autobiografia de um espantalho

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  • AUTOBIOGRAFIA DE UM ESPANTALHOHistrias de resilincia: o retorno vidaBoris Cyrulnik

  • resilincia[Do ingl. resilience.]S. f. 1. Fs. Propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado devolvida quando cessa a tenso causadora duma deformao elstica. 2. Fig. Resistncia ao choque.

  • O olhar da foto

    PierrotUm arquivo, ao modificar o relato, tinha abalado sua representao do mundo. A partir do fim do anncio, Pierrot tinha passado do orgulho para a vergonha, da alegria para a tristeza, e esses novos sentimentos modificavam tanto a sua ideia que tinha de si mesmo que seus amigos j no o reconheciam. 3

  • A frase que mata. O arquivo que curamlie descobria que nascera de um amor e essa nova representao de suas origens mudou o sentimento que tinha de si mesma. - 5

  • Pudor e o sofrimento

    . Foi o silncio da execuo que aterrorizou a criana. [...] Nenhuma palavra, nenhum grito, entre aquelas duas pessoas que se conheciam bem. Nada. Nenhum barulho. Nenhuma palavra tampouco quando o pai voltou para casa, vestido com roupas limpas. 8

  • a histria que abre os olhos

    Todo relato uma defesa, uma legtima defesa. Sempre que pensamos em nosso passado, procuramos redefini-lo. Basta enderear esse relato aos outros para modificarmos nossas relaes, para deixarmos de nos sentir como nos sentamos antes. [...] Todo relato um projeto de libertao. 11

  • Uma quimera autntica

    [...] todo relato verdadeiro, assim como verdadeiras so as quimeras: o ventre de touro, as asas de uma guia e as patas de um leo. Tudo verdadeiro e, no entanto, o animal no existe! Eu deveria ter escrito: tudo parcialmente verdadeiro e o animal, totalmente falso. Ou ento: todos os pedaos so verdadeiros, nunca menti ao lembrar minhas recordaes mas conforme as circunstncias ou conforme meu humor, eu poderia ter evocado outros episdios igualmente verdadeiros que teriam composto uma outra quimera. a quimera de si. 12/13

  • Captulo ICatstrofes naturais e mudanas culturaisAdaptao e evoluo para alegria das baratasO papel da quimera ordenar os fenmenos a fim de dar ao mundo uma forma estvel, momentaneamente. [...] Adaptamo-nos ao mundo que acabamos de inventar e respondemos ao sentido que nossa quimera acabar de lhe dar. Denominamos caos o fervilhar da vida que no sabemos nomear e acreditamos na quimera que da forma aos fenmenos que imaginamos. 17

  • Azar do vencedor

    Quem aprendeu a raciocinar em termos de causalidade exclusiva, em que uma nica causa provoca um nico efeito, ter dificuldade de entender. - 21

  • O trauma, um atrator estranho

    Quando um acontecimento baliza a representao que temos de ns mesmo, nossa vida mental principia, cheia de dores e desprazeres de tempestades desejadas e de calmaria. O retorno vida se torna paranoico, porque estamos espreita de tudo o que serve de sinal. [...] quando a vida retorna em mim, procuro interpretar a menor de suas mmicas, a mais banal de suas palavras: [...] O irracional vestgio de existncia quando se esteve em agonia traumtica. 25

  • Histrias e catstrofe natural

    A catstrofe natural como trauma psquico, nos ajuda a entender que o trauma real que derruba e mata no pensvel. A nica coisa que se faz tentar permanecer de p, evitar os escombros e respirar. 26

  • Quando a vida retorna

    1 A estrutura do acontecimento traumtico participa da significao da ferida: [...] A natureza tida por inocente, perdoada, ao passo que quem sofre por mais tempo com a ferida infligida por um homem. - 282 O desenvolvimento e a histria do sujeito antes do desastre do a um mesmo acontecimento um peso maior ou menor. A experincia passada deixou no crebro uma marca que lhe ensinou um tipo de reao. 283 Portanto, a organizao da ajuda depois de um trauma pode impulsionar um processo de resilincia ou bloque-lo. A sensibilidade para o acontecimento foi adquirida antes mediante em meio dinamizador ou inibidor que impregnou na memria uma confiana ativa ou uma resignao ante as provocaes da vida. 30

  • Autobiografia e filme de si

    Conjugando esses trs parmetros o desenvolvimento do sujeito e sua histria pr-traumtica, a estrutura do trauma e a organizao dos apoios ps-traumticos que poder de fato reunir alguns critrios de resilincia e prever o aparecimento de distrbios ou, ao contrrio, o estabelecimento de um novo estilo de vida. 31

  • A maturao ps-traumtica altera o gosto do mundo

    Esse neodesenvolvimento, ante uma nova realidade, tendo em mente uma nova filosofia de vida, uma nova sensibilidade para o mundo (j no vejo as coisas como via antes), utiliza imagens e as palavras do desastre passado para com elas fazer algo por vir. Utilizar a lembrana de uma ferida para fazer dela uma ao dinmica situa esse trabalho psicolgico bem alm do enfrentamento do trauma e dos fatores de adaptao. O ferido toma novamente nas mos o que lhe aconteceu para fazer disso um novo projeto de vida, s vezes at num contexto adverso. - 34

  • Todo trauma uma relao perversa

    Ficar traumatizado depois de uma geada que destri a colheita e nos condena fome no induz as mesmas representaes que um grupo humano que nos tortura para nos expulsar da humanidade. A estrutura do trauma participa do sentido que se atribui a ele. 38/39

  • O espantalho melanclico

    Uma das maiores chances que se pode ter na vida no ter sido feliz na infncia. O autor dessa frase, um grande nome da sociologia, por muito tempo no quis ouvir falar da Romnia, seu pas natal, onde os judeus era constantemente perseguidos. - 40

  • O meio pode impedir de se sentir espantalho

    Todos esses trabalhos conduzem concluso de que o terrorismo provoca resultados contrrios aos pretendidos: ele une os agredidos e refora sua motivao, sem falar que ele legitima uma contraviolncia. Esse fenmeno psicossocial provavelmente explica a cumplicidade dos extremismos que, ao se oporem reforam-se mutuamente e radicalizam suas polticas. 44/45

  • No necessrio ser alegre para ter humor

    Outras experincias nos ensinaram a fora organizadora de uma troca de sorrisos. [...] O humor como fator de resilincia no significa zombaria da vtima ou ridicularizar seu sofrimento. O descompasso surpreendente de uma representao dolorosa leva o ferido a por um pouco de leveza no peso de sua vida, a ver as coisas de outro modo remanejar a representao. 46

  • O bode expiatrio, terapeuta txico

    Quando uma criana prisioneira de seu carrasco tem uma probabilidade de adquirir um apego evitativo ou confuso que ultrapassa os 90%, em contraste com os 20% da populao em geral. Mas basta ela encontrar uma nica pessoa para amar, uma nica relao alegre para que esse nmero se torne inferior a 60%. Num contexto de sofrimento, qualquer pequeno sinal de humanidade superinvestido porque faz nascer a esperana que ajuda a suportar as circunstncias adversas. A hostilidade do mundo deixa de ser implacvel, uma luzinha acaba de se acender. 48

  • Funo cultural do delrio lgico

    Qualquer explicao ajuda a se organizar para reparar a ferida e agredir aqueles que nos quiseram tanto mal. O delrio lgico nos alivia e ordena os grupos de autodefesa. - 51

  • Ao, solidariedade e retrica

    Por fim, os fabricantes de relatos, produzem trs tidos de relatos:Um discurso placebo: no foi nada, vai passar.Um discurso nocebo: no h mais nada que se possa fazer!Um discurso explicativo, interativo que possibilite encontros e dai instrues a fim de controlar a situao. Mais tarde, os feridos refletiro sobre ele ou faro dele um relato para remanejar a representao e agregar um engajamento fsico e afetivo. Ento o trabalho de resilincia se torna possvel. 58