mÁrquez, raúl. limites e ambiguidades da vicinalidade num bairro de salvador

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    Limites e ambiguidades da vicinalidade num

    bairro de Salvador

    Ral Mrquez

    Universitat de Barcelona

    RESUMO: Em Palmeiral, um bairro de autoconstruo na periferia deSalvador da Bahia, a aquisio e conservao de moradia dependem dodesempenho social, da capacidade de ocupar uma posio respeitvel e deintegrar-se numa vicinalidade (uma rede de famlias/casas que formam ummbito de inter-relao e troca de favores). Porm, manter essa posio podeser complicado. A funcionalidade dessas redes limitada, gerando frequen-temente tenses e conflitos. Por um lado, atravs do exame de situaesquotidianas e casos que tm a ver com a propriedade, este artigo abordao carter ambguo das dinmicas de vicinalidade. Quais os benefcios e as

    cargas que suportam os que se integram nelas? Qual o alcance da reciproci-dade que desenvolvem? Por outro lado, o artigo critica a viso simplificadaque alguns documentos oferecem dessas formas de reciprocidade, vises queignoram seu carter complexo e ambivalente.

    PALAVRAS-CHAVE: Reciprocidade, redes sociais, vicinalidade, proprie-dade informal, autoconstruo, invases, Salvador da Bahia.

    Para surpresa de muitos, em Setembro de 2006, a Prefeitura de Salvadorescolheu Palmeiral1, um bairro de autoconstruo na periferia da cidade,para implementar o Plano de Bairro, um programa que queria explorar acapacidade da comunidade para identificar e resolver seus prprios proble-mas. Nas reunies onde o plano foi discutido e nos relatrios produzidos

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    pela equipe de tcnicos da Prefeitura, Palmeiral era efetivamente apresenta-

    do como uma comunidadecujos residentes desfrutavam de fortes redes desolidariedade interna ( e Prefeitura, 2007: 18). al caracterizao trazconsigo algumas questes. Precisamente que tipo de comunidadeconstituiPalmeiral? Quais so essas tais redesto louvadas pelo Plano? Que cartere funes cumpriam elas? Independentemente de saber se o diagnsticoera errado poca2, o fato que a realidade social do bairro, ento marca-da pela existncia de reas de sociabilidade restringidas e pela atuao delideranas sectrias, parecia contrastar significativamente das intenes do

    Plano de Bairro. Seja como for, o Plano nunca foi acabado: em Agosto de2012 tinham sido elaborados vrios relatrios, mas ainda em nada haviaavanado a implementao do estatuto (uma regulao ad hocque deviaser gerida pelos prprios vizinhos).

    Neste ensaio, pretendo usar a noo de vicinalidade para analisar o con-texto deste bairro, focando as prticas de reciprocidade desenvolvidas pelosmoradores que fundamentam essas vicinalidades. Como veremos, emergena vida do bairro um tipo concreto de rede, no qual a reciprocidade entrevizinhos tem um papel destacado para fins de sobrevivncia e segurana,que, ao mesmo tempo, revela-se restrita e at conflituosa. Aps descrevera configurao social do bairro e o tipo de apoio que existe entre vizinhos com especial nfase questo da propriedade e do patrimnio , vamosrecorrer a algumas teorias clssicas da vicinalidade e reciprocidade (Sah-lins, 1977; Webster, 2006; Lomnitz, 1981; entre outras) para situar o queacontece no bairro numa perspectiva comparativa. Na segunda parte do

    artigo, no entanto, detemo-nos nas ambiguidades e tenses dessas mesmasformas de reciprocidade, nas limitaes e conflitos presentes nas vicinali-dades. Meu objetivo aqui oferecer maior complexidade descrio docaso, fugindo da viso simplista que algumas vozes tm de contextos comoPalmeiral, e buscando contribuir para a compreenso das dinmicas derelao e reciprocidade que existem s vezes nesses contextos3.

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    Redes e reciprocidade num bairro de autoconstruo

    Situado no Subrbio Ferrovirio de Salvador, Palmeiral deve sua forma-o a distintos processos de ocupao informal iniciados nos anos 1980:vendas irregulares, ocupaes diretas (invases) e, com menor frequn-cia, arrendamentos e cesses temporrias. Em 2007 viviam a cerca de12.500 moradores, distribudos em aproximadamente 60 hectaresde terreno ( e Prefeitura, 2007). A extenso do lote variava emfuno do tempo de moradia e do prprio nvel de renda.

    Esbocemos uma breve histria do assentamento. Os primeiros mo-radores foram trabalhadores da Fazenda Periperi, propriedade que foiloteada a partir de 1981, dando comeo a uma colonizao dos terrenosque se estenderia durante anos. Diferentes movimentos de ocupaomais ou menos coletivos e organizados foram ocorrendo (o ltimo em

    Janeiro de 1987), protagonizados por famlias que procuravam conseguircasa prpria e tinham escutado a notcia de uma nova invasoacontecen-do no Subrbio. Com a exceo de alguns grupos de parentes, amigosou conhecidos participando conjuntamente da ocupao, as famliaschegaram a Palmeiral de maneira isolada, estabelecendo-se cada uma nolugar onde achava que havia boa gente: quer dizer, pessoas que tinham jseu lote trabalhado e que moravam de maneira permanente.

    Nos primeiros tempos, aps a ocupao de 1987, nota-se uma orga-nizao coletiva forte. Em 1988 foi fundada uma associao de mora-dores, responsvel, entre outras coisas, por uma tentativa de ordenao

    do assentamento e por lutar pelo reconhecimento oficial do bairro e pelachegada de servios bsicos. Guaxinim, um dos membros fundadores,logo tomou a dianteira da associao, sendo reconhecido como o chefedo bairro. Sua gesto autoritria alcanaria quase todas as reas de atua-o da associao, sendo provavelmente o lder que mais concentroupoder no exerccio de sua funo. Aps a sua morte, em 1991, vrios

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    chefes repartiram o controle de zonas menores. Em 1996 a associao foi

    reativada, mas sempre muito vinculada a uma liderana pessoalconcretae com uma atuao muito limitada. A partir dos anos 90 chegaram aobairro vrios programas de desenvolvimento, por exemplo, um projetode construo de redes de esgoto, o Bahia Azul, em 1999, e o referidoPlano de Bairro,em 2006. Ambos tiveram resultados frustrantes e umaparticipao limitada por parte dos vizinhos. ambm desde 2004, umaparte dos vizinhos regularizou sua posse, conseguindo uma concessoespecial de usoda Prefeitura.

    A configurao social do bairro um dos temas centrais deste arti-go, pelo que merece uma descrio detalhada. De sada, a trajetria decada morador a possibilidade de estabelecer e conservar o seu lote depende da relao com os vizinhos (especialmente os mais prximos)e da aquisio de um estatuto pessoal particular. Concretamente, emtermos de propriedade, para poder contar com apoio uma pessoa temque (a) mostrar um nvel suficiente de necessidade(elemento que justi-fica a apropriao de um terreno) e (b) trabalhar e ocupar visivelmenteo lote reclamado. Outras variveis contribuem para aumentar a forae o nmero dos apoios, tal como a forma como o acesso foi obtido(mais se no se ocupou diretamente) ou a deteno de contatos especiais.

    A questo que o estatuto de ocupante legtimo depende do cumpri-mento de requisitos mnimos e que, na prtica, conseguindo o aval devizinhos, a garantia de posse aumenta4.

    No incio da ocupao massiva foram muitos os casos de pessoas

    que perderam um lote marcado e ocorreram brigas entre ocupantes quereclamavam um mesmo terreno. Nesses casos, o apoio dos vizinhos eraatribudo segundo quem precisava mais ou quem tinha feito j algumtrabalho (como capinar ou construir um barraco). Observa-se, portanto,umjuzo feito por um grupo relativamente pequeno de moradores, osdos lotes contguos ao lote em disputa, e desenvolvido de maneira mais

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    ou menos privada. Normalmente, na hora de executara sentena, de-

    pendendo da rea e do momento, podia ocorrer a interveno de algumchefe ou lideranaimportante.Fato que, desde muito cedo, foram se desenvolvendo redes entre

    vizinhos: espaos de circulao de informao, bens e servios umtipo concreto de vicinalidade, como veremos. A maior parte delas soformadas por cerca de 4 a 10 famlias que moram perto, frequentementena mesma rua. Exceo so as constitudas ao redor de igrejas, terreiros,partidos polticos ou lderes, que podem ser mais extensas, mas tam-

    bm so normalmente menos estveis. A troca de igreja e at de credo frequente, assim como as rupturas com os partidos e os lderes, com osquais se mantm uma relao tipicamente clientelar, sem base moral e,portanto, sujeita satisfao continuada de demandas.

    H parentes participando na mesma rede de vizinhos e at morandojuntos. Porm, o eixo das redes no so as relaes familiares, mas simlideranas concretas: pessoas com um estatuto elevado, resultante dosconhecimentos ou contatos que possuem. Embora as redes se faamespecialmente visveis nos momentos em que o lder mobiliza o grupo,os vizinhos da mesma rede fazem trocas dirias: cuidam dos filhos unsdos outros, emprestam ferramentas, dinheiro, oferecem refeies. Destemodo, estar inserido ou no numa dessas redes acaba por determinar, en-tre outras coisas, maiores chances de ficar no bairro e mesmo de subsistir.

    As redes so tambm o espao de interao mais importante para cadavizinho. Por meio delas ocorre a parte fundamental de sua sociabilidade,

    de modo que no estranho que um morador no conhea ningumfora da sua rede (exceo feita, claro, s lideranas).

    Desde cedo no reconhecimento da ocupao do bairro, emergiu umahierarquia de estatuto que, para alm do tempo de moradia e da quanti-dade de contatos, baseava-se nos mesmos princpios que tinham fun-damentado a apropriao do terreno (a necessidade, o trabalho). Essa

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    classificao gira em torno a uma grande diviso: os bons vizinhose os

    marginais. Na primeira categoria esto includos os que tinham conse-guido legitimar sua ocupao, que se mostravam trabalhadores, respeita-vam os outros, cumpriam os tratos e no criavam problemas; na segun-da, os que no preenchiam essas condies. A questo que o estatutode bom vizinhotraz consigo garantias materializadas em apoios explcitos.Manter certa considerao na vicinalidade, na rede, vai assegurar certaajuda em caso de emergncia econmica e na defesa do patrimnio. Con-tudo, para conservar essa posio necessrio um esforo contnuo que

    passa por cuidar das amizades e manter o respeito dos vizinhos (mostran-do sempre trabalho), por ajudar quando for preciso e, por ltimo, noenvolver-se demais na vida dos outros um equilbrio instvel.

    Marcos invasorantigo tem bem clara a importncia das relaescom os vizinhos e antepe a segurana que isso oferece que ofereceriao poder pblico atravs dos seus ttulos. Quando lhe perguntei se sentiamaior segurana aps a regularizao das posses, respondeu: Eu nosinto mais tranquilo no, que a escritura no aquele papel, a escritura a minha presena. [...] S o ttulo no basta, que o papel se apaga, sedeteriora, no vale nada. tulo na realidade nossa convivncia. Ottulo a permanncia5.

    Pessoas com um estatuto especialmente elevado podem at deixar decumprir regras bsicas como a dapermanncia; justamente por contaremcom um apoio alargado ou fazerem parte de uma rede poderosa. Algunschamam isso de considerao. Descrevendo seu prprio caso, Manoel

    vizinho antigo explicava que ningum tinha tomado sua casa quandoa deixou por um tempo devido considerao que lhe tinham. Ccero outro vizinho antigo comentava que sua fonte principal de seguranaera ser admirado; que os que te admiram, te protegem. Esse vnculoentre segurana e vicinalidade explica tambm o enigma da rea peri-

    gosa: o fato de que muitos vizinhos achem pouco segura qualquer rea

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    que no seja aquela onde moram. A razo est, justamente, na falta de

    relaes e de reconhecimento social nelas.Portanto, enquanto uma pessoa de estatuto elevado que integra umavicinalidade pode deixar sua casa vazia, recuperando-a sem qualquer pro-

    blema, uma pessoa de estatuto baixo, no inserida numa rede destas, no

    se pode dar ao mesmo luxo. Mrcia, uma moradora recente, confirma esta

    observao quando responde pergunta de como conservaria sua casa se

    tivesse que sair do bairro: Tentar manter voc morar dentro do que

    seu, acrescentando que talvez tivesse que vender a casa, porque se tiver

    algum que no gosta da pessoa na rua, manda os outros vir e acabar com acasa. Renata e seus vizinhos, pelo contrrio, h tempo protegem uma pro-

    priedade vazia, que fica em sua rua, explicando que aquela pessoa merece.

    A insegurana de Mrcia vem do fato dela ainda no fazer parte de uma vi-

    cinalidade. Os que no cumprem a regra de ocupar permanentemente suas

    moradias, no tm o estatuto mnimo, nem a possibilidade de estabelecer

    vnculos com outros vizinhos, torando-se o risco de perda ainda maior6.

    Um caso extremo referente perda dessa posiomnima o dasfamlias escarreiradas, quer dizer, foradas a deixar o bairro7. Elas consti-tuem a melhor ilustrao da existncia de uma relao entre direitos depropriedade e desempenho social. Como indicvamos, as pessoas quecontradizem as regras de convivncia (que no respeitamos outros, queperturbam ou estragam suas propriedades) perdem legitimidade; emcaso de conflito, veem-se sem apoios. Nos casos de ofensas graves, queimplicam agresses ou ataques honra do outro, em que o residente

    perde toda a considerao, a casa pode mesmo ser atacada e a famliaexpulsa. No so frequentes e, geralmente, atingem famlias j ante-riormente consideradas como sendo marginais, muitas vezes envolvidasno comrcio de drogas. Mas o que resulta interessante que a casa fisicamente destruda como forma de comunicar publicamente o fimda vontade de convivncia; como sinal de uma morte socialdecretada.

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    Para entender o que as casas representam no bairro cabe considerar o

    fenmeno da vinculao entre as famlias e as casas. A casa um reflexodo estatuto que uma famlia tem ou quer ter. As casas mais ou menosgrandes, melhor acondicionadas, com mais elementos de valor (eletro-domsticos, detalhes arquitetnicos) correspondem a famlias com maiorestatuto e maior poder aquisitivo. m posio e estabilidade suficientespara fazer esses investimentos e os manter com tranquilidade. Contudo,o que importa notar que se estabelece um vnculo pessoal-familiarentre a casa e aqueles que nela moram e muitas vezes a construram.

    A casa representa a famlia e o espao da sua jurisdio, por assim dizer.Por isso, um dos primeiros sinais do incio de relaes de inimizade quando vizinhos deixam de frequentar as casas um do outro; podendoos desafetos escalarem, nos casos mais extremos que comentamos acima,ao ataque fsico da propriedade de outrem8.

    Voltando s questes precedentes e mais gerais: que tipos de vicina-lidades constroem as redes que temos vindo a descrever? Como avaliaressa reciprocidade que, entre outras coisas, visa segurana da posse? Emprimeiro lugar, destcaco que as ditas redesdo bairro podem ser conce-bidas como vicinalidadesseguindo a teoria clssica de Webster (2006).Poderiam perfeitamente se definir como um grupo de vizinhana queinclui vrios domiclios, que so (geralmente) contguos. A pertena vicinalidade depende da lealdade para com os outros membros ou paracom o lder (Webster, 2006: 69). Constituem tambmgrupos de aoou quase-grupos: indivduos que s se mobilizam conjuntamente para

    atividades concretas e pela mo do seu lder (Webster, 2006: 97). A par-ticularidade que observamos em Palmeiral que nas vicinalidades destebairro o elemento da contiguidade fundamental, tendo o parentescoum peso menor. al no significa, como assinalava, que no tenhamosgrupos de parentes cumprindo um papel importante nas redes e atcriando algumas, sobretudo durante as etapas iniciais da ocupao. No

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    bairro, a dinmica das vicinalidades fica marcada pela relao liderana-

    vizinhos, no contando muitos membros com um parentesco biolgicoque fortalea seu vnculo. Por isso talvez, seguindo tambm o que apon-tava Webster (2006: 94-97), a existncia do grupo frgil e sua ativaodepende basicamente do lder. Essas lideranas, no h dvida nisso, talcomo os homens grandesdos Chope, acumulam prestgio porque dispo-nibilizam bens, proteo e outros servios (Webster, 2006: 106-107).

    As vicinalidades de Palmeiral como as descritas no caso de certosbairros dos Estados Unidos por Carol Stack (1975) e de Portugal por

    Manuela da Cunha (2007) tm sua base na proximidade socioespacial,no fato das famlias compartilharem espao e necessidades. Parentes queno moram perto, no caso, no geram redes de reciprocidade. O quefazem os vizinhos dessas redes reconstruir, exprimir sua proximidadee cooperao em termos de parentesco, como sugere a teoria das vicina-lidades (Webster, 2006: 92; Pina-Cabral, 1991). Ora, em Palmeiral talacontece junto da utilizao de outros registros. O idioma do parentesco

    justifica e refora os vnculos, e tambm cria certo cdigo de solidarie-dade (moralidade de vizinhana, Cunha, 2007: 93-94). De fato, vemosaparecer esse tipo de vicinalidades, de redes de reciprocidade, em con-textos onde a pobreza impe ajudar-se mutuamente (o fato de ser umanecessidadesendo importante, como veremos)9.

    Vale a pena aqui recuperar o estudo clssico de Larissa Lomnitz(1981). Deixando de lado as diferenas etnogrficas e tericas (Palmei-ral no um assentamento de migrantes recm-chegados cidade, nem

    consideramos que seus moradores sejam marginais desconectados dasociedade), as anlises de Lomnitz podem nos ajudar a entender me-lhor nosso caso. Ela descreve tambm um bairro (Cerrada del Cndor)que no forma comunidade mas un conglomerado de redes que agemconjuntamente s em momentos pontuais e muitas vezes atravs de ca-ciques (Lomnitz, 1981: 199-202)10. A unidade social bsica l a rede,

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    un grupo de parientes o de vecinos unidos por una relacin social de

    cooperacin (Lomnitz, 1981: 143); espao de sociabilidade privilegia-da e de trocas recprocas entre pessoas prximas fsica e socialmente. Oelemento da proximidade resulta fundamental na criao de confianae na materializao da reciprocidade, existindo outros ingredientes quea reforam, tal como o parentesco (biolgico ou no) e a situao deinsegurana compartilhada (Lomnitz, 1981: 27-28 e 142-143)11.

    Em Palmeiral, as redes formadas exclusivamente por parentes no somuito comuns, como venho indicando. Existem alguns casos de unida-

    des domsticas compostas, nas quais vrias famlias aparentadas convivemna mesma casa ou em casas contguas; mas correspondem, quase todase no por acaso, a trabalhadores da antiga fazenda, estabelecidos h maistempo e de maneira mais estvel que os moradores que vieram depois. muito mais frequente que as redes sejam de tipo misto, formadas porparentes e no parentes (em qualquer caso, morando bem perto). Obser-vando-se 20 das famlias nucleares com as quais estabelecemos relaesem Palmeiral, mais ou menos a metade no tem mais parentes no bairro.Contudo, todas esto integradas a alguma rede ou vicinalidade e, emalguns casos, a vrias ao mesmo tempo, seja as formadas na prpria reade moradia, as ligadas a algum pastor de igreja, a um pai ou me-de-santo ou, ainda, a outra liderana. ambm h vizinhos desconectadosdequalquer rede (como em Cerrada del Condor, Lomnitz, 1981: 135)12:uma minoria, famlias com um estatuto especialmente baixo, recmchegadas a uma rea ou que tiveram algum comportamento julgado

    imprprio e no so mais consideradas bons vizinhos.As redes de parentes e vizinhos que cooperam so tambm em Pal-

    meiral relativamente pequenas e pouco estveis, especialmente, comoapontamos, as que dependem de uma liderana concreta e no surgemsimplesmente entre os moradores de uma rea. No h dvida de queo estado de necessidade o motor dessas redes, dos favores e trocas

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    recprocas que as operacionalizam. Como tambm observara Lomnitz

    (1981: 156) ou McCallum e Bustamante (2012: 226-227), e Sahlinssugeriu de forma mais terica: a escassez e no abundncia que faz agente generosa (Sahlins, 1977: 231). rata-se de uma generosidade emrelao a algumas coisas mais que a outras, e aos necessitados que estoprximos. A reciprocidade entre os vizinhos de Palmeiral , efetivamen-te, uma reciprocidade obrigada pelas circunstncias e ativada princi-palmente entre os bons vizinhos que moram perto. Como reconheciaRenata, de quem ouviremos uma histria esclarecedora mais adiante,

    no lugar onde a gente mora se precisa do vizinho [e assinalava as casasde ambos os lados]13.

    Quando tentamos codificar os tipos de transao nas vicinalidadesdo bairro, verificamos que estas se situam mais do lado da reciprocida-de equilibradaque dageneralizada, seguindo a famosa classificao deSahlins (1977), produzindo-se tambm atos de reciprocidade negativa14.Os membros de uma rede contabilizam o que uns e outros oferecem, ea moralidade que circunda as trocas dirias de mutualidade ou de pro-cura do interesse prprio, no de solidariedade desinteressada (exceesexistem, claro). As razes poderiam achar-se no fato das redes no seremfundadas em vnculos de parentesco, precisamente (Sahlins, 1977: 214;Lomnitz, 1981: 143-145 ou Pina-Cabral, 1991: 185). J a reciprocidade

    generalizada, na qual o fluxo de bens e servios mais desigual e noocorre uma contabilidade estrita, modalidade encontrada na ao daslideranas, que oferecem bens e servios em troca de lealdade: trata-se

    de uma generosidade calculada (Sahlins, 1977: 228).Em suma, as relaes de reciprocidade no bairro tm um carter

    restrito e ambguo. Essas limitaes corresponderiam, no meu entender, natureza limitada das prprias vicinalidades. Sigamos nesse curso comexemplos etnogrficos e referentes tericos.

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    As limitaes e conflitos nas vicinalidades

    Quase como contraponto ao exposto na seo anterior (a construode direitos e segurana com base em redes interpessoais), vemos queas mesmas relaes de coabitao e reciprocidade implicam obrigaese provocam conflitos. A tarefa de se relacionar com e ajudar os quemoram perto coisa esperada de qualquer bom vizinho difcil derealizar na prtica sem cometer excessos ou sem calcular por baixo,correndo-se o risco de parecer pouco amistoso e pouco solidrio. O

    desempenho correto implica ter tino e manter com os outros umarelao de distanciamento e de proximidade, num equilbrio que variade caso para caso, entre cada par de famlias, no qual influem o esta-tuto de cada um e a histria de cada parte. Pedir em excesso ou noatender as peties acaba por provocar crticas, ser esculhambado, verdiminuda a reputao. Mas se exceder na crtica ou faz-la sem razoacarretar ser considerado fofoqueiroou pior ainda bagunceiro,perdendo tambm prestgio.

    Por isso, os vizinhos medem muito o que pedem e deixam de pedir,tanto quanto o que oferecem ou no, tendo sempre cuidado na hora derecusar um pedido que no possam ou no queiram satisfazer. Como ex-plicvamos, as ajudas podem ser mais ou menos corriqueiras (utenslios,comidas) ou mais importantes (tomar conta de crianas, emprestar di-nheiro, participar na construo da casa). Quanto maior o valor do bemou servio solicitado, maior o compromisso. Essa a razo pela qual os

    vizinhos pensam muito bem a quem e o que pedem, atendendo relaoque se tem no momento particular. Por exemplo, Clara rejeitou guardaras chaves da casa de Susana num dia em que esta caiu na rua e foi levadaao hospital. Apesar de Clara ser a vizinha que morava mais perto, fazerparte das mesmas redes e manter, aparentemente, uma relao cordial,a relao no era suficientemente boa e Clara no queria se comprome-

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    ter com uma coisa to sria como a custdia da casa. Arriscava-se a ser

    acusada de algo, o que viria a dificultar ainda mais a relao.Em geral, a fronteira entre amizade e inimizade, entre juzo positivoe negativo, muito fina e cambivel. O fato de um vizinho consideradoamigo, que faz parte da mesma rede, no visitar a nossa casa acaba porparecer estranho e at ofensivo; mas, se o fizer demais, corre o risco de serconsiderado incmodo e inadequado. Assim aconteceu com Martinho, aquem elma acusou de chato por frequentar sua casa diariamente semnunca a convidar a ir sua. Sentia-se no correspondida (vale notar que

    aguardou uma ocasio em que tinha bebido demais para o manifestar)15.Os vizinhos acham que o bom amigo, o bom vizinho, aquele que saberespeitar o espao privado, que sabe manter certa distncia e proximi-dade. Isso aplicado de maneira ainda mais firme na relao com osconsiderados marginais (por certo, atores j em si ambguos: vizinhoscom um estatuto definido por uma normatividade que eles s seguemem parte). Para o bom vizinhoa regra de comportamento para com eles cumpriment-los, mas no ter muito trato, respeit-los como aqualquer outro mas no passar muito tempo com eles; viver junto eseparado, resumia um vizinho.

    Influi em tudo isso a experincia que muitos tiveram de relaesntimas (com vizinhos de qualquer categoria) que tiveram um finalruim, ocasionando conflitos que so especialmente graves. fato co-mentado como se passa facilmente da amizade inimizade e como osdireitos e as obrigaes de ajuda mtua podem gerar dvidas e, assim,

    criar problemas. No raro tambm que aparea a inveja em pessoasdo crculo mais restrito que se destacam. As lideranas, por exemplo,so criticadas com frequncia. Mas resulta complicado, como expli-camos, negar um favor e no por em risco a reputao, ainda maisse quem solicita conhecido, vizinho, membro da mesma rede. Porisso, apesar de os pedidos serem vistos como uma priso, vo sendo

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    satisfeitos caso no exista uma desculpa bvia para no os atender.

    odos reconhecem que h por vezesfalsidadena atuao de amigose vizinhos. Manuel, por exemplo, tcnico manhoso e acostumado aajudar muitos vizinhos consertando seus eletrodomsticos, sentia quealguns estavam aproveitando-se dele, pois no lhe ofereciam nada emtroca. Decidiu dizer no a alguns com desculpas como no tenho aferramenta, no sei fazer isso.

    ambm infrequente pr termo as relaes (ainda que a pessoatenha vontade de faz-lo), sobretudo tratando-se de vizinhos prxi-

    mos. Renata hospedou durante algum tempo uma vizinha que tinhacomprado um lote na sua rua, enquanto esta construa alguma coisa.

    A permanncia da hspede demorou mais que Renata tinha previsto,o que acabou por incomod-la. Explicou-nos que a mulher no davaajuda nenhuma e se intrometia nas coisas da famlia. Com diploma-cia, acabou botando ela para fora. No entanto, depois preocupou-se em retomar uma certa relao, por superficial que fosse. O fato que no queria ficar de mal com ningum, dizia, porque no lugaronde a gente mora se precisa de vizinho. Os vizinhos tentam evitaro conflito aberto, ao menos com os vizinhos imediatos (consideradosa primeira famlia). A necessidade obriga a manter esses vnculos, oque explicaria em parte a ambiguidade e o carter forado que muitasdessas relaes tm.

    A ao coletiva, como assinalamos, tem limites claros; as redesdeapoio asseguram alguma proteo, mas no servem para outras tare-

    fas. Em assuntos como o cuidado e o controle do espao pblico, porexemplo, pode observar-se um considervel encolhimento dessa ao:nos tempos iniciais do assentamento eram organizados mutires paralimpar e arrumar ruas. Na atualidade, esse tipo de trabalho s ocorre emalgumas obras particulares ou em aspectos muito localizados. De fato,considera-se hoje que cada vizinho s tem a responsabilidade de tomar

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    conta do seu lote e do pedao de rua limtrofe, sendo criticados aqueles

    que tentam agir num raio maior. Acha-se que esto se excedendo (e sochamados, com ironia, donos de rua).O peso da noo de propriedade privada e a configurao do lote

    familiar como jurisdio particular esto associados a estas atitudes. Ata-car a propriedade atacar a famlia, o imvel tem tambm esse cartermetonmico. Desafiar algum dentro da sua propriedade injurioso edemasiado arriscado: o atacado achar-se-ia legitimado para recorrer fora. Isso explicaria outro aspecto assinalado como ambguo nas re-

    laes entre os vizinhos: as dvidas sobre as visitas s casas. O fato que os vizinhos tm experimentado conflitos graves por discutirem emespao alheio ou por interferirem na propriedade uns dos outros. Assim,vizinhos contguos e com aparente boa relao mostram reservas na horade entrar no permetro do outro (se no quando ele est presente). Foi oque aconteceu com Renata um dia em que uma das suas galinhas ps umovo no quintal do vizinho ausente; Renata no teve coragem de cruzara fronteira e deixou o ovo ali.

    Observando todas essas limitaes e ambivalncias, surpreende a vi-so idlica e as capacidades que programas como o Plano de Bairro atri-buem s redes. al sugere o seu desconhecimento da realidade do bairro,tanto quanto da teoria geral sobre a reciprocidade. Pois conhecidas obrastericas e etnogrficas apontaram j as tenses, conflitos e desigualdadesque podem desenvolver-se no decurso das prticas de reciprocidade16.

    Narotzky, por exemplo, mostra como a reciprocidade pode ser um

    discurso na boca de quem detm o poder para manter relaes eminen-temente desiguais (Narotzky, 2002: 22). al se verifica em Palmeiral comas lideranas(os chamados chefes), que pedem reciprocidade na trocada proteo e bens. Em outro artigo, Narotzky e Moreno exprimemesta ideia da seguinte forma:

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    Te emphasis on equality and balanced exchange as the starting point for

    a reciprocal relation has only served to hide the imbalance and ambiguityinherent in reciprocal relations and their capacity to generate, reproduce

    and transform systems of inequality in reference to a field of moral forces

    where conflict and ambivalence prevail (2002b: 301)17.

    Foi Sahlins (1977) quem no seu conhecido texto sobre formas dereciprocidade estabeleceu a reciprocidade negativa como a forma maisdesigual e imoral. Advertia o autor que havia uma tendncia popular

    para considerar a reciprocidade como equilbrio, como intercmbio in-condicional de um por um, mas que a reciprocidade frequentementenada tem a ver com isso (Sahlins, 1977: 209). Sem desenvolver muitoessa noo, Sahlins ressaltava a disjuno entre os sistemas prescritosde moralidade (no referente a obrigaes recprocas, por exemplo) e oscursos reais da ao: como o grau de cumprimento dependia de quemfosse o interlocutor (Sahlins, 1977: 218-223). No caso das hierarquiase chefias, explicava tambm como a reciprocidadegeneralizadaserviapara criar e reforar os desequilbrios de poder, de modo que o receptorda ddiva caa debaixo da sombra do agradecimento, mantendo umaposio de submisso para com o benfeitor (Sahlins, 1977: 227). Essadescrio ecoa de novo o que acontece em Palmeiral com as lideranase as diferenas de estatuto. De maneira interessante, Sahlins apontavaque em contextos onde a misria grande e dura muito, a reciprocida-de generalizada costuma dar lugar a formas de reciprocidade negativa

    (atitudes egostas, roubos) (Sahlins, 1977: 234). Ponto que, por certo,o prprio Mauss exps no texto cannico sobre a matria: Os dons(...) no so, em sentido nenhum, desinteressados (Mauss, 1971: 255).Dar, segundo ele, era sinal de superioridade e estabelecia hierarquia,especialmente se quem recebia no podia devolver com equivalncia eno tempo apropriado.

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    Em relao particularmente s vicinalidades, Webster (2006) apresen-

    tava um contexto no qual as solidariedades eram frgeis especialmentequando os vizinhos no tinham confiana entre si e as rupturas cont-nuas, protagonizadas em sua maioria por homens com um estatuto maisou menos elevado, intermedirios muitas vezes de um homem grande,mas desejando ocupar essa posio. Pina-Cabral observou que as tensese as divises eram tambm frequentes nas vicinalidades do Porto, ondesurgiam diferenas entre os parentes e estes s vezes deixavam de morar

    junto, formando novas vicinalidades (Pina-Cabral, 1991: 186-201). Sal-

    vando as distncias, a dinmica de relao entre lideranas e seguidoresnas vicinalidades do bairro segue tambm um percurso parecido, sendohabituais as mudanas de rede e o surgimento de novos lderes (frequen-temente vizinhos de nvel intermdio) que constroem novas redes.

    Lomnitz (1981) que valorizou como ningum a utilidade das redes

    de reciprocidade entre os pobres , escreveu tambm sobre os conflitos e

    tenses ao redor das trocas. Colocando como causa o ambiente de misria,

    afirmava: existen los roces continuos entre personas que deben convivir

    en una gran estrechez fsica y econmica (Lomnitz, 1981: 45)18. Indicava

    Lomnitz que algumas peties s eram feitas a certas pessoas, por serem

    consideradas humilhantes (Lomnitz, 1981: 157-162). E no escondia a

    questo de poder presente na outorga de favores, com a formao de rela-

    es clientelares, por exemplo, ou o carter compulsrio dessas aes: es

    feo decir que no (Lomnitz, 1981: 157-162). A reciprocidade, portanto,

    no devia ser vista comogenerosidade desinteressada; era feita com o alvo

    de conseguir segurana e por necessidade econmica (Lomnitz, 1981: 205) o que as vizinhas de Palmeiral, como Renata, explicam abertamente.

    Estudando justamente outro bairro de Salvador, o Bairro da Paz, Hitae Duccini (2008) mostram que as redes de reciprocidade oferecem oportu-nidades, acesso a determinados bens e servios, e salvaguardam uma maiorexcluso, mas que os vizinhos ocupam posies desiguais nessas redes,

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    competem e exercem um controle uns sobre os outros. Fazer parte dessas

    redes pode acabar sendo uma carga: as solicitaes de ajuda tm de sercorrespondidas ponto por ponto para no nos vermos excludos. Os pr-prios integrantes tm a certeza de que os favores no so de graa, coisaque acontece tambm em Palmeiral, onde os vizinhos contam experinciasruins com algunsparceirosde rede e favores que custaram muito caro.

    No quero negar com tudo isto o valor e importncia que o apoiomtuo assume em Palmeiral, o esforo e as capacidades sociais dos seusmoradores. Mostrei, de fato, que os vizinhos desenvolvem sua vida, con-

    seguem coisas e constroem direitos a partir da sua convivncia e coabi-tao em vicinalidades e redes de reciprocidade. Mas quis oferecer umaviso complexa, que no esconde contrastes e contrapontos; uma visoque se adqua melhor ao que se encontrou em campo e na poca recente:redes e sociabilidades que so limitadas em tamanho e potencialidade,respondendo a um contexto histrico, social e poltico determinado.

    Sendo consciente dessas limitaes, talvez propostas governamentais

    como a do Plano de Bairro pudessem se ajustar melhor a lugares como Pal-

    meiral, de modo a evitar que a observao da falta de comunidadeem alguns

    momentos suponha um juzo implacvel e negativo sobre seus moradores.

    Pelo contrrio, essa observao contribuiria a combater certa exotizao que

    alguns constroem sobre as famlias pobres e suas relaes de vizinhana.

    Notas

    1 O nome do bairro fictcio. Realizei etnografia nele em 2005, 2006 e 2012, nessaltima etapa contando com apoio concedido pelo projeto A trama territorial:

    pertena, mobilidade e trabalho no Brasil contemporneo, financiado pela Fundaopara a Cincia e a ecnologia de Portugal (, Prof. Dr. Pina-Cabral).

    2 Esse erro pode ser atribudo ao simples desconhecimento do contexto pelos tcni-cos, ao seu interesse em defender que os bairros populares constituem comunidades

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    ou, de uma forma mais involuntria, ao influxo de certo imaginrio que leva atratar todas as favelas desta forma. Sobre as duas ltimas hipteses, Valladares

    (2005) explica como convm ao pessoal das s, aos funcionrios, pesquisadorese lideranas que atuam nas favelas atribuir-lhes o carter de comunidade (uma co-letividade perfeitamente coesa, com indivduos que compartilham caractersticas,atitudes e costumes) para legitimar sua prpria atuao (Valladares, 2005: 148).

    3 rata-se de um caso distinto, em relao obra clssica de Lomnitz (1981) e aosestudados na cidade de Salvador por Agier (1990) e McCallum e Bustamante(2012), por ter a vizinhana muito mais peso na constituio das redes e das re-laes de reciprocidade que o parentesco, como veremos. Assim mesmo, resultauma novidade aprofundar-se na parte conflituosa das dinmicas de relao. Comisso no pretendemos questionar a importncia dessas redes e da solidariedadeentre os pobres, e sim apresentar uma imagem mais complexa e, em certa maneira,normalizaresses pobres, que como os demais grupos da sociedade, podem atuar demaneira pragmtica e guiados pelo interesse prprio em certos momentos, e emoutros desenvolver uma ao coordenada e coletiva, agir como comunidade; comovemos na histria de Palmeiral.

    4 O que acontece com a constituio e manuteno dos domnios em Palmeiral, alis,ratifica a teoria de que o direito de propriedade basicamente uma instituio social,

    uma relao entre pessoas com referncia a coisas (incluindo-se direitos, obrigaes,poderes e limitaes), concepo defendida por muitos autores (cf. Hallowell, 1943;Hoebel, 1954; Gluckman, 1965; Hann, 1998). Detenho-me neste artigo no mbitoda propriedade e da moradia para ilustrar o que acontece com as vicinalidades porser essa uma questo fundamental no bairro, marcado por ser um espao ocupadode maneira mais ou menos irregular por cidados procura de casa.

    5 Pode aventar-se que o sistema consuetudinrio de posse, baseado nas relaes inter-pessoais, vai perder peso medida que progrida a regularizao. Na nova situaolegal seria provvel que os vizinhos atribussem maior responsabilidade ao poder

    pblico e acreditassem menos na proteo recproca. No passado, certas tarefascoletivas (como a ordenao das ruas ou a coleta do lixo), deixaram de ser realizadaspor mutires para serem desempenhadas por completo pela Administrao.

    6 A situao resulta mais complexa porque algumas pessoas de estatuto muito eleva-do, tanto como alguns marginais os dois extremos , desobedecem s vezes essasregras que regem a convivncia. Ainda assim, suas aes seguem certos padres.Por exemplo, na aplicao da fora: a apropriao direta de lotes deu-se mais nos

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    primeiros tempos, quando a ordenao de estatuto ainda no estava plenamenteinstituda. Alm disso, utilizar a fora implica correr riscos. A pessoa (a liderana

    tanto quanto o marginal) pode deixar de ser considerada bom vizinho, perdendo alegitimidade e os apoios. O final trgico que muitos chefestiveram no passado estligado a este tipo de aposta.

    7 Entendo seguindo Llewellyn e Hoebel (1962) ou Victor urner (1957) que oscasos extremose os conflitos podem iluminar princpios de base nada excepcionais.

    8 No abordamos o vnculo entrepessoa,famliae casa, e as configuraes de casas,questes tratadas de maneira muito interessante por Marcelin (1999), McCallume Bustamante (2012), que acontecem igualmente em Palmeiral e esto no cernedas vicinalidades. Falamos aqui do estatuto e a competio entre famlias atravsdas casas, fenmeno observado tambm por Holston (1991) em outro bairro deautoconstruo.

    9 A ideologia e a linguagem do parentesco so utilizadas nas vicinalidades do bairrojustamente como modelo explicativo da proximidade social (Pina-Cabral, 1991:196), tanto quanto a linguagem da emoo, com o mesmo intuito de produzire justificar a proximidade (Pina-Cabral, 1991: 199). usual escutar dois vizinhosque mantm um bom relacionamento e fazem parte da mesma rede tratar-semutuamente como meu irmo. Alguns tambm falam dos vizinhos da mesma

    rua como a primeira famlia (frmula que McCallum e Bustamante, 2012, obser-varam de maneira idntica em sua pesquisa). muito comum expressar a fora deum vnculo falando das experincias duras vividas com um companheiro da rede,de tudo o que a gente j passou.

    10 O fato de no constituir comunidade(no sentido de um nico e coeso agrupamentode famlias e pessoas) no deveria pensar-se como estranho. Fiz alguns apontamen-tos a esse respeito na primeira pgina ver nota 2. uma realidade que muitosbairros de autoconstruo deixam de ser comunidade (se o foram alguma vez) emdeterminado momento. Gilbert e Ward (1985) observaram, nesse sentido, que

    costuma existir uma unio importante e uma ao mais coletiva no incio, quandose tem o objetivo de assegurar a ocupao e conseguir os servios bsicos. Alcanadoisso (como acontece, pelo menos em parte, em Palmeiral), a unio e a comunidadetendem a desaparecer. Cabe assinalar tambm que os caciquesde que fala Lomnitz(1981) seriam em Palmeiral algumas das lideranas, pessoas vinculadas a uma redeconcreta, com o controle (muitas vezes temporal) e a tarefa de represent-la peranteas autoridades, por exemplo.

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    11 Constitui esta uma diferena, como continuamos explicando, em relao s redesdescritas por McCallum e Bustamante (2012) em outro bairro de Salvador. Em

    Palmeiral, a proximidade um elemento indispensvel, e a vizinhana tem umpeso maior que o parentesco (de sangue). A causa pode ter a ver com a formaode Palmeiral, onde no se estabeleceram inicialmente grandes grupos de parentes.Por outro lado, tambm acontece em Palmeiral de se desenvolverem conexes entreunidades domsticas (configuraes de casas, cf. Marcelin, 1999), caso em que vizi-nhos podem ser transformados em parentes atravs da instituio do compadrio(cf. McCallum e Bustamante, 2012).

    12 Nesse caso, os atores desconectadoseram uma viva, um homem desprestigiado,uma famlia pouco socivel, uma famlia recm-chegada e uma famlia com maisdinheiro e apoios, com um estatuto especialmente alto (Lomnitz, 1981: 158-160).Lomnitz no distingue entre o afastamento voluntrio das redes, como no caso dafamlia mais poderosa ou dos reservados, e o afastamento involuntrio, os despres-tigiados, os novos, o que parece ser importante.

    13 A mesma ideia foi recolhida por McCallum e Bustamante, expressa quase nosmesmos termos (2012: 233). Falando sobre as coisas que se oferecem e se trocam,a necessidade faz tambm com que as solicitaes tenham um nvel distinto deatendimento; no o mesmo pedir comida ou uma ferramenta, a primeira coisa

    sendo mais difcil de rejeitar por um vizinho prximo. Porm, a comida cozinhada um artigo sensvel, s trocado entre vizinhos que tm grande confiana (Lom-nitz, 1981: 155). Pude observar em Palmeiral como alguns vizinhos rejeitavam asrefeies oferecidas por outros inclusive membros da mesma rede com os quaisno mantinham relaes muito boas.

    14 Fala-se de reciprocidade seguindo as definies clssicas por serem transaesrepetidas entre duas partes, sustentadas em certa moralidade (Sahlins, 1977: 206-207; Narotzky, 2002: 18-19). Contudo, tambm h redistribuiodentro das redes,pois as lideranas muitas vezes atuam como foras centralizadoras de recursos e

    trocas entre todas as famlias. No entanto, resulta mais comum e importante nodia a dia a relao de entre famlias. O intuito aqui, porm, no classificar todosos tipos de reciprocidade presentes em Palmeiral vemos que todos esto maisou menos presentes e sim destacar alguns traos e contradies das trocas entrevizinhos.

    15 Lomnitz observou tambm que ficar bbado permite relaxar as formas e dizermuitas verdades que se reprimem no dia a dia, especialmente nas relaes entre

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    cuates (vizinhos prximos). Os acusadores podiam se defender depois echndolela culpa al trago (Lomnitz, 1981: 191).

    16 Pareceria ilustrar o Plano a afirmao feita por Moreno e Narotzky, de que hcierto optimismo ingenuo que ha llevado a algunos a considerar las relaciones dereciprocidad como invariablemente positivas, tanto en su configuracin como ensus resultados. Las relaciones de reciprocidad tal y como ocurren en la vida realpertenecen a mbitos sociales complejos y ambivalentes, llenos de tensin, ma-nipulacin, diferencias extremas de poder e injusticia. Es decir, como cualquierotra relacin social, las recprocas no son unvoca y universalmente benficas(2002a: 9-10).

    17 Narotzky (2002) estuda tambm a noo de capital social, capital sustentado nareciprocidade e moralidade de certos grupos, onde la confianza y la motivacinpara la accin econmica parecen descansar sobre las relaciones sociales duraderasy continuas, basadas en lazos emocionales (...) como el parentesco o la comunidad(Narotzky, 2002, p. 26; ver tambm Portes, 1998). O que nos faz lembrar dire-tamente o discurso do Plano de Bairro em Salvador (que atingia nesse caso umaao regulatria e no econmica). Narotzky assinala como muitos modelos dedesenvolvimento enfatizam a idia de capital sociale apotenciao das comunidadescomo fonte de recursos, sem explicitarem o sentido que tm em cada contexto e o

    resultado da sua ativao (Narotzky, 2002, p. 27-28). entei fazer isso em outrotexto, onde analisava justamente o caso do Plano de Bairro e o desenho dos pro-gramas aided self-help, baseados tambm na teorizao de comunidades que seriamcapazes de resolver seus problemas se fossem mobilizadas (Mrquez, 2011).

    18 As descries aprofundadas de Agier (1990), McCallum e Bustamante (2012),de novo, no escondiam essa parte obtusa, as tenses e conflitos no decorrer dastrocas entre vizinhos, e o carter instvel e contraditrio das suas relaes, sem,no entanto, fazerem uma ligao entre estes fenmenos e a situao de pobreza(como sim fazia Lomnitz); entendendo que essas qualidades no fazem parte s da

    reciprocidade dos pobres.

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    Limits and ambiguities of vicinality in a neighbourhood of Salvador

    ABSRAC: In Palmeiral, a squatter settlement on the outskirts of Salvadorde Bahia, to acquire and keep a house depends centrally on a social perfor-mance: one has to be seen as a respectable person who is integrated into avicinality (a network of interrelationship and exchange of favours betweenfamilies/households). However, maintaining this position may not be easy.Te networks are limited in scope and prone to developing tensions andconflicts within them. On the one hand, by examining a series of day-to-daysituations concerning property, I aim to show how the dynamics of vicinality

    have an ambiguous character and how they constitute a benefit as well as aburden for the people involved. How do they develop relations of restrictedreciprocity? On the other hand, I want to criticise the way in which someworks have simplified this kind of reciprocity, ignoring its complex andambivalent nature.

    KEYWORDS: Reciprocity, social networks, vicinage, informal ownership,squatter settlements, Salvador de Bahia.

    Recebido em janeiro de 2014. Aceito em agosto de 2014.