , não há nada a perder , conseqüentemente o limite não se desenvolve.Aí pode instaurar-se a falta de limites , a psicose , a violência , roubo ,uso de drogas e as psicopatias .

A arte , a cultura e a educação possibilitam o

ato de criar. Esta é a saída para os impulsos destru-tivos e agressivos .Existe uma forma de produzir , onde os sentimentos são expressos ali na arte , na poesia e na literatura. O mesmo signifi cado tem para a criança quando brinca ou desenha.

O brincar é descoberta , criação e imagina-ção. Imaginar , não é realizar. Pensar , não é o mesmo que fazer. Esta é a diferença crucial do limite. Ou seja , imaginando a criança pode tudo , mas para realizar depende do limite.Por isso , é importante que a criança possa imaginar e criar , através de meios que possibilitem isto, através do uso da criatividade e da aprendizagem;

O criar , imaginar e a arte é um espaço para a pessoa descobrir-se em qualquer idade.Mas para

a criança é fundamental para seu desenvolvimen-to, este espaço para a criatividade.

Os grandes gênios da humanidade , coloca-ram na sua obra seus sentimentos e emoções e assim, acharam na sua criatividade uma saída para seus impulsos e sofrimentos .

A violência atual poderá encontrar saída através da arte e da educação em todos seus aspectos . A população necessita deste investimento. D e s t e modo , o cuidado da criança desde a concepção e desde suas primeiras marcas de amor e limites, construirão seu psiquismo e suas possibilidades para toda vida.

* Psicanalista, autora do livro Reflexões - Psicanálise,

Sociologia, Pedagogia e Desenvolvimento Social.

Violência: existe saída?Cristiane Krug Corrêa*

O presente artigo traça algumas considera-ções doutrinárias acerca da tipificação penal do crime de seqüestro relâmpago com o advento da Lei n.º 11.923, de 17 de abril de 2009, incluindo o parágrafo terceiro ao artigo 158 do Código Penal.

Inicialmente, cabe ressaltar que tal inovação legislativa está inserida no denominado “pacote antiviolência”, composto por medidas de segu-rança pública.

O parágrafo terceiro do artigo 158 do Códi-go Penal qualifica o crime de extorsão se “o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica.”, impondo ao agente desta prática delitiva uma pena que varia entre 06 (seis) a 12 (doze) anos de reclusão, além de multa.

Com efeito, extorsão implica na necessidade de atuação da vítima. Sendo assim, a vantagem não pode ser obtida de forma imediata, como seria no caso de entrega da carteira pela vítima. É a chamada indispensabilidade da conduta do sujeito passivo, corrente hoje predominante. Po-demos citar como exemplo do crime de seqüestro

relâmpago (§ 3º do artigo 158 do C.P.) a seguinte conduta: a vítima tem de fornecer a senha para saque em caixas eletrônicos; além disso, é obri-gada a ficar várias horas com o assaltante.

Entendemos que a tipificação veio em boa hora porque havia uma confusão jurídica. A jurisprudência ora tratava esse caso muitas vezes como roubo com restrição da liberdade (artigo 157, § 2º, V, do C.P.) , ora como extorsão (artigo 158 do C.P.) e em poucos casos como extorsão mediante seqüestro (artigo 159 do C.P.).

A consumação nesse caso ocorre como na extorsão simples e como crime formal, com a realização de algum ato pela vítima. Anote-se que o ato de fazer é de acompanhar o meliante. Isso porque a restrição da liberdade da vítima é con-dição necessária para a empreitada criminosa. Ao ter que se submeter à privação de liberdade, a vítima já age realizando a conduta desejada pelo agente criminoso, consumando o delito. Não há necessidade que ela forneça, por exemplo, a senha do cartão. Exemplificando: a vítima é levada pelos meliantes em seu carro e a polícia realiza a abordagem; não havia ainda o forneci-mento de senha pelo sujeito passivo. O crime já

está consumado, pois a vítima ao se submeter à privação da liberdade, realizou ato necessário à extorsão. Note que se está analisando o tipo do artigo 158 do Código Penal em que se exige a conduta da vítima e não do artigo 159 do Código Penal que menciona o termo “sequestrar”.

Importante, também, distinguirmos o crime de roubo com o crime de sequestro relâmpago. É possível e muito comum que o agente subtraia o veículo, a carteira, o celular e ainda restrinja a liberdade da vítima para proceder a saques em caixas eletrônicos. Nesse caso, a hipótese é de concurso material entre roubo e a extorsão qualificada do parágrafo 3º. Tratando-se de crimes de espécies diferentes, não se admite a continuidade delitiva (RTJ 100/940).

Embora o marco inicial da consumação seja a privação da liberdade como condição para obten-ção da vantagem, é inegável que privando a vítima da liberdade, o delito se prolongará no tempo. Dessa forma, a extorsão simples é crime instantâ-neo, mas a qualifi cada pela restrição da liberdade é permanente, alongando-se a consumação.

Além disso, se do fato (violência ou grave ameaça) resultar lesão grave ou gravíssima, a

pena será de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos e, se resultar morte, a pena será de reclusão de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos de pri-são. Com efeito, necessitou o legislador incluir o resultado lesão grave, gravíssima ou morte no próprio parágrafo porque, do contrário, haveria vedação de se utilizar o parágrafo 2º do artigo 158 do Código Penal pela posição topográfica do dispositivo legal. Pela mesma razão, o parágrafo 1º não se aplica em caso de concurso eventual de pessoas ou emprego de arma de fogo.

Por fim, como não existe previsão expressa do referido parágrafo 3º na Lei n.º 8.072/90, o crime de seqüestro relâmpago não pode ser tratado como crime hediondo.

* Promotor de Justiça Criminal da Capital e professor de

Direito Penal, Direito Processual Penal e Prática Jurídica

Penal da Universidade Paulista (Unip). É bacharel em

Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo e graduado em Administração Pública pela

Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. É mestre em

Direito Processual Penal e Doutor em Interesses Difusos

e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC/SP).

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Page 22: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 200922

Os dramas vivenciados nas varas de família expõem com clareza os efeitos danosos de uma sociedade normalizadora como a nossa, onde proliferam discursos e práticas que impõem lugares sociais, psicológicos e afetivos para os indivíduos, gerando, com isso, um signifi cativo empobreci-mento no universo das relações humanas.

As práticas jurídicas, de um modo geral, tor-naram-se importantes vetores de uma política de normalização. Nas varas de família, em particular, isto se evidencia no fato das relações de poder serem atravessadas não apenas pelo discurso das leis ou de uma justiça abstrata, mas sim, e funda-mentalmente, pelo discurso da norma.

Michel Foucault (1997), em suas análises sobre o desenvolvimento do biopoder – um poder-saber sobre a vida -, já apontava para a atuação da norma em detrimento do sistema jurídico da lei, razão pela qual a instituição judiciária passou a integrar um número cada vez maior de dispositivos médicos, psicológicos e administrativos que desempenham, sobretudo, funções reguladoras.

Todavia, é importante ressaltar que o forta-lecimento do poder de normalização não indica o fi m progressivo do aparelho judiciário, mas sim um deslocamento de sua função e de sua forma de atuação, inclusive no sentido de tornar mais aceitáveis práticas de poder essencialmente normalizadoras. Por isso, ao invés da política de normalização diminuir a importância das práticas jurídicas, o que se presencia nos dias de hoje é uma crescente jurisdicização das relações sociais. Em verdade, há uma implicação recíproca entre lei

e procedimentos de normalização, tal como se os critérios normativos buscassem apoio na forma da lei para atuar concretamente.

Os discursos normativos nada mais são do que discursos de verdade que atuam no sentido de conduzir as condutas dos indivíduos. São dis-cursos que se sobrepõem aos discursos jurídicos propriamente ditos, na medida em que emergem de múltiplas instituições, intervindo na elaboração das leis, nas sentenças judiciais, na forma como os operadores do direito conduzem os seus trabalhos, no modo como assistentes sociais e psicólogos articulam sua intervenção junto às famílias e ainda na maneira aguerrida como os indivíduos dão pros-seguimento às suas reivindicações de justiça – ou melhor, reivindicações de poder e de identidade, como costuma acontecer nos juízos de família.

Assim é que muitos exercícios de poder encon-tram sustentação na reivindicação estratégica de um lugar identitário. Um bom exemplo desse estado de coisas transparece na força que a instituição da maternidade detém no espaço das varas de família, haja vista a prática habitual de se vincular o bem estar de uma criança preferencialmente aos cuidados de uma mãe e mais raramente aos de um pai.

Contudo, é importante frisar que, embora a reivindicação e a supervalorização da identidade materna, num primeiro momento, favoreça as mu-lheres, isto não se dá necessária ou impunemente. Este favorecimento vai depender do cumprimento de determinadas expectativas sociais, sem o qual as mulheres acabam tornando-se vítimas dos mes-mos discursos antes usados em seu benefício, isto é, discursos moralizantes que ditam padrões de normalidade requeridos de uma “boa mãe”.

Mas essas refl exões não pretendem precipitar conclusões no sentido de uma possível recusa da política representacional presente na sociedade e no meio jurídico, pois, partindo do pressuposto fou-caultiano de que não há um campo fora das práticas de poder, tal recusa seria simplesmente inútil.

Desse modo, uma possível saída ética aponta para a transformação das práticas e dos discursos a partir das próprias regras de seu funcionamento e no lugar onde ele é exercido. Nisto reside a im-

portância de se adotar uma atitude crítica frente aos regimes de verdade e aos discursos identitários que invadem as varas de família. Somente dessa forma se poderá alçar o confl ito instaurado para outro patamar de discussão, para além da reprodução de modelos socialmente cristalizados. Mas, para tanto, é preciso privilegiar ações voltadas para a singularização, de modo que os sujeitos que de-mandam “justiça” sejam inteiramente incluídos e implicados no processo decisório, mesmo porque se está tratando de suas vidas.

Muitos consideram que as práticas de conciliação e mediação exercidas nos espaços jurídicos representam tentativas interessantes de implicar os indivíduos nas decisões tomadas. No entanto, nenhuma prática está livre de cair na armadilha de um tipo de poder normalizador, pois tudo depende da forma como ela será conduzida, se por meio de objetivos e formas normalizadoras, ou se mediante uma atitude ética e crítica, com vistas à singularização e à inovação.

Além disso, também é preciso levar em conside-ração o fato das pessoas muitas vezes se recusarem a assumir uma forma alternativa de elaboração de um consenso ético, pois, nas varas de família, por exemplo, muitos apresentam grande resistência em abandonar a situação de confl ito ou o poder exercido sobre um fi lho - não obstante os inúmeros prejuízos emocionais daí decorrentes. Bem se vê que a situa-ção é complexa para os dois pólos do poder, tanto para os que estão em posição de dizer ou conduzir “verdades”, jurídicas, psicológicas ou sociais, como para os que se supõe estariam ali para ouvi-las.

Seguindo essa linha de raciocínio, a questão não está em tentar mudar a cabeça das pessoas e impor outras verdades, mas sim em fornecer ins-trumentos de análise e desarranjar as evidências solidamente construídas a respeito das relações familiares, das necessidades da criança, ou dos papéis que caberiam a pais e a mães. Talvez o mais importante seja mostrar às pessoas como suas atitudes estão produzindo um empobrecimento re-lacional, cujos efeitos, embora imprevisíveis, serão, inevitavelmente, danosos para todos os envolvidos, mesmo que alguns pareçam estar instalados num

aparente conforto. Pode-se pensar que o novo dispositivo da guarda

compartilhada representa um valioso instrumento de luta contra o mencionado empobrecimento relacional, pois, ao questionar a prerrogativa materna com relação aos cuidados dos fi lhos, contribui para embaralhar os papéis sociais de homens e mulheres, conferindo-lhes assim um maior grau de liberdade. Contudo, em que pese a importância de tal dispositivo legal, pensamos que possíveis saídas éticas estão para além de alterações na lei, mesmo porque sabemos que muitas discrimina-ções, regulações e impedimentos continuam ocorrendo a despeito da lei proibir ou conceder textualmente uma série de direitos.

Com referência a tais idéias, é interessante recuperarmos a imagem de um direito híbrido, conforme bem assinalou Fonseca (2002). Um direito que se externaliza na forma da lei, mas cujo conteúdo é cada vez mais colonizado por padrões normativos. Sendo assim, não será trans-formando a face externa do direito (as leis) que se estará confrontando os mecanismos de poder normalizadores.

À guisa de conclusão, defendemos que uma saída ética possível para o trabalho exercido nas varas de família deve privilegiar a atitude crítica e a valorização de uma é tica da responsabilidade com relação às práticas desenvolvidas, pensando sempre nos efeitos que elas produzem na vida das pessoas, ou seja, se contribuem para um empobrecimento relacional, ou se incentivam a criatividade e a abertura de espaços de experimentação, de modo a enriquecer o universo das relações afetivas.

*Psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Autora

do livro “Varas de Família – Um Encontro entre Psicologia

e Direito”. Curitiba: Juruá, 2009.

A Política de Normalização nas Varas de Família:Implicações Éticas

Érika Figueiredo Reis*

“... ao invés da política de

normalização diminuir a

importância das práticas

jurídicas, o que se presencia

nos dias de hoje é uma

crescente jurisdicização das

relações sociais.”

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“Talvez o mais importante seja

mostrar às pessoas como suas

atitudes estão produzindo um

empobrecimento relacional...”

Page 23: ESTADO DE DIREITO - 20 EDIÇÃO

Estado de Direito, maio e junho de 2009 23rota jurídica

“O direito é um produto

social e, por assim

ser, deve envolver

toda a sociedade,

aproximando os

cidadãos ao exercício

do pensamento e

da critica. Palestrar

nas livrarias atinge

sobremaneira tal

missão, porque

permite alcancar o

conhecimento jurídico

de forma acessível em

ambientes informais e

sempre acolhedores.

Parabéns! ”

Depoimento

Karla Sampaio

Seja o patrocinador ofi cial da Rota Jurídica e colabore com a expansão de uma iniciativa pioneira no País que tem o nobre objetivo de levar Cultura Jurídica para toda a sociedade. Informações pelo telefone (51) 3246.0242.

A palavra que melhor defi ne o período da Rota Jurídica de Abril e Maio é “intensidade”, pois num curto espaço de tempo realizamos viagens aos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo com intuito de fortalecer apoios e buscar mais Empresas e Instituições para patrocinar os eventos gratuitos e o Jornal Estado de Direito.

Com o apoio da Editora Atlas, realizamos no mês de abril, a palestra “O Direito Internacional dos Refugiados no Brasil: o caso de Cesare Battisti”. O professor convidado foi César Augusto S. da Silva da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados - MS. Fico feliz em registrar que tivemos que improvisar cadeiras e sofás para acomodar, pois eram muitos participantes. Deixo um abraço a todos que colaboraram com a iniciativa! O vídeo da palestra já está no You Tube!

Em maio o Espaço Estado de Direito, realizado mensalmente na Livraria Saraiva do Praia de Belas, recebeu os professores Antônio César e Karla Sampaio que falaram sobre os crimes dolosos contra a vida. Foi muito legal ver novamente a presença em massa do público leitor do Jornal Estado de Direito! Muito obrigada aos palestrantes por oportunizarem compartilhar o conhecimento com os participantes e tornam o nosso encontro tão interessante e a Livraria Saraiva que há quase quatro anos oportuniza o debate e a promoção da cultura jurídica preventiva!

Meu colega da graduação e hoje professor Karlo Fonseca Tinoco aceitou o convite que fi z para palestrar sobre “Os artistas intérpretes e o Direito Autoral: a extensão da duração de proteção na União Européia” no I Papo Jurídico – projeto idealizado com o Praia de Belas Shopping que há alguns anos vem abrindo espaço para ações de popularização da cultura jurídica como forma de desenvolver a cidadania. Nas pessoas de Cláudia Mendes Ribeiro e Sandra Ferraz agradeço a confi ança depositada ao trabalho que realizamos e que agora nos proporcionará encontros mensais. Registro meu agradecimento aos profi ssionais Lúcia Loureiro da Silva (cabeleireira e maquiadora), Rodrigo Rios (cabeleireiro) e Rosângela Oliveira da Rocha (auxiliar) da Lyra Beauty que me deixaram linda para apresentação do evento!

Tive que começar a adaptar os horários porque iniciei o mestrado em março e agora a agenda fi cou mais apertada. A experiência é compensadora! A troca de idéias, os seminários e os professores abrem as nossas mentes – quero aproveitar para deixar um abraço ao Professor Inácio Helfer com quem registro a admiração pelo trabalho que desempenhou com a turma. Os trabalhos do primeiro trimestre fi nalizaram com a realização do “VI Seminário Internacional Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade” em que o Jornal Estado de Direito apoiou fazendo divulgação e a cobertura das palestras que, nos próximos dias, poderão ser vistas pelo site http://www.youtube.com/carmelagrune.

Utilizei a palavra “intensidade” porque novos desafi os vem pela frente! Em breve ampliaremos o número de atividades idealizadas com intuito de fortalecer a integração de toda a comunidade com a cultura jurídica preventiva. Tendo em vista que a realidade é que grande parte da população brasileira busca conhecer os seus direitos e deveres quando já estão em litígio. Faltam condições de entendimento e o projeto quer levar para mais regiões do País.

Cada apoio que fi rmamos é muito importante, pois possibilita ampliar equipe de trabalho, pagar despesas de transporte e distribuição, hospedagem, enfi m, custos que precisamos pagar para oportunizar o acesso gratuito aos eventos e a publicação do Jornal Estado de Direito.

O Jornal Estado de Direito recomenda viva intensamente – o conhecimento garante a sua liberdade! Um abraço e a próxima Rota Jurídica passará por Gramado, Rio de Janeiro e Portugal!!

Até breve! Carmela Grüne

Diário de Bordo

Apoiadores e Palestrantes do VI Seminário Internacional Demandas

Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea,

promovido pelo PPGD-Mestrado em Direito da UNISC

Antônio, Carmela e Karla com os participantes do

Espaço Estado de Direito na Livraria Saraiva

Professores Karla Sampaio e Antônio César Peres da Silva palestraram sobre

“Crimes Dolosos contra a vida: Direito Material e Processual”

Carmela Grüne com o palestrante Karlo Fonseca Tinoco no

Papo Jurídico - Edição Maio, no Praia de Belas Shopping

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Estado de Direito, maio e junho de 200924