espantalhos: uma metÁfora dos...

17
1 ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOS JOSÉ CARLOS DE FREITAS 1 Resumo O texto reflete sobre a imagem do espantalho presente na pintura de Portinari e em poemas de Manuel Bandeira e Mario Quintana, buscando relacioná-la à condição residual dos sujeitos no contexto do mercado atual. A poética de Quintana e Bandeira, assim como os quadros de Portinari, se mostram muito fortes no que toca ao papel de contraponto que a arte assume em face dos programas que fabricam as algemas do homem. Neste sentido, a imagem do espantalho pode ser acessada como uma metáfora da condição humana, consistindo este texto em uma de suas possíveis leituras. Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto reflete acerca de la imagine del espantajo presente em la pintura de Portinari y en los poemas de Manuel Bandeira y Mario Quintana, buscando relacinar-la a condición residual de los sujetos en el contexto de la mercancia actual. La poética de Quintana y Bandeira, así como los quadros de Portinari, muestran-se mui fortes como función de contrapunto que la arte assume perante los programas que fabrican las cadenas del hombre. En esto sentido, la imagine del espantajo puede ser piensada como una metáfora de la condición humana, constando este texto en una de sus possibles lecturas. Palabras-llave: Poesía y Pintura, espantajo, condición humana, mercado. A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido [...] Agora há uma verdade sem angústia mesmo no estar-angustiado. O que era dor é flor, conhecimento plástico do mundo. 2 Carlos Drummond de Andrade 1 Professor de filosofia do Centro Universitário UNIRG de Gurupi-TO. Licenciado em Filosofia pela Unioeste – Toledo-PR, Mestre em Letras pela UFF – Niterói-RJ. 2 Apud: PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.17-18.

Upload: others

Post on 17-Dec-2020

11 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

1

ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOS

JOSÉ CARLOS DE FREITAS1

Resumo

O texto reflete sobre a imagem do espantalho presente na pintura de Portinari e em poemas de

Manuel Bandeira e Mario Quintana, buscando relacioná-la à condição residual dos sujeitos no

contexto do mercado atual. A poética de Quintana e Bandeira, assim como os quadros de

Portinari, se mostram muito fortes no que toca ao papel de contraponto que a arte assume em

face dos programas que fabricam as algemas do homem. Neste sentido, a imagem do espantalho

pode ser acessada como uma metáfora da condição humana, consistindo este texto em uma de

suas possíveis leituras.

Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado.

Resúmen

El texto reflete acerca de la imagine del espantajo presente em la pintura de Portinari y en los

poemas de Manuel Bandeira y Mario Quintana, buscando relacinar-la a condición residual de los

sujetos en el contexto de la mercancia actual. La poética de Quintana y Bandeira, así como los

quadros de Portinari, muestran-se mui fortes como función de contrapunto que la arte assume

perante los programas que fabrican las cadenas del hombre. En esto sentido, la imagine del

espantajo puede ser piensada como una metáfora de la condición humana, constando este texto

en una de sus possibles lecturas.

Palabras-llave: Poesía y Pintura, espantajo, condición humana, mercado.

A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido

[...] Agora há uma verdade sem angústia

mesmo no estar-angustiado. O que era dor é flor, conhecimento

plástico do mundo.2

Carlos Drummond de Andrade

1 Professor de filosofia do Centro Universitário UNIRG de Gurupi-TO. Licenciado em Filosofia pela Unioeste – Toledo-PR, Mestre em Letras pela UFF – Niterói-RJ. 2 Apud: PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.17-18.

Page 2: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

2

Uma das imagens que faz parte da lembrança de quem foi menino de roça

de antigamente é a do espantalho. Um boneco grotesco, um arremedo de gente,

aviado para espantar tisius, canários e pardais das lavouras e hortas, erguido

num tronco que parecia uma cruz. Feito de roupa pobre, remendos coloridos, tudo

nele é residual. Deixado no tempo, a sol e sereno, chuva e poeira.

Sua presença nas Artes, de forma geral, nunca foi desapercebida. Serviu

de nome a uma peça adaptada de Tchekov3, monólogo interpretado por Cacá

Correia. Integrou a companhia dos seres metafóricos de o mágico de Oz de

L.Frank Baum. Comparece em meninos carvoeiros de Manuel Bandeira. E

comparece também, como figura emblemática, na orquestra de bugigangas de

Mario Quintana. Teatro, prosa e poesia, assume semânticas da condição humana

em contextos existenciais, apontando para as precariedades dos homens nesta

vida finita, tangidos pelas situações históricas. Nas Artes Plásticas, talvez

ninguém tenha tido tamanha obsessão pelo espantalho como Cândido Portinari

que fez dele uma temática exclusiva.

Neste artigo, pretendo fazer com que dialoguem os poetas e o pintor, neste

objeto-ser que os reúne e tentar perceber a residual situação dos homens que

pretenderam denunciar a penas e pinceis.

Ao contar a história de sua família, na Brodósqui do início do século XX,

Antonio Portinari, irmão de Cândido, o pintor, relata:

No meio do arrozal, o espantalho parecia um homem de verdade. Batista havia caprichado. O chapéu e o terno velho que ostentava tinham vindo da Itália, foram de seu finado avô, que morrera há muitos anos. Tio Davi parou a cinco ou seis metros do espantalho. De longe, só se notava sua cabeça acima da plantação.

– Parece gente – comentou com as crianças. – O toco em que seu pai armou esse espantalho estava ali desde o começo do mundo. É o toco de uma madeira que dura a vida inteira, enquanto existir o mundo ela também existirá.4

3 Peça dirigida por Camilo de Lélis e estreada na Sala Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mario Quintana, em novembro de 1995, adaptada da obra Peças em um ato de Tchekov, cujo personagem é Ivan Ivanovich, um homem arruinado, oprimido ela mulher em casa e pelas tarefas profissionais. 4 PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.111.

Page 3: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

3

No que consta no Projeto Centenário de Portinari, organizado por seu filho

João Cândido, por ocasião dos cem anos do pintor, são 111 quadros retratando o

espantalho ou tendo-o como elemento constitutivo da cena retratada. Às vezes,

comparece em primeiro plano, preenchendo a tela, com a plantação ao fundo.

Outras vezes, compõe o cenário de cores densas e escuras, com carcaças de

bois e um solo desprovido de plantas, sugerindo aridez. Em outras, acompanha

crianças soltando pipas. Não é minha intenção proceder a uma leitura que faça

justiça ao inteiro sentido dessas obras – não tenho nem mesmo conhecimento

para isso. Quero apenas fazer notar a sensação intrigante de abandono deste

objeto, mesmo nos quadros que sugerem o lúdico. Abandono que permite

estabelecer diálogo com os poemas de Bandeira e Quintana. O espantalho,

segundo especialistas, atormentava o sono de Portinari, assim como as histórias

de assombração que se contava às crianças de seu tempo. Ao optar pela

temática de sua terra, além de compor uma pintura essencialmente engajada,

retratando dores e misérias, Portinari deu relevância às impressões da infância.

Dentro delas, emerge o espantalho.

Figura 1- Espantalho – 1958 – Pintura a óleo de 1958 – 146 X 114 cm Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <http://www.portinari.org.br>

Page 4: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

4

O trecho relatado por seu irmão Antonio é significativo: "o espantalho

parecia um homem de verdade". O fato é que, ao ser retratado na Arte – nos

quadros e na poesia – os termos se invertem: "o homem parecia um espantalho

de verdade". E, desta constatação, o adulto Portinari, assim como seu amigo

Bandeira e o poeta Quintana, apenas três anos mais jovem que ele, assumem

uma sensibilidade comum para com a natureza do resíduo e do precário.

Manuel Bandeira utiliza a imagem do espantalho para falar da infância

submetida a trabalho precoce e árduo nas carvoarias, coisa que, só muitos anos

depois de sua morte, se tornou foco de repúdio e causa de luta humanitária. A

imagem está no fecho do poema Meninos carvoeiros:

Os meninos carvoeiros Passam a caminho da cidade. – Eh, carvoeiro! E vão tocando os animais com um relho enorme. Os burros são magrinhos e velhos. Cada um leva seis sacos de carvão de lenha. A aniagem é toda remendada. Os carvões caem. (Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,

/ dobrando-se com um gemido.) – Eh, carvoeiro! Só mesmo estas crianças raquíticas Vão bem com estes burrinhos descadeirados. A madrugada ingênua parece feita para eles... Pequenina, ingênua miséria! Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! – Eh, carvoeiro! Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, Encarapitados nas alimárias, Apostando corrida, Dançando, bamboleando nas cangalhas como

/ espantalhos desamparados!5

O poema, parte do livro Ritmo dissoluto, foi publicado em 1921, quando

Portinari tinha seus dezoito anos, portanto, bem antes de começar a compor seus 5 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p.85-86.

Page 5: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

5

espantalhos. Tudo no poema anuncia precariedade, com excessão do relho, o

instrumento de tortura, assim como o toco de madeira, no relato de Antonio: "de

uma madeira que dura a vida inteira". O poema, em sua visualidade, descreve os

burrinhos já em estado residual, são "magrinhos e velhos". Os sacos, como o

espantalho, são cosidos a remendos e não prestam a contento para o transporte:

"Os carvões caem", recolhidos por outro ser também em resumo que o faz a

gemidos.

Figura 2 – Espantalho – 1940 – Pintura a óleo/tela – 130 X 172 cm Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

Como um observador que não interfere nos eventos, mas que se coloca

amorosamente a avaliar os elementos, Bandeira nos leva a perceber o que deve

ficar justo no quadro: as crianças combinam com os burrinhos, aquele mundo ou

aquela cena lhes pertence. O poeta se sente atraído pela "pequenina, ingênua

miséria". Ao fazer isso, ele nos coloca dentro da cena, com mãos muito mais

firmes, para uma sensibilidade solidária. Ao jogar como os sentidos de trabalho e

brinquedo, longe de estar agraciado com a cena e indicar que isso mereça

perpetuação, o poeta denuncia um programa desfavorável, inadequado para

aquelas criaturas que mereciam um direito maior. Gostar do que elas disfarçam e

Page 6: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

6

de como disfarçam é gostar mais ainda daquilo que elas teriam se, como diz

Adorno, tivéssemos "um mundo em que a situação seria outra".6

Apesar do espírito épico de todo o poema querendo fazer predominar o

lúdico, como o que sucede frequentemente com poemas assim empreendidos, o

desfecho aponta para a capitulação final: "dançando, bamboleando nas cangalhas

como espantalhos desamparados".

Esta imagem dos espantalhos desamparados,7 unida à das cangalhas,

equipara-se à descrição do irmão de Portinari: "O toco em que seu pai armou o

espantalho estava ali desde o começo do mundo". E nos remete a um traço

comum dos quadros em que o pintor os retratou: o espantalho é um crucificado.

Segundo Jacob Klintowitz,

O espantalho, um signo visual da lavoura, nas mãos de Portinari, se transforma em pinturas de grande força expressiva e nas das mais características paisagens campestres da nossa arte. Entretanto, o mais surpreendente é que, em Portinari, este assunto recorrente em sua obra, ganha conotações transcendentais e se transforma numa das mais poderosas metáforas religiosas da nossa arte. O espantalho de Candido Portinari costuma ser carregado de dramaticidade, denso e impregnado de humanidade, idealizado ao limite do homem elevado à condição divina, símbolo do homem sacrificado por seu amor ao próximo. Esses espantalhos, na postura de Jesus Cristo na cruz, tornam-se verdadeiro símbolo nacional e se constituem de inúmeras facetas, como é próprio do simbólico: pastoral, semeadura, homem sacrificado, homem se sacrificando, Deus doador, morte e amor.8

A marca do espantalho é esta forma de grilhão. E nisso ele recobre a vida

dos homens, presos a um programa que os tange e sob o qual só é possível

bambolear na precariedade.

Bandeira e Quintana não são poetas essencialmente engajados, na

acepção do termo. A bem da verdade, conforme Adorno, nem isso é necessário

nem se deve cobrar esse tributo da poesia. No entanto, a abertura sensível e

6 ADORNO, Theodor W. Conferência sobre lírica e sociedade. In: Os Pensadores, v.XLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p.203. 7 Este poema foi um dos objetos do belo ensaio Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira de Marcus V. Mazzari. 8 KLINTOWITZ, Jacob. Candido Portinari: retrato do Brasil. Agulha – Revista de Cultura. Disponível em <HTTP://WWW.revista.agulha.non.br/ag48portinari.htm>

Page 7: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

7

solidária para esses detalhes narrativos da existência os inscreve com um poder

ainda maior nesta tarefa.

Figura 3 – Espantalho no arrozal – 1947 – Pintura a óleo/tela – 60 X 73 cm

Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

Em Quintana, o espantalho comparece em quatro poemas: Canção do

amor imprevisto, O vento, O poema esse estranho animal e O sonho de uma noite

de verão. Antes, porém, de acessá-los, talvez seja importante notar que existe,

em sua poesia, uma busca metafísica pela finitude do homem, no sentido de

interrogar o próprio sentido de estar-no-mundo. Quintana é marcado pelo fato de

que o homem é um destinado à morte e compromissado a resistir nesse mundo,

cuja contingência não deve inviabilizar a própria vida, mesmo que ela seja uma

marcha para o fim. Elabora, como Bandeira, uma poesia de elementos prosaicos,

simples, que normalmente seriam desprovidos de dignidade caso não fossem

acolhidos como são por eles. Nesse sentido, muitos são os objetos que dão conta

de aludir ao homem como um ser incompleto e residual. Ao lado do espantalho,

no caso de Quintana, há o fantoche, o boneco de circo ou de marionetes,

sustentados por fios, numa forte alegação de que somos esses artefatos,

presididos por uma mão anônima de fora, cujo dono se diverte com nossas

tribulações.

Page 8: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

8

Fantoche ou espantalho, é importante que se especifiquem as diferenças,

pois fantoche não é espantalho. Na poesia, também é comum encontrar

referência aos homens como fantoches, seja de Deus seja de alguma outra forma

de destinação. O fantoche é um boneco destinado a encenação. Seu lugar é o

circo e o palco. Ele é usado para narrar histórias. Encena, vive, pronuncia o que

obrigam que ele faça. Faz o que deve por estrita moção de outro. Ele pode ser a

metáfora do alienado. Tem movimento, tem ação, mas nunca por sua vontade,

por sua deliberação. O espantalho é bem outra coisa, sua situação é muito mais

piorada. Ele não encena, não move, não conta história alguma. Ele está lá, feito

um cristo que morreu e, por um breve tempo, aparenta tudo ter capitulado. A

começar pelo nome, a primeira evocação é a do espanto, um espanto extenso,

espant-a-lho. Sua situação indica solidão, abandono, mudez, resíduo total.

Figura 4 – Espantalho – 1959 – Pintura a óleo/madeira – 41 X 33 cm

Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

A primeira referência ao espantalho encontra-se no poema Canção do

amor imprevisto, que registra dois estados psicológicos: a melancolia de um

sujeito solitário e a euforia depois da chegada de outro sujeito que ama, no caso,

Page 9: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

9

uma mulher. Interessa, do poema, a última estrofe, quando o sujeito lírico se

compara ao espantalho, numa imagem forte e comovente:

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada,

/ numa alegria atônita... A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil Aonde viessem pousar os passarinhos!9

Figura 5 – Espantalho – 1936 – Pintura a óleo/tela – 73 X 60 cm

Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

Importa igualmente notar que, assim como em Bandeira, prevalece uma

sugestão de que o espantalho é percebido, paradoxalmente, pelos sujeitos líricos

numa esfera de alegria quase festiva. Em Bandeira, o dançar e o bambolear,

assim como o brincar, estão a provocar um estranhamento, um sentimento

ambíguo quanto ao valoramento dos eventos. Instaura-se a dúvida entre a

angústia da situação e o assentimento de que o que se passa seja de fato o

desejável. Em Quintana, a desorientação do sujeito é reforçada pela "dolorosa

alegria do espantalho", riso doído que remete ao teor da ironia, suscitada na

cultura ocidental desde o homem barroco, quando o riso esconde o pranto e o

9 QUINTANA, Mario. Canções. Porto Alegre: Globo, 2006, p.62.

Page 10: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

10

pranto esconde o riso.10 Em relação à condição residual do espantalho, fica

evidente a sua situação de abandono, pois a comparação do poeta é apenas

suposta, conforme atesta o verbo "viessem", sujeitando-o a uma casualidade. De

outro lado, o espantalho não tem remédio e consolo. A mudança de sua condição

pediria uma outra empresa: a inutilidade, uma vez que ser atração de pássaros –

e feliz por conta disso! – consiste naquilo que Aristóteles diria sobre o ser que se

recusa a realizar o seu télos, a sua perfeição.

Candido Portinari, no poema Sem cílios e sem destino, também descreve:

Sem cílios e sem destino No ar sem proteção Espantalho de beira-córrego, os pássaros Pequenos não se intimidam... Passam.11

Se até mesmo nisso o espantalho não avantaja serviço, muito mais piorada

é sua situação. No mesmo poema, Portinari escreve que "Os espantalhos lutam

para que o arroz cresça". Um espantalho inútil assim talvez se prestasse para

uma farra tradicional de Sexta-Feira da Paixão, descrita também por Antônio, seu

irmão:

– Pegado ao coqueiro puseram um espantalho igual ao que está no arrozal. A cabeça deve ser uma cabaça ou abóbora, fizeram três furos para os dois olhos e a boca, e dentro acenderam uma vela. Eles querem nos assustar, mas não vai acontecer. Apanhou as duas espingardas, atiçou as brasas do fogão para clarear um pouco e colocou os cartuchos nas armas. Explicou para as crianças que daria quatro tiros:

– Garanto que em um minuto estarão tremendo de medo e correrão para se esconder debaixo da cama.

Os garotos ficaram assanhadíssimos de alegria, Candinho saiu com o pai e o Tio Bépi. No primeiro tiro a cabeça voou pelos ares; os outros três tiros acertaram no vulto branco. Nem bem o pai acabou de dar os tiros ouviu-se uma gritaria sem limites no meio do cafezal.

No dia seguinte foram espiar o estrago. A cabeça estava no chão furada de chumbo, o pano branco também estava picado, parecia que tinha estado na guerra, como dissera tio Davi. [...]

Os meninos e até alguns homens procuraram por todos os lugares alguma mancha de sangue, mas não encontraram nada.12

10 Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Discurso sobre as lágrimas de Heráclito. In: Sermões. Tomo XV. Porto-Portugal: Lello & Irmão Editores, 1959. 11 PORTINARI, Candido. Poemas de Portinari. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

Page 11: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

11

Figura 6 – Paisagem com espantalho e urubus – 1944 – Pintura a guache/cartão – 32.5 X 48 cm

Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

O episódio que fez parte da infância de Portinari é um daqueles que

inscreve o espantalho como imagem pregnante na memória. Trata-se de um

costume próprio da noite de Sexta-Feira Santa, onde as pessoas se permitem

uma emancipação moral, agindo como se Cristo, uma vez morto, tivesse dado

império a Satanás, sendo necessário mimetizar ações deste último, para agraciá-

lo. O espantalho que recebe toda a carga de violência antecipa o boneco Judas a

ser malhado no Sábado da Aleluia. A dimensão residual do espantalho é

ressaltada pelo vestígio do sangue não encontrado: não é mais um ser, é coisa

pulverizada. E também aqui ainda existe o clima eufórico, conforme atesta o

detalhe "Os garotos ficaram assanhadíssimos de alegria".

A imagem do espantalho comparece também no poema um tanto intrigante

de Mario Quintana que traz, no título, uma referência a uma peça cômica de

Shakespeare: O sonho de uma noite de verão.13 Creio merecer este poema uma

atenção, justamente pela carga semântica que permite relacionar o espantalho ao

ser humano na sociedade administrada e aos nivelamentos que o programa

impõe:

12 PORTINARI, Antonio. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.141. 13 Escrita em 1594, publicada em 1600.

Page 12: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

12

Uma procissão de espantalhos, pela miséria colorida, pelos atalhos vinha: pediam vida, queriam vida! E as suas caras eram trágicas porque tinham todas a mesma expressão — que era o mesmo que não terem nenhuma expressão. E tão insuportável era aquela cara única que a polícia atirou em cima deles bombas de gás hilariante. Nenhum espantalho riu. A procissão continuou, a procissão está agora em plena Estrada Real enquanto pelos atalhos por cima dos gramados por cima dos corpos atropelados os automóveis fogem como baratas.14

Em O mágico de Oz, o espantalho queria um cérebro. Neste poema, uma

procissão de espantalhos grita por vida. É esta a imagem que abre o poema e

que chega ao final sem que a reivindicação seja atendida. Construído a partir de

remendos coloridos, ele por si mesmo denota a natureza residual da coisa. Por

isso o poeta fala de uma miséria colorida. Confeccionado de partes que não lhe

pertencem, que não lhe conferem uma identidade, ele é a reta final da utilidade,

porque não sendo um ser, mas uma função, depois dela não lhe resta nenhuma

serventia. Coisa no seu ocaso, arremedo de humanidade, é destituído também do

estatuto de coisa, candidato à ruína precoce. Só os pássaros o levam a sério,

mas até mesmo nisso há uma destituição de autonomia, porque ele só pode

colher esta reverência quando solavancado pelo vento. Em O Vento, o poeta se

refere ao ser do próprio vento como “trapos flutuantes de espantalho” e

acrescenta "toda aquela agitação sem causa".15

14 QUINTANA, Mario. Esconderijos do Tempo. Porto Alegre: Globo, 2000, p.91. 15 QUINTANA, Mario. Sapato Florido. Porto alegre: Globo, 2006, p.108.

Page 13: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

13

Figura 7 – Espantalho e meninos soltando pipas – 1941

Pintura em técnica não identificada/tela – 46 X 55 cm Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

Costurado como um frankenstein, colorido de trapos, paralítico suspendido

diante da produção, não poderia deixar de ser uma alegoria do sujeito inserido no

sistema de produção. É uma alegoria também do desencantamento do mundo

produzido pela ciência e pela técnica. Adorno escreve que

Em meio às unidades humanas padronizadas e administradas, o indivíduo vai perdurando. Ele até mesmo ficou sob proteção e adquiriu um valor de monopólio. Mas, na verdade, ele é ainda apenas a função de sua própria unicidade, uma peça de exposição como os fetos abortados que outrora provocavam o espanto e o riso nas crianças.16

O espantalho, embora mais precário, tem parentesco com o palhaço ou

com o cadáver enfeitado – outros freqüentadores da poesia de Quintana –

quando a questão é a visualidade. Expostos, existem para protagonizar

espetáculos para os outros. Ao primeiro se assemelha porque mente sobre sua

carnadura como o palhaço mente sobre suas dores. Assemelha-se ao segundo

no ocultamento de sua interna estofaria de palha morta pelos adereços coloridos.

Nesta condição, os três seres são tragicamente cômicos ou comicamente

16 ADORNO, Theodor W. Mínima moralia. São Paulo: Ática, 1993, p.118.

Page 14: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

14

trágicos. O espantalho é símbolo do automatismo, do sujeito que declinou de sua

condição de sujeito. Onde for posto, ali permanecerá. Enfeitado para ser visto, de

si mesmo é cego, porque lhe falta um rosto. No mundo reificado da mercadoria,

mediada pela propaganda colorida, o sujeito perdeu sua função de artífice de si

para se tornar uma coisa elaborada. Por isso, o poeta diz que “eles pedem vida”

ou que “E as suas caras eram trágicas / porque tinham todas a mesma expressão

/ — que era o mesmo que não terem nenhuma expressão.”

Em dois outros versos, a situação do espantalho chega ao insuportável e

ao irremediável. Numa dobra de sentido, muito característico de Quintana,

deixando ambivalente seu juízo sobre movimentos populares e passeatas de

protesto, onde a uniformidade normalmente comparece, às vezes com resultados

violentos, o poeta utiliza a imagem da polícia que “lança bombas de gás

hilariante”, algo que poderia transfigurar o desenho da cena. A imagem

contrapõe-se, por exemplo, ao espírito da canção de Mílton Nascimento:

Porque se chamavam homens também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem em meio a tantos gases lacrimogênios ficam calmos, calmos, calmos.17

O título deste poema é remissivo a uma comédia de Shakespeare, um

drama tragicômico onde quatro jovens buscam concretizar de forma atrapalhada

suas paixões, onde o conserto da situação só acontece quando quatro jovens são

emparelhados juntos, adormecidos. Creio que esta é a chave da situação do

espantalho. Programas da modernidade, no dizer de Freud, Foucault e Bauman,

ordem e limpeza são conseguidas mediante a homogeneização dos corpos. O

sumo da flor que encantava foi suplantado pelo sumo de outra flor que

desencantava. A perda dos feitos, ocasionados pelo encanto, que faziam a

imbricação dos três mundos — o real, o mimético e o fantástico — é o fato

lamentado pelo poeta, porque se perdeu o poder do riso. Tudo ficou eiradamente

certo. Por isso então a imagem do gás hilariante impotente em relação aos

espantalhos.

17 Canção Clube da Esquina nº2 de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges (BREMI7900457).

Page 15: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

15

O desfecho do poema se dá num clima de pessimismo. Os espantalhos,

como na peça shakespeareana, são recepcionados pelo rei, são assumidos pela

estrutura, exatamente como é gabaritado o sujeito numa cultura de ordem,

limpeza e produção. O que se tem a partir daí é o desencantamento generalizado

e o retorno da balbúrdia à revelia do programa. O progresso invade os atalhos,

invade o verde e atropela os corpos.

Figura 8 – Espantalho – 1940 – Pintura a óleo/tela – 30 X 41 cm

Fonte: Projeto Portinari – Disponível em <HTTP://WWW.portinari.gov.br>

Em O poema esse estranho animal, Quintana se ocupa de metapoesia,

comparando sua pena a um cavalo de rédeas soltas nos campos. Nesta marcha

aleatória, vai encontrando os Três Reis Magos, Dom Quixote, Jack o Estripador,

Jesus Cristo com o Menino Jesus no colo, Anjos da Guarda e também o

Espantalho Desconhecido. Estranhamente, os seres residuais deste poema são o

poeta e o leitor, jazentes mortos, que provocam vômitos no animal. Apontando

para uma peculiaridade do que deve ser a poesia, ele diz que "o ritmo da

andadura acorda ninhos / de sonhos [...] / descobre estranhos descaminhos".

Descaminhos pelos quais a poesia confere dignidade, elevação a seres residuais

como o espantalho. Para Quintana, como também ocorre com Portinari, essa

privilegiada visão é posse de criança, é privilégio de olhos infantis, em sintonia

Page 16: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

16

com a proposta de Walter Benjamin, para quem ela deveria inaugurar um novo

paradigma de história. O filósofo nota que

as crianças são inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente.18

Assim é o poeta. Assim também um pintor como Portinari quando volta os

olhos para uma procissão de seres residuais. Seus retirantes, seus trabalhadores,

seus animais, seus meninos são percebidos em suas existências humildes, em

sua baixeza, elevados a uma dignidade que só a Arte pode conferir. Pelos olhos

do poeta e do pintor, somos convocados à compaixão por essa natureza

pulverizada dos seres e dos homens, inseridos num programa que os dilui e

descarta, soberano. Quem seria o Espantalho Desconhecido? O mistério

permanece, assim como permanecem certas estruturas que projetam os seres-

espantalhos. Conforme relata Antônio, "É o toco de uma madeira que dura a vida

inteira, enquanto existir o mundo ela também existirá".

18 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.18-19.

Page 17: ESPANTALHOS: UMA METÁFORA DOS SUJEITOSalb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/...Palavras-Chave: Poesia e Pintura,espantalho, condição humana, mercado. Resúmen El texto

17

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. In: Os Pensadores, v.XLVIII. São Paulo: Abril Cultural,

1975.

______. Minima moralia. São Paulo: Ática, 1993.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,1998.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000.

KLINTOWITZ, Jacob. Candido Portinari: retrato do Brasil. Agulha – Revista de Cultura.

Disponível em <HTTP://WWW.revista.agulha.non.br/ag48portinari.htm>.

MAZZARI, Marcus V. Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira. Revista Estudos

Avançados 16 (44). São Paulo: USP, 2002.

PORTINARI, Antonio. Portinari menino.Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

PORTINARI, Candido. Poemas de Portinari. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

QUINTANA, Mario. Esconderijos do Tempo. Porto Alegre: Globo, 2000.

______. Poesias. Porto Alegre: Globo, 1987.

______. Sapato florido. Porto Alegre: Globo, 2006.

______. Canções. Porto Alegre: Globo, 2006.

______. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre:Globo/SEC/DAC/IEL,1976.

SHAKESPEARE, William. O sonho de uma noite de verão. In: Comédias/Sonetos. São Paulo:

Victor Civita, 1981.

VIEIRA, Padre Antônio. Discurso sobre as lágrimas de Heráclito. In: Sermões. Tomo XV.

Porto-Portugal: Lello & Irmão Editores, 1959.