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Interculturalidade latino-americana... Viana de Lima DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 101 Interculturalidade latino-americana em Raúl Fornet- Betancourt Rodrigo Viana de Lima - UFES Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo apresentar o tema da Interculturalidade concebida por Raúl Fornet-Betancourt, na forma como esta é objeto e traço fundamental deste pensamento. Concordando que seu pensamento é voltado para a compreensão das mais diversas culturas, nesse processo serão buscadas no autor, por suas obras e comentadores, bases da filosofia intercultural procurando compreender a concepção de uma nova modalidade de filosofia que busca através da interculturalidade descentralizar as reflexões filosóficas; esses são os objetivos desta pesquisa. Palavras chave: Filosofia ocidental, libertação, inculturação, interculturalidade. Abstract: This research has the goal to present the theme of interculturality designed by Raúl Fornet-Betancourt, the way it is object and fundamental feature of this thought. Agreeing that his thought is focused on understanding the many different cultures, in this process they will be searched on the author, for his works and by commentators, bases of intercultural philosophy trying to understand the conception of a new kind of philosophy that searches, through interculturality, to decentralize philosophical reflections : these are the goals of this research.

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Interculturalidade latino-americana em Raúl Fornet-Betancourt

Rodrigo Viana de Lima - UFES

Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo apresentar o tema da Interculturalidade concebida por Raúl Fornet-Betancourt, na forma como esta é objeto e traço fundamental deste pensamento. Concordando que seu pensamento é voltado para a compreensão das mais diversas culturas, nesse processo serão buscadas no autor, por suas obras e comentadores, bases da filosofia intercultural procurando compreender a concepção de uma nova modalidade de filosofia que busca através da interculturalidade descentralizar as reflexões filosóficas; esses são os objetivos desta pesquisa. Palavras chave: Filosofia ocidental, libertação, inculturação, interculturalidade.

Abstract: This research has the goal to present the theme of interculturality designed by Raúl Fornet-Betancourt, the way it is object and fundamental feature of this thought. Agreeing that his thought is focused on understanding the many different cultures, in this process they will be searched on the author, for his works and by commentators, bases of intercultural philosophy trying to understand the conception of a new kind of philosophy that searches, through interculturality, to decentralize philosophical reflections : these are the goals of this research.

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Keywords: Western Philosophy, liberation, inculturation, interculturality

1.Sobre Raúl Fornet-Betancourt

Raúl Fornet-Betancourt nasceu em 1946, em Holguím, Cuba. Concluiu seu período escolar em Porto Rico e de lá foi para a Espanha estudar teologia. Logo trocou a teologia pelos estudos de filosofia. Ainda como estudante teve despertado seu interesse para os estudos da filosofia latino-americana.

Engajou-se no movimento estudantil em oposição ao governo espanhol da época, o que ocasionou sua extradição da Espanha. Exilou-se na França, em Paris, onde continuou seus estudos. Nesse período mantinha encontros com grandes pensadores como: Lévinas, Foucault e Jean-Paul Sartre, os quais influenciariam diretamente seus estudos.

Viveu por dois anos no Peru onde contribuiu com Gustavo Gutierrez – peruano – teólogo da libertação. Em 1972 foi para Alemanha. Em 1977 foi promovido professor em Aachen com seu trabalho “A fenomenologia ontológica em Jean-Paul Sartre”, com uma investigação sobre o Marxismo chegou ao doutorado na Faculdade de Filosofia y Letras da Universidade de Salamanca. Em Bremen habilitou-se com o trabalho: “Outro Marxismo? A recepção filosófica do marxismo na América latina”.

Ao classificar Cuba, seu país de origem, como sendo intercultural, o pensador justifica afirmando que a cultura

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cubana é formada pela mescla das culturas européias (dos colonizadores), africana (dos escravos) e indígenas (originários da terra). E também porque Cuba faz parte do espaço cultural latino-americano, que é fortemente cunhado pelas culturas indígenas, que desde o século dezessete vêm sofrendo forte abafamento dessa cultura, mas que tem resistido bravamente.

Ao se colocar como habitante do mundo, Raúl Fornet-Betancourt vivencia culturas de diversos países e seu pensamento se molda pela “mescla” de teóricos das mais variadas teses. Assim de um lado recebe influência dos teóricos europeus e equilibra com influências de pensadores latino-americanos.

Em 1989 dá inicio a um programa de diálogo entre a ética do discurso e a filosofia latino-americana da libertação, que tem por objetivo a abertura entre filosofias do Sul e do Norte. É também coordenador dos congressos realizados desde 1995 para a filosofia intercultural, onde diversos pensadores se empenham em mudar a filosofia local. Todos influenciados pela personalidade de Raúl Fornet-Betancourt, por sua obsessão pela interculturalidade. Os seminários e congressos semeiam o principal interesse do autor em sua pesquisa. E sua disposição com o pensamento filosófico latino-americano mesclado com alguns princípios filosóficos e teológicos europeus.

A diversidade cultural dos locais em que Raúl Fornet-Betancourt passou boa parte da vida foi um fator facilitador para sua direção rumo à interculturalidade.

2.Roteiro rumo à interculturalidade

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De inicio deixamos claro que a interculturalidade não pode ser confundida com noções de: multiculturalismo, nova filosofia da cultura ou uma super filosofia transcultural. O que cabe a ela é uma realidade ainda em construção. Seu desdobramento temático gira em torno de uma relação entre as culturas nativas e histórica – escravos e dominadores – em comunicação entre si, acreditando no aprendizado mútuo por meio do dialogo, assim mantendo um principio de dignidade entre todas elas.

Não podemos também relacionar a interculturalidade como uma espécie de equilíbrio espiritual, que supera o problema das ciências naturais, filosofia, religião ou das culturas diversas. O que é pretendido por ela é criar um ponto de partida distinto, afastando-se de convenções locais, nacionais e internacionais que seja imposta por uma cultura dominante.

A interculturalidade representa um avanço no que diz respeito ao multiculturalismo no sentido que este se refere à presença em um mesmo lugar de culturas diversas, que não estão necessariamente ligadas entre si. O multiculturalismo pretende defender a liberdade e a igualdade entre as culturas, buscando conquistar o respeito e a tolerância, com isso complementa a necessidade do reconhecimento da interculturalidade por sua parte independente da manifestação cultural que se apresente, buscando somente o respeito e o reconhecimento. Daí a evolução de uma sociedade multicultural para uma intercultural deve ser realizada mediante dialogo entre eles.

Interculturalidade seria o nome de uma linha filosófica que apesar de reconhecer seu centro busca ir além das diferenças entre filosofia, cultura e religião. Por isso não

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absolutiza nem singulariza nenhuma destas. Dessa maneira se sobressai a qualquer comparação que implicaria um ponto fora do neutro que não existe se pensando em justiça. A interculturalidade cria um posicionamento próprio a nível metodológico e filosófico, não cede privilégios a nenhum sistema conceitual ou tradicional, mais privilegia a cultura nativa. Não trata com a filosofia, cultura e religião como sendo essas criadoras de signos que tornam destaques cada uma delas em seu contexto.

Dentro de uma comunicação, a interculturalidade aparece como caminho de pensamento e de vida por um duplo movimento: querer entender e ser entendido. Caracterizando, assim, uma abertura em busca da fusão entre as filosofias, culturas e religiões, que seria uma retomada do diálogo em uma única visão e percepção do mundo. Em um nível de relação que implica o âmbito sócio-cultural, seja individual ou grupal, também podemos tratar dentro de um comportamento intercultural de cada sociedade e cultura de acordo com as seguintes condições: tratar como condição inicial a diversidade de pessoas e culturas, facilitar a comunicação através das diferenças filosóficas, culturais e religiosas com respeito mutuo entre pessoas.

Alguns autores apresentam uma linha de que existe uma parcela de interculturalidade distinta para cada sociedade. Essa linha abre a reflexão da aceitação e compreensão que é a chave para esse tipo de relação em tudo o que desperta, com isso favorece um caminho que ultrapassa e aumenta as comunicações e trabalhos em comum, o aumento dessas capacidades serve de instrumento para criar a própria imagem e adequar-se a situação intercultural especifica. Isso cria a necessidade de uma adequação de comportamento diante dessa

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realidade e cria um modelo capaz de reconhecer as próprias necessidades respeitando os outros. È importante dizer que para esse modelo trazer resultados, é necessário a existência de um plano político local e internacional que o permita.

Assim podemos dizer que a interculturalidade revela sua aposta no diálogo mútuo, o crescimento mediante a fusão entre filosofia, religião e as culturas diversas, a compreensão da cultura, a coragem de aprender a pensar novamente a luz das diversas tradições evitando cair na mesmice: conquistar e forjar o outro a minha visão e auto-compreensão, o que está relacionado com compreensão superior a realidade e razão em se contexto. Analisando assim não se entende por qual tipo de autoridade se acha licito impor-se ao outro.

Segundo o principio da “originalidade da cultura” e com ele a pluralidade cultural, isto mostra que não temos que dominar, converter ou impor nosso modo de ser e de pensar a ninguém. Na verdade não existe um ponto homogêneo para a submissão de todos, mesmo que esse fato tenha sido predominante por muito tempo. A interculturalidade busca tratar bem, conhecer e aumentar a auto-compreensão do outro dentro de um dialogo que não o obriga a negar ou admitir tudo o que lhe é proposto.

A interculturalidade aposta em um diálogo fundado no principio da existência dialógica racional do ser humano que apresenta outros aspectos. Por isso, sempre nosso pensar, sentir e atuar se realizam em respeito a algo ou alguém. Isso significa assumir a centralidade do dialogo para se ter acesso a uma determinada relação, instaurando a inter-subjetividade como partida para animar, renovar e reconfigurar o aspecto epistemológico conceitual em seu amplo sentido, nessa compreensão de cultura e da vida partindo da filosofia. Na

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realidade nosso “conhecimento” tende ao “desconhecimento” de outros mundos, de modo que o nosso olhar da realidade se dá distorcido, dificultando então entender e relacionar-se com ela (através de seus diferentes símbolos e códigos), assim impedindo o estabelecimento de uma comunicação autentica.

Temos de estar conscientes de que cada cultura tem definido historicamente a construção do normal e do natural (a priori). Isso se perde com as relações de poder, marcado pela desigualdade racial e cultural.

Para que um projeto possa ser qualificado de intercultural esse teria que assumir uma deliberada inter-relação entre as distintas culturas e se apresentar expressando em toda sua dinâmica e finalidade ultima. É possível afirmar que só modelos orientados pelos termos acima podem ser considerados “intercultural”. Temos que compreender que a condição fundamental para poder qualificar como “interculturalidade” é sua concepção como um processo permanente e sempre inacabado.

3. Aproximação teórica

O próprio Raúl Fornet-Betancout se baseou em diversas

teses e princípios filosóficos europeus, estimulando-se com essas, o que marcou as diversas mudanças em sua caminhada. Ele se encontra em uma tradição originalmente judaico-cristão, de um humanismo ético-crítico, a mesma tradição que serviu de linha condutora para diversos pensadores como Herder, Marx, Sartre, Lévinas e também para pensadores da filosofia da libertação.

Ele analisa a interconexão desses princípios no fato de expressarem uma humanidade, observada como parte da

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formação da existência humana, qualificada como si mesma. Essa subjetividade se interessa no outro no sentido literal, eticamente direcionada. Essa construção se desenvolve, segundo seu entendimento, em uma tradição humanística libertadora, apresentando conceitos de uma subjetividade real que se alimenta da recordação de todos aqueles que lutaram por sua humanidade negada.

Neste ponto, a filosofia desenvolvida por Sartre causa grande influência pelo engajamento político, pela reflexão e por se conectar com a situação real. Esse contexto desenvolvido por Sartre o trás à reflexão, contudo, ele vê a chance de superar a diferença entre universalidade e particularidade. Construindo sua própria tese, ele amplia a filosofia Sartreana, por uma de relevância ético-prático, o que motiva o princípio filosófico de Raúl Fornet-Betancourt; “O esboço ético de Sartre quer ser entendido como perspectiva de um processo aberto para dar sentido à história da frágil emancipação do homem através da práxis libertadora”. Por essa práxis, as pessoas organizam sua liberdade dentro de uma práxis comum. Ela se transforma em uma soma de forças que busca a construção de um “reino humano”, que propõe um acerto mais justo com a materialidade, que não se trata somente de uma simples distribuição de bases de vida. Raúl Fornet-Betancourt analisa Sartre como um esboço de uma práxis solidária que interrompem com o poder dominador e com os dominantes. Essa foi uma das contribuições em direção à sua construção do ético-prático.

Ele também apresenta conexão com o interesse de Sartre em fazer jus à existência do outro. Sartre não encara o ‘outro’ como objeto de conhecimento, nem como idéia reguladora e sim como ‘corpo’. Sua relação com o ‘outro’ não é de

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conhecimento e sim de ‘ser’, por isso torna o mundo intersubjetivo. Buscando em Hegel, Sartre diz: “O caminho à minha mesmice passa necessariamente pelo ‘outro’”. Fornet-Betancourt valoriza o esforço de Sartre em apresentar o ‘outro’, e o critica por não apresentar o ‘outro’ como real, o qual eu encontro e não como o que eu nomeio e o perco na generalidade.

Contudo, ele funda seu próprio inicio tendo como base Sartre, porém busca desbravar outros caminhos, mudando o enfoque. Diferente de Sartre, ele constrói seu pensamento em uma dimensão dialógica e, na intersubjetividade, trabalha com a idéia do ‘ser-um-para-o-outro’ de Sartre e com a concepção heideggeriana do ‘ser-com’ (abstrato, que se perde na mesmice) e altera para o ‘ser-com’ real (concreto, que “é”). Assim o ‘ser-para-o-outro’ apresentado por Sartre é criticado por Fornet-Betancourt, por apresentar a prioridade do ‘outro-sujeito’ o que ameaça o ‘outro’ real a se tornar novamente um princípio apriorístico. Assim o ‘ser-para-o-outro’ não é entendido por ele como é por Sartre, na forma de carga (insuportável) e sim como alicerce do ser humano que abre diversas possibilidades.

Neste inicio da jornada rumo a interculturalidade, seu pensamento e suas idéias ainda não foram concebidos, porém, essa critica a Sartre não é uma simples crítica contra a filosofia européia que se contrapunha à própria tese desenvolvida. Através do pensamento da dialogicidade e da intersubjetividade são criadas bases que, mais tarde, são somados com outras bases, o que contribui para o inicio do desenvolvimento teórico da própria tese da interculturalidade.

Também de grande contribuição em sua construção teórica foi o confronto com a filosofia latino-americana. Em

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seus primeiros escritos, Fornet-Betancourt explicita sua admiração por diversos filósofos latino-americanos e cria certa aproximação com eles.

No período de sua formação filosófica, no trato da filosofia latino-americana – o próprio conceito que sugere unicidade já é desorientador – já que tudo estava em movimento. Neste contexto perturbador ele também busca encontrar sua própria posição, ao ter avaliado todas as posições individuais dos diversos pensamentos analisados. Neste momento ele dialoga com diversos pensadores latino-americano. Tratarei dos diálogos em um parágrafo próprio.

É importante apresentar até que ponto ele reconheceu a importância de se pensar filosoficamente e o quanto o exemplo europeu acrescentou para essa avaliação. Isso porque está em questão à filosofia latino-americana, que já havia sido levantada pelo pensador argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1884) e comentada nos anos setenta do século vinte pelo próprio Fornet-Betancourt por um artigo intitulado “Existe uma filosofia latino-americana?”.

O artigo é uma crítica por perceber que as universidades latinas apresentam um currículo quase que exclusivo da filosofia européia ou norte-americana, filosofia latino-americano é quase inexistente. O que encontramos em nossas universidades são disciplinas de filosofia latino-americanas isoladas e não em disciplinas como lógica ou ética, por exemplo, o que acaba por contribuir para discriminação. Pensadoras latinas não são reconhecidas como filósofas, isso é causa da descriminação dos europeus, mas também pela falta de auto-apreciação dos latinos-americanos e latinas-americanas.

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Nos tempos de Alberdi a descriminação do “latino-americano” era ainda mais transparente. A desvalorização do todo cultural, chegava ao ponto de dizerem (europeus) só terá futuro a America Latina se dada sua europeização.

Neste ponto de busca por uma auto-afirmação, Alberdi apresenta a necessidade de uma nova filosofia nacional e latino-americana, o que ainda não existia. Ele propõe como ponto de partida os problemas latino-americanos e pontos históricos, para assim se criar uma filosofia pura latino-americana, sem rejeitar os fundamentos da filosofia européia, que deve ser usada como base e não como fim.

Em seqüência apresenta-se com muita intensidade a questão sobre como deveria ser o formato de uma filosofia latino-americana ainda a ser concebida. Trataria de uma nova filosofia que só teria validade para a América Latina? Ou deveria ser uma filosofia partindo da América Latina com relevância universal? O ponto alto foi o IX Congresso de filosofia latino-americano em 1977, onde pensadores latinos apresentam suas opiniões.

Este conflito em torno da filosofia é frutífero, por que trás à reflexão a questão sobre se existe uma ou mais filosofias e como se posiciona Raúl Fornet-Betancourt neste embate. Ele deixa claro que sua posição é muito crítica perante as teses e pensamentos até então apresentadas.

Fornet-Betancourt apresenta seu conceito de filosofia: “Para nós, a filosofia é uma ação

essencialmente humana. [...] Em outras palavras, filosofar não é apenas uma reflexão sobre o humano e tudo o que determina o humano, porém, filosofar também significa viver

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a partir de acordo com o essencialmente humano” (Problemas actuales de La filosofia em hispanoamerica, Buenos Aires, 1985, p.29)

Essa afirmação apresenta duas coisas: de um lado ele

considera que filosofar é tipicamente humano e, de outro, a filosofia “termina” no agir humano ou pelo menos deveria sê-lo. Esta sua convicção aponta sua posição ante a filosofia latino-americana.

Sua posição para a ação o liga com diversas posições da filosofia latino-americana. Esta convicção de que a filosofia não é um fim em si mesma se torna uma marca do seu pensamento.

Sua primeira declaração merece uma explicação: se a filosofia é tipicamente humana, então ela é universal, no sentido de conteúdo, quando uma filosofia surge num determinado lugar e se universaliza a partir dali, porém universal no sentido de pensamento ou reflexão que podem surgir e são praticadas. Assim Fornet-Betancourt fica indiretamente distante da filosofia ocidental, a qual com freqüência impõem uma pretensão de representação exclusiva e não reconhece outro pensamento com prestigio de filosofia. Com isso ele também concorda que o âmbito histórico e a situação real determinam a filosofia, já que ela como todo movimento humano, só acontece no espaço e no tempo.

Ele busca se distanciar do rigor dos particularistas. Se uma filosofia surge de uma determinada situação, sem que aja impedimentos, ela é mais que uma simples reflexão sobre essa situação: “Porque aquilo pelo que realmente se pergunta não é a simples situação, porém, precisamente aquilo que qualifica esta situação enquanto tal, ao aparecer como o que nela está em

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jogo, a saber, o próprio ser humano em tudo o que lhe é próprio.” Trata-se, para Fornet-Betancourt, do natural humano, do que é indispensável que ele separa claramente das circunstâncias. Uma filosofia que mistura todas essas coisas, para ele, não é filosofia.

Neste ponto o autor tende a uma posição universalista, na qual se dialoga com uma philosophia perennis. Contextualizada nesta fase do seu pensamento, em que ele dialoga com uma filosofia pura, nem de longe segue sua tese final da Interculturalidade. Seu contato com a filosofia latino-americana, pelo menos às teses de cunho particularista, neste ponto, pode ser assinalado como criticamente distante.

Em paralelo, chama à atenção a profundidade do seu envolvimento na filosofia latino-americana, apresentada em autobiografias e em muitas obras posteriores. Ele deixa explícita sua aproximação com o pensamento de José Martí, que pregava a interconexão com formas de pensamento vétero-americanas e criticava uma filosofia apenas ocidental, ele entende ai um verdadeiro pensamento latino-americano. A filosofia latino-americana de Juan Bautista Alberdi a Leopoldo Zea, que ele, em 1985, em “Problemas actuales de la filosofia em hispanoamérica”, não olhava com bons olhos por considerar uma construção muito particularista, ele passa a considerar como pilar de uma construção filosófica intercultural. A filosofia latino-americana é para ele um “modelo de uma filosofia prática, que representa um contexto histórico no qual aquela se encontra.

4.Diálogos

De entrada devemos apresentar que este subtema deve contribuir na construção da tese da Interculturalidade de Raul

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Fornet-Betancourt. Trataremos aqui com dois grandes pensadores da filosofia latino-americana Leopoldo Zea e Enrique Dussel. Deixamos claro que outros pensadores latino-americanos como: Arturo Ardao, Arturo Roig, Luis Villoro, José Marti, etc, foram de suma importância no dialogo construtivo da tese da interculturalidade.

Traremos aqui um dialogo mais profundo com a filosofia latino-americana e seu próprio passado, com suas expressões históricas, com figuras e instituições que determinam as linhas de seu desenvolvimento, em uma única palavra, diálogo com a história; pelo que está não só da direção e inspira suas articulações presentes, como perpetua muitas de suas práticas atuais, em nível do ensino escolar ou universitário ou mesmo no âmbito da investigação.

Não existe prática intercultural sem vontade e exercício de tradução, isso quer dizer que a perspectiva intercultural que apresentamos aqui como horizonte de autocrítica da filosofia latino-americana deve somar para deixar nítido que a filosofia latino-americana não pode responder o desafio da interculturalidade sem passar por uma dura mudança que busque descentralizar sua história e com isso abrir seu presente a uma diversidade de formas de expressão e de práticas do filosofar.

Seguindo um lugar comum da historiografia filosófica da América Latina, na forma de filosofia que desde Juan Bautista Alberdi (1820-1884) se fixa com o nome de “filosofia americana”. Iniciaremos o dialogo com dois dos grandes nomes da filosofia latino-americana.

Começamos com Leopoldo Zea, não só pelo que seu nome representa na filosofia latino-americana, mais acima de tudo porque nenhum outro filósofo na América Latina assumiu

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tamanho compromisso e empenho em tornar o “1992” (data comemorativa dos 500 anos da chegada dos europeus na América do Sul) um tema de reflexão filosófica contextualizada.

Mesmo que a principio Leopoldo Zea aponte o eurocentrismo que é nítido na categoria “descobrimento”, suas obras posteriores sobre o assunto não deixam duvidas de que para ele a comemoração dos quinhentos anos de “história comum” não é a oportunidade favorável para aceitar o desafio de um dialogo (intercultural) no interior da America Latina, se não uma grande chance de trabalhar a reconciliação da comunidade ibero-americana.

Para que se compreenda a tese central da filosofia da história latino-americana de Leopoldo Zea, é importante entender que sua base de interpretação é a idéia de “latinidade”, e essa também é sua base para tratar com o “1992”, motivo que o impede de ter o justo alcance do desafio intercultural proposto por povos indígenas e afro-americanos, em suas mobilizações pelos direitos à autodeterminação política, cultural e religiosa. Leopoldo Zea trata com esse assunto como sendo um problema de incorporação nos âmbitos nacionais vigentes, pois ele não entende que o “indígena”, ao menos no México, passe por problemas de diferenças culturais e sim por uma falta de integração social e econômica. “O problema não é o indígena como sujeito de uma cultura diferente, o indígena tem direitos como mexicano, não como pertencente a esta ou àquela outra etnia”.

Dentro de um projeto de entendimento da América Latina com a “Ibéria”, da integração do mundo ibero-americano como sendo um bloco cultural mestiço e porta voz do mundo anglo-saxão, dentro das formas da globalização

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atual, Leopoldo Zea nivela as condições culturais que o evento do “1992” acrescenta, na América Latina, para ler essa data exclusivamente sob o signo do lema do “Encontro de dois mundos” o qual anula o significado histórico dessa data como acontecimento que chama ao encontro intercultural os muitos mundos americanos, ou seja, ao “descobrimento” que reconhece a diversidade cultural da América Latina nos povos e culturas vivas que reclamam, justamente, o fim dos discursos e políticas que os incluem muito rápido em um mundo mestiço onde o setor-chave (política, economia, educação, religião) nunca tem podido cogovernar.

Leopoldo Zea não percebe que para a América Latina o “1992” é o Kairós (Deus da mitologia grega. Na filosofia grega e romana é a experiência do momento oportuno) do “encontro de dois mundos” no interior da América Latina; o Kairós da reconstrução intercultural que não rejeita nem a latinidade nem a mestiçagem como ponto de identidade, mais as repõe como parte de uma construção de diálogos e práticas culturais, e não como espinha dorsal do desenvolvimento cultural na América Latina.

Trataremos agora com Enrique Dussel, outro nome importante e representativo da filosofia latino-americana ainda dentro do tema do “1992”. Para esse dialogo servirá de referencia sua obra “1492. o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade”.

Enrique Dussel levanta sua voz para apresentar a questão do “1992” do ponto de vista do “outro” (da vitima) e fala de um combate violento em desigualdade que pede uma “celebração” senão uma “explicação ao índio americano”. Ele marca sua posição olhando para o “outro” e assim constrói seus

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argumentos percebendo o Kairós com que o “1992” encara a filosofia e a teologia na América Latina.

Desde sua escolha pelo “Outro” e desde sua crítica à ideologia dominadora que dela se desprende, ele apresenta em outro momento importante de sua argumentação a visão européia do “1492”, que para ele é o resultado de uma falsa miragem eurocêntrica e que não pode, por conseguinte, se não desconhecer ou encobrir ao “outro”. As criticas direcionadas ao eurocentrismo nos discursos sobre o “1492” é um passo realmente importante em sua argumentação já que sua intenção é firmar a tese de que o “1492” é a data que nos deixa frente a frente com o fato histórico à “origem do mito da Modernidade”. Mas sabendo que isso é um mito e para ele um mito que deve ser desmitificado em sua origem, que atua fortemente para fazer da Europa o centro da história universal onde; historicamente, só a Europa aparece, o resto do mundo, o “Outro”, fica fora de tudo e é reduzida a coadjuvante nas glórias européias.

Dentro de uma perspectiva da visão européia do “1492”, Enrique Dussel aponta como a ideologia eurocêntrica se fixa em figuras históricas (invenção, descobrimento, conquista, colonização, conquista espiritual) que devem ser revisadas como alteração de uma dialética de dominação imperial que não deixa lugar próprio, nem físico nem cultural para a alteridade do “Outro”.

Enrique Dussel busca construir sob uma linha que pretende abrir horizontes para uma nova interpretação (não eurocêntrica) da história universal, onde a América Latina não fica como mera coadjuvante e sim como foco principal no momento que é constituido a chamada Modernidade na história

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mundial. Dussel busca mostrar o lugar da América Latina na história universal da qual tem sido excluída, ele diz:

“Com razão se tem afirmado que a

América Latina ficava excluída, como fora da história. A questão é propor uma ‘reconstrução’ que seja histórica e arqueologicamente aceitável e que ao mesmo tempo, corrija o desafio eurocentrista”. (1492. O encobrimento do outro, 1993 p. 12)

A contribuição de Enrique Dussel vem da forma como

ele “vê” desde “os olhos do Outro” ou seja, como toma para si o “espírito” que anima a “visão do Outro” e como faz uso disso na apresentação de sua argumentação, deixando claro uma fina sintonia com “a voz do Outro”.

Como já dissemos anteriormente é possível observar rapidamente o quanto a filosofia latino-americana influenciou diretamente o pensamento de Fornet-Betancourt. Em vários momentos ele se confrontou de maneira crítica com diferentes linhas da filosofia latino-americana. Ao mesmo tempo os diversos pensadores serviram de base solida para sua construção.

As observações críticas formuladas na apresentação desses “grandes nomes” da filosofia latino-america ao fenômeno intercultural e o seu desafio para o fazer filosófico em Nossa América são limitações assinaladas devido às suas colocações que podem também ser comprovadas por suas respostas à pergunta sobre a situação da filosofia no fim do século XX.

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Esse fato tem importância por remeter às respostas de Leopoldo Zea, Arturo Andrés Roig, Enrique Dussel e Luis Villoro, refere-se a um documento de biografia intelectual e de autopercepção, que permite balancear, com base numa primeira versão direta, como e de que maneira esses pensadores tem assumido o desafio do dialogo intercultural em seu desenvolvimento e qual nível de prioridade ele tem dado ao desenvolvimento de suas próprias posições. Digo que estas respostas deixam claras as limitações marcadas em suas colocações, porque, se são testemunho de um grande esforço em contextualizar a filosofia em nosso meio, e como diz Leopoldo Zea articular “um filosofar a altura do homem”, não se vê nas respostas que se tenha tomado consciência de que esse processo contextualização seguira sendo incompleto e deficiente enquanto não se considere como um processo que exige também a abertura da filosofia à diversidade cultural que informa a realidade dos contextos de vida da América Latina, e que tem, por isso mesmo, como parte integral de sua dinâmica o encarar esse dialogo entre as culturas presentes no continente como um desafio de transformação radical da filosofia latino-americana.

Assim, por exemplo, Enrique Dussel insiste em projetar mundialmente seu projeto filosófico da filosofia da libertação, na figura de uma ética universal da vida; Arturo Andrés Roig propõe priorizar a reflexão sobre a constituição da subjetividade latino-americana à luz da categoria da dignidade humana; Luis Villoro sublinha a importância de fundamentar uma nova ética e Leopoldo Zea ressalta, como linha de futuro prioritária, a perspectiva orteguiana de pensar em dialogo com circunstâncias e experiências próprias. Projetos todos eles, sem duvida, fundamentais para o desenvolvimento contextual da

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filosofia na América Latina, mas que não fazem cargo, todavia, de que a diversidade cultural com que os confronta a mesma contextualidade do continente, os desafia com a tarefa prioritária de refazer a filosofia latino-americana desde o dialogo entre todas as culturas que compõem a riqueza plural da América Latina.

Por outro lado, é pertinente advertir, nesse contexto, que o impacto do kairós da conjuntura histórica do “1992” não se deixou sentir somente entre os representantes consagrados da filosofia latino-americana. Por isso, há necessidade de ampliar nosso campo de análise (Interculturalidade: crítica, diálogo e perspectiva. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004.).

Fornet-Betancourt é especialmente influenciado por José Martí, a quem ele admira como pensador e crítico, que busca assumir a realidade e liga seus esforços de compreensão com responsabilidade ética.

5.Cultura

Se nos questionarmos sobre o que significa para Fornet-Betancourt uma filosofia intercultural, de uma maneira definidora e conteudística, com o que foi apresentado até agora, certamente observaremos uma controvérsia com sua construção final. Assim trabalharemos com a fase de seu pensamento que se entende como filosofia intercultural, essa que se dá por meados dos anos noventa do século vinte.

Antes de entrarmos em interculturalidade temos que apresentar o que Fornet-Betancourt entende por cultura, a pensar que o discurso de cultura está na boca do mundo e serve de base do intercultural.

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Cultura para ele tem um significado muito grande, já que cada filosofia e cada pensamento são pré- determinados por seu contexto cultural.

Fornet-Betancourt compreende cultura como um conceito amplo e dinâmico, e não como unidade imutável, protegida, que determina o ser humano. Ele rejeita uma essência da cultura da mesma forma de um determinismo cultural, e vem cobrar respeito e reconhecimento em face da cultura, que ele aponta como nossas reservas, conceito que mostra que são responsáveis pelo nosso pensar e agir, a fonte da qual “bebemos”. O respeito e o reconhecimento não podem ser comparados com conservação de culturas ou como afirmação de um estado persistente de cultura, e sim a chance para que cada indivíduo tenha no âmbito da cultura a possibilidade de tomar posse de suas tradições, lidar com elas e modelá-las. Reservas culturais não podem ser confundidas com relíquias, pois se trata de uma riqueza atual e presente.

Culturas são “horizontes de compreensão e ação que devem ser concretizados no dia a dia, por seres humanos concretos os quais não interpretam unitariamente nem traduzem uniformemente aquilo que em cada caso nomeiam em sua própria cultura. Com isso também se diz que para a dinâmica interna de uma cultura pertence não só a confirmação de sua tradição, mas também a sua modificação, portanto, a dialética de tradição e inovação”.

Fornet-Betancourt chama a atenção que essa tradição que acentua a dinâmica de uma cultura de cultura só se sustenta quando “ela não se aposenta para viver de seus rendimentos”. Quando algumas culturas seguem unilaterais as suas tradições, elas interrompem seu próprio curso natural e passam a servir exclusivamente à conservação de uma herança de tradições.

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Fornet-Betancourt acrescenta que essa forma fundamentalista de cultura é uma não-cultura. Para ele cultura se destaca por sua força fundadora em ajudar seus membros de maneira orientada na realização de suas necessidades, na construção de um plano de vida, bem como no ajuste de suas preocupações.

Isso também alcança uma dimensão material, que Fornet-Betancourt formula em conexão com Herbert Marcuse – sociólogo e filosofo alemão:

“Há culturas onde metas e valores pelos

quais se define uma comunidade humana têm incidência efetiva na organização social do universo contextual-material que afirma como próprio porque nele se encontram”. (Transformación intercultural de La filosofia, 2001, p.181.)

Se as chances de uma cultura transparecer por seus

membros forem limitadas, a existência desta está em risco. Assim, pelas linhas da globalização econômica e a distribuição internacional de trabalho, privam nações e culturas de produzirem elas mesmas seus pilares que sustentem essas culturas, sem isso as mesmas correm risco.

Fornet-Betancourt apresenta seu entendimento sobre relação entre indivíduo e cultura. Nenhum humano existe sem cultura ou pode existir sem ela, mas, ao mesmo tempo ele não é refém e não é determinado por ela, mas pode relacionar-se com ela. A cultura faz o homem, como ele faz a cultura. Somos sujeitos de culturas e tomamos posse da cultura. Nesta reflexão ele se baseia na dialética sobre determinação e liberdade de Sartre, o que influenciou seu entendimento de filosofia já que

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para a filosofia a cultura não pode ser sem importância porque cada pensamento tem suas bases partindo de um contexto cultural.

Já que as culturas não são monolíticas, sempre existirá mais de uma tradição que – com suas tradições e conflitos – formam uma cultura. Assim dentro de cada cultura existem tendências libertadoras e opressoras, sua observação é sobre uma dialética de libertação e opressão nas varias tradições que formam uma cultura. Existe uma variedade intracultural, no campo do qual uma linha tradicional é particularmente fortalecida para fins de estabilização. O que chamamos de cultura pessoal já está ligado a uma determinada linha. E porque não existe uma sociedade ideal, assim sempre vão existir conflitos no campo comunitário. Por isso, as culturas não são processos limítrofes no sentido de simplesmente separar o próprio do estranho, mas as fronteiras são criadas dentro da própria cultura. Por isso a interculturalidade já está no ventre das culturas.

Pensando na riqueza de facetas de cada cultura, mesmo que ocultas, Fornet-Betancourt criou o conceito da desobediência cultural que é a mesma idéia da desobediência civil contra a opressão em âmbito cultural, e apela para isso a correntes libertadoras. A desobediência cultural descreve a práxis libertadora que se dirige contra a opressão, a filosofia intercultural pode apelar para essa desobediência cultural. Desobediência cultural surge do interior de uma cultura como critica de seu modelo, ela oferece a cada membro de uma cultura o direito de considerá-la mutável. A filosofia intercultural tende a assumir esta desobediência cultural e, pela experiência da oposição entre as diversas culturas, apresentar que cada uma tem o direito sobre sua concepção de mundo,

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mas que o mundo não pode se reduzir a ela. Por isso, cada pessoa pode se por em ligação com sua cultura e modificá-la, para isso ela pode rever tradições ocultas e reprimidas e até recorrer à comunicação com outras culturas ou desenvolver novas perspectivas a partir das velhas tradições.

A tese de Fornet-Betancourt apresenta que não só existem muitas culturas na história humana, mas também muitas tradições no âmbito de uma mesma cultura, as quais abrem mais uma vez, espaço para as diversas biografias de seus membros. Com isso uma cultura sempre apresenta diferenças entre determinação e liberdade e aponta para contradições sociais e religiosas. Por isso, seu olhar crítico de cultura, que a princípio sugere cuidado quando se fala de cultura, faz conexão com seu inicio no contexto latino-americano. Por que com muita frequência e sob a desculpa de uma cultura comum, é apresentado como monobloco o que não é unitário: as formas culturais crioulas, dominam frente as várias culturas e tradições indígenas e também as afro-americanas, que foram ignoradas, reprimidas ou oprimidas. Apontando as diferenças intraculturais, todas as linhas sejam de tradições particulares como também os indivíduos ganham força para tornar possível uma reinterpretação cultural.

A compreensão de cultura de Fornet-Betancourt permite perceber essas construções e abre para um dialogo mais crítico com elas.

6.Intercultural

A compreensão de cultura até aqui apresentada é uma

introdução central para a filosofia intercultural, pois faz

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conexão com a pluralidade intercultural, assumindo essa e concedendo permissão para que ela se expresse.

O conceito da diferença intra-cultural, que faz oposição internamente, mas que também se preenche alternadamente, se encontra em uma forma de diálogo e serve de hipótese básica para a interculturalidade, partindo do fato de que as culturas se encontram entre si em uma relação de troca, sem que isso ameace suas identidades. Fornet-Betancourt concorda com as bases teóricas da cultura, já que identidade cultural se estabelece num processo inacabado, pois para ela a orientação recíproca do si-mesmo e do ‘Outro’ é constitutiva. As identidades culturais se fecundam partindo de um limite pré-estabelecido e da influencia de outras culturas.

Fornet-Betancourt entende que o intercultural se coloca coma uma possibilidade de complemento, segundo o qual todas as culturas se completam alternadamente e, respectivamente, entram em diálogos recíprocos. Para que se defina interculturalidade é preciso partir do pressuposto de que ela apresenta um ponto de partida para o entendimento dialógico com outras culturas, e só assim irá se aproximar do que podemos entender por interculturalidade. Ele apresenta este tipo de definição como “definição contrastante”, contra uma definição que se entende como parâmetro, onde todas as outras devem tomar como referencia. Mesmo que o ato de definir não exclua inteiramente a violência, se mantem outra definição, que pode ser espalhada por outras, porém de maneira provisória e corrigível. Raul Fornet-Betancourt propõe uma definição de interculturalidade, nesse sentido provisório.

“Poderíamos [...] encarar a compreensão

do intercultural como metodologia que nos

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permite estudar, descrever e analisar as dinâmicas de interação entre diferentes culturas e que vê a interculturalidade como uma nova interdiciplina, com a compreensão do intercultural como um processo real de vida, como uma forma de vida consciente, na qual se vai forjando uma tomada de posição ética a favor da convivência com as diferenças”. (Filosofar para nuestro tiempo en clave intercultural, 2004, p.13.)

Essa proposta da interculturalidade poderia ser

considerada como projeto político para a reorganização das relações internacionais, ou mesmo como projeto cultural que gostaria de guiar a relação de cultura na base do reconhecimento e da reciprocidade. Poderíamos encontrar inúmeros conceitos para o assunto, mas, para que melhor possamos compreender não devemos tomar o conceito como definição, mais sim, buscarmos uma aproximação no âmbito conceitual num dialogo com a construção de Fornet-Betancourt. Para compreensão apresentamos que interculturalidade é uma postura do encontro e do dialogo com outras culturas e suas formas de pensar, que busca correção e enriquecimento mutuo.

Paralelo com a definição do conceito, a construção da interculturalidade pode ser entendida como determinação de lugar genuíno, interculturalidade não é comparação, Fornet-Betancourt não se interessa por comparação, por sobrepor posições, mas, dentro de um processo de interação, as bases individuais que aparecem nos diálogos se modificam. Ou pelo menos deveriam ter consigo essa pré-disposição. Essa é uma

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característica do pensamento de Fornet-Betancourt: entender que nenhuma cultura é perfeita, assim como não é perfeita uma tese filosófica, este entendimento marca o dialogo. Uma cultura que entende sua limitação e se abre a aceitar e aprender com outras, ela está disposta a partilhar sua riqueza e seu saber, sem impor-se diante ao ‘outro’. Com isso ela corre o risco de ser questionada e provavelmente modificada. “Arriscamos realmente a determinação cultural de nossa maneira de pensar ao encontrar-nos com vozes culturais que se oferecem como perspectivas para situar-nos e apresentar-nos a nós mesmos”

O diálogo intercultural pede, acima de tudo, paciência no encontro intercultural, requer tempo suficiente para que se possa perceber, entender e valorizar o diverso. O espaço para isso designa o inter, aquele espaço aberto do encontro no qual o diverso permanece primeiramente indeterminado e no qual a gente se abstém do juízo e da definição.

“Um quarto e definitivo passo consistiria

no cultivo deste inter, onde toda definição apressada é um erro, bem como toda precipitada declaração de harmonia pode ser expressão solapada de dominação”. (Transformaçión intercultural de La filosofia, 2001.)

Cultivar esse prefixo “inter” pode significar que primeiro

crie esses espaços, já que eles não se fazem presentes na filosofia acadêmica e nem na convivência social ou na política. Pelo uso do conceito Fornet-Betancourt ultrapassa a brilhante e frutífera dinâmica do inter, o qual lança em conjunto a

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possibilidade de modificação, que talvez não esteja ligado ao conceito do transcultural.

7.Filosofia

Mesmo que essa contribuição não esteja diretamente

ligada à filosofia intercultural, ela vem a somar no sentido de podermos constatar que o conceito de filosofia para Fornet-Betancourt se ampliou cada vez mais. Como vimos acima ele apontou que a filosofia deve dedicar-se ao essencial, ao puramente humano. Esta dimensão humana essencial liga todos os homens e é universal.

Para Fornet-Betancourt uma boa filosofia se comprova precisamente na maneira pela qual ela relaciona reflexão e contexto. Ele não abre mão da universalidade, porém, a apresenta de outra maneira. Nessa perspectiva a universalidade não surge pelo domínio e expansão do que lhe é próprio, ela surge das diversas experiências e apresenta um solidário coexistir. Ele não aceita um entendimento conceitual que trabalha universalidade de maneira eurocêntrica ou ocidental e constrói uma oposição entre universalidade e particularidade, ele entende universalidade no sentido intercultural, “porque a interculturalidade, para cuja práxis – observando de passagem – a contextualidade é condição de possibilidade e realmente está em decidida contradição com a globalidade, que produz a dominância das hoje dominantes culturas, mas não tem objeções contra a comunicação e a universalidade.”

Fornet-Betancourt fixa a tarefa da filosofia neste sentido com a definição hegeliana, segundo o qual a filosofia deve captar sua época em pensamentos. Ela deve estar em condições

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de trazer para o conceito quais os problemas e desafios de sua época e o que as ocupa.

“Neste sentido, pode ser afirmado que a filosofia

encerra uma tensão interna que, entre outros aspectos, se expressa pela constante recontextualização de sua reflexão em cada situação histórica”.

A filosofia deve posicionar-se sempre de novas maneiras

por sua época e encontrar respostas para as questões de seu tempo. Isso não significa romper com a tradição, isso faz parte do processo. Mais, se a filosofia quiser reconhecimento à sua tarefa de entender seu tempo e conceitos, ela sempre deverá retomar sua tradição, adaptando para uma reflexão do seu tempo. Dessa reflexão, primeiro é importante que se tenha consciência da própria contextualidade.

“Assim a filosofia da qual se parte é

exposição de uma posição que se expõe à discussão e que não exclui, portanto, a possibilidade de sua transformação teórica mediante o contraste argumentativo”. (Interculturalidad y globalización. Ejercicios de crítica filosófica intercultural en el contexto de la globalización neoliberal, 2000.)

A objeção de Fornet-Betancourt à filosofia acadêmica

européia, é por entender que ela não está consciente de sua contextualidade, ela pretende ser universal, vê a si mesma como a única e verdadeira forma de filosofar, fora desse padrão

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filosofia não é possível. Dessa forma ela não enxerga seus próprios condicionamentos contextuais.

Para compreender sua época, a filosofia deve se guiar pelos estudos e resultados de pesquisas de outras ciências, tais como, ciências econômicas, ciências sociais, ciências políticas, literatura, psicologia, etc. Por exemplo: das ciências econômicas, para analisar as ligações econômicas da globalização, da sociologia e ciência política, para entender processos de modificação social; das etnias para ter um melhor entendimento de culturas estranhas. A interculturalidade tem papel importante na filosofia intercultural, mesmo que na prática ela tenha a aparência de ainda não ter traduzido essa exigência programática. Fornet-Betancourt entende que filosofia não se limita a uma reflexão textual, ela não cria uma hermenêutica textual e sim uma hermenêutica do contexto. Supõe-se que uma filosofia que conheça seu contexto não lhe seja indiferente. Onde a filosofia nota situações inadequadas, ela quer mediar modificações. Ele entende que é relevante na práxis, mais contribui na linha da filosofia da libertação.

Ele identifica a vontade de mudar uma práxis social não só em tradições da filosofia latino-americana, mais também em correntes européias. Uma filosofia que brota da insatisfação com fatores de injustiça busca superá-la, alcançando assim importância prática e dimensão crítica. Assim a filosofia não se torna fim em si mesmo.

Percebendo que a filosofia contemporânea raramente se da conta dessa função, se torna necessário uma mudança da filosofia. Critica a essa filosofia ocidental estabelecida, que é por sua história dominada pela busca de certezas absolutas, verdades imutáveis e do homem em si. É ponto de partida da interculturalidade. Já que a interculturalidade pressupõe

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diversidade e diálogo, essa linha não é possível, quando, a impossibilidade de mudança e a certeza absoluta são os maiores valores. Por isso torna a crítica a essa tradição cultural indispensável. Fornet-Betancourt não se contém nas críticas, ele busca ultrapassar o horizonte da crítica com novas propostas que sirvam como alternativas de um “processo de aconselhamento e de troca”, para assim chegar a um conceito aberto e mutável de razão.

Trata-se de uma mudança em busca de uma filosofia da contextualidade e da interculturalidade, que não se completa e procura complemento, para isso são apontadas linhas encobertas de tradições no âmbito de uma filosofia e alterada a diversidade intracultural.

Tal filosofia alcança não só o âmbito restrito de filosofia acadêmica, mas também as formas de um saber cultural e popular. Ela não se posiciona somente no texto mais também no contexto. Fazendo uso não somente de textos escritos como também das tradições orais, como, mitos e canções se tornam ferramentas do filosofar.

Um diálogo intercultural que assume aqui seu ponto de partida é então um dialogo “sobre e entre situações do humano, e não como um intercâmbio de idéias abstratas orientadas para embelezar a liturgia ou o culto do pensamento alheio à realidade”. Na orientação de Fornet-Betancourt pela vida e pelas situações cotidianas dos humanos, que é expresso com particular clareza no artigo “Interculturalidade e barbárie” aparecem mais uma vez a influência da filosofia de José Martí e de Jean-Paul Sartre.

Desta forma, o cotidiano das pessoas e as tradições especificas das múltiplas culturas alcançam a máxima importância. É verdade que entre a verificação programática e

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metodológica de que o dia a dia das pessoas é filosoficamente importante e a real tradução de conteúdos dessa exigência permanece um vazio: a condição ainda não parece muito clara, de forma pratica. Não é possível dizer que a filosofia surgira quando a situação de vida de uma mãe educadora única no Peru, à vida de crianças migrantes em Honduras ou o dia a dia do trabalhador jornaleiro na Argentina se tornam um local filosófico. Aqui faltam valores vivenciais da ainda jovem filosofia intercultural.

Essa filosofia como é exigida, ultrapassa a racionalidade monológica da filosofia tradicional dominante. Ela se vê como um pensar que se desprende da monocultura em direção pluralidade cultural, ela funda suas bases na interdiciplinaridade e se direciona a práxis.

Filosofia, para Fornet-Betancourt, não significa filosofia no sentido estrito e acadêmico. Ele deixa claro por ele próprio não separa rigidamente no emprego dos conceitos de filosofia intercultural e interculturalidade. Referências Bibliográficas FOURNET-BETANCOUT. Raul. Questões de método para uma filosofia intercultural a partir da Ibero-América. São Leopoldo: Ed. UISINOS, 1994. ___________________. Interculturalidade: crítica, diálogo e perspectiva. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004. ___________________. Religião e Interculturalidade: Nova Harmonia, 2007. ___________________. Marxismo na América Latina, O: Unisinos, 1995.

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____________________. Problemas actuales de La filosofia em hispanoamerica. Ed. Fundação para o estudo do pensamento da Argentina e da America Latina. 1985. ____________________. Transformación intercultural de La filosofia. Ed. DescléeDeBrouwer, Bilbao, 2001. ____________________. Filosofar para nuestro tiempo en clave intercultural. Ed. Aachen, Mainz. 2004 ___________________. Interculturalidad y globalización. Ejercicios de crítica filosófica intercultural en el contexto de la globalización neoliberal. Ed. Frankfurt/M.: IKO – San José, Costa Rica: DEI, 2000. BECKA, Michelle. Interculturalidade no pensamento de Raúl Fornet-Betancourt. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2010. DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade; Ed. Vozes, 1993.